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O aniversário1

Bella Chagall

Você se lembra, nós estávamos sentados num entardecer de verão, na alta margem do
rio não longe da ponte? Você se lembra do pequeno lugarejo ao seu redor?
O banco estava bem no alto da ponta da margem, podendo se ver a profundeza do rio. 
Atrás de nós, a margem do rio silenciosamente quase adormecido como se estivesse
se preparando para dormir.  Em volta de nossas pernas, uma grama alta, que
escorregava morro abaixo donde se viam florzinhas e com curtos arbustos que
emergiam da grama.
Nosso banco era pequeno e estreito e nossas cabeças pendiam através mirando por sobre
o rio.
Sentados em silêncio contemplávamos.
Falar sobre o quê?
Contemplávamos o sol que se punha diante de nós.
Demorou muito até o sol se extinguir. Por muito tempo o sol brincou no céu, ora se
avermelhando, ora dançando, ora jogando fogo em sua volta, mudando de um lugar para
outro. Iluminando a longínqua cidade com as cruzes das igrejas até que exausto, pálido,
ele perdeu se no horizonte.
E nós apreciávamos, das margens do rio, os encantos da natureza, de cima para baixo
como se fossemos mais alto que o sol.
É maravilhoso como a alta margem irrompe pelos céus e cai sozinha por cima das fracas
e baixas encostas.
O sol se pôs e então, como um rebanho de carneirinhos cacheados, nuvens brancas se
espalharam num pedaço de céu, não o abandonando e afastando cada estrelinha que
queria brilhar lá de cima.
Aproximam-se de um lado do céu nuvens azul escuro e vão se afastando atrás de si.
Estamos sentados, imóveis, observando o céu, e esperamos a lua.
Quando a deixarão aparecer?

1
In: Mit groys fargenign: hundert yor yidishe literatur. With great pleasure: a century of Yiddish writing.
Compiled and Edited by Heather Valencia. Oxford Institute for Yiddish Studies, London, 2003, p. 91-96.
Tradução para o portugues feita generosamente por Léa Tabak, Mirian Garfinkel e Sarah Morelenbaum,
Mirian Garfinkel para o Curso Histórias Contadas e Cantadas em Yiddish, PUC-Rio, outubro 2018.

1
Um olhar para o lado e de repente ela já apareceu. Num minuto, ela se arrasta pelo céu.
Já está escurecendo o seu azul e ultrapassando as nuvens que o cobriam, espalhando seu
brilho com tanta força que os olhos se clarearam.
E mais uma vez essa claridade se esconde atrás de uma onda de escuridão.  Um olho
aparece, depois uma bochecha inteira, a outra bochecha trancada e na noite fica perdida.
Como uma verdadeira traquina se arrasta a lua, brinca com as nuvens que a empurra
para o rio que a agarra e é abraçada dentro das águas, ou será que ela está brincando
conosco? Ela sabe - a lua - que estamos sentados e olhamos fixamente para ela, com
atração, só para ela....
Há pouco era dia e a noite já chegou... Dizem que cada um nasce sob sua estrelinha.  
Eu me volto para você. Teus olhos fastiados com o céu brilham.
- Oi, que idade você tem? Eu às vezes te pergunto - quando você nasceu? Você sabe?
Você dá uma olhada para mim como se eu tivesse pulado de dentro do céu.
- Você quer mesmo saber? Várias vezes eu o perguntei para mim mesmo.  Meu pai uma
vez me disse que para que David, meu irmão, pelo menos tivesse um "legota" (isenção
do serviço militar) ele me registrou como se fora dois anos mais velho.
- De qualquer feito nós não enganaremos a Deus, meu pai raciocinou e se dissermos
uma mentira para o "ispravnic" (chefe do distrito da Rússia tzarista) Deus perdoará.
Contanto que David não tenha que servir o exército.
- E, de novo, quando mesmo você nasceu?
- Se você quiser, fazemos as contas. Eu sou o mais velho. Faz pouco tempo eu ouvi a
mamãe, durante o jantar, perguntando ao papai. Me lembro da mamãe recriminando
papai no jantar:
- Hatche, que tal pensar sobre a Banke? - assim é chamada nossa Niute, - tudo recai
sobre meus ombros. Até quando ela vai permanecer solteira? Ela,  graças a Deus,  está
prestes a completar 17 anos. Dá uma entrada na casa do Mordche,  o casamenteiro, você
passa por lá de qualquer maneira.. 
- Eu presto atenção,  se Niute tem 17 anos, eu devo ter no máximo 19.
- Em que dia você nasceu, você não sabe? 
-Por que você precisa saber de tudo? Você vai envelhecer... 
- Tudo? Somente quando você nasceu. 
- Quem é que sabe? Quem pode saber além da mamãe? - E a mamãe com certeza se
esqueceu,  teve tantos filhos... Somente quando minhas irmãs brigam comigo elas
atiram estas palavras: "você é amalucado,  você nasceu em Tamuz". 

2
Junto conosco, todas as estrelinhas caem no riso,  as estrelinhas que correram para o
céu,  como se tivessem vindo escutar sua história lá do alto. 
- Sabe o que eu acho? Você vai dizer que eu sou uma tola, mas me ocorre, quem sabe
você  nasceu de fato no ano em que seu pai te registrou? Só que no primeiro minuto que
você veio ao mundo você se assustou, e até o momento em que você se recuperou se
passaram esses anos... 
- Está pensando de verdade? - Você já estava a ponto de ficar mal humorado , como o
céu,  que também escureceu naquele momento. 
-Você não entende que eu estava rindo? Tenho medo até de dar um sorriso. 
-Você não está zangado, certo? 
Nem sei mesmo como, mas de fato calculei qual é o dia de seu aniversário. 
     * * *
Naquele dia, de manhã cedo, corri para os arredores da cidade e colhi um monte de
flores. 
Ainda me lembro como arranhei minhas mãos, queria arrancar  flores azuis, altas, que
cresciam atrás de uma cerca. Um cachorro começou a latir para mim. 
Consegui escapar, não soltei as flores de minhas mãos. Tão belas! Corri para arrancar
mais flores,  lá no campo, arranquei-as com raízes e grama, para que você pudesse sentir
o cheiro da terra. E em casa, juntei todos meus lenços coloridos,   puxei da cama minha
colcha de cores alegres, na cozinha peguei um pletzel, uns pedaços de peixe frito, de
que você tanto gostava, vesti meu  vestido de  festa e carregada,  como um burro, saí
para a sua casa. 
Não pense que foi tão fácil carregar tantas coisas. 
Era um dia quente,  o sol ardia desde cedo, as ruas estavam aquecidas. Das pedras
emanava um forte calor, e era preciso percorrer metade da cidade antes da chegada. 
As lojistas estão em pé perto das portas de suas lojas,  pegam um pouco de ar fresco.
Cada uma me conhece, sabe para onde estou indo. Se entreolham, piscam umas para as
outras:
- Para onde esta maluca está correndo, com tantos pacotes? Será que, Deus nos livre, ela
fugiu de  casa para a casa do seu belo rapaz? Com essas moças modernas,  pode-se
acreditar em tudo!
Sorte que você morava do outro lado do rio. Corto as ruas, subo e desço a ponte
correndo e, na margem, já estou livre. 

3
Nas casinhas que ficam na margem, as janelas estão fechadas. As moradoras se
protegem do sol, pois estão ocupadas na cozinha, que dá as costas para o rio. 
Aqui eu respiro fundo. Um céu claro. Do rio vem um frescor.  As águas correm e eu
corro. O céu me persegue. Ele olha cada vez mais para baixo, me enlaça pelos ombros, 
me ajuda a correr. 
Naquele verão, você tinha um quarto só para você, se lembra? Um pouco mais longe da
casa de seus pais, um quarto que você alugou de um gendarme. 
A casa dele,  branca com janelas vermelhas, como o seu chapéu  de verão, branco com
faixas vermelhas, ficava no final da rua,  não longe de uma longa cerca que rodeava de
um grande jardim,  no meio do qual se elevava uma igreja. 
Você provavelmente deve ter pensado: ele,  o guarda, e ela,  a sagrada igreja, irão te
proteger de tudo, mesmo de si próprio. 
Não?
Dei uma batida na (porta da) sua loja, que você costumava manter meio fechada mesmo
durante o dia, se por excesso de luz, se para que talvez, ninguém te veja da rua.
Você vai sozinho abrir a porta para mim, sua patroa que não me veja – uma visita
muito assídua sou eu – e ainda com pacotes em minhas mãos.
Estou parada e espero – a porta da casa do gendarme não é tão fácil de abrir. Uma
grande vara tranca a porta por trás. Demora até que você a puxa dos seus buracos.
- Que é isto? Você me deixa entrar rápido no seu quarto e fica olhando para mim com
seus dois olhos grandes. De onde você veio?
- Você pensa que com pacotes se pode chegar assim do trem? Adivinhe, o que é hoje?
- Pergunte-me algo mais fácil. Não sei nunca que dia é hoje?
- Não, não é isso... hoje é o dia do teu aniversário!
Você fica parado como paralisado (farshtamlter). Você pensa que se eu te avisasse que
o rei veio visitar a nossa cidade, você não ter ficado mais surpreso.
- Como você sabe?
E eu pego rápido meus lenços coloridos, penduro nas paredes, coloco um na mesa,
cubro sua cama com a colcha que trouxe comigo. E você?... você se vira para o lado e
recolhe na pressa as telas no canto. E de repente você pega uma tela e deixa de lado, em
algum lugar, sua prancha de cores
- Não se mexa... fique parado onde você está!...

4
As flores ainda ficaram nas minhas mãos. Eu não fico parada em um lugar, eu as quero
colocar dentro d´água, elas vão se ressecar... Mas logo as esqueço. Você esbarrou na
sua tela, de tal forma que ela se consola debaixo de suas mãos.
Você molha os pincéis, joga cores, vermelho, azul, branco preto. Você me arrasta neste
turbilhão de cores. De repente me arranca da terra e sozinho se empurra com uma perna,
como se você ficasse muito apertado no seu pequeno quarto.
Você dá um salto para cima, se alonga ao largo e voa para a viga sozinho. Sua cabeça
fica rodando, você também faz rodar a minha... se arrasta atrás das minhas orelhas e
murmura algo para mim...
Eu fico ouvindo como se você estivesse cantando uma música com sua voz macia e
profunda.Até nos seus olhos se consegue ouvir a música. E juntos, de uma vez, nos
levantamos por sobre o quarto enfeitado e voamos juntos. Chegando na janela,
queremos passar através dela. Da janela nos chama um ar enevoado – um pedaço de céu
azul. As paredes dependuradas com lenços coloridos giram em torno de nós e nos
deixam tontos. Nós voamos por sobre campos com flores, sobre casinhas trancadas,
telhados, quintais e igrejas...
- Te agrada o meu quadro? – Você fica de repente de pé. Olha para o seu quadro, olha
para mim, desce da palheta de cores e chega perto.
- Ainda há muito a fazer? Assim não podemos deixar, verdade? Diga, onde devo ainda
trabalhar...
[...] Você espera e tem medo, do que eu vou te dizer.
- Oy! Está muito bom. Você voou de um jeito tão bonito...
- - - Nós vamos chamá-lo de "O dia do aniversário” –
Para você preencheu teu coração. Em você, seu coração ficou pleno.
bay dir iz opgegangen dos hartz.
- Você vem amanhã? Eu vou pintar mais um quadro... Nós vamos continuar a voar...

Krenbeli Lake. N.Y


07/07/1944

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