08 A escrever escrevo-me
Dossiê Adília Lopes
ISSN 2525-7900
volume 4 | número 8 | jul.-dez./2019
Belo Horizonte - MG - Brasil
Conselho Editorial
Erick Gontijo Costa (CEFET-MG)
Patrícia Chanely Silva Ricarte (UFMG)
Patrícia Resende Pereira (UFSCar)
Raquel dos Santos Madanêlo Souza (UFMG)
Roberto Bezerra de Menezes (UFMG)
Silvana Maria Pessôa de Oliveira (UFMG)
Revisão
Silvana Maria Pessôa de Oliveira
Roberto Bezerra de Menezes
3
Valéria Soares Coelho
Capa: Tiago Cardoso Matte a partir de fotografia da autora. Ao final, reprodução do quadro
“Figuras”, de Marcos Coelho Benjamin.
Edição
Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG
(31) 3409-5134
jmitraudpessoa@gmail.com
ISSN 2525-7900
Adília Lopes
in Irmã barata, irmã batata
Louvor do lixo
É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terramoto ameaça
a entropia de cada dia
nos dai hoje
o pó e o amor
como o poema
são feitos
no dia a dia
[...] (LOPES, 2014, p. 445)
Referências Bibliográficas
COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade.
Trad.: Cleonice P. B. Mourão. 2. ed. Belo Horizonte: Edi-
tora UFMG, 2010.
COMPAGNON, A. O trabalho da citação. Trad.: Cleonice
P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
DERRIDA, J. Torres de Babel. Trad.: Junia Barreto. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002.
KLOBUCKA, A. M. O formato mulher: a emergência da
22 autoria feminina na poesia portuguesa. Coimbra: Angelus
Novus, 2009.
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
MARTELO, R. M. O olhar do alegorista na poesia portu-
guesa contemporânea. Portuguese cultural studies: electronic
journal, vol. 2, winter, p. 11-22, 2009. Disponível em: ht-
tps://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/39383/2/
rosamarteloolhar000113090.pdf.
MARTELO, R. M. As armas desarmantes de Adília Lo-
pes. In: A forma informe: leituras de poesia. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2010. p. 235-252.
SILVA, S. de S. Reparar brechas: a relação entre as artes
poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília
Lopes e a tradição moderna. Tese de Doutorado – Depar-
2 A centralidade da leitura
Talvez escreva
poemas
Milly chéri
tenho coisas
para te dizer
de viva voz cartas de amor
nunca mais
agora só escrevo
Não quero
ter filhos
gosto muito
de foder
contigo
e com outros
mas de bebés
não gosto
[...]
(LOPES, 2014, p. 433)
Casa
onde não
há pão
todos ralham
e ninguém
tem razão
Casa
onde não
há amor
todos ralham
e a razão
tem bolor 35
(LOPES, 2014, p. 544)
4 Considerações finais
36
Desse modo, a partir da centralização da leitura
como elemento em torno do qual a obra adiliana se estru-
tura, torna-se possível a compreensão acerca da diversi-
dade e vastidão manifestadas ao longo da produção dessa
emblemática poeta portuguesa. Percebe-se, portanto, que
a concepção de uma poética da leitura para Adília Lopes,
longe de limitar o trabalho da autora, permite um melhor
entendimento sobre a multiplicidade de elementos que se
fazem presentes na produção adiliana.
Assim, por meio de um rico arsenal de leituras, a
poeta constrói uma obra singular, a qual convida constan-
temente o leitor a enveredar-se pelos corredores da imensa
biblioteca da literatura portuguesa e mundial. Ademais,
Referências Bibliográficas
ALCOFORADO, M. Lettres Portugaises traduites en
François / Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcofo-
37
rado. Edição bilíngue, prefácio e tradução de Eugénio de
Andrade. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
BARTHES, R. O rumor da língua. 2 ed. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2004. Disponível em: https://joaocamillo-
penna.files.wordpress.com/2014/08/barthes-o-rumor-da
-lingua.pdf. Acesso em: 18 nov. 2017.
GUSMÃO, M. Anonimato ou alterização? In: Uma razão
dialógica – ensaios sobre literatura, a sua experiência do
humano e a sua teoria. Lisboa: Edições Avante, 2011. p.
84-111.
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
O cabelo
de Milly
é beige
os olhos
são
cinzentos
azuis
[...]
Marianna abre sempre a caixa do correio
lá dentro de uma vez
uma lagartixa fita-a
Marianna beija a lagartixa e chora
depois vai-se deitar a ouvir Bach
[...]
(LOPES, 2014, p. 80)
42
O ato da freira, infantil por si só ao beijar a lagar-
tixa – quem sabe o pequeno réptil não se transforma no
Chamilly ou, melhor, em uma carta? –, é associado à outra
atitude adolescente. Nos últimos poemas, a moça é toma-
da por uma paranoia pouco justificada ao imaginar que
está sendo vítima de uma conspiração da C.T.T., o serviço
de correios português, e é por isso que as cartas do oficial
não lhe chegam às mãos, como se lê nos versos de “Kabale
und liebe” – não por acaso, o subtítulo do livro em questão:
Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
Meu senhor
como diz a Mimi
prenez garde à vous
pois se não me escreve cartas
eu escrevo-lhe cartas
(LOPES, 2014, p. 77)
Milly chéri
Referências Bibliográficas
ALCOFORADO, M. Cartas portuguesas. Porto Alegre:
L&PM, 1997.
LOPES, A. Dobra – poesia reunida 1983-2014. Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
MARTELO, R. M. Contra a crueldade, a ironia. In: A
forme informe: leituras de poesia. Lisboa: Assírio & Alvim,
2010. p. 223-234.
Óculos
Usam-se óculos desde o século XIII,
talvez mesmo desde finais do século
XII. Li isto num artigo de Alexandre
Koyré de que gosto muito: «Du monde
de l’à-peu-près’ à l’univers de la
précision» (in Études d’histoire de
la pensée philosophique, Gallimard,
Paris, 1981, p. 350). Gosto de usar
óculos. E gosto de saber dessas coisas.
3/8/14
(LOPES, 2015, p. 64)
Pralines
No meu bolo de aniversário, mais do que das ve-
las, gostava das pralines. Esferazinhas prateadas sobre a
neve, sobre a cobertura de claras em castelo e açúcar.
18/6/14 57
Colares
Em Colares, vi um bulldog branco anão em cima
de uma coluna branca no jardim de uma vivenda. É a
minha recordação mais antiga. É estranha. Parece in-
ventada. Mas não é.
17/6/14
(LOPES, 2015, p. 11-12)
Referências Bibliográficas
ALVES, I. O conflito de opiniões na poesia portuguesa: o
esterco lírico e o grito do anjo. In: ALVES, I; PEDROSA,
C. Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e
contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 118-131.
CAMARGO, G. Subjetividade e experiência de leitura
na poesia lírica brasileira contemporânea. In: ALVES, I.;
PEDROSA, C. Subjetividades em devir: estudos de poesia
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
64
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
Body art?
Com os remédios
engordo 30 Kg
o carteiro pergunta-me
para quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
Emagreço 21 Kg
as colegas
No metro
um rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar
Detesto
o sofrimento
1
Sobre isso, repare-se que no subtítulo à poesia reunida da autora o
intervalo de composição inicia-se no ano de 1983, não em 1985, data
em que Um jogo bastante perigoso foi publicado. Podemos imaginar que
o ano de 1983 refere-se ao que principiou a escrever, sendo, portanto,
para Adília Lopes o laço entre a vida e a escrita uma de suas aporias
mais produtivas.
2
Estou gorda
e quero ser
gorda
68
mas não quero
ser pobre
e não preciso
que me cortem
a cabeça
Maria a psiquiatria e a poesia
deram-me
uma cabeça nova
3
Engordei 43 Kg
de 86 para cá
agora
gorda como estou
já caibo
num quadro de Rubens
(segundo o Osório Mateus
no meu caso
era mais fácil
entrar para o quadro
O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome
Mas um dia
Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
70
a encontrar
O acaso
não os favorece
Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome
Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá para um
de cada vez
O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira
O dono da figueira
zanga-se
71
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço (2014, p. 621-623)
Tempo
é dinheiro
diz-se
e não se diz
tempo
é amor
Os homens
e as mulheres
são os únicos
animais
que inventaram
o dinheiro?
Não gosto
do dinheiro
não gosto
Poesia e Gestão
Para mim poesia é gestão. Sou uma empresária de su-
cesso. A marca Adília existe no mercado desde 1984.
Estamos em 2016. Existe a marca Adília como existe a
marca Chanel. Perfumes e versos eficazes e eficientes.
Tenho um nicho de mercado. Nos anos 60-70 estavam
na moda os nichos dentro de casa, os nichos nos ni-
chos. Punham-se lá umas loiças de Cantão e uns santos
de pau santo. Sou um caso de empreendedorismo. O
ambiente foi sempre turbulento, o meu aerodinamismo
teve de ser muito. Agora que é a tempestade perfeita é
a bonança perfeita, disse João Miguel Tavares. É tudo
uma questão de gestão. Marketing. Timing. Zeitgeist.
Weltanschauung. Sturm und Drang. Trauma. Chanel
n.º 19.
1 Introdução
2 Implosões identitárias
Desfloras-me
Desfloro-te
Porque temos flores
um para o outro
o teu ritmo
em mim
sobre mim
tão novo
para mim
é muito antigo
é como o dos animais
ganho a minha virgindade
que te dou
e que não perco
sou sempre virgem
a minha dor
o meu sangue
são a tua dor
o teu sangue (LOPES, 2014, p. 198)
Conversa de senhoras
Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres (LOPES, 2014, p. 332)
33ª poética
quero antes
a página atravancada de abajures
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas 91
a sedução os maxilares
o plágio atroz
ratas devorando ninhadas úmidas
multidões mostrando as dentinas
multidões desejantes
diluvianas
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos
a pecar e por cima
os cortinados do pudor
vedando tudo
com goma
de mascar.
Referências Bibliográficas
BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana.
São Paulo: L&PM, 1987.
BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1986.
BLOOM, H. O cânone ocidental. Trad. Marcos Santarrita.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
CÉSAR, A. C. Poética. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria. 2 ed. Trad.
95
ECLESIASTES
Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão minhas contas
do que foi (2014, p. 196)
Beijo-te
a tua mão
a tua mão
é o meu pão
(Desejo-te
muito
tu todo
em carne
e em espírito
que não separo
porque são um) (2014, p. 205)
Referências Bibliográficas
LOPES, A. Dobra – Poesia reunida (1983-2014). Porto:
Assírio & Alvim, 2014.
BRANCO, L. C. O que é erotismo? São Paulo: Editora 105
Brasiliense, 1984.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. Tradução Rogério
Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MAFFEI, L. Canto a beleza, canto a putaria: de Boca-
ge e Camões a Adília. Via Atlântica, São Paulo, n. 11, p.
75-86, 2007. Disponível em: http://www.revistas.usp.
br/viaatlantica/article/view/50664.
LOUVOR DO LIXO
É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terremoto ameaça
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas (LOPES, 2014, p. 71)
114
SELF-PORTRAIT
my cockroaches
enjoy eating
my potatoes
and
what about
my potatoes? (LOPES, 2014, p. 516)
Referências Bibliográficas
EVANGELISTA, L. A ironia do diário íntimo na poesia
de Adília Lopes. Revista Desassossego, São Paulo, n. 7, p. 117