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"Autopsicografia" - análise

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração

Esta composição poética é uma esplêndida síntese do que Pessoa pensava sobre a
génese e a natureza da poesia. Podemos, pois, considerá-lo como uma verdadeira "arte
poética".
O assunto do poema desenvolve-se em três partes lógicas, que correspondem a cada
uma das estrofes.
Na primeira parte, o primeiro verso contém a ideia fundamental do poema, na frase de
tipo axiomático "o poeta é um fingidor", que, logo a seguir, é explicado, ou confirmado, por
meio de uma particularização centrada na dor.
Quer isto dizer que a poesia não está na dor experimentada, ou sentida realmente, mas
no fingimento dela. Isto é, a dor sentida, a dor real, para se elevar ao plano da arte, tem
de ser fingida, imaginada, tem de ser expressa em linguagem poética, o poeta tem que
partir da dor real, a dor que deveras sente.
Não basta, para haver poesia, a expressão espontânea dessa dor real, tal como o faria,
por exemplo, um doente relatando a sua dor ao médico. Não há poesia, não há arte sem
imaginação, sem que o real seja imaginado de forma a exprimir-se artisticamente, de
forma a surgir como um objetivo poético (artístico), de forma a concretizar-se em arte.
Esta concretização da dor no poema opera na memória do poeta o retorno à sua dor
inicial, parecendo-lhe a dor imaginada mais autêntica do que a dor real. É a sobreposição
do objeto artístico à realidade objetiva que lhe serviu de base: “chega a fingir que é dor/a
dor que deveras sente”. Isto conduz-nos à ideia de fruição artística, da parte do poeta.
Na segunda parte do poema, o poeta alude à fruição artística da parte do leitor. Este não
sente a dor real (inicial), que o poeta sentiu, nem a dor imaginária (dor em imagens) que o
poeta imaginou, ao ser artífice do poema, nem a dor que eles (leitores) têm, mas só a que
eles não têm. Isto é, o que o leitor sente é uma quarta dor que se liberta do poema, que é
interpretado à maneira de cada leitor.
Há na segunda estrofe referência a quatro dores: a dor sentida (real), a dor fingida pelo
poeta, a dor real do leitor e a dor lida (dor intelectualizada que provém da interpretação do
leitor e que é objeto da sua fruição.
A terceira parte do poema, como a própria expressão "E assim" prenuncia, constitui uma
espécie de conclusão: o coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda
sempre a girar nas calhas da roda (que o destino fatalmente traçou) para entreter a razão.
Há aqui uma referência à função lúdica da poesia, que começa na fruição de que o
próprio poeta goza, no ato da criação artística. São aqui marcados os dois polos em que
se processa a criação do poema: o coração (as sensações donde o poema nasce) e a
razão (a imaginação onde o poema é inventado). Fecha-se neste fim do poema como que
um círculo cuja linha limite marca uma pista sem fim em que nunca se esgota a dinâmica
do jogo sensação-imaginação.
Quanto aos aspetos morfossintáticos, desde logo a ligação por meio do síndeto
(coordenativa "e") das três estrofes do poema impondo não só a divisão do texto em três
partes lógicas, mas também sugerindo uma sequência lógica no desenvolvimento do
assunto.
Os verbos, com exceção da forma teve (pretérito perfeito), encontram-se no presente, o
que está de acordo com a natureza teórica do poema, que é anunciada pelo título
"Autopsicografia" (estudo que o poeta faz do fenómeno psicológico que nele se passa, no
ato de criação artística, portanto no presente).
A forma do perfeito "teve" explica-se porque é exigida para marcar a prioridade temporal
em que o poeta experimentou as suas dores em relação ao tempo (presente) em que o
leitor experimenta a dor lida.
A expressão infinitiva "a entreter" apresenta-se com um nítido aspeto durativo, insinuando
a repetição continuada do processo criativo. Note-se a insistência do poeta no processo
mais importante da criação poética: o fingimento. Este processo é marcado pelas formas
verbais "finge" e "fingir" e pelo substantivo "fingidor". O verbo fingir (do latim "fingere " =
fingir, pintar, desenhar, construir) aponta não apenas para disfarçar, mas também para
construir, modelar, envolvendo, assim, todo o processo criativo desenvolvido pelo poeta
na produção do poema: o poeta é um artífice.
É interessante a perífrase "os que leem o que escreve" (para significar os leitores) por ser
portadora de uma expressividade especial: aponta para os dois intervenientes
fundamentais do processo poético --o emissor (poeta) e os recetores (leitores).
Além da reiteração (repetição), já apontada, do verbo fingir, há ainda a do verbo sentir,
que não se deve desligar da repetição do substantivo dor (três vezes), além de outras três
vezes que se repete por intermédio de pronomes, ou expressões ("que","as duas", "a
que"). A insistência na dor e no sentir está de acordo com o facto de o poeta ter tomado a
dor como tema exemplificativo da criação poética e pelo facto de as sensações (o sentir)
serem o ponto de partida dessa criação.
Em relação à sensação do sujeito lírico e dos leitores, são expressivos os advérbios:
"Finge tão completamente";... Deveras senta"; "...sentem bem". Estes advérbios sugerem
a veemência, o rigor com que a sensação da dor se impõe, quer ao poeta quer aos
leitores. Os advérbios estão pois a marcar a intenção do autor: expor a sua teoria poética
com rigor. O ato de fingir é tão importante que o poeta o superlativou não apenas pela
expressão adverbial "tão completamente", mas também por meio da subordinada
consecutiva "que chega a fingir". Notemos que a subordinação (hipotaxe) é muito mais
importante do que a coordenação, o que está de harmonia com um discurso teórico que
tem por finalidade apresentar uma teoria da criação poética.
Repare-se na expressividade das duas metáforas, de valor altamente simbólico, que se
encontram na última estrofe: calhas de roda e comboio de corda. Esse comboio de corda
(o coração), ultrapassando o significado denotativo de brinquedo, aponta sobretudo para
um sentido simbólico relacionado com a função lúdica da poesia., e assim, gira nas calhas
de roda. Também essas calhas de roda ultrapassam o significado de carris
(correspondente ao sentido de comboio de corda) para apontarem simbolicamente para
um rumo necessário, marcado pelo destino, qualquer coisa que sucede por fatalidade, na
vida (na roda da vida).
O poeta, é pois, um ser predestinado a brincar intelectualmente com as sensações,
elevando-as ao nível da arte poética, transformando-as num objetivo, artístico, que é o
poema, também objeto de fruição lúdica para os leitores.
No que toca à forma do poema, aos seus aspetos fónicos, parecer-nos-á estranho que
Pessoa tenha escolhido o verso de redondilha (verso curto de sete sílabas), de feição
rítmica popular, distribuídos em quadras, para expor uma teoria intelectualizada e de alto
nível mental. Trata-se de um entre tantos paradoxos de que o proceder de Pessoa é fértil.
Note-se que os casos frequentes de transporte, verificados em grande parte dos versos
vem reduzir as dificuldades que o metro curto poderia oferecer ao desbobinar do
raciocínio do poeta.
A rima é sempre cruzada, apresentando uma certa irregularidade nos versos 1º e 3º da
última estrofe. Notar os dois pares rimáticos fingidor/dor e razão/coração, em que se
poderá ver uma certa intenção expressiva, se relacionarmos razão com fingidor e o
coração com dor: ficariam assim em lugar de destaque, bem marcados os dois pólos de
criação poética – as sensações e o fingimento.
O título do poema pode levar-nos à conclusão de que o poeta quer explicar o processo
psíquico que nele se passa, ao elaborar um texto poético. Como se explica, então que o
poeta nunca empregue o pronome "eu", nem qualquer verbo na primeira pessoa, e que
parte precisamente de uma afirmação axiomática, "O poeta é um fingidor", de aplicação
universal, aplicável a todos os poetas? "Este poema está construído na 3ª pessoa como a
lei de Newton, ou qualquer outro enunciado científico" – afirma A. J. Saraiva – "para
significar que é a inteligência, como um ser autónomo, que explica o processo de criação
poética".
Por meio do título, o autor quis significar que a teoria da criação poética, exposta no
poema, de valor universal porque aplicável a todo o verdadeiro poeta, foi elaborada por
via da auto-introspeção, por meio da qual Fernando Pessoa verificou o processo em si
próprio. O título aponta para o palco de experimentação e verificação de uma teoria
poética que o autor julgou de valor universal.

Este poema retoma o tema abordado em «Autopsicografia» e parece uma


resposta a possíveis más interpretações daquele.
O poema «Isto» apresenta-se como uma espécie de esclarecimento à questão do
fingimento artístico enunciada em «Autopsicografia» e responde também à necessidade
de distinguir entre sinceridade convencional e sinceridade intelectual ou artística.
 Associa o título do poema ao seu conteúdo.
A utilização do pronome demonstrativo «Isto» como título do poema é muito expressiva,
pois (o pronome demonstrativo remete para o referente) como que aponta para a resposta
que se impunha a todos aqueles que o acusavam de mentir.
Este poema é apenas “isto”, uma explicação natural e simples, mas, simultaneamente
metafísica e abstrata.
1. Na 1ª estrofe o poeta opõe a imaginação (razão, intelecto) ao coração
(emoção).
• Qual deles utiliza ao escrever?
2. Na 2ª estrofe, compara todas as suas emoções (sonhos, vivências, ausências, perdas)
a um terraço. Como interpretas essa comparação?
Ao escrever, o poeta utiliza a imaginação e não o coração.
Na opinião dos outros («Dizem...»), fingimento é sinónimo de mentira; no entanto, o
sujeito poético esclarece que “fingimento” é um processo de imaginação, de
racionalização, de intelectualização da dos/da emoção.
As emoções (sonhos, vivências, ausências, perdas), a realidade que envolve o sujeito
poético, são semelhantes a um «terraço», (são apenas «a ponte» “sobre outra coisa”)que
dá para uma “outra coisa”, para uma outra realidade ainda mais bela e que é a que o
poeta procura, a realidade imaginada, a emoção estética; o que está para lá do «terraço»
é o belo, o inatingível – a obra poética, expressão máxima de Belo.
3. Nesse terraço de emoções, o poeta procura “outra coisa” – a emoção
estética. Qual o verso que a refere?
“Essa coisa que é linda”
4. Para encontrar essa emoção estética, como escreve o poeta? Sobre o que escreve?
(Interpreta os quatro primeiros versos da última estrofe.)
O «eu» diz que, ao escrever, se distancia do sentir (escreve sem emoção, sem “enleio”) e
dá vez ao pensar, ao imaginar, ao intelectualizar, recusando a poesia como expressão
imediata das sensações.
Com esta atitude, como poeta modernista que é, Pessoa rompe com a tradição lírica que
defendia que o sujeito poético devia extravasar as suas emoções e os seus sentimentos
através da escrita.
5. Mostra a ironia presente neste poema.
O último verso é claramente irónico, uma espécie de cumplicidade que o sujeito poético
estabelece com o leitor que ao ler os versos sentirá alguma coisa completamente
diferente do que o poeta sentiu.
6. Analisa a estrutura formal do poema.
O poema apresenta uma grande regularidade formal: é constituído por três estrofes de
cinco versos de seis sílabas métricas, com o esquema rimático ababb ou seja, rima
cruzada e emparelhada.
-
Poema Isto

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Assunto: o fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a


imaginação, não usando o coração).
Divisão do poema: duas primeiras quintilhas - negação de que finge ou mente; justificação
de que o que faz é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas
inacessível; última quintilha - argumentação de que ao escrever se distancia da realidade,
intelectualizando os sentimentos e elaborando uma nova realidade - a arte.
Sentido da 1ª estrofe: reconhecimento do que dizem e negação de que finge ou mente
"sinto com a imaginação/ Não uso o coração" - expressão da intelectualização do
sentimento.
Comparação da 2ª estrofe: "Tudo o que sonho ou passo/O que me falha ou finda"
(primeiro termo da comparação) "(...)um terraço/Sobre outra coisa ainda" (segundo
termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é reflexo de ("Sobre outra coisa ainda") um
mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou platónico, mundo que fascina
o sujeito poético).

Situação a que chega o sujeito poético- "livre de meu enleio" (desligado do tema) . há um
ato de fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica
apesar de não sentir ("Sentir? Sinta quem lê!")

O poema "Isto" apresenta-se como uma espécie de esclarecimento em relação à questão


do fingimento poético enunciada em "Autopsicografia" - não há mentira no ato de criação
poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir" da racionalização.
Aqui, o sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso do coração", aponta para a
simultaneidade dos atos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como
uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora. A
comparação presente na 2ª estrofe (vv.6-9) evidencia o facto de a realidade que envolve o
sujeito poético ser apenas a "ponte" para "outra coisa": a obra poética, expressão máxima
do Belo.

Na 3ª estrofe, introduzida pela expressão "Por isso" de valor conclusivo/ explicativo, o


sujeito poético recusa a poesia como expressão imediata das sensações. O sentir, no
sentido convencional do termo, é remetido para o leitor.

"Fingir" não é o mesmo que "mentir" é a tese defendida. Não há mentira no ato de criação
poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir", da racionalização dos
sentimentos vividos pelo sujeito poético. O sujeito poético vai mais longe já que, negando
o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos atos de "sentir" e "imaginar",
apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge
filtrada pela imaginação criadora.

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