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O hospital e a formação em saúde: desafios atuais

OPINIÃO OPINION
Hospitals and health professional education:
contemporary challenges

Laura Camargo Macruz Feuerwerker 1


Luiz Carlos de Oliveira Cecílio 2

Abstract Both the role of hospitals in health Resumo O lugar do hospital na formação em
professionals education and hospital’s needs in saúde e as demandas dos próprios hospitais em
terms of professionals for health care and hospital relação à formação de profissionais para atenção
management are changing as health systems move e gestão hospitalares estão em processo de redefi-
towards quality, comprehensiveness, efficiency nição, tendo em vista a busca por qualidade, inte-
and costs control. The article intends to analyze gralidade, eficiência e controle de custos nos siste-
dilemmas and challenges in each of these fields, mas de saúde. O artigo procura contextualizar os
acknowledging hospitals’ complexity, their criti- dilemas e tensões em cada um desses campos, re-
cal role on healthcare delivery and their deep in- conhecendo a complexidade da organização hos-
volvement in the hegemonic orientation for pitalar, seu lugar crítico na prestação de serviços e
health education and practice. seu profundo envolvimento no engendramento do
Key words De-hospitalization, Comprehensive modelo médico-hegemônico no âmbito das práti-
healthcare, Work in health, Meaningful learn- cas e da formação em saúde.
ing, Learning scenarios diversification, Complex Palavras-chave Desospitalização, Integralidade
organizations management da atenção, Trabalho em saúde, Aprendizagem sig-
nificativa, Diversificação de cenários de aprendi-
zagem, Linhas de cuidado, Gestão de organiza-
ções complexas

1
Instituto de Saúde da
Comunidade, Departamento
de Planejamento em Saúde,
Universidade Federal
Fluminense. Rua Marquês
do Paraná 303/ 3o. andar,
Prédio Anexo do HUAP,
Centro. 24030-210 Niterói
RJ. laura.macruz@gmail.com
2
Universidade Federal de
São Paulo.
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Feuerwerker, L. C. M. & Cecílio, L. C. O.

Introdução práticas de saúde. A atenção à saúde envolve


sempre o encontro intersubjetivo entre profis-
O hospital está nas duas pontas da questão da sionais e usuários e a utilização de diferentes
formação: como qualquer outro equipamento tipos de tecnologias (tecnologias duras – os equi-
de saúde, necessita de trabalhadores formados pamentos e os medicamentos; tecnologias leve-
adequadamente – para a gestão e para a atenção duras – os saberes científicos da clínica e da epi-
– e, ao mesmo tempo, cumpre um papel funda- demiologia; tecnologias leves – as tecnologias
mental na conformação do perfil dos trabalha- relacionais por meio das quais se produz o cui-
dores da área da saúde, como espaço privilegia- dado: escuta, vínculo, responsabilização, singu-
do de aprendizagem durante a formação - técni- larização entre outras) 2.
ca, de graduação e de pós-graduação. A institucionalização das práticas de saúde, a
Mas o hospital não é qualquer equipamento perda do controle sobre os meios de trabalho, a
de saúde. É uma organização complexa - atra- crescente especialização e a maciça incorporação
vessada por múltiplos interesses - que ocupa lu- de tecnologias duras contribuíram para que hou-
gar crítico na prestação de serviços de saúde, lu- vesse um predomínio das tecnologias duras e
gar de construção de identidades profissionais, leve-duras no trabalho em saúde e um empo-
com grande reconhecimento social. É também brecimento dos aspectos intersubjetivos da rela-
um equipamento de saúde em processo de rede- ção profissionais - usuários. Desse modo, o tra-
finição, pois, no âmbito público e no privado, balho médico e o trabalho em saúde em geral
estão em debate seu papel e seu lugar na produ- orientaram-se aos procedimentos e não às ne-
ção do cuidado, em busca de qualidade, integra- cessidades das pessoas, havendo empobrecimen-
lidade, eficiência e controle de custos. Estão em to de sua dimensão cuidadora1, 3, 4.
debate, então, as expectativas de gestores e usuá- Os últimos quarenta anos foram marcados,
rios em relação ao hospital. simultaneamente, pelo aumento das expectati-
No âmbito da formação em saúde, também vas dos usuários em relação aos benefícios po-
há mudanças significativas, em razão da com- tenciais da ciência e por uma crescente insatisfa-
preensão atual acerca do papel da vivência no ção em relação à possibilidade de acesso aos ser-
processo de aprendizagem e da compreensão viços de saúde (restrição de acesso conseqüente
ampliada acerca dos saberes e competências ne- ao aumento de custos) e à qualidade da relação
cessários ao trabalho em saúde. Estão, portan- entre profissionais de saúde e usuários 5.
to, em debate, o papel do hospital na formação
e as expectativas dos formadores em relação ao
hospital. As outras dimensões da atenção em saúde
Impossível, portanto, uma abordagem asser-
tiva ao tema. Neste artigo, procuraremos, então, O debate mundial acerca das melhores maneiras
de maneira breve contextualizar e articular todo de organizar a atenção à saúde tem sido alimen-
esse debate, buscando construir uma visão pers- tado, por um lado, pela crescente compreensão
pectiva da relação hospital-formação. sobre a medicalização e o papel constitutivo das
práticas de saúde na conformação da ordem eco-
nômica e social do capitalismo no mundo oci-
A produção do cuidado em saúde dental6, 7. E, de outro lado, pelos desafios impos-
tos pela transição epidemiológica e o envelheci-
A organização do trabalho em saúde foi intensa- mento das populações, que ameaçam o financia-
mente afetada pelo desenvolvimento tecnológico mento dos sistemas de saúde em função de inefi-
e pela especialização. Houve ampliação da capa- cácia, ineficiência, iniqüidades decorrentes da in-
cidade de diagnosticar e tratar problemas de saú- corporação de tecnologia sem critérios de custo-
de, mas também aumento constante dos custos, benefício e da explosão de custos e gastos decor-
institucionalização das práticas de saúde e perda rentes do modelo hegemônico de pensar saúde2, 5.
do controle dos meios de trabalho por parte da Há, portanto, busca por humanização, qua-
maioria dos profissionais1. lidade e menores custos e é nesse contexto que
Nessa construção, a intimidade do processo começa a ser construído um novo lugar para o
de trabalho em saúde também foi afetada. Não hospital dentro da atenção à saúde, com a pro-
com a substituição dos trabalhadores por equi- dução de alternativas substitutivas para uma sé-
pamentos, como ocorreu em outros setores, rie de procedimentos antes intra-hospitalares.
mas com mudanças no arranjo tecnológico das Algumas alternativas mantêm a mesma com-
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posição tecnológica do trabalho em saúde (com saúde são desafios colocados para a organização
predomínio das tecnologias duras), mas trans- do cuidado no interior dos hospitais. A integra-
ferem sua execução para outros ambientes - lidade da atenção hospitalar pode ser compreen-
ambulatórios e até o domicílio - promovendo dida a partir de dois ângulos: a integralidade da
transferência de custos. Outras modalidades pro- atenção olhada no hospital, que é a integralidade
movem uma recomposição tecnológica do tra- tendo como referência o atendimento no ambi-
balho em saúde, ampliando a utilização de tec- ente hospitalar em si, e a partir do hospital, que
nologias leves, a autonomia dos usuários e a di- é a integralidade tendo como referência a articu-
mensão cuidadora do trabalho em saúde. Nessa lação do hospital com os demais equipamentos
nova situação, ao hospital caberia um novo pa- de saúde8.
pel, centrado no cuidado das situações clínicas Dentro do hospital, a atenção depende da
mais graves, que demandam maior intensivida- conjugação do trabalho de vários profissionais.
de de cuidado. Ou seja, o cuidado recebido pelo paciente é pro-
Por outro lado, existe também configurada duto de um grande número de pequenos cuida-
uma disputa entre diferentes lógicas de acumu- dos parciais, que vão se complementando, explí-
lação capitalista no setor saúde, intensificada com cita ou implicitamente, a partir da interação en-
a entrada maciça do capital financeiro por meio tre os vários cuidadores que operam no hospi-
dos seguros de saúde. A atenção gerenciada é a tal. Assim, uma complexa trama de atos, proce-
estratégia por excelência do capital financeiro para dimentos, fluxos, rotinas, saberes, num proces-
a reorganização do trabalho em saúde em prol so de complementação e disputa, compõem o
de uma outra lógica de acumulação2. cuidado em saúde. Ou seja, a forma como se
No âmbito da saúde suplementar, que atinge articulam as práticas dos trabalhadores do hos-
hoje 35 milhões de brasileiros, a gestão da aten- pital confere maior ou menor integralidade à aten-
ção também entrou na agenda de debates. Com ção produzida8. Portanto, um importante desa-
a redução importante das taxas de inflação a partir fio do processo gerencial do hospital atualmente
de 1994 e o fim da ciranda financeira, os planos é conseguir coordenar adequadamente este con-
de saúde buscaram implementar práticas de ges- junto diversificado, especializado, fragmentado
tão de custos e de riscos. A “medicina preventiva” de atos cuidadores individuais, de modo que eles
e outras estratégias de organização do cuidado, resultem em um cuidado coordenado – eficaz e
como caminho para redução de custos, passa- de qualidade9.
ram a fazer parte do vocabulário dos empresá- Por outro lado, a integralidade do cuidado só
rios da saúde. pode ser obtida em rede, pois a “linha de cuida-
Além disso, a Agência Nacional de Saúde Su- do” pensada de forma plena atravessa inúmeros
plementar desencadeou, a partir de 2004, o Pro- serviços de saúde, cada qual operando distintas
grama de Qualificação da Saúde Suplementar, tecnologias. O hospital pode ser visto como uma
segundo o qual as operadoras são avaliadas tam- “estação” fundamental no circuito que cada indi-
bém pela qualidade da atenção à saúde prestada víduo percorre para obter a integralidade de que
a seus beneficiários. Novidade, pois a saúde su- necessita. Como conseqüência, há o desafio de
plementar, como setor econômico mobilizado criar dispositivos para conectar o hospital de for-
pela busca do lucro, sempre teve a saúde finan- ma mais adequada à rede de serviços de saúde.
ceira das empresas como fator primordial de Ou seja, pensar a construção da integralidade
avaliação. desde o hospital, sem imaginar uma auto-sufici-
Como se vê, diferentes lógicas de acumula- ência nessa produção ou sua desresponsabiliza-
ção de capital, de racionalização de custos e de ção no momento da alta.
humanização da atenção compõem as vertentes Essa possibilidade implica repensar as noções
que operam em favor de uma reorganização da de rede de serviços e o melhor caminho para pro-
atenção à saúde, todas elas prevendo novos lu- mover a articulação entre diferentes equipamen-
gares e papéis para os hospitais dentro da rede tos. A rede hierarquizada com a atenção básica
de serviços de saúde. definida como porta de entrada a priori ou a
rede como arranjo variável, em que a entrada se
dá em qualquer ponto, possibilitando acolhi-
O hospital e a produção do cuidado mento e acompanhamento, de acordo com as
necessidades de saúde10, 11, 12.
Por outro lado, a recuperação da dimensão cui- Certamente os hospitais têm um importante
dadora e a busca da integralidade na atenção à papel a cumprir quando se pensa em arranjos
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Feuerwerker, L. C. M. & Cecílio, L. C. O.

mais dinâmicos, em apoio matricial, em constru- nhece como muito mais efetiva a aprendizagem
ção de linhas de cuidado que articulem diferentes a partir de questões relevantes para o estudante
equipamentos de saúde na produção das respos- – porque provocam um “desconforto mobiliza-
tas às necessidades dos usuários, desde que supe- dor”, indispensável para estimular a busca de
rado o marco conceitual hegemônico que orienta novos conhecimentos, e porque possibilitam di-
sua concepção (um mundo à parte, autocentra- alogar com os conhecimentos prévios – adquiri-
do e auto-suficiente no cuidado à saúde). dos pela vivência e experiências anteriores de
aprendizagem) e da aprendizagem ativa (papel
ativo do aprendiz na busca e produção do co-
Os caminhos da mudança na formação nhecimento e de novos sentidos; professor com
de graduação das profissões da saúde papel de facilitador)20.
Incorporou-se, portanto, na reflexão peda-
Na saúde, os processos de desenvolvimento tec- gógica da área da saúde a necessidade de planejar
nológico e de especialização tiveram grande im- e organizar o processo de ensino-aprendizagem
pacto no ensino de graduação, em função da per- levando em conta as necessidades de aprendiza-
da de consenso sobre as competências típicas da gem dos estudantes13.
formação geral e sobre as contribuições das dife- A partir das contribuições da Pedagogia Crí-
rentes áreas de saber nesse âmbito. Houve, as- tica e do conceito de relevância social da universi-
sim, ao longo do tempo, uma multiplicação da dade, também se reconhece que as questões de
oferta de disciplinas, de conteúdos, de procedi- aprendizagem devem ser significativas do ponto
mentos, acarretando fragmentação e desarticu- de vista social (cultural, epidemiológico, social,
lação de conteúdos na formação de graduação, econômico, etc.), porque somente assim são ca-
que implicaram a perda da capacidade dos cur- pazes de propiciar a produção de conhecimento
sos de graduação, particularmente em medicina, e a conformação de um perfil profissional que
de preparar os recém-formados para ingresso dialoguem com a realidade social e com os pro-
imediato no mercado de trabalho13. blemas e as políticas de saúde do país.
Os impasses enfrentados na formação e toda Esse conjunto de reflexões, articuladas à his-
a movimentação pela construção do SUS leva- tória da formação profissional em saúde, levou
ram a que se configurasse, há décadas, um inten- a que os problemas da realidade, as vivências e o
so debate – atualmente em todas as profissões trabalho sejam reconhecidos como centrais na
da saúde, com destaque para medicina e enfer- produção da aprendizagem em saúde, funda-
magem – a respeito da necessidade de transfor- mentais para a aprendizagem significativa e para
mar a formação dos profissionais e as práticas a articulação das várias áreas de saber constituti-
de saúde. Muito antes das diretrizes curriculares vas da saúde. Em conseqüência, as diretrizes cur-
nacionais, portanto, na área da saúde já havia riculares nacionais propõem para todas as gra-
movimentos de mudança na graduação, dentre duações em saúde que a prática contextualizada
os quais merecem destaque a CINAEM (Comis- ocupe lugar central na formação: presente desde
são Interinstitucional Nacional de Avaliação do o início da formação e ocorrendo em cenários
Ensino Médico), a mobilização da Associação diversificados ao longo de todo o curso13.
Brasileira de Enfermagem em torno das diretri- Aqui entram os debates do núcleo saúde na
zes para a graduação e a mobilização pela articu- formação. Busca-se a integralidade na formação
lação entre instituições de ensino, sistema de saúde e trabalha-se com um conceito ampliado de saú-
e organizações populares de que o movimento de. Desse modo, a diversificação dos cenários de
da Rede UNIDA é um exemplo significativo13. aprendizagem é fundamental porque há diferen-
Há dois núcleos centrais na produção da tes tipos de complexidade envolvidos nos pro-
mudança na formação das profissões da saúde. blemas de saúde, que exigem a mobilização de
Um núcleo educacional e outro relativo à saúde. diferentes áreas de saber e de diferentes tecnolo-
Nas reflexões educacionais dos movimentos de gias e todos eles precisam ser endereçados du-
mudança da saúde, têm sido muito considera- rante a formação.
das as contribuições da Escola Nova14, da Peda- Há situações críticas, com risco de vida, que
gogia Crítica15, 16, da Pedagogia Pós-Crítica17, de exigem a mobilização prioritária de tecnologias
Piaget18 e Vigotsky19 para a compreensão da di- duras (equipamentos para diagnóstico e para
nâmica do processo de aprendizagem em saúde. intervenções terapêuticas, medicamentos) e leve-
Nesse campo, atualmente se destacam os con- duras (clínica, epidemiologia) e em que a auto-
ceitos da aprendizagem significativa (que reco- nomia do usuário está muito reduzida (pacien-
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tes acamados, dependentes de cuidado para a tais. Muda, portanto, a expectativa dos forma-
própria manutenção da vida). Essas situações são dores em relação às experiências de aprendiza-
mais freqüentes nos hospitais. gem que o hospital deva propiciar.
Há outras, em que o usuário tem grande au- Mas estas reflexões e expectativas de apren-
tonomia (em sua vida, trabalho, alimentação, dizagem estão construídas e acumuladas no âm-
diversão, cultura, etc.) em que se torna ainda mais bito da graduação das profissões da saúde. As
relevante a capacidade dos profissionais de dia- residências médicas, por exemplo, apenas come-
logar com sua compreensão de mundo, de saúde çam a ser provocadas por todo esse debate. Só
e de doença. Sem compreender o universo cultu- que as escolas médicas já perceberam que de pou-
ral dos usuários, sem dialogar com sua maneira co vale todo o esforço para mudar a graduação
de organizar a vida, muitas vezes são infrutíferas se não houver a possibilidade de transformar
as tentativas de implementar as tecnologias du- internato e residência, em função do seu poder
ras e leve-duras na atenção. Essas situações são de conformação do perfil profissional. Como é
mais freqüentes nas unidades ambulatoriais. exatamente no hospital que a construção das iden-
São também múltiplos os cenários vigentes tidades profissionais acontece, a mudança no
de prática profissional, todos requerendo tecno- hospital torna-se crítica para a graduação.
logias específicas e rearranjos tecnológicos para Acontece que integralidade, trabalho em equi-
a organização do trabalho em saúde (a atenção pe multiprofissional, recuperação da dimensão
domiciliar é um exemplo importante). Além dis- cuidadora das práticas de saúde não são concei-
so, os distintos cenários de prática propiciam o tos “pacíficos”, consensuais. Sua implementação
contato com diferentes padrões de distribuição implica mudanças nas relações de poder entre as
dos agravos do ponto de vista epidemiológico. profissões e nas relações de poder entre profissi-
Por todas essas razões, é muito importante onais de saúde e usuários. Provocam, portanto,
para uma formação de qualidade que os estu- resistência e disputa. E o hospital tem sido um
dantes e especializandos vivenciem inserção efeti- local de resistência, de reprodução da lógica he-
va no trabalho em saúde em múltiplos cenários gemônica de organização do trabalho em saúde,
de produção de atenção à saúde. um espaço de reprodução dos poderes das cor-
porações8. E também um espaço privilegiado
para a incorporação maciça de tecnologias, um
O novo lugar do hospital na formação equipamento visceralmente articulado com a ló-
– os desafios gica de acumulação do setor produtor de equi-
pamentos e insumos.
Para complicar ainda mais a discussão sobre o Para dar conta de produzir inovações na or-
lugar dos hospitais na formação, ao longo do ganização do cuidado e na formação, enfrentan-
tempo, os hospitais de ensino foram transfor- do a resistência que elas implicam, são necessári-
mados em locais de atenção terciária e quaterná- as novas referências e dispositivos para a gestão
ria (em razão da especialização crescente, das em saúde e também para a gestão hospitalar.
modalidades de financiamento, etc). Oferecem,
portanto, limitadas oportunidades de aprendi- Os desafios da gestão hospitalar
zagem relevantes para a formação geral na gra- (e para a formação em gestão)
duação e até mesmo para os primeiros anos da
especialização. Ou seja, outros equipamentos de Boa parte da produção teórica sobre a gestão
saúde passam a ser muito relevantes na produ- dos hospitais é feita a partir do referencial funcio-
ção de oportunidades de aprendizagem e um nalista/ sistêmico, hegemônico no campo desig-
novo papel fica reservado aos hospitais. nado como Administração Hospitalar. De acor-
Além disso, se a integralidade é um eixo arti- do com esse referencial, o hospital funcionaria
culador na organização das práticas de saúde, como um verdadeiro sistema, ou melhor, um sub-
ela deve ser central também no hospital. Então, o sistema dentro do sistema social mais amplo. Este
conceito ampliado de saúde, responsabilização, subsistema consome insumos (humanos, mate-
continuidade da atenção, construção multipro- riais, tecnológicos, financeiros) para desenvolver
fissional de projetos terapêuticos, a busca pela certos processos internos que resultam em deter-
autonomia dos usuários e de suas famílias na minados produtos/serviços para seus clientes. Na
produção da saúde não são atributos da atenção lógica do mercado, é este feedback da satisfação
básica. Devem ser valores também presentes na do usuário que realimenta o sistema e assim se
organização do trabalho em saúde nos hospi- fecha o ciclo. Sobrevive o hospital que produz
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Feuerwerker, L. C. M. & Cecílio, L. C. O.

melhores produtos por meio de uma agressiva cantes graus de liberdade para a ação dos atores
política de incorporação tecnológica e um cres- institucionais, de negociação e construção de
cente aperfeiçoamento e controle de seus proces- complexas e fluidas redes de contratualidades,
sos internos. Quem não se atualiza, buscando re- de conflitos, de configuração de coalizões e gru-
engenharias internas, e não moderniza seus pro- pos de interesse e disputa. Por tudo isto, é lugar
cessos de gestão, termina ultrapassado pela onda de possibilidades de caminhar em outros senti-
de modernização, competitividade e eficiência - dos e direções, lugar de conflitos e mudanças9.
marcantes em nossos tempos9. Para dar conta da ebulição instituinte da vida
O paradigma funcionalista dá conta de cer- hospitalar, com seus múltiplos atores batalhan-
tas questões da administração hospitalar já que do e mobilizando recursos para os seus objeti-
o hospital também funciona como um sistema, vos operacionais, seus interesses pessoais, cor-
ou melhor, tem aspectos de funcionamento sis- porativos e de grupos, é preciso agregar a esta
têmico, tem partes mais estruturadas e previsí- discussão um outro referencial. Basta ver como
veis, fluxos de insumos, processos com certa a questão da delicada inserção dos médicos na
materialidade e outputs claramente reconhecidos9. vida hospitalar (não) é tratada nos textos de ad-
Mas há a necessidade de uma reflexão teórica ministração hospitalar, em particular nos orga-
que inclua outros referenciais para dar conta da nogramas, que, de alguma forma, traduzem os
singularidade e dos desafios presentes na gestão mecanismos de (não) coordenação do trabalho
dos hospitais. destes profissionais. Esse referencial é o da análi-
Graça Carapinheiro21, discutindo o tema no se institucional 22, 23.
campo da Sociologia, problematiza o hospital a Se os hospitais, em si, são instituições tão
partir de três vertentes teóricas principais. Numa complexas, num contexto de mudanças como o
primeira aproximação do tema, revela o quanto atual, os desafios que se apresentam para sua
o hospital é e não é uma burocracia no sentido gestão são ainda mais significativos. Daí a neces-
weberiano do termo, para concluir que o hospi- sidade de criar novas oportunidades para um
tal é uma burocracia de tipo especial. Ou melhor, debate qualificado e para a construção de novas
é um tipo de organização que apresenta compo- tecnologias e estratégias de gestão que ampliem
nentes de funcionamento burocrático, uma bu- as possibilidades de oferta de atenção à saúde de
rocracia convivendo tensamente com uma orga- qualidade no âmbito público e privado. Debate
nização que também funciona dentro de uma esse fundamental também para se pensar a for-
lógica adocrática. Tais considerações têm grande mação em gestão hospitalar.
importância para se pensar as dificuldades e con-
tradições na gestão dos hospitais9.
A outra vertente com que Carapinheiro tra- Considerações finais
balha é construída a partir das contribuições de
Foucault, em particular o tema do poder en- No momento atual, dependendo dos interesses e
quanto disciplina e as relações poder/saber, para das concepções de saúde e de cuidado, mudam
uma compreensão mais adequada das comple- as expectativas em relação ao hospital – tanto
xas relações que os médicos estabelecem com a em relação às práticas de saúde e à gestão hospi-
instituição, as outras categorias profissionais e talar, como em relação a seu papel dentro do
os pacientes9. processo de formação dos profissionais para o
Finalmente, há as contribuições a partir de cuidado em saúde. Há intensas disputas, muitos
um marco teórico assentado na fenomenologia e desafios e poucas respostas prontas.
na teoria da ação de base weberiana, segundo a Importante mesmo é abrir esse debate, en-
qual o hospital pode e deve ser visto a partir da frentando todas as suas complexidades, ampli-
perspectiva da ordem negociada. ando referenciais e buscando envolver todos os
Assim, o hospital é sistema, mas também é atores interessados na construção de novos ar-
burocracia, ORDEM, lugar de REPRODUÇÃO e ranjos que possibilitem a superação dos impas-
é, também, lugar de forças instituintes, de mar- ses atuais.
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Ciência & Saúde Coletiva, 12(4):965-971, 2007


Colaboradores

LCM Feuerwerker e LCO Cecílio participaram


igualmente de todas as etapas da elaboração do
artigo.

Referências

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