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Ao Sr.

com os cumprimentos de

Noel Calixto Batista


O MENINO
Diagramação: Jéssica Oliveira EA
Apoio cultural: Guilherme Peres
Edição do autor MARÉ

Memórias

Noel Calixto Batista


O MENINO E A MARÉ
NOEL CALIXTO BATISTA

MEMÓRIAS

Homenagem póstuma:
Minha mãe: Maria Batista
Meu pai: Pedro Luiz
Minha esposa: Maria da Penha

“Cada um de nós
compõe a sua história,
um dia agente chega
o outro vai embora”
“Tocando em frente”
Almir Sater
O Menino e a Maré

APRESENTAÇÃO

Memórias transformadas em documentação literária, nos


trazem sempre lembranças que marcaram grandes autores bra-
sileiros como: José Lins do Rêgo em: “Menino de Engenho”, ou
Graciliano Ramos em: “Infância”, citando apenas dois dos mel-
hores autores nordestinos.

As narrativas de Noel Calixto revela um jeito especial de


contador de “causos”, deixando-se trair pela saudade do menino
de outrora, impregnadas de amor telúrico. Registros de puro liris-
mo quando descreve o sofrimento de sua família diante da morte
de seu irmão:

“Certo dia eu vi minha mãe chegando e eu corri para


abraça-la, e ela chorando falou o que tinha acontecido. Meu
irmão de oito meses tinha falecido, e me levou para nossa casa.
No dia seguinte meu pai já tinha providenciado tudo, estava na
hora de levar o corpo para o cemitério. Nós morávamos numa
rua por nome Jaraguá, distante 8 km. Não tinha ninguém, só eu
e meu pai. Levamos o caixão na cabeça. Lá na frente ele pegou.
Tentei conversar com ele, mas seu silêncio foi mais forte. A partir
daquele dia que fui entender o porquê do silêncio do meu pai.
Porque ele não tinha noção do que girava em volta de si por ser
analfabeto”.

São personagens que o autor ressuscita palpitantes de


vida, compondo de maneira poética o modo simples da comuni-
dade rural em que viveu, com narrativa seca e dramática, fazendo
reascender através de suas lembranças, traços simples, honestos e
meritórios de um belo e admirável trabalho.

Guilherme Peres
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

na sexta-feira santa, então eu e Duda resolvemos pedir es-


mola porque a nossa situação era muito difícil.
Eu vou falar do meu grande amigo Duda. Quando eu
falo da camisa, é que eu dei uma mixaria e ele andou a feira
toda para encontrar uma camisa por este preço, mas ele con-
seguiu comprar e foi para Recife. E foi assim que eu fiquei
longe do meu amigo Duda por muitos anos. Isso aconteceu
em 1954, vim encontrar ele em 1996, choramos lembrando-
se do passado. Eram muito fortes as recordações, até porque
nós estávamos viúvos. Nossos filhos estavam casados. Para
a situação atual, em relação ao passado, nós somos ricos, até
porque não falta nada, mas falta a presença das nossas espo-
sas, que hoje estão com Deus.
Vou falar de mim e da minha tia Jovita. Certo dia per-
to da semana santa, minha tia me chamou para pegar man-
gaba no tabuleiro de carvaçu. Tabuleiro é um lugar deserto
e muito quente, onde tem muitos cajus e mangavas. Tudo
bem; vou falar o que aconteceu... Eu peguei o jumento, botei
a cangalha e caçual, que são acessórios que poucas pessoas
conhecem. Começamos a tirar as mangabas e lá para tantas
me deu uma forte sede, eu comecei a gritar minha tia Jovita, MEMÓRIAS DE MENINO
que ficou apavorada e mandou que eu urinasse na mão e

N
bebesse, e eu fiz o que ela mandou. Lembranças boas. asci no dia 4 de Maio de 1939, às 5 ho-
Volto a falar da minha tia Jovita e de mim, quando ras da manhã. Meus pais escolhiam o meu
tinha 10 anos. Neste tempo, eu morava com minha tia para nome, quando chegou minha tia Jovita e pe-
tomar conta dos animais. Até aí tudo bem. Certo dia eu vi
diu para pôr nome de Noé, e foi aceito por todos, até
minha mãe chegando e eu corri para abraça-la, e ela cho-
rando falou o que tinha acontecido. Meu irmão de oito meses porque ela era evangélica. Mas na hora de fazer a certidão
tinha falecido, e me levou para nossa casa. No dia seguinte de nascimento, o nome foi alterado para Noel, e meus
meu pai já tinha providenciado tudo, estava na hora de le- pais, por não saberem ler, aceitaram a ideia da funcionária
var o corpo para o cemitério. Nós morávamos numa rua por do cartório. Minha tia Jovita e seus familiares me chama-
nome Jaraguá, distante 8 km. Não tinha ninguém, só eu e vam de Noé. Aos 14 anos ficaram sabendo, mas não liga-
meu pai. Levamos o caixão na cabeça. Lá na frente ele pegou. ram. Só minha tia Jovita foi quem não gostou.
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

Meu nascimento aconteceu na casa da prima Ad- Aos sete anos, minha mãe falou para mim: “Meu filho,
elaide, na Rua do Tambo, e aos seis meses, meus pais mu- você tem que estudar lá na Rua da Gameleira, eu pedi a irmã
daram-se para uma rua chamada Jaraguá. Era distante, mas do João Marceneiro para ela te ensinar a ler, em troca você
no mesmo Município de Rio Tinto, pertencente ao Estado tem que encher um tanque de água”. Então todos os dias eu
da Paraíba. Aos cinco anos, fui perceber que a casa que eu carregava água e ela me ensinava o ABC. Mas com três me-
morava era coberta de palha de coqueiro e o piso de barro ses eu inventei uma dor de cabeça, o que era mentira, mas a
batido, mas quando se é criança tudo está bem. minha mãe acreditou e eu deixei de carregar água e também
de estudar.
Aos oito anos eu já Eu tinha 7 anos porque
era convidado para pes- nas ruas de Rio Tinto
car siris e caranguejos, não tinha água nas ca-
usando como armadil- sas. Tinha torneira em
ha a ratoeira e a pitim- todas as ruas e tinha
boia. Certo dia, quando uma torre de concreto
eu e um amiguinho que era da minha altura.
chamado Duda, muito Eu botava a lata de vinte
humilde, de cor negra litros que dava a minha
que andava descalço, altura, eu puxava a lata
sem camisa, e só usava para minha cabeça e as-
calção todo sujo de lama, tomávamos banho na Maré, voltávamos sim facilitava no ban-
para casa alegres e meus pais nos perguntaram o que tínhamos fei- heiro da casa da moça, eu virava o pescoço e era desse jeito
to? Eu respondi: “Pegamos quatro caranguejos e dois siris”, e todos que eu resolvia.
riam. No dia seguinte era a mesma rotina. Certo dia, um caranguejo Eu vou falar do Girsso, porque no dia que eu o salvei,
me mordeu com sua pata em um dos meus dedos e eu chorei muito, não houve assunto de agradecimento. Os anos passaram, e
quando meu amigo Duda chegou e me perguntou por que eu chora- um dia eu morando em Costa Barros, no Rio de Janeiro, 20
va tanto. Tenho certeza que esta dor já passou e eu respondi a meu anos depois, um moço oferecia joia de ouro na minha casa,
amigo: “A dor já passou, mas o sentimento não”. E ele perguntou: e eu reconheci o moço e ele também. Aí foi aquela alegria.
“Que sentimento?”, eu respondi: “É de ser pobre muito pobre! Que O Girsso contou para minha mulher e meus filhos Sandra
para comer temos que pegar siris e caranguejos, outros meninos es- e Jorge e foi aquela festa. A todos ele deu joias, agradeceu
tão na escola”. O meu amigo Duda então me disse: “Você está rec- chorando e foi embora, e eu nunca mais o vi. Como é bom
lamando de ser pobre, e eu que não tenho pai?” eu parei de chorar, fazer o bem do amigo.
o abracei e falei: “Quando nós crescermos iremos trabalhar e Eu quero explicar das esmolas da “semana santa”. No
seremos muito felizes”, e ele me disse: “Se Deus quiser!”. Rio Tinto, tinha uma tradição de pedir esmola para se juntar
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A DURA REALIDADE Tentei conversar com ele, mas seu silêncio foi mais forte. A
partir daquele dia que fui entender o porquê do silêncio do
Um dia eu vi a minha mãe chorando e eu perguntei meu pai. Porque ele não tinha noção do que girava em volta
a ela silenciosamente porque ela chorava, ela passou a mão de si por ser analfabeto. Eu tentava conversar, mas ele falava
na minha cabeça e pegou uma panela. Encheu de água e bot- pouco. Eu pensei que assim que casar e tiver filhos, eu vou
ou um pedacinho de carne seca e disse que estava fazendo educa-los, e assim aconteceu. Minha mulher Penha se em-
uma “cabeça de galo” para a gente comer. A água ferveu, ela penhou e aconteceu porque ela deu a sua vida para educar
jogou a farinha e estava feito a cabeça de galo. Até meu pai os nossos filhos, e com a morte dela, eu fiquei perdido. 3
chegar com o pagamento era isso que acontecia, todos os meses depois eu encontrei a minha estrada e soube porque
fins de semana não termos nada pra comer. meu pai falava pouco. E os meus filhos, porque filhos falam
pouco comigo. Meu pai por não saber, e meus filhos porque
querem.

PESCARIAS

Certo dia veio acontecer mais uma coisa, e eu fui até


a casa de fazer farinha de mandioca, para pedir massa de
mandioca para minha mãe fazer biju para a gente comer.
Aos 12 anos, fui trabalhar tomando conta de quat-
ro vacas, que minha tia Juvita tinha, mas eu trazia muitos
problemas para ela, por deixar as vacas irem para a lavoura Aos nove anos eu fui ajudante na marcenaria de
das pessoas, que vinham reclamar com ela, pois eu ia tomar um amigo do meu pai. Eu trabalhava e estudava seis me-
banho na maré com os amigos que antes eu falei. E assim fui ses. Depois saí da marcenaria, mas continuava a pescar.
dispensado. Acordava às 5 horas da manhã para buscar leite na vacaria.

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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

Uma vez, para surpresa da minha mãe, passando na ficaram perguntando quem foi. Só que eles olhavam muito
frente de uma casa, vi um jardim muito bonito, cheio de flo- para mim. Eu, desconfiado, corri muito, mas prometeram me
res, e eu, com inveja, entrei no jardim e pisoteei todas as flo- pegar. Passaram seis meses, vou saindo do colégio, eles me
res e fui embora, mas a dona da casa me viu e foi falar com pegaram e eu gritei que era covardia mais de 10 me baterem.
minha mãe, que me deu uma surra tão grande que me lembro A diretora que estava passando gritou: “Aquele que tocar
até hoje. em Noel será expulso do colégio. Noel não é capaz de matar
uma mosca”. Depois disso continuamos nos encontrando na
Eu e Duda continuávamos nas mesmas rotinas de maré e sendo amigos.
pescaria, até que um dia chegando ao porto, a maré estava
cheia, tinha muitas canoas amarradas, e eu achei de soltar
uma delas, sendo carregada para longe. Um pescador viu e
me pegou pelo braço para me jogar na maré, e eu chorava
muito por não saber nadar. Eu também carregava o almoço
de meu pai, pois ele trabalhava na estrada de ferro, longe de
casa. Essa estrada de ferro era da própria empresa de Rio
Tinto, que hoje é uma Cidade.
Um dia voltando do almoço, vi um menino mais
velho do que eu se afogando. Joguei-me no rio e consegui
salvá-lo. Ele se abraçou comigo e nós dois choramos muito.
Gilson era seu nome. E foi aí que aprendi a nadar.
Certo dia, uma senhora me perguntou se eu queria
vender verduras. Eu disse que sim. Comprei um balaio e saía
de rua em rua, também vendendo frutas. Com esse balaio eu
fazia frete e ganhava meu dinheiro.
Aos 10 anos, eu gostava de pegar bigu, quer dizer, Aos 11 anos fui trabalhar em plantação de arroz a 8
carona, em lugar perigoso de transporte onde o maquinista km de distância da minha casa. Levava na mochila um pouco
não via. Meu tio André era chefe geral da Estrada de Ferro. de farinha e feijão para almoçar. Uma vez, durante a Semana
Um dia falaram para meu tio e ele deu ordem para jogar óleo Santa lá em casa, a situação estava difícil, mas como era a
preto em mim, e assim o maquinista fez. Cheguei em casa tradição, eu aproveitei e fui pedir esmola para minha mãe,
todo sujo de óleo, minha mãe já estava ciente de tudo e eu e Duda me acompanhou porque a situação dele era pior do
que a minha. Era costume as pessoas arrumarem alimentos
levei uma surra. para oferecer. Os amigos e parentes fugiam, envergonhando
Era de costume todos os dias juntar a garotada para da gente, porque ser um menino pobre era muito difícil de
tomar banho na maré, e um dia eu saí escondido e dei um nó vencer um dia. Mas eu e Duda pensávamos que um dia iría-
na perna da calça de um amigo. Quando eles saíram do banho, mos vencer, e continuava tudo a mesma coisa.
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

TRABALHANDO COM AGAVE APRENDIZ DE VAQUEIRO

Nas lavouras de Agave, mais conhecido como sisal, eu


fui lá para conhecer o Engenho da cana de açúcar, e para faz- Aos 13 anos, fui tra-
er cachaça. Fui bem recebido, a moda deles, e não falavam balhar com Antônio de
de pagamento. Quando foi no fim da semana, nós fomos ao Maroca, e eu era seu
armazém da fazenda para receber, e o capataz perguntou: “puxa saco”, fazia tudo
“Você aí gastou quanto?”, eu respondi: “26 reais”. Ele olhou que ele mandava. Às 5
no caderno e disse: “Está certo, você tem saldo de 2 réis, os horas da manhã pegava
outros também”. Eu e meus colegas estávamos certos que um cavalo para apanhar
trabalhávamos pela comida, mas eu tinha que ir todo dia ao o leite para os filhos do
armazém, comprar tudo que precisava. Antônio de Maroca. Certo dia, ele comprou um cavalo
Nessa época conquistei a minha primeira namorada. de corrida e eu pedi para ele me deixar montar no cavalo, e
No primeiro dia eu vinha da casa dela, eram 9 horas da noite, ele deixou por ter muita confiança em mim, e foi meu mal,
foi quando veio quatro capatazes e disseram: “Menino: nós quando eu passava na frente de uma casa que tinha muita
iriamos te matar agora e te jogar na linha do trem, esta é a criação, eu quis parar mas não pude. E assim o cavalo ma-
lei daqui”. Eu não voltei mais, nem comentei nada com nin- tou duas galinhas e três pintos. O dono correu atrás de mim,
guém, eles matavam mesmo. mas não conseguiu me pegar. Cheguei à casa de Antônio
e gritei: “Segura o cavalo e o leite que aí vem um homem
Um dia tivemos querendo me pegar”. E corri para minha casa. Minutos de-
que parar os mo- pois o homem chegou à casa do Antônio e perguntou: “Este
tores das máqui- cavalo é seu? E o menino?”. Antônio perguntou o motivo
nas que benefi- e ele contou o que tinha acontecido. E disse: “Se ele se ne-
ciavam as fibras gar a pagar, eu vou matar aquele moleque”. Antônio então
do sisal, porque o falou para ele: “Vamos conversar?”. “Sim”, disse o homem,
homem que tirava “Eu pago metade e ficamos amigos”, e o homem aceitou.
o sumo da fibra Certo dia, Antônio comprou 10 bicicletas e me deu
estava passando para que eu alugasse de parcerias, mas ele não sabia que eu
mal. O mecânico não andava de bicicleta. Mas eu convidei os meus amigos
me mandou até a casa do xerife e eu fui e contei o que estava para levar as bicicletas até o lugar que eu iria alugar, e foi ali
acontecendo. E eu voltei com eles, e os capatazes disser- que eu aprendi a andar, e ele nunca ficou sabendo, e me elog-
am que se fosse mentira me matariam, e eu tremia muito de iava, como um bom instrutor. Meus amigos me davam maior
medo. Quando chegamos ao galpão, lá estava outro homem apoio, porque a gente jogava no mesmo time de futebol.
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

Palmeiras foi o primeiro time que joguei. Antônio tinha um Passeando uma cidade chamada Mamanguape, com-
rádio a bateria, e eu levava para mandar carregar, a uma dis- ecei a andar na feira quando escutei uma voz me perguntan-
tância de 5 km. Em Jaraguá não tinha eletricidade, mesmo do onde estava. Eu olhei e disse “em frente ao mercado”. Foi
assim eu me sentia feliz, porque Antônio me ensinou toda aí que percebi que ele era cego e pediu para leva-lo a outro
malandragem, como comprar e vender. Até hoje eu agradeço lugar, e eu o levei. Aí ele me deu frutas, e por isso eu digo
ao Antônio, por ter me ensinado de tudo um pouco. que já fui até guia de cego, porque nesta vida já fiz de tudo.
Certo dia, eu encontrei o Raimundo Sudário, que era Aos 14 anos ganhei de presente uma carteira de trabalho.
contra mestre de um boi de reis, me chamou para participar Fui trabalhar de carteira assinada. O Duda ficou feliz por
de “boi de reis”, e eu aceitei. Fazia de tudo, até carregar o boi mim. Ele não conseguiu por não ter 14 anos. Ele ficou triste,
para outro lugar, e um dia atravessando o boi numa canoa, porque seu sonho era comprar um par de tamancos. Eu o
esta virou, eu já sabia nadar, e assim eu salvei o boi e as abracei, agradeci e pedi para ele ter fé em Deus, que um
outras coisas. dia seríamos felizes. Ele abaixou a cabeça e disse pra mim:
Certo dia eu deixei de brincar no “boi de reis” e fui “Eu vou embora pra Recife”, e, chorando, me deu adeus. Eu
ser ajudante de palhaço, tinha a maior liberdade de entrar no fiquei trabalhando, e, 3 meses depois, Duda voltou, porque
circo, por ter um número no braço, feito com tinta de caneta, uma das duas camisas que ele tinha estava rasgada, e ele
tomava banho com muito cuidado, mas um dia a tinta saiu. me pediu para eu comprar uma camisa para ele. Comprei e
À noite fui entrar no circo e na bilheteria não me deixaram ele ficou muito feliz. E voltou para Recife. Depois só voltei
entrar. a falar com o Duda aos 40 anos. Após nos encontrarmos e
nos abraçarmos, choramos muito, com a alegria por termos
vencido todas as barreiras.
Aos 15 anos e 4 meses, fui mandado embora da firma
que estava trabalhando. À noite, uma moça pediu para eu
ajudar, eu fui e ficamos amigos demais. Certo dia ela me
agarrou e eu gostei. Um dia o chefe geral viu e me mandou
embora. Aos 16 anos, um amigo me chamou para trabalhar
de ajudante de mecânico, em outra cidade da Paraíba, cham-
ada Sapê.

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Com ela tivemos um filho por nome de Jorge Luís. Foi muito dizendo que fazia o mesmo serviço por duas vezes mais o
bom, mas depois de dois anos e sete meses veio a separação. valor do outro homem que estava doente, e garantiu para o
Eu fiquei sozinho mais de um ano. No decorrer do tempo, xerife que para ele aquilo era mole. O xerife respirou fundo
eu trabalhei em outras firmas como a Ciferal Metropolitana, e disse: “Está certo, mas se você não cumprir a palavra vai
Casbrasa e Carroceria Pilares. Todas fábricas de carroceria morrer”. Disse o homem estar certo. O mecânico me cham-
de ônibus. Até que fui trabalhar na Lanificio, uma fábrica de ou e disse: “Ligue o motor para as maquinas funcionarem”.
tecido em Jacarepaguá. Eu fui morar num quarto, era muito
úmido e eu não tinha cama, dormia num monte de jornal. Eu Eu fiz, mas quando foi três horas após, o homem que prom-
sentia que a solidão me devorava, eu rezava, pedia a Deus eteu o serviço chamou o mecânico responsável e pediu pelo
para ele mostrar uma namorada que me amasse de verdade, amor de Deus chorando para ele ir embora. O mecânico me
que me compreendesse. Eu daria toda a minha vida. Eu vivia chamou e mandou parar o motor e chamou todos que esta-
longe dos meus pais, a quem eu amo tanto, apesar da dis- vam presente, e disse: “Vou mandar o homem embora, senão
tância, eu queria encontrar esta namorada para dividir este o xerife vai matar ele”.
amor com meus pais. Na fábrica eu conheci muita gente até Com o silencio, o
que eu conheci um rapaz por nome de Agamenon, passou a xerife, e seus capa-
ser meu amigo, disse para mim que tinha um compadre que tazes iam chegando e
tinha uma casa com quarto vazio e podia alugar para mim. perguntou em voz
Eu pedi para ele acertar e falei com o Gonçalves, o dono da alta porque estavam
casa. Eu fiquei morando com direito a refeição, só não sabia parados? Respondeu
que na casa sempre vinha uma moça muito bonita que era Lucas, o mecânico
irmã do Agamenon.
Certo dia eu a vi e fiquei pensando nela a noite. responsável: “Este
Como costumava rezar, pedi a Deus pra me dar um amor homem não aguenta
compreensivo, que me entendesse. Passaram-se uns dias, eu mais trabalhar, por
estava jantando quando ela entrou e deu boa noite. Eu lhe isso paramos”. O
cumprimentei e convidei para jantar. Ela agradeceu e sentou xerife disse: “Ele prometeu e vai trabalhar”. Chamou os ca-
no sofá e cruzou as pernas. Eu fiquei encantado com a moça. patazes e mandou dar um jeitinho nele, mas não matar. “Eu
Terminei de jantar, saí para frente da casa, estava pensativo quero ver todos trabalhando”. Os capatazes pegaram o
quando duas crianças chegaram perto de mim e pergunta- homem e esfregaram um cassetete no nariz até tirar sangue.
ram: “Está triste?” Eu respondi: “Não, vamos comprar bala”. O homem cambaleando, voltou a trabalhar. O xerife gritou:
Aí ela disse: “Posso ir com vocês?”. Eu senti meu sangue “Todos trabalhando! se deixarem este homem fugir, todos
correr em todo corpo, eu fiquei muito feliz e disse para ela vão pagar”. E foi embora. Todos ficaram tremendos de medo.
que era um grande prazer, e foi assim que começou o nosso daí a uma hora eu vi o homem caído, chamei o responsável
namoro. Comprei bala para as crianças, todas ficaram satis- e disse para ele, que foi até o homem, que pediu pelo amor
feitas, e eu muito mais. de Deus para ser liberado. O responsável então me chamou
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e mandou-me parar o motor, reuniu todos e disse: “Este VIAGEM PARA O RIO DE JANEIRO
homem, vou mandar embora, mas vamos dizer que ele saiu
para fazer necessidade e não voltou mais, certo assim?”. To- Eu tinha 18 anos, mas tinha dois problemas, que eram
dos aceitaram, e o homem corria muito dentro do sisal. mulheres que esta-
Lucas me chamou e disse: “Vai na casa do xerife e diz vam grávidas e daí
que o homem sumiu”. Eu peguei um cavalo, fui até a casa nasceram duas meni-
do xerife, quando ele me viu perguntou o que aconteceu. Eu nas, que eu chamava
respondi o que tinha acontecido. Ele ficou furioso, chamou de namoradas. Isto
dois capatazes, eles pegaram os cavalos e saíram correndo era importante,
e eu atrás. Quando chegamos ao setor de trabalho, o capa- porque elas eram
taz gritava muito alto “Quero o homem”. Todos tremiam de maravilhosas. No
medo de morrer. O Lucas pedia calma, que ia ficar tudo bem.
Esta fazenda chamava-se Dr. Corrais, ele acostumava matar mesmo ano, em
e jogar na linha do trem, isso em 1955, em Sapé, na Paraíba. 1959, eu viajei para o Rio de Janeiro. Chegando aqui, eu fui
Daí pra frente eu não sei o que aconteceu, porque eu fugi às morar na casa da minha tia Jovita. Dois dias após, eu fui tra-
5 horas da madrugada. Quando cheguei em casa contei tudo balhar de ajudante de mecânico com o meu primo Gil. Ele
para meus pais. era o meu chefe na firma: Sambra de Mármore Brasileiro. Eu
Aos 17 anos, fiquei desempregado. Seis meses de- comprei um quarto no morro do Jorge Turco, em Coelho
pois, fui trabalhar de ajudante de eletricista numa empresa Neto, mandei que uma das mulheres viesse. E esta foi a
ligada a “Paulo Afonso”. Os meses passavam e eu ganhava Lourdes e a nossa filha Sílvia. E ela veio, mas com poucos
a confiança dos meus chefes a ponto de ser chamado para meses veio a separação. Com isso eu viajei para São Paulo,
trabalhar na “Paulo Afonso”. Mas estava servindo o Tiro de lá trabalhei dois meses e não gostei. Voltei para o Rio de Ja-
Guerra de Rio Tinto, e só podia aceitar o convite depois que neiro, mas quando eu viajei para São Paulo, eu ia levar min-
desse “baixa”, até porque todos gostavam de mim e fui con- ha filha para casa da minha tia Tonha, onde eu morei dois
vidado para trabalhar na inauguração da primeira festa de meses, mas a Lourdes sua mãe não deixou e foi embora para
Rio Tinto com luz elétrica da Paulo Afonso.
Na passagem dos anos de 1958 para 1959, tudo ia Rio Tinto, Paraíba, levando a menina.
bem, mas um dia eu recebi uma ordem para dar um recado Na volta para o Rio de Janeiro fui morar no barraco nos
ao engenheiro. Fui correndo e dei o recado que a fábrica da fundos da casa da minha prima Maria Magra, eu arrumei em-
Vila Regina estava parada. O Engenheiro Dorval não ligou prego de ajudante de serralheiro na fábrica Asberit, trabalhei
para o que eu falei. Horas depois o diretor chegou e per- 15 meses e pedi para me mandarem embora, e fui trabalhar
guntou: “Recebeu o recado que eu mandei para Noel?” E com meu primo Gil novamente na mesma fábrica, Sambra
ele disse que não, na minha frente. Eu nunca fui covarde, de Mármore. Mais 1 ano e voltei novamente para Asberit como
o chamei de engenheiro moleque. Outros nomes... Naquele meio oficial de serralheiro. Os meus chefes gostavam do meu
momento fui dispensado. empenho, foi quando eu conheci uma mulher por nome de Ina.
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casal ofereceu pra dormir na casa deles, e nós aceitamos. O CASAMENTO


Muito emocionado, no dia seguinte eu arrumei um emprego
de torneiro mecânico na fábrica de óleo comestível Pedro A partir daí foi muito rápi-
Machado. Eu fui correndo para dar a notícia a ela que me do para o casamento, até
abraçou chorando. “Querido, Deus é grande. Vamos vencer. porque eu fui trabalhar na
Eu vou alugar uma casa agora mesmo, na rua perto da Torre Bava do Brasil, fui morar
da Radio Iracema”. Ela alugou uma casa perto do meu tra- novamente em Colégio, e
balho. Tudo bem, a casa não tinha água. Ela gostava muito ela em Costa Barros com o
da minha irmã e foi busca-la em Rio Tinto, na Paraíba. Pas- seu irmão. Eu e ela nos vía-
saram uns dias, a Penha adoeceu e eu fiquei desesperado, mos três vezes por semana e assim passaram-se seis meses,
mas logo ela ficou boa. Eu saí da firma que trabalhava porque quando eu fiquei sabendo que meus pais não estavam bem, e
ganhava pouco e fui trabalhar na fábrica “Gás Butano”, que sempre adorei pra mim que não tinha nada mais importante
é esmalte de torneiro ferramenteiro. Ficou melhor e casamos do que eles, talvez seja por isso que Deus me dá tudo. Às
em Fortaleza. Aí o amor ficou mais forte. vezes eu penso que Deus me dá mais do que eu mereço,
Vou falar do futebol da firma. Não tinha lugar para porque eu faço tudo que posso, eu tenho que agradecer mui-
mim, até porque eles eram os melhores. Foram campeões to a Deus. Com isso, eu pedi para sair da firma, contei pra ela
Varaversem, então eu fiz um time de futebol, seu nome era o que estava acontecendo e ela o que eu ia fazer. Disse que
Novo Mundo. Convidei os meus amigos, meu cunhado era iria ao encontro dos meus pais, que é o meu maior amor da
ponta direita recuada, a bola era minha, as camisas eram do minha vida, mas que eu tinha dois amores que era ela e meus
Tonzinho meu cunhado, o meu vizinho era o lateral e trouxe pais e eu não queria dividir porque a amava demais, então só
os seus amigos que tinham jogado junto no Ceará F.T.B.C. tinha um jeito que era ela viajar comigo para a casa dos meus
21 de Janeiro era o time patrocinado do torneio de 8 times. pais na Paraíba e lá a gente casava. Ela disse: “Sim, a gente
Teve o sorteio e para o meu azar peguei o melhor time, que foge e depois escreve para meu irmão explicando tudo”.
era o Gás Butano. Tudo bem, primeiro jogo do meu time,
cheio de torcedor puxa saco do Gás Butano, 30 minutos para DE VOLTA AO ACONCHEGO
cada tempo. Aos 15 do segundo tempo, perdemos de 1x0.
Minha esposa Penha estava grávida. Eu pedi minhas E assim foi feito. Chegamos à casa dos meus pais e
contas para voltar para o Rio de Janeiro. Assim aconteceu. eu expliquei tudo e eles nos receberam muito bem. A vida
Viajamos e a Penha estava grávida de 7 meses. No Estado de continua bem, mas eu estava procurando emprego, e não en-
Minas Gerais, na cidade de Muriaé, ela passou mal, eu levei contrava. Ela teve uma ideia, convidando para que a gente
para a maternidade e o ônibus seguiu. Nós ficamos. As mul- fosse para Fortaleza, até porque eu conhecia o seu pai e seus
heres cearenses não ligaram, não gostam de ajudar. Grita- dois irmãos tonzinho e Cleanto. Sua mãe era falecida. Lá somos
ram: “Ô motorista, vamos embora e deixa que ela vai ganhar conhecidos, fica mais fácil de arrumar emprego. Nós aceitamos
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e meus pais também, até alta: “Isso está errado. Eu todo enlameado não vou descer”.
porque de Rio Tinto à Natal Aí eu virei bicho: “Você vai descer sim, nem que seja na
são duas horas de ônibus e marra. Estou sujo de carregar ônibus de Natal a Mossoró, e
para Fortaleza são 6 horas. este a gente vai levar até Fortaleza”. Todos os passageiros
Às 4 horas saímos de Rio gostaram da ideia. O rapaz tirou o sapato, arregaçou a calça
Tinto, às 6 horas estávamos rindo e aceitou a ideia, e falou para mim: “Você está certo.”
em Natal. Dormimos em uma Eu falei para ele: “Nós vamos chegar mais tarde, não tem
pensão e às 7 horas da manhã problema, porque este mundo é um circo cheio de palhaços,
não tinha ônibus porque tinha chovido muito, mas falaram infelizmente eu sou um deles”. O rapaz riu, chegamos às 7
que tinha um homem que ia arriscar com o seu ônibus até horas em Fortaleza. Uma viagem que se faz em um dia, a
Mossoró. E fomos até Mossoró. gente levou três dias e sem dinheiro.
Saímos de Natal às 7 horas da manhã e lá vai a gente. Também pegamos um Jipe até a casa do seu pai
Daqui a pouco o motorista pediu para a gente empurrar o Antônio, meu sogro e meus dois cunhados. Quando che-
ônibus. O pior foi à gente levar o ônibus até Mossoró, no Rio gamos foi aquela alegria. Todos perguntaram como foi a
Grande do Norte. A vida continuou tudo bem, mas chegamos viagem, mas somente seu Antônio, meu sogro, perguntou
uma hora da madrugada, e nós dois fomos para a polícia se eu tinha profissão. E meus cunhados só escutavam. Eu
nos informar onde se comprava passagem, mas não tinha disse que sou torneiro mecânico, todos disseram que é fácil
devidas condições na estrada, mas de manhã pode ter. Eu de encontrar emprego. Ficou tudo bem e nada de encontrar
perguntei se era perigoso. Eu ficava aqui. Eles disseram que emprego. Todos já olhavam de banda. Certo dia a Penha pas-
não, então eu forrei uma barraca de feira para minha amada sava ferro na minha camisa quando chegou meu cunhado
Penha dormir. Eu vigiava quando chegou o vigia do mer- dizendo “Primeiro a minha”. A Penha o mandou esperar um
cado e perguntou o que eu estava fazendo. E eu expliquei, e pouco. Ele pegou uma brasa e jogou em mim. Eu dei um
ele disse que também ia lá ajudar. Na rua lá na frente tinha empurrão, meu sogro viu e pegou uma peixeira. Correu pra
um homem que tem um ônibus. Costumava fazer este tipo de cima de mim e eu corri pra rua e fiquei sentado no meio fio
viagem de Mossoró a Fortaleza. Costumava sair 6 horas da da rua. Já era noite quando a Penha chegou me chamando
manhã. “Daqui a pouco vamos lá” Nesse momento a Penha para entrar em casa. Eu falei que nunca entrava naquela
acordou e nós fomos tomar café, depois fomos comprar pas- casa. “Vou dormir na rua até amanhã. Eu vou arrumar um
sagem. emprego e venho te apanhar. Sobre a mim, não ligue, eu me
Despedimo-nos do vigia e viajamos. Só não sabíamos viro, minha querida”. Ela disse “Jamais, aonde você for eu
a hora de chegar, mas tudo bem, já estava acostumado de vou junto. Mesmo que custe as nossas vidas, tem que ser as-
empurrar o ônibus, e não deu outra coisa. Eu escutei o mo- sim até a morte para a gente, é uma prova de amor”.
torista dizer para todos empurrar o ônibus. Eu nem liguei, Eu falei para ela que estava tudo bem, que iria para
já estava acostumado. Mas um passageiro reclamou em voz uma praça dormir, no banco da praça. Quando chegamos um
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

Certo dia chovia muito a tarde, quando veio um raio e um filho”. Olhei para aquelas pessoas cruéis e aqueles que
caiu na nossa casa, perto da gente. Naquele momento faltou não ajudaram. Pedi forças ao meu Deus, peguei um taxi até
luz, a Penha caiu no sofá e eu fiquei sem noção do que fazer. a maternidade. Lá fui muito bem recebido. Fui até a recep-
Só depois levantei a Penha e abracei as crianças. Todos le- ção, contei minha história que estava tudo bem. A gente veio
varam um susto muito grande. Esta noite não fui trabalhar, até o posto rodoviário, onde os guardas prometeram arrumar
porque faltavam 18 dias para o bebê nascer. As 6h fomos passagem para o Rio de Janeiro.
para a maternidade, contei tudo ao médico, ele mandou que Eram 8 horas da manhã, já com fome, fomos no hotel
ela ficasse em observação. Voltei pra casa, comuniquei à e fizemos um lanche, e assim passamos o dia. Quando foi
firma. No dia seguinte, fui até a maternidade, ela continu- a noite parou um ônibus que tinha um motorista que vinha
ava em observação. Voltei à noite e ela tinha ganhado uma da Bahia, eu contei minha história e ele mandou entrar no
menina linda, seu nome era Daniela. Na Maternidade Nossa ônibus que iria para São Paulo. E saltamos em Três Rios às
Senhora de Fátima, em Nova Iguaçu, no dia 11 de fevereiro 00h30. Ficamos na estação ferroviária até as 6 horas da man-
de 1972, às 14h, nascia uma bela criança com o nome de hã. Ela estava cansada, tirava um cochilo em cima das malas.
Daniela. Foi um parto complicado para as duas, até porque Despertei-a e perguntei se queria um café, e ela aceitou. Eu
tivemos problemas, mas foram resolvidos. falei pra ela “Você fica aqui esperando que eu vou arrumar 2
Agora somos três, Jorge, Sandra e Daniela. Eu pensei passagens. Estamos sem dinheiro. Espere um pouco que eu
que precisava de mais conforto para esta gente, e saí da fábri- chego logo”. E fui à empresa de ônibus falar com o porteiro
ca de azulejo e fui trabalhar na fábrica de garrafas térmicas que queria falar com o dono. Ele deixou. Eu disse à ele o que
Aladim. Com o dinheiro da fábrica de azulejo, arrumei mais tinha acontecido comigo, disse o meu nome e ele me disse
ou menos... Mudamos para casa nova, mas faltava terminar que eu era xará dele. As 2 passagens estão nas suas mãos.
muita coisa. Mas eu estava trabalhando mais. Surgiram as Eu agradeci muito e fui correndo até minha querida Penha.
dificuldades financeiras, fui obrigado a arrumar outro em- “Consegui as duas passagens, o dono da empresa tinha meu
prego. Saí da Aladim e fui trabalhar na fábrica de produtos nome, e era muito gentil”. Foi assim que nós viajamos de
de beleza “Loreal”, isso sem falar das 3 firmas pequenas que Três Rios para o Rio de Janeiro.
passei.
Em 75, entrei na “Loreal”, aí sim comecei a arrumar
a nossa vida. Terminei a minha casa e tudo corria bem. Um A VOLTA PARA O RIO DE JANEIRO
dia, a Penha me perguntou se seria bom ter mais um filho,
eu disse sim. Certo dia ela me falou que estava grávida. Foi Depois disso, vou contar uma história que aconteceu:
uma gravidez bem cuidada e nasceu uma menina muito sau- minha querida mulher Penha, para a minha surpresa, a en-
dável. A Penha passou bem. A menina nasceu às 12h45 no contrei chorando, e eu assustado perguntei se era a dor do
dia 16 de julho de 1977, sua mãe Penha achou por bem botar parto. Ela respondeu que não, que era medo de me perder.
seu nome de Carmen Nazaré, que era o nome das nossas Eu disse: “Jamais farei uma coisa dessas, porque eu te amo”.
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

E embarcamos para o Rio de Janeiro. Chegamos às 3 da Nossa cama eram quatro esteiras forradas no chão, o
manhã na casa do seu irmão, meu cunhado Agamenon. berço da minha filha era uma mala forrada, o fogão jacaré,
Dois dias após, mudamos para Jardim Novo, em Realengo. panela não tinha, era lata de banha. Fomos muito humilha-
Voltando ao passado de maneira diferente, minha esposa es- dos, mas o tempo passou.
perava uma criança. Fui trabalhar em uma metalúrgica em Com 7 meses morando neste quarto, mudamos para
Vila Isabel. uma casa que era do sr. Lolinha, dono de um armazém. Já
Tudo era difícil, não tínhamos dinheiro. Minha filha tínhamos dado a volta por cima, quando fiquei desempre-
estava para nascer. Já tinham dois meses de firma, pedi um gado por 2 meses, mas ela era dura na queda. Então arrumei
emprego que resolveu meu problema naquele momento, mas um emprego na Fábrica Klabin de azulejos. As coisas mu-
até a criança nascer foi uma luta grande por morarmos na daram muito, porque tínhamos tudo e mudamos para uma
casa dos outros. Até que chegou o dia 15 de Maio de 1966, casa grande na Estrada Botafogo, moramos lá por três anos,
era 1h da manhã, a Penha começou a passar mal. Eu fui pro- mas tínhamos que ter nossa casa própria. Até que apareceu
curar um carro e procurei muito. Mas naquele tempo não uma casa em Nova Iguaçu. Comprei e nos mudamos. Nessa
era um trabalhador que tinha um carro. Chovia muito, de época já éramos quatro, porque o Jorge já morava conosco.
repente eu vi um carro da polícia militar, dei sinal, eles para- Há mais de 2 anos trabalhava a noite, e durante o dia pre-
ram. Falei o que estava acontecendo, eles prestaram socorro parava o terreno para construir uma nova casa, a casa dos
ao hospital do SASE de Realengo. sonhos. Como trabalhava a noite, eu ia preocupado porque
As 4h da manhã nas- lá era um pouco deserto e tinha duas crianças, o Jorge e a
ceu Sandra Regina Matos Sandra.
Batista, à luz de vela, porque
naquele tempo era costume, CONSTRUINDO O LAR
pelo menos de horas. É que
o povo esquece-se do que Deus nos dava muita
foi o Rio de Janeiro no pas- força. Eu estava con-
sado. struindo a casa devagar
Eu tinha que arrumar com 7m30 X 12m. Cer-
um novo emprego e alugar uma casa. Na Estrada Rio do to dia a Penha me disse
Pau, em Anchieta, fui até a uma fábrica de manhã e arrumei que estava grávida e eu
o emprego na Albino Mendes. Mudamos para Costa Bar- achei bom. Ela então
ros, alugamos um quarto na Rua Coronel Moreira César, a começou o pré-natal e
qual a proprietária era D. Santinha. Dei 2 meses adiantados sugeriu uma ligadura de
e fomos morar lá sem nada, mas tinha um homem de muito trompas, eu concordei. Tudo estava planejado.
caráter e amor.
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

Em 1991, uma filha começou a fazer faculdade, em mães. Daí pra frente correu tudo bem, mas Penha veio a ficar
1992 eu e minha mulher já pensava em educas os outros. doente com artrose, que levou um ano na cama, sem poder
Em 1993, minha mulher viajou para o Ceará para casa dos levantar. Foi muito sofrimento, mas botamos uma senhora
seus parentes e lá passou mal, teve que voltar. Em 1994 eu para tomar conta da casa até ela ficar bem. Eu estava pen-
e ela planejamos minha aposentadoria para 1995. E assim sando em mudar de emprego. Falei com ela e ela me repro-
aconteceu. No fim do ano, mês de outubro, ela teve uma re- vou. Eu dei um tempo e fiz a mesma proposta, e ela aceitou.
caída aonde veio a falecer, no dia 18 às 19 horas. Em no- Conversei com meu diretor para me mandar embora da fir-
vembro do mesmo ano, eu recebi o primeiro pagamento. ma. Fui trabalhar na Sheel do Brasil, parecia tudo bem, com
No dia 8 de dezembro, eu estava quase louco de saber que carro, ar condicionado...
ela não estava entre nós. A nossa intenção era passear de A casa estava pronta, mas eu via a minha mulher
Norte a Sul, até porque os nossos filhos estavam crescidos triste. Pensei o que estava acontecendo. Perguntei e ela não
e todos formados. Nós teríamos uma outra lua de mel, ia andava bem, já estava cansada daquela vida, naquele lugar,
recordar o passado, as coisas boas, as ruins que serviriam a sua vontade era de mudar. Mas como fiquei muito abalado
de experiência, as viagens sofridas e alegres que passamos, e preocupado, eu pensei em ir embora. E desta vez eu levei
como a de Guapimirim, quando ela estava no Rio em cima meus filhos para minha mãe ver, já que meu pai morreu e eu
de uma pedra e eu catava para ela uma música: “Sim, so- não tive o prazer dos meus filhos conhecerem o meu pai.
mos dois, começo de vida somos dois, querida enquanto a Os dias passavam, até que um dia o telefone tocou,
estrada estiver florida seguimos, querida, com os olhos bril- era meu cunhado convidando par eu trabalhar numa firma em
hando de felicidade”. Isto aconteceu no rio de Guapimirim, Belém do Pará. Eu fiquei de dar a resposta, falei com minha
no ano de 1965. Jamais iria imaginar que viéssemos a nos mulher e ela ficou satisfeita. Cheguei à firma, pedi monha
casar. Fomos muito felizes, até que a morte nos separou. demissão e fui atendido. Comprei passagens para Rio Tinto
De 1995 até 2001, os acontecimentos, a formatura do e depois para Belém. Assim aconteceu. Viajamos direto para
Jorge, o casamento da Daniela, o casamento do Jorge, a for- ver minha mãe e toda família. Chegamos e meus filhos foram
matura da Carmen. No nascimento do Lucas, Jorge comprou conhecer a família, e assim passamos 11 dias e continuamos
uma casa que a Daniela morou até ele voltar de Santa Catarina. a viagem para Belém. Até chegarmos foi muito difícil, fomos
Volto a falar da minha vida, porque não falar do recebidos por meu cunhado tonzinho, que nos levou para sua
meu pai? Sei que o destino marcou por Deus a nossa sep- casa até eu arrumar uma casa. Assim aconteceu. Aluguei uma
aração. Meu pai partiu quando eu mais precisava dele. casa e mudamos depois eu arrumei emprego na firma Catra
“Pai, eu era um homem, mas para você eu era uma cri- Brasileira da Amazônia, minha função era Supervisor Geral
ança. Às vezes eu corria atrás de você para pedir consel- de Mecânico. Logo eu desenvolvi um sistema de produção
hos, e você segurava minha mão tão forte quando eu caía”. que chamou atenção de toda diretoria, que elogiou muito.
“Falar de você, minha querida mãe, pra mim você é a flor Meus filhos foram estudar em colégio diferente da Daniela,
perfumada do jardim do meu coração”. mas os colégios eram muito bons. Os vizinhos eram uma
maravilha. Para ter uma ideia, entrava na firma e saia quan-
FIM do eu achava que tinha cumprido com a minha obrigação,
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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

e assim passaram 3 meses. Nada de receber as promissórias em 1983 e fui trabalhar na Rio Cop. Mas no decorrer desse
da minha casa que vendi em Nova Iguaçu. tempo aconteceu muita coisa.
Criamos uma Associação de Moradores e por meio da
COMEÇO DE UMA NOVA VIDA mesma arrumamos assistência médica e outros benefícios a
mais para fazermos uma capela de nossa senhora de Nazaré,
Então tomamos uma decisão de voltar para o Rio de no terreno doado por Dom Adriano, bispo de Nova Iguaçu. O
Janeiro. O certo era a gente ficar, mas era preciso a firma terreno fica de lado com a minha casa. Criamos uma área de
me dar um aumento muito bom, que desse para cobrir to- lazer, um time de vôlei, eu participei da fundação do partido
das as despesas. A firma não aceitou e fui obrigado a sair. PDT, a Penha participou de debate na rádio Solimões para
Vendi tudo para voltar. Quando chegamos à Nova Iguaçu, melhoramento do bairro Jardim Nova Era em Nova Iguaçu.
ficamos na casa da Dona Zefa, uma antiga vizinha. Fiquei Nós temos tantas coisas a relatar que fogem da
até o dia seguinte, que foi o suficiente para alugar uma casa memória. Certo que minha família gostava de trabalhar com
e mudar para uma rua ali perto, e começamos tudo de novo. a comunidade, em 1983 um colega me chamou para trabal-
Eu arrumei um emprego numa metalúrgica de montador har na Rio Cop, e eu fui. Lá eu acertei todos e fiquei trabal-
mecânico e meus filhos arrumaram colégio para estudar. E hando. Foi aí que eu e a Penha pensamos em mudarmos para
comecei a luta junto com o meu advogado, para ter a min- Pavuna por vários motivos. Por falta de desenvolvimento,
ha casa de volta. Estava alugada. Fui até o Aroldo, ele foi até porque meus filhos tinham que estudar a noite e outros
quem alugou a casa, eu o chamei para fazer a homologação, problemas, mas os filhos cresceram e tudo ficou mais difícil,
isto é, pagar os 10 meses do contrato que faltava um ano. E até porque minha mulher Penha estava passando por proble-
ele aceitou. Eu paguei o valor do aluguel de 10 meses, ele mas de saúde muito sério. Eu trabalhava na Rio Cop e minha
me deu a chave da casa e eu com minha família fomos até família se tratava porque tinha “plano de saúde”.
o advogado, expliquei pra ele o que tinha acontecido e ele
resolveu chamar o Roberto, que era quem tinha comprado
minha casa, só que não tinha pagado, por isso tinha que fazer NOVA CASA
a homologação. Então o Roberto aceitou e assim ficou tudo
certo. No decorrer do tempo, criamos uma Associação de Quando foi em 1985, nos mudamos para Pavuna, sendo as-
moradores para melhorar o bairro Jardim Nova Era. A sede
era na nossa casa e nós começamos a trabalhar com os mora- sim ficando mais fácil para toda família, mas eu pagava alu-
dores. Tinham reuniões aonde discutíamos os problemas dos guel. Eu pensei em comprar um apartamento, mas a minha
moradores. Fomos fundadores do partido do PDT, de Nova mulher falou: “Se você comprar apartamento nossos filhos
Iguaçu, conhecemos Dom Adriano, o Bispo de Nova Iguaçu. ficarão sem condições de fazer uma faculdade, e eu comprei
A minha filha mais velha, Sandra, estava querendo ir para o um barraco na Rua Caminho do Job, para transformar numa
convento, certamente para ser freira, mas 2 anos depois vol- casa, e assim eu fiz em 1986. Nossa família mudou para casa
tou para casa. Dias e anos foram passando, eu trabalhei na nova na Rua Caminho do Job, mas faltava fazer muita coisa.
firma Balprens, nos anos de 1981 e 1982, trabalhei na firma Eu fui fazendo aos poucos até 1987. Em 1988 até 1990, as
Gulivon de encarregado de manutenção mecânica geral em coisas foram muito difíceis.
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O Menino e a Maré

CANTORIAS

À MEU AVÔ

Um menino que nasceu,


cresceu, evoluiu, e aprendeu.
Às vezes na marra, na desgraça.
Sem saber do seu futuro.

Um menino que não sabia o que fazer,


e sem medo, mesmo que em sua cara batessem.
Vem de lá, desbravando horizontes.
Passando pela ponte, sobre a maré.

Uma criança que perdeu a sua infância,


e logo cedo começou a trabalhar.
Ocupado em qualquer coisa,
só para sua família poder ajudar.

Logo que nasceu, algo deu errado,


seu nome foi trocado, mas foi bem tratado,
mesmo não tendo avô.

Cresceu assim, sem delicadeza.


Construiu uma família, conquistou sua riqueza.
Com sua honestidade e com força de vontade,
fez de sua história um exemplo de verdade.

O tempo passou, as marcas ficaram.


E na sua ignorância, reflexo da infância,
desse homem aposentado,
boas lembranças ficarão guardadas.

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Noel Calixto Batista O Menino e a Maré

O MENINO E SEU PAI A PARTIDA

Certo dia eu assisti uma cena Meu amor partiu sem saber que voltava.
de um pai com seu filho: Fiquei com o coração sangrando de dor.
o menino pediu para seu pai ler uma poesia Marcas que o tempo não irá apagar.
que estava escrito em um muro.
Lembranças dos dias tristes e alegres
Seu pai respondeu que que passamos juntos.
não perdia tempo com besteira.
Quando eu morrer:
O pobre menino ficou triste. nos encontraremos no outro lado da vida,
Triste por saber que seu pai era analfabeto. e seremos felizes!
Analfabeto não é somente aquele que não sabe ler,
E sim aquele que não “quer” ler.

AMOR DISTANTE

Com aquele amor distante,


alimento a esperança,
de encontra-lo outra vez.

Se um dia eu voltar,
certamente vou lembrar,
tudo que lhe falei.

E se você esqueceu:
eu te lembrarei!

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