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Introdução

~~ .~,,--I
)xÇ p~". 6kCO--),Jro1' ... aquele que pratica um ato de compreensão
(também no casodo pesquisador)
J
passa a ser participante do didlogo.
Bakhtin (1992: 355)

Não é fácil ler a ~bra de Bakhtin. Ele não produziu nenhuma


súmula de sua teoria, onde se encontram todos os conceitos acaba-
dos e bem definidos. Ao contrário, ao longo de sua vida foi desenvol-
vendo um projeto intelectual, que perseguiu com tenacidade, e foi
trabalhando as noções que criava, refinando-ai. modificando-as. Ve-
remos mais adiante, com mais pormenores, as vicissitudesda recepção
dos textos bakhcinÍanos. .
Bakhtin é um autor que está na moda. Todos falam dele, ci-
tam-no, discutem-no. Ele entrou até no discurso pedagógico dos

\ níveis fundamental e médio de ensino. Diz-se, por exemplo, que só se


pode estudar a língua a partir dos gêneros do discurso. Isso cria dois
problemas. De um lado, existem aqueles que fazem uma recepção
religiosa da obra bakhtiniana. Ela apresenta "i' verdade e cabe a
nós apenas comentá-la. Os que a concebem dessa maneira tornam-se
guardiões temíveis do "texto sagrado". Para eles, ninguém com-
preendeu direito os conceitos bakhtinianos nem percebeu sua comple-

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José lui: Fiorin INTRODU~ÃO AO PeNSAMeNTO O[ BAKHTIN
-t,f' ." •...:

xidade. De outro, existe uma simplificação muito grande das noções ponsivas arivas ajudaram-me a dar a resposta que se manifesta nes-
bakhtinianas, que chega mesmo a sua vulgarização grosseira. te livro. Devo citar três obras brasileiras notáveis para o entendi-
Nosso propósito é fugir de uma e outra posição. Bakhcin apre- mento das concepções bakhtinianas, que serão comentadas na bi-
senta um pensamento absolutamente original sobre a linguagem e bliografia: 1) Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Circulo de
podemos continuar a desenvolver seu projeto, seja operacionali- Bakhtin, de Carlos Alberto Faraco; 2) Bakhrin: conceitos-chave, or-
",' zando melhor seus conceitos, seja refinando-os cada vez mais. Nada ganizada por Beth Brair, 3) Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e oflr-
"
mais antibakhtiniano do que a compreensão passiva ou a aplicação malismo russo, de Cristóvão Tezza.
mecânica de uma teoria. Como este livro é uma introdução ao pensamento de Bakhtin,
Toda compreensão de um texto, tenha ele a dimensão que era preciso escolher, na grande obra do filósofo, alguns conceitos
tiver, implica, segundo Bakhtin, uma responsividade e, por conse- que me parecem fundamentais para compreender seu projeto teó-
guinte, um juízo de valor. O ouvinte ou o leitor, ao receber e com- rico. Meu critério de seleção foi tratar daquelas noções que estão mais
preender a significação lingüística de um texto, adora, ao mesmo difundidas e vulgarizadas. Por isso, depois de narrar brevemente
tempo, em relação a ele, uma atitude responsiva ativa: concorda ou , quem foi Bakhtin e apresentar, de maneira concisa, seu projeto in-
discorda, total ou parcialmente; completa; adapta; etc, Toda com- telectual (capítulo 1), discuto os conceitos de dialogismo (capítulo 2),
preensão é carregada de resposta. Isso quer dizer que a compreen- de gêneros do discurso (capítulo 3), de prosa e de poesia (nesta seção,
são passiva da significação é apenas parte do processo global de com- examina-se também a noção de polifonia; capítulo 4), de carnava-
preensão. O todo é a compreensão responsiva ativa, que se expressa lização (capítulo 5). No capitulo 6, o último, faz-se urna incursão
num ato real de resposta. pela teoria bakhtiniana do romance, para entender por que Bakhein
Compreender é participar de um diálogo com o texto, mas colocou a reflexão sobre esse gênero no centro de sua obra. Final-
também com seu destinatário, uma vez que a compreensão não se mente, apresenta-se uma bibliografia comentada.
dá sem que entremos numa situação de comunicação, e ainda com Nessa seleção, inúmeros conceitos fidram de fora: ideolo-
outros textos sobre a mesma questão. Isso quer dizer que a leitura ~, evento estético, exotopia.' arquitecônica, etc, Por outro lado-;-;ão
de uma 09ra é social, mas também individual. Na medida em que se aprofundam as concepções filosóficas do autor nem se dá o de-
o leitor se coloca como participante do diálogo que se estabelece vido destaque à dimensão ética de seu projeto teórico. Este livro é,
antes de tudo, um convite a penetrar o universo fascinante do pen-

\
em torno de um determinado texto, a compreensão não surge da
sua subjetividade. Ela é tributária de outras compreensões. Ao mes- samento bakhtiniano, é uma incitação à leitura da obra desse gran-
mo tempo, como o leitor participa desse diálogo mobilizando aquilo de pensador. Ele foi assim concebido e, portanto, tem essa expec-
tativa de resposta.
que leu e dando a todo esse material uma resposta ativa, sua leitura
é singular.
O livro que ora apresento é a materialização de minha com-
preensão responsivaativa da obra de Bakhrin. No meu diálogo com os
escritos bakhtinianos, muitas outras expressões de compreensões res-

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Vida e obra

Em sua época, Chesterton dividiu a espéci« humana em três grandes


categorias:"pessoassimples': "intelectuais"e "poetas".As pessoassimples"
são capazes de sentir, mas não 4<: expressarseus sentimentos; os
"intelectuais"são capazesde menosprezar com perfiíçáo ossentimentos das
"pessoassimples", de rídicularizÁ~fase de arrancar de sipróprios esses
sentimentos; e os "poetas';ao contrário, foram agraciadoscom a capacidade
de expressar aquilo que todo mundo sente, mas ninguém sabe dizer.
De acordo com essaclassificação,Bakhtin pertence ao grupo dospoetas.
Sergei Averintsev

Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu no dia 16 de novem-


bro de , 1895 em Orel, pequena cidade ao S1J!I
de Moscou. Era de
uma familia aristocrática empobrecida. Seu pai era empregado de um
banco. Aos nove anos, mudou-se com a família para Vilna, capital
da Liruânia, cidade em que conviviam muitas línguas, diferentes
grupos étnicos, diversas classes sociais. Nela, falavam-se, por exern-
°
\
pio, o polonês, o lituano, iídiche. Observe-se que, desde muito,
cedo, ele tem uma vivência com a poliglossia (a variedade de lín-
guas), o que vai marcar sua obra.
Aos 15 anos, vai para Odessa, cidade também marcada pelo
plurilingüismo, onde há uma forte influência judaica. Aí começa
seus estudos universitários. Depois de um ano, transfere-se para a
Universidade de São Petersburgo, onde se matricula no Depar-
tamento de Letras Clássicas e se forma em História e Filologia.

s
José luíz ~iorin INrRODU~ÃO AO PEfvSAMENfO DE BAKHrlr~

Como a maioria dos intelectuais de sua geração, apoiou a Revolução da contabilidade para empregados de fazendas colerivas, redator de
de 1917. verbetes de enciclopédia... Nesse tempo, porém, trabalha em ensaios
De 1918 a 1920, foi professor em Nevel, onde constitui um sobre sua, teoria do romance.
círculo de amigos, que vai manter-se e ampliar-se e, mais tarde, será Em 1936, vai para Saransk e, no ano seguinte, para Savelovo,
conhecido como Círculo de Bakhtin. De 1920 a 1924, habita em onde, até o fim da Segunda Grande Guerra, ensina russo e alemão.
Virebsk, cidade imortalizada na obra de Marc Chagal, que era o co- Em 1940, apresenta, no Instituto Gorki, sua tese de doutoramento,
missário local para as Artes e o fundador da Academia de Artes da intitulada Rabelais e a cultura popular. Devido à guerra, não conse-
localidade. Vitebsk era um animado centro cultural. Nessa cidade, gue defendê-la, o que sóé feito em 1946. Esse trabalho gera grande
Bakhtin continua a ensinar. Participam do Círculo, entre outros, o polêmica e, depois de muitas idas e vindas, um comitê encarre-
filósofo Marvei Issaévitch Kagan, que se formara na Alemanha, Va- gado de decidir sobre sua aprovação faz, em 1952, o julgamento
lenrin Nikolaévitch Voloshinov e Pável Nikolaévitch Medvedev. final, negando-lhe o título de doutor. Esse trabalho, publicado em
,i.•..Em 1921,
. .--
Bakhtin casa-se com Elena Aleksandrovna Okolé- 1965, 'deu-lhe renome mundial.'
virch, que foi sua companheira até morrer, em 1971. Ainda em Em 1945, voltara a Saransk, onde passara a ensinar Litera-
1921, é atingid~.p.~E_l!J!!_~enfermidade óssea, Uma osteornielite crÔ~. tura e a chefiar o Departamento de Estudos Literários no Instituto
_f.li~,,"ql,!~~)e.yará, em 1938, ~a~~utar uma perna. Em Vitebsk, pu- Pedagógico de Saransk, elevado, em 1957, a Universidade Estatal
blica seu primeiro ensaio, intirulado Arte e responsabilidade, em que da Mordóvia. Permaneceu nessas funções até 1961, quando se apo-
explora as relações entre as formas artísticas e a vida social. sentou. Em 1969 busca tratamento médico na região de Moscou,
Devido às condições de saúde, em 1924 muda-se para Lenin- onde reside até sua morte, depois de longa enfermidade, em 1.975.
grado, onde, sem emprego, sobrevive graças a um pequeno auxílio- Como se infere das informações acima, Bakhtin teve uma
doença. Apesar das privações materiais, não deixa de escrever. No vida
,
absolutamente comum, uma carreira apagada,I
Ele nunca teve
período de 1924 a 1929, publica quatro trabalhos importantes: O apego a cargos e-posições, nunca teve interesse pela fama e pelo pres-
método formal nos estudos literários, Discurso na vida e discurso na tígio.' Sua trajetória foi marcada pelo ostracismo, pelo exílio e pela
arte, Freudfsmo: uma critica marxista c Marxismo efilosofia da lin- marginal idade dos círculos acadêmicos mais presrigiados. Teve, no

\ ..~ g~?!~~;i,E::~~::::::::
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çados em um campo de concentração em Solóvk.i.Não se conhecem
I
entanto, ao longo de sua vida, uma intensa atividade de reflexão e
escrita, que fez dele um dos grandes pensadores do século xx.
Sua obra é fascinante, inovadora, rica, mas, ao mesmo tem-
po, complexa e difícil. Várias são as razões que tornam sua leitura
muito bem as razões dessa condenação. Alguns autores dizem que árdua e trabalhosa. Em primeiro lugar, sua maneira de escrever.Dian-
ela se deveu a suas relaçõescom a Igreja ortodoxa. Por causa da saúde· r te de duas tradições do pensamento filosófico, uma, que vê a reali- :.'
precária, sua internaçâo em um campo de concentração é transfor- dade como unidade, homogeneidade, estabilidade, acabamento,
mada em exílio na cidade Kustanai, na fronteira do Cazaquistão .monologismo, e outra, que a considera diversidade, heterogenei-
com a Sibéria. Ai exerce diversos trabalhos: guarda-livros, professor dade, vir a ser, inacabamento, dialogismo, Bakhtin filia-se à segunda.

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José luiz fiorin INTR.ijOUGÃO AO PfNSAMfNIO Of BAKHrlN

A composição de seus textos reflete essa maneira de apreender os Essa discussão ainda parece longe do fim. Os estudiosos da
fenômenos. Bakhtin não ela.borou uma obra didática, pronta para obra bakhtiniana dividem-se em três posições:
ser ensinada naescola. Não há nela uma teoria facilmente aplicável a) aqueles que consideram Bakhtin o autor de todos os livros
i-iem uma metodologia acabada para a análise dos fatos lingüísticos que Ivanov afirmou que eram da autoria do filósofo;
e literários. Ao contrário, sua obra vai examinando progressiva- b) os que pensam que Bakhrin só deve ser considerado au-
". mente conceitos. Ela é marcada por um inacabamento, um vir a tor dos textos publicados com seu nome ou encontrados
ser, uma heterogeneidade, que tornam muito complexa a apreensão em seus arquivos;
de seu pensamento. Muitos de seus textos são inacabados no sen- c) aqueles que, não considerando resolvido o problema da
tido literal do termo, pois eram manuscritos ainda não concluídos, autoria, atribuem essas obras aos dois autores: assim, por
eram rascunhos. exemplo, Marxismo efilosofia da linguagem aparece como
Em segundo lugar, contribui para essa dificuldade de com- sendo de Bakhtin/Voloshinov e O métodofomial nos estudos
preensão a maneira como suas obras foram publicadas na antiga literários é considerado de Bakhtin/Medvedev.
União Soviética e no Ocidente. Comecemos por verificar como fo-
Embora tenhamos forte inclinação por aceitar a segunda po~
ram editadas em seu país natal. Na história das publicações de seus
sição, porque, a partir da década de 1960, Bakhrin poderia ter reivin-
livros, há dois problemas: obras que lhe são atribuídas, mas que fo-
dicado a autoria dessas obras e jamais o fez e porque os argumentos
ram publicadas em nome de outros aucores, e textos que vieram à em que se baseiam Ivanov e outros que assumem a primeira posição
luz postumamente. são extremamente frágeis,.em geral, fundamentados em episódios ane-
São (ou melhor, foram) consideradas, entre outras, obras de dóticos de difícil comprovação (por exemplo, o fato de que a mulher
Bakhtin: O discurso na vida e o discurso na arte (1926); Freudismo: de Bakhtin, ao ver sobre uma mesa o livro assinado por Medvedev,
um esboçocrítico (1927) e Marxismo efilosofia da linguagem (1929), disse que copiara muitas vezes aquele texto)/ neste trabalho vamos
assinadas por V. N. Voloshinov, e O métodoformal nos estudos lite- adorar uma posição mais tradicional, que é a terceira.
rdrios (1928), atribuída a P. N. Medvedev. O problema da autoria O segundo problema- relativo à publicação da obra de Bakhrin
aparece na Idécada de 1970, quando, depois de quase crês décadas é que ela não veio à luz na ordem em que foi escrita. Assim, em 1963,
de silêncio, o nome de Bakhtin entra novamente no circuito acadê- apareceseu trabalho sobre Dosroievski,em 1965, seu livro sobre Rabe-

\
mico com a publicação de Problemas da poética de Dostoieiski, em lais; só depois de sua morte, em 1975, sua obra sobre a teoria do ro-
1963, e Rabelais e seu mundo, em 1965. O lingüista Viatcheslav V. mance, volume preparado por Bakhtin, mas com textos que ele havia
Ivanov afirma que o livro Marxismo efilosofia da linguagem era de escrito já na década de 1930. Em 1979, vem a lume um trabalho
Bakhtin e, mais tarde, atribuiu-se a ele a autoria da totalidade dos com material de arquivo. Bakhtin deixou inúmeros textos manuscri-
textos acima mencionados e de alguns outros. Segundo alguns, eles tos, que ainda hoje estão sendo publicados. Em 1986, edita-se Para
apareceram sob a responsabilidade de outros autores porque, devi- uma filosofia do ato, trabalho produzido entre 1919 e 1921. Assim,
do a razões políticas, Bakhrin não pôde publicar esses trabalhos em não se conhece tudo o que Bakhcin realmente escreveue o material de
seu nome. arquivo é constituído, .corno já se disse, de textos inacabados.

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. José lui: fiorin INrRonU~ÃO AO nNSAMUnO DE BAKHIIN

No Ocidente, Bakhtin começa a ser conhecido a partir de daquela publicada em 1979, em russo, com material do ar-
1967, quando Júlia Kristeva, búlgara que estudava na França, pu- quivo de Bakhtin; em 2003, a Martins Fontes publicou uma
blica uma apresentação de suas obras sobre Dosroievski e Rabelais, nova tradução, dessa vez feita do russo por Paulo Bezerra).
na revista Critique: "Bakhtin, o discurso, o diálogo, o romance". 6. BAKHTIN,M. M. (2001). Ofre udismo: um esboço critico.
Em 1968, aparece, em italiano, uma tradução da primeira das duas Tradução do russo por Paulo Bezerra.São Paulo: Perspectiva.
obras e, em inglês, urna tradução da segunda. Em 1970, ambas são
Essa dificuldade de leitura da obra bakhriniana fez aparece-
publicadas em francês. Também no Ocidente não se publicou sua
rem diversos Bakhtins. Há um Bakhtin pós-modernista. Afinal, ele
obra na ordem em que foi elaborada. Acresce a isso o fato de que
se posicionou contra ô que se convencionou chamar. as grandes
muitos textos não foram traduzidos diretamente do russo, mas de
narrativas do final do século XIX e do inicio do século XX, criticou
outras línguas.
o estruturalismo, a psicanálise, o formalismo, não foi existencialista,
Em português, apareceram em livros as seguintes obras:
não aderiu propriamente ao marxismo, negou o colerivisrno.Mostrou
1. BAKHTIN,M. M./VOLOSHINOV,V. N. (1979). Marxismo e que todas as explicações rotalizantes eram monológicas. Dai se con-
filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método clui que não foi um modernista.
sociológicona ciência da linguagem. Tradução do francês por Por outro lado, o acento de sua obra na alteridade, na frag-
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, mentação, na energia .centrffuga, na rejeição das forças centrípetas,
2. BAKHTIN,M. M. (1981). Problemas da poética de Dostoie- na carnavalização com sua luta contra a autoridade, na negação das
vski. Tradução do russo por Paulo Bezerra. Rio de Janei- diferenças entre cultura popular e cultura erudita, na não-hierarquia,
ro: Forense Universitária. no relativismo faz dele um {cone dos teóricos da pós-rnodernidade.
3. BAKHllN,M. M. (1987). A cultura popular na Idade Mé- No entanto, Bakhtin recusaria um relativismo total que faz surgi-
dia e no Renascimento: o contexto da obra de FrançoisRabelais. rem novos monologismos: as seitas totalitárias, os mitos nacionais,
Tradução do francês por Yara Frateschi Vieira, Brasília: a xenofobia, o fundamentalismo ... Além disso, é estranho ao pen-
Editora da UNB. samento bakhtiniano ver o lugar da supremacia como corrompido
4. BÁKHTIN,M. M. (1988). Questões de literatura e de estéti- e corruptor e encontrar a virtude em outro lugar, nos excluídos, nos
ca: a teoria do romance. Tradução do russo por Aurora marginalizados, nos que estão fora do centro. Para ele, a ação ética

\ Fornoni Bernardini et alii, São Paulo: Editora da UNESP


e Hucitec (essevolume é a tradução do livro preparado por
Bakhtin antes de sua morte e publicado na antiga URSS
não pode desprezar o tempo e o lugar em que se vive.
Há um Bakhtin interacionista. Afinal, ele tratou fundamen-
talmente das relações do eu com o outro. Entretanto, o outro é urna
em 1975). posição social, expressa num texto. As relações dialógicas de que ele
5. BAKHTIN,M. M. (1992). Estética da criação verbal. Tradu- se ocupou não sáo o diálogo face a face, mas as relações entre posi-
ção do francês por Maria Ermantina Galvão Gomes Pe- ções sociais. Portanto, nada mais avesso à obra bakhtiniana do que
reira. São Paulo: Martins Fontes (essa obra é uma tradução os estudos da chamada Análise da Conversação.
i,
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José luiz fiorin INTRODUÇÃO AU ptNSAMt~TO Of BAKHTIN

Há um Bakhtin marxista. É verdade que seu Círculo buscou pensamento que contrapõe o objetivo ao subjetivo, o social ao in-
criar, como explicaremos logo em seguida, uma teoria marxista das dividual, o universal ao singular.
superestruturas. Isso aparece, porém, muito mais nos livros cujaau- O ser é um evento único. É para a existência do ser hwnano
teria é atribuída a Bakhein do que naqueles que foram publicados concreto que se volta Bakhtin. Sua filosofia primeira não construi-
com seu nome. Ademais, como veremos na seqüência, uma das ta- rá leis gerais, mas será wna fenomenologia dos eventos. A unicida-
refas que se deu Bakhtin foi a de estabelecer uma prima philosophia, de do ser humano existe na ação, no ato individual e responsável.
ou seja, o ponto de partida, o fundamento último, o primeiro ab- Viver é agir e agir em relação ao que não é o eu, isto é, o outro. Eu
soluto, os princípios básicos do conhecimento humano. Ora, nada e outro constituem. dois universos de valores ativos, que são cons-
está mais distante de qualquer feição do marxismo do que uma fi- titutivos de todos os nossos aros. As ações concretas realizam-se na
losofiaprimeira. conrraposição de valores.
Há um Bakhtin lingüista, um Bakhtin teórico da literatura. No Há três eixos básicos do pensamento bakhtiniano: unicidade
entanto, ele não produziu uma teoria acabada da linguagem e dos do ser e do evento; relação eu/outro; dimensão axiológica. São essas
diferentes níveis da língua, nem uma teoria da literatura completa. coordenadas que estarão na base da concepção dialógica da linguagem.
Lido à maneira de cada corrente do pensamento contempo- A segunda preocupação do projeto do Círculo bakhtiniano
râneo, transformado em precursor ilustre das visõesteóricasmais díspa- era a elaboração de urna teoria marxista da superestrutura. Na tó-
res, movimentos contraditórios de idéias apropriaram-se de Bakhtin. pica marxista, a superestrutura é constituída do processo social, po-
Não obstanre isso, ele continua sendo um dos pensadores mais fe- lírico e espiritual da vida e de seus produtos; compreende toda a
cundos do século XX, que apresenta uma originalidade ímpar. produção e os produtos do "espírito" humano.
Segundo Carlos Alberro Faraco, um dos mais importantes es- O que se destaca nesse intento teórico é, em primeiro lugar,
tudiosos brasileiros da obra do filósofo russo, o projeto intelectual do uma crítica radical ao economicismo de <J>ue estava eivada certa con-
Círculo de Bakhtin era constituir uma prima pbilosophia e uma teo- cepção vulgar do marxismo, que, raciocinando por urna lógica me-
ria marxista da superestrutura. Vamos resumir como o estudioso ana- canicista, pensava a relação entre infra-estrutura e superestrutura por
lisa essf projeto. meio de urna causalidade simples, direta e unilinear, O Círculo não
Sua filosofia primeira era uma arquitetura do ato. Para ele, nega que a infra-estrutura determine a superestrutura, mas isso se
há urna dissociação entre o mundo da teoria e o mundo da vida. O faz por mediações muito finas e complexas, que é preciso desven-
primeiro é o das generalizações. O segundo é o da historicidade viva, dar. Em segundo lugar, os teóricos do Círculo dão um papel central
em que seres únicos realizam atos irrepetfveis. Esses dois mundos à linguagem na constituição da superestrutura.
são incomunicáveis porque a teoria é incapaz de apreender o ser e,
o evento únicos. Bakhein não é o filósofo do irracionalismo. O que
critica, ao mostrar a separação dos mundos da teoria e da vida, é
um pensamento que só se importa com o sistema, o universal, e não
se preocupa jamais com o evento, o ato particular, o singular; um

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INTROOUtÃO AO rfNSAMENTO OE BAKHTIII

Ao contrário, todos os enunciados no processo de comunicação,


2 independentemente de sua dimensão, são dialógicos. eles, existe
uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela
palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do

o dialogismo outro. Isso quer dizer que O enunciador, para constituir um discur-
_s,9, le~~a o discurso de outrem, ue está resente no seu.
Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo
discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se esta-
belecem entre dois enunciados.
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo
discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em
É preciso explicar passo a passo o que foi enunciado no pa-
todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se rágrafo precedente. Por ue e...&,kbtindá um a el centr~
encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com à linguagem em sua teo 'a S perestrut ra? Porque não se tem

ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mltico que chegou acesso direto à reali ade, uma vez ue ele é sempre mediado pela
com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, .!}nguagem. 9 real apresenta-se para nós sempre semioticarnenre, ou
somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua seja, lingüisticamente.
orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso
Um objeto qualquer do mundo interior ou exterior mostra-se
humano, concreto e histórico, isso não é possluel: só em certa medida e
sempre perpassado por idéias gerais, por pontos de vista, por apre-
convencionalmente é que pode dela se afastar.
Bakhrin (1988: 88) ciações dos outros; dá-se a conhecer para nós desacreditado, con-
testado, avaliado, exaltado, caregorizado, iluminado pelo discurso
alheio. Não há nenhum objeto que não apareça cercado, envolto,
É dentro do projeto de investigação, que acaba de ser deli-
embebido em discursos. Por isso, todo discurso que fale de qual-
neado em rápidas pinceladas, que surge o conceito de dialo ismo,
quer objeto não está voltado para a realidade em si, mas para os dis-
princípio unificador da obra de Mikhail Bakhtin. O teórico russo
cursos que a circundam. Por conseguinte, toda palavra dialoga com
enuncia esse princípio e, em sua obra, examina-o em seus diferentes outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está rodeada
ângulos e estuda detidamente suas diferentes manifestações. Essa de outras palavras.
noção ~ não só a concepção bakhtiniana de linguagem como Quando alguém diz "É mulher", não está simplesmente
é constitutiva de sua antropologia filosófica. Comecemos por ana- enunciando um dado da realidade. Se estiver declarando isso com
lisá-la na linguagem. admiração, mostrando que as mulheres são dotadas de uma fibra
Segundo Bakhtin, a língua, em sua totalidade concreta, viva, incomum, estará opondo-se a outros discursos, que embebem essa
em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações afirmação de desdém, que insistem em manifestar a inferioridade
dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face do sexo feminino - corno se costuma fazer em nosso país, por exem-
a face, que é apenas uma forma composicional, em que elas ocorrem. plo, ao ver alguém cometer uma manobra inábil no trânsito e ao

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José luiz Fiorin INTROOU~ÃO AO HNSAMENTO DE BAKHTIN

notar que o motorista é uma mulher. O discurso com apreciação diatamente relacionada aos discursos que falam sobre a língua, que
adrnirativa dialoga com o discurso com entonaçâo desdenhosa, um a descrevem, que a analisam. O que Bakhrin tinha em mente era
constitui-se a partir do outro. constituir uma ciência que fosse além da lingüística, examinando o
A prima phiiosophia bakhtiniana estava voltada para a unici- funcionamento real da linguagem em sua unicidade e não somente
dade do ser e do evento. Essa concepção leva a uma distinção muito o sistema virtual que permite esse funcionamento.
importante que é preciso esclarecer. ~ão são as unidades da língua Caberia perguntar se os enunciados, sendo acontecimentos
que são dialógicas, mas os enunciados. únicos, podem ser objetos da ciência, uma vez que esta se funda so-
- As unidades da língua são os sons, as palavras e as orações, bre a repetibilidade. Bakhtin debruça-se longamente sobre a epis-
enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação. As temologia das ciências humanas e patenteia que, em seu ponto de
primeiras são repetíveis. Com efeito, um som como Ipl, uma palavra partida, elas operam sempre sobre singularidades e só depois fazem
como "irmão", uma oração como "~ preciso ser forte" são repeti- generalizações sobre a forma específica e a função dos objeros singu-
dos milhares e milhares de vezes. No entanto, os enunciados são ir- lares. O objeto, pois, da translingüística são os aspectos e as formas das
repetfveis, uma vez que são acontecimentos únicos, cada vez tendo relações dialógicas entre enunciados e entre suas formas tipológicas.
um acento, uma apreciação, uma entonaçâo próprios. Não é a dimensão que distingue uma unidade da língua de um
Ao contrário do que quer fazer crer uma leitura da obra de enunciado, pois este pode ir desde uma réplica constituída de uma
Bakhtin guiada pelo marxismo vulgar, o filósofo não nega a existên- única palavra (por exemplo, "não") até uma obra em vários volumes.
cia da língua nem condena seu estudo. Ao contrário, considera-o ne- O que os diferencia é que o enunciado é a réplica de um diálogo,
cessário para compreender as unidades da língua. No entanto, ele pois cada vez que se produz um enunciado o que se está fazendo é
mostra que a fonologia, a morfologia ou a sintaxe não explicam o nm- participar de um diálogo com outros discursos. O que delimita, pois,
cionamento real da linguagem. Por isso, propõe a criação da trans- sua dimensão é a alternância dos falantes. Um enunciado está aca-
lingüística, que teria como objeto o estudo dos enunciados, o que bado quando permite uma resposta de outro. Portanto, Q que é
,
significa dizer o exame das relações dialógicas entre eles, dado que são constitutivo do enunciado é ue ele não existe fora das relações dia- .•..•
necessariamente dialógicos. lógicas. Nele estão sempre presentes ecos e lembranças de outros_
Em algumas traduções das obras de Bakhtin, o termo "trans- enunciados, com que ele conta, ue ele refuta, confirma, completa,
lingüística" aparece como "meralingüística". Esse problema de deno- pressupõe e assim por diante. Um enunciado ocupa sempre uma po-
minação é uma prova do acerto bakhtiniano a respeito da diferença sição numa esfera de comunicação sobre um dado problema.
entre as unidades potenciais da língua (objeto da Iingüfstica) e as Analisemos um exemplo. Certa ocasião, Anthony Garotinho,
unidades reais de comunicação (objero da translingüíscica). Do pon- então governador do Rio de Janeiro, definiu o PT como o "partido
to de vista do sistema da língua, meta- (prefixo grego) e trans- (pre- da boquinha", O que ele queria dizer, em tom zombeteiro, é que o
fixo latino) são absolutamente equivalentes, pois ambos significam PT era o partido dos que pretendiam tirar vantagem material de
"além de". No entanto, eles são completamente diversos da pers- algo (no caso, o aparelho do Estado) sem fazer esforço. Nessa época,
pectiva do funcionamento discursivo, pois metalingüfstica é irne- ainda não haviam ocorrido os fatos a respeito de mensalões, finan-
/
20 21
~rl
José luiz fiorin INIAODUCÃO AO PUISAM[NTO Df BAKHTIN
!
iarnento ilegal de campanhas, desvio de recursos, que estarrece- não é endereçada a ninguém, está disponível para caracterizar qual-
ram, entristeceram e revoltaram os brasileiros. O PT apresentava-se quer um. Quando é assumida por alguém e ganha um acabamento
como o partido da ética. Por isso, o enunciado do governador específico é que ela se converte em enunciado e, portanto, passa a
Garotinho é uma réplica ao enunciado "O PT é o partido da ética". ser dirigida a alguém.
Constitui-se a partir deste enunciado, refutando-o. Ocupa, portanto, As unidades da língua são neutras, enquanto os enunciados car-
uma posição dentro da comunicação política sobre o julgamento da regam emoções, j uízos de valor, paixões.A frase "Ele é gay", enquanto
aruação dos partidos. unidade da língua, é absolutamente neutra. Já quando se converte
Continuemos a detalhar as diferenças entre as unidades da lín- em enunciado está impregnada de respeito ou de zombaria, de des-
gua e os enunciados. Aquelas não pertencem a ninguém, não têm dém ou de indiferença, de raiva ou de amor e assim sucessivamente.
autor. Com efeito, uma palavra como'" ia' está à disposição de As unidades da língua, sendo entidades potenciais, têm sig-
todos para ser usada nos enunciados, ninguém pode reivindicar sua nificação, que é depreendida da relação com outras unidades da mes-
autoria. Por isso, as relações entre as unidades da língua são relações ma língua ou de outros idiomas: por exemplo, a palavra "homem ",
semânticas ou lógicas (por exemplo, relações de sinonimia ou an- em português, significa tanto "ser humano" - e, nesse caso, englo-
tonírnia: "casado" é antônimo de "solteiro"; "azedume" é sinônimo ba homens e mulheres - quanto "indivíduo do sexo masculino" e,
de "acrirnônia": no período "Embora os petistas digam o contrário, então, opõe-se a mulher. Os enunciados têm sentido, que é sempre
a existência do rnensalão está comprovada", a relação entre as duas de ordem dialógica. Quando num dos debates entre Lula ~ Colior,·~
'--
orações é de concessão). Já os enunciados têm autor. Por isso, revelam na campanha para o segundo turno das eleições presidenciais de
uma posição. Quando alguém diz "água" numa brincadeira que en- 1988, este mencionou o caso Lubeca, um negócio escuso que teria
volve luta, o termo deixa de ser uma unidade da língua, pois, ao ga- ocorrido na prefeitura de São Paulo, na época governada pelo PT,
nhar um autor, torna-se um enunciado e significa que a pessoa que Lula respondeu a ColIor: "Eu sabia que você era coUorido por fora,
o rOOljJlÓOUestá rendendo-se. - - _--- mas caiado por dentro".
Uma outra diferença é que as unidades da língua são comple- Não basta saber o que significa cada uma das unidades da
tas, mas não têm um acabamento que permite uma resposta. Cada língua que compõem esse enunciado, para apreender seu sentido.
palavra, cada oração, cada período tem uma cornpletude. Ela, po- Para isso, é preciso perceber as relações dialógicas que ele mantém j'
rém, não possibilita uma resposta. Ninguém vai responder à pala- com outros enunciados do discurso político brasileiro na época:
vra "corrupto", embora da esteja completa. O enunciado, entretanto, "collorido", com dois /11, fazia referência ao nome de Collor e, por-
sendo uma réplica, tem um acabamento específico que permite uma tanto, designava seus partidários; Ronaldo Caiado, candidato à
resposta. Quando alguém assume essa palavra e a transforma num presidência da República, era o postulante ao posto presidencial
xingamento, ela torna-se um enunciado,~[upto!", e, portanto, mais à direita; o espectro político e tinha sido o primeiro a fazer a
ganha um acabamento que admite uma resposta. denúnciade existência de corrupção na suposta transação da pre-
As unidades da língua não são dirigidas a ninguém, ao passo feitura com a Lubeca; Collor apresentava-se como um candidato
que os enunciados têm um destinatário. A palavra "incompetente" de centro-esquerda' Sendo uma réplica aos enunciados do discurso

22 23

-
José Luiz fiorin INTROOU~~O AO PlNSAM~NIO Dé BAKHTIN

político da época, o conteúdo desse enunciado seria: eu sabia que você A relação contratual com um enunciado, a adesão a ele, a acei-
era de centro-esquerda na aparência, mas na essência é de direita. tação de seu conteúdo fazem-se no ponto de tensão dessa voz com
outras vozes sociais. Se a sociedade é dividida em grupos sociais, com
interesses divergentes, então os enunciados são sempre o espaço de
Primeiro conceito de dialogismo luta entre vozes sociais, o que significa que são inevitavelmente o
lugar da contradição. O que é constitutivo das diferentes posições
Como se viu acima, todo enunciado é dialógico. Portanto, o sociais que circuJam numa dada formação social é a contradição. O
dialogisrno é o modo de funcionamento real da linguagem, é o prin- contrato se faz com uma das vozes de uma polêmica.
cípio constitutivo do enunciado. Todo enunciado constitui-se a partir Vamos apresentar um exemplo de uma dessas vozes que cir-
de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele culam na formação social e mostrar como se constitui. Tomemos
ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes. Mesmo que elas não se para isso um trecho do romance O missionário, de Inglês de Sousa:
manifestem no fio do discurso, estão aí presentes. Um enunciado.é
semEre heterogêneo, pois ele revela duas posições,-~~; e :quel~ Entregara-se,de corpo e alma, à seduçãoda linda raparigaque
em oposi ão' ual ele se constrói. Ele exibe seu direito e seu avesso. lhe ocupara o coração.A sua natureza ardente e apaixonada,extre-
Por exemplo, quando se afirma "Negros e brancos têm a mesma ca- mamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Semi-
I pacidade intelectual", esse enunciado só faz sentido porque ele se nário e pelo ascetismoque lhe dera a crença na sua predestinação,
constitui em contraposição a um enunciado racista, que preconiza quiserasaciar-sedo gozopor muito tempo desejado,e sempre impe-
a superioridade intelectual dos brancos em relação a outras etnias. dido. Não seria o filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devassofa-
Essa declaração deixa ver seu direito, a afirmação da igualdade in- zendeiro de lgarapé-rnirirn,se o seu cérebro não fosse dominado
....• por instintos egoísticos,que a privação de prazeresaçulava e que
I telectual de brancos e negros, e seu avesso, a superioridade intelec-
J ~ ~ uma educaçãosuperficialnão soubera<ti~gar. E como os senho-
.J
~ '" tual dos brancos. Numa sociedade em que não houvesse racismo, ...•..
•'
'til
r res Padresdo Semináriohaviampretendido destruir ou, ao menos,
-1 ~~ ~ não faria sentido, por ser absolutamente desnecessária, a asseveração
de igualdade acima mencionada.
regulare conter a ação determinanre da hereditariedadepsicofisio-
lógicasobreo cérebrodo Seminarista?Dando-lhe uma grande cul-
~ 1 ~l .:
'--' ....
Antes de prosseguir é preciso esclarecer bem um ponto. O tura do espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito,
" "" • vocábulo "diálogo" significa, entre outras coisas, "solução de confli- que lhe excitarao instinto da própria conservação,o interesseindi-
( .... tOS","enrendimento", "promoção de consenso", "busca de acordo", vidual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem. a salva-
~ t o que poderia levar a pensar que Bakhrin é o filósofo da grande ção da alma, e como meio único, o cuidado dessamesmasalvação.
~•.. c /o
conciliação entre os homens. Não é nada disso. As relações di ai ógi- Que acontecera.?No momento dado, impotente o freiomoral para
f - -" . cas tanto podem ser contratuais ou polêmicas, de divergência ou de COntera rebelião dos apetites,o instinto mais forte, o menos nobre,
1 . convergência, de aceitação ou de recusa, de acordo ou de desacordo, assenhoreara-sedaquele temperamento de matuto, disfarçado em
Padre de S. Sulpfcio. Em outras circunstâncias,colocadoem meio
de entendimento ou de desinteligência, de avença ou de desaven-
• ça, de conciliação ou de luta, de concerto ou de desconcerto. diverso,talvezqLleo PadreAntônio de Moraisviessea ser um santo,

24 25
José luiz fiorin INIAOUUCÃO hO ptN~AMENTO DE HAKHII~
{1
no enrido puramente católico da palavra, talvez que viesse a rea- Ve:Lque um locutor não é Adão - que, segundo o %tO bíblico, pro-
lizar a aspiração de sua mocidade, deslumbrando o mundo com o duziu o primeiro enunciado -, um discurso pode ser tanto o lugar
fUlgor de suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas de encontro de pontos de vista de locutores imediatos (por exem-
nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem plo, num bate-papo, numa dmoesiÇã a um filho), como de visões
moral, sem educação ... vivendo no meio da mais completa liber- de mundo, de orientações teóricas, de tendências filosóficas,etc. (por
dade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a discipli-
exemplo, na literatura, nos editoriais, nos programas partidários).
na duma autoridade moral fortemente constituída ... sem estímulos
Ao tomar em consideração tanto o social como o individual, a pro-
e sem apoio ..., devia cair na regra geral dos seus colegas de sacer-
posta bakhtiniana permite examinar, do ponto de vista das relações
dócio, sob a influência enervante do isolamento, e entregara-se ao
dialógicas, não apenas as grandes polêmicas filosóficas, políticas,
vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao
nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.'
estéticas, econôrnicas, pedagógicas, mas também fenômenos da fala
cotidiana, como a modelagem do enunciado pela opinião do inter-
Nesse trecho, há uma voz que interpreta os atos do padre An- locutor imediato ou a reprodução da fala do outro com uma ento-
" ~
tônio de Morais. Fala da inevitabilidade da queda do padre (man- !!.:Sãodistinta da que foi utilizada, adrnirariva, zombeteira, irônica,
ter relações sexuais com Clarinha) em função de um dado ponto de desdenhosa, 'mdignada, desconfiada, aprovadora, reprovadora, du-
vista sobre o porquê das ações humanas e condena duramente a bitativa, erc. Todos os fenômenos presentes na comunicação real po-
educação do seminário, o meio em que o padre vivia e seus colegas dem ser analisados à luz das relações dialógicas que os constituem.
de sacerdócio. Todas as aprecia ões rnoralizantes do tex~ são de res- Os conceitos de individual e de social, em Bakhtin, não são,
ponsabilidade dessa voz, que pensa as ações humanas como fruto porém, simples nem estanques. Em primeiro lugar, o filósofo mos-
de uma determinação mecânica do meio, da heredit~e e d;:- tra que a maioria absoluta das opiniões dos indivíduos é social. Em
momento. Em primeiro lugar, considera a atitude do padre Antô- segundo, explica que todo enunciado se dirige não somente a um
nio de Morais uma degradação. Em segundo, explica "essa rebelião destinatário imediato, cuja presença é percebida mais ou menos
dos apetites" com o fato de que era filho de um pai devasso, de que conscientemente, mas também a um superdesrinarãrio, cuja com-
vivia num meio em que imperava "a mais completa liberdade de preensão responsiva, vista sempre como correra, é dererrninante da
costumes" e de que, num momento de grande desilusão com as ati- produção discursiva. A identidade desse superdestinatário varia de
vidades rotineiras do sacerdócio, encontrara-se sozinho, no meio da grupo social para grupo social, de uma época para outra, de um lu-
mata, com a bela índia Clarinha. gar para outro: ora ele é a Igreja, ora o partido, ora a ciência, ora a
Antes de continuar a discutir esse texto, é preciso examinar "correção política". Na medida em que toda réplica, mesmo de uma
uma questão: as vozes que aparecem nas relações dialógicas são so- conversação cotidiana, dirige-se a um superdesrinarãrio, os enun-
ciais ou individuais? A teoria bakhtiniana leva em conta não somen- ciados são sociais.
te as vozes sociais, mas também as individuais. Segundo ela, uma Quando Ciro Gomes era candidato à presidência da Repú- ,
blica, em 2002, e re pendeu, durante uma entrevista em que lhe fora
perguntado qual era o papel de sua mulher na sua campanha, que
1 INGLts DE SOUSA. O missionário, Rio de Janeiro: Ediouro, 1967. p. 383-384.
l~
26 27
José Luiz fiorin

sua aruação era decisiva, porque ela dormia com ele, o enunciado não
foi dirigido somente a seus enunciatários imediatos, mas também a
INTROnU&ÃO ~O rtNSAMErUn DE 8A~HIIN

às que regem os fenômeno naturais e que a ciência da época~cre-


ditava ter codificado. Hippolyte Taine, filósofo e historiador da lite-
',~r .Ji

um superdestinatário, a "correção política", que reprova totalmente ratura, no prefácio de sua História da literatura ingLesa,2diz que os
pontos de vista rnachistas, racistas, etc, Um comentarista de nossa cena fenômenos humanos são governados por leis tanto quanto são os
política, avaliando o enunciado do candidato, disse que seu con- do mundo marerialjt que a única diferença entre os problemas mo-
teúdo era daqueles em que um candidato não poderia nem pensar. rais e os físicos é que, no caso daqueles, não se dispõe dos mesmos
Como se nota, o enunciado é, na maioria das vezes, social. instrumentos para medir as quantidades enn vidas:" que "o vício e
O sujeito bakhtiniano não está completamente assujeitado aos a virtude são produtos tanto quanto o ~itrío e o açúcar'j> que
discursos sociais. Se assim fosse, negar-se-ia completamente a concep- "três fontes diferentes contribuem para produzir o estado moral ele-
ção de heteroglossia e de dialogismo, centrais na obra ~fo. A mentar, a raça, o meio e o momento", sendo que o que se chama raça
utopia bakhtiniana é poder resistir a todo processo ffnrrípeto e ~ são as disposições inatas e hereditárias, que o meio é físico e social.v
tralizador. No dialogismo incessante, o ser humano encontra o espa- Esse ponto de vista determinista sob~e"a aç~ human
ço de sua liberdade e de seu inacabamento. Nunca ele é submetido constitui-se em posr~ma concePÇão - presente, por exem-
completamente aos discursos sociais. A singularidade de cada pessoa 10, n.:_!teratur rornânti - d-;-qu~-o ser humano é livre em se~
no "simpósio universal" ocorre na "interação viva das vozes sociais". atos, que resultam mpre de escolhas, muitas vezes de escolhas he-
Nesse "sirnpósio universal", cada ser humano é social e individual. ;&'as. É o que fica claro na construção da personagem Seixas, do
Voltemos ao texto de O missionário. Sendo participante da co- romance Senhora, de José de Alencar. Seixas deseja enriquecer; por
municação cultural, o romance manifesta vozes claramente sociais. isso, abandona a mulher que ama e contrata um casamento com
O padre Antônio de Morais, submetido a determinações cegas, aban- uma herdeira que lhe traria um bom dote; mais tarde, recebendo a
dona o sacerdócio para viver com a bela índia Clarinha. Seu ato é proposta de se casar com uma moça que conheceria apenas depois
determinado biologicamente pela hereditariedade (herdara do pai de formalizar o contrato e que lhe daria um dote maior, desfaz o com-
um caráter extremamente sensual), historicamente pelo momento promisso assumido e resolve casar-se com a desconhecida, que não
(estava profundamente insatisfeito com as tarefas rotineiras do sa- é senão a mulher que ele amava; o casamento não se consuma, pois
cerdócio), geograficamente pelo meio (vivia num ambiente em que ela diz que o comprara e que eles aparentariam ser casados; ele de-
imperava a mais completa liberdade de costumes). voLvea ela o dote que recebera e redime-se pelo amor.
Essa concepção da determinação das ações humanas pelo meio, No naturalismo, o campo discursivo literário, devido a essa
pela hereditariedade e pelo momento é própria do aturalismo mo- concepção determinista do agir humano, mantém relaçõesmuito pró-
vimento literário que surge no final do século XIX, quando as ciências
físicas e naturais conhecem grande desenvolvimento, procurando 2 TAlNE., H. Histoire d. la tittlrdture dllg!ai~. Paris: Hachetre, 1866.
3 Idem, p. XXXIX-XL
desvendar os segredos da natureza com a finalidade de colocá-la a ser- 4 Idem, p. XXXII.
viço da produção. As concepções das ciências naturais invadem as 5 Idem, p. xv.
6 Idem, p. XXIII - XXVI. Conforme, também, o. prefácios da I ~ c da ~ edições do livro
ciências humanas. Busca-se explicar os fatos sociais por leis similares Essais de cntioue et d'hútoi,e. Paris:Hachctte, 1923.

28 29
José luiz fiorin INIROOUCÁ~ AO PfNSAMENIO DE 8HHTlfl i~
.o.-
y.. C'
c
os ratos ~ era aque 1a, /que era pre-
que se passavam, que a pergunta nao l
xirnas com o campo discursivo científico. Aspira-se à "objerividade"
do discurso científico. Por isso, narra-se sempre em terceira pessoa, ciso discutir o problema de fundo, o financiamento das campanhas
para criar um efeito de sentido de objetividade, como se os fatos se eleitorais. Quando alguém diz qual é a questão verdadeira que deve
relatassem a si mesmos. Por outro lado, pretende-se descobrir a ver- ser formulada, está agindo no sentido das forças.cenrrípetas.
dade das personagens, dissecaras razõesde seu comportamento. Dessa Já a .~rrisa das verdades oficiais representa as forças centrí-
maneira, os temas são vistos sob a ótica dos modelos científicos. Os fugas em ação.\ Vejam-se alguns exemplos da zombaria sobre as
comportamentos sociais e individuais são considerados efeitos de "verdades" a respeito do caixa dois apresentadas pelo PT e pelo
causas naturais (raça, clima, temperamento) ou culturais (meio, edu- PSDB, extraídos da coluna de José Simão, publicada na Folha de
cação). O narrador almeja a exatidão das teorias científicas. S.Paulo. Rindo dessas tais "verdades", mostra-se que elas não po-
No trecho de O missionário, já citado, a voz que preconiza a dem centralizar a visão da sociedade sobre o escândalo do financia-
liberdade das ações humanas não é mostrada no ~o o ãiscurSo. Nele mento das campanhas.
.J \ ~
só aparece a voz que diz que as ações humanas são determinadas
pelas forças cegasdo meio, da hereditariedade e do momento. No en- E o Delúbio: "As campanhas eram feitascom dinheiro não coma-
t.anto, aquela que não está mostrada é constitutiva do enunciado, bilizado".Dinheiro não contabilizado?Tucanaram o caixa dois'?
porque ele se constrói em oposição a ela.
E aí a mulher pegou o marido com outra na cama, e ele gritou:
O rimeiro conceito de dialogismo diz respeito, pois, ao modo
"Isso não é traição! f uma relação não contabilizada!". relação \
É

de funcionamento real da linguagem: todos os enunciados co~ caixa doisl"


ruem-se a partir de outros.
Numa formação social determinada, operam o presente, ou E o PT continua rucanando, Sabecomo o Gushiken chama caixa

seja, os múltiplos enunciados em circulação sobre todos os temas; o dois?"Arquirerurade arrecadaçãode recursosnão conrabilizados'l.?
passado, isto é, os enunciados legados pela tradição de que a atuali- E adorei o senadorArrhur Virgílio dizendo que o Azeredoter acei-
dade é depositária, e o futuro, os enunciados que falam dos objetivos tado dinheiro do MarcosValériofoi uma ingenuidade!Tucanaram
e das utopias dessa contemporaneidade. Nela, atuarn forças centrí- o caixadois! Quando é o PT é corrupção, quando é tucano é in-

--
petas e centrífug aquelas atuarn no sentido de uma centralização
enunciativa do plurilingüismo da realidade; buscam erodir, prin-
cipalmente pela derrisão pelo riso, essa tendência centralizadora.
genuidade.l?

Com os conceitos de forças centrípetas e forças centrífugas,


Quando, por exemplo, um partido determina a verdade so- Bakhtin desvela o fato de que a circulação das vozes numa formação
,.. (
bre a realidade, seja desqualificando os adversários, seja prendendo- social está submetida ao oder. Não á neutralida e no jogo das
os ou matando-os, está em ação a força centrípeta. Entrevistado no
programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, no auge do escândalo 7 Simão, José. Folha de S.P""Io, 19f7J2005,E7.
do chamado ens ao o senador Aluízio Mercadante respondeu 8 Idem, 31/7f2005, ElI.
9 Idem, 11/8f2005, EU.
ao jornalista Fernando Mirre, que lhe fizera uma indagação sobre lO Idem, 28flOf2005, E 12.

30 II
r
José luiz fiorin IrnROOU~ÃO AO PfNSAMfNIO DE BA~HII~

vozes. Ao contrário, ele tem uma dimensão política, uma vez que Isso é o que Bakhrin chama concepção estreita de dialogis-
as vozes não circulam fora do exercício do poder: não se diz o que se mo. Estreita não significa menos importante. Com esse adjetivo, o
quer, quando se g_uer,.E2_mo se uer. Não se trata apenas da atuação que o filósofo pretende mostrar é que o dialogismo vai além dessas
do campo tradicional da política, ou seja, a esfera do Estado; estão formas composicionais, ele é o modo de funcionamento real da lin-
em causa todas as relações de poder, desde as do dia-a-dia até aquelas guagem, é o próprio modo de constituição do enunciado. Essas for-
do exercício do poder do Estado. Não podemos dirigir-nos, com mas de absorver o discurso alheio no próprio enunciado são a ma-
determinadas fórmulas empregadas na intimidade, a uma autoridade, neira de tornar visível esse princípio de funcionamento da linguagem
a uma pessoa mais velha, a alguém a quem não conhecemos. Cer- na comunicação real.
tos assuntOSsão tabus: alguns se admitem numa grande intimidade; Há duas maneiras de inserir o discurso do outro no enunciado:
outros não são tolerados em hipótese alguma, são até capitulados a) uma, em que o discurso alheio é abertamente citado e ni-
no Código Penal. tidamente separado do discurso ~itante, é o queBakhtin
Quando se fala em dialogismo constitutivo, pensa-se em re- chama discurso objetivado;
lações com enunciados já constituídos e, portanto, anteriores e pas- b) outra, em que o discurso é bivocal, internamente dialogi-
sados. No entanto, um enunciado se constitui em relação aos enun-
ciados que o precedem e que o sucedem na cadeia de comunicação.
Com efeito, um enunciado solicita uma resposta, resposta que ain-
da não existe. Ele espera sempre uma compreensão responsiva ari-
_-
zado, em que não há se ara ~o l!!.uitonítida do enunciado
citante e do ~

No primeiro caso, existem, entre outros, os seguintes proce-


dimentos: discurso direto, discurso indireto, aspas, negação. O se-
va, constrói-se para uma resposta, seja ela uma concordância ou
gundo pode ser exemplificado pela paródia, pela estilização, pela
uma refutação.
polémica clara ou velada, pelo discurso indireto livre. Vejamos al-
Nesse sentido, não se pode dizer que haja dois tipos de dia-
guns exemplos.
logismo: entre enunciados e entre o locutor e seu interlocutor. Na
verdade, o interlocutor é sempre uma resposta, um enunciado e,

-
por isso, todo dialQgismo são relações entre enunciados.
Discurso alheio demarcado
Discurso direto e discurso indireto
rTM
0->~1~~
Segundo conceito de dialogismo
, Rubião fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem
Além do dialogismo constitutivo, que não se mostra no fio ? visse, com os polegares metidos no cordão do cham bre, à janela
do discurso, há um outro que se mostra. Trata-se da incorporação de urna grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele
pelo enunciador da voz ou das vozes de ourro(s) no enunciado. Nes- pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em
se caso, o dialogismo é uma forma composicional. São maneiras ex- outra causa. Cotejava o passado com o presente. Que era há um ano?
ternas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso. Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas

32 JJ
José luiz fiorin INrROOU~ÃO AO PENSAMlNTO Df 8AKHTIN

(umas chinelasde Túnis, que lhe deu recenteamigo, Cristiano Pa- engloba tudo numa sensação de propriedade, ~ narrad~ne 0_
lha), para a casa,para o jardim, para a enseada, para os morros e capitalista como aquele que vê o mundo pela ótica da ro riedade.
para o céu; e tudo, desde as chinelasaté o céu, tudo entra na mes- Em seguida, o narrador dá a palavra a Rubião, que, em dis-
ma sensaçãode propriedade. curso direto, parece estar pensando diante de nós. O recurso do
"Vejam como Deus escrevedireito por Unhas tortas", pensa
discurso direto faz que acompanhemos o desenrolar de seus pensa-
ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me
mentos. Como, cerra vez, Quincas Borba quis casar com sua irmã
daria uma esperança colatera!. Não casou; ambos morreram, e
Piedade, o que Rubião está pensando é que foi bom eles não terem
aqui está tudo comigo;de modo que o que pareciauma desgraça...
casado, porque poderiam ter um filho, que seria então o herdeiro
Que abismo há entre o espírito e o coração!O espírito do ex-
professor,vexadodaquele pensamento, arrepiou caminho, buscou da fortuna que ele recebeu. As reticências indicam a suspensão do
outro assunto, uma canoa que ia passando;o coração,porém, dei- pensamento mais importante: que foi bom eles terem rnorrido,
xou-seestar a bater de alegria.Que lhe importa a canoa nem o ca- pois assim ele pôde herdar tudo. O que parecia uma desgraça foi,
noeiro, que os olhos de Rubião acompanhamarregalados?Ele,co- na verdade, órirno, do ponto de vista de Rubião,
ração,vaidizendoque, uma vezque mana Piedadetinha de morrer, Com o relato dos pensamentos da personagem em discurso
foi bom que não casasse;podiavir um filhoou wna filha... - Bonita direto, o narrador demarca nitidamente a voz de Rubião da sua e
canoa!- Antes assim!- Como obedecebem aos remosdo homem! cria um efeito de sentido de verdade. Assim, acrescenta mais uma ca-
- O certo é que elesestão no céu.I I racterística à imagem que está construindo do capitalista: é a ue~
que avalia todos os faros do ponto de vista do lucro e não dos va-
Analisemos o uso do discurso direto e do discurso indireto lores morais e do~timentos. Com o discurso direro, -:;-narrado r
nesse texto. Depois de mostrar Rubiâo, às oito horas da manhã, à ~á dizendo-nos que isso não é um ponto de vista dele, foi a per-
janela de sua casa em Botafogo, com os polegares metidos no cor- sonagem quem o revelou.
dão do chambre, o narrado r diz que ele estava pensando na trans- Mas aí o narrador vai mostrar que há um abismo entre o es-
formação que acontecera em sua vida. Rubião tornara-se capitalis- pírito e o coração, entre ~nsciência, onde estão os valores morais
ta por ter herdado a fortuna de Quincas Borba. Dessa forma, o nar- aprendidos, ~s s~cim~~. Rubião envergonha-se quando se dá
radar afasta o ponto de vista de alguém que poderia pensar que Ru- COntade que estava a achar que a morte de sua irmã e de seu me-
bião estavaadmirando o mar. Em seguida, descreveo olhar de Rubiâo, lhor amigo fora uma coisa boa, e procura, por isso, pensar em ou-
que vai do mais próximo ao mais longínquo, do baixo para o alto, tra coisa, distrair-se observando uma canoa que vai passando. No
examinando a si mesmo, as chinelas que trazia nos pés, a casa, o jar- entanto, se repugna à consciência esse pensamemo, o coração não
dim, a enseada, os morros e o céu, e diz que tudo entra na mesma pode deixar de sentir alegria pelo fato de eles terem morrido. De-
sensação de propriedade. Esse texto foi escrito no período do capi- pois de relatar, em discurso indireto, o que o coração vai repetindo,
talismo nascente no Brasil. Com a figura do olhar de Rubião, que criando um efeito de sentido de objerividade, o narrador cria um
\
<. pequeno diálogo, em discurso direro portanto, entre a consciência
11 MA HADO DE MS1S. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. vol. L p. 643. e o sentimento. Espírito e coração ão as duas personagens que fa-

34 35
'1 t r .,

José luiz fiorin l~nROOU~ÃO AO PErlSAM[NTO Dr BAKHTIN

Iam. Aquele quer afastar esse pensamento que ele repudia, falando Nesse texto, o articulista, ao comentar o processo político
a respeito da canoa e do canoeiro; este continua a afirmar ter sido brasileiro, circunscreve com aspas as seguintes expressões "maturi-
melhor assim e conclui que estão no céu, e isso justificaria que a dade", "novo", "alguém que veio lá de baixo". As aspas servem para
morre deles foi ótirna. demarcar o discufSo do outro. O jornalista, com esse procedimento,
Esse diálogo entre o espírito e o coração termina de desenhar está mostrando que "maturidade" é uma expressão dos antigos crí-
a imagem do cam-talista. Ele é um ser cindido em dois pontos de ticos do PT; "novo" é um enunciado do discurso petisca e "alguém
vista distintos, revelados por essas vozes nitidamente demarcadas, a que veio Já de baixo" pertence ao discurso de todos os que exaltam
dó coração e a do espírito. Não é que ele apenas raciocina a partir a figura de Lula.
.dos interesses; ele sente a partir do lucro. Mesmo que à consciência
repugnem certos sentimentos, porque são incompatíveis com os
valores morais, ele os têm, porque vê, pensa e sente os aconteci-
Negação @-~
mentos sob a ética do lucro. Sem o diálogo entre o espírito e cora- No mesmo texto do articulista Daniel Piza, citado acima,
ção, a imagem do ser dividido entre os valores morais e o valor do encontra-se o seguinte enunciado:
II lucro, em que este suplanta aqueles, não teria a força que tem.
Ricardo Bonalume Neto, na Folha, diz que George Orwell (...)
não dedurou intelectuais e artistas para o governo britânico. Bo-
Aspas nalume acha que Orwell "simplesmente fez uma lista de intelec-
tuais notórios de esquerda, pró-soviéticos, para que fossem reco-
Quando o PT virou casaca lançando aquela carta ao povo brasi-
nhecidos como tais". Ah, tã,
leiro em meados de 2002, depois de Lula levar dois sustos na cam-
panha (Roseana Sarney e Ciro Gomes), a aclamação veio dos dois
Nesse texto ocorrem diversos procedimentos de incorporação
lados. Os antigos críticos passaram a aplaudir a (maturidade" do
do discurso alheio. Daniel Piza cita em discurso indireto um enun-
partido, que teria tomado, por exemplo, consciência da austerida-
ciado de Bonalume, que é uma negação. Nela, cULasvozes se con-
de fiscal para impedir a volta da)nflação. Os petistas, mesmo his-
tóricos, passaram a acreditar nesse meio-termo social-democrático, fronlam: a que diz que Orwell dedurou intelectuais e artistas e a
uma conciliação de estabilidade monetária e investimento social que nega esse fato. Depoi , o jornalista transcreve a posição de Bo-
que ao menos seria um ritual de passagem para um "novo"Brasil. nalume entre aspas. Ao enunciar uma apreciação ("Ah, rã") sobre o
Nesse processo tipicamente brasileiro de acomodação, calcado na ponto de vista do outro, Oaniel Piza mostra que a negação de Bona-
simbologia de Lula como "alguém que veio lá de baixo", o ilusio- lume é despropositada, pois "fazer uma lista de intelectuais notórios
nismo colerivo se instalou. A aprovação do governo foi aos pínca- de esquerda, pró-soviéticos" é sinônimo de "dedurar",
\
ros; raríssimos articulistas não se deixaram levar pela moda.'? Em todos es es casos o discurso do outrO é demarcado por
~ contornos exteriores bem nítidos: no discurso direto, por um ver-
12 p[Z~, Daniel, O Estado de S. PauÚJ. 25/12/2005, D3. bo introduror e pelo travessão; no discurso indirero, pelo verbo in-

36 37
José luil fiorin, INrRODU~ÃO ~O PUlSAMf~TO Df 8HHTII~

trodutório e pela conjunção integrante; na negação, pelo advérbio Esse texto foi retirado do capítulo do romance Vidas secas,
negativo; nas aspas, pelos sinais gráficos. É curioso que, mesmo na de Graciliano Ramos, intirulado "O soldado amarelo". Nele, nar-
linguagem oral, marcam-se as aspas, fazendo um gesto de aspea- ra-se o encontro de Fabiano com o soldado amarelo, que, um ano
mente com as mãos. Em todos esses casos, há uma demarcação clara antes, o levara para a cadeia. onde ele fora surrado e passara a noite.
das vozes, por meio de fronteiras lingüísticas claras. O primeiro impulso de Fabiano foi de matá-lo. Em seguida, tomou
consciência de que o soldado era uma autoridade. Ai começou a
hesitar entre assassiná-lo ou não.
Discurso alheio não demarcado Nesse trecho, são relatados os pensamentos de Fabiano. Há,
então, duas voze~ext.9: a do narrador, que conta o encontro de
Nesse caso, não temos demarcações nítidas entre as vozes. Elas
Fabiano com o soldado, ~Fabjano, por meio da qual ficamos
misturam-se, mas, apesar disso, são claramente percebidas. Por isso,
sabendo seus pensamentos. A técnica usada pelo narrador para mos-
diz-se que as palavras são bivocais.
trar o que a personagem estava pensando é o~ndireto livrt:)
Nessa forma de citação do discurso alheio, misturam-se duas vozes.
?; Discurso indireto livre '(JA.J"..o,.(.A to..) Não há indicadores - como os dois pOntOSe o travessão do discurso
~I
direto ou a conjunção integrante do discurso indireto - para de-
o soldadomagrinho,enfezadinho,tremia.E Fabianotinha von- marcar nitidamente onde começa a fala do narrado r e onde inicia
tade de levantaro facão de novo.Tinha vontade, mas os músculos
a da personagem.
afrouxavam.Realmente não quisera matar um cristão: procedera
Percebe-se, por exemplo, que um trecho como "mas isto lhe
como quando, a montar brabo, evitavagalhose espinhos.Ignorava
os movimentos que fazia na sela.Alguma coisa o empurrava para pareceu tão absurdo que se pôs a rir" é claramente uma fala do nar-
a direita ou para a esquerda.Era essacoisaque ia partindo a cabe- radar, que está a contar a atitude de Fabiano diante do pensamento
ça do amarelo.Se ela tivessedemorado um minuto, Fabiano seria de que estava com medo. Já cenas passagens, como "Medo daquilo?"
um cabravalente.Não demorara.A certezado perigosurgira- e ele ou "Cachorro" ou "Sem-vergonha", "mofino" são, nitidamente, in-
estavaindeciso,de olho arregalado,respirandocom dificuldade,um terrogações e exclamações feitas por Fabiano. São dois tons diferen-
espanto verdadeiro no rOStObarbudo coberto de suor, o cabo do tes que permitem perceber duas vozes distintas: o tom seren, da
facão mal seguro entre os dois dedos úmidos. narração a simplesmente relatar o que acontecia e o--;;m irri~o de
-Tinha medo e repetia que estavaem perigo, mas isto lhe pare- Fabiano, que estava enfurecido com o modo como o soldado pro-
ceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma cedia na cidade.
pessoatremerassim.Cachorro.Elenão eradunga na cidade?não pi-
Há frases. no entanto. que poderiam ser dos dois. O período
savaos pés dos maturos,na feira?não botavagente na cadeia?Sem-
"E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo" poderia ser
vergonha, mofino.J3
atribuído, na forma em que está, ao narrador; na forma "Eu tenho
vontade de Levantaro facão de novo", a Fabiano. Duas vozes mes-
13 RAMos, Craciliano. Vidas secas. 29. ed. São Paulo: Martins, 1971. p. 144-145. clam-se nas mesmas palavras.

38
José lul: fiorin

Polémica clara {r-0 ~ ~CVr-(.

Trata-se do afrontamento de duas vozes ue polemizam aber-


Nesse caso, não s expressa abertamente a polêmica. No en-
tamente entre...§i,cada uma delas defendendo uma idéia contrária à
tanto, percebe-se na construção discursiva que há duas vozes em
da outra.
oposição.

- Não podemos achar que a arma é a melhor solução,até por-


Se você acha que deve abrir mão do direito de adquirir uma
que não é. Não vejo como um direito premente que estásendo ne-
arma, mesmo tendo o ministro da Justiça afirmado que a proibi-
gado, porque essa é uma aspiração de um grupo de pessoasque ção em nada reduzirá a criminalidade - e, como bem-sucedidode-
tem medo c acessoàs armas.E quem tem medo e não pode ter aces- fensorde criminosos em toda a sua vida profissionalpregressa,ele
so?Tem-sea impressãode que ter uma arma em casavai afastaro entende do assunto muito bem - vote sim. (...)
Exu, os maus espíriros. Se vocêacha que o Estado brasileiroestá demonstrando plenas
- Discordo.Estãotirando um direito à autodefesa.O que acon- condiçõesde oferecertoda a segurançaaos cidadãos,não havendo
tece se estou na minha casa, obedeci ao Mareio Thornaz Bastos, necessidadenenhuma de estesterem em suas casasmeios de resis-
entregueiminhas armas, o sim venceu,estou proibido de comprar tir à violênciados bandidos, vote sim.15
uma arma, e entra um bandido em meu quintal? Em circunstân-
cias normais poderia dar um tiro para o alto. Se o sim vencer,só
Essa passagem é parte de um artigo do jornalista Mauro
me restaabrir a porta, cumprimentar o ladrão e torcerpara que ele
Chaves, intirulado "Vote 'sirn'". O articulista, por meio de uma cons-
seja generosocornigo.!?
trução discursiva hábil, defende sua posição de partidário do não.
Temos a impressão de que se trata apenas de uma argumentação
Esse é um pequeno trecho de uma transcrição do debate en-
por implicação: se você acha que pode perder o direito à autodefe-
tre José Vicenre da Silva Filho, partidário do "sim" no referendo so-
sa, vote sim; se você acha que o Estado é quem tem o dever de ofe-
bre a proibição de comercialização de armas de fogo, e Reinaldo
recer segurança ao cidadão e está realizando bem essa tarefa, vote
Azevedo, adepto do "não". Nessa passagem, eles discutem se a inter-
sim. Observe-se, no entanto, que essessão argumentos dos partidários
dição, que é objeto da consulta popular, é uma perda de direitos.
do sim. Da forma.fOmo o jornalista os apresenta, na verdade, ele está.•
O primeiro diz que não; o segundo, claramente em oposição, diz
discordando deles, está travando uma polêrnica com os partidários_
que sim. Observe que a voz do segundo é moldada pela do primeiro,
do sim. Isso se expressa, no primeiro parágrafo, com a citação do
mas nela as duas não estão claramente delimitadas. O ponto de vista
<Íttedisse o ministro da Justiça e com a afirmação irónica de que ele
de José Vicente da Silva Filho aparece como pano de fundo das afir-
entende bem de criminalidade e de criminosos, pois foi advogado
mações de Reinaldo Azevedo.
criminalista durante toda a sua vida; no segundo, com as expressões
"plenas condições" e "necessidade nenhuma".

14 O Estado dt S. 1'au/.o, 23110/2005, CI.


15 Idem, 15/10/2005, A2.

40
~1
José luiz fiorin IIJTH~OU~ÃO A~ HNSAlHNTO O[ 8A~HTIN

Paródia (c~ (r fato de os sete primeiros versos serem formados de um "se" seguido
de "etc," e pela construção dos dois últimos versos, O poema de José
A paródia é uma imitação de um texto ou de um estilo que .f!0- Paulo Paes tem um claro sentido paródico: o que ele quer dizer é
cura des ualificar o que está sendo imitado, ridicularizá-lo, negá-lo . .." que, se alguém pautar sua vida pelo que Kipling considera valores,
No próprio processo irnitativo dá-se uma direção diversa ao sentido será não um homem, mas um teorerna, ou seja, uma demonstração
do que está sendo parodiado. Nesse caso, imita-se para acentuar di- da visão de mundo de Kipling. Ao mudar o t rrno "homem" para
ferenças. Para perceber o texto ou o estilo parodiado, o leitor precisa "teorema", o que osé Paulo Paes faz é neg_ara universalidade expres-
valer-se de sua memória textual, isto é, de seus conhecimentos a sa pelo oeena de Ki_plin , relativizando-a, o que implica que a di-
respeito dos textos produzidos ou de maneiras de escrever. ;~e ~entido do poema paro diante é contrária ao do parodiado.

Kipling revisitado
Estilização
se etc
se erc É a imitação de um texto ou estilo, sem a intenção de negar
se etc o que está sendo imitado, de ridicularizá-lo, de desguali_ficá-lo.Di-
se etc ferentemente da paródia, na estilizaçâo as vozes são convergente Il~
se etc
se etc --
direção do sentido as duas-;, resentam a mesma posição signíficante.
Também para perceber a estilização é necessário recorrer a nosso
se erc conhecimento textual.
serás um teorerna
meu filhol6 Nova canção do exílio

Para que esse texto ganhe sentido, precisamos perceber que Um sabiá
se trata de uma paródia do célebre poema Se... , do poeta inglês na palmeira, longe.
Kipling. Nele, cada verso começa com "se" (por exemplo, "Se sonhas, Esras aves cantam
mas não és por sonhos dominado;/se pensas, mas não fazes do pen- um outro canto.
samento teu alvo..."). O poema termina da seguinte forma: "se, de
o céu cintila
cada minuto, enches cada segundo/com um passo para frente em
sobre flores úmidas.
luminoso trilho,/então eu te direi que dominas o Mundo/e direi Vozesna mata
muito mais: que és um homem, meu filho!". Sabemos que o texto e o maior amor.
de José Paulo Paes parodia o poema de Kipling, pelo título, pelo
Só, na noite,
16 PAES,J sé Paulo. Um por todos. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 97. se ria fellz:

42
José luiz fiorin IIITRUOUCÃ~ AO PCN~AMHITO U[ B~KHTIII

um sabiá, bra-se a pátria por causa de sua natureza, em que rudo é mais e me- ~
na palmeira, longe. lhor. O poeta, exilado de e paraíso, deseja retomar a ele. -..:i.. ~
Percebe-se a imitação drummondiana pelo fato de o título dos I 3 f ~
Onde é tudo belo poemas ser basicamente o mesmo, pejo emprego dos termos "sabiã" ~ S 1-
e fantástico, e "palmeira", pela expressãodo desejo da volta e pelo uso do vocábulo I ç :s ~
só, na noite, "longe", que guarda similitude com o "lá" do poema gonçalvino. JS: o:.> "1

seria feliz.
"Estas" indica o que está próximo do enunciado r; "outro"
(Um sabiá,
pressupõe a existência de, ao menos, um diferente daquilo que é
na palmeira, longe.)
nomeado. Ao dizer "estas aves cantam um outro canto", o poeta
está dizendo que as aves que estão próximas dele se opõem ao sa-
Ainda um grito de vida e
biá, de que falava Gonçalves Dias, que está longe. O poeta quer re-
voltar
para onde é tudo belo
cuperar a realidade gonçalvina, o espaço "onde tudo é belo e fan-
e fantástico: tástico". Os versos "Só, na noite'/seria feliz" recuperam o seguinte
a palmeira, o sabiá, passo do poema gonçalvino: "Em cismar, sozinho, à noite! Mais
o longe.'? prazer encontro eu lá". O que o poeta está dizendo é que seria pra-
zeroso devanear sozinho dentro da noite estrelada e encantada de
o
poema de Drummond imita o poema "Canção do exílio", que fala Gonçalves Dias, em seu poema. A forma verbal "seria", po-
de Gonçalves Dias, cuja primeira estrofe é: rém, sugere que essa noite do presente não é a da" anção do exí-
lio" gonçalvina.
Minha terra tem palmeiras, Há uma defasagem de sentido entre os dois poemas, pois, se
Onde canta o Sabiá; ela não existisse, não haveria imitação, mas cópia. Em Gonçalve!_
As aves que aqui gorjeiam, Dias, o exílio é um aís estrangeiro e a pátria está longe: a oposição
Não gorjeiam como lá.18 aqui/lá é espaci em Drummond, é a realidade do presente que não
tem os encantos da realidade descrita pelo poeta romântico:~
o poema gonçalvino opõe dois espaços: o aqui e o lá. Aque- sição é temporal No entanto, os dois são convergentes na direção
le é o lugar do exílio; este, mais valorizado, é o da pátria. Nesse texto, do sentido: o desejo de voltar a uma realidade melhor. No poema gon-
glorifica-se e exalta-se o solo pátrio, por causa de suas maravilhas e de çalvino, quer-se desfrutar dos primores que se encontram na pátria.
seus encantos. Nele, mostra-se um nacionalismo idealizado. Cele- No drumrnondiano, deseja-se retornar para onde tudo é belo e fan-
tástico. Recuperando os traços essenciais da composição gonçalvi-
17 ANDRADE, CarlosDrummond de. Reunião: 10 liurosd«poesia. 7. cd. Rio deJaneiro:José, na, Orummond estiliza-a.
Olympio, 1976. p. 94-95.
18 MONTELLO, Josué. (Dir.). Para conhecer melhor Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: Bloch,
1973, p. 61-62

44 45
José luiz fiorin INJROOU~ÃO ~O PtN~AM(NTO De BAKHTIII

Estilo falsificado, etc, Por outrO lado, é esse conjunto de características que
permite dizer, quando lemos um texto cujo autor não conhecemos:
Acima, dissemos, sem maiores explicações, que se pode pa- "parece Alencar", "soa a Gregório de Matos", "assemelha-sea Cabral".
rodiar ou estilizar um estilo. É preciso, então, entender esse conceito Nesse sentido, pode-se dizer, como afirmava Buffon, naturalista e
na obra bakhriniana, para que se possa compreender o que é estili- escritor francês, em seu Discours sur le style (I 753), que "o estilo é o
zação ou paródia de um estilo. próprio homem" .20 Ao dizer que o estilo cria um efeito de indivi-
Durante muito tempo trabalhou-se com a noção de que o dualidade não se está pensando em expressão da subjetividade. O
estilo era o desvio de uma norma e, por isso, a expressão de uma estilo é resultante de uma visão de mundo. Assim como a cosmovisão
subjetividade. De um lado, estaria aquilo que é a norma (por exem- estrutura e unifica O horizonte do ser humano, ~tilo estrutura e
plo, em Estrutura da linguagem poética, de Jean ohen;'? é a prosa unifica os enunciados oroduzidos DelOenunciador.
científica, denotada, em ordem direra) e, de outro, os desvios da nor- No entanto, se Bakhtin parasse por aqui, estaria negando o
ma, que resultavam da manifestação da subjetividade. Isso está dis- fato de que o dialogismo é elemento constitutivo do enunciado. Para
tante das concepções de B_akhtin:._ o filósofo russo, o estilo define-se dialogicamente, o que quer dizer
Para ele, estilo é o conjunco de procedimentos de acabamento que ele depende dos parceiros da comunicação verbal, dos discur-
de um enunciado. Portanto, são os recursos em_Qregadospara ela- sos do outro. O estilo constitui-se em 0..E.0sião a outros estilos. As-
borá-lo, que resultam de uma seleção dos ~rsos lingüísticos à dis- sim em oposição às recorrências léxicas que reiteram o invernal, o
osição do enunciador. Isso significa que o estilo é o conjunto de norurno, o pálido, o macilento, o desbotado; à insistência no tédio
traços fônicos, morfológicos, sintãticos, semânticos, lexicais, enun- e na melancolia; ao tom blasé, que caracterizam o poeta da Segunda
ciativos, discursivos, etc., que definem a especificidade de um enun- Geração Romântica, constitui-se o estilo da Terceira Geração Ro-
ciado e, por isso, criam um efeito de sentido de individualidade. Esses mântica, marcado pelos símiles tirados dos aspectos da natureza que
traços podem ser desde o uso abundante de alirerações e assonân- indicam a imensidão, o infinito, a altura (por exemplo, o oceano, os
cias do simbolismo até a figurativização bucó]ica e pastoril do arca- astros, o tufão, a procela, os alcantis, os Andes, o Himalaia, a águia,
dismo. O estilo é o conjunto de particularidades discursivas e tex- o condor), pela indignação com a escravidão, pelo tom grandilo-
tuais que cria uma imagem do autor, que é o que denominamos qüente revelado pela pontuação. Observe-se que os poucos traços
-;feito de individualidade. Essa individualidade pode er singular do estilo da Segunda Geração Romântica que apontamos mostram
(pode-se falar do estilo de Guimarães Rosa, que cria uma imagem
- um homem passivo, enquanto o da Terceira Geração é ativo, lutador,
de Rosa) ou coletiva (pode-se falar no estilo do parnasianismo, que vigoroso, deseja mudar o mundo com sua poesia.
cria a imagem do poeta parnasiano em geral). Os imitadores, os Como mostra Bakhtin, se o estilo é constitutivamente dia-
que parodiam, os falsificadores em pintura, os couers, etc. "copiam" lógico, ele não é o homem, são dois homens. Como qualquer enun-
exatarnente esse conjunto de traços, o estilo daquele que é imitado,
---
ciado, ele revela o direito e o avesso. O tom inenfático da poesia

19 COHEN.Jean. Eururura da I.ingllagml poética. São Paulo: Cukrix/Edusp. 1974. p. 15-25. 20 BUFr 1'1. Dlscours tur le $tyk Paris: Hatier, s. d, p. 23·24.

46 4-1

I
José luiz fiorin INIAOUU~ÃO ~O nNSAMfNTO Df BAKHTI~I

! parnasiana e sua recusa em participar dos acontecimentos (arte pela do combatentes, mas o Atrida - enfurecido, como o leão, que fiado
arte) revelam também o estilo em contraposição ao qual se consti- na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cer-
tuiu, o tom enfático e a temática social da poesia da Terceira Gera- viz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe

: ção Romântica. o sangue e as entranhas -- investe contra o desprevenido Naranjo e


atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os ve-
A imagem que o enunciador faz de seu interlocutor tem um
I
lozes Torres, Madrida e Avellan quedam paralisados, tanto o pálido
acabamento, dado por um estilo. Por isso, o estilo também pode ser
I temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infun-
determinado pelo parceiro da comunicação. Assim, é diferente fa-
diu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelo ta e vai plan-
zer um enunciado dirigido a um amigo ou a um desconhecido, a uma
tá-La,qual pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal ...
autoridade ou a um colega de trabalho, a uma criança ou um adul-
Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros
to. Mas se poderia perguntar se nesse caso o termo "estilo" não tem
e mexicanos, e a de rodos os jogos: à maneira de Homero.I!
um matiz ligeiramente diferente do que foi exposto até aqui. Não.
No entanto, é preciso entender um outro conceito, que será expli-
O próprio poeta diz que a descrição do jogo imaginada por
cado mais adiante, o de gênero de discurso. O estilo é um dos com-
ele no primeiro parágrafo imita o estilo de Homero, em que uma
ponentes do gênero. Há, assim, um estilo do gênero e, dentro do
das características é a plasticidade. Pode-se dizer que o poeta não
gênero, podem aparecer os estilos que criam os efeitos de sentido de
descreve um objeto, mas coloca-o diante de nós, faz com que o ve-
individualidade. Voltaremos a essa questão.
jamos. Essa visual idade da poética homérica é dada pela utilização
Assim, como existe uma constitutividade dial6gica do estilo,
de adjetivos ou expressões de valor adjetivo bem concretos (por exem-
que não se mostra num estilo, mas é percebida pelas vozes em diá-
plo, não se diz que Bauer era rápido, mas que era "o de pés ligeiros");
logo numa dada formação social, há também um dialogismo estilís-
pelas comparações (por exemplo "como o leão, que fiado na sua for-
rico mostrado. Pode-se parodiar um estilo ou estilizá-lo. Observemos
ça, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e des-
um trecho de uma crónica de Drummond.
pedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue
e as entranhas"), pela atribuição de um adjetivo concreto referente
Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada es-
ao efeito a um substantivo abstrato designativo da causa (por exem-
fera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Bran-
dãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de plo, "pálido temor"), pela atribuição de uma característica bem pre-
olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, cisa a cada personagem (por exemplo, "solene Julinho, valoroso
enquamo os agudos gritos e imprecações em redor animavam os Didi, belicoso Pinga"), pela tentativa de concretização maior dos subs-
comendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o tantivos comuns, seja designando os objeros por uma característica,
couro inquieto quase se foi depositar no arco de Cascilho, que com seja atribuindo aos nomes um adjetivo bem concreto ("couro inquie-
torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe en- to,"" presa "[ = bo la]", ver dei
eJante r el""
va , su bmi ota r, C orno
rrussa pe I")
tre os adversários atôniros, e conduz sua presa até o solerte Julinho,
(.
qLlea transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao
21 ANDRADE, Carlos Drummond de. P••• ia c pro<A. Rio de Janeiro: Nova AgujJar, 19111
belicoso Pinga. A essa alrura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos p.I090.

48
José luiz fiorin INIAODUtÃO AO PEIISAMhHO Df 8H~II~
< :-
o poeta rem (recria) o estilo de Homero por desejar ouvi-lo repe~do incêndio que devora. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é
• comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impe-
na descriçãode um jogo de futebol, configura-seai estilizaçãodo estilo. •
Na paródia do estilo, inverte-se a orientação estilística no pró- tuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição
prio movimento de imitação. Essa inversão destina-se a ridiculari- às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando
em cima as garrafas choram lacrimacbristi, e embaixo os olhos cho-
zar um dado estilo, a zombar dele. Machado de Assis tem um como
I ram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma.
denominado "Um cão de lata ao rabo", em que há exemplos inte-
Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que e cá entre a criatura e
ressantes de paródia estilística. Nele, narra-se que um mestre-escola
o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: an-
da cidade de Chapéu d'Uvas resolveu fazer um "torneio de compo-
tinornia, unidade.
sição e estilo". O tema era "Um cão de lata ao rabo", assunto, se-
gundo ele, "simples, aparentemente vulgar, mas profundamente fi-
Como se sabe, o estilo condoreiro se caracterizava por uma
losófico". O narrador é um dos membros do júri, que apresenta as
opulência lexical; por sfrniles com aspectos da natureza que deno-
três composições que "mereceram a palma e encheram de Pasmo o
tam infinicude, imensidão: por antíteses arrojadas; por hipérboles,
júri e o mestre". Elas foram classificadas segundo o mérito e o esti-
prosopopéias e invocações; por um tom oratória grandiloqüente,
lo: "I? Estilo antitético e asmático. 2? Estilo ab ovo. 3? Estilo largo
marcado por pausas, interrogações, frases curtas. Ora, é esse tom
e clássico".22Observe-se que na própria forma como se apresentam
oratório, com segmentos curtos, para a declamação com ênfase,
as três composições e como se denominam os três estilos há um
que leva o narrado r a qualificar esse estilo de asmático. Por outro
movimento de zombaria. O primeiro estilo, qualificado de antité-
lado, ele é ridicularizado pelo despropósito das comparações e das
rico e asmático, põe em ridículo, pelo próprio exagero da reitera-
antíteses para descrever a corrida do cão com a lata ao rabo. A com-
ção de determinados procedimentos, o estilo condoreiro da Terceira
posição em "estilo ab ovo" parodia o conceptismo, ao passo que o
Geração Romântica.
texto em "estilo largo e clássico" faz paródia do pré-modernismo.

Um menino atara a laca ao rabo do cão. Que é rabo? Um pro-


longamenro e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é -( A intertextualidade
também um clarão. Di-lo a filosofia?Não; di-lo a etimologia. Rabo,
rabino: duas idéias e uma só raiz. Esse termo não aparece na obra de Bakhrin, No máximo, ele
A erirnologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave
chega a falar em relações entre textos. Esse vocábulo é introduzido
do futuro.
como pertencente ao univer o bakhtiniano por Júlia Kristeva, em
O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra fais-
sua apresentação de Bakhtin na França, publicada em 1967 na re-
cava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vemo, como
vista Critique. A semioticista diz que, para o filósofo russo, O dis-
a idéia. Era a revolução que transtorna, o temporal que derruba, o
curso literário não é um ponto, um sentido fixo, mas um cruza-
(
mento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras, um
22 MACHADO DE A SI$. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1979. vol. IIl.
p.984-989. cruzamento de citações. Como ela vai chamar "texto' o que Bakhtin

50 51
José luiz fiorin INJAODUCAo AO PUSAMfNI~ DE 8A~HTIN

denomina "enunciado", ela acaba por designar por intertextualidade encontro de duas materialidades lingüísricas, de dois textos. Para
a noção de dialogismo. Roland Banhes vai difundir o pensamento que is o ocorra, é preciso que um texto tenha existência indepen-
de Kristeva e, a partir daí, o termo "intertexrualidade" passa a sub ti- dente do texto que com ele dialoga.
ruir a palavra dialogismo. Qualquer relação dialógica é denominada
intertextualidade. Ouvir estrelas
Esse uso é e uiv cado porque há, Bakhtin, uma distin-
ção entre texto e e unciado Este é todo de sentido; marcado pelo "Ora, (direis) ouvir estrelas! Certo
acabamento, dado pe a possibilidade de admitir uma réplica. Ele perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
tem uma natureza dialógica. O enunciado é uma posição assumida que, para ouvi-las, muita vez desperto
por um enunciador, é um sentido. O exto a manifestaçao do enun- e abro as janelas, pálido de espanto ...

~ad0t.. é uma realidade imediata, dotada da maten laa e, que ;;d-


E conversamos toda a noite, enquanto
vém do fato de ser u~juntO de signos. enunciado é da ordem
a Via-láctea, como um pálio aberto,
do sentido; o texto, do domílllo a manifestação. O enunciado não
cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
é manifestado apenas verbalmente, o que significa que, para Bakhtin,
inda as procuro pelo céu deserto.
o texto não é exclusivamente verbal, pois é qualquer conjunto coe-
rente de signos, seja qual for sua forma de expressão (pictórica, ges- Direis agora: "Tresloucado amigo!
rual, etc.). Que conversas com elas? Que sentido
Se há uma distinção entre discurso e texto, poderíamos dizer tem o que elas dizem, quando estão contigo?"
que há relações dialógicas entre enunciados e entre textos. Assim, de-
vem-se chamar intertextualidade apenas as relações dialó icas ~ E eu vos direi: ''Amai para entendê-Ias!
rializadas em textos. Isso pressupõe que toda intertextualidade impli- Pois só quem ama pode ter ouvido
ca a existência de uma interdiscursividade (relaçõesentre enunciados), Capaz de ouvir e de entender estreias".
mas nem toda interdiscursividade implica uma intertextualidade. Por (alava Bilac)23

exemplo, quando um texto não mostra, no seu fio, o discurso do


Ouvir estrelas
outro, não há intertextualidade, mas há interdiscursividade.
Por outro lado, Bakhtin diz que há relações entre textos e den-
Ora, direis, ouvir estrelas! Vejo
tro dos textos. Isso significa que se deve diferençar a tu!_en:extuali-
que estás beirando a maluquice extrema,
~e da intratextualidade. Assim, quando duas vozes são mostradas
No entanto o certo é que não perco o ensejo
no interior do texto, como no discurso direro, no indireto ou no de ouvi-Ias nos programas de cinema.
indireto livre, não se deve falar em intertextualidade.
Inrerrextualidade deveria ser a denominação de um tipo com-
po icional de dialogismo: aquele em que há no interior do texto o 23 BECKER, Idel, Humor e humorismo.Antohgúl. São Paulo: Brasiliensc, 1961. p. 321,

52 53
José Lui2 fiorin INTROOUCÃO AO rtNSAMlNTO Df 8HHTIN

Não perco fita; e dir-vos-ci sem pejo também é da ordem da manifestação, do domínio da materialida-
que mais eu goro se escabroso é o tema. de Iingüfstica.
Uma boca de estrela dando beijo
é, meu amigo, assunto p'ra um poema.
Terceiro conceito de dialogismo
Direis agora: Mas, enfim, meu caro,
as estrelas que dizem? Que sentido A subjetividade é constituída pelo conjunto de relações so-
têm suas frases de sabor tão raro? ciais de que participa o suieito, Por isso, em Bakhtin, o su'ejto ~
assujeitado, ou sej submiss às estruturas sociais, ~ é uma sub-
Amigo, aprende inglês para entendê-las, jetividad autônom em relação à sociedade.
pois só sabendo inglês se tem ouvido O princípio geral do agir é que o sUJeito age em relação aos
capaz de ouvir e de entender estrelas.ê" outros; o indivíduo constitui-se em relação ao outro. Isso significa
(Bastos Tigre) que !.? dialogismo é o princípio de constituição do indivíduo e o seu

o texto de Bastos Tigre é uma aródia o texto de Bilac,


~-
princípio.-de..ação. Vamos entender melhor isso.
A consciência constrói-se na comunicação social, ou seja, na
pois jrtv com letamente o sentido do texto bilaquiano. En- sociedade, na História. Por isso, os conteúdos que a formam e a ma-
quanto este é um texto sério, aquele é um texto jocoso. No texto nifestam são semióticos. Isso explica a importância que tem a lin-
de Bilac, estrela tem o sentido "corpo celeste produtor e emissor de guagem no projeto bakhtiniano de construção de uma teoria das
energia, com luz própria", enquanto, no texto de Bastos Tigre, es- superestruturas. A apreensão do mundo é sempre situada historica-
trela tem o sentido de "atriz muito famosa". Enquanto o texto bi- mente, porque o sujeito está sempre em relação com outro(s). O su-
laquiano é uma construção metafórica que indica que aquele que
ama divaga com a cabeça nas estrelas, o poema de Bastos Tigre tem
-
jeito vai constituindo-se discursivamente, apreendendo as vozes s -
-
ciais ue constituem a realidade em que está imerso, e, ao mesmo
um sentido literal. Por isso, como a maioria dos filmes é estaduni- tempo, suas inter-relações dialógicas. Como a realidade é heterogê-
dense, basta saber inglês para entender o que as estrelas dizem. nea, o sujeito não absorve apenas uma voz social, mas várias, que
Trata-se de intertexrualidade porque, no segundo texto, en- estão em relações diversas entre si. Portanto, o sujeito é constituti-
contram-se duas materialidades lingüísricas, o texto de Bilac e o de vamente dialógico. Seu mundo interior é constituído de diferentes
Bastos Tigre. Ademais, o texto bilaquiano tem existência indepen- vozes
~--- em rela
- ões de concordância ou discordância. Além disso,
dente do de Bastos Tigre. como está sempre em relação com o outro, o mundo exterior não está
Poder-se-ia alargar um pouco esse conceito para considerar nunca acabado, fechado, mas em consrapte.:yjr a ser Assim, a mes-
também inrerrexrualidade os casos de paródia e de esrilização de es-
---
ma classe média que saudou a eleição de Lula como sendo a vitória
tilo, pois, dado que o estilo contém particularidades textuais, ele da esperança sobre o medo, mostra-se agora decepcionada e extrema-
mente critica em relação ao governo e ao PT. O conteúdo discursivo
24 Idem, p. 323.
da consciência vai alterando-se.

55
José lui: fiorin INrRoou~AD AO PHISAMfNfO DE DA~HIIN
..J_J~ ~N'"
('11'-' .JP'-
f
tema, o ptolomaico, supõe-se que o movimento das estrelas seja
Nesse processo de construção da consciência, as vozes são as-
muito complicado. O planeta Vênus, por exemplo. descreve um
similadas de diferentes maneiras. Há vozes que são incorporadas
movimento, do tipo seguinte. (Galiku desenha num quadro o tra-
como a voz de autoridade. É aquela a que se adere de modo incon-
jeto epiciclico de Vénus, de acordo com a suposiçãopsolomalca.; Mas,
dicional, que é assimilada como uma massa compacta e, por isso, é
mesmo admitindo esses movimentos complicados, não somos ca-
centrípeta, impermeável, resistente a impregnar-se de outras vozes,
pazes de calcular com precisão a posição futura das estrelas. Não as
a relativizar-se, Pode ser a voz da Igreja, do Partido, do grupo de que
encontramos no lugar em que deveriam estar. E, além disso, há mo-
se participa, etc, t-> ~{' (::,(:~rtI) vimentos no céu para os quais o sistema prolornaico não tem ex-
Outras vozes são assimiladas como posições de sentido inter-
plicação alguma. Me parece que algumas estrelas pequenas, descober-
namente persuasivas. São vistas como uma entre outras. Por isso,
tas por mim, descrevem esse tipo de movimento à volta do planeta
são cen trífugas, permeáveis à impregnação por outras vozes, à hi- J úpiter, Se os senhores estiverem de acordo, poderíamos começar
bridização, e abrem-se incessantemente à mudança. examinando os satélites de júpiter, as estrelas Medicéias. (...)
Sendo a consciência sociosserniótica, ou seja, formada de dis- O FILOSOFO - (...) Mas eu receio que isso tudo não seja tão
cursos sociais, o que significa que seu conteúdo é sígnico, cada in- simples, Senhor Galileu, antes de aplicarmos o seu famoso telescó-
divíduo tem uma história particular de constituição de seu mundo pio, gostaríamos de ter o prazer de uma disputa. Assunto: t, pos-
interior, pois ele é resultante
dois tipos de vozes. Quanto
do embate e das inter-relações
mais a consciência for formada de vo-
desses
-- -
sível que tais planetas existam?
O MATEMÁTICO - Uma disputa formal.
zes de autoridade, mais ela será monoJógica, ptolomaica. Quanto GALILEU - Eu achava mais simples os senhores olharem pelo
mais for constituída de vozes internamente pe~asivas, mais será telescópio para terem certeza. (...)
dialógica, g;tlileana! O MATEMÁTICO - Claro, claro. O senhor naturalmente
Bakhtin qualifica de ptolomaica a consciência mais rígida, sabe que segundo a concepção dos antigos não é possível uma es-
mais organizada em torno de um centro fixo, como era o sistema trela que gire em volta de um centro que não seja a Terra, assim
planetário de Ptolomeu, em que a Terra era fixa, Já a galileana é como não é possível uma estrela sem suporte no céu?
consciência mais aberta, mais móvel, não organizada em torno de GALILEU - Sei.

um centro fIXO, como é o sistema de Galileu, em que a Terra se move. O FILOSOFO - E mesmo sem considerar a possibilidade de

Bertolt Brecht, em sua peça Vida de Galileu, mostra o embate desses tais estrelas, que ao nosso matemático (jàz uma mesura em ma di-
reção) parece duvidosa, eu gostaria de perguntar com toda a mo-
dois tipos de consciência.
déstia e como filósofo: seriam necessárias tais estrelas? Diuini Al'is-
totelis uniuersum ... (...) O universo do divino Arisróteles, com suas
GALILEU (junto di) telescópio)- Como Vos a Alteza certamen-
esferas misticamente musicais e as suas abóbadas de cristal e os mo-
te sabe, já faz algum tempo que nós, astrónomos, encontramos gran-
vimentos circulares de seus corpos e o ângulo oblíquo do trajem
des dificuldades em nossos cálculos. Nós nos baseamos num sistema
solar e os mistérios da tabela dos satélites e a riqueza esrelar do ca-
muito antigo, que está de acordo com a filosofia, mas infelizmen-
tálogo da calota austral e a arquitetura iluminada do globo celeste,
te não parece estar de acordo com os faros, Segundo esse velho sis-

56 51
José Lniz Fiorin

forma uma construção de ral ordem e beleza, que deveríamos he- Concluindo este capítulo ...
sirar muito antes de perturbar esta harmonia.
GALILEU - Vossa Alteza não quer ver as impossíveis e desne- Os enunciados, sendo constirutivamente dialógicos, são sem-
cessãrias estrelas através deste relescópio ?25 pre históricos. Entretanto, sua hi toricidade não é apreendida por
meio de curiosidades e anedota a respeito de sua produção. Não é
A consciência de Galileu é aberta à.realidade, pois não é for- a biografia do allt~, ~s circunstâncias em q__ue
viveu CJ..ue
-
permitem
-
mada com discursos de autoridade, que não podem ser postos em dú- v~r o caráte!.:histórico do enunciado. Mesmo porque há enuncia-
vida. Já a consciência do Matemático e a do Filósofo são centrípe- dos de autores desconhecidos, que não se sabe onde e quando foram
tas e, portanto, impermeáveis a outros discursos. O primeiro nega-se produzidos e, apesar disso, têm sentido. Por exemplo, a Iliada e a
até a ver no telescópio, porque o que Galileu pretende mostrar não Odisseia têm sentido, embora nada saibamos a respeito de Homero
pode existir, uma vez que assim disse Ptolomeu. O Filósofo usa o ar- nem da composição dessas epopéias.
gumento de todos os conservadores: a ordem proposta pelo "divi- A historicidade dos enunciados é captada no próprio movi-
no Aristóteles" é tão harmónica, que ela não deve ser rompida. Para mento Un.gü{sticode sua constituição. É na percepção das relações
o primeiro os olhos não podem mostrar o que não pode ser; para o ;;m o discurso do outro que se compreende a História que per-
segundo, eles não devem ver o que não deve ser. passa o discurso. Com a concepção dialógica, a análise histórica dos
!
O mundo interior é a dialogização da heterogeneidade de vo- textos deixa de ser a descrição de uma época, a narrativa da vida de
)
zes sociais. Os enunciados, cons~ídos pelo sujeito, são constitutiva- um autor, para se transformar numa fina e sutil análise semântica,
mente ideológicos, pois são urna res osta ativa à.svozes interioriza- que vai mostrando aprovações ou reprovações, adesões ou recusas,
das. Por isso, eles nunca são expressão de uma consciência individ3 polêmicas e contratos, deslizamentos de sentido, apagamentos, etc,
-descolada da realidade social, uma vez que ela é formada pela in- A História não é exterior ao sentido, mas é interior a ele, pois ele é
~orporação das vozes sociais em circulação na sociedade. Mas, ao que é histórico, já que se constitui fundamentalmente no confronto,
mesmo tempo, o sujeito não é completamente assujeitado, pois ele na contradição, na oposição das vozes que se entrechocam na arena
participa do diálogo de vozes de uma forma particula.!, porque a da realidade.
história da constituição de sua consciência é singular. O sujeito é
integralmente social e integralmente singular. Ele é um evento único,
porque responde às condições objecivasdo diálogo social de uma ma-
neira específica, interage concretamente com as vozes sociais de um
modo único. A realidade é centrífuga, o que significa que ela per-
mite a constituição de sujeitos distintos, porque não organizados em
torno de um centro único.

25 BREClIT, Berrolt. ~lItrO iÚ Bertolt Brecbt. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s. d. vol. 5,
p, 57-59.

58 59
INrnOOU~Ão AO HNSAMfNTO Df BAKHTIN

c1assicismo, por exemplo, diziam como deveria ser composta uma


3 tragédia, uma epopéia, etc. A história literária oscila entre períodos em
que os gêneros são rigidamente codificados e aqueles em que as for-
mas são mais livres, em que se abandonam as formas fixas.

Os gêneros do discurso Bakhtin não vai teorizar sobre o gênero, levando em conta o
produto, mas o Q_rocessode sua produção. Interessam-lhe menos as
propriedades formais dos gêneros do que a maneira como eles se
constituem.
I Seu ponto de partida é o vínculo intrínseco existente entre a
A riqueza e a variedade dosgêneros do discursosão infinitas, pois a
variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esferadessa utilização da linguagem e as atividades humanas. Os enunciados de-
anuidade comporta um repertóriode gêneros do discursoque vai vem ser vistos na sua função no processo de interação.
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a prôpria esferase Os sereshumanos agem em determinadas esferasde atividades,
desenvolve efica mais complexa. as da escola, as da igreja, as do trabalho num jornal, as do trabalho
Bakhtin (1997: 279) numa fábrica, as da política, as das relações de amizade e assim por
diante. Essas esferas de atividades implicam a utilização da lingua-
gem na forma de enunciados. Não se produzem enunciados fora
Como já se disse, a leitura da obra bakhtiniana sofreu toda
das esferas de açâo, o que significa que eles são determinados pejas
sorte de vicissitudes. Cada um lê o Bakhtin que serve a seus propó-
condições específicas e pelas finalidades de cada esfera. Essas esferas
sitos. Com o conceito de gêneros do discurso não foi diferente. No
de ação ocasionam o aparecimento de certos tipos de enunciados,
Brasil, o discurso pedagógico apropriou-se dele. Depois que os Pa-
que se estabilizam precariamente e que mudam em função de alte-
râmetros Curriculares Nacionais estabeleceram que o ensino de Por-
rações nessas esferas de atividades. Só se age na interação, só se diz
tuguês fosse feito com base nos gêneros, apareceram muitos livros
no agir e o agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer
didáticos que vêem o gênero como um conjunto de propriedades
,J que cada esfera de utilização da língua elabora tipos relativamente
formais a que o texto deve obedecer. O gênero é, assim, um produ- estáveis de enunciados.
to, e seu ensino torna-se, então, norrnativo. Sob a aparência de uma Os gêneros são, pois, tipos de enunciados relativamente es-
revolução no ensino de Português está-se dentro da mesma pers- táveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção
pectiva norrnativa com que se ensinava gramática. composicional e um estilo. Falamos sempre por meio de gêneros no
Desde a Grécia, o Ocidente opera com a noção de gênero. Ele interior de uma dada esfera de atividade.
agrupa os textos que têm características e propriedades comuns. As- O gênero estabelece, pois, uma interconexão da linguagem
sim, os gêneros são tipos de textos que têm traços comuns. Na me- com a vida social. A linguagem penetra na vida por meio dos enun-
dida em que eles eram vistos como um rol de propriedades formais, ciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se in-
fixas e imutáveis, adquiriam um carárer normativo. As poéticas do troduz na linguagem. Os gêneros estão sempre vinculados a um do-

60 61

1 ~~~'----------------------------------------~
José luiz fiorin INTRODU~ÃO AO PENSAMENTO DE BAKHTIN
I rnínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas e ção, corno nas cartas de amor, de onde emerge todo um modo de
suas finalidades. Conteúdo temático, estilo e organização composi- tratamento do domínio daquilo que é mais privado.
cional constroem o todo que constitui o enunciado, que é marcado Bakhtin não pretende fazer um catálogo dos gêneros, com a
pela especificidade de uma esfera de ação. descrição de cada estilo, de cada estrutura composicional, de cada
O conteúdo temático não é o assunto específico de um tex- conteúdo ternático. De um lado, porque a riqueza e a variedade dos
to, mas é um domínio de sentido de que se ocupa o gênero. Assim, as gêneros são infinitas, urna vez que as possibilidades da ação humana
cartas de amo apresentam o c~nteúdo temático das relações amo.:. são inesgotáveis e cada esfera de ação comporta um repertório sig-
I
rosas. Cada uma das cartas trata de um assunto específico (por exem- nificativo de gêneros do discurso. Na esfera da ação jurídica, por
plo, ~ rompimento de X e Y, por causa de urna traição) dentro do j exemplo, temos gêneros como a petição, a sentença, o acórdão, o des-
I mesmo conteúdo ternãtico. aula versam sobre um ensinamento pacho, etc. Na esfera da açâo religiosa, há a oração, a fórmula sa-
de um programa de curso. As sentenças têm corno conteúdo temá- cramental, o sermão e assim por diante. De outro, porque o que
rico uma decisão judicial. importa verdadeiramente é a compreensão do processo de emer-
A construção composicional é o modo de organizar o texto, gência e de estabilização dos gêneros, ou seja, a íntima vinculação
de estrutura-lo. Por exemplo, sendo a carta uma comunicação dife- do gênero com uma esfera de atividade.
rida, é preciso ancorá-la num tempo, num espaço e numa relação Assim, não importa, ao estudar o romance naturalista, apenas
de inrerlocução, para que os dêiticos usados possam ser compreen- dizer que sua composição se caracteriza pela narração em terceira
didos. É por isso que as cartas trazem a indicação do local e da data pessoa, pela abundância de descrições ou por uma estrururação do
em que foram escritas e o nome de quem escreve e da pessoa para enredo que figurativiza uma "lei" científica; que seu estilo é o objetivo-
quem se escreve. neutro, o que aproxima o discurso romanesco do discurso cientí-
O ato estilísrico é uma seleção de meios lingüísticos. Estilo I
fico; que o conteúdo temático são as determinações que motivam os
é, pois, uma s$leção de certos meios lexicais, fraseológicos e grama- comportamentos sociais e individuais. O que é preciso é entender
ticais em função da imagem do interlocutor e de"7cmio se pr~e por que o enunciado do romance naturalista é assim consrruído,
iua c~mpr;nsão responsiva ativa do enunciado. Há, assim, um estilo quais os elementos (condições específicas e finalidades) da esfera da
oficial, que usa formas respeitosas, como nos requerimentos, discur- atividade literária que levam ao surgimento desse tipo de enunciado.
so parlamentares, etc.; um estilo objetivo-neutro, em que há uma Não se tem a pretensão de discutir aqui a questão das condições do
identificação entre o locutor e seu interlocutor, como nas exposições aparecimento do romance naturalista. No entanto, basta pensar numa
científicas, em que se usa um jargão marcado por urna "objetivida- afirmação de Zola, no prefácio da 2~ edição de ThérêseRaquin, para
de" e uma "neutralidade"; um estilo familiar, em que se vê o inter- verificar que as finalidades da esfera da atividade literária, no perío-
locutor fora do âmbito das hierarquias e das convenções sociais, como do naturalista, são inteiramente diversas das de outros momentos:
nas brincadeiras com os amigos, marcadas por uma atitude pessoal
e uma informalidade com relação à linguagem; um estilo íntimo, Começa-se, espero, a compreender que minha finalidade foi an-
em que há uma espécie de fusão entre os parceiros da comunica- tes de tudo uma finalidade científica. (...) Apenas fiz sobre dois

62 63

j J
José luiz fiorin I~TROOU~ÃO AO PfNSAM[NTO DE 8AKHTIN

corpos vivos [= Thérese e Laurent) o trabalho analítico que os ci- conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se
rurgiõe fazem sobre os cadáveres. 1 despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu,
exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana,
Além disso, é preciso considerar que Bakhtin insiste no fato no dizer de um panegirista, meigo idioma, que, com imperecível
de que os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados. O galhardia, se intitula: língua de Camõesl-

acento deve incidir sobre o termo relativamente, pois ele implica


que é preciso considerar a historicidade dos gêneros, isto é, sua mu- Basta comparar uma notícia de um jornal do início do sé-
dança, o que quer dizer que não há nenhuma norrnatividade nesse culo XX e uma de um jornal de hoje para constatar que o gênero
conceito. Ademais, o vocábulo acentuado indica uma imprecisão notícia mudou radicalmente. Os gêneros estão em contínua mu-
das características e das fronteiras dos gêneros. dança. Por outro lado, qual é a fronteira que delimita a crônica do
Falava-se acima do romance. No modernismo, por exemplo, conto? Temos, nos jornais, crônicas que são verdadeiros contos. Isso
o estilo do romance é completamente outro do que aquele que não ocorre porque o cronista deixou de lado seu ofício, mas porque
marcava O romance naturalista. Abandona-se o estilo objetivo-neu- os limites entre esses dois gêneros são mais fluidos do que gostaria
tro e incorpora-se a linguagem da rua, isto é, um estilo familiar. nossa alma taxonômica,
Mário de Andrade, ao ridicularizar a literatura brasileira pré-mo- Não só cada gênero está em incessante alteração; também está
dernista, na sua paródica "Carta pras lcamiabas", capitulo IX do em contínua mudança seu repertório, pois, à medida que as esferas
romance Macunalma, critica exatarnente esse estilo afastado da lin- de atividade se desenvolvem e ficam mais complexas, gêneros desa-
guagem das ruas: parecem ou aparecem, gêneros diferenciam-se, gêneros ganham um
novo sentido. Com o aparecimento da internet, novos gêneros sur-
Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio uma curio- gem: o chat, o blog, o mail, etc, A epopéia desaparece e dá lugar a no-
sidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de ex- vos gêneros.
pressão intelectual é cão prodigiosa que falam numa língua e escre- A medida que a atividade do historiador vai profissionali-
vem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos zando-se, os textos de História perdem o tom laudatório que os im-
I
ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e den- pregnava. Nenhuma exposição de fatos históricos é escrita hoje da
(
tre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não foi forma como Sebastião da Rocha Pita compôs sua História da Amé-
das menores tal originalidade lingüística. Nas conversas, utilizam-se i ricaportuguesa (1730):
os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifãrio, crasso de feição "
e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e O céu que o cobre é o mais alegre; os astros que o alumiam, os
força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e da- mais claros; o clima que lhe assiste, o mais benévolo; os ares que o
quelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vô-las en- refrescam, os mais puros; as fontes que o fecundam, as mais crista-
sinarmos ai chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na

2 ANDRADE, Mário de. Macunaima. Rio de Janeiro/São Paulo: LivrosTécnicos C Cientí-


ZoLA. E. Tbérêse Raquin. 2. ed. Paris:BibliothequeCharpentier, 1953. p. m. ficos/Secretariada Cultura, Ciência e Tecnologia, J 978. p. 78.

64 65

i~ ~ ~~-- -- __ ~--~~I,~-------- ---------- --~ -ft"


José lui: fiorin INTROOU~ÃO AO P[NSAMENTO Df BAKHflN

linas; os prados que o florescem, os mais amenos; as plantas apra- excede todos os lugares que a literatura antiga descreveu como os
zfveis,as mores frondosas, os frutos saborosos, as estações temperadas. mais agradáveis do mundo.
Deixe a memória o Tempe de Tessália, os pênseis de Babilônia, e Um texto científico de física não seria escrito, hoje, como Joa-
os jardins das Hespérides, porque este terreno em continuada pri- quim Caetano da Silva expõe, na primeira metade do século XIX,
mavera é o vergel do mundo, e se os antigos o alcançaram podiam a lei da gravidade. Atualrnenre, haveria uma exposição de fórmulas
pôr nele o terreal Paraíso, o Letes e os Campos Elíseos, que das suas e sua demonstração e não se usariam recursos "retóricas" para per-
inclinações lisonjeados ou reverentes, às suas pátrias fantasiaram em
suadir o destinatário.
outros lugares."

Quando as questões cienrfficas se costumavam encarar quase


Nesse texto, Rocha Pita descreve o Brasil. Observe que ele o exclusivamente com os olhos da alma, assentavam os filósofos que
descreve como uma paisagem ideal, onde a natureza é bela, agradável, não podia o descenso dos graves deixar de fazer-se na razão direta
opulenta. Nele, vive-se uma eterna primavera. Ele é o pomar (= ver- das massas. Mas quando começaram a reabilitar-se os cinco senti-
gel) do mundo. Diante dessa paisagem, pode-se esquecer de outros dos corporais, tiveram os sábios de mudar de opinião, porque assim
lugares, conhecidos por serem belos e aprazíveis: Tempe (vale da o exigiram imperiosas experiências. Primeiro que todos o imortal
Galileu, observando que uma leve bola de cera, largada de cima da
Tessãlia, Grécia, entre os montes Olimpo e Ossa, famoso pela fres-
torre de Pizza, chegara ao chão quase ao mesmo tempo que pesa-
cura de seus bosques); pênseis da Babilônia (jardins suspensos da
das bolas metálicas do mesmo volume, coligiu que esta diferença
Babilônia, uma das sete maravilhas do mundo antigo); jardins das
de rapidez, já que de nenhum modo se achava em proporção com
Hespérides (na geografia antiga, ilhas que marcavam as fronteiras a diferença das massas, seria ocasionada pela resistência do ar, e
ocidentais do mundo, identificadas ora com as Ilhas Canárias, ora com 1
que, a não ser este obstáculo, diferença nenhuma se notaria. Ainda
a Ilha de Cabo Verde). No Brasil, se os antigos o tivessem conheci- mais se persuadiram os sábios de que assim era na verdade, quan-
do (= se os antigos o alcançaram), poderiam pôr os lugares míticos, do viram corroborada esta experiência de Galileu pela experiência
que imaginaram em certos lugares: o terreal Paraíso (paraíso terres- I mais rigorosa de Désaguliers, o qual, largando de cima da cúpula
de São Paulo de Londres, altura de 272 pés ingleses, duas bolas de
tre, jardim de inigualável beleza e abundância, onde Deus colocou
igual volume, mas cujas massas estavam na proporção de 1 para
Adão e Eva, logo depois da criação); Letes (na mitologia grega, um
19, observou que a diferença de rapidez era unicamente como de
dos rios do Hades, cujas águas faziam esquecer o passado àqueles que
1 para 3. Passou finalmente a persuasão a ser convicção, quando o
a bebessem); Campos Elíseos (na mitologia grega, lugar muito belo imortal, Newton mostrou que, encerrando-se em um tubo de vi-
e aprazível, onde moravam as almas dos mortos que tinham sido vir- dro de cinco a seis pés de comprimento, um considerável pedaço
tuosos e onde elas experimentavam a felicidade eterna). Como se de chumbo e uma pequenina porção de rama de pena, se neste tubo
vê, na descrição de Rocha Pita, o Brasil é um lugar paradisíaco, que se fazia vácuo, nenhuma discrepância se percebia no descenso de
massas tão desiguais; e logo que se ia novamente introduzindo o
3 PITA, Sebastião da Rocha. História da América porrug,,~sa. Rio de Janeiro: Jackson, 1950.
ar, quanto mais ar entrava, tanto mais devagar caía a pluma. Des-
p.53. I de então até hoje unanimemente proclamaram todos os tratados de

I
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José luiz fiorín INTROOU~ÃO AO PfNSAMfNTO D[ BAKHTIN

Física como uma verdade inconcussa, que no vácuo exerce-se a gra- entre estrutura composicional e conteúdo temático que cria um
vidade sem respeito às massas; e isto fazem não só os estimáveis dou- novo sentido para a utilização do soneto.
tOSque se limitam a propagar as descobertas alheias, mas ainda a O gênero une estabilidade e instabilidade, permanência e mu-
selecta minoria dos mais profundos pensadores; sendo entre todos dança. De um lado, reconhecem-se propriedades comuns em conjun-
doutrina tão corrente que até já passou do santuário da ciência
tos de texto; de outro, essas propriedades alteram-se continuamente.
para os domínios da literatura, como se pode ver nos preciosos si-
Isso ocorre porque as atividades humanas, segundo o filósofo rus-
nônimos, com que, além de outros tesouros, tem opulenrado as le-
so, não são nem totalmente determinadas nem aleatórias. Nelas, estão
tras portuguesas o muito venerável eminentíssimo cardeal patriarca
presentes a recorrência e a contingência. A reiteração possibilita-nos
de Lisboa.
Entretanto, se, ao contemplarmos esta fórmula da lei da gravi-
entender as ações e, por conseguinte, agir; a instabilidade permite
dade, nos acudir à lembrança a grande lei da atraçâo planetária, adaptar suas formas a novas circunstâncias.
talvez ajuizemos que, assim como seria infrutuoso olhar para a na- O gênero somente ganha sentido quando se percebe a cor-
tureza só com os olhos de dentro, tão pouco será razoável fitar nela relação entre formas e arividades, Assim, ele não é um conjunto de
só os de fora. propriedades formais isolado de uma esfera de ação, que se realiza
No udcuo exerce-se a atraçdo planetdria na razão direta das mas- em determinadas coordenadas espaço-temporais, na qual os parceiros
sas e inversa do quadrado das distâncias. Eis aí a grande descoberta da comunicação mantêm certo tipo de relação.
de Newton em astronomia; eis aí o grande princípio que, porfia- Os gêneros são meios de apreender a realidade. Novos mo-
damente rebatido pelos extremos discípulos de Descartes, de todos dos de ver e de conceprualizar a realidade implicam o aparecimen-
triunfou cabalmente, e de tal modo influi, há mais de um século,
to de novos gêneros e a alteração dos já existentes. Ao mesmo
no ânimo de todos os astrónomos, que se por ventura nos cálcu-
tempo, novos gêneros ocasionam novas maneiras de ver a realida-
los que levantam sobre este alicerce lhe argúe a observação algum
de. A aprendizagem dos modos sociais de fazer leva, concomitan-
erro, firmemente permanecem convencidos que foi, não por vício
temente, ao aprendizado dos modos sociais de dizer, os gêneros.
da lei geral, mas por causa de alguma particularidade menos bem "
Mesmo que alguém domine bem uma língua, sentirá dificuldade
averiguada.t
de participar de determinada esfera de comunicação se não tiver
controle do(s) gênero(s) que ela requer. É por isso que há pessoas
Embora o soneto sempre tenha quatorze versos, divididos em
dois quartetos e dois tercetos, seu uso é diferente, quando feito por que conversam brilhantemente, mas são incapazes de participar
de um debate público ou de discursar para uma grande platéia. A
um poeta parnasiano e por um poeta como Glauco Mattoso. Aquele
trabalha com formas fixas, este seleciona, no repertório legado pela falta de domínio do gênero é a falta de vivência de determinadas
tradição, uma forma, que, em princípio, segundo certos usos canô- atividades de certa esfera. Fala-se e escreve-se sempre por gêneros
nicos, não condiz com a ternática de que trata. É essa dissonância e, portanto, aprender a falar e a escrever é, antes de mais nada,
aprender gêneros.
Como se observa, os gêneros não são tipos de enunciados ape-
4 GONÇALvES. MagalyTrindadeet alii (Orgs.).Antologia da; antologias: prosadores brasilei-
ros "reoisirados".São Paulo: Musa, 1996. p. 101·102. nas da língua escrita. Eles abarcam a totalidade do uso da linguagem

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José luiz fiorin INTAUOU~ÃO AO PfNSAMfNTO Of 8AKHTI~j

em todas as suas modalidades. Bakhtin divide os gêneros em pri- de Manuel Puig, usam-se notas de rodapé, próprias da forma com-
mários e secundários. posicional dos textos científicos, para, por exemplo, dar explicações
Os primários são os gêneros da vida cotidiana. São predominan- "não ficcionais" a respeito da sexualidade, como se se defendesse
temente, mas não exclusivamente, orais. Pertencem à comunicação uma tese.
verbal espontânea e têm relação direra com o contexto mais ime- O texto que segue foi extraído de um folheto publicitário do
diato. São, por exemplo, a piada, o bate-papo, a conversa telefónica... Cartão Nacional Visa, em que a publicidade se estrutura como se fos-
E o mail, o bilhete, o chat... se um anúncio de correio sentimental:
Já os secundários pertencem à esfera da comunicação cultu-
ral mais elaborada, a jornalistica, a jurídica, a religiosa, a política, a 6 meses de experiência
filosófica, a pedagógica, a artística, a científica. São preponderante-
mente, mas não unicamente, escritos: por exemplo, o sermão, o edi- Jovem, poliglota, de excelente reputação e prestígio, bem rece-
bido no Brasil inteiro e em mais de 200 países, procura, para relacio-
torial, o romance, a poesia lírica, o discurso parlamentar, a comuni-
namento experimental de 6 meses e futuro compromisso, pessoas
cação científica, o artigo científico, o ensaio filosófico,a autobiografia,
acima de 21 anos, que adorem viver bem, gostem de viajar, ir a res-
as memórias.
taurantes, shoppings, teatros, supermercados, fazer compras e muitas
Os gêneros secundários absorvem e digerem os primários,
outras coisas boas da vida. Rio de Janeiro: 0800 21-0080.
transformando-os. Essa transformação ocorre porque eles perdem Cartão Nacional Visa. 6 meses sem anuidade para você conhecer
sua relação com o contexto imediato e sua vinculação com os enun- e aprovar.
ciados concretos dos outros. fu cartas e os fragmentos de diários, Entre em contare com a gente hoje mesmo e associe-se ao Na-
que compõem o romance Reflexos do baile, de Antonio Callado, têm cional Visa. Você tem 6 meses para testar e aprovar todos os seus
a forma e a significação desse tipo de comunicação na vida cotidia- benefícios e serviços exclusivos.
na. No entanto, eles participam da realidade concreta somente por
meio da totalidade do romance, que é um evento artístico e não No texto a seguir, o poeta Nicolas Behr mantém a estrutura
um acontecimento da vida cotidiana. composicional e o estilo do gênero receita, mas muda a ternárica,
Como se vê, há uma inrerdependência dos gêneros. Os se- Fala não de uma receita de alimento, mas de uma receita de poesia.
cundários valem-se dos primários, como se explicou acima. Mas exis- Ele estilizou a receita de alimento para construir seu texto de recei-
tem casos em que os primários são influenciados pelos secundários: ta poética.
por exemplo, uma conversa entre amigos sobre um fato da vida
pode adquirir a forma de uma dissertação filosófica. RECEITA
Os gêneros podem também hibridizar-se, ou seja, podem Ingredientes
cruzar-se. Um gênero secundário pode valer-se de outro secundá- 2 conflitos de gerações
rio no seu interior ou pode imitá-lo em sua estrutura cornposicio- 4 esperanças perdidas
nal, sua temática e seu estilo. No romance O beijo da mulher aranha, 3 litros de sangue fervido

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José lui: fiorin
INIROOU~ÃO AO PENSAMENTO Df BAKHTIN

5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles

Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
LIBERDADE
nos 2 litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
INTERDITADA
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças
perdidas PARAI50
corte tudo em pedacinhos V. MARIANA
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os
sonhos eróticos mas desta vez
deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver
Qualquer pessoa que olha o texto acima" vê que se trata de um
parte do sangue pode ser sinal de trânsito. Um motorista paulistano entende que a placa indi-
substituído por suco de ca que a Avenida Liberdade está interditada, que, à direita, na dire-
groselha mas os resultados ção mostrada pela seta, ele vai para o bairro do Paraíso, para a Vila
não serão os mesmos Mariana e para o Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN).
No entanto, esse texto aparece num livro de poesia. Isso sig-
sirva o poema simples ou com
nifica que o texto ganha novas significações. Ele está dizendo que a
ilusõest
liberdade, ou seja, a condição daquele que não está submetido a ne-
nhuma força constrangedora física ou moral, está proibida, interdi-
Um texto pode passar de um gênero para outro quando for
tada, vedada. Por isso, os indivíduos devem adotar uma direção obri-
colocado em outro contexto, ou seja, em outra esfera de atividade.
gatória seja para realizar suas atividades práticas (ir ao DETRAN),seja
É o que faz o poeta José Paulo Paes com o texto que segue:
para dirigir-se aos luga.resonde vão eferuar suas atividades cotidianas

5 BEHR. Nicolas, "Receita". Disponível em <hrrp://www.tamo.com.brlnicolasbehr-livri-


nhos.hrm». Acesso em: 17 maio 2006. 6 Os melhorespoemas de Jos' Paulo Pau. Seleção de Davi Arrigucci J r. São Paulo: Global.
1998. p. 129.

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José luiz fiorin INTROOU~ÃO AO PfNSAMfNTO Df BAKHTIN

(Vila Mariana) ou aos lugares onde se realizam os sonhos, as ativi- dios, em Alagoas, enviou dois relatórios de sua gestão ao governador
dades extraordinárias (Paraíso).A placa de trânsito transforma-se num do estado que manifestam um estilo absolutamente individual, indo
poema que fala sobre a impossibilidade do querer (a interdição da contra as estereotipias do gênero. Esses relatórios mostram, de ma-
liberdade) e a coerção do dever. neira cabal, que o gênero é relativamente estável e não-fixo. Obser-
Mostra Bakhtin que existem gêneros mais flexíveis e outros ve-se a conclusão do primeiro relatório:
mais estereotipados. Entre os mais criativos estão os da intimidade
familiar ou da amizade e os da esfera da literatura. Entre os mais es- Procurei sempre os caminhos mais curros. Nas estradas que se
tereotipados estão certos textos da vida cotidiana (as saudações, por abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
exemplo) e da vida prática (uma bula de remédio, por exemplo). Evitei emaranhar-me em teias de aranha.
Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser
Cabe notar que mesmo nos gêneros mais estereotipados os enuncia-
consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos con-
dos podem adquirir um novo sentido, quando se lhes dá, por exem-
tribuintes que não paguem impostos.
plo, uma nova entonaçâo (ao repetir, ironicamente, um cumpri-
Não me entendi com esses.
mento, dá-se a ele um novo sentido) ou quando se os transfere para
Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva
outra esfera de atividade (por exemplo, dizer "sim senhor, meu ge-
cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível ma-
neral" a um amigo que tenha o hábito de organizar tudo). roceirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica,
Nos gêneros mais maleáveis aparece o estilo individual nos mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto in-
termos expostos acima. No entanto, é necessário ter em mente que variável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja
o estilo individual não é absolutamente livre do gênero. O propó- isento de lucro pessoal; há quem pretenda embaraçar-me em coi-
sito comunicativo do locutor leva, antes de mais nada, à seleção de sa tão simples como quebrar as pedras dos caminhos.
um gênero, cuja escolha é determinada pela especificidade de uma Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de
dada esfera da troca verbal, pelas necessidades de uma temática, pe- multas.
las relações entre os parceiros da comunicação, etc, O projeto dis- Não favorecininguém. Devo ter cometido numerosos disparates.
cursivo do locutor adapta-se ao gênero escolhido, desenvolve-se sob Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. II
a forma de um gênero dado. No entanto, isso não implica que o fa- Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante

lante abandone sua individualidade. O estilo individual, que, como


nome.
Não me fizeram falta.
I
se disse, aparece mais claramente nos gêneros mais flexíveis, dá uma
Há descontentamento, Se a minha estada na Prefeitura por es- I
entonação própria ao enunciado, definida pela relação do enunciador
tes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse
com o objeto do enunciado e com os enunciados dos outros. Dizer
dez VOtos.Paz c prosperidade?
que o estilo individual aílora precipuamente nos gêneros menos es-
tereotipados não significa que, nos menos flexíveis, ele não possa
aparecer. Um relatório é um gênero bastante estereotipado. No en-
7 RAMos, Graciliano. Vivente das Alagoas:quadros • costumes do Nordeste. 4. ed. São Paulo:
tanto, quando Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos In- Martins, 1972. p. 191-192.

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José luiz fiorin

Graciliano abandona o tom "objetivo" dos relatório admi


nisrrativos para dar a seu relato um cunho rnarcadamente pes nl.
Ao fazer isso, narra o que não aparece normalmente nos do um I)
tos da administração pública, mas constitui a "essência" da vida do
funcionário público honesto e dedicado ao serviço público em li
sentido mais nobre.

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