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A INFANTILIZAÇÃO DA CULTURA

Fernando Fábio Fiorese Furtadoi

Em 1977, o pensador Edgar Morin afirmava que a cultura de massa

desagrega os valores gerontocráticos, acentua a desvalorização da velhice, dá

forma à promoção dos valores juvenis, assimila uma parte das experiências

adolescentes. No entanto, adverte o mesmo autor, a cristalização dos valores de

contestação ocorre na adolescência: ...repugnância ou recusa pelas relações

hipócritas e convencionais, pelos tabus, recusa extremada do mundo.

Desta forma, podemos afirmar que, entre 1950 e 1970, a cultura de massa

procurou harmonizar os temas dissonantes da juventude sob as formas

padronizadas dos mass media, com o objetivo de enfraquecer as arestas e

atrofiar as virulências. Contudo, os valores da juventude demonstraram-se por

demais dissonantes e contestadores, principalmente a partir das rebeliões

estudantis de fins da década de 60. As dificuldades em controlar e padronizar

estes valores determinaram manifestações conturbadas e avessas às

expectativas do sistema.

Em face da necessidade de fórmulas capazes de engendrar os produtos

culturais, a sociedade de consumo forjou arquétipos (amor, felicidade, valores

privados, individualismo), visando promover a elisão da morte (representada pelo

processo de envelhecimento) e a afirmação do tempo histórico linear, do presente

contínuo, sobre o qual construímos um futuro quimérico.

No entanto, conforme adverte o poeta e ensaísta Octávio Paz, o descrédito

do futuro e de seus paraísos geométricos é geral. Não é de se estranhar: em

nome da edificação do futuro, a metade do planeta cobriu-se de campos de

trabalhos forçados. Ou melhor: Hoje o futuro parece-nos menos irreal que a


eternidade. (...) é a projeção de nossos desejos e sua negação: não existe e no

entanto rouba-nos a realidade, nos rouba a vida. Assim sendo, as rebeliões

juvenis denunciavam o ocaso dos projetos de eternidade e de futuro,

representados, respectivamente, pela tecnologia cristã ocidental e pela teoria

marxista ortodoxa. Ambas promoveram a desvalorização do corpo como fonte de

prazer para torna-lo força de trabalho. Em nome do futuro, completou-se a

censura do corpo com a mutilação dos poderes poéticos do homem, conclui

Octavio Paz.

A valorização do corpo e a negação dos grandes discursos nas rebeliões

juvenis parece demonstrar o empenho de destruir a temporalidade linear e do

presente que nos oprime com o objetivo de construir um futuro impossível. A

juventude, ainda segundo Octavio Paz, espera instintiva e confusamente que a

destruição deste presente provoque o aparecimento do outro presente e seus

valores corporais, intuitivos e mágicos. Sempre a procura de outro tempo, o

verdadeiro.

A reação da cultura de massa, diante da rebeldia incontrolável e

inesgotável da juventude, não tardaria. Necessário forjar nos vazios da ideologia

estereótipos afeitos à fórmula do consumo passivo individual. Neste sentido, a

infância apresenta-se como lugar privilegiado para o seqüestro dos temas que,

testados durante os anos 80, devem sobredeterminar os produtos culturais na

década de 90. No entanto, devemos ressaltar, não se trata da infância enquanto

valor positivo de descoberta do mundo, encontro com os materiais, afirmação dos

sentidos, exercício dos instintos, atividade ininterrupta, espanto e aventura.

Ao contrário, hoje nos deparamos com uma infantilização dos produtos

culturais, engendrada a partir da simulação das características da infância:


deslumbramento diante das imagens do mundo hiper-real criado pela tecnologia,

distanciamento dos materiais, negação dos demais sentidos em nome da

valorização da visão, apatia dos instintos e passividade muscular. Acentua-se,

pois, em todos os sentidos, a supressão da realidade em benefício do signo,

capaz de permitir o isolamento do homem de suas necessárias relações com o

concreto e com o humano.

Quer nos parecer que o segundo batismo da infância nestes termos

representa mais uma estratégia da sociedade de consumo no sentido da elisão da

morte. No entanto, mesmo no processo de infantilização da cultura, nos

deparamos com o signo da morte, ou seja, do instante em que o fim aproxima-se

do princípio. A regressão ao útero materno, talvez motivada pela brutalidade da

realidade contemporânea, parece-nos a metáfora mais apropriada.

Ao mesmo tempo, essa infantilização aponta para a elisão da morte e para

a perspectiva do ventre originário, o que demonstra o seu caráter contraditório,

paradoxal. Os programas infantis (e não apenas eles) veiculados pela televisão

representam um convite diário à vivência de um “mundo infantil” alienado da

realidade concreta,. Pois experienciado tão-somente no espaço eletrônico. E

assim, crianças, jovens e adultos substituem o sonho da “juventude eterna” de

décadas anteriores pelo sonho da “infância eterna”, desprovido de características

infantis verdadeiras e subsidiado pelo sistema de produção e consumo. A

infância, até então avessa à linha de produção e olvidada pelas estratégias de

consumo, adquire status de co-participante da sociedade de consumo,

contribuindo não apenas com a absorção de produtos culturais os mais diversos,

mas também com sua força de trabalho.


i
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. “A infantilização da cultura”. Tribuna da Tarde, Juiz de Fora, 19 dez 1975, p. 5.

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