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A Independência de Kosovo
A Independência de Kosovo
A noção de que a autodeterminação dos povos era um direito inerente a cada povo
remonta às idéias liberais e iluministas do século XVIII. Deve-se dizer, a propósito, que
a Revolução Francesa não consagrou esse direito - as idéias e ações revolucionárias
baseavam-se no entendimento de que a nação era a fonte fundamental de legitimidade
política, e não poderia ela ser ameaçada por desejos autonomistas ou secessionistas de
grupos minoritários dentro dela. Tal como o conhecemos na atualidade, o direito à
autodeterminação é uma construção político-jurídica do século XIX e, especialmente,
do século XX. Seja como for, a idéia já existia, e a Carta das Nações Unidas rompe com
ela, ao não reconhecer explicitamente a autodeterminação como direito dos povos,
mas, sim, como princípio de ação estatal no plano das relações internacionais.
Serão as próprias Nações Unidas, não obstante, que reformarão sua idéia original
cristalizada na Carta de San Francisco. Em dezembro de 1960, a Assembléia Geral
aprova a famosa resolução 1514 (XV), intitulada "Declaration on the Granting of
Independence to Colonial Countries and Peoples", fruto incontestável da luta
anticolonialista, que atinge seu ápice no próprio ano de 1960, com a independência de
mais de uma dúzia de ex-colônias européias na África. A resolução faz referência, no
segundo parágrafo de sua consideranda, ao mesmo "princípio dos direitos iguais e da
autodeterminação dos povos". A inovação, no entanto, não tarda a vir: no segundo
parágrafo operacional, afirma categoricamente que "todos os povos têm o direito à
autodeterminação; em virtude desse direito, determinam livremente seu status político
e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural". Embora
não tenha sido a primeira resolução a estabelecer a autodeterminação como direito dos
povos (a pioneira foi a resolução 421 D (V)), seu caráter universalizante, bem como o
contexto histórico em que foi produzida, conferem-na a simbologia de marco no
tratamento, pelas Nações Unidas, da questão da autodeterminação.
Deve-se entender "povos", mais uma vez, com o significado de "Estados"? A opinião de
juristas é: não. Pode-se chegar a essa conclusão analisando a resolução como um todo.
O primeiro parágrafo declara que "a sujeição de povos [peoples] à subjugação,
dominação ou exploração estrangeira é contrária à Carta das Nações Unidas". Embora
possa haver casos em que um Estado, submetido a uma potência estrangeira, resguarde -
ao menos formalmente - sua soberania, é contra-intuitivo que uma comunidade política
não-independente, por força de dominação estrangeira, continue sendo um Estado -
faltar-lhe-ia o elemento da soberania. Mais adiante, em seu parágrafo quinto, a
resolução afirma que "medidas imediatas deverão ser tomadas, em Territórios sob
Tutela e sem Governo Próprio [Trust and Non-Self-Governing Territories] ou em todo
outro território que ainda não alcançou a independência, para transferir todos os
poderes aos povos desses territórios". Vê-se com clareza que a menção é feita aos
povos que não vivem em um Estado soberano - povos coloniais, em outras palavras. A
resolução 1514 estabelece, portanto, um direito dos povos, e não dos Estados.
O direito à autodeterminação se estende apenas aos povos sob regime colonial? Uma
vez mais, apelemos aos juristas, cuja resposta é: não. A resolução 1514 estabelece
claramente que "todos os povos têm o direito inalienável à completa liberdade"
(consideranda). Evidentemente, especial atenção foi dada aos povos colonizados, o que
se justifica pelo momento histórico e político que se vivia naquele início dos anos 1960.
Não foi intenção da Assembléia Geral, no entanto, restringir o alcance do direito
declarado. O direito à autodeterminação é inalienável a todos os povos.
Em seu parágrafo sexto, declara a resolução que "qualquer tentativa com vistas à
ruptura parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é
incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas". Em vez da
resposta, tem-se um imbróglio em sua totalidade: como se pode compatibilizar a
autodeterminação dos povos, que, no limite, poderia implicar a secessão de um povo
de um Estado original e a criação de um novo Estado, com a soberania estatal e a
integridade territorial e nacional? O que implica, de fato, autodeterminar-se?
A resposta à confusão (se se pode dizer assim) criada pela resolução 1514 vem em
seguida, como uma clara limitação do exercício do direito à autodeterminação: o sexto
parágrafo da resolução declara que "nada nos parágrafos anteriores pode ser
interpretado como autorizando ou encorajando qualquer ação que dismembre, total ou
parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados independentes e
soberanos que observem o princípio dos direitos iguais e da autodeterminação dos
povos como acima descritos e que possuam, portanto, um governo que represente a
totalidade do povo do território, sem distinção de raça, credo ou cor (1)."
Como reconhecido pela doutrina, a ilegalidade não gera direitos. Assim, dessa forma, se
um povo empreender a separação territorial e a criação de um outro Estado de forma
ilegal, em violação ao próprio princípio da autodeterminação, sua situação, do ponto
de vista do Direito Internacional, é ilegal. O que isso implica? Implica que esse novo
Estado terá dificuldades em ser reconhecido internacionalmente por outros Estados.
Aqui entramos num outro capítulo, profundamente ligado ao processo de independência
do Kosovo, e tema importantíssimo no Direito Internacional: o reconhecimento de
Estados.
Kosovo tem os elementos jurídicos e políticos para fazê-lo. Tem o direito ao exercício
de sua autodeterminação, e conta com o apoio das Nações Unidas, dos Estados Unidos
e da União Européia. Washington e Bruxelas prometeram reconhecer Kosovo, o que é
um asset político poderoso para um Estado recém-constituído, que, ademais, terá de
enfrentar a oposição da Sérvia e da Rússia.
O mesmo não se pode dizer de outras regiões em que, por toda a Europa, convivem
sociedades "multiétnicas" e "multinacionais". Espanha, Reino Unido, Bélgica, Suíça,
entre outros, são democracias consolidadas, em que seus povos constituintes (bascos,
catalães, valões, flamengos, romanches, escoceses, ingleses...) participam do processo
político democrático e são titulares de direitos amplamente reconhecidos e defendidos.
É evidente que nacionalismo e identidades nacionais são assuntos complicados, que
nem sempre se enquadram no âmbito das normas jurídicas. O fato é, no entanto, que o
Direito Internacional não legitimaria a independência de uma dessas regiões, a menos
que empreendida em livre acordo com o Estado cujo território seria desmembrado. Não
parece haver espaço para um efeito dominó na Europa, caso Kosovo declare sua
independência.
(1) Vale a pena reproduzir o texto original: "Nothing in the foregoing paragraphs shall be construed as
authorizing or encouraging any action which would dismember or impair, totally or in part, the
territorial integrity and political unity of sovereign and independent States conducting themselves in
compliance with the principle of equal rights and self-determination of peoples as described above and
thus possessed of a government representing the whole people belonging to the territory without
distinction as to race, creed or colour".
Para uma discussão sobre a evolução do tratamento da autodeterminação no âmbito das Nações Unidas,
v. Duursma, Jorri C. Fragmentation and the International Relations of Micro-States: self-determination
and statehood. Cambridge: CUP, 1996, Chapter I, Right of self-determination.