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A divulgação do discurso científico: um caminho

De: Maicol Martins de López Coelho

Imaginemos uma situação: um cientista, em viagem ao interior do país,


percebe que imensa parte da população é desassistida e, como consequência,
sofre com doenças e carências diversas. Ele chega a locais com pessoas
debilitadas, impedidas de explorar o próprio potencial, condenadas a apenas
tentar sobreviver, sem outras ambições. Diagnosticada a causa deste cenário,
o cientista então elabora um plano relativamente simples, composto por ações
preventivas combinadas com tratamento médico, de modo que a situação
percebida seja alterada. Basta pôr o plano em prática, mas como fazê-lo? E
não basta curar: como conscientizar milhões de pessoas a entenderem e
adotarem as medidas de profilaxia necessárias para que o ciclo da doença seja
interrompido?

Esta é uma questão de certa forma recorrente ao se tratar de divulgação


e de popularização da ciência: de que maneira traduzir o resultado dos estudos
de campo e de laboratório para não-cientistas? O que deve ser dito, o que é
relevante, e o que pode ser posto de lado neste contato com um público mais
amplo, com interesse manifesto (ou ao menos com possível interesse), mas
alheio aos termos e procedimentos de ciência, aos jargões e à estrutura do
discurso científico? Como adequar esse discurso de modo que seja possível a
sua apreensão por não-iniciados, sem que ele perca conteúdo, qualidade?
Houve no Brasil um caso exemplar, em que a pesquisa científica gerou um
relatório científico, este uma série de artigos para jornais e um livro, que
inspirou um conto e enfim um livreto ilustrado, com a missão de levar algumas
das conclusões geradas pela pesquisa científica à população em geral. O
livreto teve uma tiragem superior a 100 milhões de exemplares.

Belisário Penna foi o cientista que viveu a situação imaginada no


primeiro parágrafo deste texto. Mineiro de Barbacena, formado médico pela
Faculdade de Medicina da Bahia em 1890 e pesquisador do Instituto Oswaldo
Cruz, Penna chefiou (juntamente com o médico Arthur Neiva) uma expedição
promovida pelo Instituto em 1912, que visitou o norte da Bahia, sudoeste de
Pernambuco, sul do Piauí e grande parte de Goiás. Entre outras ações, a
viagem levantou o quadro de doenças e das condições de vida das populações
locais, e Penna concluiu ser a doença, e não a raça, o principal entrave ao
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progresso das regiões visitadas (à época era corrente a discussão a respeito
da indolência, preguiça e baixa produtividade do brasileiro; alguns afirmavam
que essa condição era inerente à raça brasileira, degenerada pela
miscigenação. Penna, por meio de seu trabalho como cientista, convenceu-se
de que essas mazelas não tinham origem racial, mas decorriam de
circunstâncias que ele viria apresentar em um relatório tratado na seqüência
deste texto).

Nesse relatório de viagem, Belisário Penna descreve as observações e


os estudos realizados e expõe suas conclusões, argumentando que o atraso
era conseqüência do abandono e do isolamento a que eram relegadas as
populações do interior brasileiro, região esquecida pelo poder público. O
relatório científico era destinado ao uso do Instituto Oswaldo Cruz e à
Inspetoria de Obras Contra as Secas, órgão do governo federal instituído em
1909 que objetivava combater a seca por meio de estudos sanitários,
meteorológicos, geológicos, topográficos e hidrológicos. Restritas ao meio
científico e especializado, as observações e recomendações dos cientistas
contidas no relatório científico não teriam condições de alterar a realidade
percebida. Penna se viu diante do trabalho de fazer aqueles estudos chegarem
à população e, saindo do laboratório, serem efetivos na tarefa de transformar a
condição de vida de grande parte dos brasileiros.

Com a preocupação de divulgar as conclusões do relatório, Belisário


Penna escreveu uma série de artigos para o jornal carioca Correio da Manhã,
entre 1916 e 1917. Desta maneira o cientista fez com que as idéias propostas
pela pesquisa científica fossem além dos cientistas, com linguagem adequada
e em um meio de comunicação capaz de colocá-las em contato com um
público mais amplo, ainda que restrito a uma “elite” brasileira alfabetizada. Na
luta por divulgar o resultado de seu trabalho, Penna tentou publicar os artigos
em livro, recebendo uma série de recusas por parte de editores; conseguiu
fazê-lo ao angariar fundos com a inserção de uma série de anúncios
publicitários nas páginas finais, cobrindo assim as despesas de impressão. O
livro Saneamento do Brasil foi finalmente publicado, em 1918.

E o livro alcançou um de seus objetivos. Apesar de contar com um


público limitado, o escritor paulista Monteiro Lobato compunha esse público; o
livro chegou até ele e o fez mudar algumas concepções a respeito do povo
brasileiro. Monteiro Lobato encampou as análises e os procedimentos médico-
sanitários sugeridos por Belisário Penna e, em 1920, publicou o conto “Jeca
Tatu: a ressurreição”. Nele, além de apelo à modernização das técnicas
agrícolas, o escritor ensina, por meio da personagem Jeca Tatu, alguns
procedimentos a fim de que o habitante da zona rural pudesse se curar e evitar
novos casos de amarelão, uma das doenças abordadas pelo cientista no livro.
Mas, ainda que escrito em uma linguagem mais popular, valendo-se de uma
historinha para propagar as ideias do cientista, o conto estava limitado a quem
soubesse ler. Era um público ainda restrito, e além de pequeno, não era o
público-alvo das recomendações apresentadas.

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O discurso científico continuava seu caminho rumo à divulgação, em
busca do público adequado, e o empurrão final veio por meio da publicidade.
Os laboratórios Fontoura, interessados em vender, entre outros, a
Ankilostomina, medicamento que combate o amarelão, adaptaram o conto
escrito por Lobato, com o apoio entusiasmado do próprio. Rebatizado como
Jeca Tatuzinho, em 1924 o conto ganhou ilustrações explicando como se
contraía o amarelão, e como tratá-lo. O texto, adaptado pelo autor, em lugar de
recomendar o uso do remédio adequado, assim, de maneira genérica, agora
pregava que fossem consumidos a Ankilostomina e o Biotônico Fontoura,
ambos dos laboratórios Fontoura. Trazia na capa a marca do laboratório e
citava vários outros medicamentos Fontoura. Até 1941 foram distribuídos 10
milhões de exemplares do livreto. Em 1973 foi atingida a marca de 84 milhões
de exemplares e, em 1982 – centenário do nascimento de Monteiro Lobato – o
Jeca Tatuzinho ultrapassou a cifra de 100 milhões de exemplares distribuídos,
completando a saga do discurso científico.

Adaptado a seu público-alvo, com ilustrações e uma linguagem de fácil


apreensão por parte desse público, o livreto fez algumas das conclusões dos
laboratórios chegarem a um grande número de pessoas. Conseguiu tirar os
resultados da pesquisa de dentro do laboratório e, com a ajuda do escritor e da
propaganda, fez esses resultados chegarem a quem de fato necessitava
conhecê-los.
Maicol Martins de López Coelho
Publicitário, formado pela USP em Comunicação Social e mestre em História da Ciência pela PUC-SP, é também técnico em
eletrônica e ex-estudante de engenharia de eletricidade. Atualmente trabalha na área em que é graduado; ainda em
comunicação e marketing, é professor universitário, e é membro do Conselho Editorial da arScientia.
maicol@arscientia.com.br
São Paulo - SP

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