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Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano I, n° 01. Julho-Dezembro de 2015.

Parnaíba-PI

TURISMO, TRABALHO E ESTRANHAMENTO:


As experiências dos trabalhadores do setor no polo
turístico do Delta do Parnaíba-PI.
Amanda Maria dos Santos Silva1

Resumo
A presente pesquisa teve como propósito investigar as experiências labo-
rais dos trabalhadores do setor do Turismo que atuam na região do Delta
do Parnaíba em sua extensão piauiense, em especial na cidade de Ilha
Grande do Piauí, Para tanto, nos apropriamos da perspectiva do materia-
lismo histórico dialético. O fio condutor de nossa analise se processa me-
todologicamente no entrelaçamento de fontes escritas e orais. Para isso
utilizamos uma abordagem qualitativa composta com pesquisas biblio-
gráficas e de campo onde identificamos e inserimos nossos sujeitos de
pesquisa através da História Oral. A partir das entrevistas realizadas foi
possível perceber que os trabalhadores da região tem uma relação estra-
nhada com o produto de seu trabalho e devido essa constatação não se
70 percebem enquanto protagonistas do processo de desenvolvimento da
atividade no local.
Palavras-chave: Turismo, Trabalho, Estranhamento, Delta do Parnaíba.

Resumo
The present research aimed to investigate the work experiences of the
Tourism sector workers that operate in the region of Delta of Parnaíba in
its piauiense extension, especially in the city of Grande do Piauí Island
Therefore, we use the Materialist Dialectics Historical perspective. Meth-
odologically, we use the intertwining of written and oral sources, combin-
ing bibliographic and field research where we identify ours study subjects
through Oral History. From the interviews it was revealed that the work-
ers in the region have a relationship estranged with the product of his
work and because this finding does not perceive themselves as protago-
nists of the activity development process on site.
Keywords: Tourism, Labour, Strangeness, Delta of Parnaíba.

1
Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, Bacharel em Turismo pela Univer-
sidade Federal do Piauí, Licenciada em História pela Universidade Estadual do Piauí.
amssphb@hotmail.com

ISSN 2447-7354
Amanda Maria dos Santos Silva

INTRODUÇÃO Dessa forma fica evidenciado que


Como propõe o título do trabalho, o Turismo seria uma “tábua de salvação”
a intenção é apresentar aos leitores de para as comunidades locais (DAMATTA,
que forma os trabalhadores do setor tu- 1996), contudo, na maioria das vezes –
rístico, em especial os condutores de Eco- assim como em nosso caso - a atividade
turismo, que atuam na região do Delta turística é desordenada e ocorre o que
do Parnaíba se relacionam com o sua afirma Beni (2007, p.87)
atividade laboral e como se percebem
dentro do processo de desenvolvimento O grupo social receptor de turismo,
do Turismo na localidade. isto é, os habitantes estáveis de um
O cenário que possibilita essa in- núcleo receptor, sofrem muitas vezes
vestigação é a crescente expansão da uma autêntica colonização econômi-
atividade, mesmo com o contexto de ca e são encarados como joguetes de
crise econômica, exemplo desse cresci- poderosos e levianos interesses ocul-
mento é a evolução dos indicadores do tos.
turismo: quando começou a ser “medido”
em 1950 houve um crescimento pratica- Uma vez incorporada nos núcleos
mente ininterrupto da atividade que em receptores à premissa do turismo en-
2013 movimentou aproximadamente quanto fator de geração de riquezas mo-
1bilhão e 800milhões de pessoas caracte- vido pela lógica capitalista acaba predo-
rizando 9% do PIB mundial, onde um em minando e os turistas em diversas dessas
cada dez empregos (diretos ou indiretos) comunidades acabam sendo vistos como
são ligados ao setor, gerando 1,4 bilhões um mal necessário. Paradoxalmente, “os
em exportações o que corresponde a 6%
do comércio internacional e a 29% de
visitados, quanto mais pobres, mais de-
positam no turismo suas expectativas de
71
exportação de serviços. (OMT, 2014). progresso, de integração ao processo
Com o “boom turístico” houve o civilizatório, à economia de mercado.”
florescimento da atividade turística em (THEVERIN, 2004, p.8).
áreas anteriormente não exploradas, fez Essa é uma realidade que pode ser
com que surgisse nos núcleos receptores percebida entre os habitantes da cidade
de Turismo um maior interesse com rela- de Ilha Grande do Piauí, que possui baixo
ção à distribuição dos lucros gerados com grau de desenvolvimento e deposita suas
essa atividade a fim de melhorar a quali- fichas no turismo, conferindo a atividade
dade de vida das comunidades locais. um status de “tábua de salvação” para os
Essa necessidade de inserção no mercado moradores que ocupam o espaço desti-
visando a melhoria das condições maté- nado a prática. Podem ser detectadas
rias pode ser vista em nosso lócus de outras situações conflitantes entre os
pesquisa materializado na fala de José moradores dos núcleos receptores e os
(2014) turistas que visitam as localidades

Eu trabalhava só com a pesca, até METODOLOGIA


que um tempo a situação ficou difícil Para nortear essa investigação, as-
e um amigo perguntou se eu queria sumi como opção metodológica, a pers-
trabalhar com o turismo e o mesmo pectiva dialética proposta por Marx. Co-
barco que eu trabalhava transformei mo apontamento inicial para possibilitar
para o turismo. Fiz uns cartões e co- o entendimento sobre o meu percurso
mecei a trabalhar com o Pedro. metodológico devo destacar que ele parte
do movimento real da ação humana,
como Marx (1989, p.16) indica “a investi-

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gação tem de apoderar-se da matéria, em (2010, p.3), pois [...] buscamos fontes
seus pormenores, de analisar suas dife- orais porque queremos que vozes, – que,
rentes formas de desenvolvimento, e de sim, existem, porém ninguém as escuta,
perquirir a conexão íntima que há entre ou poucos as escutam”. Dessa forma,
elas”. foram entrevistados três condutores de
Em termos práticos, todo e qual- Ecoturismo que fazem parte da única
quer objeto de estudo é real e efetiva- entidade organizada no segmento, a As-
mente aparece como objeto humano, sociação dos Condutores de Ecoturismo
social e histórico. Portanto, o processo de de Ilha Grande do Piauí-ILHAECOTUR.
conhecimento do objeto não ocorre de
modo direto, imediato ou espontâneo, RESULTADOS E DISCUSSÃO
mas articulado num todo, que só existe Como ponto fundamental neces-
como produto de uma atividade específi- sário para compreender essa investigação
ca e teórica. é necessário destacar o entendimento
Essa análise se torna possível por- Marxiano da categoria Trabalho. Esta
que o método dialético (ANDRADE, 2010, pode ser apresentada enquanto uma re-
p.121) “é contrário a todo conhecimento lação estabelecida entre homem e natu-
rígido: tudo é visto em constante mudan- reza. Seu processo se torna possível à
ça, pois sempre há algo que nasce e se medida que o homem interage, se apro-
desenvolve e algo que se desagrega e se pria e transforma o meio que está inseri-
transforma”. Compreendo ser este o me- do. Nessas circunstâncias dialeticamente
lhor caminho para analisar as contradi- transforma também a si mesmo, como
ções presentes nas propostas de qualifi- nos mostra Marx (2013) “trabalho é um
72 cação aos trabalhadores do setor do Tu-
rismo.
processo de que participam o homem e a
natureza, processo em que o ser humano
A pesquisa que se desenvolve é de com a sua própria ação, impulsiona, re-
cunho bibliográfico, uma vez que, “se gula e controla seu intercambio material
realiza a partir do registro disponível, com a natureza”.
decorrente das pesquisas anteriores, em A partir desse movimento de
documentos impressos, como livros, arti- transformação da natureza, o homem se
gos, teses, etc. Utiliza-se de dados ou de “constrói”, atuando sobre a natureza
categorias teóricas já trabalhados por externa a ele, modificando-a, enquanto
outros”. (SEVERINO, 2007, p. 202). simultaneamente tem sua própria natu-
Foram realizadas ainda pesquisas reza modificada (Marx, 2013). Logo, se
de campo, definidas como realizei pes- entende que o trabalho é o elemento que
quisas de campo que (MINAYO, 2006, p. possibilita a construção de uma identi-
62) “o recorte que diz respeito à abran- dade humana uma vez que esse processo
gência, em termos empíricos do recorte permite a constituição de um “ser social”
teórico como correspondente ao objeto e é, por conseguinte um artifício funda-
da investigação”. mental de sua organização coletiva, pois,
Para compreender essas experiên- esse movimento possibilita sua organiza-
cias trilhei os caminhos da História Oral, ção em sociedade.
suas definições, técnicas e ferramentas. É Torna-se necessário, contudo, ca-
importante ressaltar que não se trata racterizar o trabalho em sua natureza
(ALBERTI, 2005) simplesmente de sair dúplice, se por um lado ele possibilita a
com um gravador em punho, algumas constituição do homem enquanto ser
perguntas na cabeça, e entrevistar aque- social pertencente/transformador de uma
les que cruzam nosso caminho. Minha sociabilidade ele também tem como ca-
compreensão é a de mesma de Portelli racterística a alienação/estranhamento

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proporcionado pelo assalariamento e Pode-se distinguir os homens dos


pelas condições em que suas atividades animais pela consciência, pela reli-
são desenvolvidas. Dessa forma o traba- gião ou por tudo que se queira. Mas
lho se desenvolve processualmente em eles próprios começam a se diferen-
suas dimensões basilares com seus aspec- ciar dos animais tão logo começam a
tos positivos e negativos. produzir seus meios de vida, passo
É importante ressaltar que em este que é condicionado por sua or-
Marx existe uma relação conectada entre ganização corporal. Produzindo seus
o trabalho útil-concreto (positivo), produ- meios de vida, os homens produzem,
tor de valores de uso indispensáveis à indiretamente sua própria vida mate-
(re)produção humana e o trabalho abs- rial. (MARX e ENGELS, 2001, p.27.)
trato (negativo), contido nas mercadori-
as, cujo principal fim é a criação de mais- Observo esse movimento entre os
valia indispensável a lógica do capital. associados da ILHAECOTUR à medida
Dialeticamente Marx considera que analiso a forma como o trabalho é
seus aspectos positivos e negativos, onde produzido por eles, primeiro em um pla-
se debruça sobre a contribuição dada no ideal, para após esse momento se ma-
pelo trabalho, entre elas o “tornar-se terializar na realidade, sobre esse aspec-
homem” propiciado pela produção dos to, Francisco (2014) nos relata sobre as-
seus meios de subsistência. sunto.

[...] para viver, é preciso antes de Alguns roteiros nós criamos. A Trilha
1
tudo comer, beber, ter habitação, da caída do morro , o morro geme-
vestir-se e algumas coisas mais. O
primeiro ato histórico, é portanto, a
dor e o tour pela cidade nós que cri-
amos. Inclusive tem outros passeios
73
produção dos meios que permitam a criados pela gente que as outras
satisfação destas necessidades, a agências comercializam como o safa-
produção da própria vida material, e ri noturno no Delta. As trilhas são
de fato esse é um ato histórico, uma feitas só pela gente. Vamos antes ao
condição fundamental de toda a his- local, fazemos um estudo, vemos a
tória, que ainda hoje, mesmo a mi- viabilidade e depois disso organiza-
lhares de anos, deve ser cumprida mos e que comercializamos o roteiro.
todas as horas, para manter os ho-
mens vivos. (MARX e ENGELS, 2001, Partindo dessa colocação, fica ex-
p.39) plícito o papel dos condutores de ecotu-
rismo enquanto mercadoria a ser dispo-
Dessa forma, o homem em seu nibilizada aos compradores: sejam eles
contato com a natureza, se utiliza de suas turistas ou agências de turismo. Essa
forças vitais: pernas, braços, cabeça e situação se materializa à medida que
mãos transformando a matéria prima novos roteiros são criados e guiados por
contida na natureza para canalizar os eles. Existe a partir desse ponto a modifi-
recursos disponíveis com o objetivo de cação do espaço, que passa ser utilizado
subsidiar sua vida social. Assim, o ho- para o turismo e a modificação dos ho-
mem imprime na natureza a sua forma mens que cotidianamente através de seu
útil a vida humana. A partir desse movi- envolvimento/participação em um setor
mento, o homem transforma a natureza e que anteriormente não fazia parte de seu
forja sua condição humana.
1
O descritivo desse roteiro, hoje denominado de
Trilha das Dunas está disponível nos anexos.

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campo de trabalho se reconhecem de processo de transformação do Delta do


forma cada vez mais efetiva enquanto Parnaíba em um produto turístico bem
trabalhadores do setor turístico. como a transformação trabalhadores que
Nesses termos o trabalho pode ser vivenciam a exploração cotidiana de sua
exposto como um movimento de trans- força de trabalho.
formação/apropriação da natureza pelo Um aspecto fundamental para a
homem com o objetivo de subsidiar sua compreensão das experiências laborais
existência. Marx (2013), ainda relaciona- vivenciadas pelos trabalhadores do setor
do a esse processo, apresenta que outros é o debate sobre estranhamento e reifica-
animais tem essa interação com a natu- ção. No contexto de trabalho desses su-
reza, contudo, nos mostra que por não jeitos isso é percebido na forma como os
ser uma atividade mediada pela consci- trabalhadores são vistos e se veem du-
ência e sim por instinto, apenas ao ho- rante seu processo de trabalho. Evidencio
mem carrega consigo esse status trans- essa situação na fala de José (2014)
formador da natureza com a finalidade
de prover sua existência. Isso fica claro O trabalho que a gente faz não é va-
quando ele expõe que lorizado por aqui, muitas pessoas
que contratam veem a gente às vezes
Uma aranha executa operações se- até como uma máquina, que tá aqui
melhantes às do tecelão, e a abelha pra dar informação e nem ligam se a
supera mais de um arquiteto ao gente tá bem ou mal, se tá doente ou
construir sua colmeia. Mas o que o com problema.
pior arquiteto da melhor abelha é
74 que ele figura na mente sua constru-
ção antes de transformá-la em reali-
Essa sociabilidade abre margem
para a configuração de um trabalho es-
dade (MARX, 2013, p.212) tranhado e para a reificação dos traba-
lhos do setor. Dessa forma, se configura
Com isso Marx afirma que o pro- então a objetivação do trabalho como
cesso em sua integralidade, desde a for- estranhamento, uma vez que o produto
mulação até a execução pertence exclusi- configurado através da ação direta do
vamente ao homem, ao trabalhador. Ele trabalhador se opõe a ele como um ser
não apenas transforma o material que independente e oposto dele enquanto
está a sua disposição como dá uma mate- produtor. Sobre essa reflexão Marx (2008,
rialidade/utilidade a partir de um projeto p.80) destaca que
desenvolvido a priori em sua consciência,
construindo valores de uso, compreendi- Este fato nada mais exprime, senão:
dos como a transformação da natureza o objeto (Gegenstand) que o traba-
em elementos úteis a manutenção da lho produz, o seu produto, se lhe
vida humana. defronta com um ser estranho com
Em suma, a compreensão marxia- um poder independente do produ-
na relacionada ao processo de trabalho tor. O produto do trabalho é o tra-
mostra como o homem participa de di- balho que se fixou num objeto, fez-
versas fases de produção até que seu se coisal (sachlish) é a objetivação
trabalho chegue a um final. Esse processo (Vergegenstandlichung) do seu tra-
apresenta categorias diversas que estão balho. A efetivação (Verwirklichung)
em permanente interligação e que são do trabalho é a sua objetivação. Es-
fundamentais para a problematiza- ta efetivação do trabalho aparece o
ção/compreensão do trabalho enquanto estado nacional-econômico como
processo. Essas categorias são vistas no desefetivação (Entwirklichung) do

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trabalhador, a objetivação como Não existe por parte desse traba-


perda do objeto e a servidão ao lhador o reconhecimento da sua impor-
objeto, a apropriação como estra- tância para o desenvolvimento do Delta
nhamento (Entfremdug), como alie- do Parnaíba como produto turístico da
nação (Entausserung). região. Ele se percebe como ferramenta,
como objeto e deixa a cargo dos consu-
Assim, o estranhamento do traba- midores a avaliação da atividade que
lhador significa que o seu trabalho se desenvolve cotidianamente de forma
transforma em um objeto com uma exis- sistemática.
tência independente e exterior de seu Feita essa explanação, examinei o
produtor, se tornando um ser estranho processo de estranhamento do trabalha-
com um poder autônomo. Dessa forma a dor a partir da sua relação com os produ-
vida que o trabalhador deu ao objeto, faz tos de seu trabalho. A revelação desse
com que ele se torne uma força hostil ao processo não se dá apenas no resultado,
próprio produtor. “A apropriação do obje- no trabalho objetivado, mas, sobretudo,
to tanto aparece como estranhamento no processo de produção onde os traba-
(Entfremdug) que, quanto mais, objetos o lhadores atuam. O estranhamento do
trabalhador produz, tanto menos pode trabalhador, antes de ser relacionado ao
possuir e tanto mais fica sob o domínio produto de seu trabalho está relacionado
do seu produto, o capital. (Idem, 2008, ao processo produtivo. Para Marx (2008,
p.81)”. Logo aponto um aspecto fundante p.82) esse processo se dá primeiramente
do estranhamento: a autonomia agregada da seguinte forma
ao objeto face o seu produtor.
O ápice desse domínio/autonomia
se materializa quando o trabalhador se
Primeiro que o trabalho é externo
(ausserlich) ao trabalhador, isto é,
75
mantém enquanto sujeito físico, como não pertence ao seu ser, que ele não
um mero produtor de objetos, utilizando se afirma, portanto, em seu trabalho,
todas as suas energias para o processo de mas nega-se dele, que não se sente
objetivação. Esse se caracteriza como a bem, mas infeliz, que não desenvolve
base do problema do estranhamento: o nenhuma energia física e espiritual
trabalhador é encarado como mercadoria livre, mas mortifica sua physis e ar-
viva para a produção de mercadoria ina- ruína o seu espirito. (...) o seu traba-
nimada. “O trabalhador encerra sua vida lho não é portanto voluntário, mas
no objeto; mas agora ela não pertence forçado, trabalho obrigatório.
mais a ele, mas sim ao objeto”. (Idem,
2008, p.81) Entre meus sujeitos essa rela- O trabalho vira assim um meio
ção é materializada na fala de um dos para subsidiar outras necessidades do
condutores que atuam no Delta ao anali- capital e não uma determinação para a
sar sua importância para o desenvolvi- realização do homem como tal. Assim, o
mento da atividade. trabalho estranhado, é o trabalho res-
ponsável pela mortificação do trabalha-
Eu acho até difícil falar sobre essas dor, tornando seu trabalho um sacrifício
coisas. Eu sei fazer o serviço, mas “o trabalho não é, por isso, a satisfação
não posso lhe responder, porque o de uma carência, mas somente um meio
próprio turista que me contrata é para satisfazer as necessidades fora dele”
que pode dizer qual é a minha im- (MARX, 2008, p.83) Percebo essa situação
portância e se eu sou importante ou entre meus sujeitos na fala de José (2014)
não. (José, 2014)

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Na maioria das vezes eu acompanho meio de vida”. O trabalho estranhado faz


um passeio por dia. Que sai às 8 da com que o homem veja em sua atividade
manhã e volta às 4 da tarde. Depen- apenas um meio de produção de sua exis-
dendo do turista a gente fica até tência. Ao ser questionado sobre os seg-
mais porque não tem a obrigação de mentos que são fundamentais para a
fazer a vontade dele. Se eu faço um existência do turismo no Delta do Parna-
passeio com você claro que eu tenho íba José (2014) nos apresenta a seguinte
que tirar o meu dinheiro, mas você consideração.
tem que ficar satisfeita pra poder
voltar e trabalhar comigo ou me in- O mais importante do Delta pra ele
dicar pra algum amigo. Se não, eu fi- ser procurado e a Natureza. O poder
co sem trabalho e sem o sustento de público não ajuda em nada. Pra você
casa que eu tiro do turismo nesses ter uma ideia no final de ano passam
períodos de alta temporada. entre cinco e seis mil turistas e não
fica um centavo dentro da Ilha
É importante pontuar que Turis- Grande. Não tem organização, divul-
mo e o Trabalho para suprir a necessida- gação nem nada. A gente que traba-
de dos consumidores são percebidos lha não pode fazer nada, quase não
apenas como uma atividade que viabiliza tem voz pra definir nada. A gente só
a reprodução material desses homens, pode acompanhar o turista, ganhar
não sendo notado nas falas uma auto nossa diária e pronto.
avaliação ou mesmo uma valorização da
atividade por eles desenvolvida. O estra- Apesar de produzir, comercializar
76 nhamento no ato da produção é uma con-
sequência direta a relação estranhada
e vivenciar cotidianamente o espaço (seja
profissional ou pessoalmente) não é per-
estabelecida entre o trabalhador e os cebido na fala dos trabalhadores uma
produtos de seu trabalho. Marx (2008, valorização do trabalho realizado por
p.83) mostra essa situação como mais um eles, uma vez que eles se colocam como
sacrifício ao trabalhador, pois, peça pouco fundamental no desenvolvi-
mento do turismo. Esse processo é des-
A relação do trabalhador com a pró- crito de forma mecânica e não acompa-
pria atividade como uma [atividade] nha um sentimento de realização pessoal
estranha, não pertencente a ele, a com a atividade e como consequência de
atividade como miséria, a força com não se reconhecer em sua atividade ele
impotência, a procriação como cas- não pode “fazer-se” através dela, se tor-
tração. A energia espiritual e física nando estranhado de si e de sua nature-
própria do trabalhador, a sua vida za.
pessoal – pois o que é a vida senão Como desfecho que sua análise
atividade – como uma atividade vol- Marx (2008) conclui que a propriedade
tada contra ele mesmo, independente privada é fruto da relação externa do
dele, não pertencente a ele. O estra- trabalhador a natureza e a si mesmo
nhamento-de-si (Selbstentfremdung) (trabalho estranhado). O desenvolvimen-
tal qual o estranhamento da coisa. to da propriedade privada, ao atingir seu
pico como o trabalho estranhado e o
A partir dessa determinação Marx meio pelo qual o trabalho se torna estra-
nos mostra que o homem vê em sua ati- nhado, por isso, é possível definir as de-
vidade produtiva apenas um meio para a mais categorias da Economia Política
satisfação de suas necessidades de exis- como, por exemplo, o salário, comércio,
tência física “a vida aparece mesmo como dinheiro, encontrando em cada uma de-

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las uma expressão particular dos elemen- produtos de seu trabalho, ou seja, pelas
tos fundamentais que as constitui. mercadorias.
Para compreender as relações es- A mercadoria carrega consigo uma
tabelecidas entre meus sujeitos de pes- unidade entre valor de uso e de troca,
quisa e sua atividade profissional uma possibilitada pela divisão social do traba-
categoria merece destaque nesta análise: lho e pela propriedade privada que são
a reificação. Essa elucidação pode ser historicamente desenvolvidos. Com a
encontrada nas páginas de O Capital propriedade privada, o produtor possui a
(2013) onde ele expõe que “a riqueza das possibilidade de escolher como, o que e
sociedades em que domina o modo de quanto deve produzir, contudo, dialeti-
produção capitalista aparece como uma camente em um movimento combinado
‘imensa coleção de mercadorias’, e a sua inserção na divisão social do trabalho
mercadoria individual como sua forma do deixa dependente de outros produto-
elementar” (MARX, 2013, p. 57). Assim, a res. Assim, cada produtor produz para o
mercadoria é elencada como forma ele- outro e não exclusivamente para si, o que
mentar do modo de produção capitalista faz da mercadoria uma mediadora de
carregando consigo a chave para o en- infinitas relações sociais.
tendimento dos fundamentos que regem
esse modo de produção. A coisa adquire as propriedades de
valor, dinheiro, capital, etc., não por
O misterioso da forma mercadoria suas propriedades naturais, mas por
consiste, portanto, simplesmente no causa das relações sociais de produ-
fato que ela reflete aos homens as ção às quais está vinculada na eco-
características sociais do seu próprio
trabalho como características objeti-
nomia mercantil. Assim as relações
sociais de produção não são apenas
77
vas dos próprios produtos de traba- “simbolizadas” por coisas, mas reali-
lho, como propriedades sociais des- zam-se através de coisas. (RUBIN,
sas coisas e, por isso, também reflete 1980, p.26)
a relação social dos produtores com
o trabalho total como uma relação Assim, na sociedade mercantil, em
social existente fora deles, entre ob- seu caráter reificado, atribuímos às coisas
jetos. [...] Não é mais nada que de- características e aspectos pertencentes
terminada relação social entre os das quais são expressão se tornam meio
próprios homens que para eles aqui de realização. Em meu lócus percebi esse
assume a forma fantasmagórica de caráter reificado ao notar a forma como
uma relação entre coisas. (MARX, os sujeitos são vistos pelos consumidores
2013, p. 94) (turistas e proprietários de agencias) co-
mo um apêndice, uma ferramenta que
O fetichismo da mercadoria, que viabiliza a produção/comercialização do
nos apresenta as relações de trabalho produto Delta do Parnaíba. Essa situação
reificadas, não é um produto de nossa fica clara na fala de José (2014) ao relatar
consciência. Antes de mais nada, a reifi- que muitas vezes não existe um contato
cação é a base onde as relações sociais entre eles e os turistas que em diversas
mercantis se manifestam. Marx (2013) situações os tratam apenas como objeto
nos mostra que essa relação assume uma para conhecer a localidade.
forma “fantasmagórica de relação entre Essa relação reificada, ganha pro-
coisas”, pois, em nossa sociedade as rela- porções ainda mais serias e perigosas na
ções entre as pessoas são mediadas pelos sociabilidade capitalista, onde a produ-
ção tem como finalidade principal a

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transformação de dinheiro em mais di- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


nheiro, se distanciando do que deveria ALBERTI, V. Manual de História Oral.
ser seu principal motivo que consiste na Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
realização das necessidades humanas 2005.
sejam elas do corpo ou do espirito. ANDRADE, Maria Margarida de. Intro-
dução a Metodologia do Trabalho
CONSIDERAÇÕES FINAIS Científico. São Paulo: Atlas, 2010. 10ª ed.
O presente trabalho teve como ob- DAMATTA, Roberto. Turismo a Contra
jetivo apresentar as experiências laborais Gosto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
dos trabalhadores do setor turístico da MARX, Karl. O Capital. Crítica da eco-
região do Delta do Parnaíba, em especial, nomia política. Vol I, Livro I. O processo
na cidade de Ilha Grande do Piauí. Para de produção do capital. 13ed. Rio de Ja-
tanto foi necessário elucidar em um pri- neiro: Bertrand do Brasil, 1989.
meiro momento a categoria Trabalho a ___________. O Capital: crítica da
fim de subsidiar o entendimento do cerne economia política. Livro I. 31ª Ed. Rio
dessa investigação, o estranhamento do de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
trabalho realizado. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideo-
Entendemos que a mesma sociabi- logia Alemã. São Paulo: Martins Fontes,
lidade que possibilitou o surgimento e a 2001.
consolidação do Turismo tem como cen- MINAYO, M.C. O desafio do Conhe-
tro a transformação da natureza em mer- cimento. São Paulo: Hucitec, 2006.
cadorias que necessitam da atuação hu- OMT. Organização Mundial do Turismo.
mana nesse processo. Devo salientar que Em http://www.unwto.org
78 a participação do trabalhador traz em
seu bojo sua mortificação e a exploração
PORTELLI, Alessandro. História oral e
poder. In: Mnemosine, v.6, n.2, p.2-13
cada vez mais crescente de sua força de (2010).
trabalho deixando suas condições de vida PORTELLI, Alessandro. O massacre de
cada vez mais precárias. Civitella Val di Chiana (Toscana: 29
É possível perceber entre os sujei- de junho de 1944): mito, política, luta
tos elencados para essa pesquisa que não e senso comum. In: FERREIRA, M. M.;
existe um sentimento de reconhecimento AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da his-
de sua importância para o desenvolvi- tória oral. Rio de Janeiro: Fundação Getú-
mento do Turismo e da região como um lio Vargas, 1998.
todo. Os trabalhadores se percebem en- RUBIN, I. A teoria marxista do valor.
quanto ferramentas do processo e não São Paulo: Brasiliense, 1980.
como protagonistas dessa relação. SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educa-
Assim, com o presente estudo ção: fundamentos ontológicos e his-
através da análise da teoria e das entre- tóricos. Revista Brasileira de Educação.
vistas narrativas, busquei nas falas dos s/l. v.12, n. 34, p. 152-165, jan/fev, 2007.
nossos sujeitos, recompor e debater os SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodo-
processos de trabalho aos quais os traba- logia do Trabalho Científico. São Pau-
lhadores estão submetidos. Esse debate lo: Cortez, 2007. 23ª ed.
vem a contribuir sobre a temática da THEVENIN, J. M. R. O turismo e suas
educação profissional, uma vez que está políticas públicas sob a lógica do ca-
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ISSN 2447-7354
Amanda Maria dos Santos Silva

THOMPSON, Paul. A voz do passado:


História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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ENTREVISTAS
Francisco José da Silva. Entrevista conce-
dida a pesquisadora Amanda Maria dos
Santos Silva no dia 30/05/2014. 48 minu-
tos.
José Ribamar da Silva. Entrevista conce-
dida a pesquisadora Amanda Maria dos
Santos Silva no dia 22/05/2014. 58 minu-
tos.b

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ISSN 2447-7354

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