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Lisboa
7 de Janeiro de 2006
Psicoterapia Psicanalítica
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Freud tinha, então, 74 anos e estava doente; a acreditar numa carta que escreve nesse
mesmo ano ao Dr. Alphonse Paquet, por ocasião da atribuição do Prémio Goethe,
A idade avançada e a doença servem de argumento para inserir este trabalho no âmbito
de um Mal Estar do próprio autor; contudo o texto é atravessado por uma enorme
instinto de morte.
Evocam-se os diferentes meios através dos quais o Homem tem procurado a felicidade,
Para fugir ao Mal Estar, podemos evocar algumas tentativas, nomeadamente a procura
no qual o sujeito sente e procede como se ele e o outro fossem apenas um. Alguns
psicoactivas ou a adesão a seitas religiosas passam, do meu ponto de vista, por estas
Muitas destas experiências correspondem a dissociações do Eu, nas quais uma parte se
p. 3021.
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“Querem chegar à felicidade, não querem deixar de ser felizes, querem evitar a dor e o
desprazer”, p. 3024.
criação não inclui o propósito do Homem ser feliz”, p. 3025. Acrescenta ainda “o
sofrimento ameaça o Homem por três lados: pelo corpo, condenado à decadência; pela
angústia perante as forças destruidoras e implacáveis da natureza; por fim, através das
relações dos seres humanos entre si”. Salienta que o sofrimento vindo desta última fonte
Já que pouco ou nada há a fazer contra a caducidade do corpo através dos anos, é
outras formas de toxicidade, como por exemplo a dos meios de comunicação rápida e
imediata, sobretudo televisiva, que nos fazem tomar uma parte pelo todo numa
É certo que hoje o controlo instintivo não se impõe como na altura. A civilização actual
História, i.e. sem aparato psíquico para vivenciar certas experiências. O parco recurso
um Mal Estar quotidiano no qual os mais jovens e menos experientes são, muito
Como meio de evitamento ao Mal Estar, temos também a acção, como o mais radical
Outro meio de iludir o sofrimento é a paranóia. O mundo não presta; inventa-se outro. A
3028.
psíquicas superiores, uma vez que “o instinto dominado provoca menos sofrimento que
Baldacci, que se debruça mais sobre o instinto epistemofílico, que se manifesta desde o
início da vida.
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apenas possível a algumas pessoas e não a todas, pelo que não lhe atribui uma
aplicação geral.
O amor aparece como protótipo das experiências de felicidade mas logo se apresenta,
amor. Estão aqui dois conceitos distintos: o medo da perda do objecto versus patologia
depressão, A. Coimbra de Matos, 2001. Mas esconde-se por detrás de qualquer deles o
A produção artística, científica e estética aparece, então, como produto da cultura, mais
fiável ou duradoira que o amor. E ainda que ele entenda, também aí, que a “primitiva
beleza e encanto sejam atributos do objecto sexual”, resume que o desejo de ser feliz,
imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, pp. 3028 – 3029, e não é alcançável
isoladamente, o que leva Freud a atribuir à cultura e à educação um valor maior para
contempla na satisfação íntima mas só; e do homem de acção, aquele que está sempre a
referindo-se de novo à religião diz tratar-se de uma “técnica que consiste em reduzir o
valor da vida e em deformar delirantemente a imagem do mundo real sem alcançar mais
nada” (ibidem).
Poderíamos imaginar o elogio das culturas primitivas mas isso não seria senão uma
por exemplo “de que nos serve reduzir a mortalidade infantil se isto nos obriga a
adoptar a máxima prudência na procriação”. Ou ainda: “de que nos serve por fim uma
vida longa se é tão parca, tão pobre em alegrias e rica em sofrimentos que só podemos
Sobre a Cultura escreve: “o termo cultura designa a soma das produções e instituições
que distanciam a nossa vida da dos nossos antecessores animais, com duas finalidades:
proteger o Homem contra a Natureza e regular as relações dos homens entre si”, p.
3033.
esperança de uma aproximação a Deus. Mas o Homem não seria senão um deus com
próteses, que faria descobertas inconcebíveis mas nem por isso seria mais feliz na sua
O Homem, que deve a sua existência à cultura, como antítese da barbárie, mostra-nos a
celestes”, p.3035.
Nesse Mal Estar psíquico e cultural, nada mais necessário e nada mais difícil que a
regulação das relações dos homens entre si, ou seja “nas relações sociais que dizem
Só a acção das forças psíquicas, por oposição à força propriamente dita, tornará possível
maioria mais poderosa do que cada um dos indivíduos e que se mantenha unida frente a
cada um deles”.
É neste passo decisivo que Freud designa o Direito enquanto “primeiro requisito
de que a liberdade individual submetida à cultura seja, então, maior do que a liberdade
primitiva.
da cultura, na medida em que os mais jovens são uma caixa de ressonância do grupo de
identificações à sociedade em que vivemos. Enquanto escrevia estas linhas, decorria nos
Ainda que o amor seja o protótipo da felicidade, Freud adverte que quem ama expõe-se.
O amor institui a família e esta tem uma função de ligação indispensável à cultura,
contudo, um certo “divórcio entre amor e cultura parece inevitável” para a expansão
cultural.
Um dos problemas da cultura reside no seguinte facto: por um lado a cultura não é
compatível com laços libidinais na matriz familiar mas por outro é necessário ligar os
indivíduos entre si por afinidades que não deixam de ser de natureza libidinal para
membros.
É aí que Freud insere o provérbio “amarás o outro como a ti mesmo” – provérbio mais
antigo do que o cristianismo – mas a verdade é que as pessoas que nos são estranhas
suscitam mais a nossa hostilidade que o nosso amor, o que implicaria um outro
Cruzados afirma que “em condições favoráveis e quando desaparecem forças psíquicas
antagónicas... o homem comporta-se como uma besta selvagem que não tem o menor
cuidadores, como por exemplo nos casos de autismo psicogéneo ou nalgumas tentativas
de suicídio do adolescente.
se resume a isto: temos de investigar de que lado vem a mensagem incestuosa – se “da
abandono familiar que expõem as crianças à perversão. Não é possível ser homem de
atrocidades quando tem medo. Mais facilmente controla os instintos libidinais do que a
agressividade que lhe advém do medo: medo da morte, da perda objectal, da perda do
amor do objecto, da perda do objecto de segurança. Por isso o homem estaria disposto a
imediato. É bom lembrar que, nos nossos dias, o imediato é uma mais valia e que isso
distingue dois tipos de instintos, em oposição uns com os outros – os que se exercem no
objectais e libidinais).
E é neste trabalho, também, que ele levanta a hipótese do instinto de morte, afirmando:
“partindo de certas especulações sobre a origem da vida … deduzo que além do instinto
que tende a conservar a substância viva e a condensá-la em unidades cada vez maiores
devia existir outro antagónico a este que tendesse a dissolver estas unidades e a
explicados pela interacção e antagonismo de ambos… mas não é nada fácil demonstrar
sobre o hipotético instinto da morte; confessa que ele próprio ofereceu resistência a esta
destruição, uma dirigida para fora, outra para dentro e, às vezes, numa amálgama de
masoquismo, uma vez que esse impulso destrutivo é dirigido para dentro e – em
opostos.
menos que uma parte da agressividade componente do instinto da morte se dirija para o
predisposição agressiva.
Desfeito o laço libidinal, apareceria toda a agressividade por detrás de Eros, que se
“que o mal seja o meu bem”, como afirma D. Meltzer em Os estados sexuais da mente.
“… a evolução cultural pode ser definida brevemente como a luta da espécie humana
pela vida” (p. 3053). E acrescenta, numa nota de rodapé, que este é um facto cardinal
dirigida contra o próprio Eu, incorporando-se numa parte deste que, na qualidade de
Super-Eu, se opõe à parte restante assumindo a função de consciência moral” (p. 3053).
validade da sua segunda tópica (Id, Eu, Super Eu), enquanto modelo meta-psicológico
Estão aqui os alicerces, por exemplo, da teoria kleiniana, dos pós-kleinianos, dos
Para que a cultura prevaleça a par da consciência moral ou quase confundido com ela,
seria necessário o sentimento de identificação com o outro. Mas nenhum de nós é capaz
que “salve a cultura: o sentimento de culpabilidade”. Dele, Freud dirá que se trata de
uma “tensão criada entre um Super-Eu severo que subordina o Eu e que se manifesta
Mas não se sente culpado só quem fez mal… sente-se também culpado quem teve
intenção de fazer mal, ao que Freud mais uma vez coloca uma questão pertinente ao seu
próprio raciocínio: “ porque é que se equipara aqui o propósito com a realização?” (p.
3054).
do objecto” (ipsis verbis) com o consequente perigo de ficar exposto ao risco de que
“esse outro mais poderoso possa demonstrar a sua superioridade sob a forma de
castigo”.
Então, a ameaça de perda do amor representa um perigo real, e pouco importa que
Mas até aqui está em causa o sujeito e o seu objecto externo. A mudança radical
já não há diferença entre praticar o mal ou ter apenas a intenção de o praticar, pois nada
catecismo: “Deus está no céu e na terra e em toda a parte… e os meninos pecaram por
realidade intra-psíquica nem os santos escapariam, e muito menos estes porque têm uma
não o fazem sem razão; porque as tentações de satisfazer os instintos aumentam com a
Teríamos, então, uma instância interna sem a qual não haveria consciência moral, nem
ética, nem empatia, nem identificação com o outro, mas que ao mesmo tempo pode
que vitórias, a sentir-se culpado pelo mal que não fez, muitas vezes até pelo mal que lhe
Para não perder de vista a questão que nos ocupa – o Mal Estar na cultura – lembramos
que esta organização do Super-Eu ocorre muito precocemente; seria mesmo anterior à
precocíssimo; e Freud lembrava já então (1930), tal como hoje, que muitos povos se
conduzem como perdedores, sob o efeito de uma consciência moral infantil, a partir do
mais rigorosa que a própria autoridade e que se algum de nós se afoita a aliviar o
analisando antes que ele seja capaz de transformar essa representação, o sujeito resiste,
Terapêutica Negativa, i.e. aquela que ocorre porque o sujeito se sente a melhorar.
primitivo com o Homem de cultura. Quando acontecia uma desgraça ao primitivo, este
achava que o responsável era o feitiço porque não tinha cumprido o prometido,
medo do Super-Eu.
porque não é possível ocultar ao Super-Eu a persistência dos desejos proibidos, ou seja,
indivíduo trocou uma catástrofe exterior ameaçante por uma desgraça interior
Este seria o preço da civilização. Civilização de culpa, claro está, porque a dos nossos
narcísica.
Nesta perspectiva, cada vez que renunciamos ao exercício da agressividade, esta seria
incorporada ao nível do Super-Eu que, por sua vez, exerce pressão sobre o Eu. Daqui
resulta submissão, já não perante o objecto externo mas do próprio sujeito em relação a
si mesmo. A autoridade interna reprime agora mais do que a externa e, para cúmulo,
não se vê.
Levado ao extremo, este sistema não reverte a favor da cultura, uma vez que a inibição
Super-Eu.
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ia “tant bien que mal” e sempre na mira de captar ou não perder a protecção da
seguinte raciocínio: “se eu fosse o pai e tu o menino tratar-te-ia mal a ti” (p.3057). É um
a severidade primitiva do Super-Eu não é aquela que o objecto nos fez sentir mas sim a
que o sujeito, ainda e sempre na mira da protecção do objecto, que em boa verdade
Júlia Kristeva (2005), numa entrevista ao jornal Le Monde des livres, sobre o seu
recente livro La haine et le pardon questiona ainda mais o ponto de vista de Freud
quando afirma: “l’épreuve peut nous offrir l’occasion de «faire nos preuves»… soit on
Contudo, qualquer que seja a perspectiva em que nos situemos, de facto a consciência
moral estrutura-se nos primeiros tempos de vida e pela via da introjecção e contenção
da agressividade, ao contrário dos sujeitos que passam ao acto agressivo sem terem
instância super-egóica porquanto a educação branda pode dar, muitas vezes, origem a
uma consciência rigorosíssima. O que nos leva a afirmar que é melhor o sujeito
agressividade não contrariada que leva o sujeito a castigar-se a si mesmo para diminuir
o sentimento de culpa. Isto é, quando o objecto externo não se oferece como modelo na
limitação das dimensões instintivas, o rigor da consciência moral pode ser ainda maior.
pai, simultaneamente amado e odiado. Com base nesta ambivalência afirma então:
3059).
O Mal Estar surge como um facto incontornável na cultura, uma vez que ela está ligada
clínica: é necessária a expansão da agressividade para que o sujeito se sinta mais capaz
de amar; mas logo de seguida cresce o remorso e a culpabilidade por ter agredido ou
odiado o objecto amado. Isto torna, como é evidente, o Mal Estar inerente ao remorso e
ao sentimento de culpa como necessário à edificação da cultura, que por sua vez
aumenta a ambivalência.
Seria, portanto, a cultura da culpa, donde só nos parece poder sair se o sujeito evoluir da
ultrapassar.
depressão de culpa à depressão de inferioridade e iríamos de mal a pior. Talvez por isso
Freud afirme, a dado momento: “o preço a pagar pelo progresso da cultura é a perda da
Nesta óptica, o Homem, escravo da sua necessidade de cultura, vai passando de uma
infelicidade a outra.
Mas escrevendo isto, não deixo de referir que está aqui subjacente a ideia segundo a
interiorizadas.
Esta realidade não terá escapado a Freud, uma vez que coloca as relações humanas
como o maior dos problemas da humanidade. Mas o que ele salienta neste trabalho é
permaneceu inteiramente inconsciente, sem que os seus efeitos sejam por isso menos
A certo momento, Freud vai colocar a hipótese segundo a qual a culpabilidade não seria
mais do que uma variante da angústia perante o Super-Eu, isto é, confere a uma
Esta visão, alicerçada na sua segunda tópica, dá uma dinâmica ao aparelho mental que
retaliador. Qual seria, então, a fonte desta energia agressiva do sujeito contra si mesmo?
inocenta o objecto, noutra em que se inocenta o sujeito) salienta que há qualquer coisa
que é comum às duas situações: “a agressividade desloca-se para dentro” (p.3062). Isto
É fácil de ver que a cultura não resulta de nenhum destes movimentos psíquicos. É
difícil não concluir pela necessária imbricação entre civilização e cultura da culpa,
cultura e neurose. Mas atenção naquilo que a neurose contém de compromisso psíquico
psíquico do recalcamento, sem o qual não há nem vida psíquica nem cultura. Então o
que diz Freud sobre o recalcamento na sua relação com a cultura? “Quando um impulso
Isto é, para diminuir a culpa aumenta o castigo e entra num círculo de mortificação.
qual o autor imagina que de um momento para o outro tudo continua a acontecer com
que nos queiramos afastar da perspectiva instintiva que atravessa todo o texto original),
inseparáveis, ambos pertencentes aos “mecanismos vitais de tal forma que devem fazer
O processo cultural é uma modificação do processo vital; sob a influência de Eros, que
comunidade humana.
Sem processo cultural, o indivíduo não alcança a felicidade mas o processo cultural
exige restrições à própria felicidade. É aqui que surge a diferença entre a dimensão
É neste ponto do seu trabalho que postula a existência de um Super-Eu cultural, ainda
que baseado numa oscilação entre libido para o Eu e libido para o objecto, para
uma época cultural determinada tem uma origem análoga à do Super-Eu individual” (p.
3065). Afirma, de seguida, que muitas vezes é nos processos psíquicos colectivos que
Este Super-Eu cultural criou normas para as relações dos humanos entre si. De entre
elas, a mais importante é a Ética, que Freud compara a uma “tentativa terapêutica (ipsis
verbis) imperativa para alcançar a cultura. Citamos: “já sabemos que neste sentido o
A cultura impõe restrições, gera a culpa e resulta dela. Será que o Homem não consegue
Volvidos três quartos de século sobre o escrito de Freud e à luz dos acontecimentos das
destruição recíproca.
afirmada (no pior sentido), com ausência de qualquer empatia, de identificação com o
imagem e visibilidade. Para ela, a única regra, ainda que às vezes camuflada, é a
ausência de regra.
É bem de ver que a cultura do sucesso, ou narcísica, é ela mesma ainda mais
seus objectivos, destrói-se; outras vezes, não olha a meios para atingir os fins, destrói o
Outro. Nesse sentido, a nossa cultura de sucesso não deixa de ser também uma forma de
A alternativa poderá, então, ser: ligar os indivíduos entre si por laços de identificação, a
tornar possível a evolução do sujeito tendo o seu semelhante como garantia da sua
REFERÊNCIAS
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FREUD, S. (1929), Obras completas, vol. III, Madrid, Biblioteca Nueva, “El Malestar
en la Cultura”, pp.3017-3067.
KRISTEVA, J. (2005). “Je vis avec ce désir de sortir de moi », Le monde des livres,
Vendredi, 18 Novembre 2005.