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A Beleza de Esther

S
entada no canto de uma cafeteria lotada, uma jovem desacompanhada encontrava-
se imersa em seus pensamentos. Seu ânimo estava tão abjeto que contrastava todo
o ambiente colorido e burlesco à sua volta. De nome Esther, a moça buscava
compreender por que ainda não encontrara alguém que a amasse profundamente, a ponto
de pedi-la em casamento. Culpava à sua aparência por não se igualar às demais mulheres
que admirava, e acreditava que esta era a grande razão para seu azar no amor.
Esther estava na flor da idade. Em seus 20 e poucos anos mostrava-se uma tenra
mulher, aparentando, na verdade, ser bem mais jovem do que realmente era. No entanto,
seu físico lhe incomodava. Não importava o que dissessem a respeito de seus belos olhos
castanhos ou de seu crespo cabelo escuro, que compunham uma perfeita harmonia com
seu tom de pele bronzeado e seus traços marcantes no rosto. Sempre que ela se olhava no
espelho, não venerava a mulher que era e sim a que desejava ser.
Na volta para casa, num horário em que as ruas costumavam estar vazias e
silenciosas, Esther caminhava em passos lentos, cabisbaixa. Desejava, quase que sem
emitir um único ruído, que Deus lhe concedesse o atributo da beleza, e que estava disposta
a dar tudo em troca por ele, sem uma única exceção. Repetira este desejo até cruzar a rua
de casa, a uns sete minutos da cafeteria, com toda força e esperança possíveis.
Subitamente, um carro chocou-se contra a moça, que nem sequer pode perceber sua
aproximação na rua deserta. Sendo amovida de sua consciência, Esther caiu ao chão como
uma bigorna em queda. Tudo ficou escuro e ela não enxergou mais nada.
Na manhã seguinte, nada parecia suceder ao acidente. Os pais de Esther, com
quem a jovem ainda vivia, a gritaram da cozinha, chamando-a para o café. Ela
espreguiçou-se e pôs-se a levantar. Por incrível que pareça, não sentia dor alguma,
nenhum incômodo ou qualquer tipo de desconforto. Parecia, de fato, que nada havia
acontecido na noite anterior. Tirou a máscara de dormir do rosto afim de encontrar algum
hematoma em seu corpo, mas sua visão permaneceu inoperante.
Por um instante, Esther pensou que estivesse com os olhos fechados, mas após
muito piscar, confirmou que os mesmos se encontravam bem abertos. Não entendeu o
que estava acontecendo e entrou em pânico, sem poder visualizar qualquer palmo que
estivesse à sua frente. Gritou tão alto que qualquer alma viva do quarteirão pôde escutá-
la.
Em um minuto, seus pais subiram ao seu quarto, pensando que algo horrível
estivesse acontecendo. A encontraram aos prantos, de pé, apalpando os móveis em busca
de algo em que pudesse se apoiar.
— O que está acontecendo? O que está acontecendo? – perguntou ela, assustada.
— Filha, por aqui. Venha – disse seu pai, tentando conduzi-la para fora do
cômodo.
Esther estranhou que o fato de não estar conseguindo enxergar não pareceu
novidade a seus pais, que agiram como se já soubessem de sua condição.
— Pai, mãe, o que está havendo? – insistiu a moça, já na cozinha – O que
aconteceu com a minha visão?
— Filha, já faz 1 ano. Você ainda não se acostumou? – respondeu seu pai.
A espinha de Esther arrepiou como nunca antes e ela sentiu seu coração pesar.
Definitivamente, aquilo não passava de um sonho. Como que, da noite para o dia, alguém
pode acordar cego e ouvir que esta é sua realidade há meses?

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O que a pobre moça não sabia era que seu desejo da noite anterior havia sido
atendido. Disposta a abrir mão de qualquer coisa por beleza física, lhe foi tirada a visão e
entregue todo o estereótipo corporal considerado por muitos como belo.
Se Esther pudesse se ver, se depararia com uma moça esbelta, com o corpo
definido, sem estrias ou celulites. Seu rosto já não tinha manchas nem cravos nem
espinhas. Seu sorriso expunha dentes extremamente brancos, que poderiam até cegar
quem os olhasse diretamente. Seus cabelos brilhavam tanto que, mesmo alvoroçados por
acabarem de sair da cama, pareciam ter sido cuidados por um exímio cabeleireiro há
poucos minutos. Devidamente bronzeada, estava, enfim, com o físico que sempre pedira
a Deus, mas sem poder admirá-lo.

Os anos se passaram e Esther se casou em uma deslumbrante cerimônia,


exatamente como sonhara. Se pudesse enxergar seu esposo, veria um homem belíssimo,
de causar inveja em qualquer um dos maridos de suas amigas. Com ele teve dois filhos,
mas jamais pôde vê-los, assim como não pôde acompanhar com os olhos os primeiros
passos da primogênita e a entrega do diploma de Medicina do caçula. Não pôde assistir
aos jogos de futebol de seu marido nem mesmo quando venceu o campeonato. Além de
ter se despedido dos pais sem nem ao menos poder encará-los por uma última vez. Claro
que sentia todos esses momentos com muita intensidade, mas jamais esqueceu-se que sua
condição era consequência de sua arrogância.
A beleza de Esther permaneceu intacta e esbelta para sempre, conforme sua idade.
Não havia uma única pessoa sequer que não a desejasse ou quisesse suas qualidades. Foi
convidada diversas vezes por marcas de grife famosas para posar em suas campanhas
publicitárias, mas pensava que, se não pudesse ver seu sucesso com os próprios olhos, de
nada valeria a pena. Por muito tempo desejou que tudo voltasse a ser como antes, mas
sem um retorno imediato, cansou-se de suplicar.
E foi assim, com a fantástica vida que recebera sem nunca poder enxergá-la, que
Esther entendeu que a beleza das coisas não está naquilo que se pode ter, mas no que se
pode admirar.

FIM

Ficha Técnica

Autor: Fillipe Matos Cardoso


Arte da capa: Fillipe Matos Cardoso
Ano de publicação: 2020
Idioma: Português

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