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A Alquimia do Ódio

Georg Feuerstein

A doutrina mais extraordinária do Bhâgavata-Purâna talvez seja a do "Yoga do


Ódio" (dvesha-yoga). De acordo essa doutrina, o ser que odeia profundamente a
Divindade pode chegar à realização de Deus tão prontamente quanto o que ama
profundamente o Senhor. O sábio Nârada, um dos mais ativos porta-vozes da
religião Bhâgavata, expressa-a desta maneira:

"Todas as emoções humanas têm a sua raiz nas concepções errôneas de


'eu' e de 'meu'. O Absoluto, o Si Mesmo Universal, não tem a noção do
'eu' nem quaisquer emoções. (7.1.23)

Por isso, o ser deve unir-se a Deus através da amizade ou da inimizade,


da tranquilidade ou do medo, do amor ou do apego. Deus não vê
distinção alguma. (7.1.25)"

Em seguida, Nârada menciona os exemplos de Kamsa, que chegou a Deus pelo


medo, e de Shishupâla, rei dos Cedis, que chegou a Deus pelo ódio. Aliás, o ódio de
Shishupâla foi cultivado no decorrer de várias encarnações. Foi ele o rei-demônio
Hiranyakashipu ("Veste de Ouro"), que torturou Prahlâda, seu próprio filho, por
causa da devoção que este tinha por Vishnu, mas foi morto pelo Deus que assumiu a
forma de Nara-Simha ("Homem-Leão"). Numa outra existência Shishupâla foi o
demônio Râvana, morto por Râma, encarnação de Vishnu.

A ideia de que o ódio pode transformar-se num caminho que conduz a Deus,
embora ofenda a sensibilidade convencional, é uma consequência lógica da antiga
doutrina esotérica de que nós nos tornamos naquilo em que meditamos. O ódio
intenso que Shishupâla concebeu pelo Senhor Vishnu teve por efeito fazê-lo pensar
incessantemente na Divindade, ao ponto em que ele por fim foi absorvido por Ela.
Isso nos faz compreender que o processo espiritual depende diretamente do jogo da
atenção. É claro que, para que uma emoção negativa tão forte tenha efeito
libertador, o ser precisa também ser dotado das predisposições kármicas corretas.
O ódio absoluto é tão impossível para a pessoa comum quanto o amor absoluto.

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