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08 A escrever escrevo-me
Dossiê Adília Lopes

Tamanha Poesia • v. 4, n. 8 • jul.-dez./2019 • ISSN 2525-7900


A escrever escrevo-me
2 Dossiê Adília Lopes

ISSN 2525-7900
volume 4 | número 8 | jul.-dez./2019
Belo Horizonte - MG - Brasil

Tamanha Poesia • v. 4, n. 8 • jul.-dez./2019 • ISSN 2525-7900


EXPEDIENTE

Organização deste número


Silvana Maria Pessôa de Oliveira
Roberto Bezerra de Menezes
Valéria Soares Coelho

Conselho Editorial
Erick Gontijo Costa (CEFET-MG)
Patrícia Chanely Silva Ricarte (UFMG)
Patrícia Resende Pereira (UFSCar)
Raquel dos Santos Madanêlo Souza (UFMG)
Roberto Bezerra de Menezes (UFMG)
Silvana Maria Pessôa de Oliveira (UFMG)

Revisão
Silvana Maria Pessôa de Oliveira
Roberto Bezerra de Menezes
3
Valéria Soares Coelho

Projeto Gráfico e Diagramação


Roberto Bezerra de Menezes

Capa: Tiago Cardoso Matte a partir de fotografia da autora. Ao final, reprodução do quadro
“Figuras”, de Marcos Coelho Benjamin.

Edição
Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG
(31) 3409-5134
jmitraudpessoa@gmail.com

Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea


polopesquisapoesia@gmail.com

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SUMÁRIO

8 Silvana Maria Pessôa de Oliveira, Roberto Bezerra de


Menezes, Valéria Soares Coelho
Apresentação

11 Mariana Pereira Guida


Arrumar a casa, cerzir o poema: a prática da citação
como reciclagem em Adília Lopes

24 Milena Maria Ferreira de Paula


Adília Lopes: uma poética da leitura

39 Patrícia Resende Pereira


Chamilly, Milly: a nova leitura das Cartas portuguesas
proposta por Adília Lopes em O marquês de Chamilly
5
e O regresso de Chamilly

50 Paulo Alberto da Silva Sales


Hibridismo e inespecificidade em Manhã, de Adília
Lopes

62 Roberto Bezerra de Menezes


Dos infortúnios de Adília Lopes

75 Valéria Soares Coelho


Da literatura como atividade erótica: Adília Lopes e
Ana Cristina Cesar

96 Juliana Gonçalves Lobo


Erotismo e religiosidade em O peixe na água, de
Adília Lopes

106 Carla Lorena da Silva


A entropia como mecanismo para o fazer poético na
poesia de Adília Lopes

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Pateta, patética, peripatética: eu.

Adília Lopes
in Irmã barata, irmã batata

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Apresentação

Os exercícios de leitura que aqui se apresentam bus-


cam oferecer uma visão do que é a poesia prismática de Adília
Lopes. Se aceitamos a premissa da própria poeta, para quem:
“Sou, logo sou/ (um texto/ é um rosto/ um rosto/ é um tex-
to)” (LOPES, 2014, p. 476), os oito textos que compõem este
Dossiê podem ser pensados como faces de uma figura poli-
valente, vocacionada a mover-se, por um lado, no interior de
um universo de referências e citações, espécie de diagrama de
uma tradição não totalmente inventada, antes parcialmente
herdada ou roubada de seus predecessores; por outro, assume
o ofício de conferir sentidos outros e novos às desgastadas
8
“palavras da tribo”. Esta a sua (da poeta) tarefa primordial.
No texto que abre o Dossiê, Mariana Guida analisa
a poética de Adília a partir das relações de “intertextualidade
e de intermidialidade que mantém com a tradição poética e
artística”, ressaltando, sobretudo, a figura do alegorista, visto
como alguém que adota a citação como método, procedimen-
to reiteradamente utilizado ao longo de toda esta obra poética.
Na sequência, e em diálogo com o texto anterior,
Milena Ferreira esmiúça a rede de citações, restos e ruínas
que, na obra em pauta, constitui o que se pode denominar
uma “poética da leitura”.
Por sua vez, Patrícia Resende comenta, segundo o
enfoque do humor e da ironia, O marquês de Chamilly (1987)
e O regresso de Chamilly (2000), livros de poesia que têm em
Mariana Alcoforado e sua história de amor o principal mote.

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Já o texto de Paulo Alberto Sales propõe, sobretu-
do nos poemas de Manhã (2015), pensar a poesia de Adília
como um vasto repertório de fontes literárias, dinamizado
no interior de uma lógica de “ajuntamentos” e “conexões de
textos e contextos”.
Roberto Menezes, por seu turno, discute a presença
dialógica, erudita e imaginária de certo acervo literário na poe-
sia de Adília, vista, então, como repositório de imagens e figu-
ras sempre disponíveis a serem parodiadas e lidas a contrapelo.
Em estudo comparativo da poesia de Adília e de Ana
Cristina César, o artigo de Valéria Coelho parte da idéia de
que ambas as poetas encaram a literatura como atividade
erótica, passível de ser detectada, em larga medida, nos jogos
de linguagem e na “volúpia verbal” que captura o sujeito que
deles lança mão.
Enfocando a questão sob outra perspectiva, Juliana 9
Lobo esboça aproximações entre erotismo e religiosidade, con-
centrando-se na análise de poemas de O peixe na água (1993).
Fecha o Dossiê o artigo de Carla Lorena, que, a par-
tir da reflexão acerca de uma proposição bastante presen-
te em parte da obra de Adília, busca compreender a poesia
como tentativa de “desentropiação de si”, ou seja, como for-
ma de organizar o caos da experiência.
Tudo somado, este conjunto de textos pretende,
além de constituir-se como porta de entrada para o mundo
de Adília, ser uma contribuição para o incremento, no Brasil,
dos estudos da novíssima poesia portuguesa contemporânea.

Silvana Maria Pessôa de Oliveira


Roberto Bezerra de Menezes
Valéria Soares Coelho

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ARRUMAR A CASA, CERZIR
O POEMA: A PRÁTICA DA
CITAÇÃO COMO RECICLAGEM
EM ADÍLIA LOPES

Mariana Pereira 1. Alegoria e fragmentação: a prática da citação


Guida

Universidade À ocasião do evento Pessoa convida Pessoas,


Federal de Minas
Gerais um ciclo de conferências promovido pela Câmara
Municipal de Oeiras e realizado entre abril e junho
de 2018, a poeta e tradutora Ana Luísa Amaral, por
11
um momento, tratou de sua “arca” particular, descre-
vendo seus poemas não publicados:

O meu primeiro livro publiquei quando tinha


33 anos. Eu não quis publicar antes, portanto, já
tinha muitos poemas, muitos, muitos (...), mas
eles estão lá por alguma razão: é porque eu acho
que não estão em estado de verem a luz do dia.
Às vezes vou buscar um ou outro e revejo, reciclo,
também é isso, não é? porque a gente recicla...eu
acho a reciclagem uma coisa muito bonita, por-
que é um reaproveitamento, no fundo. E faz-se
isso: vai se buscar um poema e às vezes, já me
aconteceu, poemas com duas páginas transfor-
mam-se em poemas com dois versos e pronto, eu
aproveito os dois versos, porque gostei daqueles
versos e depois faço, escrevo, um outro poema,
ou melhor: a continuação de um outro poema

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que me foi suscitado por aqueles dois versos que es-
tavam num poema que tinha quarenta versos, mas do
qual eu não gosto...sim sim, há poemas que não estão
acabados.1

Valho-me do procedimento descrito por Ana Luí-


sa para pensá-lo a partir de uma outra poeta portuguesa
contemporânea: Adília Lopes. Embora apresentem dic-
ções próprias e bastante distintas entre si, tanto a escrita
de Adília quanto a de Ana Luísa se estabelecem sob a
cena literária do Portugal da década de 90 e, nesse sentido,
mobilizam questões prementes às teorias pós-coloniais e
de gênero ainda em germe naquele momento. Anna Klo-
bucka, em O formato mulher (2009), analisa a autoria e a
12
subjetividade no feminino da poesia portuguesa do século
XX e, sob essa perspectiva, identifica em ambas o diálo-
go com a tradição, que passa tanto pelo cânone literário
propriamente dito, quanto por determinados símbolos e
representações clássicos da arte e da cultura ocidentais.
Esse diálogo com a tradição a que se refere Klobu-
cka, de modo mais amplo, configura um aspecto relevante
da literatura e da arte pós-vanguardas do século XX, que
frequentemente é associado à ideia do contemporâneo.
Necessariamente fugidio e avesso a definições últimas, o
contemporâneo parece reiterar, como um prolongamento,
expressões eminentemente modernas ao mesmo tempo
1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ysSiyfcqmtk.
Acesso em: 01 jun. 2019.

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em que instaura uma diferença da ordem do imediato e
do efêmero, constituindo um paradoxo que, como observa
Compagnon (2010), é também próprio da modernidade.
Ao contrário das premissas de inovação e ruptura que cul-
minaram nas vanguardas modernas, entretanto, a poesia
contemporânea tenderia à enunciação desde a presença
do cotidiano, sempre sob uma perspectiva de perda com
relação ao passado, um tom baudelairiano e uma predo-
minância da narratividade.
Há análises profícuas desses aspectos, por exemplo,
em trabalhos de Marcos Siscar (2014, 2015) que tratam de
um princípio de crise que se perpetua do moderno ao con-
temporâneo. Já no contexto da crítica de poesia portuguesa,
Rosa Maria Martelo, propõe dois momentos que demarca- 13

riam certas particularidades no arco da modernidade: aquele


das vanguardas até a década de 60, no qual prevaleceria uma
dimensão metafórica da poesia, uma “assumida resistência
à paráfrase” e um investimento “na exploração das imagens
e no choque surpreendente entre imagens” (MARTELO,
2007, p. 13) ao passo que na produção poética posterior
à década de 70 predominaria um caráter alegórico, uma
“mimetiza[ção] [d]a linguagem cotidiana” e uma “conta-
minação da prosa” (MARTELO, 2007, p. 29). Interesso-
me, nesse sentido, por esta última categoria para tratar da
poética de Adília Lopes, uma vez que ela empreende, de
modo bastante expressivo, aquilo que Martelo denomina “o

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olhar do alegorista”, no qual a fragmentação, a busca por
tornar emblema uma ausência e uma precariedade patentes
na linguagem estabelecem “relações de intertextualidade e
de intermedialidade que mantém com a tradição poética e
artística” (MARTELO, 2009, p. 21).
As relações de intertextualidade e de intermidiali-
dade tratadas por Rosa Martelo dispõem-se sob diversas
formas na poesia de Adília: as referências explícitas a au-
tores, obras e personagens da literatura e da cultura oci-
dentais; as epígrafes ora verdadeiras, ora deliberadamente
inventadas; a mistura de temas elevados e comezinhos e as
oscilações da voz que demarca autoria na enunciação poéti-
ca podem, enfim, ser tomadas como disposições diferentes
14 de um mesmo estilo de montagem, um alinhavo que a poe-
ta parece fazer propositalmente aparente, parte do conjunto
de nomes, ícones, ditados, versos, quinquilharias, persona-
gens e o que couber no espaço de articulação do poema.
Daí surgem investidas ousadas (para dizer o mínimo) sobre
questões fundamentais à teoria e à história literárias, como a
relação entre realidade e representação, o potencial autôno-
mo da obra, as instâncias de autoria de um texto, bem como
as nuances entre continuidade e ruptura estabelecidas no
princípio da criação poética.
Tendo em vista a poesia de caráter alegórico que
procurei caracterizar, tais questões tornam-se particular-
mente interessantes quando pensados os recursos empre-

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gados por Adília em torno da subjetividade na enunciação
poética. Isso porque por meio dela, a enunciação, experi-
menta-se o texto enquanto intertexto, tanto sob o aspecto
de composição que Kristeva atribui ao termo quanto sob os
desdobramentos dessa percepção em relação ao caráter per-
formativo da linguagem de que tratavam, a princípio, os atos
de fala da filosofia da linguagem de John Langshaw Aus-
tin. O mecanismo citacional, de repetição e reiteração, está
na base dos processos enunciativos e, como Derrida virá a
acrescentar/suplementar, inscreve, pela presença, uma au-
sência de espessura histórica, uma impossibilidade de resti-
tuição plena. Nesse sentido, é possível dizer que a escrita de
Adília adota a citação como método, seja para ressaltar (re-
petir, reiterar...) todo um conjunto de referências que tam- 15

bém se pronunciam em suas palavras, seja para estabelecer


uma rasura, uma marca gestual que desloca tais referências
para a inconstância e a transitoriedade do presente.

2. O pó e o amor: do efêmero na escrita poética

Recorro ao excerto inicial de um dos poemas mais


conhecidos de Adília, “Louvor do lixo”, para perscrutar al-
guns aspectos da prática da citação em sua escrita:

Louvor do lixo

para a Amra Alirejsovic

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(quem não viu Sevilha não viu maravilha)

É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terramoto ameaça
a entropia de cada dia
nos dai hoje
o pó e o amor
como o poema
são feitos
no dia a dia
[...] (LOPES, 2014, p. 445)

Do poema ramificam-se diversos caminhos para


16
quem se põe no encalço de suas citações. Começo, então,
pelo que fala antes do primeiro verso: a dedicatória à Amra
Alirejsovic e a epígrafe guardada como uma interrupção
(uma observação?) entre parênteses. A primeira instaura a
possibilidade de pensarmos toda citação como um tipo de
tradução – afinal, “pode-se citar uma assinatura?”, Derrida
indaga via Benjamin (2002, p. 72) – uma vez que se trata
de uma “boa amiga”, intérprete da poeta em Sarajevo em
1991, conforme ela afirma em entrevista concedida a Sofia
de Sousa Silva (2007, p. 160).
Quanto à segunda, qualquer tipo de inferência ou
vinculação citacional para além da reprodução do ditado
popular como um traço de uma escrita com vistas à in-

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distinção entre o erudito e o folclórico seria exorbitância.
Mas como a poesia de Adília Lopes, em grande medida,
aposta no efeito improvável da exorbitância, arrisco uma
leitura bastante perigosa do jogo proposto no poema. O
ditado popular poderia remeter também a uma passagem
do Diário de Miguel Torga, na qual uma nota de Sevilha,
no dia 18 de abril, atenta para o caráter “desmancha-pra-
zeres” dos artistas, que “com a mania de arredar a cons-
ciência humana das tentações do efêmero estragam tudo”
(TORGA, 1999, p. 113).
Logo em seguida, em uma nota de Granada, no
dia 19 de abril, há o poema A Garcia Lorca, em Granada,
no qual o poeta luso ressoa velado nos versos ao espanhol:
“As torgas que te dei torno a levá-las. / Fiquei aqui aban- 17

donado e triste. / No teu jardim fechado / Não cabe nem


a pétala de um verso / Doutro poeta.” (TORGA, 1999, p.
114). Uma homofonia similar à das torgas do primeiro ver-
so permite-nos ler o nome d’outra poeta em “quem não viu
Sevilha não viu maravilha”, ao passo que o poema, na se-
quência, responde à indignação de Torga provando que há
arte que faz, sim, das “tentações do efêmero” sua matéria.
O primeiro verso inicia-se com a demanda impe-
rativa por ordem, mas ao invés de exprimir-se em palavras
afirmativas, tal demanda usa o prefixo negativo des e um
termo recorrente na obra de Adília, a entropia. O verso
condensa de modo aparentemente simples o conjunto

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de duplos em que se desdobrará o poema: falta e excesso,
nobreza e mediocridade, concretude e abstração comple-
mentam-se sob um ritmo truncado de cortes que vão re-
velando, a cada verso, como a enunciação se alimenta da
ameaça iminente do fim, do apagamento promovido pela
passagem do tempo, para inscrever-se enquanto possibi-
lidade de permanência, trabalho manual de organização/
arrumação das palavras no poema. Assim, da mesma for-
ma que a entropia do “Kaos” deve ser adiada, postergada,
emendada no poema, a beleza caótica e prosaica do coti-
diano (que retoma a sonoridade do ditado da epígrafe em
“mulher-a-dias” e “dia-a-dia”) e o processo de arrumação
da casa estão sempre sob a mira da devastação do tem-
18 po, da voracidade do exterior, da ameaça de um terremoto
como o que reverberou de Lisboa a Sevilha em 1755.
Desse modo, o que tratei por citação como méto-
do constitui não apenas a prática de trazer à tona autores
e obras numa composição enunciativa que se revela um
coral de vozes, mas também associar efetivamente à enun-
ciação os registros afetivos e as filigranas temporais que se
acumulam na memória como bibelôs, relíquias e ninha-
rias: “o pó e o amor / como o poema / são feitos / no dia
a dia”. A citação revela-se, então, uma prática profunda-
mente vinculada à experiência direta do texto, na qual não
se distinguem leitura e escrita, tampouco corpo e palavra,
algo muito próximo à relação de prazer entre os sentidos

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e o texto que um outro nome dileto de Adília, Roland
Barthes, atribuía à escritura. Aspas e itálicos, assim como
todos os indícios que dão relevo às citações na textura da
escrita, contemplam esse nosso desejo de nos dissolver,
nos imiscuir no texto, como pontua Compagnon:

Relendo- me, e para não me indignar comigo mesmo


nem me rasgar (como me censurar, isto é, me anular?),
adoto uma atitude intermediária, superponho ao texto
da solicitação uma armação de re(de)nunciações par-
ciais, tento circunscrever a enunciação e seus níveis em
territórios ou em paradas indicadoras: são, como numa
partitura musical, as indicações de ritmo, os vetores de
interpretação que o compositor propõe ao executante
(COMPAGNON, 1996, p. 54).

Ora lançando mão das citações diretas, declarati- 19

vas, ora inserindo referências externas indiretas que per-


manecem, como esfinges, indecifráveis no texto, Adília
convida o leitor ao exercício da escritura barthesiana e, de
certo modo, estimula esse impulso que é da ordem do pra-
zer com relação à poesia. Não à toa, ela tem uma inserção
pública surpreendente considerando-se o exíguo merca-
do consumidor de poesia a que atendem as publicações
editorais em geral, sabe disso e vale-se de bom grado da
alcunha “poetisa pop”, tornando-a um nome a mais que
se reveza na ciranda de “eus” da enunciação (Adília Lo-
pes, Maria José, poetisa-fêmea, poeta-macho, freira poe-
tisa barroca...). Muito embora esse exercício possa sugerir
um jogo puramente estético, no qual se exploram aspectos

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diferentes dos agentes envolvidos na escrita poética, uma
leitura mais acurada da obra de Adília demonstrará que
ele se apresenta, de certo modo, como condição para a es-
crita, necessária ao poema tanto quanto inalienável dele.

3. Louvor do lixo: um reaproveitamento, no fundo

A prática da citação na escrita de Adília, portanto,


explora as vias da intertextualidade e da intermidialidade
a que se referiu Rosa Martelo, frequentemente chegando
a friccioná-las, convocando a tradição poética e a materia-
lidade da experiência dos afetos e do desejo cotidianos no
espaço mesmo do poema. Ao longo deste texto procurei
expor como tal prática tem em seu cerne a fragmenta-
20
ção da subjetividade na enunciação poética e, a partir daí,
desestabiliza leitura e escrita enquanto instâncias fixas do
texto poético e, consequentemente, congrega os leitores
nos processos de construção de sentido do poema.
Emprego aqui o termo congregar, sobretudo, pen-
sando na investigação da enunciação poética realizada por
Adília como um exercício sobre a fraternidade, na medida
em que o próprio diálogo com a tradição sob o tom de
conciliação com o prosaico e com o cotidiano seria o modo
pelo qual a escrita poética poderia dar conta das ameaças,
dos interditos e da graça (tanto a de Agostinho quanto a
do trocadilhar) da linguagem. Justamente por isso, a ideia
de autonomia que banhava considerações barthesianas em

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torno do texto poético, em Adília é complexificada, con-
forme pontua Rosa Martelo:

Adília preferiu fundir de tal modo a autenticidade es-


tética da sua inquirição linguística com a contratualiza-
ção autobiográfica que a sua poesia ficou inteiramente
mergulhada no vozear do mundo em que vivemos, na
sua crueldade e na sua falta de caridade. (MARTELO,
2010, p. 252)

O jogo de Adília é, desse modo, bastante perigoso


porque dá a ver a seriedade do que se põe, nomeadamente,
em jogo no poema: aparentemente tão banal quanto a ta-
refa de arrumar a casa (o pó e o amor), a escrita do poema
consiste em cerzir um rasgo, uma fratura, no tecido da lin-
guagem. Isso porque a fragilidade e a inocuidade suposta- 21

mente intrínsecas a tais tarefas (assim como “o feminino”


que usualmente atribui-se a elas) velam seu potencial de
pressionar as fronteiras da comunicabilidade e atingir o
que não tem nome, no limite entre vida e obra.
É a consciência da importância dessa sutileza que
se manifesta na inconformidade de Torga com os poetas
que recusam as “tentações do efêmero” e, da mesma forma,
na beleza que Ana Luísa Amaral identifica na reciclagem.
Uma vez misturados, textos e vida perpetuam-se, em fei-
tura, enquanto “não estão acabados”. É a beleza da orde-
nação ordinária, dos reparos e dos pequenos desastres do
cotidiano, que justifica o “louvor do lixo” e que, no fim das
contas, dá à arrumação da casa e do poema o real tamanho

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dessa tarefa, formulada nas palavras de Adília: “Deus é a
nossa / mulher-a-dias” (LOPES, 2014, p. 378).

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Publicações Dom Quixote, 1999. 23

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ADÍLIA LOPES: UMA
POÉTICA DA LEITURA

Milena Maria 1 Introdução


Ferreira de Paula

Universidade A poeta Adília Lopes emerge no cenário da


Federal de Minas
Gerais Literatura Portuguesa em 1985, a partir da publica-
ção de seu primeiro livro, Um jogo bastante perigoso,
apresentando-se ao longo de seu percurso literário
como uma personagem cuja obra mostra-se, por ve-
24
zes, indecifrável. Nesse contexto, destaca-se a função
que a leitura exerce na estruturação de toda a produ-
ção adiliana, uma vez que são raras as passagens em
que a autora não se vale de elementos já menciona-
dos por outros escritores para a construção de seus
poemas. Nota-se, portanto, o delineamento de uma
poeta que, antes de tudo, apresenta-se como uma vo-
raz leitora, seja dos renomados clássicos da literatura
portuguesa e mundial, seja das obras que integram
o mercado pop das artes, ou mesmo de sabedorias
populares que circulam livremente na sociedade.
Assim, em meio às inúmeras vertentes nas
quais a produção adiliana se desdobra, torna-se pos-

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sível pensar na leitura como um elemento nuclear em tor-
no do qual a obra dessa poeta orbita, sem que se reali-
ze, contudo, uma limitação de seu trabalho a apenas um
elemento, haja vista a pluralidade encontrada nos livros
da autora. Observa-se, nessa perspectiva, que o campo da
leitura se apresenta notavelmente amplo, aspecto o qual
impossibilita a redução da obra dessa poetisa, dotando-a,
pelo contrário, de uma vastidão que apenas o universo da
leitura pode proporcionar.
Faz-se importante, portanto, compreender de que
maneira emerge essa possível poética da leitura manifes-
tada por Adília Lopes, utilizando para tal finalidade con-
ceitos barthesianos referentes à importância do leitor para
a construção da obra literária, além de poemas da autora 25

que possam melhor evidenciar a centralidade que a leitura


assume no universo adiliano.

2 A centralidade da leitura

A partir dos inúmeros textos que constituem a bi-


blioteca em que se reúnem as obras literárias como um
todo, emerge a figura do leitor como o ser que dará um
sentido a determinado conjunto de escrituras. Assim, ob-
serva-se que, no geral, os textos apresentam-se estrutu-
rados a partir de uma rede de distintas citações, as quais
quando combinadas, dão origem à obra em si e se fazem
dotadas de lacunas que possibilitem ao leitor uma atuação

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significativa na construção do sentido dessa obra. Nesse
contexto, o foco não reside mais na figura do autor, ou seja,
o texto apresenta-se de maneira autônoma àquele que lê,
fazendo com que a figura deste leitor assuma o papel de
maior relevância para a constituição das significações da
obra (BARTHES, 2004).
Assim, percebe-se que as escrituras no geral se fa-
zem marcadas por vestígios das produções que as prece-
deram, ainda que o objetivo do texto seja a negação de
conceitos antecedentes ou subversão desses elementos.
Nesse cenário, o leitor configura-se como o responsável
por reunir todos os elementos constituintes do texto, toda
a rede de citações mobilizada no interior da obra e, a partir
26 desses componentes, estabelece uma unidade de todo o
conteúdo, conforme explicitado por Barthes:

Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito


de escritas múltiplas, oriundas de várias culturas e que
entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em
contestação; mas há um lugar em que essa multiplici-
dade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem
dito até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo
em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas
as citações de que é feita uma escritura; a unidade do
texto não está em sua origem, mas no seu destino [...].
(BARTHES, 2004, p. 52)

A partir desse deslocamento do foco de análise


para a figura do leitor, o processo da investigação crítica
não mais centralizará o autor como origem do sentido pre-

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sente em determinado texto. Dessa forma, esse afastamen-
to entre o autor e a obra possibilita a ampliação dos senti-
dos que uma produção pode assumir, uma vez que o leitor
terá de mergulhar no próprio texto para tecer uma rede de
significações (BARTHES apud GUSMÃO, 2011).
Nesse cenário, emerge a poeta Adília Lopes, uma
leitora que desbrava vorazmente os mais variados livros
que compõem a literatura portuguesa e mundial, cons-
truindo uma complexa rede de significações para cada
obra lida. Esse aspecto permite que a autora transfira para
seus poemas as mais distintas referências, do cânone ao
popular, sempre pautada em uma releitura ímpar das obras
que a precederam.
Dessa forma, no momento em que Adília Lopes 27

posiciona-se antes de qualquer ação como leitora, emerge


a possibilidade de construção de uma obra que, a partir
de uma imensa biblioteca literária que a antecede, mos-
tra-se completamente nova. Assim, conforme evidenciado
por Martelo (2010) e ainda pela própria Adília em sua
obra Um jogo bastante perigoso, as águas que movem a poe-
sia adiliana correspondem a águas passadas, ou seja, há
sempre a retomada de algum elemento por meio de uma
leitura precedente ao momento da escrita. Nessa perspec-
tiva, ainda que seja retomado algum traço biográfico, esse
elemento narrado se faz mediado pelo processo da leitura
(SILVA, 2007).

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Destaca-se, portanto, o fato de o poeta não mais se
apresentar como aquele ser possuído por forças divinas, as
quais tornavam possível a escrita de bons poemas, confor-
me era concebido desde a antiguidade por alguns filósofos
(PLATÃO, 1988). Assim, apesar da permanência dessa
concepção divina no que tange à fonte de inspiração poé-
tica por séculos no cenário da literatura mundial, Adília
Lopes afasta-se desses conceitos, uma vez que se depara
com uma “Musa parca / musa muda” (LOPES, 2014, p.
651), segundo suas próprias palavras em Apanhar ar. Des-
se modo, em oposição a uma visão idealizada da constru-
ção de obras poéticas, a autora não conta com uma fonte
divina a partir da qual se originam os poemas, valendo-se,
28
portanto, do arsenal de leituras realizadas para que seja
possível a constituição de sua obra.

3 A vastidão da biblioteca de Adília Lopes

Nesse contexto da leitura como fonte para a con-


cepção de poemas, coabitam a biblioteca adiliana obras do
cânone literário, bem como produções consideradas pop e,
ainda, os diversos saberes populares que podem ser lidos
nas mais corriqueiras situações do cotidiano. Assim, a par-
tir de um exímio trabalho com a linguagem, Adília Lopes
não hierarquiza em seus poemas uma cultura considerada
erudita em detrimento da vertente popular. Dessa forma,
a poeta vale-se dos mais variados elementos advindos da
leitura a fim de construir uma obra singular e emblemática.

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Ademais, simultaneamente à utilização de uma
linguagem que se mostra em sua maior parte acessível, a
autora convida constantemente o leitor a imergir em um
universo de referências literárias que demandam uma série
de pesquisas para que se chegue a uma possível fração da
água que move o moinho dos poemas adilianos. Deve-se
destacar, todavia, que essa rica rede de citações não tem
por objetivo afastar a obra do público-leitor menos eru-
dito, pelo contrário, nota-se que a poesia da autora atinge
os mais variados públicos e se mostra aberta às inúmeras
significações que os leitores podem extrair dela. Percebe-
se, ainda, a ampla utilização da língua francesa ao longo
de vários dos poemas de Adília, traço o qual, longe de dis-
tanciar o leitor leigo, apresenta-se como um desafio, uma 29

espécie de código a ser desvendado, tornando a obra ainda


mais instigante.
Deve-se considerar também que essas leituras se
encontram de tal forma intrincadas na obra de Adília Lo-
pes que, por vezes, torna-se complexa a distinção acerca
de qual fragmento está sendo retomado em determinados
poemas da autora, uma vez que as múltiplas leituras reali-
zadas pela poetisa se fundem ao longo de seus livros. Essa
visão encontra-se expressa na estrofe a seguir, extraída de
Apanhar ar:

Talvez escreva
poemas

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que já li
que outros já escreveram
que eu mesma já escrevi
esqueço-me
da minha vida
[...] (LOPES, 2014, p. 651)

O fragmento acima revela esse possível delinea-


mento de Adília Lopes como uma leitora cujas obras
visitadas não se mostram passíveis de uma delimitação
precisa. Desse modo, a leitura do outro e até mesmo do
eu conectam-se de maneira tão intensa que confundem
inclusive o eu lírico do poema em questão à origem desses
versos, noção essa que pode ser ampliada aos demais poe-
mas da obra adiliana.
30
Nota-se que a leitura realizada pela autora se ca-
racteriza, não raras vezes, pela subversão das ideias e valo-
res expressos na obra original. Assim, esse processo de lei-
tura não se mostra passivo e inocente, revelando-se como
uma forma de retomar clássicos reconhecidos pela crítica
literária mundial, mas apresentá-los de uma maneira com-
pletamente distinta. Esse traço evidencia-se no poema ex-
traído de O regresso de Chamilly:

Milly chéri
tenho coisas
para te dizer
de viva voz cartas de amor
nunca mais
agora só escrevo

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cartas comerciais

Não quero
ter filhos
gosto muito
de foder
contigo
e com outros
mas de bebés
não gosto
[...]
(LOPES, 2014, p. 433)

Observa-se a referência às Cartas portuguesas, obra


a qual apresenta a história de amor de Mariana Alcoforado,
uma freira portuguesa, e do Marquês de Chamilly e cuja au-
toria permanece um mistério no cenário da literatura. Essa
temática das cartas apresenta-se esparsamente ao longo da 31

obra adiliana e mostra-se focalizada nos livros O marquês de


Chamilly e O regresso de Chamilly. O enredo das cartas faz-
se marcado pela impossibilidade de realização amorosa e
pela falta de correspondência do sentimento entre homem
e mulher, a qual se vê imersa em profunda tristeza. Adília
Lopes, ao incorporar essa trama em seus poemas, o faz de
maneira surpreendentemente inovadora, realizando uma
releitura desse clássico à luz de 1987, ano em que O marquês
de Chamilly é publicado (MOREIRA, 2016).
Assim, a Marianna da autora apresenta-se desde
o início uma versão diferenciada da freira, a começar pelo
próprio nome, o qual ganha um segundo “n” em sua es-

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crita (MOREIRA, 2016). Percebe-se que essa Marianna
não mais se coloca na posição de sofrimento irremediável
por seu amor ao Marquês, mas se mostra detentora de suas
próprias vontades. Dessa forma, as correspondências para o
amado tornam-se, segundo os versos acima, cartas comer-
ciais e a devoção unicamente a Chamilly transfigura-se na
possibilidade de relacionamentos com outros homens, de-
lineando uma personagem que, a despeito dos seus séculos
de história, mostra-se extremamente atual e inovadora.
Nessa perspectiva, torna-se importante salientar a
excepcionalidade com que a poetisa revisita elementos que
antecederam sua obra e os incorpora com naturalidade em
seus livros. Nota-se, dessa forma, que o fato de retirar al-
32 gum fragmento de seu contexto original e inseri-lo em um
meio distinto origina uma produção completamente nova.
Tal traço encontra-se sintetizado em um excerto de Poemas
novos: “É tudo / tão novo / para mim // Novo / como um
ovo // Novo / como um noivo [...]” (LOPES, 2014, p. 540).
Observa-se que o poema evidencia essa novidade
presente nos elementos como um todo, aspecto que pode
ser relacionado à possibilidade de ressignificações e inova-
ções dos conteúdos pertencentes a obras anteriores e que,
imersos em um diferente cenário, mostram-se novos. Des-
taca-se, ainda, no poema em questão uma surpreendente
simplicidade da autora no que tange ao trabalho com a lin-
guagem. Esse traço, por vezes, aproxima o leitor da obra

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adiliana, haja vista o emprego de um vocabulário que não
apresenta elevado nível de dificuldade de compreensão
para falantes do português (SILVA, 2007).
Essa noção de constante recorrência a obras prece-
dentes adquire relevância também devido à maneira explí-
cita com que alguns poemas de Adília abordam a questão
da releitura de trabalhos precedentes, conforme reitera a
estrofe retirada de Le vitrail la nuit: “[...] Escrever / o mes-
mo / outra vez / haver sempre / nova vez [...]” (LOPES,
2014, p. 593).
Nessa perspectiva, percebe-se que não há uma ne-
gação da origem das obras que possivelmente serviram
como inspiração para a poeta. Dessa forma, infere-se dos
versos acima que o processo de escritura consiste, por ve- 33

zes, em uma repetição do mesmo, dos elementos já ditos


por autores precedentes. Essa noção de retomada de algo
anterior faz-se evidenciada, ainda, a partir de expressões
empregadas pela poeta para introduzir inúmeros de seus
poemas, como “copiado de Sophia” (LOPES, 2014, p. 411)
e “copiado de Agustina” (LOPES, 2014, p. 411), excertos
extraídos da mesma página do livro Irmã barata, irmã ba-
tata. Assim, destaca-se a rede de citações construída pela
autora e, ademais, emerge a questão da maneira como
Adília Lopes concebe esse processo de cópia, haja vista
que o trecho em teoria copiado faz-se, por vezes, imen-
samente modificado antes de integrar o poema adiliano.

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Desse modo, a destoante poeta portuguesa, em
inúmeros poemas, apresenta abertamente a obra da qual
determinado excerto foi extraído e em alguns deles realiza,
ainda, alterações, posicionando-se como nova enunciado-
ra do conteúdo, sendo livre para modificá-los a partir do
processo da releitura. Percebe-se tal ação no fragmento de
O regresso de Chamilly intitulado “Art Poétique”, em uma
clara referência a um poema de Paul Verlaine, renomado
poeta francês: “De l’amour / Avant toute chose”1 (LOPES,
2014, p. 429).
Nota-se facilmente a relação estabelecida com os
versos de Verlaine que iniciam o poema em questão, cor-
respondentes a “De la musique avant toute chose”2 (VER-
34 LAINE, 1940, p. 221). Ressalta-se, nesse contexto, a mo-
dificação realizada pela poeta, que substitui a primazia da
música mencionada pelo autor pela primazia do amor.
Dessa maneira, ainda que os versos dialoguem abertamen-
te com uma obra predecessora, Adília Lopes apresenta sua
visão ímpar acerca da leitura realizada, garantindo uma
notável singularidade a seus poemas.
Processo semelhante faz-se evidenciado a partir
do trabalho da poeta com os ditos populares amplamente
presentes no cotidiano. Ainda que trechos desses provér-
bios sejam apresentados em sua íntegra, a autora age livre-
1
“O amor / antes de todas as coisas” (LOPES, 2014, p. 429, tradução
minha)
2
“A música antes de todas as coisas” (VERLAINE, 1940, p. 221, tra-
dução minha).

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mente na estrutura que os compõem, adicionando versos
que, por vezes, refletem a visão adiliana acerca desse co-
nhecimento partilhado por toda a população. Observa-se
esse quadro no trecho extraído de Poemas Novos, a seguir:

Casa
onde não
há pão
todos ralham
e ninguém
tem razão

Casa
onde não
há amor
todos ralham
e a razão
tem bolor 35
(LOPES, 2014, p. 544)

A primeira estrofe do poema corresponde ao dito


popular tomado exatamente segundo suas palavras origi-
nais. Já a segunda estrofe contém a reestruturação adiliana
do provérbio inicial, ou seja, os versos evidenciam a neces-
sidade de, além da comida, haver amor para que possíveis
conflitos sejam evitados. Ademais, nota-se que a ausência
do amor torna inválida também a razão, a qual adquire
bolor, segundo o último verso. Esse poema explicita, ainda,
a maneira como a linguagem e a temática do cotidiano
apresentam a possibilidade de manifestação de uma força
poética intensa (SILVA, 2007). Dessa forma, evidencia-se

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que a matéria de poesia da obra adiliana transita dos clás-
sicos aos saberes populares, não havendo uma distinção
entre os valores que essas diferentes fontes culturais assu-
mem na obra da autora.
Percebe-se, assim, que a poeta se apresenta como
uma leitora do mundo como um todo, haja vista a ma-
neira como Adília Lopes caminha tanto pelas trilhas das
inúmeras obras literárias quanto pelos espaços onde se
manifestam as mais simples experiências do cotidiano. Tal
traço singulariza a obra da autora e permite uma identifi-
cação de distintos públicos com os poemas adilianos.

4 Considerações finais
36
Desse modo, a partir da centralização da leitura
como elemento em torno do qual a obra adiliana se estru-
tura, torna-se possível a compreensão acerca da diversi-
dade e vastidão manifestadas ao longo da produção dessa
emblemática poeta portuguesa. Percebe-se, portanto, que
a concepção de uma poética da leitura para Adília Lopes,
longe de limitar o trabalho da autora, permite um melhor
entendimento sobre a multiplicidade de elementos que se
fazem presentes na produção adiliana.
Assim, por meio de um rico arsenal de leituras, a
poeta constrói uma obra singular, a qual convida constan-
temente o leitor a enveredar-se pelos corredores da imensa
biblioteca da literatura portuguesa e mundial. Ademais,

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a escritura adiliana permite uma ampla autonomia desse
leitor no que tange à construção de uma significação para
os poemas. Dessa forma, a partir de uma maneira ímpar
de pontuar as orações e do modo como os versos encon-
tram-se distribuídos na superfície das folhas, o leitor de-
para-se com uma vasta possibilidade de sentidos, aspecto
o qual torna a obra de Adília instigante e única.

Referências Bibliográficas
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François / Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcofo-
37
rado. Edição bilíngue, prefácio e tradução de Eugénio de
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MARTELO, R. M. A forma informe – leituras de poesia.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
MOREIRA, M. De Mariana Alcoforado à(s) Marianna(s)
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nov. 2017.
PLATÃO. Íon. Edição Bilíngue. Introdução, tradução e
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ponível em: http://www.eduardoguerreirolosso.com/
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38 SILVA, S. de S. Reparar brechas: a relação entre as artes
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Lopes e a tradição moderna. 2007. 160f. Tese (Doutora-
do em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras,
PUC-Rio, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.
maxwell.vrac.puc-rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resul-
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VERLAINE, P. Jadis et Naguère. In: Choix de poésies. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1940.

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CHAMILLY, MILLY: A NOVA LEI-
TURA DAS CARTAS PORTUGUESAS
PROPOSTA POR ADÍLIA LOPES EM
O MARQUÊS DE CHAMILLY E O
REGRESSO DE CHAMILLY
Patrícia Resende Mariana atravessa
Pereira o pomar
a sonhar
Universidade
Chamilly voltou
Federal de São
e é tão bom tê-lo
Carlos / CAPES
/ PNPD
de volta
que não pode estar
muito tempo
ao pé dele
39
(Adília Lopes, em O regresso de
Chamilly)

O suposto relacionamento entre a freira por-


tuguesa Mariana Alcoforado e o francês marquês
de Chamilly, em meados do século XVII, é tema
de dois livros de poesia escritos por Adília Lopes e
publicados com treze anos de diferença – além de
inúmeros textos poéticos avulsos que integram toda
a Dobra, nome dado à obra completa da autora. For-
temente marcados pela ironia, os dois livros – O
marquês de Chamilly (Kabale und Liebe) (1987) e O
regresso de Chamilly (2000) – representam uma nova
leitura das conhecidas Cartas portuguesas, publicadas

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pela primeira vez em 1669, supostamente escrita por Alco-
forado durante o período em que, em vão, aguardou o re-
torno do seu amado, Noël Bouton, o marquês de Chamilly.
Ao longo das cinco cartas que compõem o volu-
me, cuja autoria até hoje se encontra incerta, tem-se uma
apaixonada Mariana Alcoforado que lamenta a partida
do amado e aguarda ansiosa pelo seu retorno – até se dar
conta, em sua última correspondência, de que ele não irá
voltar para tirá-la do convento para viverem, enfim, o seu
amor idealizado. Cita-se o fragmento a seguir, retirado da
quinta carta enviada pela soror, que não trata de disfarçar
a sua completa insatisfação com a suposta indiferença do
amado: “Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe
40 sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que
finalmente acabou por me convencer de que já me não
ama e que devo, portanto, deixar de o amar” (ALCOFO-
RADO, 1997, p. 34).
Embora se trate de uma história de amor que teve
um final certamente infeliz para a jovem freira, observa-se
que Adília Lopes, por meio da ironia, oferece em uma le-
veza debochada a saga do casal do século XVII. Conforme
assevera Rosa Maria Martelo (2010, p. 224), em seu tex-
to “Contra a crueldade, a ironia”, a ironista, por natureza,
desconfia sempre do senso comum, considerado, para ela,
“uma linguagem que só pode ser objeto de distanciação
mediante outra linguagem”. Assim sendo, ainda nas pala-

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vras da estudiosa, esse aspecto se torna marcante na obra
da autora, pois “o mundo do texto é predominantemente
um mundo discursivo, feito de histórias, de palavras e fra-
ses ouvidas ou lidas” (MARTELO, 2010, p. 224).
Em razão disso, Adília tem como ponto de partida
o senso comum para criar um universo às avessas daque-
le que se tem nas Cartas portuguesas. Essa particularidade
torna-se clara quando se pensa na maneira como a autora
compõe a personalidade de Mariana Alcoforado. Ape-
sar de adulta – ela completa vinte e oito anos em um dos
poemas –, a religiosa se comporta como uma adolescente,
como faz parte do senso comum: chora ao constatar, mais
uma vez, a ausência de notícias de Chamilly; é vítima de
chacota por parte das colegas, que não disfarçam a des- 41

crença com relação a um possível retorno do personagem;


e empanturra-se de creme de chantilly, que remete ao
nome do amado. Além disso, a freira criada por Adília tem
por gosto dar apelidos ao rapaz, incorporados nos versos
de modo a ridicularizar o encantamento juvenil com rela-
ção ao amado, como no instante em que se tem a descrição
física do rapaz n’O regresso de Chamilly:

O cabelo
de Milly
é beige
os olhos
são
cinzentos
azuis

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violetas
(LOPES, 2014, p. 428-429)

Em outro poema de O marquês de Chamilly (Kabale


und Liebe), chateada, a moça deita na cama e ouve música
a tarde inteira, mas, no universo de Adília, o CD player
toca Bach, indicado pelos versos a seguir:

[...]
Marianna abre sempre a caixa do correio
lá dentro de uma vez
uma lagartixa fita-a
Marianna beija a lagartixa e chora
depois vai-se deitar a ouvir Bach
[...]
(LOPES, 2014, p. 80)

42
O ato da freira, infantil por si só ao beijar a lagar-
tixa – quem sabe o pequeno réptil não se transforma no
Chamilly ou, melhor, em uma carta? –, é associado à outra
atitude adolescente. Nos últimos poemas, a moça é toma-
da por uma paranoia pouco justificada ao imaginar que
está sendo vítima de uma conspiração da C.T.T., o serviço
de correios português, e é por isso que as cartas do oficial
não lhe chegam às mãos, como se lê nos versos de “Kabale
und liebe” – não por acaso, o subtítulo do livro em questão:

Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas

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com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
[...]
(LOPES, 2014, p. 86)

Nos versos, torna-se evidente que uma apaixonada


e um tanto delirante Marianna espera encontrar justifi-
cativa para a indiferença do oficial em uma teoria cons-
piratória, recusando-se a acreditar na verdade. A ação da
moça encontra forte paralelo na quarta carta – dessa vez
de Cartas portuguesas – em que a religiosa repreende o ofi-
cial francês por, nas raras ocasiões em que lhe escreveu,
ter enviado curtas mensagens: “Todos se comovem com
o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escre- 43

vendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade


do papel em branco, dando grosseiramente a entender que
estavas morto por acabá-las” (ALCOFORADO, 1997, p.
28). Portanto, claro está que Adília se apropria da reclama-
ção da jovem e a incorpora em seus versos, mas, nesse caso,
as cartas frias não são de autoria de Chamilly e sim “fakes
humilhantes”, obra de um serviço de correios desonesto.
Deve-se destacar, também, o título do poema,
“Kabale und Liebe”, que evoca mais uma relação intertex-
tual ao se referir a Intriga e amor, forma como é traduzida a
peça de Friedrich Schiller nos países de língua portuguesa.
O texto conta a história de um amor impossível na corte

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absolutista na Alemanha do século XVII, com direito a
uma série de reviravoltas dentro da narrativa, inclusive o
envio de uma carta falsa que coloca em risco o relaciona-
mento do jovem casal principal. É irônico, nesse sentido,
que seja, além do título do poema, o subtítulo de O mar-
quês de Chamilly. Acredita-se que, com isso, Adília ironiza
mais uma vez o exagero do sentimento nutrido pela freira,
como se, para a Marianna de O marquês de Chamilly, o seu
amor fosse cheio de obstáculos provocados por terceiros
– e o serviço de correios definitivamente insere-se nesse
pouco honroso grupo.
Ademais, não se pode deixar de lembrar que a re-
ferência a Intriga e amor é um exemplo da maneira como
44
a poesia de Adília Lopes é construída. Segundo assegura
Martelo (2010, p. 228), “são imensas e extremamente di-
versificadas as referências à tradição literária erudita nos
poemas, mas estas surgem misturadas com a sabedoria po-
pular, com o discurso publicitário, com os lugares comuns
das revistas femininas, da televisão, etc. [...]”. É, nesse sen-
tido, por meio da junção entre o erudito e as referências à
sabedoria popular, que a poesia de Adília é escrita, como
se faz notar, por exemplo, no terceiro poema de O marquês
de Chamilly:

Uma das coisas


que Marianna mais detesta
é a publicidade
ao código postal

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detesta o meio caminho andado
lembra-lhe o paradoxo
de Aquiles e a Tartaruga
meio caminho andado
meio caminho
e mais um quarto
andados às voltas
a torcer o lenço nas mãos
meio caminho e mais um
oitavo andados
a irmã Octávia toma rapé
que desgosto
meio caminho e mais um dezasseis
avos andados
favos e aves que nojo
meio caminho e mais trinta
e dois avos andados
qualquer dia faço eu trinta anos
e assim por diante que raiva
(LOPES, 2014, p. 78) 45

Aqui há a retomada de um anúncio publicitário do


serviço de correios portugueses, na década de 1980, em
que se lia: “Código postal. Meio caminho andado”, para
a conscientização da população para a importância da in-
serção do CEP correto nas correspondências. O anúncio
joga com o dito popular que diz “meio caminho andado”
para alcançar um objetivo, o que leva à crença de que, só
de o código estar correto, já é meio caminho andado para
a entrega da carta. Para Marianna, no entanto, não é o que
acontece. E é em razão disso que “mais detesta / é a publi-
cidade ao código postal / detesta o meio caminho andado”.
Também nesses versos, Adília mistura referência popular e

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erudita ao evocar o paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, co-
nhecido na matemática como Paradoxo de Zenão. Nele, o
herói grego, ao apostar corrida com uma tartaruga, decide
dar ao réptil uma vantagem de começar um metro adiante.
A ideia gira em torno da possibilidade de haver conjuntos
infinitos de números, como o zero, o zero vírgula um, o
zero vírgula zero, zero, um e assim por diante.
Assim sendo, no caso da freira, o “meio caminho
andado” do código postal se desdobra em vários outros ca-
minhos andados que adiam cada vez mais o possível retor-
no de Chamilly, de modo que “qualquer dia faço eu trinta
anos / e assim por diante que raiva” (LOPES, 2014, p.
78). Irônico, o verso debocha do ultrapassado pensamento
46 sobre a idade das mulheres, como se os trinta anos come-
morados por Marianna representassem muito tempo.
Sobre a escrita das cartas, é necessário enfatizar
que a Marianna de Adília, que difere da freira do conven-
to de Beja ao ter um “n” a mais na grafia de seu nome, em
O marquês de Chamilly, permanece dedicada em seu pro-
pósito de continuar a escrever. Essa questão é introduzida
para o leitor no primeiro poema, curiosamente intitulado
“Fin”, no qual se lê:

Meu senhor
como diz a Mimi
prenez garde à vous
pois se não me escreve cartas
eu escrevo-lhe cartas
(LOPES, 2014, p. 77)

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Percebe-se que, para a freira, a escrita configura-
se quase como uma ameaça, tendo em vista que parte do
princípio de que, se o marquês é incapaz de lhe escrever,
ela não fará o mesmo. O ato de intimidação é reforçado
pela citação em francês, referência clara à nacionalidade
de Chamilly, traduzida para o português como “cuide-se”
ou “fique atento”. Pode-se ver, ainda, que para a escrita do
poema Adília recorre a mais uma reclamação frequente nas
Cartas portuguesas, como se faz notar no seguinte fragmen-
to da segunda carta: “Não deixaria de ser infeliz se soubes-
se que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera
dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou tão
longe de tal estado que já lá vão seis meses sem receber
uma única carta tua” (ALCOFORADO, 1997, p. 15). 47

Todavia, enquanto em Cartas portuguesas a jovem


adota um tom triste para lamentar a ausência de men-
sagens de Chamilly, evidenciado na citação em destaque,
a Marianna de Adília entende a indiferença do marquês
como um ato de desafio: se é ele incapaz de lhe enviar car-
tas, ela faz o contrário e escreverá ainda por muito tempo
para Mimi, como a personagem o denomina. A moça só
decide parar de escrever para o oficial no penúltimo poe-
ma de O regresso de Chamilly, de 2000, que marca o reen-
contro do marquês com a freira.
Insere-se aqui a primeira estrofe do poema, sem título:

Milly chéri

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tenho coisas
para te dizer
de viva voz
cartas de amor
nunca mais
agora só escrevo
cartas comerciais
(LOPES, 2014, p. 433)

Assim sendo, se em “Fin”, que abre O marquês de


Chamilly, Marianna insiste na escrita de cartas, no pe-
núltimo poema de O regresso de Chamilly, a freira se dá
conta de que não mais tem interesse de enviar mensagens
de amor. Agora, para a religiosa, se for para escrever que
sejam cartas comerciais, pois ao menos seria possível lhe
render algum benefício financeiro. Marianna, no entanto,
48
informa a decisão pessoalmente ao marquês, como indi-
cam os versos “para te dizer / de viva voz” (LOPES, 2014,
p. 433). A iniciativa da moça sugere, se se seguir à risca a
reflexão de Adília na debochada nota final publicada em
O regresso de Chamilly, que o relacionamento entre a freira
e o rapaz, quando finalmente reunidos após angustiantes
anos de espera desesperada, não sobreviveu aos percalços
da convivência diária.
Em conclusão, cabe citar o trecho da referida nota
final, na qual se percebe o tom de deboche adotado pela
autora nos dois livros mencionados neste ensaio. No texto,
Adília conta, com interesse quase antropológico, que teve
certa vez a oportunidade de conversar com o humorista

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português Raul Solnado acerca de uma anedota contada
por ele em um programa de TV. Na historieta, um casal de
namorados passeava quando, diante de uma poça no chão,
o namorado diz à namorada: “«Cuidado com o pezinho!
Salta a pocinha!». Depois de casados a cena repete-se, mas
o marido diz à mulher «Lá meteu a pata na poça!» Eu
disse ao Raul Solnado «Agora é a mesma coisa». O Raul
Solnado disse-me «Eu acho é que a poça está cada vez
maior»” (LOPES, 2014, p. 438). A inversão de sentidos
comicamente proposta pelo humorista – a poça é que está
maior, não a paciência com a parceira que se reduziu ao
longo do desgaste proporcionado pelo casamento – serve
para concluir a saga da jovem freira, apresentada às avessas
por Adília Lopes. 49

Referências Bibliográficas
ALCOFORADO, M. Cartas portuguesas. Porto Alegre:
L&PM, 1997.
LOPES, A. Dobra – poesia reunida 1983-2014. Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
MARTELO, R. M. Contra a crueldade, a ironia. In: A
forme informe: leituras de poesia. Lisboa: Assírio & Alvim,
2010. p. 223-234.

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HIBRIDISMO E INESPECI-
FICIDADE EM MANHÃ, DE
ADÍLIA LOPES

Paulo Alberto da Nesse fluxo e contrafluxo do verso,


Silva Sales como do poema, entretecem-se tam-
bém dicções diversas - o lírico e o
Instituto Federal
antilírico, o expressivo, o narrativo e
Goiano
o descritivo, o discursivo e o antidis-
cursivo - num hibridismo valorizado
na produção poética a partir dos anos
1980 como índice de libertação for-
malista, automatizante do moderno.
50
Nesse hibridismo, [ressalta-se] a im-
portância de procedimentos de pro-
saicização do poético, associados à sua
reaproximação do sujeito e da expe-
riência. (PEDROSA, 2014, p. 78)

Óculos
Usam-se óculos desde o século XIII,
talvez mesmo desde finais do século
XII. Li isto num artigo de Alexandre
Koyré de que gosto muito: «Du monde
de l’à-peu-près’ à l’univers de la
précision» (in Études d’histoire de
la pensée philosophique, Gallimard,
Paris, 1981, p. 350). Gosto de usar
óculos. E gosto de saber dessas coisas.
3/8/14
(LOPES, 2015, p. 64)

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Seria necessário nos desarmarmos de todas as nos-
sas certezas e preconcepções ao adentrarmos no universo
poético de Adília Lopes. Desde sua primeira publicação,
Um jogo bastante perigoso, de 1985, até seu mais recente
livro, Estar em casa, publicado em 2018, Adília tem apre-
sentado uma poesia lírica marcada pela fricção de discur-
sos e gêneros cujas fronteiras se interpenetram e se ressig-
nificam ao colocar em xeque os preceitos formalistas do
século XX. Há de se destacar, também, como uma vertente
de sua poética – se não a principal – o profundo interesse
em representar a estética do instante que resgata vestígios
de experiências do eu em vários momentos da vida. Esse
mesmo eu se apresenta como um profundo leitor da tra-
dição literária, de histórias best sellers, de anedotas, histó- 51

rias da carochinha, histórias orais, além de textos de outras


áreas do saber, tais como os de ciências exatas, biológi-
cas, física quântica, de arte, além da referência explícita,
em vários poemas, aos ícones do universo Pop dos anos
80 e 90. Neste vasto repertório de fontes que vão desde
as experiências de literatura canônica às representações da
cultura de massa, a poesia de Adília resulta em uma arte
tipicamente pós-moderna, na qual não há uma separação
entre alta e baixa cultura.
Várias são, também, as possibilidades de leitura dos
poemas de Adília. No seu exercício de revisitar os porme-
nores vividos e lidos e ao mesclá-los, transformando-os em

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arte, a poeta cria poemas “instalações” (GARRAMUÑO,
2014) que são construídos por meio de ajuntes, remis-
sões, descrições, narrações e rememorações. Nessa linha
de criação poética, elegemos a obra Manhã, publicada em
2015, como uma de suas produções mais instigantes na
qual os poemas tratam dessas misturas e indiferenciações
de que vamos nos ocupar nesta reflexão. Seguindo a linha
de seus livros anteriores, a quase totalidade dos poemas
de Manhã possui uma dicção em prosa, ou melhor, versos
que compartilham de estratégias da narrativa ficcional e,
também, da descrição, do diálogo, de relatos e mesmo de
citações de trechos apropriados de livros e histórias ouvi-
das pela poeta. Eis alguns caminhos críticos para a poesia
52 adiliana que vão ao encontro dos anseios e incertezas dos
poetas portugueses de sua geração.
Ida Alves (2008), por exemplo, em “O conflito de
opiniões na poesia portuguesa: o esterco lírico e o grito
do anjo”, ao tratar dos Poetas sem qualidades – título de
uma antologia poética de novos poetas portugueses (1994
– 2002) – organizada pelo poeta Manuel de Freitas, des-
taca alguns aspectos importantes para entendermos essas
poéticas plurais da contemporaneidade e que se aplicam
à poesia de Adília. Traços característicos de uma escrita
poética a partir das experiências do cotidiano, “do(s) res-
to(s) que se encontram na vida diária, rejeitando qualquer
simulacro de aura e se aproximando de uma vontade ex-

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pressa de comunicação” (ALVES, 2008, p. 118), associada
a uma tendência da poesia recente que se caracteriza em
tematizar a existência do sujeito empírico intensamente
marcado pelas suas perdas (MARTELO, 2008), criam
uma “poética do comum”. A matéria dos poemas, desses
novos poetas, seria forjada a partir da tensão da experiên-
cia de vida, ou melhor, dos resquícios ou marcas do co-
tidiano, mescladas às experiências de leitura da tradição
e, ainda, pela inadequação do indivíduo descentrado no
cenário da contemporaneidade. Desses (des)encontros,
surgem poemas híbridos, altamente irônicos e que jogam
com a emoção e com a razão ao encenar, criticamente, as
“subjetividades”.
As duas epígrafes que escolhemos como mote des- 53

te ensaio - a primeira, de caráter crítico-teórico e, a segun-


da, um poema do livro Manhã – se complementam, são
emblemáticas e trazem inquietude aos leitores de poesia
de hoje: as impropriedades dos gêneros, o hibridismo e as
práticas de não pertencimento. A crítica de poesia mais
recente tem destacado uma linha de criação poética que
aposta na inespecificidade do poema. Características que,
antes, eram do campo do poético, se deterioraram e passa-
ram, então, a compartilhar de outros campos do saber em-
pregados em discursos e meios que criam uma linguagem
simples e que, nem de longe, lembram os poemas feitos a
partir do rigor formal.

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Na primeira epígrafe, Pedrosa (2014), em diálo-
go com os estudos de Garramuño (2014) e de Süssekind
(1995), apresenta essas instabilidades na criação lírica da
contemporaneidade ao se deter nos livros de poemas de
Ana Cristina Cesar, mais especificamente, aqueles data-
dos do início da década de 1980. Para Pedrosa (2014), são
poemas que focalizam a «arte da conversação», na qual há
um desnudamento de uma intimidade do poeta a partir de
uma distensão identitária do eu descentrado e na destina-
ção do seu discurso. Ao se desconsiderar os limites que se-
paravam, anteriormente, a arte da vida, os poemas tornam
porosas essas fronteiras que, agora, ironicamente, fazem
questão de aproximar esses dois lados, sem distingui-los.
54 Já o poema “Óculos”, escolhido como nossa se-
gunda epígrafe, apresenta um tom narrativo-descritivo ao
evidenciar um fato curioso percebido por Adília em algu-
mas de suas leituras. Destaca-se o tom fictício do verso,
como se um narrador autodiegético, com uma focalização
interna fixa, estivesse manifestando sua visão de mundo
por meio das averiguações que Alexandre Koyré fez ao
detectar a milenar importância dos óculos. Compartilhan-
do das impressões de leitura do estudioso francês, já que
versos seguintes trazem uma espécie de citação literal nos
moldes científicos exigidos pela academia (“Du monde de
l’à-peu-près’ à l’univers de la précision” (in Études d’histoire
de la pensée philosophique, Gallimard, Paris, 1981, p. 350).”),

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o eu lírico manifesta seu deleite ao confessar sua predi-
leção pelo ato de usar óculos e, também, por ler infor-
mações passadistas. Trata-se de entretempos nos quais se
percebem indícios de subjetividade permeados no tempo
presente da escrita poética: “Gosto de usar óculos. E gosto
de saber dessas coisas” (LOPES, 2015, p. 64). Adília ter-
mina o poema com a marcação de datas1, fato que pode
ser relacionado, ainda, a outros gêneros não literários, tais
como a carta, o diário ou mesmo as anotações cotidianas.
Tal detalhe também acentua a dicção prosaica desses ver-
sos e de grande parte dos poemas de Manhã.
À primeira vista, Manhã traz inúmeros elementos
inespecíficos que apostam nas experiências vividas pela
poeta na composição dos poemas, muito embora eles pos- 55

suam uma “lógica” interna em todo o livro: os poemas ex-


primem as várias sensações que a poeta experimentou em
diferentes momentos de sua infância e adolescência. E não
só isso: há vários momentos nos quais o eu lírico expressa
seu sentir por meio de alguns intervalos entre remissões
e rememorações. O interesse nas experiências da infância
vivenciadas em diversos lugares, principalmente ligados ao
ambiente familiar, escolar, viagens a lugares importantes
e mesmo triviais, aparecem como a matéria dos poemas.
Títulos como “14 anos”, “A padaria”, “A minha bisavó”,
“Prémios”, “Leituras”, “Tia Paulina”, “Escola Politécnica”,
1
Em quase todos os poemas, há o registro de datas após o último
verso e são todos referentes ao ano de 2014.

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“Geometria descritiva”, “O meu Avô Raul”, “A minha avó
dizia”, “Livros para crianças”, entre tantos outros, transpa-
recem o universo particular da poeta que se transformou
em material poético.
Isso se confirma no momento em que o leitor se
depara com as duas citações iniciais do livro. A primei-
ra, de Alexandre O’Neill, atesta que “pesquisas fazem-se
em casa, já dizia a minha avó, que era escritora” (LOPES,
2015, p. 7). A segunda, retirada de Viagens na minha terra,
de Almeida Garrett, nome importante da ficção portu-
guesa de meados do século XIX, revela um aspecto que
será utilizado veementemente pela poeta, o “recorte” de
“gente” e “figuras” caras à autora, “cola-os em folhas de
56 papel” da moda semelhante “às raparigas inglesas aos seus
álbuns e scrapbooks” (LOPES, 2015, p. 9).
A escolha intencional do substantivo feminino
“manhã” para intitular o livro, cuja temporalidade remete,
simbolicamente, à infância e à adolescência, é reafirma-
da por inúmeros meios, sejam eles verbais ou não-verbais.
Primeiramente, a capa do livro é composta por um tom
acinzentado preenchido por inúmeras esferas prateadas e
brilhantes que nos lembram a cobertura de bolos de ani-
versários infantis. Em seguida, na terceira página, antes
mesmo das epígrafes, há uma fotografia de Adília, regis-
trada no ano de 1964, em pleno verão português. E não
só neste momento, mas em outras passagens, há poemas

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que trazem imagens de Adília em festejos infantis (página
13), em eventos internacionais (página 21) e mesmo uma
fotografia da poeta ainda bebê, com 6 meses (página 76).
O poema “Pralines”, nome proveniente do francês
praliné, é um dos primeiros poemas de Manhã. Ele refe-
re-se à preparação de doces feitos à base de amêndoas e
açúcar que, no estágio final de produção, é transformado
em uma pasta branca semelhante à neve. Abaixo, eis esse
poema que aguça os sentidos sensoriais:

Pralines
No meu bolo de aniversário, mais do que das ve-
las, gostava das pralines. Esferazinhas prateadas sobre a
neve, sobre a cobertura de claras em castelo e açúcar.

18/6/14 57

(LOPES, 2015, p. 15)

Tais descrições de cunho doméstico e particular


articuladas por meio de uma linguagem simples estão pre-
sentes em quase todos os poemas do livro. Esse aspecto
desarticulador, no sentido do desinteresse nas estruturas
rígidas do poema e mesmo do verso em Adília, pode pa-
recer, à primeira vista, simplista e pouco atrativo para os
leitores de poesia tradicional. Contudo, são nesses imbri-
camentos e nesses desarranjos que se instauram as sub-
jetividades e novas possibilidades de criação poética que
parece inclinarem-se para um determinante comum entre
os gêneros. Para Garramuño (2014), em seu estudo sobre

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a inespecificidade da estética contemporânea, os textos
poéticos (e incluímos, aqui, os poemas de Adília) seriam
textos questionadores que põem em xeque as especificida-
des de um meio e “ao mesclar a voz lírica a uma trama de
textos e referências diversas, e colocar em tensão o verso
com a prosa, propiciam modos de organização do sensível
que colocam em questão ideias de pertencimento, especi-
ficidade e autonomia” (GARRAMUÑO, 2014, p. 18). As
marcas de inespecificidade do poético, associadas à mes-
cla entre verso e prosa, tendem à prosaicização do verso e
à dicção antilírica. Esses investimentos, associados a um
hibrismo de discursos descritivos, narrativos, citações, me-
morialísticos, desestruturam a noção tradicional de poe-
58 ma. É bom lembrar que há, em vários poetas contempo-
râneos, o interesse desmesurado pela vida íntima nos mais
diferentes campos. O poema “Colares”, que abre o livro
Manhã, reforça essa afirmação:

Colares
Em Colares, vi um bulldog branco anão em cima
de uma coluna branca no jardim de uma vivenda. É a
minha recordação mais antiga. É estranha. Parece in-
ventada. Mas não é.

Fui com minha avó materna no eléctrico da Praia


das Maçãs a Sintra. Tudo isto é muito proustiano, é claro.

Quando era muito criança, passava alguns dias de


Verão numa pensão em Colares com a minha família.
Iam os meus pais, a minha avó materna e a irmã da mi-
nha avó materna.

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Na quinta da pensão, vi uma porca deitada no chão
a dar de mamar a muitos leitõeszinhos. Adorei.

Em Colares, vi no céu o rasto de um avião a jacto.


Pensei que era um raio que ia cair em Lisboa em cima
de um armário de que eu gostava muito. A minha mãe
disse-me que não era assim. Há um verso de Rimbaud
que me lembra muito esta visão da minha infância mas
agora não o encontro.
Há cinquenta anos, vi maçãs na Praia das Maçãs
trazidas por um riacho ou talvez seja confusão minha.

Lembro-me de andar a passear à noite com os


meus pais em Colares pela estrada. A minha mãe dizia-
me: “Olha, um pirilampo”. Acho que nunca vi nenhum.
Ainda posso ver.

Ia muitas vezes a Sintra visitar o palácio da vila. O


cicerone já me conhecia. Dizia que eu gostava mais de
visitar o palácio do que de fazer covinhas na praia. Não
59
era assim. Gostar gostar era da Praia Grande. Fui lá
uma vez com minha prima Vera. Fizemos um castelo
com um fosso.

17/6/14
(LOPES, 2015, p. 11-12)

As rememorações trabalhadas aqui registram uma


passagem de Adília, na infância, por um pequeno vilarejo
em Portugal, situado no concelho de Sintra, com pouco
menos de 8 mil habitantes. Nele, a poeta traz os resquícios
mais remotos registrados por uma criança que não conse-
gue e não tem maturidade suficiente para externar o que
viu e/ou sentiu. Na primeira estrofe, um verso chama-nos
a atenção: “É minha recordação mais antiga. É estranha.

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Parece inventada. Mas não é”. Esse jogo irônico no qual
o eu lírico trabalha com os referentes está presente em
outros livros anteriores de Adília, reunidos em Dobra, de
2009. Na segunda e na quarta estrofes, notamos também a
presença de uma subjetividade permeada pela experiência
da leitura de autores da tradição – Proust e Rimbaud –
que se amalgamaram ao fazer poético do agora. A essas
descrições e experiências de leitura, Camargo (2008) as
entende como uma criação da subjetividade mediada
pelo lido. Nas últimas três estrofes, continuam os versos
prosaicos que destacam fatos pouco importantes para a
matéria poética, mas que, em Adília, são imprescindíveis.
Por fim, nos outros poemas que seguem, abre-se um ca-
60 minho sinuoso entre verso e prosa, entre experiência e ma-
téria poética, entre alta e baixa cultura e, em meio a tudo
isso, a demarcação do sujeito poético frente a um mundo
desterritorializado e sem fronteiras.

Referências Bibliográficas
ALVES, I. O conflito de opiniões na poesia portuguesa: o
esterco lírico e o grito do anjo. In: ALVES, I; PEDROSA,
C. Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e
contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 118-131.
CAMARGO, G. Subjetividade e experiência de leitura
na poesia lírica brasileira contemporânea. In: ALVES, I.;
PEDROSA, C. Subjetividades em devir: estudos de poesia

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moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
p. 99-107.
GARRAMUÑO, F. Frutos estranhos: sobre a inespecificida-
de na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
KIFFER, A; GARRAMUÑO, F. Apresentação. In: Ex-
pansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2014. p. 7-15.
LOPES, A. Manhã. Porto: Assírio & Alvim, 2015.
MARTELO, R. Alegoria e autenticidade (a propósito de
alguma poesia portuguesa recente). In: ALVES, Ida; PE-
DROSA, Célia. Subjetividades em devir: estudos de poesia
moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008,
p. 291 – 303.
PEDROSA, C. Poesia contemporânea: crise, mediania e
transitividade (uma poética do comum). In: ALVES, I.; 61
PEDROSA, C. Subjetividades em devir: estudos de poesia
moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
p. 41-50.
PEDROSA, C. Poesia, crítica, endereçamento. In: KIF-
FER, A.; GARRAMUÑO, F. Expansões contemporâneas:
literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2014. p. 69-90.
SALES, P. O jogo poético de Adília Lopes: o pastiche na
criação do sentir lírico. Revista desassossego, São Paulo, v. 9,
n. 17, p. 144-163, dez. 2017.
SÜSSEKIND, F. Até segunda ordem não me risque de nada:
os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cris-
tina Cesar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1995.

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DOS INFORTÚNIOS
DE ADÍLIA LOPES

Roberto Bezerra de Adília Lopes, desde seu primeiro título, Um


Menezes
jogo bastante perigoso, joga diretamente com as ideias
Universidade
Federal de Minas
de identidade e de ficcionalização poética, ambas ali-
Gerais/CAPES/ nhavadas por leituras e releituras da tradição literária.
PNPD
Nesse conjunto de poemas de 1985, presenciamos
Adília Lopes, pseudônimo literário de Maria José da
62
Silva Viana Fidalgo de Oliveira, evocar e dialogar
com personagens famosas, como é o caso de Esther
Greenwood, a protagonista de A redoma de vidro, de
Sylvia Plath, e da amiga de Mlle. Vinteuil, assim sem
nome representada em romances de Marcel Proust.
Essa atitude dialógica com um enorme imaginário
literário e, de maneira geral, artístico, ajudam a for-
mar uma identidade para esta poetisa, identidade, por
isso mesmo, múltipla: do mundo dos livros ficcionais
e de poemas a slogans publicitários, tudo pode vir a
fazer parte dos poemas de Adília Lopes.
É certa também, desde sua estreia, a cons-
trução de uma identidade feminina, de uma mulher

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que vive diversos infortúnios que se sobrepõem e se in-
tensificam. O sofrimento disso decorrente também passa
a matéria do poema, complexificando ainda mais a noção
de autoria nesta poética, tema já por mim trabalhado em
outra ocasião (MENEZES, 2018). É disso um exemplo,
para ainda referir-me ao livro de estreia, o poema “Para
um vil criminoso” (2014, p. 30-31), no qual ela reclama das
“mil maldades” que lhe foram feitas por esse criminoso do
amor. Como se lê em um poema que recupera o famoso
soneto de Luís de Camões: “Com o fogo não se brinca/
porque o fogo queima/ com o fogo que arde sem se ver/
ainda se deve brincar menos” (2014, p. 32).
Parto de um pressuposto levantado por João Bar-
rento para caracterizar essa atitude paródica e autoirônica 63

da autora no que se refere ao jogo do autorretrato: “a pa-


ródia e a auto-ironia são modos de permanentemente se
retratarem retractando-se em planos de-formantes, num
desconcertante narcisismo antinarcísico, em que o enamo-
ramento de si resulta no desejo de perseguir o outro-de-
si” (2012, p. 16). Os desastres e desventuras desse sujeito
poético são, então, o interesse desta reflexão, partindo da
hipótese de que eles são parte essencial de sua composição
e da sua força identitária e de autoria.
Continuando com o tema dos infortúnios do amor
(e da falta dele), começo por citar o poema “Meteorológica”
(2014, p. 297-298), do livro Clube da poetisa morta, de 1997:

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Meteorológica

para o José Bernadino

Deus não me deu


um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
64

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

Nesse poema, nota-se desde logo que seu título e


sua estrofe de encerramento versam sobre a solidão desse

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sujeito em meio ao bom tempo do dia. Por um lado, esta
situação deriva de uma escolha divina (“Deus não me deu/
um namorado”), por outro, os pretendentes que aparece-
ram no caminho não eram adequados (“Vi namorados/
possíveis/ foram bois/ foram porcos/ e eu palácios/ e péro-
las.”). Mas talvez o que mais seja interessante nesse ponto
seja a afirmação de que “A vida/ é livro/ e o livro/ não é
livre”. A poeta se apresenta resumida a uma vida que é
livro, ou seja, uma vida inteiramente dedicada à escrita,
ofício que é também uma servidão. Seu lamento, na oca-
sião relacionado à imagem do soneto de Verlaine em que
a chuva da cidade e o choro do coração são equiparados, é
o que perdura como parte da construção dessa identidade
poética cheia de infortúnios. 65

Por vezes, a concepção dessa personagem se apro-


veita da imagem que temos de Maria José/Adília Lopes.
Essa aproximação entre a autora e sua construção poética
(será Adília apenas um pseudônimo ou temos também a
criação de uma personagem?) é parte das artimanhas de
que se utiliza para singularizar sua voz. Pode-se referen-
ciar paradigmáticos versos que, apoiando-se em tons afir-
mativos e sintetizadores, servem para este propósito: “Eu
sou a luva/ e a mão/ Adília e eu/ quero coincidir/ comigo
mesma” (2014, p. 335); “Faço crochet/ o crochet faz-me/ e
nisto me desato” (2014, p. 160); “Que a obra/ não se opo-
nha/ à vida// Que a obra/ e a vida/ sejam uma// O texto

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nu/ e cru/ do autor// O rosto nu/ e cru/ do autor” (2014,
p. 546); “Um espelho/ não é/ uma janela// Um espelho/
não é/ um quadro// Quem espreita/ por meus olhos/ no
espelho/ sou eu// E eu/ sou eu// Não há/ enigmas” (2014,
p. 578). Esses poucos, mas significativos, exemplos ajudam
a mostrar por qual caminho escolhe seguir a autora: “A
Adília Lopes é água no estado gasoso, a Maria José é a
mesma água no estado sólido.” (2001, p. 18-19), diz-nos
em entrevista fazendo referência ao processo físico de su-
blimação, de transformação da matéria, que, nesse caso, é
texto, mas também é sujeito.
Em Sete rios entre campos, Lopes retorna ao tema
do corpo feminino fora de padrão, como o havia feito em
66 “Um quadro de Rubens” (“não há lugar para mim/ num
quadro de Rubens” (2014, p. 20)). Refiro-me ao poema
“Body art?” (2014, p. 338-339):

Body art?

Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre

Emagreço 21 Kg
as colegas

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da Faculdade de Letras
perguntam-me
se é menino
ou menina

No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar

Detesto
o sofrimento

Como se lê, a questão a atormentar nossa poeta é


sua forma corporal e a leitura que dela fazem as pessoas
por quem passa nas ruas. O “sofrimento” é não só a ava- 67

liação externa que dela fazem, mas a ocupação sobre uma


questão a princípio irrisória e à qual ela não oferece uma
resposta. E se “O verso vem/ conforme a vida/ que se tem”1
(2014, p. 666), então estamos a presenciar a poetização de
uma vida, ou melhor, a vida poética de um sujeito imer-
so em sofrimento e infortúnio. Veja-se que em seus livros
subsequentes essa questão não se resolve, retornando sob a
face de uma reflexão também social:

1
Sobre isso, repare-se que no subtítulo à poesia reunida da autora o
intervalo de composição inicia-se no ano de 1983, não em 1985, data
em que Um jogo bastante perigoso foi publicado. Podemos imaginar que
o ano de 1983 refere-se ao que principiou a escrever, sendo, portanto,
para Adília Lopes o laço entre a vida e a escrita uma de suas aporias
mais produtivas.

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1
Os ricos são magros
os pobres são gordos
nos hipermercados
o brioche
é mais barato
do que o pão
Maria Antonieta
tinha razão
foi no que deu
a Revolução Francesa
(se não têm pão
comam brioche)

2
Estou gorda
e quero ser
gorda
68
mas não quero
ser pobre
e não preciso
que me cortem
a cabeça
Maria a psiquiatria e a poesia
deram-me
uma cabeça nova

3
Engordei 43 Kg
de 86 para cá
agora
gorda como estou
já caibo
num quadro de Rubens
(segundo o Osório Mateus
no meu caso
era mais fácil
entrar para o quadro

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de um pintor
que para o quadro
de uma empresa) (2014, p. 478-479)

Repare-se que nesse poema, especificamente em


sua terceira parte, a autora volta ao seu primeiro livro e
ao poema “Um quadro de Rubens”, aqui anteriormente
citado. Ao passo que os anos se sucedem e os quilos se
acumulam, a poetisa já é capaz de figurar em um qua-
dro maneirista de Rubens, oferecendo ao leitor uma nova
perspectiva sobre sua poética que, segundo a própria au-
tora, está liada diretamente a essa vida, entendida como
elemento ficcional, ainda que a tensão nessa definição seja
parte fundamental de sua poética.
Também é relevante destacar a presença da pobre- 69

za como elemento que irá corroborar o infortúnio desse


sujeito. A pobreza e a gordura lado a lado sugerem um
descompasso que irá se aprofundar no poema “Os namo-
rados pobres”. Ei-lo:

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas


nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia

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têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
com os dentes
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
70
a encontrar

O acaso
não os favorece

Decidem nunca sair


do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel

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atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá para um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
71
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço (2014, p. 621-623)

O título e tema dessa trágica história de amor tem


seu fundo talvez n’Os amantes sem dinheiro, de Eugénio de
Andrade, mas dele difere pela completa ausência de trans-
cendência e de esperança, algo fundamental para a lírica
do poeta do Fundão. Como no poema anterior, neste o
sofrimento dos indivíduos se alia a uma questão social que
lhe subjaz, a pobreza e suas consequências.
O tema do amor e do enamoramento aparece fre-
quentemente na poesia de Adília Lopes associado ao seu

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pendor trágico. Recorde-se o caso emblemático da Ma-
rianna (com “n” duplicado) de O marquês de Chamily e de
O regresso de Chamilly, versão adiliana da história de amor
e de sofrimento de Mariana Alcoforado. Nesse sentido,
podemos dizer que não há espaço para idílio romanesco
na poética da autora. O tom trágico, nesse caso à la Romeu
e Julieta, perpassa não só a caracterização de sua identi-
dade solitária, mas também os vários personagens que ela
convoca de outros textos e mesmo os que inventa.
Naturalmente, neste esforço direcionado à cons-
trução de sua identidade antinarcísica, para recordar a
hipótese de Barrento, leva a poemas em que a penúria fi-
nanceira é o nervo central. Desde a história da escritora
72 poupada (“Era uma vez uma escritora tão poupada que
não escrevia para não gastar papel e tinta. 7/8/14” (2015,
p. 73)) à expressão clara do medo de uma vida miserável:

Tempo
é dinheiro
diz-se
e não se diz
tempo
é amor
Os homens
e as mulheres
são os únicos
animais
que inventaram
o dinheiro?
Não gosto
do dinheiro
não gosto

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de contas
Tenho medo
de vir
a não ter
dinheiro (2014, p. 547)

Por outro lado, e com este texto encerro, encontra-


mos também momento de irônica avaliação de sua “mar-
ca”, ou seja, de sua produção poética no mundo, enquanto
poesia e também enquanto produto de um mundo que
funciona com base no dinheiro e no comércio, “produtos
de um mercado dos livros e da cultura, trazendo uma dura
resposta, enviesada com muita ironia, aos seus detratores”
(MENEZES, 2018, p. 99), reconfigurando a auto irrisão
evidenciada ao longo desta reflexão:
73

Poesia e Gestão
Para mim poesia é gestão. Sou uma empresária de su-
cesso. A marca Adília existe no mercado desde 1984.
Estamos em 2016. Existe a marca Adília como existe a
marca Chanel. Perfumes e versos eficazes e eficientes.
Tenho um nicho de mercado. Nos anos 60-70 estavam
na moda os nichos dentro de casa, os nichos nos ni-
chos. Punham-se lá umas loiças de Cantão e uns santos
de pau santo. Sou um caso de empreendedorismo. O
ambiente foi sempre turbulento, o meu aerodinamismo
teve de ser muito. Agora que é a tempestade perfeita é
a bonança perfeita, disse João Miguel Tavares. É tudo
uma questão de gestão. Marketing. Timing. Zeitgeist.
Weltanschauung. Sturm und Drang. Trauma. Chanel
n.º 19.

28/1/16 (2016, p. 74)

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Referências Bibliográficas
BARRENTO, João. Identidade e literatura: o eu, o outro,
o há. Diacrítica, Braga, v. 26, n. 3, p. 9-39, 2012.
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
LOPES, A. Entrevista com Adília Lopes. Inimigo Rumor:
Revista de Poesia, Rio de Janeiro, n. 10, p. 18-23, mai.
2001.
LOPES, A. Manhã. Porto: Assírio & Alvim, 2015.
LOPES, A. Z/S. Lisboa: Averno, 2016.
MENEZES, Roberto Bezerra de. Os jogos de linguagem
na poesia de Adília Lopes. Cenários, Porto Alegre, v. 2, n.
16, p. 89-101, 2018. Disponível em: https://seer.uniritter.
edu.br/index.php?journal=cenarios&page=article&op=-
74 view&path%5B%5D=1635

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DA LITERATURA COMO
ATIVIDADE ERÓTICA:
ADÍLIA LOPES E ANA
CRISTINA CESAR

Valéria Soares o pó deposita-se no poema


Coelho o poema cantava o amor
graças ao amor
Universidade
e ao poema
Federal de Minas
o puzzle que eu era
Gerais
resolveu-se

(Adília Lopes, 2014)


75

Imagino como seria te amar:


desisto da ideia numa verbal volúpia
e recomeço a escrever
poemas

(Ana Cristina Cesar, 2016)

1 Introdução

Pensar a literatura como uma atividade eró-


tica pode ser um caminho para a análise das obras de
Adília Lopes e de Ana Cristina Cesar, pois as poe-
tas trabalham com textos em que a palavra assume o
desejo de confessar a própria impotência. Esquivo e

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indefinível, ele desliza em jogos de linguagem, tentativa de
superar a angústia do abismo entre os sujeitos, de destituir
os corpos fechados através de uma continuidade instau-
rada pela poesia. Georges Bataille (1987) define erotismo
como uma procura psicológica pelo outro para além da
nostalgia desse mundo imediato, que nos confina em mu-
ros de formas sociais e regularidades. As poetas conduzem
essa sua busca pelo que está fora por uma espécie de fusão
com a exterioridade. Relativizam as noções de identidade
e alteridade, ficção e memória, fazendo desmoronar estru-
turas do gênero lírico e do narrativo.
Desmancham fronteiras, buscam, na própria lin-
guagem, formas de driblar o isolamento entre as pessoas e
76 os discursos utilizando uma palavra que deseja sobretudo
destituir o sujeito de autossuficiência conceitual e acaba-
mento formal, para fazê-lo partilhado, em desconstrução.
Esse eu, que parece estar sendo oferecido em um ato per-
formático, renuncia e recua, mas se prepara novamente
para tentar assegurar uma suposta integridade. Em devir,
movimento contínuo, como uma dança ou luta, a angústia,
ânsia de resolver o “puzzle”, ou uma “volúpia verbal” é ne-
gação e afirmação de si, procura por um sentido que sem-
pre escapa, produto da compressão de um excesso, uma
energia em desordem, entropia.
Um eu lírico é então imolado ludicamente na pa-
lavra poética através de duas práticas textuais: implodindo

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fronteiras identitárias e/ou incorporando discursos de ou-
trem em operações de desapropriação/apropriação.

2 Implosões identitárias

Ferreira (2015), comentando o livro de Galen


Strawson, “Against narrativity” (2004), explora a ideia de
que a identidade é construída narrativamente, através de
seleção e enquadramento de fatos em nossa memória que
cria um percurso plausível, formador de uma autobiogra-
fia inteligível e justificável. O filósofo inglês, a partir dos
heterônimos da obra de Fernando Pessoa, pensa na exis-
tência desse eu que só se estabelece através das narrativas;
daí surge a ideia de um sujeito que não é e nem deixa
77
de ser fictício. Incorporando muitos outros, é personagem
de si mesmo, inventa-se na medida em que se interpreta,
experimentando a descontinuidade dos fatos e resultados
não homogêneos a fim de diacronicamente vivenciar con-
dicionamentos. Podemos aproximar essa teoria da manei-
ra como Adília Lopes e Ana Cristina Cesar trabalham a
questão da própria identidade. Veja-se:

Sou e estou. Eu sou eu e a minha circunstância como


disse Julio Iglesias. Eu não sou eu. Eu sou aquela que
não sou. Não, que disparate, eu sou eu. Já morremos to-
dos e já ressuscitámos todos. Agora há que viver a vida.
O Diabo é aquele que diz “Eu sou aquele que não sou”.
Sou eu às vezes. (LOPES, 2014, p. 419)

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Soneto

Pergunto aqui se sou louca


Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar


E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores


Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém


É um fenômeno mor
78 Ou é um lapso sutil? (CESAR, 2016, p. 151)

Temos em ambos os textos essa “identidade epi-


sódica” de Strawson, pois as poetas recusam um eu único
e acabado, colocando para si dúvidas e contradições em
torvelinho. Adília Lopes traz o demônio como sinal do
engano inerente à palavra, aquele que induz ao erro, à im-
possibilidade completa da certeza, ao logro permanente
da verdade. Em Ana Cristina Cesar, no verso 5 de seu
“Soneto” (tradição às avessas? transformação permanen-
te da lírica?), a motivação da escrita está declarada: amar.
Uma cantiga de amigo da “loura donzela Ana Cristina”
ou apenas a inadvertência, o erro, o acaso como o desejo,
“fenômeno mor” da perene experiência humana?

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Em uma atitude performática, assumem outros
sujeitos, sem com isso deixarem de ser elas próprias: “Sou
freira/à minha maneira/sou uma oliveira/sou uma figuei-
ra” (LOPES, 2014, p. 470); fecundidade e energia sagrada,
ou, quando seca, a dualidade do bem e do mal? Ou, ainda,
esconderijo arquetípico para o constrangimento pela culpa
da nudez, o interdito? “Eu era a freira de nariz arrebitado e
boquinha vermelha” (CESAR, 2016, p. 41). Uma imagem
crítica e contraditória da religiosidade cristã; altivez e de-
sordem sensual pairam por aí, não sem o desejo, a posse do
impossível, a interdição.
Adília Lopes várias vezes usa a palavra entropia,
termo da Física termodinâmica utilizado para descrever o
processo que permite avaliar a degradação de energia de 79

um sistema, que foi levado para o estudo das línguas para


significar a média das informações de um sistema linguís-
tico. Nesse contexto, somos levados a crer que a poesia é
também um corpo energético e, ao ser compartilhada pela
leitura e pela escrita, transporta-se, realizando um halo de
propagação em que suas forças impulsionam um trabalho
mecânico. Movimenta, dessa forma, outros corpos, outras
vidas impactadas.
Acreditamos que os poemas transcritos acima na
íntegra trazem essa movimentação e também a propagam.
Em Ana Cristina Cesar, a segunda estrofe contém o fin-
gimento pessoano em idas e vindas, podendo fazer crer à

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primeira vista, como em Adília Lopes, serem incoerentes.
Mas Melo e Castro, ao discorrer sobre a modernidade da
obra de Fernando Pessoa, afirma:

[...] Fernando Pessoa tem para nós todos uma impor-


tância fundamental como definidor de um espaço e de
uma atitude modernos. Pessoa é um poeta exato, total-
mente coerente porque desorganiza, indisciplina, mis-
tifica, finge, subtrai-se a qualquer ação direta - agindo
sempre, em todas as ações diretas, de um modo contra-
ditório, dialético.
Sabemos que a lógica e o absurdo só se manifestam
antiteticamente por indigência intelectual. É assim que
Fernando Pessoa só mistifica quem estiver docemente
convencido de que possui a verdade toda, ou que a Ver-
dade é possível.” (MELO E CASTRO, 1973, p. 41).

80 A verdade “polivalente” e a visão “prismática” pes-


soana de que nos fala Melo e Castro estão presentes na
obra de Adília Lopes e de Ana Cristina Cesar e elas tra-
zem muito claramente essa noção de que toda obra poéti-
ca possui sua verdade relativa que se soma ou se intersec-
ciona com outras através das práticas discursivas.
Quando Adília Lopes se diz às vezes como o “Dia-
bo”, “Eu sou aquele que não sou”, podemos nos remeter à
atitude erótica de Bataille, quando ele afirma que o cris-
tianismo, ao extirpar a transgressão, insubmissão, a revolta
do diabólico, alija o impuro e recalca a violência antes pre-
sente na religiosidade do mundo arcaico, deixando assim
as portas fechadas para o convívio com o contraditório. A

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linguagem do homem civilizado passa então à violência
silenciada, pois os bárbaros sempre se calam para que o
homem cortês negue para sempre o que há também em si,
lembrando o ditado popular: “Todo homem tem em seu
coração um porco que dorme” (BATAILLE, 1987, p. 120).
As poetas que estudamos revivem, eroticamente,
através da angústia, essa experiência da violação e do arre-
batamento extirpados, transformando-os em palavra. Essa
energia comprimida e destituída de racionalidade é então
mediatizada, e mesmo que ela se pareça com a insensi-
bilidade bruta para o “indigente intelectual” de que nos
fala Melo e Castro, ela será sempre esse movimento de
destruição apenas aparente, um rasgo de si para construir
e trazer de volta ao mundo racional o velado e o furtivo da 81

interdição que se expressa nessa palavra.


Nesse processo de resistência, os impulsos desor-
denados se convertem em náusea, vertigem, atração e re-
pulsa como num jogo de vida e morte para que o ser se
abra para o ilimitado e o descontínuo da existência erótica.
Essa desmedida se torna a única possibilidade de exceder
os limites e ir ao encontro do erotismo, desejo, que nada
mais é, que a eterna nostalgia de uma continuidade inexis-
tente. A morte é o único horizonte intransponível, e a vida
e os seres podem ser definidos, como Ana Cristina Cesar
bem o fez na interrogação dos versos 13 e 14 do “Soneto”:
“fenômeno mor”, “lapso sutil”.

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Afirmando a insuficiência humana, as poetas estu-
dadas oferecem, pela palavra, o sujeito lírico cêntrico como
que imolado, sacrificado no ritmo antigo do movimento
da lírica. Em compasso marcado, a exemplo do poema
abaixo, as fronteiras entre o eu e o outro são destituídas,
um ato de dissolução que libera proliferação, desordem.
Uma fusão erótica de existências em que seres descontí-
nuos se interpenetram na sensual e instintiva doação de si,
um ato sublime, como aquele da criação, capaz de restituir
à palavra poética seu sentido sagrado e ao mesmo tempo
profano, a perpetuação; a própria vida e morte, o sangue,
a comunhão em uma poesia que sente a dor do outro pela
experiência da alteridade. Veja-se:
82

Desfloras-me
Desfloro-te
Porque temos flores
um para o outro
o teu ritmo
em mim
sobre mim
tão novo
para mim
é muito antigo
é como o dos animais
ganho a minha virgindade
que te dou
e que não perco
sou sempre virgem
a minha dor
o meu sangue
são a tua dor
o teu sangue (LOPES, 2014, p. 198)

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Sob o signo da paixão: os sobressaltos são os outros; são
vertigens súbitas no meio da paisagem que rola (CE-
SAR, 2016, p. 415)

3 Incorporações dos discursos de outrem

Esse movimento sobressaltado, paixão e vertigem


rumo ao outro, de que nos fala Ana Cristina Cesar acima,
não seria também a própria linguagem, desejo de comu-
nicação? Compagnon (2010), ao discorrer sobre a ilusão
referencial e a intertextualidade, cita o conceito de Genet-
te: “uma relação de copresença entre dois ou vários textos,
isto é, o mais das vezes pela presença efetiva de um texto
num outro, citação, plágio, alusão são suas formas corren-
83
tes” (2010, p. 109). Para embaralhar mais ainda, acrescenta
teorias de Kristeva e Bakhtin: “a intertextualidade tende às
vezes a substituir simplesmente as velhas noções de fonte
e de influência” (2010, p. 109).
Sem desvencilhar desses conceitos, e acreditando
que eles podem ser chaves de entendimento da poética
das autoras em vários momentos, podemos pensar a inter-
textualidade aqui simplesmente como uma relação entre
textos em que, de alguma maneira, transparece também
o desejo de interpenetração entre aquele texto que está
sendo escrito e o texto que está sendo citado. As poetas
em questão trabalham com essa relação de forma ousada,
usando os textos de outrem sem se preocuparem com uma

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fidelidade a eles, ou seja, há uma apropriação criativa em
que, muitas vezes, os contornos desses discursos alheios
desaparecem para se incorporarem, de fato, ao texto que
é escrito por elas. Novamente vamos ter essa tentativa de
dissolução entre o eu e o outro, um prolongamento, uma
descontinuidade erótica.
Adília Lopes também utiliza muitas epígrafes em
seus livros e poemas, mas, curiosamente, há momentos em
que não conseguimos perceber muito bem a pertinência
delas, e, em outros, esse relacionamento é estabelecido
mais pelo confronto do que pelo comum das epígrafes,
que seria um mote, ou uma motivação positiva relacionada
àquele tema que vai ser tratado. Em outros ainda, percebe-
84 se uma intenção irônica e provocativa.
Em Clube da poetisa morta, por exemplo, temos na
epígrafe uma receita de biscoitos. Embora o livro venha a
falar de situações domésticas em que avós e tias são apre-
sentadas, fica uma dúvida sobre qual seria a função daque-
la epígrafe. Acreditamos que o objetivo seja exatamente
esse estranhamento, como se fosse dito ali que a autora, da
mesma maneira que o professor de Literatura (que tam-
bém queria que seus alunos se apossassem da poesia da
mesma forma que de suas próprias vidas, com irreverên-
cia intelectual e sentidos abertos), protagonista do famoso
filme Sociedade dos poetas mortos, também usaria métodos
nada ortodoxos, que não se encaixam nas antigas tradições

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das escolas de Letras. O próprio título do livro é irônico,
pois se no filme os poetas lidos já estão mesmo mortos,
a poeta que escreve está muito viva e faz viver nesse seu
“clube” (associação bem mais recreativa que “sociedade”)
elementos triviais do cotidiano.
Além da receita de biscoito, uma parlenda tam-
bém está ali, formando um hipertexto em que esses links
podem ser acessados no mesmo horizonte em que estão
outros textos literários e seus personagens. No primeiro
poema, em que aparecem histórias e cantigas para crian-
ças, lemos: “Coso-te vivo / não te coso morto / coso o
que está roto” (LOPES, 2014, p. 287). Nessa costura in-
tertextual viva, a repetição do fonema “ô” se parece com
o som de uma respiração, ou de uma ventania, que, ao se 85

repetir, atravessa o “roto” tecido fino e já muito usado da


linguagem, cujos fios se interseccionam e se embaralham,
tirando tudo do lugar. De fato, a poesia faz a linguagem
respirar, renovando sua tessitura.
Ana Cristina Cesar, por sua vez, também trabalha
com a intertextualidade e com esse uso de vários tipos de
discursos diferentes em um mesmo texto, numa justapo-
sição de vozes e escutas indiferenciadas que, sem hierar-
quias ou advertências, compõem o retrato múltiplo de um
instante. Veja-se:

Conversa de senhoras

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Não preciso nem casar
Tiro dele tudo que preciso
Não saio mais daqui
Duvido muito
Esse assunto de mulher já terminou
O gato comeu e regalou-se
Ele dança que nem um realejo
Escritor não existe mais
Mas também não precisa virar deus
Tem alguém na casa
Você acha que ele aguenta?
Sr. Ternura está batendo
Eu não estava nem aí
Conchavando: eu faço a tréplica
Armadilha: louca pra saber
Ela é esquisita
Também você mente demais
Ele está me patrulhando
Para quem você vendeu seu tempo?
86
Não sei dizer: fiquei com o gauche
Não tem a menor lógica
Mas e o tempo?
Ele está bonzinho
Acho que é mentira
Não começa (CESAR, 2016, p. 89)

Como nas epígrafes e dedicatórias do Clube da poe-


tisa morta de Adília Lopes, temos, no poema acima , várias
falas e frases intercaladas; não é só uma conversa entre se-
nhoras que o sujeito escuta, como o título no singular pode-
ria fazer supor. Não se vê diálogo, são perguntas e afirmações
que não se casam, como um quebra-cabeça faltando peças,
jamais resolvido; a própria linguagem falhada: a experiência
vivida, o amor, as reflexões sobre eles e a palavra poética.

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A temática feminina é predominante nos versos,
mas não como um libelo, como na maioria das vezes em
que esse tema é trabalhado na poesia moderna (versos 5
e 6), a exemplo do também inovador e multivocal Novas
cartas portuguesas, de Maria Teresa Horta, Maria Isabel
Barreno e Maria Velho da Costa. Oportuno citar o livro
das três Marias porque a data de sua publicação, em 1973,
coincide com o período de vigência da ditadura militar
brasileira e o contexto da escrita de Ana Cristina Cesar,
quando os debates sobre conflitos políticos, discrimina-
ções, colonização do corpo, autoridade e gênero estavam
também em foco de maneira entrelaçada aqui. Na “Con-
versa de senhoras”, publicado pela primeira vez em 1982
em A teus pés, já temos uma revisão do “assunto de mu- 87

lher” (verso 5) em que há o testemunho (ou denúncia?) do


oportunismo e da sagacidade femininos (versos 1, 2, 7, 11
e 13) em suas relações de amor (Adília Lopes também faz
essa revisão quando menciona uma espécie de crueldade
com as outras mulheres de que só a mulher é capaz). A
questão da autoria segue no mesmo tom, é também uma
das conversas das “senhoras” dentre outras quaisquer; a
teoria da literatura (ou a própria fala da senhora autora?)
não possui lugar privilegiado: “Escritor não existe mais”
(verso 8). Após a morte do autor, pode surgir outra tese
além da réplica de Barthes? Pode-se ir além do binômio
autor/leitor ou origem/destino do texto literário? As vozes

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prosseguem em abismo: “Conchavando: eu não faço tré-
plica” (verso 14).
Talvez a voz do eu lírico ali, no mesmo horizonte
das outras “senhoras” que conversam sobre o seu sustento
proveniente dos parceiros amorosos, questione também os
pilares do próprio gênero lírico, as convenções poéticas e
literárias, feminismos e outros lugares comuns, muitas ve-
zes também venais: “Para quem você vendeu seu tempo?”
(verso 19), “Não sei dizer: fiquei com o gauche” (verso 20).
O drummondiano modo de ser de várias faces, mesmo
com a irônica muita comoção, pode fazer o poema, mas
não é solução. Ficará mesmo a dúvida sobre quem e o que
será dito depois pelas “senhoras” (o senso comum? os lei-
88 tores?), pela teoria da Literatura, pelos poetas/eu lírico (ou
por todos eles?). O lirismo sempre irá adiante, além da dú-
vida e do horizonte de expectativas: “Acho que é mentira/
Não começa” (versos 24 e 25).

4 Algumas considerações finais

“Todo texto se constrói como mosaico de citações,


todo texto é absorção e transformação de um outro texto”.
Compagnon (2010, p. 108) cita Barthes, o dialogismo e o
“texto social” de Bakhtin para colocá-los como uma con-
dição do próprio discurso. Levando em consideração as
obras populares e os ritos carnavalescos medievais, Bakh-
tin trouxe a complexidade e o conflito de vozes dinâmi-

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cas para a crítica literária e Compagnon conclui que “a
intertextualidade é a própria literariedade” (2010, p. 111).
Adília Lopes e Ana Cristina Cesar confirmam com sua
obra essas teorias ao trabalharem com falas do universo
cotidiano, da tradição e de diversas fontes, mas acredita-
mos que elas vão além ao se relacionarem com todos esses
textos também enquanto verdadeiras amantes da literatu-
ra, leitoras vorazes, e por isso capazes de uma escuta pri-
vilegiada, com um foco múltiplo e irreverente, também de
crítica e de teoria literária. Dessa forma, trazem para a
cena poética que compõem um torvelinho de ideias, ci-
tações e ou alusões que não se fecham nunca. Em movi-
mento de constante expansão e recolhimento, apropriação
e desapropriação, a matéria de que é feita a poesia é como 89

a da própria vida, dialógica e performática, palco em que


as narrativas são obra aberta. Veja-se:

Fedra está apaixonada


por Hipólito
Hipólito não está apaixonado
por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre
num acidente

Dido está apaixonada


por Eneias
Eneias não está apaixonado
por Dido
Dido oferece uma espada
a Eneias

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Eneias esquece-se da espada
quando se vai embora
Dido suicida-se
com a espada esquecida
por Eneias

Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres (LOPES, 2014, p. 332)

Os mitos do fim trágico dos amores não corres-


pondidos trazem aqui personagens femininas fortes, con-
quistadoras e desesperadamente cientes de seu objeto de
desejo até à autodestruição. Em contrapartida, o eu lírico
90 nos apresenta uma solução banal para a sua mesma dor de
amor. Outra ironia, com certeza. Mas a opção encontrada
para o mal do eu lírico (como a arma letal de Dido, ofere-
cida por ela mesma ao amado) tem por alvo “atirar-se” no
investimento da própria escrita, na habilidade motora da
atividade lírica. Morte do lirismo? Pilhéria com o poeta,
consigo mesma? Mas há “os tempos livres”, jogo com a
chamada escrita automática e liberdade de viés surrealista?
O automatismo seria uma conquista, consolo amoroso de
quem tem o pleno domínio da tradição e de seus mitos
enquanto repertório disponível e acessado em momento
oportuno da escrita? A ilusão de libertar-se desse passado
pode ser pior porque impossível ou esse tempo dedicado é

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de fato doloroso? A metapoética do lirismo que aí se apre-
senta se assemelha com a de Ana Cristina Cesar:

33ª poética

estou farto da materialidade embrulhada do signo


da metalinguagem narcísica dos poetas
do texto de espelho em punho revirando os óculos
modernos

estou farta dessa falta enxuta


dessa ausência de objetos rotundos e contundentes
do conluio entre cifras e cifrantes
da feminil hora quieta da palavra
da lista (política raquítica sifilítica) de supersignos cabais: “duro
ofício”, “espaço em branco”, “vocábulo delirante”, “traço infinito”

quero antes
a página atravancada de abajures
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas 91

a sedução os maxilares
o plágio atroz
ratas devorando ninhadas úmidas
multidões mostrando as dentinas
multidões desejantes
diluvianas
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos
a pecar e por cima

os cortinados do pudor
vedando tudo
com goma
de mascar.

out.75 (CESAR, 2016, p. 325)

Há o imediato reconhecimento do diálogo com


os poemas “Poética” e “Pneumotórax”, de Manuel Bandei-

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ra, publicados em Libertinagem, de 1930, em que o genial
pernambucano sintetiza com maestria toda a revolução da
poesia modernista brasileira de 1922. Ana Cristina Ce-
sar parece enfrentar também paradigmas das propostas
poéticas comuns no raciocínio dos anos de 1970; estudos,
experimentos e concepções não mais derivadas do moder-
nismo de 1922. A “materialidade embrulhada do signo”
(verso 1) e a “metalinguagem narcísica dos poetas” (verso
2), das quais o eu lírico está farto, nos envia às teorias da
Semiótica de Charles Pierce, divulgadas pelos concretis-
tas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari nos
anos de 1970, na PUC de São Paulo. Os contrastes entre
os ideais desenvolvimentistas internacionais de valorização
92
da tecnologia moderna e a escassez de recursos brasileiros
já atraíam discussões e experimentos sobre conceitos como
herança, apropriação, imitação e transformação. Os poetas
modernos do texto de espelho que reviram os olhos (versos
2, 3 e 4) são crítica à falta de criatividade e impostação
intelectualista de muitos diante daquelas teorias. A “falta
enxuta” (verso 5), que traria uma poesia asséptica, a ausên-
cia de objetos de reais atritos e significação, e os conchavos
entre pares em que valores e significados circulam como
“conluio” (verso 7) enfaram também o sujeito do poema. A
repetição de expressões, modismos e atitudes, como uma
lista do bom procedimento poético, fazem ecoar criativa-
mente, em novo contexto, as mesmas palavras do repúdio
de Bandeira: “político, raquítico, sifilítico” (verso 9).

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Se em Bandeira temos críticas aos “puristas” e a
inclusão de “barbarismos”, Ana Cristina Cesar lista na
terceira estrofe objetos e atitudes estranhas e aversivas à
poética asséptica formalista; a vida, suas impurezas, imun-
dícies úmidas, desejos e seduções inconfessos. Se o moder-
nista nordestino afirma: “Quero antes o lirismo dos loucos
/ O lirismo dos bêbados / O lirismo difícil e pungente dos
bêbados / O lirismo dos clowns de Shakespeare / - Não
quero saber mais do lirismo que não é libertação.” (BAN-
DEIRA, 1978, p. 98), a poeta carioca quer em sua página a
cópia destituída de compromisso com o original, com uma
força que abarque o lado animalesco do desejo excessivo
e incontrolável das multidões, um erotismo bastardo que
os pudicos teimam em vedar com o lirismo engomado dos 93

materiais sintéticos e importados que não se pode engolir.


Os “tempos livres” de Adília Lopes (no último
verso de seu poema acima) diferem do chamado “tempo
útil” ou ordinário, já que o primeiro possui um efeito sus-
pensivo, intervalar, como também a experiência erótica, o
lúdico e o festivo que se vinculam a essa intermitência e
alcançam seu sentido coletivo na gênese do sagrado. Esse
tempo extraordinário comporta também a intensidade lí-
rica do inexprimível, herança de seu vínculo ancestral com
o sagrado, na criação de um movimento menos pessoal
do eu para o outro, expandidos então através da palavra
poética. Os “clowns de Shakespeare” e a embriaguez de

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que nos fala Bandeira nos remetem também a esse tempo
livre suspenso, ao riso e à festa da abundância procriadora
bakthiniana, das quais Adília Lopes e Ana Cristina Cesar
não se furtam.
Podemos, a partir dessas reflexões sobre as atitu-
des de desprendimento e expansão de singularidades das
duas poetas frente à construção de sua poética, fazer uma
aproximação entre o que Harold Bloom comenta sobre o
amor à leitura de Virgínia Woolf em Orlando, ao que Adí-
lia Lopes e Ana Cristina Cesar também demonstram em
seus poemas: “[...] na verdade, só há uma personagem em
Orlando. O amor à leitura de Virgínia era ao mesmo tem-
po seu impulso erótico e sua teologia secular.” (BLOOM,
94 2001, p. 423).

Referências Bibliográficas
BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana.
São Paulo: L&PM, 1987.
BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1986.
BLOOM, H. O cânone ocidental. Trad. Marcos Santarrita.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CÉSAR, A. C. Poética. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria. 2 ed. Trad.

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Cleonice Paes Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010.
ANDRADE, C. D. Nova reunião. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1985.
FERREIRA, A. O enigma do eu. Apontamentos críti-
cos acerca do conceito de narratividade. Griot – Revista de
Filosofia, Belo Horizonte, UFMG, v. 12, n. 2, Dez. 2015.
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
MELO E CASTRO, E. M. de. O próprio poético. São Pau-
lo: Edições Quíron, 1973.

95

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EROTISMO E RELIGIO-
SIDADE EM O PEIXE NA
ÁGUA, DE ADÍLIA LOPES

Juliana Gonçalves 1 Introdução


Lobo

Universidade O peixe na água foi publicado em 1993, o oi-


Federal de Minas
Gerais tavo livro de Adília Lopes. Nesta obra, que se inicia
com uma epígrafe indicativa da temática religiosa
que perpassará os textos, é possível identificar como
Adília, utilizando procedimentos comuns a sua poé-
96
tica, como as diversas citações eruditas e populares,
os jogos de palavras, dentre outros, explora o erotis-
mo em conjunto com a religiosidade, mais especifi-
camente a cristã.
Como citado anteriormente, considera-se
indício desta abordagem a epígrafe escolhida pela
autora, de José Mattoso, historiador medievalista e
professor universitário português, que contém a se-
guinte afirmação: “Para mim, é este o momento de-
cisivo da minha confrontação com Deus: o encontro
inelutável com o silêncio” (2014, p. 186). A partir
disso e da leitura dos poemas, nota-se que esse livro
representa o confronto de ideias disseminadas pelo

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cristianismo, como o sexo pecaminoso, a castidade, a se-
paração entre carne e espírito e a negação dos desejos car-
nais, com toda a potência erótica inerente ao ser e à arte.
Entretanto, esse enfrentamento se apresenta de
maneira curiosa, pois ocorre o embate entre as temáticas,
mas o resultado é a afirmação da unidade entre carne e
espírito e a naturalização dos desejos e comportamentos
eróticos. Também é colocado em pauta o que a mulher
representa para o erotismo e para o cristianismo, pois se
repetem, nos poemas, imagens historicamente referidas ao
feminino e a sua ligação com o sexo e o pecado, como a
castidade, a virgindade, a freira, Maria (mãe de Jesus), a
solidão, o parto e o sangue.
97

2 Os primórdios do erotismo e sua ligação com o místico

É importante entender o que é o erotismo de


modo geral para poder analisá-lo nos poemas de Adília.
Quando se pensa o erotismo, é inerente a ele a ideia da
relação sexual e, logo, da relação amorosa, pressupondo
que o conhecimento do amor para entender o erotismo
é importante. Considerando essa ideia e o fato da palavra
erotismo derivar de Eros (deus do amor, na mitologia gre-
ga), a obra O banquete, escrita por Platão, é relevante para
se iniciar a discussão, pois trabalha as várias possibilidades
da natureza do amor e, segundo Lúcia Castello Branco,

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em seu livro O que é erotismo? (1984), esse pode ser o texto
sobre o tema mais antigo que se tem notícia no Ocidente.
Nos vários discursos apresentados n’O banquete,
o de Aristófanes é o mais relevante para a discussão do
erótico. O filósofo conta que, remotamente, os seres eram
classificados em três gêneros: o feminino, o masculino e
o andrógino. Este último era redondo (forma geométri-
ca referente à integridade e à perfeição) e conseguiu se
sobressair aos outros seres, tornando-se tão poderoso que
desafiou Zeus. Como castigo, Zeus mutilou esses seres ao
meio, separou a parte feminina da masculina, condenan-
do-os a procurarem incessantemente suas metades. Dessa
procura e do desejo de se juntar a sua metade e retomar a
98 completude nasceu Eros (BRANCO, 1984).
Com isso, pode-se dizer que o erotismo, segundo
as ideias expostas n’O banquete e trabalhadas em O que é
erotismo?, de Castello Branco, “não se restringe apenas a
uma noção de união sexual ou amorosa, [...] mas se esten-
de à ideia de conexão, implícita na palavra religare (da qual
deriva religião)” (BRANCO, 1984, p. 9). Para além, o ero-
tismo representa essa necessidade impulsiva de se sentir
completo novamente, pois o Ser está incompleto.
Ainda seguindo o raciocínio de Castello Branco, o
desejo de se tornar completo, de retornar à forma natural
se manifesta no misticismo (religiosidade), como se um
ser superior fosse preencher o que está faltando, e na arte,

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que possui o potencial de eternizar o ser e “sustenta a reali-
zação do prazer pelo prazer, do gozo estético” (BRANCO,
1984, p. 13). A primeira manifestação acabou por associar
o prazer à punição e ao pecado, colocando-o como algo
perverso. Essa culpabilização recaiu principalmente sobre
a mulher, por ainda conservar em si momentos em que
retoma sua completude e que remetem naturalmente ao
erótico, como a gestação e a menstruação. Logo, a mulher
tem reprimidos os seus impulsos eróticos e é considerada
impura nesses períodos.

3 Analisando a temática nos poemas de O peixe na água

Adília Lopes, por sua vez, perpassa todas essas


99
questões em alguns dos poemas de O peixe na água. A poe-
tisa recorre tanto à religiosidade quanto à arte para alcançar
o gozo erótico, e, para isso, traz questões ligadas à sexuali-
dade do feminino e eleva o ato sexual ao plano espiritual.
Outrossim, percebe-se uma possível ligação a uma
tradição literária erótica, considerando o fato que Adília,
antes de ser escritora, é, sobretudo, uma leitora voraz e faz
referência, no poema “Adormecer”, quarto poema do livro
em questão, a Maria Teresa Horta, escritora portuguesa
conhecida pelo cunho erótico de sua poesia e por forte
atuação no movimento feminista e na defesa dos direitos
da mulher, usando o erotismo, também, para denunciar a
repressão sexual feminina. Além disso, Adília demonstra

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essa filiação a uma tradição que aborda o sexo na escrita,
de forma implícita ou explícita, ao fazer várias referências
às cantigas medievais, visto que o erotismo “desbocado”,
que aborda esse conteúdo mais explicitamente, segundo
Castello Branco, “parece ter surgido nas cantigas de es-
cárnio e mal dizer dos poetas provençais do galego-portu-
guês” (BRANCO, 1984, p. 57).
O movimento de sublimação do sexo não está pre-
sente somente em O peixe na água, outras obras de Adília
já contém essa temática, como Luis Maffei salientou em
seu texto intitulado “Canto a beleza, canto a putaria: de
Bocage e Camões a Adília”: “Outra articulação adiliana:
‘Acho que o prazer é casto / o que não é casto / é o simula-
100 cro do prazer / ou a renúncia ao prazer / tanto o simulacro
/ como a renúncia’ (LOPES, 2002, p. 27). Lição sadiana?
Fim aos ‘falsos preconceitos do pudor’? Claro, pois renun-
ciar ao prazer é um pudor.” (MAFFEI, 2017, p. 84).
Neste trecho, Maffei retoma o poema “A salada do
molho cor-de-rosa”, no qual o sujeito poético diz exatamen-
te que o prazer é casto, o que não é casto seria a renúncia
ao prazer. Com isso, fica nítido o movimento presente no
poema de elevação e naturalização do gozo erótico. Tal fato
também está presente no poema “Absorver”, mais explicita-
mente nos versos “Chama-se sexo / a uma parte do corpo /
como se todo o corpo / as mãos os pés a cabeça / não fosse
também sexo” (2014, p. 190) e “posso estar nua e ser casta

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/ não tenho nada de freira viciosa” (2014, p. 190). Nesse
poema, o sujeito poético postula todas as partes do corpo
como sexo, não restringindo-o apenas aos órgãos tradicio-
nalmente sexuais, o que naturaliza o sexo, desmistificando
tal conceito. Em “posso estar nua e ser casta / não tenho
nada de freira viciosa” (2014, p. 190) reaparece a questão
da castidade associada ao sexo e, nesse caso, à nudez, cul-
turalmente erotizada, e também refere-se às freiras vicio-
sas, figuras recorrentes nas cantigas de escárnio, que tinham
como frequente objetivo denunciar a hipocrisia da igreja.
É relevante analisar também como Adília aproxima
o erótico de passagens, personagens e termos bíblicos de
maneira direta e sem maiores pudores. Isso denota a bus-
ca pelo gozo erótico na religião, mas, concomitantemente, 101

não se ignora que o sexo pode estar atrelado ao místico, e


que, em se tratando do cristianismo, é considerado o pe-
cado original. A poeta, inclusive, tem a sua versão do livro
bíblico Eclesiastes, em poema homônimo:

ECLESIASTES

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão minhas contas
do que foi (2014, p. 196)

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Nesse poema, Adília utiliza-se de idêntica estrutu-
ra do texto bíblico para trabalhar o erotismo e a solidão da
mulher. Há outros poemas deste livro que apresentam re-
lação com passagens bíblicas, um deles é o décimo sétimo
poema, que não possui título, nos versos “com o amor / fo-
mos expulsos / do Paraíso / com a ficção / sofremos o tra-
balho / e o parto” (2014, p. 196), que remete à expulsão de
Adão e Eva do Éden e ainda faz uma reflexão metapoética
ao sugerir que a ficção é como um trabalho de parto. No
décimo nono poema do livro, personagens bíblicos apare-
cem, José e Maria, pais de Jesus, mas agora envolvidos em
relações amorosas com terceiros, no universo erótico cons-
truído por Adília, como se vê nos seguintes versos: “Eu
102 apaixonada pelo José / tu apaixonado por Maria / caímos
nos braços / um do outro / na minha cama” e “e o José nem
sequer gosta de mim / ainda bem que casaste com Maria”
(2014, p. 197-198).
Já no segundo poema do livro, a palavra “comun-
gar”, utilizada pelos católicos para designar o ato de rece-
ber o sacramento da Eucaristia, é usada como sinônimo de
sexo, elevando o ato sexual a um ato de fé, de conhecimen-
to de Deus, em que os sujeitos que praticam a ação são
adjetivados como belos e “herdeiros do mundo”. Ou seja,
mesmo na consumação sexual continuam sendo filhos de
Deus e retiram a “feiura” e o grotesco atribuído pela igreja
ao sexo. Pode-se inferir tais ideias dos versos “estamos nus

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/ somos muito bonitos / herdeiros do mundo / (espero por
ti / vens ter comigo / convidei-te) / despimo-nos muito
depressa / comungamo-nos.” (2014, p. 187).
Há indícios de um certo puritanismo nos versos
de Adília, que sempre citam a castidade e a virgindade
como uma condição. Isso aparece no vigésimo poema, o
qual se inicia com “Desfloras-me / desfloro-te / porque
temos flores” (2014, p. 198), o que pode remeter ao ato
sexual, pois há uma associação recorrente na literatura en-
tre a flor e o órgão genital, principalmente o feminino.
Mais à frente, é explicitado o puritanismo e a questão da
virgindade quase como um estado de espírito nos versos
“ganho a minha virgindade / que te dou / e que não perco
/ sou sempre virgem” (2014, p. 198). 103

Essa relação de Adília e de seus poemas com a reli-


giosidade cristã fica evidente à medida que ela abre espaço
para o prazer subjetivo e para a vida mundana serem retra-
tados juntamente com a temática religiosa, confrontando
o cristianismo sem abandoná-lo. Dessa forma, constrói
uma espécie de cristianismo pessoal, uma maneira própria
de se relacionar com ele e, ao recriá-lo, a poeta ressignifica,
por exemplo, o espaço da igreja, que aparece em “(criminal
world)” como o local de encontro dos amantes: “Esperas
por mim / na entrada da igreja / onde se vendem souve-
nirs / enquanto eu rezo” (2014, p. 204). Por fim, o poema
do livro que mais explicita o movimento de unificação de

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corpo e alma, de elevação do ato sexual a ato sagrado, pro-
posto por Adília é o poema a seguir:

Beijo-te
a tua mão
a tua mão
é o meu pão

(Desejo-te
muito
tu todo
em carne
e em espírito
que não separo
porque são um) (2014, p. 205)

Nesse poema, o sujeito poético afirma a carne e o


espírito como unos e traz a figura do pão, usada no cris-
104
tianismo como representação do corpo de Cristo, para
o corpo de seu amante. Logo, é possível depreender dos
poemas eróticos presentes em O peixe na água que Adília
busca o erotismo casto, não como forma de repressão dos
desejos sexuais, mas como forma de elevação dos instintos
carnais à plenitude espiritual. Além de desmistificar ta-
bus, relacionados à sexualidade impostos pela igreja, com
a maneira explícita e despudorada que relaciona os dois
extremos, refuta-se, dessa forma, o controle social exercido
pela igreja por meio da repressão do erótico e a negação
dos impulsos sexuais da mulher.
Pode-se concluir que, se valendo de uma tradição
erótica, iniciada nas cantigas de escárnio e mal dizer do

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galego-português e que atravessa Camões, Bocage e Ma-
ria Teresa Horta, por exemplo, e da dimensão religiosa na
literatura e na sociedade, como controladora da ordem so-
cial e castradora dos desejos sexuais, Adília utiliza o po-
der da literatura para problematizar e rebaixar o erotismo.
Propõe, assim, em sua poética, a desmistificação dos tabus
cristãos e a unificação do sagrado e do profano, ambos ele-
vados tanto à instância espiritual quanto à natural.

Referências Bibliográficas
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
BRANCO, L. C. O que é erotismo? São Paulo: Editora 105

Brasiliense, 1984.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. Tradução Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MAFFEI, L. Canto a beleza, canto a putaria: de Boca-
ge e Camões a Adília. Via Atlântica, São Paulo, n. 11, p.
75-86, 2007. Disponível em: http://www.revistas.usp.
br/viaatlantica/article/view/50664.

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A ENTROPIA COMO ME-
CANISMO PARA O FAZER
POÉTICO NA POESIA DE
ADÍLIA LOPES

Carla Lorena da Tenho nós


Silva dentro de mim
que tenho
Universidade
que desatar
Federal de Minas
Gerais
Tenho nós
106 dentro de mim
que me estão
a estrangular

Adília Lopes (2014, p. 587)

A poeta portuguesa Adília Lopes,


pseudônimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo
de Oliveira, publicou sua primeira obra em 1985 e
continua escrevendo, com dois livros publicados re-
centemente, em 2016 e em 2018.
Esta análise tem por objetivo refletir sobre o
fazer poético na obra de Adília Lopes. Cabe salientar,
no entanto, que Adília Lopes, assim como Mariana
Alcoforado, (tornada personagem dos poemas de O

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Marquês de Chamilly publicado em 1987) é apenas mais
uma máscara das tantas que a poeta utiliza (cf. MELO,
2013, p. 136). Conforme afirmado por Evangelista (2011,
p. 46), até a própria Maria José “passa a ser apenas mais
uma das personagens adilianas”.
Importante ressaltar, também, que o poema é,
como definido por Octavio Paz (1982, p. 83), “universo
auto-suficiente”. E o mesmo autor afirma, ainda, que “[...]
em toda tentativa de compreender a poesia se introduzem
resíduos alheios a ela – filosóficos, morais ou outros [...]”
(1982, p. 30). Sendo assim, esta análise que se desenvol-
verá é uma das possíveis leituras dos poemas de Adília
Lopes. Tal esclarecimento faz-se necessário, uma que vez
que, portadora de tantas máscaras, podemos encontrar na 107

obra dessa poeta muitas contradições. Além disso, são ca-


racterísticas marcantes na obra de Adília o humor, a ironia
e as referências religiosas.
Tomemos como objeto de análise o poema abaixo,
publicado no livro A mulher-a-dias:

LOUVOR DO LIXO

É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terremoto ameaça

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a entropia de cada dia
nos dai hoje
o pó e o amor,
como o poema
são feitos
no dia a dia
o pão come-se
ou deita-se fora
embrulhado
(uma pomba
pode visitar o lixo)
o poema desentropia
o pó deposita-se no poema
o poema cantava o amor
graças ao amor
e ao poema
o puzzle que eu era
resolveu-se
mas é preciso agradecer o pó
108 o pó que torna o livro
ilegível como o tigre
o amor não se gasta
os livros sim
a mesa cai
à passagem do cão
e o puzzle fica por fazer
no chão (2014, p. 445-446)

Para apresentarmos uma possível leitura do poema


acima, é importante destacar parte de uma entrevista con-
cedida por Adília Lopes à revista Inimigo Rumor, na qual
a poeta afirma que começou a escrever para lidar com a
angústia de ter perdido uma gata e que, a partir daí, passou
a escrever sem parar (cf. LOPES, 2007, p. 105). Podemos
propor, assim, que há uma entropia interior a qual Adília

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tenta aplacar através da escrita. Partindo dessa premissa,
conseguimos entender porque a poetisa é a mulher-a-dias
(ou faxineira/arrumadeira), pois arrumar o poema é “arru-
mar” a si própria; é lidar com a entropia interior e adiar o
“Kaos”. Vejamos um poema que valida essa leitura da exis-
tência de unicidade entre obra e vida: “Que a obra / não se
oponha / à vida // Que a obra / e a vida / sejam uma // O
texto nu / e cru / do autor // O rosto nu / e cru / do autor”
(LOPES, 2014, p. 546).
Assim como o trabalho de uma faxineira nunca
se finda, uma vez que a própria e simples vivência no lar
gera trabalho, a poeta nunca acaba com o “kaos” interior,
somente o adia. Ou seja, a constante arrumação da casa
– e não poderíamos pensar no nosso próprio corpo como 109

habitação ou casa da nossa alma e espírito, talvez contur-


bados? – não garante o fim do “Kaos”, uma vez que ele está
sempre à espreita.
O termo entropia, por sua vez, marca presença em
muitos poemas de Adília, e um deles se encontra no li-
vro Irmã barata, irmã batata: “Estou verde como o mar ao
meio-dia. Estou contente. O mundo não acaba. A entro-
pia não aumenta sempre porque o mundo não é um siste-
ma isolado. Acho que do outro lado está Deus. O mundo
e Deus comunicam” (LOPES, 2014, p. 415). É possível
perceber nesse poema como a aparente paz de espírito faz
com que a poeta tenha uma perspectiva mais positiva em

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relação à entropia, ao afirmar, ao contrário do que apregoa
a lei, que ela “não aumenta sempre”. É ainda possível esta-
belecer uma comunicação entre este último poema apre-
sentado e “Louvor do lixo”, ao pensarmos que a entropia à
qual Adília se refere é a confusão interior. E não podemos
pensar no próprio ato da escrita como sendo um agente
transformador dessa perspectiva? Não seria escrever o poe-
ma uma forma de desentropiar e através dessa “desentro-
piação” ficar contente/verde como o mar ao meio-dia? Em
outras palavras: seria o ato de escrever que adia o “Kaos”.
Prosseguindo nessa linha de análise, e consideran-
do que, em entrevista à revista Inimigo Rumor, Adília se
diz católica (LOPES, 2001, p. 19), nos deparamos com
110
um verso que faz clara referência à oração do pai nosso,
presente em Mateus 6: 9-13. Neste jogo de palavras, a
poetisa “reza” pedindo pela “entropia de cada dia” (versos
9 e 10). Encontramos, também, outro poema que faz re-
ferência ao mesmo texto bíblico: “A poesia de cada dia
/ nos dai hoje” (LOPES, 2014, p. 654). A partir de uma
leitura na qual levamos em consideração os versos acima,
é possível compreender a entropia como um gatilho que
funciona como mecanismo para o fazer poético na obra de
Adília. Isto porque é através da tentativa de “desentropia-
ção” de si que surge a poesia. Nessa perspectiva, suplicar
pela entropia ou pela poesia levaria a um só resultado, uma
vez que um se dá em função do outro.

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Já na comparação entre o pó, o amor e o poema
(versos 11 e 12), é possível entender que o fazer poesia
é algo paulatino e constante – assim como o acúmulo de
pó. Encontramos no livro Caderno, outro poema que nos
apresenta uma comparação semelhante para embasarmos
a leitura proposta: “Degrau a degrau / verso a verso / o
poema / a escada” (LOPES, 2014, p. 608). Nele, temos o
primeiro verso completando o sentido do último e o se-
gundo completando o sentido do terceiro. Assim como
a escada é formada por degraus, o poema é formado por
versos; e assim como o calcar os degraus é um processo
constante para aquele que quer atingir o topo, da mes-
ma forma é o fazer poesia para a poeta. Temos, assim, um
quarteto ligado à ideia de “paulatino e constante”: o pó, o 111

amor, a escada, o poema.


Nos versos que se seguem (15 e 16), a poeta escre-
ve sobre comer o pão ou deitá-lo fora, ainda embrulhado.
Retomando o que foi discutido previamente sobre a re-
lação poesia/entropia no jogo de palavras que se referem
à reza do “Pai nosso”, podemos adicionar mais um item
a esse conjunto, formando, dessa forma, uma trindade:
o pão, a entropia e o poema. Conforme já discutido, no
lugar de “O pão de cada dia nos dai hoje” lê-se, no poema
“Louvor do lixo”, “A entropia de cada dia / nos dai hoje” e,
posteriormente, em outro poema, “A poesia de cada dia /
nos dai hoje”. Ao fazer referência ao pão que se come ou
se deita fora embrulhado, não estaria a poeta se referindo

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ao próprio “bom uso” que se pode fazer da entropia? Isto
é, usar a entropia como mecanismo para o fazer poético.
Usa-se a entropia como combustível ou deita-o fora. É ele
que serve como “motor” para o fazer poético.
Pensando ainda na trindade dos três elementos
apresentados, vale ressaltar que no livro Caderno a poeta
afirma: “Preciso / de solidão / como de pão // Preciso / de
pão / como de pão” (LOPES, 2014, p. 570). A partir da
leitura que se desenrola do poema “Louvor do lixo” e con-
siderando os três elementos ligados, é possível propor uma
paráfrase: preciso da solidão como da entropia; preciso da
solidão como do poema; preciso de pão como da entropia;
preciso de pão como do poema.
112 Para apresentarmos uma leitura dos versos seguin-
tes sobre a pomba, vale citar um outro poema do livro A
mulher-a-dias no qual o sujeito poético se compara com
uma: “Sou imprudente / como os pombos / que morrem
atropelados” (LOPES, 2014, p. 473). Interessa-nos, prin-
cipalmente, os dois primeiros versos para compreender-
mos a proposta de leitura que objetivamos. No poema ob-
jeto de nossa análise, para os versos “uma pomba / pode
visitar o lixo”, podemos propor que uma pomba visitaria
o lixo pelo pão, que ainda embrulhado, “foi deitado fora”.
Lembrando, mais uma vez, a ideia de trindade propos-
ta pelos três elementos (o pão, a entropia e o poema), a
pomba – sujeito poético aqui representado – poderia, no

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lixo, buscar seu alimento: o combustível para o fazer poé-
tico. Tal leitura se viabiliza, uma vez que é perfeitamente
possível encontrarmos uma relação entre os termos “lixo”
e “entropia”. Assim, uma pomba pode visitar o lixo em
busca de pão, entropia, poema. E desvenda-se, assim, o do
título do poema: “Louvor do lixo”.
O verso seguinte (20) afirma que o poema desen-
tropia – assim como a arrumação da casa – mas esse “de-
sentropiar” é efêmero, pois o pó deposita-se no poema, as-
sim como acontece quase instantaneamente à arrumação.
O pó aparece e se ajunta, como já falamos, paulatinamente
e de forma constante, sendo que ele é imprescindível para
que o trabalho da arrumadeira, ou mulher-a-dias, se faça
necessário. Dessa forma, compreendemos que a entropia 113

– simbolizada pelo pó – faz-se fundamental para que o


trabalho da poeta aconteça.
Continuando a análise, nos versos seguintes (23 e
24) vemos que o poema e o amor são responsabilizados pela
resolução do puzzle (quebra-cabeça) que é esse sujeito poé-
tico. Versos que novamente nos remetem à entrevista citada
no início deste texto, na qual Adília afirmou ter começado a
escrever devido à angústia pela perda da sua gata, ou seja, o
poema resolve o puzzle, desentropia, afasta a angústia.
O verso seguinte, por sua vez, inicia-se com uma
conjunção adversativa: “mas é preciso agradecer o pó”.
Após agradecer ao amor e ao poema – que resolveram o
puzzle – vemos que o pó é também lembrado. Afinal, sem

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pó (ou entropia) não teríamos combustível para o fazer
poético e consequentemente não teríamos resolução do
quebra-cabeça. Daí a razão do “Louvor do lixo”.
Com os versos “a mesa cai / à passagem do cão /
e o puzzle fica por fazer / no chão” temos o desfecho do
poema. Para entender a representação do cão supracita-
do, vamos analisar outros quatro poemas de Adília Lopes,
interligados entre si, não só pelo conteúdo como também
pelos títulos:

AUTOBIOGRAFIA SUMÁRIA DE ADÍLIA LOPES

Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas (LOPES, 2014, p. 71)
114

(autobiografia sumária de Adília Lopes 2)

Não deixo a gata do rés-do-chão brincar com as mi-


nhas baratas porque acho que as minhas baratas não
gostam de brincar com ela. (LOPES, 2014, p. 408)

(autobiografia sumária de Adília Lopes 3)

Os meus gatos já deixaram há muito tempo de brincar


com as minhas baratas. A Ofélia tem 12 anos, seis me-
ses e sete dias. O Guizos, segundo o Dr. Morais, tem 9
anos. Entretanto gatos morreram, gatos desapareceram.
Estou a escrever isto no computador e não sei do Gui-
zos há três dias. (LOPES, 2014, p. 418)

SELF-PORTRAIT

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My cats
enjoy playing
with my cockroaches

my cockroaches
enjoy eating
my potatoes

and
what about
my potatoes? (LOPES, 2014, p. 516)

Nos quatro poemas acima, designados como au-


tobiografias e distribuídos em três diferentes livros (A pão
e água de colónia; Irmã barata, irmã batata e César a César)
vemos sempre citados e seguidos de pronomes possessivos
115
os gatos e as baratas. Não vamos nos ater, todavia, a uma lei-
tura minuciosa do poema, mas principalmente considerar o
papel dos gatos na obra de Adília que, inclusive, afirmou ter
sido o sumiço de uma gata a responsável pelo início da es-
crita de seus poemas. Dessa forma, torna-se evidente o por-
quê de o cão (perseguidor do gato) ser a representação do
terremoto referido no verso oito. O terremoto que ameaça
a casa e o cão que derruba a mesa e desfaz o quebra-cabeça
que havia sido resolvido graças ao poema, ao amor – e não
nos esqueçamos – ao pó. É interessante considerarmos os
poemas intitulados como autobiográficos, pois através deles
fica claro como gatos são característicos de sua obra. Fato
assegurado, também, por um curto poema do livro Irmã ba-

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rata, irmã batata, no qual lê-se o seguinte: “A minha gata
morreu. Agora já me posso suicidar” (LOPES, 2014, p. 414).
Proponhamos, brevemente, uma leitura das “baratas”
tão citadas nos poemas autobiográficos e em outros poemas
de Adília. Antes, todavia, devemos nos ater ao termo “lixo”,
presente não só no poema objeto desta análise, mas também
em versos do poema “III”, de O poeta de Pondichéry: “Pen-
so que troquei diamantes por papel / que agora rasgo sem
furor / dediquei-me a um luxo que era um lixo” (LOPES,
2014, p. 47). Lembre-se que o poeta de Pondichéry parte
para fazer fortuna, mas nunca deixa de escrever. Ele perde,
por fim, sua fortuna jogando dados numa estalagem (LO-
PES, 2014, p. 55) e acaba em um asilo, no qual não lhe
116
dão papel nem tinta para escrever (LOPES, 2014, p. 56). A
partir da relação lixo/entropia apresentada nos parágrafos
anteriores, é interessante pensar que a barata, em geral, é
um inseto que vive ou busca o lixo. Considerando os versos:
“Os meus gatos / gostam de brincar com minhas baratas”,
não estaria Adília propondo um enigma? Gatos gostam de
brincar com a entropia, com o lixo, com as baratas? Con-
siderando os personagens adilianos e a relação da entropia
como mecanismo para o fazer poético, essa não seria, de
fato, uma excelente “autobiografia sumária”?
Retomando o poema “Louvor do lixo” temos, no
desfecho, um puzzle que havia sido resolvido, mas que se
encontra novamente no chão “por fazer”, graças ao cão

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(perseguidor de gatos) que o desfaz e que simboliza, cabe
ressaltar, o terremoto que ameaça a casa. Isso nos mostra
como o fato de arrumar a casa e a si mesmo – através da
escrita de poemas – são trabalhos contínuos de resultado
efêmero. Um trabalho circular e não finito que leva sem-
pre ao mesmo ponto: ao puzzle por resolver e à casa por
arrumar. Mas, para a poeta, “Escrever é arrumar o mundo,
desentropiar” (LOPES, 2014, p. 662), nunca acabar de vez
com o “Kaos”, mas diariamente afastá-lo, afinal, “a poetisa é
a mulher-a-dias”.

Referências Bibliográficas
EVANGELISTA, L. A ironia do diário íntimo na poesia
de Adília Lopes. Revista Desassossego, São Paulo, n. 7, p. 117

36-48, 2012. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/


desassossego/article/view/47613.
LOPES, A.; PEDROSA, C. Entrevista. Inimigo Rumor,
Rio de Janeiro, n. 20, p. 96-108, 2007.
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
LOPES, A; SILVESTRE, O.; DIOGO, A. L. Entrevista.
Inimigo Rumor, Rio de Janeiro, n. 10, p. 18-23, 2001.
MELO, S. R. Adília Lopes ou a impessoalidade da tercei-
ra mulher. Ex æquo, Vila Franca de Xira, n. 27, p. 129-141,
2013. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/aeq/
n27/n27a09.pdf
PAZ, O. O arco e a lira. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1983.

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118

Marcos Coelho Benjamin


Figuras
Nanquim e aquarela
40 cm x 30 cm

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119

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