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Em uma das passagens iniciais do documentário chileno O Botão de Peróla

(2016), o diretor Patricío Guzman pergunta a Gabriela Paterito se ela se sente chilena.
Sua resposta é não, de jeito nenhuma. Ela, como nos diz, se sente Kawésqar. No filme, a
resposta de Gabriela dialoga com o problema da construção da identidade nacional no
Chile e a forma com que as políticas chilenas atuaram sobre aqueles com os quais não
pôde se identificar ou se apropriar. Para além do filme, partimos da afirmação de que o
binômio identidade-alteridade é central para se entender a construção de identidades
nacionais na América Latina, assim como para a construção de uma identidade
subcontinental.

A discussão por nós posta é a da dificuldade de se construir um outro latino-


americano, assim como a de cada região se identificar enquanto nação, para Estados
nacionais que partilharam a dominação da Coroa Espanhola. O que nos interessa,
portanto, é a forma como, após os processos de independência, os Estados nacionais
buscaram forjar suas identidades nacionais. Nos interessa, por conseguinte, as formas
com que estes Estados erigiram, a partir das elites locais, seus processos de
modernidade e de como estes estiveram ligados a construção das identidades nacionais e
a afirmação da pátria por meio da educação das camadas populares para o trabalho e
para a cidadania, sendo que, ao mesmo tempo, se fizeram possível mediante a defesa da
manutenção da ordem social e, por conseguinte, ao controle rígido sobre as expressões
culturais e políticas da camadas populares.

De acordo com Mader (2008), em 1810 os movimentos de independência se


mostram com “enorme velocidade e assombrosa simultaneidade na América Hispânica
[...]”. Para a autora, esta sincronização revela, sobretudo, o surgimento, dentro das elites
coloniais, de novos projetos políticos frente aos acontecimentos externos. Estes
processos de independência, todavia, serão marcados por choques e disputas dentro
destes movimentos. No Chile, assim como na Argentina, a disputa se deu entre posições
centralistas e federalistas1 e marcam rupturas não só entre concepções políticas, mas
também entre regiões do que viria a ser o país que viriam, como no caso Argentino, a
levar a duradouros confrontos armados entre defensores de cada posição2. Se em ambos
1
Na argentina, os federalistas, ou federales, defendiam a autonomia radical das províncias, já os unitários propunham
um governo centralizado (PRADO, ANO, p.153-154). Rosas, caudilho que viria a ocupar o governo de Buenos Aires
entre 1929 e 1952, é da posição federalista. Ainda assim, é sob seu governo que o poder é centralizado na Argentina.
No Chile, os liberais eram denominados pipilos e os conservadores pelucones.
2
Na Argentina, como aponta Prado (ANO, p.154), o confronto entre federales e unitários só cessam em 1862 com a
presidência de Fernando Mitre e a derrota dos grupos armados ligados aos caudilhos. Assim, para a autora, só se pode
falar de Estado Nacional organizado na Argentina após esta data. A especificidade do caso chileno, como aponta
dos casos podemos identificar desde o início do movimento independentista a
construção de símbolos pátrios, é só a partir da consolidação da consolidação
institucional dos Estados Nacionais que podemos notar a construção das identidades
nacionais. Como aponta Purcell (ANO, p.176), a partir de leitura de Jose Carlos
Chiaramonte, na América Latina “[...] a nação teve um caráter de resultado, e não de
fundamento do processo de independência [...]”.

A construção da identidade nacional é, assim, em partes, uma diferenciação não


só da Coroa Espanhola mas, também, dos países vizinhos. Para tal, se fez necessária a
busca por elementos identitários que seriam constitutivos de cada nação. Esta
construção do imaginário de uma nação atua, principalmente, como uma forma de
homogeneizar e aproximar sociedades marcadamente heterogêneas.

O caso argentino se torna paradigmática tendo em vista a influência dos


intelectuais e políticos liberais que viriam a constituir o que ficara conhecido por
geração de 1837. Opositores a caudilho federalista Juan Manuel de Rosas, estes, de
vertente liberal unitária, foram perseguidos após a assunção do caudilho ao governo de
Buenos Aires, cargo que viria a ocupar, com um breve interregno, entre 1829 e 1852. A
partir do exílio dos liberais da geração de 37 3, e do consequente recrudescimento de
obras críticas ao governador de Buenos Aires, podemos perceber que estas construções
na América Latina tiveram pontos de contato. Neste período suas ideias modernizadoras
passam a ter reflexos em outros países, como é o caso no Chile com a sociedade literária
de 1842. Influenciados pelas correntes românticas europeias, estes intelectuais argentino
e chilenos, segundo Porcell (ANO, p.183), formularam explicitamente um projeto
nacional.

As questões sobre os aspectos nacionais e suas peculiaridades, no entanto, não


são exclusivos aos intelectuais argentinos desta geração. No Chile, o Estado
institucionalmente constituído, neste período, reconfigurava as representações da nação
para definir o que é a nacionalidade chilena e assim forjar a nação. Assim sendo, como
aponta Purcell (ANO, p.202), a estabilidade político-institucional no Chile fez com que
o Estado tivesse proeminência na construção do imaginário da nação, tendo a

Purcell (ANO, p.202), é que nele se a estabilidade política-institucional se deu logo após a independência.
3
Prado (ANO, p.155) destaca que Rosas, detentor de plenos poderes em Buenos Aires, não admitia contestações a
seu governo. O poder de Rosas se amplia após o assassinato de Facundo Quiroga, em 1835. Como aponta a autora, os
liberais unitários defendiam a “[...] formação de um Estado guiado pelas luzes da razão que moldariam uma
constituição a ser seguida e respeitada, pondo fim às lutas que dividiam a Argentina”. Os exilados foram, sobretudo,
para o Chile e Uruguai.
intelectualidade um papel complementar nestas construções. São para isto convocados
diversos aparatos artísticos, assim como obras literárias e históricas, e festividades,
assim como as efemérides, para representar esta nação. Desta feita, como trabalha
Purcell (ANO), o paradoxo que se coloca se dá entre a afirmação do que é nacional feita
de cima para baixo e as representações da nacionalidade feita pelas camadas populares e
que se tornam um problema para o Estado Nacional que passa a controla-las, ao mesmo
tempo que precisam adesão das camadas populares a seu projeto nacional 4. De maneira
similar se deu as propostas liberais sobre a participação políticas das camadas populares
após a destituição dos caudilhos na Argentina. A afirmação de uma preeminência dos
grupos tidos por iluminados sobre a populações desprivilegiadas na tomada de decisões
políticas reforça o caráter elitista da política liberal na Argentina no século XIX.

Em nosso intento, todavia, duas discussões presentes no período serão


sobressaltadas. A sobre a linguagem e sobre o ensino de história. Na primeira, a figura
de Sarmiento é central. Liberal argentino ligado a geração de 1837, este, em seu livro
Facundo ou civilização e barbárie (1845), publicado no periódico chileno El Progreso,
afirma os caudilhos como a representantes da arbitrariedade, da violência e da barbárie.
Neste trabalho, como afirma Maria Ligia Prado (ANO, p.152), a dualidade civilização e
barbárie, proposta pelo autor, ultrapassa a discussão sobre o caudilho, governador da
província de La Rioja, Facundo Quiroga e sobre Argentina de modo a adentrar a
discussões sobre toda a América Latina. Ainda assim, em seu intento de se colocar
enquanto figura política, Sarmiento ressalta a brutalidade de Quiroga, assim como a dos
caudilhos federalistas, em oposição a uma civilização urbana, letrada e ilustrada na qual
se incluía. Exilado no Chile, Sarmiento é uma das principais vozes nas discussões sobre
o idioma nacional. Em publicação de 1842, defende que se deve afirmar o nacional na
língua, ou seja, que o idioma de cada país deve reter os traços nacionais da linguagem.
Sua defesa pela autonomia da maneira de falar e escrever o espanhol inicia um debate
intelectual nos jornais que seria chamado de “as polêmicas do romantismo”. Em
oposição estão as defesas da utilização rígida da gramática da língua herdada, ou seja, a
manutenção do espanhol castiço5.

4
Purcell (ANO, p.186) afirma que o Estado chileno buscou, a partir de 1818, primeiro uma estabilidade político-
institucional, com a qual a fosse possível a construção da nação. A partir disso, o que se impôs ao Estado chileno foi,
segundo o autor (p.195), o que de “[...] determinar o ponto de equilíbrio entre a necessidade de fortalecer a identidade
nacional entre as massas populares e a de manter a ordem social”.
5
Prado, ANO, p.159.
A posição de Sarmiento nesta querela reafirma sua concepção de ruptura com
tradição espanhola e a aproximação dos liberais com as ideias europeias, sobretudo,
francesas. Sua defesa da educação letrada6 coadunava com as políticas chilenas,
uruguaias e mexicanas voltadas a se erigir sistemas educacionais populares, assim como
a de expandir o letramento a população. No Chile, como aponta Purcell (ANO, p.182), o
projeto educacional republicano e nacionalista esteve ligado ao Instituto Nacional e a
Biblioteca Nacional, mas é após a fundação da Universidade do Chile, em 1843, que
este projeto alcança sua expressão máxima, dado que é a partir dela que veio a se
consumar a instauração de um sistema de educação nacional no país. O ensino de
história, neste interim, adquire um papel sobressalente 7 tendo em vista que este se deu,
no século XIX, a partir de pressupostos da afirmação de história dos grandes homens e
dos acontecimentos, que se relacionava com os pressupostos de uma história mestra da
vida. A difusão de uma história pátria, por meio do sistema educacional, esteve atrelada
aos manuais de História Nacional voltados a criação de um sentimento de cidadania, a
construção de lealdades com as instituições e para a construção de uma visão unificada
em torno da nação.

Assim, a educação passa a ser dotada de um caráter cívico e nacional. Este


processo, todavia, é paulatino. Tomando o México como exemplo, temos que a
educação nacional viria a romper com uma educação de fundamento religioso, ainda
que mantivesse o sistema de deferência aos grandes heróis, estes seriam os heróis da
pátria – o que atenderia aos interesses políticos dos grupos no poder. Estes seriam
identificados e afirmados, sobretudo os que estavam ligados à independência, em
oposição aos heróis da antiga metrópole de modo a diferenciar a história latino-
americana do que era sob a Coroa espanhola. Por mais que a educação no país passem a
adotar um caráter cívico a partir da revolução, se aproximando de uma maior ligação
entre educação e política, é só com as leis de 1867 e 1869, que marcam a reforma
liberal, que ocorre a proibição do ensino religioso e a introdução de história e geografia
nos currículos.

A escrita e ensino de história esteve marcado no século XIX pelas efemérides e


pelos grandes heróis. O que se pôs em questão foi a necessidade de se afirmar datas,
grupos e pessoas do passado como heroicos. Dada a necessidade de se construir uma
6
Prado, ANO, p.172.
7
Sarmiento, assim como outros da geração de 37, destacaram a “[...] importância da escrita da história para a
construção da nacionalidade” (PRADO, ANO, p.167).
identidade nacional, estas historiografias buscaram identificar no passado pré-colonial
símbolos para compor este imaginário nacional. No México a crueldade dos espanhóis é
oposta as civilizações indígenas, de quem as terras haviam sido usurpadas. A questão
que se impunha, como aponta Mallon (ANO, p.257), era a de que maneira os Estados
liberais modernizantes pensariam a separação étnica entre a “república dos índios” e a
“república dos espanhóis” dentro das propostas de construção nacional que afirmava a
igualdade de seus cidadãos. A representação dos indígenas dentro da construção do
imaginário nacional, assim como a da escolha dos heróis, atendeu a diferentes interesses
políticos. A valorização do indígena na construção da identidade nacional chilena se
opõe as formas com que estes foram apreendidos pelas construções do final do século
XIX. A questão indígena, como destaca Mallon (ANO), foi marcada por períodos de
negociação e aproximação, todavia, no final daquele século o Estado chileno, assim
como o Argentino, passa a adotar posições violentas de expulsão e extermínio de
populações indígenas8.

A necessidade de se construir um outro em relação aos vizinhos e um outro


subcontinental foi, portanto, uma tentativa de se construir, dentro de sociedades
marcadamente heterogêneas, elos que os aproximaria e os constituiriam enquanto nação
e enquanto um outro frente a América anglo-saxã. Ao fazer isto, os projetos de
construção de identidade comum buscavam no outro o que os diferenciaria. As
afirmações de uma “cor local” ou de uma suposta originalidade latino-americana eram
parte destas construções imaginárias. A constituição de uma identidade de
subcontinental foi, portanto, marcada pela negação do que era norte-americano e
europeu, ou seja, do que não era latino americano. Essa concepção de alteridade em
relação aos Estados Unidos é marcada nas de meados do século XIX, mais precisamente
no final de década de 1840, período da guerra entre Estados Unidos e México. A
expressão América Latina surge na década de 1850. Assim como na construção das
identidades nacionais, o binômio identidade-alteridade se faz presente. Só é possível se
afirmar em relação a um outro.

8
As campanhas militares contra as populações do sul no Chile são destacadas no documentário de Patricio Guzman;
a violência contra os indígenas, na Argentina, é defendida por liberais como é o caso de Sarmiento, dado que estes
entendiam os indígenas como um atraso na modernização. Neste país, a partir de década de 1870, os liberais unitários
foram responsáveis por ordenar campanhas militares para liberar as terras indígenas para seus interesses por meio da
violência e do extermínio daquelas populações. Estes ataques a estas populações ficariam conhecidas como
Campanhas do Deserto.
Em suas festas, efemérides, projetos educacionais, manifestações artísticas cada
Estado Nacional, por meio das elites letradas e dos artistas, se fez diferenciar de seus
vizinhos. Ainda assim, estes se constituíram como um outro frente aos norte-
americanos. A América Latina, como tal, se afirmaria dentro de todas as suas
diferenças. Desta feita, dentro das aproximações e diferenças entres as diferentes
identidades nacionais foi se construindo uma identidade subcontinental. Nestes
processos, as construções das identidades se deram por meio de projetos das elites
locais. Estas projeções identitárias estiveram atreladas não apenas à cada nação em
específico, mas também a diferentes processos políticos dentro destas. Assim, podemos
ver figuras como o uruguaio Artigas ser relegado ao ostracismo e, posteriormente, ser
afirmado enquanto um herói do povo uruguaio. O mesmo parece ainda se dar com os
argentinos Rosas e Sarmiento.

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