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A independência de Kosovo - questões sobre autodeterminação dos povos,

soberania estatal e reconhecimento de Estados

A proximidade da declaração de independência do Kosovo, anunciada por seu


Parlamento "para os próximos dias", suscita simultaneamente um medo político e um
debate teórico. O medo se concentra especialmente naqueles países que se poderiam
chamar "multinacionais" ou "multiétnicos", como a Espanha, a Rússia e, mesmo, o
Reino Unido. Para os governos destes países, a independência do Kosovo, claramente
apoiada na distinção étnica entre a maioria de origem albanesa e a minoria sérvia que
habitam a província, poderia legitimar as reclamações e ações secessionistas de grupos
no País Basco, na Catalunha, na Escócia, na Chechênia, na Valônia, em Flandres, e em
tantos outros lugares na Europa, rompendo com o quase-dogma da inviolabilidade das
fronteiras do continente, estabelecido no pós-guerra e confirmado pela Ata de Helsinque
(1975). O debate teórico, por sua vez, aborda uma questão complicada: como conciliar o
direito à autodeterminação dos povos e a soberania estatal e sua inviolabilidade
territorial?

Comecemos pelo debate teórico. Oficialmente, o termo "autodeterminação dos povos"


é mencionado pela primeira vez na Carta das Nações Unidas, em seus artigos 1º,
parágrafo 2, e 55. Em ambos os excertos, é mencionado como "the principle of equal
rights and self-determination of peoples", princípio que deveria balizar o
desenvolvimento de relações amistosas entre as nações ("to develop friendly relations
among nations"). Note-se, no entanto, que a Carta menciona o princípio da
autodeterminação, e não o direito à autodeterminação. No entender de juristas que
analisaram os "travaux préparatoires" da Carta das Nações Unidas, inclusive Hans
Kelsen, não era intenção dos autores do documento estabelecer um direito à
autodeterminação, mas, antes, um princípio de ação política, um dogma das relações
inter-estatais, indissociável dos direitos iguais. Ora, naquele momento o que se
pretendia era regular as relações entre Estados e, embora então já se pudesse falar de
outros sujeitos de Direito Internacional, ainda era o Estado o sujeito por excelência das
normas jurídicas internacionais. Não caberia, pois - a interpretação é do próprio Kelsen
- falar em direito de povos, mas, sim, de Estados. Segundo Kelsen, a utilização dos
termos "nações" e "povos" na Carta responde a uma finalidade semântica, com o intuito
de conotar a fraternidade dos povos, dos seres humanos, da humanidade, alijando de
certa forma a frieza das relações meramente políticas, entre Estados, e não a uma
finalidade jurídica. O próprio nome da Organização o afirma: apesar de ser Nações
Unidas (inclusive porque "Organização dos Estados Unidos" seria absolutamente
inapropriado, por motivos óbvios...), os membros da organização são Estados, e não
"nações" e "povos", termos que, ademais, sofrem de uma notável imprecisão conceitual.
"Nações" e "povos" querem dizer, pois, na Carta da ONU, "Estados". O princípio da
autodeterminação dos povos, dessa forma, pode ser interpretado, na Carta das Nações
Unidas, como o princípio da soberania estatal, o princípio de que cada Estado é
responsável por suas decisões internas e externas, e não admite intervenção ou
interferência.

A noção de que a autodeterminação dos povos era um direito inerente a cada povo
remonta às idéias liberais e iluministas do século XVIII. Deve-se dizer, a propósito, que
a Revolução Francesa não consagrou esse direito - as idéias e ações revolucionárias
baseavam-se no entendimento de que a nação era a fonte fundamental de legitimidade
política, e não poderia ela ser ameaçada por desejos autonomistas ou secessionistas de
grupos minoritários dentro dela. Tal como o conhecemos na atualidade, o direito à
autodeterminação é uma construção político-jurídica do século XIX e, especialmente,
do século XX. Seja como for, a idéia já existia, e a Carta das Nações Unidas rompe com
ela, ao não reconhecer explicitamente a autodeterminação como direito dos povos,
mas, sim, como princípio de ação estatal no plano das relações internacionais.

Serão as próprias Nações Unidas, não obstante, que reformarão sua idéia original
cristalizada na Carta de San Francisco. Em dezembro de 1960, a Assembléia Geral
aprova a famosa resolução 1514 (XV), intitulada "Declaration on the Granting of
Independence to Colonial Countries and Peoples", fruto incontestável da luta
anticolonialista, que atinge seu ápice no próprio ano de 1960, com a independência de
mais de uma dúzia de ex-colônias européias na África. A resolução faz referência, no
segundo parágrafo de sua consideranda, ao mesmo "princípio dos direitos iguais e da
autodeterminação dos povos". A inovação, no entanto, não tarda a vir: no segundo
parágrafo operacional, afirma categoricamente que "todos os povos têm o direito à
autodeterminação; em virtude desse direito, determinam livremente seu status político
e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural". Embora
não tenha sido a primeira resolução a estabelecer a autodeterminação como direito dos
povos (a pioneira foi a resolução 421 D (V)), seu caráter universalizante, bem como o
contexto histórico em que foi produzida, conferem-na a simbologia de marco no
tratamento, pelas Nações Unidas, da questão da autodeterminação.

Deve-se entender "povos", mais uma vez, com o significado de "Estados"? A opinião de
juristas é: não. Pode-se chegar a essa conclusão analisando a resolução como um todo.
O primeiro parágrafo declara que "a sujeição de povos [peoples] à subjugação,
dominação ou exploração estrangeira é contrária à Carta das Nações Unidas". Embora
possa haver casos em que um Estado, submetido a uma potência estrangeira, resguarde -
ao menos formalmente - sua soberania, é contra-intuitivo que uma comunidade política
não-independente, por força de dominação estrangeira, continue sendo um Estado -
faltar-lhe-ia o elemento da soberania. Mais adiante, em seu parágrafo quinto, a
resolução afirma que "medidas imediatas deverão ser tomadas, em Territórios sob
Tutela e sem Governo Próprio [Trust and Non-Self-Governing Territories] ou em todo
outro território que ainda não alcançou a independência, para transferir todos os
poderes aos povos desses territórios". Vê-se com clareza que a menção é feita aos
povos que não vivem em um Estado soberano - povos coloniais, em outras palavras. A
resolução 1514 estabelece, portanto, um direito dos povos, e não dos Estados.

O direito à autodeterminação se estende apenas aos povos sob regime colonial? Uma
vez mais, apelemos aos juristas, cuja resposta é: não. A resolução 1514 estabelece
claramente que "todos os povos têm o direito inalienável à completa liberdade"
(consideranda). Evidentemente, especial atenção foi dada aos povos colonizados, o que
se justifica pelo momento histórico e político que se vivia naquele início dos anos 1960.
Não foi intenção da Assembléia Geral, no entanto, restringir o alcance do direito
declarado. O direito à autodeterminação é inalienável a todos os povos.

Uma confusão muito comum que se faz é a suposta complementaridade entre


autodeterminação e statehood (na falta de um termo em português), segundo a qual o
exercício da autodeterminação de um povo implica a criação de um Estado para aquele
povo. É o que se tem visto, a propósito, na questão da independência de Kosovo.
Curioso é que esta é uma confusão difundida inclusive entre estadistas - o que legitima
o medo que a independência kosovar tem disseminado. O Direito Internacional, no
entanto, tem uma resposta a esse receio... Examinemos, inicialmente, o que diz a
resolução 1514.

Em seu parágrafo sexto, declara a resolução que "qualquer tentativa com vistas à
ruptura parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é
incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas". Em vez da
resposta, tem-se um imbróglio em sua totalidade: como se pode compatibilizar a
autodeterminação dos povos, que, no limite, poderia implicar a secessão de um povo
de um Estado original e a criação de um novo Estado, com a soberania estatal e a
integridade territorial e nacional? O que implica, de fato, autodeterminar-se?

Em 24 de outubro de 1970, a Assembléia Geral aprovou a resolução 2625 (XXV),


"Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and
Co-operation among States in accordance with the Charter of the United Nations".
Reafirmando as provisões da resolução 1514, declara que "em virtude do princípio dos
direitos iguais e da autodeterminação dos povos consagrado na Carta das Nações
Unidas, todos os povos têm o direito de determinar livremente, sem interferência
externa, seu status político e de perseguir seu desenvolvimento econômico, social e
cultural, e todo Estado tem o dever de respeitar esse direito de acordo com as provisões
da Carta".

A resposta à confusão (se se pode dizer assim) criada pela resolução 1514 vem em
seguida, como uma clara limitação do exercício do direito à autodeterminação: o sexto
parágrafo da resolução declara que "nada nos parágrafos anteriores pode ser
interpretado como autorizando ou encorajando qualquer ação que dismembre, total ou
parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados independentes e
soberanos que observem o princípio dos direitos iguais e da autodeterminação dos
povos como acima descritos e que possuam, portanto, um governo que represente a
totalidade do povo do território, sem distinção de raça, credo ou cor (1)."

Como todo direito, o exercício do direito à autodeterminação encontra limites no


exercício de outros direitos titulados por outras pessoas jurídicas. Conforme
amplamente reconhecido pelo Direito Internacional, o Estado tem o direito a defender
sua soberania, sua independência e sua integridade territorial. Da mesma forma, todo
povo tem o direito de decidir livremente sobre seu estatuto político no âmbito do Estado
em que viva. Este é o direito à autodeterminação: o direito à autonomia, o direito de
decidir sobre si mesmo. Ora, o exercício da autonomia não implica necessariamente o
exercício da secessão, do separatismo. Cada povo é autônomo sempre que puder
participar plenamente, e em pé de igualdade com outros povos que eventualmente
convivam com ele no território do mesmo Estado, na formulação da vontade política
nacional - e não se encontrou melhor forma de se fazê-lo senão pelo exercício da
democracia. Sua autonomia se exerce plenamente no processo democrático,
principalmente pelo voto, no âmbito de uma sociedade em que se reconheçam os
direitos fundamentais dos indivíduos e das coletividades (a propósito, o direito à
autodeterminação é reconhecido como direito fundamental pelos Pactos de Direitos
Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966). Dessa
forma, um povo só tem o direito à secessão quando, teoricamente, se lhe nega o
exercício da autodeterminação - em outras palavras, quando não é politicamente
representado no Estado em que vive e/ou quando esse Estado não lhe garante seus
direitos, com base em discriminações ilegais de qualquer natureza.

Como reconhecido pela doutrina, a ilegalidade não gera direitos. Assim, dessa forma, se
um povo empreender a separação territorial e a criação de um outro Estado de forma
ilegal, em violação ao próprio princípio da autodeterminação, sua situação, do ponto
de vista do Direito Internacional, é ilegal. O que isso implica? Implica que esse novo
Estado terá dificuldades em ser reconhecido internacionalmente por outros Estados.
Aqui entramos num outro capítulo, profundamente ligado ao processo de independência
do Kosovo, e tema importantíssimo no Direito Internacional: o reconhecimento de
Estados.

Existem basicamente duas correntes teóricas quanto ao reconhecimento de Estados.


Para a primeira delas, o reconhecimento é um ato atributivo, pelo qual terceiros Estados
atribuem àquele que é reconhecido o caráter de verdadeiro Estado. Segundo essa
corrente, um Estado só existe quando reconhecido por pelo menos um outro Estado.
Para a segunda - muito mais aceita na atualidade -, o ato de reconhecimento é
declarativo, i. e., um Estado apenas declara que reconhece em outra comunidade
política o caráter de Estado. A implicação óbvia é que um Estado, para existir, não
precisa ser reconhecido pelos demais; a partir do momento em que reúne os elementos
fundamentais para constituir-se como Estado - povo, território, soberania (e, por
conseqüência, governo independente) -, passa a ser um Estado, titular de direitos e
deveres que independem do relacionamento com outros Estados (como o direito de
defender sua soberania e o dever de não-intervenção).

É evidente, no entanto, que o reconhecimento de Estado - ato jurídico por excelência -


tem motivações políticas. Para além disso, qualquer Estado que não seja reconhecido
pelos demais fica impossibilitado de exercer plenamente uma série de competências nas
relações internacionais: não envia nem recebe legações, não participa de organizações
internacionais, seus agentes não gozam de imunidades e privilégios, não celebra
tratados etc. Sua atuação política é, enfim, extremamente limitada. Todo Estado almeja
o reconhecimento pela comunidade internacional, ainda que dele prescinda para existir.

O medo que rodeia a provável independência de Kosovo é justificado do ponto de vista


político, mas não do jurídico. A situação de Kosovo é peculiar: ali ocorreu mais do que
um conflito; houve, isso sim, um crime contra a humanidade, reconhecido pela
comunidade internacional. Claramente, um povo - kosovares de origem albanesa - foi
não apenas alijado da plena participação na formação da vontade política nacional e,
portanto, foi impedido de exercer seu direito à autodeterminação, mas foi também alvo
de um genocídio. Sob essas circunstâncias, é plenamente aceitável, segundo o Direito
Internacional, que Kosovo deseje constituir-se como um Estado à parte, separando-se da
República Sérvia.

Kosovo tem os elementos jurídicos e políticos para fazê-lo. Tem o direito ao exercício
de sua autodeterminação, e conta com o apoio das Nações Unidas, dos Estados Unidos
e da União Européia. Washington e Bruxelas prometeram reconhecer Kosovo, o que é
um asset político poderoso para um Estado recém-constituído, que, ademais, terá de
enfrentar a oposição da Sérvia e da Rússia.

O mesmo não se pode dizer de outras regiões em que, por toda a Europa, convivem
sociedades "multiétnicas" e "multinacionais". Espanha, Reino Unido, Bélgica, Suíça,
entre outros, são democracias consolidadas, em que seus povos constituintes (bascos,
catalães, valões, flamengos, romanches, escoceses, ingleses...) participam do processo
político democrático e são titulares de direitos amplamente reconhecidos e defendidos.
É evidente que nacionalismo e identidades nacionais são assuntos complicados, que
nem sempre se enquadram no âmbito das normas jurídicas. O fato é, no entanto, que o
Direito Internacional não legitimaria a independência de uma dessas regiões, a menos
que empreendida em livre acordo com o Estado cujo território seria desmembrado. Não
parece haver espaço para um efeito dominó na Europa, caso Kosovo declare sua
independência.

A independência de Kosovo é legítima do ponto de vista do Direito Internacional. Os


kosovares - assim como os sérvios - têm o direito de definir seu futuro e de deixar para
trás as marcas de um passado conturbado. Chegou a hora de os Bálcãs superarem seus
seculares ressentimentos e de, aprendendo com a Europa Ocidental, amalgamarem seus
esforços na construção de um futuro política e economicamente promissor.

(1) Vale a pena reproduzir o texto original: "Nothing in the foregoing paragraphs shall be construed as
authorizing or encouraging any action which would dismember or impair, totally or in part, the
territorial integrity and political unity of sovereign and independent States conducting themselves in
compliance with the principle of equal rights and self-determination of peoples as described above and
thus possessed of a government representing the whole people belonging to the territory without
distinction as to race, creed or colour".

Para uma discussão sobre a evolução do tratamento da autodeterminação no âmbito das Nações Unidas,
v. Duursma, Jorri C. Fragmentation and the International Relations of Micro-States: self-determination
and statehood. Cambridge: CUP, 1996, Chapter I, Right of self-determination.

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