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Bombeiros:
Um Olhar Sobre a Qualidade
de Vida no Trabalho
Firefighters:
A Look over the quality of life at work
Universidade
do Vale do Rio dos Sinos
Experiência
“Se eu estou muito cansado, não tem como (Green, 1990, segundo Mendes; Borges;
estar motivado para o trabalho. Se eu não Ferreira, 2002). Nessa ocasião, a reflexão girou
agüentar mais o cansaço e não tiver como parar, em torno do quanto o profissional bombeiro
não vai ter psicóloga que consiga me ajudar.” está exposto diariamente, e talvez mais que
A necessidade dos “bicos” também entrou em outras categorias profissionais, aos agentes
pauta. Isso ajuda a piorar a qualidade de vida estressores do trabalho.
no trabalho e a vida, de modo geral.
Ressaltamos ainda a importância de uma boa
“Não há como ter qualidade quando não se alimentação, atividades físicas e do equilíbrio
consegue desligar nunca...quando não se está emocional para o combate ao estresse,
em um trabalho, se está noutro...” segundo Lipp (1999). Nesse aspecto, foi
levantada, por vários bombeiros, a falta da “Não há como ter
Um assunto bastante polêmico surgiu em certo qualidade quando
atividade física, que antigamente era permitida não se consegue
momento, com relação ao regime militar, que, no quartel, no horário de trabalho, no tempo desligar
historicamente, é visto como um “regime em que ficam aguardando chamados, mas essa
nunca...quando
não se está em
castrador”, que impõe muitas regras e deveres
prática foi proibida porque, aos olhos da um trabalho, se
ao profissional. Um sargento colocou para o está noutro...”
sociedade, o bombeiro deve estar em forma,
grupo que, segundo dados históricos, na época
esperando o chamado, e não em uma
da escravidão, só quem não tinha direito de
atividade diferente. Segundo eles, muitas
defesa por algum crime eram os escravos e os
foram as críticas da sociedade ao comando na
militares, que eram levados ao tronco e
época, dizendo que os bombeiros não
sofriam as chibatadas. Assim, muitos resquícios
trabalhavam, não faziam nada, só “brincavam”
dessa época ainda restaram, tornando a
de jogar bola.
carreira militar, muitas vezes, um fardo pesado
de ser carregado.
Esse é um pensamento comum na
comunidade, e, por isso, evitam estar em
Uma comparação foi feita na palestra, nesse
frente ao prédio do quartel, pois a realização
sentido, quando um bombeiro destacou que,
de qualquer atividade diferente, aos olhos da
em empresas privadas, o empregado é
chamado “colaborador”, alguém que, de sociedade, passa a impressão de já estarem
alguma forma, está envolvido com o negócio descumprindo o seu papel de aguardar o
de uma perspectiva que não só a de produzir. chamado por socorro. Para eles, essa posição
No regime militar, o empregado é chamado da sociedade é difícil, pois a atividade física
“servidor”, alguém que, como já diz o termo, os deixaria mais aptos ao trabalho, mais
está implicado em sempre servir. relaxados para executar suas atividades, e não
impediria nenhum salvamento. Mas, mais uma
Na segunda palestra, o tema abordado foi o vez, são as regras e a imagem do militar falando
estresse e o trabalho. Nesta, havia menos mais alto na sociedade.
bombeiros, em torno de vinte e cinco, desta
vez. No início, destacamos que, para reduzir Um sargento se manifestou nesse sentido,
o estresse ocupacional, é necessário, dizendo:
primeiramente, identificar quais são as fontes
geradoras desse estresse, e, a partir disso, “A sociedade precisa saber que, atrás do
desenvolver um plano de ação para reduzi-lo bombeiro, tem um ser humano!”
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Durante essa palestra, por duas vezes, um é que a outra face da moeda é pouco vista,
grupo que estava na guarnição e foi assistir à pouco entendida, pouco trabalhada e até
palestra teve que sair para atender a mesmo escondida pelos próprios bombeiros,
“... Faço de tudo chamados. Quando os caminhões, que já pela força que carrega o “ser militar”. Como
para conseguir
ajudar aquela estavam estacionados ao lado da escola onde relatado por eles:
pessoa que, realizávamos a palestra, soaram as sirenes, foi
naquele
inevitável sentir a angústia e o mal-estar que “Ser bombeiro é servir, servir, sempre servir!”
momento, precisa
de mim. Mas às a incerteza sobre o que poderia estar “Ser bombeiro é ter amor à vida dos outros.”
vezes tudo aquilo acontecendo nos gerou. Pudemos, logo após Essa é uma profissão muito exigida: física,
que eu faço é
pouco, e ela não o acontecido, falar sobre o que esses picos emocional, psicológica e socialmente falando,
resiste e acaba de adrenalina constantes podem causar no e, através desse diagnóstico, percebemos o
falecendo. É
muito triste saber organismo, o que essa tensão emocional pode amor e o sofrimento envolvidos no dia a dia
que, por mais que gerar, e a importância de um ponto de desses trabalhadores, o que torna esse trabalho
eu tenha feito
“escape” para tudo isso. Abordamos, aqui, o ora uma paixão, ora um verdadeiro esforço
tudo o que era
possível, ela não uso de álcool, drogas e medicação, que é pela sobrevivência, como atesta a fala de um
resistiu.” altamente encontrado em pesquisas com bombeiro:
bombeiros do mundo todo.
“... Faço de tudo para conseguir ajudar aquela
Discussão pessoa que, naquele momento, precisa de mim.
Mas às vezes tudo aquilo que eu faço é pouco,
A dor e a alegria de “ser bombeiro” e ela não resiste e acaba falecendo. É muito
triste saber que, por mais que eu tenha feito
No imaginário social, a palavra “bombeiro”, tudo o que era possível, ela não resistiu.”
na maioria das vezes, aparece carregada de
um sentido de heroísmo e salvação. De fato, Nesse aspecto, Dejours (1949/1988) salienta
ao ser tarefa de um bombeiro todo e qualquer que os trabalhadores podem padecer não só
tipo de salvamento - entre eles o combate e fisicamente em decorrência do trabalho como
resgate de vítimas em incêndios, primeiros também apresentar sofrimento mental. Este
socorros e resgate em situação de acidentes último é conseqüência da organização do
de trânsito, buscas e salvamentos terrestres e trabalho, que consiste na “divisão do trabalho,
aquáticos, ajuda em situações de calamidades no conteúdo da tarefa (na medida em que ele
como destelhamentos e desabamentos, dela deriva), no sistema hierárquico, nas
salvamento em altura, captura de animais, modalidades de comando, nas relações de
corte de árvores, vistorias contra incêndios, poder, nas questões de responsabilidade, etc”.
palestras preventivas, e até mesmo partos de O sofrimento mental, então, é resultado do
emergência a caminho do hospital – fica enfrentamento entre o sujeito, detentor de
subjacente ao título um certo brilho de “super- uma história personalizada, com a organização
herói”, um “super-homem” invencível, a do trabalho, que possui uma “injunção
solução nas piores tragédias, quando tudo está despersonalizante.” Aliado a isso, segundo
perdido. Cruz (2005), freqüentemente sobrecarga física
e psicológica sinalizam dano que afeta a
Quem nunca se emocionou ao ver capacidade de controlar a intensidade do
pessoalmente, ou através da mídia, um sofrimento, seja esse dano percebido como
salvamento envolvendo os bombeiros? O caso uma inabilidade para lidar com a frustração no
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Janine Kieling Monteiro, Daiane Maus,
Fabiane Rosa Machado, Clarissa Pesenti, Daniela Bottega & Letícia Bassôa Carniel PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2007, 27 (3), 554 - 565
trabalho, seja percebido como uma fadiga ou Assim, o profissional bombeiro lida
uma lesão. constantemente com uma forte carga afetiva
em seu trabalho. Nas situações que envolvem
Normalmente, a carga horária de um bombeiro vítimas, os bombeiros podem, muitas vezes,
que atua na “linha de frente do combate” é de estar face a face com a morte, ou com cenas
24 horas trabalhadas, com 48 horas de folga. muito fortes. É importante ressaltar que, após
Nessas 24 horas que permanecem na a ocorrência, eles voltam ao quartel e ao
“guarnição”, ou seja, no quartel, aguardando trabalho, sem nenhum suporte que os ajude
algum chamado, a adrenalina é muito alta, pois a enfrentar tais situações, que, por mais
sabem que, a qualquer momento, o alarme cotidianas que sejam para eles, nunca deixam
pode soar, e, quando isso se efetiva, saem sem de ser traumáticas. Precisam agir como se nada
saber ao certo o que vão encontrar pela frente. tivesse acontecido e estarem prontos para novo
Nesse momento, muitas coisas podem passar chamado, como revela o seu depoimento:
pela sua cabeça, pois só saberão o que os
aguarda quando chegarem ao local. As suas falas “... Quando a vítima é um adulto, eu fico
ilustram bem essa situação: chateado, claro... Mas, com criança, a dor é
maior... Às vezes tenho vontade de chorar,
“... Quando a sirene toca, acabo ficando mas tenho que ser forte...”.
nervoso. É uma espécie de angústia, eu acho,
porque não sei se vou encontrar um incêndio, “Não podemos nos envolver com a situação,
um atropelamento, um afogamento, ou apenas temos que ter autocontrole. Os colegas mais
uma árvore que caiu e está atrapalhando o experientes dão força para os que ficam mais
trânsito. Sem falar na hipótese de ter vítimas... abalados. Não podemos ser emotivos, somos
Eu só me acalmo quando chego ao local, se obrigados a ser frios.”
bem que a tensão continua, só que de uma
outra forma..” “Seria importante um acompanhamento
“É difícil lidar com
psicológico pós-acidentes, pois, com o tempo,
a morte, também
“Só trabalho quando sei que alguém está em corremos o risco de “ficar meio 18”(gíria do somos humanos.”
situação difícil, de sofrimento. Por isso prefiro quartel para designar os que ficam “meio
ficar no quartel aguardando, mesmo que parado, loucos”).
porque, se sou chamado, é porque alguém está
passando um momento muito complicado”. “É difícil lidar com a morte, também somos
humanos.”
Sabemos que todo o trabalho é investido de
afetividade por parte do indivíduo que o realiza, Nesse sentido, fica evidente a importância de
sendo que esta é a base do psiquismo, se oferecer um suporte emocional para lidar
elemento essencial na conduta e nas reações com essas vivências e situações traumáticas,
individuais. Leontiev (1978, citado por Cruz, que tanto poderia acontecer através de um
2005) considera que os sentimentos e as acompanhamento ou atendimento psicológico
emoções são muito importantes, visto estarem ou de um grupo de apoio.
presentes no sistema motivacional que, levando
à ação e à atividade, irão compor as A realidade do mundo do trabalho sempre nos
características próprias que identificam a impõe com frieza e naturalidade a frase:
individualidade. “deixem suas emoções no portão e entrem
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24 horas, nas 48 horas em que estão de folga, algum tipo de sofrimento, prejudicando, assim,
a grande maioria dos bombeiros arruma um sua qualidade de vida, e, por isso, um auxílio
outro trabalho, informal, para complementar psicológico pode contribuir muito como
a renda. Como o salário de um bombeiro fica suporte a fim de que ele possa aprender a
em torno de R$ 1.000,00, esses “bicos” dão criar estratégias para lidar com essas situações.
um suporte extra à família. A dificuldade está
na sobrecarga de trabalho que isso gera, pois, Considerações finais
nas horas destinadas ao descanso, à convivência
familiar, ao relaxamento para o próximo dia Quanto à proposta das palestras e sua
de trabalho, o bombeiro está em outro realização, pensamos que esta nos possibilitou
trabalho. Assim, não existe o descanso, e, na criar o espaço de escuta pretendido no grupo,
volta ao quartel, as pressões parecem se tornar de uma forma natural e com grande número
ainda maiores. de participantes. Temos que considerar que
as atividades ocorreram em horários
No que diz respeito à instituição e regime concomitantes com o trabalho, e que a
militar, que foi citada como “castradora” e proposta era de uma palestra. A interação
rígida, cabe destacar que o poder não é algo dos participantes e a troca de experiências
que possui uma natureza, uma realidade a partir entre eles podem demonstrar a necessidade
da qual seja possível buscar uma essência que de um espaço de escuta, que foi possibilitado
traga em si características universais. O poder através da proposta que gerou menos
não é algo unitário, mas sim, heterogêneo, e ansiedade (em relação a um grupo de reflexão)
está em constante transformação. Ele não e dentro de um período no turno dos
pode ser definido como um objeto natural, bombeiros participantes. Assim, esses
muito pelo contrário, o poder é algo que encontros ficaram marcados pela grande
advém das práticas sociais e é constituído participação dos bombeiros presentes e pela
historicamente (Machado, 1979), sendo que nossa satisfação em poder proporcionar uma
o poder nas organizações é exercido a fim de reflexão que talvez faça eco mais adiante. Para
que certos objetivos sejam alcançados, e, nesse nós, essas palestras podem ter funcionado
contexto, observa-se o caráter intencional do como o início de um trabalho mais profundo
poder (Rabinow; Dreyfus, 1995). As práticas em termos subjetivos, plantando uma semente
de poder, em uma organização, só poderão para um maior envolvimento desses
ser entendidas como tal a partir do profissionais com a sua saúde mental.
entendimento de como as relações de trabalho
se estabelecem nessa instituição. No caso da Para finalizar, podemos destacar que o trabalho
instituição estudada, fica claro que, ao mesmo pode ser fonte de prazer e sofrimento,
tempo em que muitos oficiais do comando provocando uma contradição, que é norteada
procuram evoluir e buscar um relacionamento por um movimento de luta do trabalhador pela
mais aberto com a corporação como um todo, busca constante do prazer e pela evitação do
muitas regras e burocracias do funcionamento sofrimento, com a finalidade de manter seu
institucional permanecem iguais há anos. equilíbrio psíquico. Essa dinâmica é responsável
pela saúde psíquica, sugerindo que não é a
De acordo com os pontos apontados acima, simples existência do prazer ou do sofrimento
fica evidente que o profissional bombeiro está o indicador de saúde, mas a quantidade de
facilmente exposto a situações que propiciam estratégias que podem ser utilizadas pelos
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sujeitos para fazer frente às situações que Cabe mencionar aqui também, novamente,
causam sofrimento e transformá-las em o quanto é importante a Psicologia se fazer
situações geradoras de prazer (Mendes; presente em espaços como esse, e buscar
Borges; Ferreira, 2002). Entendemos que auxiliar na saúde desse trabalhador, que tem
tanto o diagnóstico quanto as palestras uma função tão importante e valorizada na
contribuíram para a criação de um espaço de sociedade, mas que, por outro lado, passa por
escuta que propiciou reflexões acerca das situações estressantes, inclusive de risco de
vivências de prazer e sofrimento no trabalho vida iminente no seu dia a dia, e, por isso,
dos bombeiros e, em conseqüência, serviu pode estar mais propenso a adoecer.
para pensar em alternativas que visem a
buscar maior promoção de QVT e prevenção Como seqüência deste trabalho, iniciamos
de doenças. uma pesquisa para investigar possíveis
transtornos ou psicopatologias relacionadas à
Concordamos com Cardoso (1999/2003) profissão do bombeiro, entre estes: o
quando este afirma que a qualidade de vida transtorno por estresse pós-traumático, a
envolve a satisfação e as expectativas tanto depressão, a ansiedade e o abuso de
humanas quanto técnicas por parte do substâncias psicoativas. Também estamos
trabalhador, e, portanto, melhorá-la não é algo desenvolvendo oficinas com temas de
que se resolva em um só trabalho, mas é um interesses trazidos pelos bombeiros que
processo infindável, que necessita do participaram do nosso estudo para discutir
comprometimento do indivíduo com um aspectos relacionados à saúde e à QVT.
estilo de vida.
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