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https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641997000200014
Psicologia USP
Print version ISSN 0103-6564On-line version ISSN 1678-5177
https://doi.org/10.1590/S0103-65641997000200014
O tema, priorizando a abordagem sobre sonhos, poderá trazer perplexidade colocado dessa
forma, ou seja, por deliberadamente inserir a discussão sobre consciência referida a período
de vida ao qual habitualmente está associado o estado de sono. O que se tenta tematizar
aqui é a subjetividade, questão que se torna epistemológica, quando se trata de
conhecimento e posse de si próprio por parte do sujeito. E o que fundamenta esta proposta
poderá estar na frase do poeta, sobre "a realidade de que são feitos nossos sonhos", o que
nos traz de volta às experiências comuns de vida tão bem retratadas na literatura, e tão
arduamente perseguidas pelo filósofo.
O relato de M. (sexo feminino, 30 anos) surpreendida pelo conteúdo, pela imagem, e pela
qualidade emotiva a que o sonho a conduz pode ser tomado como protótipo para aspectos
que aqui se desenvolvem:
Três cavaleiros em túnica branca, turbante branco na cabeça, montados em cavalos, aproximam-se lentamente beirando a
praia ... as ondas espraiam suavemente sua orla branca na areia cinza compacta e úmida ... uma aragem se desvela dos
tecidos esvoaçantes ... possivelmente tostados do sol tem a pele enrugada, o olhar firme, as feições marcadas pelo tempo
e pela história ... adiantam-se em diagonal ao canto inferior direito da tela e dirigem seus rostos para a sonhadora entre
passiva e atenta, sem fixá-lo no entanto, como se disso não se tratasse ...
*
A associação do sonho com o sono merece ser ressaltada, quanto à correlação do estado
onírico com o estado de consciência rebaixada característica à sequência de tempo em que
o sono se instala. Ao adormecer o sujeito, a consciência esmaece, perde a conotação de
presença como orientação corporal e ambiental da vigília; nesse momento, perdem-se
também a orientação e o controle para a ação; e não é sem motivo que a metáfora da
morte tem-se prestado tão bem a designar esse periodo de tempo.
Por outro lado, é flagrante o fato de que o pensamento de vigília continue durante o sono, o
cochilo, o adormecimento, enfim. O período de vida em sono noturno é detectado como um
contínuo processar de conteúdos, informações, idéias, que em alguns momentos podem-se
constituir sob a forma dos pensamentos comuns à vigília. Tais formulações relacionadas a
preocupações, atuações, ampla gama de manifestações, enfim, do período de vida alerta
durante o dia transfiguram-se em sonhos de uma mesma noite: dessa forma, ainda que
habitualmente não sejam todos recordados ao despertar pela manhã, o material em
tramitação na corrente de pensamento nesse momento se revela à consciência em
linguagem pré-verbal característica ao processo onírico.
Foulkes (1982) insiste sobre o aporte cognitivo passível de ser atribuido ao sonho e sobre a
necessidade de reinstituir o lugar que Freud dera ao sonho na corrente de pensamento.
Adotando a teoria de Chomsky sobre a linguagem, declara que o" enfoque cognitivo-
linguístico dos sonhos é compatível com, e realmente recolhe da maneira mais assombrosa,
os melhores insights do modelo freudiano da formação dos sonhos e de seu método de
interpretação" (p.20). Atribuindo aos sonhos caráter de variedade do pensamento humano
complexo (mais do que fenômeno perceptual), como" realização conceitual humana de
primeira magnitude", defende que o sonhar precisa ser reconhecido como central para o
estudo da mente de forma a trazer contribuições significativas para a psicologia cognitiva,
assim como para as ciências cognitivas. Mantendo a convicção de que o enfoque proposto
coloca em relevo a" íntima interrelação dos constructos motivacionais", como "núcleo
evidente da teoria freudiana dos sonhos", sendo "as representações e operações mentais
consideradas como temas centrais da psicologia cognitiva", defende que tanto a teoria dos
sonhos seja enriquecida com conceitos atuais da teoria cognitiva, como esta seja ampliada
com fenômenos ricos em motivações.
Trata-se aqui do sonho em seu sentido estrito, ocorrência comum, supostamente possível a
todas as pessoas, e seu consequente relato em vigília. Distingue-se de outras experiências
em que se diz ter sonhado apenas porque o relato se refere a fato ocorrido durante o sono.
Bastante variado em sua forma (conteúdo, cor, época, tipo de imagem), sua representação
de ordem sensorial e especialmente visual, mantém uma trama através de cenas e
conteúdos temáticos: objetos, animais, pessoas protagonizam a ação, articulados de
maneira às vezes mais, às vezes menos lógica, tomando-se como termo de comparação a
lógica ordenada característica ao pensamento de vigília.
A grande maioria estando a ele familiarizada e ocorrendo durante o sono, o sonho mantém
uma regularidade no ciclo vigília-sono; esses fatos o colocam como constituinte da condição
humana (para não falar também animal, de que não se trata aqui), de tal maneira que
pesquisadores se perguntam se "dormimos para poder sonhar", contrariamente à hipótese
levantada por Freud na "Interpretação dos sonhos" (1900).
Levando-se em conta o lugar e estatuto que ocupa no campo psíquico, o sonho toma
caráter peculiar e específico na corrente de pensamento, assim como frente à existência
consciente. Ocupando boa parte da vida humana, revela elementos do sujeito a nível de sua
temática pessoal e constituição de ego. Ainda que fosse considerado resultado de conteúdos
mentais em reverberação, ressalta o fato de tomar sentido e de promover desenvolvimento
em elaborações pessoais e grupais em vigília.
Flagrante ainda é que seu conteúdo e alguns de seus elementos servem como resíduos
noturnos para o dia seguinte ou para dias futuros, assim como, segundo a observação
freudiana, os resíduos diurnos servem à sua formação durante o sono. Considerando esses
dados, podemos falar do processo onírico como favorecendo orientação na corrente de
consciência, constituindo-se também como determinante na cadeia de caráter consciente-
inconsciente.
Apesar das relações que mantém com outros processos na corrente de consciência, a
análise realizada a partir de seu interior provê a possibilidade de verificar relações de
elementos nele próprio, de forma a permitir a construção de conceitos concernentes ao seu
conteúdo e gênese. As coordenadas de tempo e espaço se distanciam das dimensões físicas
atuais do sonhador, apresentando encadeamento em que a temática vivida ou
experienciada frequentemente em alto grau de emoção, mais atesta ser determinada pelo
afeto que pelo "raciocínio".
Sob o enfoque existencial, Boss ressalta a idéia de que o sonho, como as demais
manifestações humanas, constitui uma forma de estar-no-mundo que lhe é própria. Na
realidade, direta ou in-diretamente concernente ao sonhador, seu caráter afetivo remete
frequentemente ao conflito na sua base, do que nos dá conta especialmente a ocorrência de
sonhos de angústia. Quanto aos pesadelos, os aspectos característicos, sua formação,
representação, nível de emoção, e correspondente caracterização das imagens, indicam
bem a possibilidade de distinção em relação ao sonho.
Para Kramer (1991), por exemplo, o pesadelo ocorre quando o estado emocional alterado
do sonhador excede os limites da capacidade integrativa do sonhar; pode-se acrescentar,
excede a capacidade integrativa do sonhar do sonhador em questão, e também no
momento em questão. O pesadelo parece mais ser índice da impossibilidade por parte da
atividade onírica de atingir sua finalidade: ou seja, da impossibilidade de, congregando as
capacidades de articulação e de ressignificação no sonhador, possibilitar a integração do
conteúdo relativo a si próprio e de ordem especialmente simbólica e metafórica.
O sonho repetitivo remete igualmente à impossibilidade de integração assim considerada,
enquanto o sonho típico estaria apontando para condições comuns diante de experiências
vitais semelhantes com que nos defrontamos. Coloca-se aqui a tentativa de indicar o
processo onírico em suas potencialidades, quando exercendo sua trajetória em duração de
tempo em sono: a integração de que se fala neste momento refere a articulação expressa e
constitui índice do processo subjacente.
Ainda que a representação onírica configure uma estória em sequência muitas das vezes
não desordenada de fatos, a passagem de uma a outra cena, ação ou personagem, parece
seguir uma lógica que não pode ser apenas explicada pelas regras reconhecidas como
válidas na construção do pensamento de vigília. A percepção por parte do sujeito de
vacuidade e distorsão nas imagens de objetos o surpreendem pela diversidade em relação
aos objetos que representam. Sua perplexidade se intensifica diante da questão aberta
transitando no espaço desse teatro interior.
O contraste entre a consciência de realidade das imagens e a dificuldade de seu relato, que
experimentam as pessoas ao tentarem reproduzi-las verbalmente, permite algumas
discussões importantes. Por um lado argumenta-se sobre a impossibilidade de atestar a
ocorrência de sonhos, por outro, argumenta-se que o relato refere fato diverso daquele
sonhado. Realmente, como outras expressões e manifestações da consciência, os sonhos
constituem experiências subjetivas não partilháveis e nem mesmo passíveis de comunicação
ao outro com exatidão. No entanto, a veracidade de sua existência é atestada pelo sujeito
que relata, mas também por relatos e experiência da maioria, o que torna possível o
consenso sobre sua constituição como fato material.
A consciência durante o sonho é "tão consciência de si mesma que recria o mundo à sua
imagem." (Hobson citado por Alvarez, 1995, p.100). Nesse sentido, a imagem percebida
durante o sono é a tela onde representações estarão sendo reportadas e, dessa forma, o
sonhador toma consciência de seus conteúdos, em aparência. Todas as imagens, ações,
personagens, representações oníricas, enfim, se referem ao sonhador. Este, enquanto capta
o sonho, é captado por ele e seu desenrolar, de tal forma que passa a ser o captado; é a
cena que o olha, enquanto é submetido a ela. Na multiplicidade de elementos que o
identificam e representam, a multiplicidade de espelhos lhe reenvia imagens de si, de forma
que aspectos diversos se revelam, portando possivelmente diversos eus. No jogo que aí se
estabelece, explica-se bem a evanescência constituinte do material onírico.
Essa consciência de caráter intrasubjetivo constitui-se experiência única, não passível de ser
compartilhada, ainda quando relatada. A operação mental a esse momento, no entanto,
tem sentido além do nível puramente subjetivo, pois o sujeito é confrontado com aspectos
eles próprios marcados pelo sentido a nível grupal e cultural de símbolos e imagens; da
mesma forma os dados constituintes do material onírico estão marcados por sua relação
com conteúdos passados e atuais, igualmente se projetando em perspectivas futuras no
grupo familiar e cultural. Os símbolos, as metáforas e as imagens constituidos por dados da
memória pessoal podem, portanto, ser tomados como material supra-pessoal; a temática
sem dúvida de caráter próprio, se encontra expressa especialmente na representação
assegurada pela inserção do sujeito na sua história, no grupo e na cultura.
Se o sonho, em si, não é para ser comunicado, nem para ser interpretado, resta o fato de
que o outro, aquele com o qual se defronta, revela o sujeito e permite sua construção. O
Outro no sonho, o Outro na consciência desperta, no grupo social e cultural. Mais ainda, a
significação e ação decorrentes reverterão não apenas para o sujeito mas também para o
grupo. A tal ponto que à afirmação tantas vezes utilizada de que a sociedade muda, as
invenções ocorrem porque sonhamos, poderíamos contrapor a questão de se não deveriam
inverter-se os termos, ou seja: sonhamos para que a sociedade possa mudar.
As relações de significado, assim como as potenciais ações futuras são reveladas pelo
movimento temporal (ritmo) no interior do espaço psíquico no sujeito. Movimento e
diversidade de relações entre os objetos, as personagens, ou outros elementos, em ação ou
passividade, indicam diferentes perspectivas atribuídas aos mesmos, o sujeito sendo então
colocado em posições variadas em momentos sucessivos. Ao mesmo tempo permanece a
qualidade de instantaneidade da cena e a categoria de um tempo abstrato, presente mas
eterno.
Aí ressalta o conceito tanto de espaço como de tempo em terceira e em" quarta dimensão":
a abstração do plano concreto coloca o sujeito em pontos virtuais de cruzamento de
coordenadas na rede de representações imaginárias, mas também vinculados ao real e ao
simbólico, desde que marcados por sua história. Dessa forma, o sonho veicula para além da
tridimensionabilidade um caráter abstrato, aberto às realizações futuras, o que relativiza a
verdade do momento atual e opera no sentido da elaboração criativa em vida de vigília, na
realização artística e científica, assim como na evolução pessoal.
Uma abordagem levando em conta aspectos criativos como foco, terá que lidar, por um
lado, com o fato da criação e a capacidade de criar que revelam a possibilidade de novas
articulações para além da repetição no ser humano; e, por outro lado, terá que considerar
questões relativas à constituição do sujeito dada especialmente por sua estória e por seu
desenvolvimento: sem dúvida traspassadas não somente pelo conflito emergencial, mas
pelo conflito latente, pela angústia e pela ansiedade, assim como pelas estruturas
adquiridas para manutenção da individualidade e da subjetividade.
Postula-se que a qualidade do sono assim como o despertar descansado após sono diurno
ou noturno possam estar correlacionados à capacidade de sonhar. Proporcionando
integração a nível psíquico e corporal, esta última possibilitaria desenvolvimento saudável, a
nível pessoal e social. No extremo oposto, incapacidade de aceitar a frustação e sobrepor-se
a condições conflituosas e ansiógenas poderia determinar a insônia: impossibilidade de
distanciar-se do fato concreto pelo medo de sonhar que poderia suceder a esse abandono
de si próprio ao sono e ao incurso da fantasia.
O espaço do sonho se revela "área interior de jogo" (Winnicott citado por Racamier, 1976,
p.189), onde se estabelece a "liberdade" de sonhar, "advinda da liberdade de o sujeito
representar tanto os objetos como a si mesmo." Realizações de caráter criativo trazem
confirmação a respeito das potencialidades inerentes ao processo onírico, desde que se
podem citar produções musicais, poéticas, inspiração para a criação tendo por gênese
material onírico. Articulações típicas à operação consciente estariam em jogo, incluindo
especialmente o encontro de novos dados ou de novas soluções. Observações em pesquisa,
fatos anedóticos e a prática clínica tem indicado elaboração onírica como substancialmente
criativa, ainda que se admita que a produção final venha a ocorrer em momento posterior
de vigília: a sonata de Tartini, a fórmula do benzeno, são exemplos bem conhecidos. O
trabalho com sonhos em sessões terapêuticas favorece o desenvolvimento da temática de
ordem ansiógena a par de encontro de soluções, "insights", orientação para novos projetos,
seja a nível de composições artísticas, seja a nível de personalidade. No espaço alargado e
ampliado do sonho, portanto, o encontro com a realidade metafísica inserida na questão
ser-e-não ser subjazendo à polaridade vida-e-morte, se delineia no suceder de associações,
nas substituições e transformações, nos "insights" posteriores.
A tomar por base o caráter potencialmente criativo do sonho continuando-se pela vida
desperta, poderíamos supor o exercício de suas funções durante o próprio sono, assim como
se evidenciam outros processos atuantes na corrente de consciência de vigília: o sonho, o
seu relato, as imagens e os "insights" escapam à apreensão num fluxo de que, como
dissemos acima, não se tem controle total; no entanto, apresentam-se através de
substituições e transformações em construções outras, em materiais outros, e em
produções de pensamentos, elaborações, criações científicas e artísticas. Além disso, o
despertar descansado após a noite de sono pode ser correlacionado a uma noite bem
dormida "com a cabeça em sonhos".
Kahn (1972) diferencia os processos do sonho que articulam os conflitos do espaço em que
o sonho os atualiza. O espaço do sonho seria uma conquista na evolução pessoal, "o
equivalente psíquico interno do que Winnicott conceituou ao invocar o espaço transicional,
que a criança institui para descobrir-se a si própria, assim como a realidade exterior." (Rallo
Romero, Ruiz de Bascones & Zamora de Pellicer, 1974, p.895). Para estes últimos, o espaço
de sonho tem início em periodo muito precoce da vida, no qual as capacidades do ego são
adquiridas em processo seletivo de identificação e especialmente subsidiado pelos pais. Em
condições de análise e psicoterapia, o surgimento de sonhos indica a capacidade de sonhar
e a configuração do espaço de sonho ao qual corresponde o espaço psíquico, em que o
paciente tem condições de construir-se e reconhecer-se como sujeito.
Racamier (1976) argumenta que a falta do espaço do sonho pode indicar a impossibilidade
de exercício lúdico com as representações e a incapacidade de sonhar; a exemplo do que
ocorre no "acting out", pode levar ao "dreaming out", ao transonhar que constitui o
fenômeno psicótico (alucinatório e delirante): este seria o substituto extraviado do sonho
que não se pode sonhar. Dessa forma, fica delineada a semelhança, assim como a oposição
do ponto de vista clínico e estrutural entre o processo do sonho e o da psicose. Seguindo
essa linha de pensamento, os esquizofrênicos seriam "sonhos incarnados de seu objeto, e
vivem da existência insistente e entretanto aleatória de que vivem os sonhos" (p.192).
Neste último caso, a tela do sonho não teria condições de conter o material de tipo onírico.
O conceito de tela do sonho deve ser aqui entendido como o" quadro" em que se inserem
imagens e representações constituintes da cena. Nesse sentido as imagens e
representações seriam conteúdos projetados na tela cuja presença o "sonho com a tela
branca" atesta. Isakower (1938) associou as imagens hipnagógicas arredondadas e brancas
que pacientes seus percebiam aproximar-se de si durante o sono, como forma diferenciada
de tela branca, às experiências da criança no seio materno. Lewin (citado por Bergeret,
1974) indica, com base nesses dados, que a tela do sono se constitui de afetos e a ela
corresponderia o seio materno; dessa maneira, o adormecer estaria correlacionado à
satisfação oral. Racamier (1976), numa abordagem de nível fenomenológico, considera a
tela como membrana fluida no limite entre mundo pulsional e mundo externo, em que
consistiria o ego e que em sua permeabilidade permaneceria como revestimento ao mesmo
tempo acolhedor e reverberante.
A fonte da tela, no entanto, seria de ordem bastante arcaica para Bergeret (1974). O autor
prefere trabalhar com a "hipótese de mitos originais e pré-edipianos", assegurando "as
bases da organização fantasmática ulterior" (p.975). Levando em conta o espaço do sonho
que se abre em ampla dimensão através das conexões possibilitadas pela palavra e pelo
símbolo, assim como a dimensão de sua subsistência em fontes tão arcaicas, pode-se
levantar os múltiplos pontos de encontro nas coordenadas da história passada e atual em
sua projeção para o futuro a cada momento específico, ao mesmo tempo oferecendo-se à
operação cognitiva no homem.
LEITE, T.M. Oniric Consciousness State. Psicologia USP, São Paulo, v.8, n.2, p.287-
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http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=242
Trabalhou no projeto de musicalização popular “Musicalizando Diadema” e ministra aulas de geografia pela
prefeitura desse mesmo município. É cantor, guitarrista, fundador e compositor do grupo de tendência ibérico-
medieval ESPLENDOR e autor dos CDs independentes “Quando a Noite Cai” e “Perder-se na Vastidão”.
"I was but a traveler floating endless through the sea, on the other side of knowledge through the pliancy of
dream." (Solitude Aeturnus)
Nos tempos antigos, os sonhos eram considerados como a expressão de um mundo verdadeiro e diferente
deste. O mundo espiritual era visto como importante e real, ao contrário do que ocorre hoje. As visões oníricas
eram tomadas como o contato do homem com a dimensão desconhecida da existência. Disso decorria a
grande importância atribuída aos sonhos nas culturas antigas e confirmada por Sanford (1988) ao abordar a
questão da depreciação dos sonhos nos dias atuais:
"(...) enquanto nosso tempo ignora e despreza o assunto dos sonhos, nos tempos antigos eles eram muito
mais valorizados. Tanto quanto conheço, não existe nenhuma cultura antiga na qual os sonhos não fossem
vistos como extremamente importantes." (p.12)
Ao contrário do que ocorre na cultura moderna, na qual não se presta atenção cuidadosa aos sonhos e se os
considera desprezíveis, o homem antigo atribuía importância extrema às experiências oníricas. Essa
valorização demonstra que eram entendidos como portadores de alguma forma de realidade pois do contrário
não seriam tomados em tamanha consideração. Não se dá importância ao que não existe. Até mesmo uma
mentira ou um boato precisam existir, ainda que seja sob a forma de uma idéia vaga na cabeça de alguém,
para que se dê a eles alguma importância.
Os comportamentos irracionais do homem, presentes ainda no mundo de hoje, seriam, para os primitivos,
sinais da existência de uma realidade espiritual que envolveria forças que os ultrapassavam. Tais forças,
incompreensíveis, moveriam os seres humanos e os arrastariam a comportamentos subversores do controle
consciente, sendo, além disso, parte de um universo invisível e poderoso mas acessível por meio dos sonhos,
nos quais também irromperiam. O mundo espiritual manifestado em sonhos corresponderia a uma forma
específica de realidade que seria sinalizada pelo comportamento humano irracional. Haveria ligação entre o
ato de nos comportarmos como se estivéssemos possessos e os sonhos pois um seria sinal do outro:
"O comportamento humano não é racional e a humanidade se comporta em todo o mundo como se fosse
possessa. Para o homem primitivo tudo isso era sinal óbvio da realidade do mundo espiritual que lhe aparecia
nos sonhos. (...) Persistimos em nosso materialismo racionalista, sob a ilusão de que somos racionais e os
outros não. Se há distúrbios em nossos sentimentos e em nossa afetividade, atribuímos a causa ao que os
outros nos fazem e continuamos pensando que só tem sentido o que nos parece lógico e racional, que só é
real o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e provamos. Os sonhos tem sentido, mas um sentido que não
é lógico. São muito reais, mas sua realidade não é apreendida por nenhum dos sentidos do nosso corpo."
(idem, p. 14, grifos meus)
Nos dias atuais, acreditamos que aquilo que não compreendemos não existe. Segundo essa forma de pensar,
a existência não possuiria um aspecto desconhecido, um lado não entendido; o incompreensível seria
inexistente. Levada ao extremo, tal idéia nos leva a crer que sabemos tudo, que não há mistérios. Trata-se de
uma violenta inflação egóica. Em decorrência dessa inflação, rechaçamos o mundo dos sonhos enquanto
modalidade especial de realidade por não compreendê-lo. Nosso ceticismo arbitrário não nos permite aceitar a
existência daquilo que não conseguimos compreender através dos cinco sentidos. Esses são os únicos
instrumentos que sabemos usar em nossos processos de cognição. Ignoramos que o problema está em nós e
não no mundo onírico e que temos uma consciência adormecida e medíocre que nos impede de experimentar
outras realidades. Não colocamos atenção sincera na limitação dos nossos sentidos usuais. Não percebemos
os sonhos diretamente pelos órgãos sensoriais externos e, por isso, pensamos que eles não existem, nos
esquecendo de que a realidade possui níveis ou facetas usualmente não-sensoriais. Em tais condições, tudo
se passa, para nós, como se o usualmente não-sensorial fosse o nada. Se isso fosse verdade, não haveria um
espectro contendo sons inaudíveis e feixes luminosos invisíveis ao olho nu, detectáveis apenas com o uso de
equipamentos modernos.
Nem mesmo a religião conseguiu ampliar nossa consciência na direção de captar mais diretamente as
realidades internas, apesar de aparentemente se posicionar contra o arbitrário ceticismo reinante. A igreja "já
poderia nos ter resgatado dessa filosofia materialista e arrogante, se ela mesma não tivesse renegado suas
próprias tradições e, como tudo o mais, sucumbido ao materialismo racionalista dos nossos dias.(...) Ao
enfatizar a vida da instituição mais do que a da alma, deixou de lado os sonhos.(...) Foi o que minou a base da
vida espiritual da igreja, expondo-a ao mesmo materialismo e racionalismo que ela combatia e que se
estendeu pelo mundo inteiro. A igreja preferiu ignorar o fato de que a rejeição aos sonhos ia contra a visão
contida na bíblia e no cristianismo primitivo." (ibidem, p.14). O significado que o mundo dos sonhos possui
para os religiosos de hoje seria completamente estranho às comunidades cristãs do séc I. Ao rechaçá-lo,
nossa igreja teve suas bases espirituais minadas. A vitalidade espiritual perdeu seu alicerce.
Certos sonhos que servem de fundamento às experiências religiosas possuem impressões de realidade tão
impactantes que chegam ao ponto de aterrorizar o sonhador (Sanford, 1988). Eles "parecem carregados, de
modo especial, com energia psíquica. São os sonhos chamados "numinosos". A palavra vem do latim numen,
que significa a divindade ou a força espiritual atuante. Dizemos que experimentamos algo numinoso quando
isso parece nos levar a participar da natureza de uma realidade espiritual diferente, que existe para além de
nossa natureza pessoal. (...) A santidade de Deus é a própria numinosidade. [Rudolf] Otto enfatiza que, diante
do Deus de Israel, o homem sente temor, admiração, horror, enfim, sente o ser próprio de criatura. A
numinosidade constitui a matéria-prima da experiência religiosa." (pp. 33-34, grifo meu). Experiências oníricas
numinosas nos dão a sensação de participar de uma realidade transpessoal. Sentimos estar em contato com
algo verdadeiro que está além de nós mesmos e nos ultrapassa. Obviamente, a experiência não provocaria
terror se o seu conteúdo não fosse tomado como real.
Segundo a Bíblia, a realidade transcendente se revela ao homem durante as horas do sono, embora ele não
perceba:
"(...)Deus fala de um modo, sim, de dois modos mas o homem não atenta para isso.
Em sonho ou em visão de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama,
então lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instrução, para apartar o homem do seu desígnio e livrá-lo da
soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua vida de passar pela espada." (Jó 33. 14-18, grifo meu)
Deus instrui o homem dentro do mundo onírico e torna-o receptivo à Sua instrução. Ele o protege e o ajuda a
evitar a morte e a espada do inimigo. Isso não seria possível se o mundo dos sonhos fosse tomado como
irreal.
Na autobiografia de um filósofo e teólogo persa do século XI, Al-Ghazzali (apud James, 1995), a realidade dos
sonhos chegava a ser vista como a de um estado similar ao de Deus e fornecer o dom da profecia. Ele
considerava que:
"Deus aproximou o profetismo dos homens ao dar-lhes um estado análogo a Ele em seus caracteres
principais. Esse estado é o sono. Se dissésseis a um homem sem nenhuma experiência com um fenômeno
dessa natureza que existem pessoas capazes, em dados momentos, de desmaiar de modo que pareçam
mortas e que [nos sonhos] ainda percebam coisas que estão ocultas, ele o negaria [e exporia suas razões
para isso]. Não obstante, suas alegações seriam refutadas pela experiência real." (p. 253)
Segundo Harnisch (1999), os sonhos, enquanto acontecimentos pertencentes a uma realidade paralela à vígil,
eram levados a sério pelos índios da América do Norte. Os Sioux acreditavam que o mundo físico era apenas
uma sombra do onírico, o qual chamavam de "mundo real", como vemos na história de Cavalo Doido (Brown,
1987):
"Desde o tempo da juventude, Cavalo Doido soubera que o mundo onde viviam os homens era apenas uma
sombra do mundo real. Para chegar ao mundo real tinha que sonhar e, quando estava no mundo real, tudo
parecia flutuar ou dançar. No seu mundo real, seu cavalo dançava como se estivesse furioso ou doido e por
isso é que se chamou Cavalo Doido. Aprendera que, se sonhasse consigo no mundo real antes de ir para uma
luta, poderia resistir a qualquer coisa." (p.210)
Segundo a história, foi por meio do conhecimento adquirido em sonhos que Cavalo Doido venceu sua maior
batalha.
Além de real, o mundo dos sonhos era visto como tendo conexões com o mundo externo. Uma conexão de tal
natureza pode ser encontrada em um relato de Enoch, infelizmente depreciado pela igreja e pouco divulgado,
a respeito dos momentos que antecederam sua viagem através dos sete mundos celestes:
"No primeiro dia do primeiro mês, estava eu sozinho em minha casa descansando no meu leito, quando
adormeci.
E quando estava adormecido, uma grande tristeza tomou conta do meu coração e chorei durante o sono, e
não podia entender que tristeza era aquela ou o que iria acontecer-me.
E então me apareceram dois homens, extraordinariamente grandes, como eu nunca vira antes na Terra; suas
faces resplandeciam como o sol, seus olhos eram como uma chama e de seus lábios saía um canto e um fogo
variados, de cor violeta na aparência; suas asas eram mais brilhantes do que o ouro, suas mãos mais brancas
do que a neve.
Eles estavam em pé, na cabeceira do meu leito e puseram-se a chamar-me pelo nome.
Acordei e vi claramente aqueles dois homens, de pé, na minha frente."
(O livro dos Segredos de Enoch 1: 4-8)
Os homens que Enoch viu em sonho estavam na cabeceira de sua cama. Ao acordar, ele diz ter visto os
mesmos homens à sua frente. De acordo com o relato, parece haver ocorrido uma sincronicidade: ele sonhou
com algo e logo em seguida vivenciou a mesma cena no mundo externo. Os mesmos homens vistos por
Enoch durante o sonho eram os que estavam em pé próximo à sua cama quando ele acordou.
Um contato com o mundo espiritual na ausência da vigília pode ser encontrado em uma revelação de Isaías. O
profeta teve uma visão durante a qual perdeu os sentidos externos. Ele se manteve em silêncio e foi dado
como morto pelos que o observavam:
"E enquanto Isaías falava sob a inspiração do Espírito Santo, e todos o escutavam no mais profundo silêncio,
o seu espírito foi elevado acima dele mesmo, e ele não mais enxergou os que estavam em pé diante dele.
E seus olhos permaneciam ainda abertos, mas a sua boca não proferia mais palavras, e o seu espírito foi
levado acima dele mesmo.
Ele, no entanto, vivia ainda; mas estava imerso numa visão celeste.
E o anjo que lhe fora enviado para revelar-lhe esta visão não era um anjo deste firmamento, nem um desses
anjos gloriosos deste mundo: era um anjo descido do sétimo céu.
E o povo que lá se encontrava com a assembléia dos profetas acreditou que a vida de Isaías tinha-lhe sido
subtraída.
E a visão do santo profeta não foi deste mundo aqui, mas uma visão do mundo misterioso no qual não é
permitido ao homem penetrar."
(O Livro da Ascensão de Isaías 6: 10-15)
De acordo com o escrito, nos momentos em que os olhos de Isaías deixaram de captar as pessoas à sua
frente, ele tinha uma visão de outro mundo, misterioso e impenetrável. Seus olhos se mantiveram abertos
durante o contato, um possível indicador de que seu estado era o de um sonâmbulo ou algo semelhante. O
fato do povo reunido julgá-lo sem vida é um indicador de que certas funções corporais típicas de quem está
vivo, como o movimento e a fala, haviam sido suspensas (cadáveres normalmente não se movem). O estado
do seu corpo não era vígil uma vez que não havia consciência desta realidade externa. A mesma ausência de
consciência ocorre no sono usual, no sonambulismo, no desmaio, na meditação, no transe ou no coma: em
todos esses estados o funcionamento das exopercepções é interrompido e o corpo desfalece. Entendo que
sua consciência deixou o mundo externo e penetrou na dimensão onírica ou fez algo muito próximo disso, pois
o profeta não dava sinais de estar acordado. O universo onírico existe paralelamente ao físico sob a forma
psíquica (os mundos interno e externo são simultâneos e paralelos) e, em geral, quando se abandona um se
vai para o outro. Em todo caso, o mundo acessado nessa experiência foi considerado real, o que favorece a
afirmação de que os antigos não depreciavam a realidade interior.
Como se vê, os estados em que a consciência deixava o corpo físico eram a ponte para a realidade espiritual.
As experiências que se tinha durante o sono funcionavam como portas ou "portais", através dos quais o
homem poderia contatar outras realidades, distintas da usual. O universo além dos limites do estado vígil não
era considerado irreal e nem visto como algo que tivesse uma existência vaga e ilusória ou, para ser mais
exato, uma pseudoexistência. O fato de ser tratado como uma forma de manifestação divina demonstra que
esse mundo era tomado em consideração seriamente.
A experiência mística era obtida enquanto se dormia. E nesse estado se poderia obter a autoridade de quem
teve uma revelação de Deus. Uma autoridade de tal natureza, proporcionada pela experiência religiosa
profunda, pode, segundo Willian James (1995) chegar a destruir as bases da formal concepção lógico-racional
de realidade pois os "estados místicos, quando bem desenvolvidos (...) quebram a autoridade da consciência
não mística ou racionalista, que se baseia apenas no intelecto e nos sentidos. Mostram que esta não passa de
uma espécie de consciência. Abrem a possibilidade de outras ordens de verdade nas quais, na medida em
que alguma coisa em nós responda vitalmente a elas, possamos continuar livremente a ter fé." (p. 263, grifo
meu).
Para ele, há várias formas de consciência que dão acesso a vários tipos de realidades e a religiosa, aquela
que se tem nos estados místicos, seria uma delas. Deste modo, as experiências religiosas possuiriam um
fundamento real, peculiar ao tipo de consciência que lhe corresponde, e não falso. Foi o que ocorreu com
Enoch e Isaías, que tiveram experiências religiosas em estado extra-vígil e autênticas à sua maneira, desde
um ponto de vista espiritual.
Atualmente, a valorização dos sonhos parece estar retornando. O ceticismo arbitrário, aquele que está fixo na
dúvida unilateral e busca adaptar os fatos à teoria (crença) e aos métodos ao invés de adaptar estes últimos
às evidências, está retrocedendo e a realidade do mundo onírico sendo levada em consideração. Sanford
(1988) entende que hoje a ciência está investigando com mais cuidado e seriedade os desafios cognitivos que
lhe são lançados pelos sonhos:
"Atualmente, estamos nos aproximando da mudança. Durante o século XX, o sonho volta a se tornar objeto
válido de estudo e investigação. E temos, por exemplo, as pesquisas sérias relativas ao sono e aos sonhos
que começaram a ser feitas depois da Segunda Guerra Mundial." (p.15)
Compreender a importância de explorar o mundo dos sonhos ao invés de esquivar-se ingenuamente dos
problemas postos por ele é ampliar as fronteiras da ciência. É também aproximar-se mais da visão de Isaías,
Enoch, Jó, dos povos ágrafos atuais e das culturas antigas e "pagãs", recuperando as bases verdadeiramente
espirituais do cristianismo primitivo, descartadas pela igreja .
A idéia de um mundo interior real é compartilhada por Saiani (2000) para quem o pressuposto de que a
"realidade objetiva" e o "puramente subjetivo" diferem é preconceituoso uma vez que a realidade abrange
eventos físicos e psíquicos. Levada adiante, isso significa que existem objetos psíquicos assim como existem
objetos físicos e que nem sempre o psíquico é subjetivo.
Além disso, Jung (1986) entendia que o eu está contido em um mundo, que esse mundo era a alma e que
seria razoável atribuir-lhe a mesma validade que se atribui ao mundo empírico uma vez que ela possui tanta
realidade quanto ele. Segundo seu pensamento, a psicologia deveria reconhecer que o físico e o espiritual
coexistem na psique e que, por razões epistemológicas, esse par de opostos foi cindido pelo homem ocidental
( idem).
Dentro do homem há um universo verdadeiro, feito de imaginação, que se faz notar incessantemente por meio
de pensamentos, sentimentos, recordações e dos sonhos, quando então se faz mais espesso e tangível. Esse
mundo no qual a ciência está penetrando aos poucos, pertence a uma dimensão desconhecida do espírito
humano. Nós a chamamos de inconsciente porque não temos, usualmente, contatos conscientes e diretos
com ela (Sanford, 1988):
"(...)eis uma teoria básica sobre os sonhos: originam-se em outra dimensão de nossa personalidade a qual,
pelo fato de não termos consciência da mesma, é chamada de inconsciente." (p.29, grifo meu)
Além desta dimensão em que vivemos durante a vigília, há outra: a dimensão do inconsciente. As regiões de
onde os sonhos provém parecem ainda ser pouco acessíveis à investigação científica no nosso atual estágio
de desenvolvimento. Entretanto, a consideração séria dos mesmos enquanto realidade passível de estudo
livre e dos relatos de pessoas que os experimentam conscientemente pode abrir novas portas nesse campo e
ajudar a dissipar nossa ignorância, além de ocupar um espaço que de outra forma poderia ser destinado ao
charlatanismo e às mistificações irresponsáveis.
Cleber Monteiro Muniz cursa especialização em Abordagem Junguiana pela COGEAE da PUC-SP, está
desenvolvendo uma monografia sobre Experiências
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212005000200005
RESUMO
Os objetivos deste artigo são estudar a alteração da consciência que origina o sonho lúcido,
uma modalidade de sonho na qual o ego onírico compreende que está sonhando e que seu
corpo está adormecido, e analisar os motivos e as formas de se estudar o processo de
transição do estado usual de consciência onírica para o estado não usual de lucidez. Sob
este ponto de vista, avaliou-se as modificações psíquicas e cognitivas, que involvem
mecanismos mnemônicos e perceptuais internos, presentes durante o estado de lucidez no
sonho. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 50-66.
ABSTRACT
The aim of this article are to study the alteration of the consciousness that originates the
lucid dream, a modality of dream, in which the oneiric ego understands that it is dreaming
and that its physical body is sleeping, and to analyze the reasons and the conditions to
study the transition process from the usual state of oneiric consciousness to the non usual
state of lucidity. In this way, it was evaluated the psychic and cognitive
modifications, that involves mnemonic and internal perceptuals mechanisms, presents
during the dream lucidity state. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 50-66.
O mundo perceptual imediato está incluído entre os conteúdos da consciência (Baars, 1997)
e, quando o sonhador está lúcido, contém a oniricidade detectada pelo ego onírico. Esta
modalidade de experiência onírica é uma experiência psicológica na qual o sonhador atua
conscientemente, sabendo que está adormecido enquanto sonha (Eeden, 1913, s/d;
LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Gackenbach,1988; Harary e Weintraub, 1993; Lucidity
Institute, 1996, LaBerge e Gackenbach, 2001) e que seu corpo permanece no leito. É um
sonho em que a realidade interior não é confundida com a realidade exterior pois o ego
onírico compreende o que está acontecendo, tal como vemos nas definições a seguir:
"Dreams in which the dreamer becomes aware of dreaming while continuing to dream
are known as 'lucid dreams' " (Kahan e LaBerge, 1994: 251)
"Sonho lúcido é aquele no qual você está conscientemente informado do fato de que está
sonhando" (Harary e Weintraub, 1993: 35)
"A definição básica do sonho lúcido não requer nada mais do que tornar-se consciente de
que você está sonhando." (Lucidity Institute, 1996: s/p)
"Sonhar lúcido é sonhar enquanto você sabe que está sonhando.(..) Normalmente, a lucidez
começa no meio de um sonho, quando o sonhador percebe que o que está sendo vivido não
ocorre na realidade física; é um sonho" (Lucidity Institute, 1996: s/p).
A expressão "sonho lúcido" foi cunhada por Frederik Willems van Eeden (1913/s/d) no início
do século XX para designar esta modalidade de sonho, considerada por ele como a mais
importante entre as que pesquisou para a Society for Psychical Research. Posteriormente foi
cunhado o termo "onironauta" por Stephen LaBerge na Universidade de Stanford (LaBerge,
1990). A palavra "lucidez" é utilizada num sentido psiquiátrico, em oposição à idéia de
delírio (LaBerge e Gackenbach, 2001).
A consciência simples, sem outros elementos adicionais, pode dar acesso a um
reconhecimento acurado das coisas (Baars, 1997), entre as quais a qualidade onírica
daquilo que se percebe. No sonho lúcido, o sonhador está consciente de que sonha
enquanto o sonho se processa, podendo raciocinar claramente, recordar-se de sua vida
vígil, agir reflexivamente, cumprir metas previamente estabelecidas, lembrar-se de
instruções obtidas antes do sono, realizar experimentos e marcar momentos e eventos
específicos do sonho por meio de sinalizações oculares (LaBerge, 2000). Verifica-se,
portanto, um modo específico de funcionamento da consciência, a qual neste trabalho deve
ser entendida como segue:
Alguns cientistas, entretanto, consideram que o discernimento de que se está sonhando não
é suficiente para que um sonho seja considerado lúcido e que é necessário ultrapassarmos
esta simples noção (LaBerge e Gackenbach, 2001; Tart, s/d), conferindo tal denominação
apenas aos sonhos em que o sonhador apresenta controle consciente dos conteúdos
imaginais (LaBerge e Gackenbach, 2001).
Em ciência, podemos apenas dar os passos que o conhecimento corrente permite, sem
nunca conhecer o último porvir da jornada (Baars, 1997) e ainda não há consenso científico
a respeito da essência da natureza dos sonhos em que a consciência apresenta o
discernimento de estar em estado extra-vígil. Alguns modos sob os quais se apresentam
adentram ao campo místico e estão fora do alcance de nossa visão científica atual (Kelzer,
s/d). Sabe-se, entretanto, que podem quebrar as bases de nossas estruturas de realidade e
levar à transcendência de todas as experiências formais (Kelzer, s/d). São fatos que ainda
dificultam o estabelecimento de uma definição.
Muitas vezes, durante o sono, o sonhador não se questiona a respeito da realidade que está
vivenciando e não se dá conta, naqueles exatos momentos em que seu corpo está
adormecido, de que está sonhando (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge,
2000; LaBerge, 1998). Em tais casos, o ego onírico não compreende que está em contato
com imagens internas e tende, muitas vezes, a reagir ante as cenas que presencia como se
estas fossem fisicamente reais e não pertencentes a um mundo imaginal desprovido de
caráter físico (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001). Um indicador disso é a
indiferença que apresentamos à subversão dos princípios lógicos que regem a realidade vígil
por certas combinações tipicamente oníricas de acontecimentos (LaBerge, 1980). Nos
sonhos há acontecimentos que ultrapassam o limite do possível para o mundo
tridimensional: cavalos falantes, cadáveres que gritam etc. Não obstante, ficamos, muitas
vezes, indiferentes ao fato de que tais acontecimentos são impossíveis para o mundo da
vigília e não nos damos conta do teor fantástico que apresentam (LaBerge, 1980; LaBerge e
Gackenbach, 2001; LaBerge, 2000; LaBerge, 1998) pois, em geral, não reagimos com
estranheza ao caráter pouco usual de algumas cenas oníricas. As imagens representadas
em alguns quadros surrealistas não são por certo muito comuns neste mundo... assim como
cachorros falantes e esqueletos que tocam violino. Mas no mundo dos sonhos tudo é
possível e aquilo que em vigília seriam acontecimentos impossíveis, absurdos e ilógicos, na
dimensão imaginal onírica são indicadores de que o ego viaja por uma dimensão existencial
fantástica. Mesmo assim, quase nunca nos damos conta da natureza onírica de uma cena
"absurda" quando a estamos experienciando (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001;
LaBerge, 2000; LaBerge, 1998), a despeito do fato de que o inconsciente nos envia sinais
indicadores disso (Jung, 1963, s/d).
"(...) tive ainda uma vez a ocasião de viver esta objetividade: foi depois da morte de minha
mulher. Ela me apareceu em sonho como se fosse uma visão. Postara-se a alguma distância
e me olhava de frente. Estava na flor da idade, tinha cerca de trinta anos e trajava o vestido
que minha prima, a médium, lhe fizera, talvez o mais belo que jamais usara. Seu rosto não
estava alegre e nem triste, mas expressava conhecimento e saber objetivos, sem a menor
reação sentimental, além da perturbação dos afetos. Sabia que não era ela mas uma
imagem composta ou provocada por ela em minha intenção. Nessa imagem estava contido
o início de nossas relações, os acontecimentos de nossos trinta e cinco anos de casamento e
também o fim de sua vida. Diante de tal totalidade permanecemos mudos pois dificilmente
podemos concebê-la. A objetividade vivida nesse sonho (...) pertence à individuação que se
cumpriu" (:258, grifo do autor).
Provavelmente, Jung se tornou lúcido por perceber a incoerência da imagem onírica: sua
esposa falecida o olhava de frente. Isto é uma anomalia, um erro do ponto de vista lógico e,
levando em conta que a detecção de erros é uma das funções da consciência (Baars, 1997),
pode ter sido o traço indicador de oniricidade. Normalmente, o processo de detecção de
erros e incoerências não é em si consciente, parecendo ser monitorado por sistemas
inconscientes que agem interrompendo o fluxo da consciência quando erros são detectados
(Baars, 1997). Raramente o conhecimento do que faz um erro ser um erro é consciente
(Baars, 1997), ou seja, em geral não atentamos para os motivos pelos quais certos
acontecimentos são considerados errôneos ou absurdos, apenas os detectamos sem nos
questionarmos mais profundamente a respeito.
A lucidez onírica foi estudada no século XIX por Myers (LaBerge, 1990) e, muito brevemente
e com ceticismo, por Alfred Maury e Havelock Ellis, psicólogos que consideravam sua
ocorrência impossível (LaBerge, 1990) e tiveram suas idéias refutadas no século XX por
trabalhos experimentais de base psicofisiológica realizados na América do Norte e na Europa
(LaBerge, 1990; LaBerge e Gackenbach, 2001). Esses trabalhos comprovaram de modo
inequívoco a ocorrência da lucidez no sonho por meio de sinais enviados por onironautas
lúcidos em pleno sono REM; tais sinais se baseavam em códigos previamente estabelecidos
entre onironauta e pesquisador a partir da correspondência entre movimentos dos músculos
oculares reais e movimentos dos olhos oníricos (LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Lucidity
Institute, 1996, LaBerge, 1998; LaBerge e Gackenbach, 2001). Entretanto, já em 1909
Freud inseriu uma nota a respeito na segunda edição de Die Traumdeutung (A Interpretação
dos Sonhos):
"Há algumas pessoas que ficam muito bem acordadas durante a noite, quando estão
adormecidas e sonhando, e que parecem, pois, ter a faculdade de dirigir conscientemente
os próprios sonhos. Se, por exemplo, um sonhador deste tipo estiver insatisfeito com o
rumo tomado pelo sonho, poderá interrompê-lo sem acordar e começar de novo em outra
direção, como um dramaturgo popular pode, sob pressão, dar à sua peça um final mais
feliz" (conforme citado por LaBerge, 1990: 41-42).
Justificativas teóricas
Do ponto de vista teórico, o estudo dos sonhos lúcidos se justifica nos dias de hoje pela
necessidade geral de contribuir com o repertório internacional de informações sobre o tema
baseadas em pesquisas realizadas por Stephen LaBerge (Stanford University, Califórnia),
Célia Green (Institute of Psychophysical Research, Oxford, Inglaterra), Jayne Gackenbach
(Athabasca University and University of Alberta, Edmonton, Canadá), Kenneth Kelzer
(Novato, Califórnia), Alan Worsley (Saint Thomas Hospital, Londres), Robert Rooksby
(Exeter University, UK), Stanley Krippner (Saybrook Institute, EUA), Charles Tart
(University of California at Davis e Institute of Transpersonal Psychology, Palo Alto), Sybe
Terwee (Leiden University, Holanda), Lynne Levitan (Stanford University, Califórnia), Daryl
Hewitt (San Francisco, Califórnia), Tarab Tulku XI
(Tibetan Department of Copenhagen University, Dinamarca) George Gillespie
(University of Pensilvania, Filadélfia) e Joseph Dane (University of Virginia), entre muitos
outros, e pela necessidade de colaborar com os esforços de pesquisadores que buscam
aprofundar os conhecimentos especificamente relacionados com a indução deliberada desta
modalidade de sonho com o intuito de desenvolver e aprimorar técnicas que permitam sua
obtenção (Price, LaBerge, Bouchet et al., s/d; Worsley, s/d; LaBerge e Levitan, s/d;
Laberge, 1990; Hewitt, s/d; Dane e Castle, s/d) por qualquer pessoa interessada, fato ainda
não verificado atualmente.
A possibilidade de contato direto e consciente com a dimensão dos sonhos nos coloca ante
uma descoberta comparável à de Cristóvão Colombo no que se refere às chances de
exploração de um mundo desconhecido (Kelzer, 2001). Permite que literalmente
adentremos ao universo existente no interior do homem adquirindo um "conhecer
com" (Edinger, 1999), um contato simultâneo entre sujeito e objeto de conhecimento no
qual participamos da aquisição de consciência como sujeito e objeto simultaneamente
(Edinger, 1999). O "conhecer com" exige o ver e o ser visto ao mesmo tempo: o sujeito
domina o objeto pelo poder logóico com muito esforço e o objeto passa a ser vítima do
conhecedor (Edinger, 1999). Sob estado onírico consciente, podemos ser simultaneamente
sujeito e objeto da investigação.
A memória vígil dos acontecimentos oníricos é extremamente pobre, o que constitui uma
grande dificuldade para a pesquisa do sonho, e, por outro lado, as lembranças desses
sonhos lúcidos são mais completas do que as lembranças de sonhos não lúcidos, fatos que
reforçam a importância do uso de onironautas como sujeitos de pesquisas (LaBerge, 2000).
A possibilidade de "viajar" ao mundo do inconsciente mantendo a lucidez e, portanto, a
faculdade crítica não parece ser desprezível pois a psique inconsciente possui tanta
realidade quanto corpos celestes distantes e concretos mas inobserváveis diretamente:
"A existência de uma psique inconsciente (...) é tão plausível, poderemos dizer, quanto a de
um planeta até agora não descoberto, cuja presença se deduz pelos desvios de alguma
órbita planetária conhecida. Infelizmente, falta-nos o auxílio de um telescópio que certifique
sua existência" (Jung conforme citado por Saiani, 2000: 48)
É possível que as viagens conscientes ao mundo dos sonhos estejam no caminho para a
construção do telescópio que certificará a existência da psique inconsciente... O ego que
compreende que está atuando no nível onírico nos instantes em que o seu corpo dorme tem
diante de si uma possibilidade nova de obtenção de conhecimento: o contato direto com os
complexos nos instantes em que se personificam e se manifestam oniricamente na forma de
pessoas, animais, elementos naturais etc. podendo ser estudados. Abre-se, assim, um leque
de possíveis experiências conscientes e não usuais.
"Theories of dreaming that not account for lucidity are incomplete, and theories that do not
allow for lucidity are incorrect" (LaBerge, 2000, s/p).
O sonho lúcido permite testar teorias sobre os sonhos (LaBerge, 2000) e, considerando que
a consciência permite o acesso à vasta fonte de sabedoria do inconsciente (Baars, 1997),
proporciona contatos em nível de primeiro grau com a realidade onírica, podendo fornecer
um conhecimento complementar ao obtido pela via analítica comum. Os sistemas
complexos e inconscientes que usualmente se processam livres de interferência e que
podem ser acessados pela mera consciência de seus resultados, bem como as inconscientes
fontes de conhecimento que podem ser vastamente acessadas pela consciência (Baars,
1997), incluem o mundo dos sonhos.
Justificativas práticas
A lucidez no sonho pode servir como uma psicoterapia intrapessoal na qual a consciência
onírica desperta pode ser usada terapeuticamente (Dane conforme citado por LaBerge,
2001). Auxilia na investigação de processos inconscientes, permite interação conciliadora
direta com as figuras hostis dos pesadelos (Tholey conforme citado por LaBerge e
Gackenbach, 2001; Green e McCreery conforme citado por Gackenbach, 1988; Gackenbach,
1988; LaBerge, 1990) e promove um contato simultâneo entre sujeito e objeto de
conhecimento (Edinger, 1999) que amplia a consciência.
Justificativas metodológicas
O método qualitativo, uma das possíveis formas de estudo que podem ser adotadas,
atualmente conquistou seu espaço "como forma promissora e viável de
investigação" (Neves, 1996: s/p), tendo sido aplicado ao estudo da lucidez onírica em casos
singulares por vários pesquisadores (Gackenbach et al. conforme citado por LaBerge e
Gackenbach, 2001). Apresenta as vantagens de permitir a sensibilização para concepções
que emergem do material coletado independentemente das expectativas do investigador
(LaBerge e Gackenbach, 2001), a sensibilização para os contextos de ocorrência das
experiências (LaBerge e Gackenbach, 2001; Martins e Bicudo, 1994; Neves, 1996) e a
descrição individual oriunda da compreensão específica do fenômeno situado (Martins e
Bicudo, 1994; Neves, 1996), bem como de suas singularidades (Martins e Bicudo, 1994;
Ginzburg, 1989; Neves, 1996) a partir da base experiencial do pesquisador com as
qualidades detectadas (Martins e Bicudo, 1994). Para que os resultados obtidos sejam mais
confiáveis, as fases do projeto de pesquisa, coleta de dados, análise e documentação devem
ser cumpridas de modo sequenciado e integral (Neves, 1996). Os problemas de
confiabilidade e validação dos resultados podem ser minimizados ao se permitir a checagem
da credibilidade do material investigado (Neves, 1996) e se " zelar pela fidelidade no
processo de transcrição que antecede a análise, considerar os elementos que compõem o
contexto e assegurar a possibilidade de confirmar posteriormente os dados
pesquisados" (Neves, 1996: s/p).
" Compreender e interpretar fenômenos a partir de seus significantes e contexto são tarefas
sempre presentes na produção de conhecimento, o que contribui para que percebamos a
vantagem no emprego de métodos que auxiliam a ter uma visão mais abrangente dos
problemas, supõem contato direto com o objeto de análise e fornecem um enfoque
diferenciado para a compreensão da realidade" (Neves, 1996: s/p).
O aspecto subjetivo das experiências conscientes constitui uma parte difícil da problemática
posta por seu estudo, estando entre as mais interessantes questões das ciências da
cognição ainda não resolvidas até hoje (Chalmers, 1995), e este é um motivo para se
investigá-las enquanto fenômeno situado em um contexto onírico. Além disso, tentar
explicá-las apenas em termos de habilidades e funções é adotar uma abordagem
reducionista que se desvia de seus aspectos mais difíceis, os quais estão relacionados com a
subjetividade (Chalmers, 1995) e constituem uma razão para se adotar uma abordagem
fenomenológica. Afirmar que o não verificável exteriormente não possa ser real é negar o
fenômeno da experiência humana consciente (Chalmers, 1995), uma vez que a mesma em
essência não é fisicamente palpável.
"Even in the absence of intersubjective observation, there are numerous criteria available
for the evaluation of such theories: simplicity, internal coherence, coherence with theories
in other domains, the hability to reproduce the properties of experience that are familiar
from our own case, and even na overall fit with the dictates of common sense" (Chalmers,
1995: s/p).
A narração de uma pessoa a partir de seu senso introspectivo é um testemunho que fornece
uma descrição direta de seus próprios processos mentais, apesar da necessidade de ser
corroborada por medidas fisiológicas, (LaBerge, 1990) e uma razão pela qual a análise de
relatos de consciência onírica desperta se justifica.
A subjetividade inerente ao processo investigado faz com que seja conveniente abordá-lo
sob uma perspectiva fenomenológica - no sentido original do termo fainomenon, ou
seja, "aquilo que se mostra em si mesmo" (Martins e Bicudo, 1994: 22) - que vise
compreender, mais do que explicar, (Martins e Bicudo, 1994) a mudança no significado
atribuído às imagens internas pelo sonhador. Esta é apropriada para tratar de fenômenos
singulares e dotados de certo grau de ambiguidade (Neves, 1996). A mera consideração dos
processos físicos na análise da experiência de se tornar consciente de algo não revela
porque a mesma surge (Chalmers, 1995). Há necessidade de se adotar uma abordagem
não reducionista para se apreender melhor o aspecto subjetivo da consciência, o mais
interessante e difícil dos problemas que sua investigação nos coloca (Chalmers, 1995), seja
no campo onírico ou extra-onírico.
Nas universidades, os estudos sobre a lucidez onírica têm sido realizados por três vias:
relatos de onironautas, experiência individual dos próprios pesquisadores diretamente com
sonhos lúcidos e procedimentos experimentais de base psicofisiológica a partir de alterações
nos movimentos oculares de onironautas em sono REM (Eeden, 1913/ s/d; LaBerge, 1980;
LaBerge, 1990; Gackenbach,1988; Harary e Weintraub, 1993; Lucidity Institute, 1996,
LaBerge e Gackenbach, 2001). No estudo qualitativo, podemos analisar relatos para obter
dados indiciários (Ginzburg, 1989) a respeito do objeto, a partir dos quais podemos elaborar
conclusões de validade limitada à singularidade dos casos (Ginzburg, 1989; Martins e
Bicudo, 1994) e oriundas de uma abordagem totalizante (Pereira, 1998), não reducionista
(Chalmers, 1995), que vise mais a compreensão do que a explicação do fenômeno (Martins
e Bicudo, 1994) em termos de causalidade linear (Pereira, 2000), ou seja, podemos buscar
compreendê-lo pressupondo construção contínua do conhecimento e dentro de uma
perspectiva holística em que o teor analítico qualitativo seja fundamental (Pereira, 2000).
Uma consideração da experiência de tornar-se consciente de algo não pode explicá-la com
sucesso se for reducionista (Chalmers, 1995) a ponto de excluir seu aspecto subjetivo.
Das definições citadas no início deste artigo, depreende-se que a oniricidade1 das cenas
imaginais adentra ao foco de atenção do sonhador, sendo captada em seu campo de
consciência, como previsto no modelo teórico proposto por Baars (1997), o qual utiliza a
metáfora de um holofote de teatro para ilustrar os processos de inserção de conteúdos no
campo atencional.
"Dreamers commonly became lucid when they puzzle over oddities in dream content and
conclude that the explanation is that they are dreaming" (LaBerge e Gackenbach, 2001:
153).
Ao "quebrar a cabeça a respeito do estranho" (LaBerge e Gackenbach, 2001; tradução
minha) e optar pela conclusão de que está sonhando como única explicação possível, o
sonhador pode adquirir lucidez até o ponto de julgar sua situação em plena posse de suas
faculdades cognitivas vígeis sem, no entanto, abandonar o estado de sonho e sono
(LaBerge, 1998; LaBerge, 2000; LaBerge e Gackenbach, 2001). A dinâmica fenomenológica
e psicológica deste processo cognitivo em sua totalidade, isto é, desde os instantes em que
se principia até o ponto em que se conclui, está sendo alvo de tentativas de descrição e
compreensão neste artigo. Excertos de dois relatos podem ilustrar melhor a natureza do
fenômeno que estamos estudando (Muniz, 2001: 93):
"Bom eu 'tava' na entrada de uma casa, mais ou menos numa rampa. Não tinha garagem. E
eu tinha que entrar naquela casa. Tentei várias vezes mas não tinha um caminho. Tinha que
subir num muro, passar no meio de um jardim... E como eu não conseguia chegar, eu via a
janela da casa mas não conseguia chegar até a janela, eu escutei uma voz que dizia: 'Você
precisa fotografar essa casa para poder lembrar'.
E eu respondia, mesmo sem saber de onde vinha a voz, que não tinha máquina fotográfica
e eu não tinha como fotografar a casa. Então a voz me falou: 'Então, quando você acordar,
você vai desenhar essa casa porque é 'pra' lembrar de todos os detalhes'.
E assim... eu tinha que observar todos os detalhes e na minha cabeça eu pensava: 'Eu
tenho que observar todos os detalhes'. Então eu me lembro de parar e ficar olhando:
'Então, aqui tem uma rampa...' E eu ficava olhando aquela rampa vários minutos para não
esquecer. Para quando eu acordar eu desenhar. Então que fiquei... eu parava e via todos os
ângulos que aquela posição me proporcionava. Então eu via a rampa. Então eu fiquei vários
minutos tentando gravar na minha mente aquela rampa depois o jardim... Como eu não
tinha como fotografar, a mesma voz me pediu para desenhar.
Algumas vezes, enquanto eu 'tava' passando... em lugares longe da minha casa, em bairros
que eu não conhecia, eu até cheguei a prestar atenção 'pra' ver se eu via algumas casas
parecidas. Mas não dava para ficar observando muito os detalhes... não consegui
reconhecer."
R-"E, senti. Quando ela me falou: '... quando acordar...' aí eu sabia que eu 'tava' dormindo
e que na hora em que eu acordasse eu tinha que fazer aquilo" (Moniz, 2001: 94-95, grifos
do autor, segundo relato).
A lucidez parece estar muitas vezes vinculada à história e a geografia da vida do indivíduo
sonhante, se originando de um confronto lógico que este realiza entre as realidades espaço-
temporais concretamente vivenciadas no cotidiano e a forma como estas aparecem em
sonhos. Ativa participação da memória autobiográfica recente em seus aspectos temporal e
espacial foi sugerida na Alemanha por Paul Tholey (1989) com base em aplicações de testes
de realidade nos quais o sujeito sonhante se questionava a respeito de onde esteve nas
horas antecedentes ao "presente" onírico, à representação interna do aqui-agora exterior.
Deste modo, os saltos no tempo e no espaço2, ou seja, a descontinuidade na sequência dos
acontecimentos típica dos sonhos, em que os acontecimentos não são encadeados de modo
lógico, pôde ser captada conscientemente pelo onironauta e levá-lo à lucidez.
6. Conclusões
A partir de uma base indiciária, a via qualitativa de pesquisa pode nos oferecer informações
a partir de casos singulares analisados em relatos ou na literatura. Apesar da certeza
restrita aos casos estudados, as informações oriundas de uma abordagem singularizada
totalizante podem ser ponto de partida para posteriores estudos quantitativos que busquem
detectar traços gerais do fenômeno.
Nos sonhos comuns, a consciência do sonhador não capta a oniricidade do que vivencia;
percebe as representações internas de formas, cores e sons sem se dar conta de seu teor
imaginal. No sonho lúcido, ao contrário, há o discernimento de que se sonha.
Os sonhos lúcidos parecem corresponder a uma etapa evolutiva da consciência humana que
ainda não foi atingida coletivamente, daí a persistência de seu caráter anômalo. Permitem
uma interação direta e segura com o inconsciente e fornecem acesso a informações
importantes sobre as profundidades dos mundos da mente e do sentimento.
A possibilidade de aprimoramento das técnicas indutoras de lucidez talvez possa permitir,
inclusive, a verificação experimental da (in)existência de conexões interoníricas, ou seja, de
pontos de contato entre os sonhos de duas ou mais pessoas, o que seria relevante na
investigação parapsicológica e contribuiria para a desmistificação da teoria "ocultista" de
que o mundo dos sonhos existe de modo independente da matéria.
Na literatura ocultista, diz-se que os sonhos são vivências do ego nos mundos denominados
astral e mental, os quais corresponderiam respectivamente ao mundo dos sentimentos e
dos pensamentos. Ambos existiriam por si mesmos, paralelamente ao mundo físico e o
compenetrariam, sem com ele se confundirem. Durante a chamada "viagem astral" ou
"desdobramento astral", o sonhador estaria atuando em um universo paralelo. O
conhecimento sobre o surgimento da lucidez no sonho, e o conseqüente aprimoramento das
técnicas indutoras, parece permitir que estas e outras alegações sejam testadas.
Agradecimentos
Agradeço ao Dr. Stanley Krippner e ao Dr. Stephen LaBerge pelos materiais de pesquisa
providencialmente fornecidos.
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Notas
(1)
O teor onírico das imagens percebidas, isto é, o fato das imagens pertencerem ao mundo
interno do sonho e não ao mundo físico externo. Em geral, é detectada sob a forma de
representações de configurações de tempo e espaço diferentes das formas como estas são
experienciadas em vigília.
(2)
Os sonhos apresentam súbitas rupturas nas sequências lógicas dos fatos: podemos saltar
repentinamente de um ponto a outro do espaço e do tempo sem passarmos pelos
momentos e lugares que os intermediariam na realidade vígil. Esta ruptura lógica
caracteriza uma anormalidade indicadora de oniricidade que pode ser detectada pelo
sonhador que reage criticamente à mesma.
http://jornalismojunior.com.br/as-teorias-oniricas-daqueles-que-so-sonham-consigo-mesmo-e-
daqueles-que-sonham-longe/
Há 4000 anos, o primeiro dicionário de sonhos criado pelos egípcios prova que os sonhos sempre foram
assuntos capazes de despertar a curiosidade no homem (Livro dos sonhos). Rodeado de mistérios,
receberem diversas interpretações ao longo do tempo. Os próprios egípcios, bem como diversos outros
povos, acreditavam que eles eram presságios, e aí entrava o dicionário, como uma forma de auxiliar o
sonhador a, no meio da confusão onírica, encontrar o que o futuro lhes reservava.
Ainda hoje, buscamos significados para o que sonhamos e continuamos a ter diferentes respostas para
as mesmas perguntas, e algumas que ainda não possuem qualquer solução.
Freud e Jung
Freud, como um bom intelectual ocidental, levou a herança grega adiante. Foi Platão quem afirmou que
sonhos refletiam desejos secretos. E Aristóteles sugeriu que tais fenômenos eram metafóricos e
careciam de um bom intérprete para entender seus símbolos. Freud, em sua teoria do subconsciente e
sonhos, une a ideia dos dois filósofos.
Em 1900, o pai da psicanálise publicou o livro A Interpretação dos Sonhos (Die Treumedeutung), e conta
a psicanalista Shirley Amaral que ele alegou o manuscrito ser a revolução científica do século na área de
estudos da mente humana. Nele, Freud desvincula os sonhos de uma temática religiosa, para a qual
eram “experiências premonitórias ou supersticiosas”. Segundo ele, sonhos são desejos inconscientes,
aqueles pensamentos que seriam insuportáveis durante a vigília e aproveitam o torpor da consciência
sobre o travesseiro para “emergir” e serem, de certo modo, concretizados.
Essas vontades, mesmo durante o sono, não poderiam se revelar em sua total nitidez e, por conta disso,
aparecem confusamente sob forma de símbolos. Nesse sentido, os próprios pesadelos são uma
ferramenta para acordar o sujeito, quando esse é submetido a conteúdos oníricos com símbolos
insuficientes para ser apresentados ao sonhador. E a natureza sexual dos sonhos, implícita ou não,
ganha enfoque especial: As neuroses – conflitos psíquicos de impulsos não realizados – teriam sua
origem em traumas sexuais e seriam “manifestados de forma simbólica através dos sonhos”.
“Inicialmente, Freud propôs uma simbologia universal”, conta Shirley. Assim, poderia se dizer que as
escadas de todos os sonhos significariam o ato sexual; rei e rainha representam o pai e a mãe; todo tipo
de arma, o órgão sexual masculino, dentre vários outros símbolos. Com o tempo, ele passa a rejeitar
essa ideia e considera que uma mesma imagem terá uma associação diferente para cada pessoa, tendo
em vista que os indivíduos apresentam experiências de vida distintas entre si.
Isso torna a tarefa da interpretação um tanto mais complicada, por não existir nada em absoluto,
nenhum dicionário que possa ser consultado. No entanto, Freud não nos abandona à própria sorte e
pensa em algum modo de analisá-los. Para conseguir alcançar o subconsciente por interpretação de
sonhos, torna-se necessário levar em consideração o conteúdo manifesto, que seria o relato ou a
descrição verbal, e o conteúdo latente, ou seja, pensamento e desejos que “não aparecem claramente
para a consciência”. O analista, juntamente com o paciente, deve partir das associações individuais do
sonhador para desvendar o conteúdo latente, que guarda o verdadeiro sentido onírico.
Freud não foi o único pioneiro da psicanálise. Carl Gustav Jung e ele costumavam trabalhar juntos, até
que suas divergentes ideias a respeito da “energia psíquica”, como citou a psicóloga clínica Luiza
Assumpção, os afastou para que seguissem cada qual com sua vertente.
Enquanto Freud era causalista, isto é, acreditava que os sonhos vêm de experiências anteriores, desejos
e traumas; Jung baseava-se nas causas juntamente com a finalidade, cujas imagens simbólicas dariam
acesso não só ao passado, mas também ao futuro.
Sob esse olhar, Jung traz um novo conceito: Os sonhos antecipatórios. Eles podem nos dar alguma
antecipação futura, mas não são nenhuma espécie de presságio, apenas coincidem com o resultado
final. Isso porque o inconsciente, na visão junguiana, possui uma abundância de dados muito maior do
que o consciente, inclusive ele “pode expressar imagens nunca antes apreendidas pela consciência do
sonhador”, como afirma Luiza. Por ser o inconsciente “infinito e coletivo”, nele estão todas as memórias
humanas e pré-humanas, que surgem novamente no cérebro de cada ser humano.
As imagens assumem na teoria junguiana outra função, elas deixam de ser o conteúdo manifesto (como
para Freud) e tornam-se o objeto da interpretação. Assim como seu ex-colega, Jung estava convencido
que “quem sonha é participante ativo da construção de uma interpretação de sonhos”, portanto, é
necessária a presença do sonhador.
O fundador da psicologia analítica defendia a pesquisa como forma de aprofundar o tema e analisou, em
média, 2000 sonhos por ano.
Ciência
Quando tratamos da sociedade tecnológica e veloz em que vivemos, o empirismo se torna essencial
para que algo saia do patamar de crença e alcance o nível de verdade. Desse modo, não basta apenas
afirmar, apontar uma cadeia de acontecimentos. É preciso, acima de tudo, provar. Assim, até mesmo
nos sonhos, apesar de seu caráter tão místico, o homem contemporâneo busca provas e respostas
científicas, cujas pesquisas tiveram um importante marco em 1951, com o pioneiro nos estudos do sono
Eugene Aserinsky. Ele conectou seu filho a um eletroencefalograma, exame que avalia a atividade
elétrica no cérebro. Após certo período sem muita agitação, o aparelho começou a registrar atividade
dos olhos e do cérebro com a criança ainda adormecida (BBC News). Era a chamada fase REM (Rapid Eye
Movement), na qual a maior parte dos sonhos acontece. Ela é caracterizada, além do movimento ocular
rápido, pelo total relaxamento muscular e ondas de alta frequência e dessincronizados à semelhança
dos momentos de vigília.
Geralmente, só se consegue lembrar dos sonhos quando acordamos durante o REM. Então, nem adianta
dizer que noite passada não se sonhou nada. O que provavelmente aconteceu foi que o indivíduo
despertou durante outras fases do sono mais superficiais. “Quando somos acordados durante a fase de
sono REM, 95 % das vezes relatamos que estávamos sonhando”, esclarece John Fontelene Araújo,
professor da pós-graduação de psicobiologia na Universidade de São Paulo.
“Uma explicação para os sonhos é que ele decorre da re-ativação de circuitos neurais que foram
ativados durante a vigília”, aponta Araújo. Desse modo, se não sonhasse, a pessoa enfrentaria grande
problemas de amnésia e cognição, haja vista a importância deles na consolidação da memória.
Há, também, outra hipótese de uma segunda importância dos sonhos. De acordo com essa ideia, eles
são uma simulação de algo que pode acontecer no futuro, como forma de preparar o indivíduo para o
que ainda está por vir. “A principal evidência é quando comparamos sonhos de criança que vivem um
ambiente de conflitos de guerra com os sonhos de crianças que vivem em ambiente semelhante, porém
sem guerra. As crianças que vivem no ambiente de guerra sonham mais com situações de conflito”,
afirma o professor. Entretanto, tal hipótese não é igual a alguns sites da internet, que através de
elementos do sonho trazem seus significados antecipatórios, já que o primeiro caso trata de simulações
de ações motoras e sensoriais que facilitariam a execução de funções motoras e sensórias no futuro.
Durante a fase REM todas as áreas têm o mesmo grau de ativação de quando estamos acordados,
exceto o córtex pré-frontal, centro de controles sofisticado, onde ocorre os processos mentais e
cognitivos mais complexos. Por conseguinte, nos nossos sonhos perdemos a autoconsciência e a
capacidade de tomar decisões. Em alguns momentos, porém, esse córtex pode ficar mais ativo, gerando
os sonhos lúcidos.
De acordo com o psicofisiologista Stephen LaBerge, o primeiro relato histórico de um sonho lúcido foi
em uma carta de Santo Agostinho, a qual relata um sonho de um médico cartaginês, de nome Genádio,
que se importava muito com questões do pós-morte. Nele, o médico é questionado, como um diálogo
socrático por um jovem angelical. Em certo momento, o garoto o avisa que tudo é um sonho e a partir
daí o sonhador ganha maior consciência e lucidez.
Ademais, para o professor John Araújo, eles poderiam ajudar no tratamento de algumas doenças
neurológicas, tais como os distúrbios de sonhos (pesadelos) e Síndrome de Estresse Pós-Traumático, em
que ao ter noção de que tudo não passa de um sonho, o indivíduo poderia lutar contra a sua fonte de
sofrimento onírica.
Esse tipo de sonho é raro e nem todas as pessoas conseguem tê-lo. Não obstante, existem algumas
formas de indução que favorecem o seu aparecimento. Uma delas é a estimulação de baixa intensidade,
ou seja, um estímulo que não é capaz de despertar o sujeito, além de se perguntar enquanto acordado
se o que se está vivendo é real ou um sonho. Ainda assim, não é uma tarefa fácil e nem todos
conseguem.
Indígenas
“Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”. Essa
frase de Davi Kopenawa, líder yanonami e autor do livro A Queda do Céu, a princípio pode nos parecer
estranha ou até mesmo injusta. No entanto, ao se debruçar sobre conceitos tão usuais, mas tão
diferentes entre essas culturas, como, por exemplo, a morte e a alma, há uma chance de entendermos a
verdade dos outros, na qual não prevalece o empirismo.
O grande número de povos faz com que existam as mais diversas teorias oníricas, mas as tratadas aqui
pertencem, mais especificamente, aos habitantes das terras baixas da América do Sul.
Primeiramente, é preciso compreender que para eles “corpo e alma têm vidas paralelas”, assim explica
a pós-doutoranda em antropologia, Karen Shiratori. Essa Teoria da Concepção da Pessoa já marca a
disparidade da ideia de indivíduo ocidental e indígena, já que, em nossa influência cristã, alma e corpo
são um mesmo sujeito.
Segundo esses povos, “o sonho é a vida da alma”, isto é, enquanto o corpo dorme, a alma vai
perambular por aí e acontecem coisas a ela que não diz respeito ao corpo adormecido. “Ela caça, casa,
transa, vai para cidade”, exemplifica Shiratori. Esses dois componentes são tão separados que, muitas
vezes, ao descrever acontecimentos oníricos, os indígenas usam a terceira pessoa.
Outra vez, nota-se a distinção entre o pensamento ocidental e o dos índios: se a alma sai do corpo
durante o sono, então não é incorreto afirmar que todos os sonhos são uma “pequena morte”. A
definitiva aconteceria quando a alma deixa o corpo, vai viver em outro lugar autonomamente e nunca
mais volta. Os próprios sonhos podem representar certo perigo de um fim definitivo, caso a alma seja
“capturada por um ser ou seduzida para morar em outra aldeia” e não retorne, transformando o corpo
em “uma espécie de casa vazia”.
Mais do que acontecimentos de outra vida, esses fenômenos também são um modo de conhecimento e
de adentrar em diversas realidades pois, ao se libertar, a alma pode ir para vários lugares, ocorrendo
uma expansão da consciência. Dessa forma, o pajé tem acesso a uma maior quantidade de informações.
Por ser alguém que “aprende a sonhar”, a sua alma vai muito longe, “ela vai para o Rio de Janeiro, vai
para São Paulo”. Inclusive, durante o treinamento dos futuros xamãs da língua jamamadi, os meninos
fazem uso de uma mistura chamada rapé, composta por tabaco pilado e outra substância (como, por
exemplo, casca de cacau). Normalmente, o rapé é apenas um estimulante, porém em grandes
quantidades ele “permite estabelecer relações com espíritos”, os quais repassam vários ensinamentos,
tal “viagem” é comparável a um sonho.
Além disso, sonhos possuem uma importante função política de determinar e orientar os próximos
passos de uma aldeia. Como presságios que são, é essencial a difícil tarefa de lembrá-los e contá-los, a
fim de evitar futuras tragédias. Karen Shiratori ilustra: ”Se você foi picado por uma cobra em um sonho,
o risco de isso acontecer na sua vida também existe”. Isso porque, embora sejam vidas diferentes, “elas
correm em paralelo e podem, de alguma forma, se entrecruzar”. Para desfazer o que foi sonhado,
existem alguns remédios. A título de exemplo, o povo Kawahiva tem o costume de relatar suas
experiências oníricas perto do fogo, e esse elemento teria o poder de evitar que o ocorrido com a alma
suceda ao corpo.
Essas são apenas três vertentes e formas de enxergar o sonho. Nesse caso, é preciso ter em mente que
os questionamentos são infinitos sobre esse tema e as formas de respondê-los as mais variados. Afinal,
todos os homens sonham, de todos os tempos, de todos os lugares.
Por que sonhamos? Saiba o que a ciência e a história têm a dizer
https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Comportamento/noticia/2020/01/por-que-sonhamos-
saiba-o-que-ciencia-e-historia-tem-dizer.html
As teorias para explicar o que são as experiência oníricas só ganharam impulso a partir dos anos 1950.
Desde então, as pesquisas avançaram, mas ainda estamos engatinhando
NATHALIA FABRO
Definir o que é um sonho não é tarefa fácil. Simplificando, é aquilo que você vê e escuta enquanto
dorme. No livro "A Interpretação dos Sonhos", o criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939),
argumentou que os sonhos são mensagens do inconsciente sobre os desejos reprimidos. Já Carl Jung
(1875-1961), colega de Freud que contestou muitas de suas ideias, sugeriu que os sonhos tinham uma
finalidade: seriam uma tentativa da própria consciência para regular e compensar situações vividas.
SAIBA MAIS
Tem apneia do sono? A solução pode estar em perder gordura na sua língua
Os sonhos ficaram no imaginário de diversos pensadores por muito tempo, mas foi somente nos anos
1950 que o processo onírico ganhou mais análises científicas, impulsionadas pela descoberta do sono
REM (sigla para rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos) por pesquisadores da
Universidade de Chicago. É nessa fase que a atividade cerebral está mais agitada, ocasionando os
sonhos mais vívidos.
A partir desse avanço, surgiram mais hipóteses para a função dos sonhos. A mais difundida é que eles
servem para a consolidação de memórias. “No sono, revivemos o que aconteceu no dia, associando com
experiências passadas”, diz Gabriel Pires, médico e pesquisador do Instituto do Sono. “Mas há uma
discussão teórica sobre o que é exatamente o sonho: o evento fisiológico do processamento de
memória ou a percepção dele?”
Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, autor do recém-lançado "O Oráculo da Noite" (Companhia das Letras), os sonhos são um
aprendizado “lento e gradual que provavelmente começa no útero materno, com a formação das
primeiras representações sensoriais na fronteira do corpo com o mundo exterior”.
A história do sonho
Acredita-se que a história do sonho seja paralela à da presença de vida na Terra. “Os sonhos evoluíram
depois de um longo processo de desenvolvimento do sono, ainda no início da vida multicelular”, aponta
Sidarta Ribeiro.
Registros históricos mostram que as civilizações mais antigas já os interpretavam como ensinamentos de
antepassados ou profecias. É o caso da história que envolve a morte do imperador romano Júlio César:
sua esposa, Calpúrnia, teria relatado um sonho com o assassinato do marido um dia antes do
acontecido, no ano de 44 a.C. “Essa era a ferramenta que os humanos tinham para tentar prever o
futuro”, comenta Ribeiro. “Sonhos são reflexo do passado, mas, ao mesmo tempo, aquilo que de fato
poderia acontecer no futuro.”
Mas a ciência não consegue dizer o porquê de cada elemento, como preza o conhecimento popular
[confira lista abaixo]. “Não existe nenhum diagnóstico clínico que pode atribuir significado ao sonho”,
destaca Gabriel Pires.
SAIBA MAIS
Homens jovens que dormem mal são mais propensos a ter Alzheimer
Memória funciona melhor (ou pior) dependendo da hora do dia, sugere estudo
1. Cobra
Levantamento da SEMrush, empresa de marketing digital, aponta que entender o significado de sonhos
com serpentes é a principal busca online dos brasileiros no segmento. Foram 1,4 milhão de pesquisas de
janeiro de 2018 a julho de 2019.
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/2843/1/2007_MarceloGustavoCostadeBrito.PDF
http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v24n3/v24n3a08.pdf
v24n3a08.pdf 2007_MarceloGusta
voCostadeBrito.PDF