1. Introdução
Ao iniciar a redação desse ensaio foi impossível esquecer que ele se destina a
integrar os diálogos acadêmicos promovidos no interior das comemorações dos 25 anos
de funcionamento do Núcleo de Estudos de População da Unicamp. E, sabemos que os
eventos comemorativos servem para as comunidades partilharem suas conquistas, senão
suas perdas, e reafirmarem seus valores e suas crenças. Sem dúvida, uma das crenças
que nos une é a pertinência de se construir conhecimento colhendo dados em fontes
seriadas. Essa confiança é alimentada pelos resultados de investigações fundadas na
exploração de séries documentais que permitiram identificar padrões e movimentos
específicos de determinadas populações. Aos historiadores da família, particularmente
os que utilizaram registros paroquiais, foram possíveis grandes avanços notadamente
quando se privilegiou variáveis como nupcialidade, fecundidade e mortalidade.
Fiel a esse credo, minhas reflexões aqui se distanciam da idéia de questionar ou
contribuir para os procedimentos metodológicos presentes nas tarefas de transformar
dados das atas paroquiais em indicadores demográficos. Minha intenção é tão somente
vincular registros de catolicidade e cultura familiar a uma inscrição especifica, qual seja,
a doutrina matrimonial cristã. Para isso, inicialmente ocupo-me em realçar que, desde os
seus primórdios, a Igreja esteve envolvida num projeto político universalizante que,
dentre outros objetivos, teve como efeito definir os traços sociológicos da família
ocidental. Assim, meu olhar vai se dirigir unicamente à questão matrimonial,
considerando que boa parte do que compõe os campos dos demais registros paroquiais
decorrem dos princípios que regulam a moral familiar. Após delinear os grandes traços
da posição da Igreja, o texto vai se dedicar a uma análise dos campos que orientam o
preenchimento de uma ata de casamento. A idéia não é destacar o formulário em si, mas
destacar sua centralidade na implementação de sua política familiar.
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Docente na Universidade Federal do Paraná. Pesquisa apoiada pelo Cnpq.
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a cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o
escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de
elementos conflitivos, que somente sob uma pressão imperiosa – por exemplo o nacionalismo,
a consciência de classe ou a ortodoxia religiosa predominante – assume a forma de um sistema
(THOMPSON, 1998:17).
Para a presente discussão, é fundamental ter em vista que os espaços culturais se
movimentam num jogo de trocas entre os vários códigos culturais que disputam o
controle sobre as regras socialmente ativas. De fato, a longa caminhada que produziu e
tornou a família cristã num forte ideal social não se deu unicamente pela destruição
sistemática de outras formas de união. Ela se organizou, conforme já salientaram
diversos autores em particular Jean-Claude Bologne (1999), selecionando e adaptando
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e Knox que, aliás, exceto Zwinglio, estavam todos vivos quando da abertura do
concílio, em 1545.
Pois bem, após o concílio de Trento, e possivelmente por algum expediente
administrativo de caráter geral cujos termos desconhecemos, verifica-se a disseminação
do hábito de escriturar os atos sacramentais. Para tanto, as paróquias passam a dispor de
livros específicos para registrar os batismos, matrimônios e os óbitos. Sugerir que houve
uma orientação geral quanto à ordem das informações a serem registradas deriva da
padronização existente nas atas, independentemente da diocese que a tenha produzido.
Além do mais, não há dúvidas de que a criação desses registros ocorreu quando a
governamentalidade, como já demonstrou Michael de Foucault, se tornou uma questão
importante para o homem ocidental. Deste ponto de vista, os registros de catolicidade
compõe a expressão de um discurso especifico que se estabeleceu no Ocidente a partir
do século XVI, ocupado em refletir a respeito das diversas instâncias em que se pode
exercer controle/governo: de si mesmo, das almas e condutas, da população, do Estado
(FOUCAULT, 1986).
É nessa perspectiva que se desenvolve meu argumento de que os registros de
catolicidade não correspondem unicamente a um ato administrativo destinado a
contabilizar os fiéis da cristandade. O que pretendo sugerir é que o caráter formular das
atas transcende à questão administrativa, dado compor dispositivo de ‘controle da
almas’. Para que esse argumento adquira alguma consistência passo à tentativa de
destacar a íntima relação entre os campos de preenchimento obrigatório das atas de
casamento e os pressupostos fundamentais da doutrina matrimonial cristã.
Antes de iniciar essa correlação, devo esclarecer dois pontos. Um, relativo ao
argumento central do ensaio: a doutrina familiar cristã teve poder modelador sobre a
família ocidental e os registros paroquiais conformam um dos atos finais da política de
modelagem empreendida por Roma. O fundamento dessa ênfase deriva de um axioma
simples, alheio ao caráter teológico da questão e exposto por muitos, dentre os quais
Clovis Beviláqua: “os diferentes modos pelos quais se podem estabelecer as relações
entre os cônjuges e os filhos determinam diversas formas de família” (1895: 17). Por
outro lado, dizer que concordo que esse argumento, pode encontrar óbice quando se
associa o preenchimento das atas de casamento com o espírito burocrático que se
instalou no Ocidente desde a primeira modernidade. Porém, o emprego dessa lógica, a
meu ver, se esvazia por ela descurar das exigências previas feitas ao casal em termos de
se conformarem às questões doutrinárias e litúrgicas necessárias à formalização da ata
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de casamento. Logo, para seus casamentos constarem no rol dos registros matrimoniais
católicos, com efeitos reconhecidos pelos tribunais civis, homens e mulheres entre os
séculos XVI ao XIX, precisaram minimamente cumprir as exigências da Santa Madre
Igreja, arcando com o ônus que isso importava. Ou, criar artifícios engenhosos para
burlar tais exigências do que há abundante literatura.
Feitos esses esclarecimentos, passo à análise dos termos que orientam a coleta
de informações a serem anotadas no registro de casamentos com vistas, evidentemente,
a destacar seu significado no sentido de impor uma cultura familiar. Esclareço que
modelo do formulário foi retirado das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
3.2 .... pela manhã ou de tarde, em tal igreja de tal cidade, vila, lugar, freguesia, ...
núpcias ocorressem na paróquia em que morava o rapaz. Nesse caso, a Igreja precisou
também definir qual o tempo de permanência em um lugar que definia um
pertencimento domiciliar. Isso foi expresso num édito de 1697 onde se explicita que
“adquire-se domicílio numa paróquia ao fim de seis meses se se vier de outra paróquia
da mesma diocese e ao fim de um ano se se vier de outra diocese” (LEBRUN, s/d.:48).
não desfeito pela morte. Outras incapacidades eram consideradas relativas e podiam ser
superadas por uma dispensa do juizado eclesiástico, consistindo na reprovação
doutrinária ao casamento de pessoas com grau de parentesco natural, por afinidade e
espiritual, inicialmente até o sétimo grau, e depois de 1215, até o quarto grau (LEBRUN,
s/d:18-22).
Sem dúvida, essa legislação relativa ao matrimônio foi o marco na trajetória do
pensamento da Igreja a respeito dos caminhos que levam à salvação. Por largo tempo,
segmentos da Igreja se ocuparam em sobrelevar o celibato e, chegando-se ao período
em que organizava sua legislação do casamento, ela precisou combater grupos que
ainda defendiam absoluta ascese como o dos cátaros (sul da França, séc. XI). Eles não
eram caso isolado pois, conforme determinados intérpretes, integrariam uma onda de
hostilidade contra a reprodução que varria a sociedade ocidental composta por grupos
ou ideologias que concordavam no repúdio à procriação e ao casamento como os
bogomilos, os trovadores e os albigenses (RANKE-HEINEMANN, 1996: 217). Não por
acaso, Inocêncio III lançou anátemas a esses ideários, ao mesmo tempo em que
impunha à cristandade a legislação do casamento enfatizando sua finalidade procriativa.
Desde então, a conjugalidade passou a ser aquela adequada às exigências da Igreja que,
embora reprovando o concubinato, tolerou-o até o Concílio em Trento, sempre que não
fosse união bígama ou incestuosa.
Todavia, é importante destacar que foi justamente ao definir ‘relações
incestuosas’ e impedir consórcio conjugal a todos os que nelas estivessem incluídos é
que a Igreja demarcou sua hegemonia face à matéria conjugal. O Direito Matrimonial
do século XII, quando condenava como incestuoso o casamento entre parentes, tinha do
parentesco uma visão muito complexa posto que
que o casamento cria entre duas famílias, mesmo depois da morte de um dos cônjuges.
Porém, nos termos desse ensaio, é forçoso enfatizar essa questão por outra perspectiva.
Isso porque a Igreja se apropriou dos signos de inclusão social próprios das sociedades
medievais para organizar o campo das interdições matrimoniais, acrescentando-lhes,
naturalmente, justificativas teológicas. E, aos que não cumprissem seus impedimentos
dirimentes era dada sumária excomunhão. E, nesse caso, não é demais lembrar que
Lucien Febvre nos ensinou que os homens daquele tempo não tinham o benefício de
descrer pois não possuíam utensilagem mental para tanto.
A visão de parentesco da Igreja não surgiu no século XII: ela é resultado de uma
construção discursiva bastante longa, largamente discutida por grandes pensadores e
cujos termos acabaram constituindo parte dos cânones cristãos. Para Goody, porém, ao
fundo de toda essa discussão estava uma instituição que fomentou preceitos que lhe
permitiu, ao fim e ao cabo, definir seu poder temporal, amealhando para si terra e outros
bens. Para tanto, desencorajou rapidamente o apoio aos matrimônios próximos, a
adoção, a herança das viúvas, o concubinato, o divórcio e o novo casamento e outras
estratégias hereditárias de que dispunham os romanos, os anglo-saxões, os irlandeses e o
resto dos povos do Mediterrâneo e, provavelmente, a maior parte da Europa
(GOODY:1995:42). Nessa linha, é pertinente retomar o observado por Casey, de que não
é necessário adotar uma visão conspirativa da história para se aceitar ter havido conflito
entre a necessidade de uma família casar seus herdeiros e a de recrutar clérigos
celibatários (CASEY:1989, 129).
sinodal para tanto. Em 1012 o Sínodo de Ruão, por exemplo, já sugeria que os
casamentos não fossem feitos na clandestinidade e que sempre contassem com a benção
de um sacerdote (NOCENT, 1989:383). Todavia, conforme a legislação do século XII, a
legitimidade do casamento era dada exclusivamente pelo consentimento mútuo dos
esposos não dependendo de celebrante, testemunhas; nem ao menos de autorização
paterna (LEBRUN, s/d:19). Por isso mesmo, a reforma tridentina do casamento incluir a
presença de um sacerdote no ritual do casamento pode ser interpretada como um recuo
institucional face a resistência social a esse ditame. O preâmbulo do decreto
quinhentista sugere o mal estar da Igreja nessa questão ao reiterar que “não há dúvidas
de que os casamentos clandestinos, feitos com livre consentimento dos contraentes, são
bons e verdadeiros matrimônios” (CT: 1781: 229).
E, quando se trata dos casamentos clandestinos é difícil não lembrar de Romeu e
Julieta, cuja tragédia ocorreu, como sugere Lawrence Stone, pelo desafio que os jovens
fizeram à vontade de seus pais. Esse mesmo autor destaca que as premissas morais
sobre as quais se assentavam os casamentos do passado eram diferentes das atuais, dado
ele não ser pensado enquanto associação íntima de dois indivíduos mas tão somente
significar a entrada em um novo mundo de parentes. A interferência dos parentes na
formação dos casais se daria por preocupações diversas, grosso modo associadas à
preservação da linhagem ou à transmissão dos direitos sobre a propriedade, o que
tornava herança e o matrimônio questões indissociáveis. Portanto, se hoje se condena
o casamento por interesse a favor do casamento por afeição, nas sociedades do passado
o contrário era a norma, pois o amor e o desejo eram considerados causas efêmeras para
o casamento. Nessa linha, Montaigne asseverava: “As pessoas não se casam para si
mesmas, mesmo que o digam; casam-se sobretudo, para sua posteridade, para sua
família. Um casamento, para ser bom, recusa a companhia e as condições do amor”.
Ele foi contemporâneo ao Concilio de Trento e vivia numa França em que se
digladiavam os huguenotes, liderados por Henrique de Navarra, e os católicos
‘papistas’, alinhados ao Duque de Guise. O matrimônio de Henrique de Navarra com a
irmã do Duque de Guise selou a paz religiosa, o que prova que os argumentos de
Montaigne estavam de acordo sua época. Além disso, o casamento foi habilmente
consertado pela mãe da noiva, Catarina de Médici.
Considerando o narrado acima como ilustração dos termos em que as sociedades
da primeira modernidade compreendiam e organizavam seus arranjos matrimoniais, é
de se pensar como a Igreja conseguiu manter, por tanto tempo, sua ênfase quanto ao
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livre assentimento dos jovens como elemento suficiente para criar um vinculo conjugal
indissolúvel. Nesse caso, é notório que os tempos mudavam e que os problemas que a
Igreja encontrava no século XVI quanto a sua hegemonia, não eram em nada parecidos
com os que estiveram em jogo, em especial entre os séculos VIII ao XII. Naquele
tempo, sim, foi fundamental não abrir mão de retirar das famílias o arbítrio exclusivo
sobre os casamentos dos seus filhos.
3.6 .... se casaram em face da Igreja por palavras N., filho de N. e N., natural e
morador de tal parte, e freguês de tal Igreja, com N. filha de N, ou viúva que ficou de
N, natural e morador de tal parte, e freguesia desta ou de tal parochia ...
A fórmula a que a Igreja chegou era a de intenção das partes, ou seja: o casamento não seria
assinalado pelo comportamento sexual, nem pela transferência de propriedade, nem por sinais
claros disso (que podem ser induzidos por temor ou fraude), mas pelo estado de espírito do
homem e da mulher (casey, 1989:119-120)
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Sagaz observador de seu tempo, Shakespeare escreveu também: “Depois de algum tempo você aprende
[...] que beijos não são contratos e presentes não são promessas.”
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Dada essa caracterização, restou apenas definir o que seria ‘o estado de espírito’
que legitimava a união e aí os dois teólogos divergiram. Enquanto Graciano enfatizava
que a validade matrimonial era dada pelas intenções do casal ( conferindo validade as
uniões por palavras de futuro), Pedro Lombardo traçou uma distinção nítida entre a
mera promessa (verba de futuro) e o verdadeiro reconhecimento do casamento (verba
de praesenti), sublinhando que, pelas palavras usadas entre o homem e a mulher, se
podia saber quais as suas intenções (CASEY, 1989:120)
3.7 ... ( e se logo lhe der as bênçãos acrescentará) e logo lhes dei as bênçãos
conforme os ritos, e cerimônias da Santa Madre Igreja, do que tudo fiz esse assento
no mês dia, que por ser verdade assinei.
ficaria aquela mulher que desposara sete homens. Segundo ele, na ressurreição dos
mortos não casarão nem serão casados mas [todos] serão como os anjos do céu.(Mc,
12, 18-25). A dissociação matéria-espírito presente no pensamento cristão sustentou a
oposição dos teólogos tanto ao casamento, quanto ao recasamento. Isso autorizava
Tertuliano a dizer que ‘só temos um único casamento como só temos a um Deus’ e a
Basílio de Cesaréia chamar os viúvos que contraíam novas núpcias de manchas da
Igreja (BERNOS, 1991:62). As disposições tridentinas reafirmam esta representação no
Cânone X que expressa; “Se alguém disser que o estado do matrimônio deve ser
preferido ao estado de virgindade ou de celibato, e que não é melhor nem mais feliz
manter-se em virgindade ou celibato que casar-se, que seja excomungado”.
Abrindo o campo interpretativo, o olhar negativo que a Igreja dispensava aos
viúvos encontra paralelo nos costumes populares no Antigo Regime. Dentre as
explicações dadas aos charivaris, por exemplo, os investigadores destacam seu caráter
de desaprovação comunitária ao recasamento de viúvos. A tradição portuguesa não
esteve alheia a esta concepção, pois encontramos adágios sentenciando: “A viúva com o
luto e a moça com o moço”. Outros ditados, no entanto, remetem à um descrédito da
possibilidade de as viúvas manterem continência (não há menção de viúvos...). É
ilustrativo, a este respeito, o fato de Bluteau iniciar o verbete viúva indicando que o
recasamento é uma espécie de bigamia, ‘odiada no direito canônico’. Ele sugere às
viúvas se espelharem no que se faz em algumas terras da Índia ‘onde as moças
prezadas de terem brio se queimam vivas, lançando-se na fogueira onde fica ardendo o
cadáver do marido’. Há consenso a este respeito também na literatura de
aconselhamento moral, como no “Casamento Perfeito” (1630), onde Diogo Paiva de
Andrada dedica um capítulo inteiro a argumentar que ‘casar mais do que uma vez é
contra a perfeição do casamento’.
4. Observações finais
No que interessa aos objetivos desse texto, cabe finalmente frisar que não se
pode desdenhar as decorrências sociológicas da doutrina matrimonial. Ela fixou
princípios ativos até hoje como o da conjugalidade se organizar a partir da vontade de
duas pessoas que desde então se responsabilizam uma pela outra, bem como pelos filhos
que a união produzir. É evidente não haver mais consenso quanto ao campo canônico
que outrora informou o sentido desses axiomas. E é pertinente sugerir que para homens
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e mulheres das diversas categorias sociais que viveram nos últimos oito séculos, tais
cânones faziam parte de um conhecimento que poderia tranqüilamente se manter no
interior das abadias e das universidades.
Porém, uma série de fatores colaboraram para que, mesmo sem necessariamente
entender o fundamento teológico das normas eclesiásticas, boa parte desses homens e
mulheres as cumpriram. Grosso modo, as pesquisas já evidenciaram o suficiente que
todos aqueles que tinham algo a perder se renderam aos ditames da Igreja (pressupondo-
se, nessa afirmação, que a Igreja reformada, à exceção de acatar a dissolubilidade do
vínculo, manteve intacto o desenho da conjugalidade presente na doutrina matrimonial
clássica).
E quem tinha algo a perder? As camadas médias das sociedades ocidentais que,
no campo e na cidade, gradativamente se renderam aos valores próprios das sociedades
estamentais e burguesa em que, sucessivamente, viverem suas vidas. Eles vivenciaram
realidades sociais em que o tipo de conjugalidade e a modalidade da filiação tinha
poder de classificar ou de desclassificar uma pessoa e sua família, conferindo-lhes assim
diferentes direitos sobre o patrimônio material ou imaterial que ela possuísse. Já para as
camadas altas e as despossuídas sempre foi possível, e por motivos notadamente
diversos, praticar conjugalidades alheias à moral cristã (FLANDRIN, 1995:193-197).
Diversos pesquisadores mostram o quanto as sociedades ocidentais, dispersas no
tempo e espaço, se mostraram criativas para resolver a inflexibilidade da moral cristã.
A título de exemplo, Thompson mostra que na Inglaterra, em pleno século XIX, os
meios populares praticavam a venda de esposas, encaminhando-as ao mercado público
com uma corda amarrada a seu pescoço, sinalizando com esse gesto que a mulher estava
disponível aos interessados. Em sua análise dessa prática,ele é enfático em não
interpretá-la enquanto desdobramento de algum costume antigo, de origem esquecida ao
longo dos séculos. Ao contrário, seu campo explicativo agrupa o contexto próprio de
uma sociedade proto-industrial, caracterizando essa venda como artifício criado na
passagem do século XVIII para o XIX em decorrência do colapso do casamento. A
venda ritual das esposas teria se tornado eficaz pelo declínio da vigilância punitiva da
Igreja e seus tribunais sobre a conduta sexual, o consentimento da comunidade e uma
certa autonomia da cultura plebéia em relação à culta e o fato de as autoridades civis
serem desatentas ou tolerantes com a prática. Em suma, foi uma solução para a
dissolução do casamento de determinados segmentos plebeus, notadamente os do
mundo urbano ingles, mas que não atingia as uniões em que houvesse propriedades e
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bens envolvidos. Para essas, o projeto matrimonial cristão foi exitoso dado sua
formalização ser assumida pelo discurso jurídico, o que em muito favoreceu para torná-
lo, por muito tempo, a forma socialmente valorizada de selar as uniões. Longe, porém,
de ser a única.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS