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O QUE IMPORTA

Vem ao meu encontro e fala-me mas a máscara não me deixa perceber. Pergunto-lhe: Quê?
A senhora responde: Parece que tem o zip aberto. Fecho a braguilha. Agradeço-lhe. Vejo-a
seguir o seu caminho.
Fico a pensar no “parece” da sua frase. Quando não havia dúvidas, o zip estava
escancarado, por ali podia defenestrar-se o “pinto”, como se diria no Brasil. É um sinal de
deferência (de delicadeza, que a exime da possibilidade que o reparo pareça grosseiro),
mas, posto que esta é uma atitude comum, também acusa insegurança face ao real. Nada se
afirma, dizer que “parece” desloca a afirmação para o campo das probabilidades.
E são comuns outros exemplos similares, noutros campos do quotidiano, em que frases
chavões denotam um receio dos moçambicanos em comprometerem-se com o real, com
aquilo que é. Entremos no chapa, ao fim da viagem ouvimos o cobrador, Vamos tentar
pagar? Tentar? Ficaria mal referir-se ao pagamento de forma directa?
É um mundinho de aparências, com excessivos protocolos e pouca comunicação assertiva.
Já repararam na presença maciça do uso da dupla negativa na atmosfera popular
moçambicana? Uma vez, numa tasca, ouvi um tipo sentenciar ao amigo: “nem tu não hás-
de ser amante da tua chefa?”. Cortava-lhe as vasas, só pela gramática punha-lhe logo duas
barreiras à frente, fora as outras. E se o homem me parecia embeiçado pela chefa, pelo
menos estava obcecado.
Quando nos habituamos a lidar com o real sob o filtro de duplas negativas fica difícil
ganhar o hábito de protestar. Ora a cidadania começa nestes pequenos gestos. Sem os
pequenos sinais e a pequena coragem nunca chegaremos a esboçar a defesa efectiva dos
nossos direitos. Talvez afinal só importe o que é referido neste poema de Mario Cesariny de
Vasconcelos,
PASTELARIA: «Afinal o que importa não é a literatura/ nem a crítica de arte nem a
câmara escura// Afinal o que importa não é bem o negócio/ nem o ter dinheiro ao lado de
ter horas de ócio// Afinal o que importa não é ser novo e galante/ - ele há tanta maneira de
compor uma estante!//Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos/ frente ao
precipício e cair verticalmente no vício// Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola/ antes
de haver cinema madame blanche e parola// Que afinal o que importa não é haver gente
com fome/ porque assim como assim ainda há muita gente que come// Que afinal o que
importa é não ter medo/ de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:/
Gerente! Este leite está azedo!// Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo/ à
saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo// No riso admirável de quem sabe e
gosta/ ter lavados e muitos dentes brancos à mostra».
Afinal o que importa não é tanto ter a virtude como o carácter, que é quase sempre
agramatical e tem uma atitude de ponderação e crítica no que respeita aos costumes
herdados.
O ano passado num congresso internacional de treinadores de futebol, um deles contou
porque fracassara em África quando tinha conseguido bons resultados em muitas outras
coordenadas. E explicou: Por mais que eu os instruísse sobre a táctica a seguir e desenhasse
o croquis ideal das movimentações da equipa, eles chegavam ao campo e invariavelmente
passavam a bola ao mais velho. Respeitinho, é muito bonito.
Estou a ler o interessante livro da Sara Jonas, Entre Margens/Diálogo intercultural e
outros textos (o 2º livro da novel editora gala-gala). Pelo menos nos primeiros capítulos a
Sara, inspirada pela frase do Confúncio que usou para epígrafe: «A natureza dos homens é
a mesma, são os seus hábitos que os mantém separados», empenha-se em mostrar como
existem inúmeras similariedades entre a Cultura e Religião Bantu e a Tradição Católica
Apostólica. À partida, julgo que a Sara se meteu num sarilho quando acolhe a sacedoria de
Confúncio e corrobora que o que diferencia os homens são apenas os costumes e não a
natureza e isso vai dar-lhe dissabores. Desejemos-lhe sorte, até porque ela tem razão.
Num livro expliquei isto mesmo de forma muito simples, falando do modo como os
moçambicanos bantu se relacionam com o mocho e a coruja. Sempre que aludo às duas
aves na aula há sempre um minuto de silêncio e de incómodo, antes que o primeiro aluno se
decida a esclarecer que estas são aves associadas ao mal e à feitiçaria e que causam medo.
É inútil querer dissuadi-los do contrário: É essa a “natureza” de tais criaturas, dizem-me.
Até que os convido a procurarem no Google e a verificarem que na Grécia estes animais
são desde a antiguidade considerados símbolos de sabedoria e, logo, benignos, e que em
certas partes da Espanha são consideradas aves benfazejas, que dão sorte. Quem os
encontra é porque está para casar ou lhe vai sair a lotaria. Afinal o problema com o mocho
e a coruja reduz-se a uma questão de geografia, ou antes, a questão sobre eles não deriva de
nenhuma suposta natureza do mocho e da coruja mas “do que pensamos sobre eles”. O
verdadeiro problema advém se a nossa tradição encara tudo o que sejam signos naturais
como marcadores para o medo, aí continuaremos a cultivar a dupla, até a tripla negativa.

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