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IMAGINAÇÃO E UTOPIA

Discorrer sobre Mozart seria infindável, mas uma anedota ilustra bem a sua imensa
capacidade imaginativa.
Joseph Haydn e Mozart eram compinchas, e com outras pessoas fizeram uma
comezaina em Viena. Durante a refeição, elogiou-se a superior capacidade interpretativa
ao piano dos dois compositores. Então, Mozart desafiou, divertido: «Meus caros: vou
escrever agora mesmo uma peça que nem mesmo o grande Haydn conseguirá tocar!»
Haydn apostou logo uma caixa de garrafas de vinho espumante. Mozart pegou em papel
e lápis e, em poucos minutos, escreveu a peça.
Haydn sentou-se ao piano e começou a tocá-la, aparentemente sem problemas. Mas de
repente, parou e comentou: «Isto não pode ser tocado: tenho a mão direita numa
extremidade do teclado e a mão esquerda no outro, e aqui no meio há uma nota que
deve ser tocada ao mesmo tempo. Isso é impossível!»
«Ganhei! – disse o Mozart - A peça pode ser tocada perfeitamente.»
Sentou-se ao piano e quando chegou ao ponto em que Haydn foi incapaz de prosseguir,
Mozart tocou a nota do meio com a ponta do nariz.
Há escritores notáveis com pouca imaginação. São muito bons observadores e
inteligentes, reflectem com perícia e têm na precisão do verbo a sua melhor arma. Como
Coetzee, Pavese, Martin Amis ou Cossery, de quem gosto muito, mas não pelos golpes
de imaginação. Privilegiam outras qualidades, como a estrutura. Mas Nabokov ou
Camilo José Cela investem mais imaginação numa página que Coetzee num romance.
A falta de imaginação impede-nos de ver o que está diante dos olhos, no sentido que
Frank Zappa esclarece neste seu dito: «A mente é como um paraquedas, só funciona
quando está aberto».
Ramon Gener, um musicólogo espanhol, dá outro exemplo para ilustrar a imaginação
em estado puro de Mozart: o”Dueto do Espelho”.
Trata-se de um divertimento em Sol Maior para dois violinos. A partitura está
desenhada para que os dois violinos a possam tocar ao mesmo tempo, mas lendo-a no
sentido inverso. Para fazê-lo deve pôr-se a partitura sobre a mesa e os violinistas terão
de colocar-se um frente ao outro com a partitura no meio. Desta maneira, começando ao
mesmo tempo, enquanto o primeiro violinista toca o primeiro compasso, o segundo toca
o último (que para ele é o primeiro), quando o primeiro avança para o segundo
compasso, o outro violinista avança para o penúltimo, e assim até ao final.
Observa Gener:«Para conceber um divertimento deste tipo, o que se necessita, em
primeiro lugar e antes que nada, é de muita imaginação».
Sem dúvida, mas do que ele não deu conta é que o acto que esta partitura desencadeia é
a grande metáfora do amor: duas pessoas interpretam de modo inverso a mesma
partitura e onde sintonizam é no ritmo que lhes consente a ilusão de estarem ligados.
Uma quebra de ritmo de ritmo ou uma aceleração do ritmo no outro e as afinidades
esboroavam-se, a identidade que haviam construído perdia o nexo.
«Não concebo a inspiração como um estado de graça nem como um sopro divino, mas
como uma reconciliação com o tema, à força de tenacidade e domínio… De modo que
atiçamos o tema e o tema nos atiça a nós… Todos os obstáculos caem, todos os
conflitos se afastam, e ocorrem-nos coisas que não tínhamos sonhado, e então não há
na vida nada melhor do que escrever.», declarou entretanto um senhor cheio de
imaginação, o Gabriel Garcia Márquez, e disse tudo: a imaginação é apenas a propensão
para ocorrerem-nos coisas com que não tínhamos sonhado.
Esta cultiva-se, treina-se no espaldar da página, é um dispositivo engendrado por um
estado de confiança que reaparece sempre que, para além de reconciliados com o tema,
ficamos impregnados por ele. Aí dá-se a festa das sinapses e a “orgia” é segura.
Embora a imaginação seja individual e não se dê em todas as condições. Como aventava
Auden: «A inteligência só funciona quando o animal não tem medo. Uma atmosfera de
amor e confiança é essencial». Com a imaginação é o mesmo e o outro drama que lhe é
inerente é que a imaginação sem a acção não é nada, a imaginação é transformadora.
Sem poder actuar, entristece.
Às vezes, dada a temperatura cínica em que mergulhámos, interrogo-me em quantos
terá batido fundo o compromisso, que nos chega desde Pico della Mirandola, de que o
homem não deve contentar-se com as coisas medíocres e deve aspirar às mais altas.
Porque para isso é preciso que a imaginação transforme, que não haja um hiato entre o
que se imagina e a acção.
É por contar com esse hiato que o Trump se dá ao luxo de dizer uma coisa no Discurso
do Estado da Nação e de apresentar exactamente o contrário disso no seu Orçamento,
uma semana depois. Razão tinha a sra., Pelosi em rasgar o seu exemplar do discurso à
frente de todos, prevenindo aliás, Vocês verão o que vem aí.
O que é trágico hoje não é a vida (nunca vivemos tão bem, apesar de tudo), mas a
tragédia da desistência do pensamento perante a vida, porque nos fizeram crer que tudo
o que seja pensável será apenas a última ilusão que o mercado há-de converter em lucro,
e esquecemo-nos de que há dimensões intocáveis, como, no dizer de Levi-Strauss, nos
ensinam os mitos e a música: dimensões que promovem a suspensão do tempo.
É preciso voltar à utopia. Para Tillich as concepções animadas por um conato de
transformação social “pervertem” o sentido da utopia por obra de uma crença cega no
progresso. A seu ver, estas concepções “profanam” a aspiração legitimamente utópica,
dirigida ao inatingível. Às dimensões que promovem a suspensão do tempo.
Quando o tempo se suspende, deixa de haver a necessidade de trocas, a mercadoria
torna-se irrelevante, o desejo de ter volatiza-se.
É necessário voltarmos a crer com ímpeto nos efeitos da imaginação e que esta pode ser
um agente para a utopia.

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