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Educação Unisinos

10(2):123-129,maio/agosto 2006
10
© 2006 by Unisinos

A contribuição de E. P. Thompson para


a apreensão dos saberes produzidos
do/no trabalho1

E. P. Thompson’s contribution to
the apprehension of knowledge produced from
and in work

Célia Regina Vendramini


cvendram@ced.ufsc.br

Resumo: O artigo tem como ponto de partida a reflexão sobre o significado dos saberes
do/no trabalho no contexto em que o trabalho e os processos de aprendizagem vêm se
desenvolvendo na atualidade, procurando observar as contradições aí presentes. Busca
sustentação nas idéias de Edward Thompson, que, pelos seus estudos históricos, fornece
indicações e caminhos metodológicos fundamentais para apreender a realidade e suas
contradições, em seus aspectos objetivos e subjetivos, na singularidade e na totalidade e na
dialética de passado, presente e futuro. A categoria experiência desenvolvida por Thompson
permite apreender o sentido dos saberes produzidos do e no trabalho e, especialmente, o
contexto em que eles são elaborados, bem como suas possibilidades.

Palavras-chave: saberes do trabalho, experiência humana, E. P. Thompson.

Abstract: In this article the author presents a reflection on the meaning and contradictions
of knowledge from experience at the workplace in the current reality of the world of labor.
The theoretical framework developed by the historian Edward Thompson sustains the
analysis. This perspective was chosen because of its methodological perspective, which is
considered central to understand reality in its multiples dimensions: its objective and subjective
aspects and its particular and singular elements as well as the totality. It allows one to
apprehend reality and its historicity in a way that dialectically articulates past, present and
future. The category of experience, as it is developed by Thompson, allows one to apprehend
the meaning of knowledge produced from and in work and, more specifically, the broad
context where that knowledge emerges and its possibilities.

Key words: knowledge from work, human experience, E. P. Thompson.

Analisar o significado do reconhe- em que não há trabalho ou emprego de algo meramente referente à ativida-
cimento de saberes do/no trabalho para todos, em que trabalhar significa de em si, um conhecimento técnico,
impõe, em primeiro lugar, pensar so- ser explorado, em que uma grande imediato, prático. Podemos dizer ain-
bre o contexto do trabalho na atuali- maioria dos trabalhadores não têm da que as pessoas desaprendam pelo
dade. Ele está associado, em primeiro qualificação, em que pouco se apren- trabalho (desaprendem quando são
lugar, à sobrevivência, num contexto de em muitas atividades, ou se apren- socializadas pelo trabalho para uma

1
Texto apresentado na I Jornada de Estudos sobre Produção e Legitimação de Saberes no/do Trabalho, realizada na UNISINOS, nos dias 27 a 29 de
março de 2006.

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cultura da subserviência, do consu- guns artesãos, agora objetivado na do em vista a sangrenta repressão do
mo, da corrupção, do individualismo, maquinaria automática, torna-se inde- levante na Hungria pelo exército ver-
da malandragem e do desrespeito). pendente das habilidades dos traba- melho, aplaudida pelos Partidos Co-
Esse é o contexto do trabalho hoje. lhadores (Fiod, 2005, p. 251). munistas do Ocidente. Foi ativista do
Mas, ainda assim, temos que reco- movimento antinuclear na Europa.
nhecer que este trabalho é feito por Marx reconhece que esta é a gran- Elaborou, a partir da década de
sujeitos, portanto significa uma ação de revolução burguesa, a criação do 1950, estudos em que resgata a histó-
humana. Por trás de toda mercadoria, trabalho social, coletivo, não mais ria das classes trabalhadoras inglesas,
há trabalho humano nela incorpora- subjetivo e determinado pelas con- abrangendo aspectos pouco estuda-
do, há força e energia humana. Marx dições naturais, mas objetivo, com- dos até então. Retomou uma catego-
(1985a, b) , n’O capital, defendeu a pletamente controlado pelo homem, ria de análise, nos marcos do materia-
tese de que o trabalho é uma “merca- com o uso das máquinas. lismo histórico, que é a experiência
doria fictícia” (não é genuína porque Neste sentido, a aprendizagem histórica. A obra A formação da clas-
não é produzida para a venda e não é não é mais fruto de uma relação entre se operária inglesa não foi um livro
claramente separável de seu proprie- mestre e aprendiz, em que o aprendiz escrito para o meio acadêmico. Thomp-
tário) e que qualquer tentativa de tra- aprendia fazendo, e não mais limita- son ingressou na universidade ape-
tar seres humanos como mercadoria da ao contexto das oficinas, mas é nas na década de 1960.
resulta em insatisfação e resistência. algo universal, produzido socialmen- O autor analisa as classes sociais
Neste sentido, cabe captar a con- te. Portanto, em vez de alimentarmos como um processo em formação. É a
tradição entre uma ação que é huma- a nostalgia da formação artesanal luta que as forma. Daí a importância da
na, mas que é realizada por meio de (Rugiu, 1998), presente no pensa- experiência. Retoma a idéia marxista da
relações capitalistas de produção, mento de teóricos, filósofos e peda- classe como sujeito, ampliando seu sig-
com base na alienação e na explora- gogos, liberais e utópicos, é neces- nificado, enquanto relação. Valoriza as
ção. Como identificar, assim, o que sário reconhecermos o contexto em tradições, costumes e modos de vida
reproduz e os possíveis elementos que vivemos, suas possibilidades, dos sujeitos sociais; por isso, tem sido
criadores? suas contradições e, fundamental- interpretado, equivocadamente, como
Outro aspecto fundamental para mente, sua materialidade, para assim um historiador culturalista.
a análise é situar o contexto não só compreendermos o que é possível Tendo em vista seus estudos his-
do trabalho, mas do processo de produzir em termos de idéias, sabe- tóricos, ao tratar da Formação da clas-
aprendizagem predominante nesta res e conhecimentos no trabalho. se operária inglesa, em seus aspec-
sociedade. Diferentemente do perío- tos objetivos e subjetivos, não ape-
do das oficinas e corporações, em A contribuição de nas determinada pela revolução indus-
que a aprendizagem era individual e Thompson na apreensão trial, mas também como fruto de expe-
acontecia com as mãos, hoje, assim dos saberes produzidos riências dos trabalhadores ingleses
como o trabalho é uma produção do/no trabalho anteriores à Revolução Industrial,
social, também a aprendizagem o é: Thompson fornece importantes indi-
não mais individual, mas coletiva; A trajetória de vida, de trabalho e cações para a apreensão dos saberes
não mais pelas mãos, mas de forma de militância de Edward Thompson, do trabalho, ao considerar o contexto,
intelectual. que viveu de 1924 a 1993, desenvol- a materialidade, as condições objeti-
veu no autor uma sensibilidade e agu- vas de realização do trabalho e da edu-
O desenvolvimento industrial reali- çada capacidade de problematizar a re- cação, aliadas às condições subjeti-
za-se às custas de um longo período alidade e de observá-la para além dos vas, à experiência humana e à apren-
de expropriação. A utilização das muros acadêmicos, captando o movi- dizagem constituídas coletivamente
máquinas rompe com a unidade tra-
mento real e os sujeitos que o consti- pelos sujeitos sociais.
balhador e sua ferramenta. O velho
artesão vai desaparecendo à medida tuem. Thompson trabalhou como pro-
que o trabalho adquire caráter social, fessor de adultos em aulas para traba- Retratar as mudanças de vida dos tra-
pela cooperação de muitos, o que lhadores e sindicalistas. Participou, balhadores rurais, dos artesãos e tece-
muda radicalmente a forma de educar junto com Hobsbawm e Christopher lões pode parecer um registro de frus-
os cidadãos. O trabalho social, coo- trações e fracassos, mas a experiência
Hill, do grupo de historiadores do Par-
124 perativo, mais ou menos contingente tido Comunista Inglês. Abandonou-o
apresenta muitas tradições que se ori-
ginam deste período. Dos primeiros
na manufatura e que ainda dependia em 1956 por não concordar com suas
da subjetividade, da habilidade de al- estágios da auto-educação política de
posições políticas e ideológicas, ten-

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uma classe, que dizem respeito aos efei- Thompson dá importância a um conceitual, na direção de um conhe-
tos morais da sociedade, acompanha- conjunto de ações e tradições popu- cimento em desenvolvimento, que se
mos com o autor o despertar de uma lares inglesas vigentes no séc. 18 que dá tanto pela teoria quanto pela prá-
autoconsciência coletiva, associada a influenciaram a agitação jacobina dos tica.
teorias, instituições, normas discipli- anos 1790. Tradições da Sociedade “O materialismo histórico não di-
nares e valores comunitários corres-
Londrina de Correspondência, da fere de outras ordenações interpre-
pondentes que distinguem a classe ope-
rária do século XIX da plebe do século
Dissidência Metodista, das turbas, tativas das evidências históricas [...]
XVIII. Da revolta dos trabalhadores na multidões revolucionárias e ações por quaisquer premissas epistemoló-
destruição de máquinas, assistimos nos populares. Analisa os primeiros es- gicas, mas por suas categorias, suas
anos de 1830 aos homens lutarem, não tágios de auto-educação política de hipóteses características e procedi-
contra a máquina, mas contra as rela- uma classe, com base nas experiênci- mentos conseqüentes, e no reconhe-
ções exploradoras e opressivas intrín- as do radicalismo plebeu (através do cido parentesco conceptual entre
secas ao capitalismo industrial. Nesse luddismo até a época heróica das estas e os conceitos desenvolvidos
momento, é possível falar de uma nova
guerras napoleônicas) que criaram a pelos praticantes marxistas em outras
forma de consciência dos trabalhado-
res em relação aos seus interesses e à
cultura do autodidatismo, da impren- disciplinas” (p. 54). Thompson não
sua situação enquanto classe, que se sa radical, da alfabetização e partici- considera a historiografia marxista
refletem na identidade de interesses pação, das sociedades de leitura, do dependente de um corpo teórico. “A
entre trabalhadores das mais diversas teatro, do cartum popular/político. pátria da teoria marxista continua
profissões e níveis de realização, de um onde sempre esteve, no objeto hu-
lado, e na identidade dos interesses da A defesa do Método mano real, em todas as suas manifes-
classe operária, de outro, expressos em Materialista Histórico tações (passadas e presentes)” (p.
muitas formas institucionais e no
55). Indo mais além, compreende que
sindicalismo de 1830-34 (Vendramini,
2004, p. 27). Para apreender as contradições o conhecimento não pode ficar apri-
sociais, o movimento histórico, sionado ao passado. “Ele nos ajuda
Nesta direção, Thompson reco- Thompson faz uma defesa do Méto- a conhecer quem somos, porque es-
nhece e analisa as experiências das do Materialista Histórico. tamos aqui, que possibilidades hu-
quais surgiu a expressão cultural e Como método de análise da reali- manas se manifestaram, e tudo quan-
política da consciência da classe ope- dade social, compreende o materia- to podemos saber sobre a lógica e as
rária. Sua análise considera o modo lismo como atividade dos homens, formas de processo social” (p. 57).
de vida característico dos trabalha- como produção da vida, que se cons- Observamos que, assim como Marx,
dores, que está associado com um titui num ato histórico, portanto, num o vir-a-ser ocupa espaço no pensa-
modo de produção, e os valores par- ato de transformação, num movimen- mento e na prática deste historiador
tilhados pelos que viveram durante a to social permeado por contradições. inglês. Tal elemento é fundamental
Revolução Industrial. É um estudo Segundo Thompson, há necessi- para analisarmos os saberes produ-
das experiências cotidianas, da qua- dade de uma lógica de análise histó- zidos no trabalho e discernir sobre
lidade de vida, dos valores com de- rica adequada aos fenômenos que aquilo que reproduz e aquilo que pos-
sejo de racionalização global. estão sempre em movimento, “que sibilita algo novo no pensamento e
evidenciam – mesmo num único mo- na prática social.
Se detemos a história num determina- mento – manifestações contraditóri-
do ponto, não há classes, mas sim- as, [...] assim como o objeto de in- A categoria de análise
plesmente uma multidão de indivídu- vestigação se modifica também se experiência 2
os com um amontoado de experiênci-
modificam as questões adequadas”
as. Mas se examinarmos esses homens
durante um período adequado de mu- (1981, p. 48). No texto A lógica histó- Na sua crítica ao estruturalismo
danças sociais, observaremos padrões rica (in: A miséria da teoria, 1981), o (dirigida especialmente a um marxis-
em suas relações, suas idéias e insti- autor discute oito proposições em ta estruturalista: Althusser3), hoje
tuições. A classe é definida pelos ho- defesa do materialismo histórico, que atualizado no pós-estruturalismo,
mens enquanto vivem sua própria his- se distinguem pela elaboração de ca- multiculturalismo, história serial,
tória (Thompson, 1987a, p. 11). tegorias articuladas numa totalidade Thompson propõe um termo ausen-

125
2
As reflexões sobre a categoria experiência estão apresentadas em parte e de forma modificada num artigo da autora publicado na revista Esboços
(Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina), n. 12, 2004.
3
Crítica presente na obra “A miséria da teoria ou um planetário de erros” (uma crítica ao pensamento de Althusser).

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te, a experiência. Opõe a noção de do mesmo tipo de acontecimento cia é o vivido, são os acontecimen-
processo e totalidade social à noção (Thompson, 1981, p. 15). tos, as ações e, ao mesmo tempo, o
de estrutura e sistema, na medida em sentido a elas atribuído.
que nestas não há sujeitos e relações, Ao considerar as classes como “A experiência surge espontane-
mas estruturas rígidas que impedem um processo em formação, um “fa- amente no ser social, mas não surge
a ação humana. O estruturalismo zer-se”, constituída e constituinte da sem pensamento. Surge porque ho-
marxista caracteriza-se por compre- luta, percebe-se a importância atri- mens e mulheres (e não apenas filó-
ender a reprodução e a produção no buída por Thompson ao conceito de sofos) são racionais, e refletem so-
sentido restrito e exclusivo de “prá- experiência. No processo de forma- bre o que acontece a eles e ao seu
ticas econômicas de produção”. Há, ção social, a experiência humana tem mundo.” (Thompson, 1981, p. 16). Há,
portanto, um fosso entre a esfera papel central, ela é gerada na vida portanto, uma relação permanente
econômica e a subjetividade huma- material e estruturada em termos de entre a matéria e o pensamento, um
na e uma transferência, sem media- classe. implica o outro, o que pressupõe o
ções, das determinações do real para diálogo entre o ser social e a consci-
a consciência. Nessa concepção, que Pela experiência os homens se tor- ência social, algo negligenciado por
perde a unidade da obra marxiana, nam sujeitos, experimentam situações Althusser.
há uma dicotomia absoluta entre re- e relações produtivas como necessi-
dades e interesses, como antagonis- O que queremos dizer é que ocorrem
alidade e pensamento. Segundo
mos. Eles tratam essa experiência em mudanças no ser social que dão ori-
Thompson, Althusser negou o pa- sua consciência e cultura e não ape-
pel ativo dos homens na história, gem à experiência modificada; e essa
nas a introjetam. Ela não tem um ca- experiência é determinante, no senti-
transformando-os em mero desdo- ráter só acumulativo. Ela é fundamen- do de que exerce pressões sobre a
bramento das estruturas. talmente qualitativa (Thompson, consciência social existente, propõe
No texto Mesa, você existe?, 1981, in Gohn, 1997, p. 204). novas questões e proporciona grande
Thompson (1981) supõe um interro- parte do material sobre o qual se de-
gatório da mesa com um filósofo e Thompson compreende que a senvolvem os exercícios intelectuais
conclui que, assim como o ser social classe e a consciência de classe vão mais elaborados. (Thompson, 1981,
não é uma mesa inerte que não pode se formando juntas na experiência: é p. 16).
refutar um filósofo com suas pernas, uma formação imanente. Tal compre-
a consciência social não é um recipi- ensão pode ser observada na análi- Isso que dizer que, “assim como
ente passivo de reflexões daquela se que faz do período 1790 a 1830, o ser é pensado, também o pensa-
mesa. quando se forma a classe operária mento é vivido” (Thompson, 1981,
inglesa. O fato é revelado, em primei- p. 17). A trajetória de vida de Thomp-
Nossa preocupação, mais comumen- ro lugar, pelo crescimento da consci- son, para além dos muros acadêmi-
te, é com múltiplas evidências, cuja ência de classe: a consciência de uma cos, lhe proporcionou elementos
inter-relação é, inclusive, objeto de identidade de interesses entre todos suficientes para pensar a realidade
nossa investigação. Ou, se isolamos a esses diversos grupos de trabalha- social de forma menos rígida e estru-
evidência singular para um exame à turalista. Ele mesmo lembra a Althus-
dores contra os interesses de outras
parte, ela não permanece submissa,
classes. E, em segundo lugar, no cres- ser que conhecimentos se formaram
como a mesa, ao interrogatório; agita-
se, nesse meio tempo, ante nossos cimento das formas corresponden- e se formam fora dos procedimentos
olhos. Essas agitações, esses aconte- tes de organização política e indus- acadêmicos e dos recintos da uni-
cimentos, se estão dentro do “ser so- trial. Acrescenta, ainda, que “o fa- versidade. Como professor de adul-
cial”, com freqüência parecem cho- zer-se da classe operária é um fato tos em aulas para trabalhadores e sin-
car-se, lançar-se sobre, romper-se con- tanto da história política e cultural dicalistas, como militante do Partido
tra a consciência social existente. Pro- quanto da econômica” (Thompson, Comunista Inglês e do movimento
põem novos problemas e, acima de antinuclear na Europa, aprendeu
1987b, p. 17).
tudo, dão origem continuadamente à
Thompson analisa um período logo que “a experiência não espera
experiência – uma categoria que, por
mais imperfeita que seja, é indispen- adequado a mudanças sociais e não discretamente, fora de seus gabine-
sável ao historiador, já que compre- acontecimentos, observando pa- tes, o momento em que o discurso
ende a resposta mental e emocional, drões em suas relações, suas idéias da demonstração convocará a sua
126 seja de um indivíduo ou de um grupo e instituições. A experiência é possí- presença. A experiência entra sem
social, a muitos acontecimentos inter- vel de ser observada nesse proces- bater à porta e anuncia mortes, cri-
relacionados ou a muitas repetições so do fazer-se da classe. A experiên- ses de subsistência, guerra de trin-

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cheira, desemprego, inflação, geno- compreender diversas formas de or- O metodismo, por exemplo, é apre-
cídio” (p. 17). Frente a estas experi- ganização da vida social nos dias de endido por Thompson segundo suas
ências, Thompson indica que velhos hoje: cooperativas, associações, mo- tradições autogestionárias e, ao
sistemas conceituais podem desmo- vimento dos sem-teto, dos sem-terra, mesmo tempo, utilitaristas; por suas
ronar e novas problemáticas podem movimento de mulheres, de negros, tendências democráticas e também
insistir em impor sua presença. ambientais etc, como expressão das autoritárias; como religião da burgue-
relações de classe. O autor não se sia industrial, mas também de amplos
Aspectos metodológicos perde nas reflexões abstratas, gerais, setores do proletariado. As ambiva-
para a análise dos sem sentido, mas também não se limi- lências em relação às mulheres du-
saberes do/no trabalho ta ao particular e específico, que se rante a revolução industrial são pro-
constitui na falta de uma crítica glo- blematizadas. Ao mesmo tempo em
Apresentamos, a seguir, alguns bal à sociedade capitalista. que elas encontram as condições de
elementos presentes nas obras de Há uma tendência bastante forte emancipação, são obrigadas a redo-
Thompson que podem ajudar meto- no meio acadêmico de apreensão da brarem seu trabalho, a separarem-se
dologicamente a identificar, proble- realidade na sua mera singularidade dos seus filhos e a disputarem o tra-
matizar e reconhecer os saberes que e particularidade, nas manifestações balho com seus maridos e filhos.
se constroem no trabalho, especial- simbólicas e aparentes dos fenôme- Apreender os aspectos objetivos
mente nas experiências coletivas ou nos sociais, sem considerar o con- e subjetivos das experiências nos per-
associativas. texto histórico, social e econômico mite fazer uma análise mais profunda e
Apreender a singularidade sem que a constitui e é por ela constituí- próxima da realidade de estudo.
perder de vista a totalidade dos fe- do. “Abandonam-se os tempos for- NA formação da classe operária
nômenos sociais. Entende Thomp- tes e os movimentos voluntaristas inglesa, as tradições populares vigen-
son que, embora os historiadores de mudança, em direção à memória tes no século 18 que influenciaram a
possam tomar a decisão de selecio- do quotidiano das pessoas simples” fundamental agitação jacobina dos
nar algumas evidências para análise, (Dosse, 1992, p. 168). anos 1790 são não só relembradas,
e escrever uma história de aspectos Apreender as contradições da re- mas problematizadas como condições
isolados do todo, o objeto real con- alidade é outro aspecto enfatizado subjetivas para o florescimento da
tinua unitário. por Thompson, o que pressupõe que futura classe operária. Associadas às
Ao buscarmos, por exemplo, ana- os conceitos e regras históricos exi- novas experiências e tradições ingle-
lisar as experiências coletivas e coo- bam extrema elasticidade e permitam sas (Dissidência, Turba e Direito de
perativas de trabalhadores e os sa- grande irregularidade. O objetivo da nascimento do inglês), serão determi-
beres nelas desenvolvidos, observa- história, para o autor, é reconstituir, nantes para os primeiros estágios de
mos que há uma diversidade de for- explicar e compreender seu objeto: a auto-educação política de uma clas-
mas de organização, de associação, história real, sendo esta dinâmica, se. Thompson passa das influências
de gestão, de articulação externa, de complexa e contraditória. subjetivas para as objetivas, ao anali-
vínculos com o mercado, entre ou- Para captar os saberes produzi- sar as experiências de grupos de tra-
tros aspectos. Esse contexto só pode dos do e no trabalho, há necessida- balhadores durante a Revolução In-
ser apreendido na sua singularida- de de compreender as contradições dustrial (os artesãos, tecelões e tra-
de, nos elementos particulares que o do contexto em que eles são elabo- balhadores rurais) e o caráter da nova
constituem, na experiência desenvol- rados, que diz respeito à afirmação e disciplina industrial do trabalho. Con-
vida pelos sujeitos. Ao mesmo tem- negação do trabalho; às relações que clui que tanto o contexto político
po, não podemos perder de vista o permeiam o trabalho; aos tipos de quanto a máquina a vapor influencia-
contexto histórico e mais amplo em saberes produzidos (técnicos, críti- ram a formação da classe operária.
que as experiências cooperativas são cos, reprodutores); à luta entre as Observa-se, portanto, a continuida-
desenvolvidas para podermos com- velhas e as novas formas de produ- de das tradições num contexto altera-
preender suas potencialidades e ção presentes nas cooperativas de do, ou seja, as mesmas aspirações,
seus limites que são históricos. trabalhadores, em que estes apren- temores e tensões surgem num novo
Thompson atribui um valor muito dem pela autogestão, pela liderança, contexto, com nova linguagem e ar-
grande aos estudos empíricos, à aná- pela experiência coletiva, mas, ao gumentos e num equilíbrio de forças
lise do movimento real da sociedade, mesmo tempo, estão inseridos no modificado. 127
sem desconsiderar a análise mais am- modo de produção fundado na alie- Ao analisar a força dos trabalha-
pla da sociedade, o que nos ajuda a nação e na exploração do trabalho. dores, passando pela história do ra-

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dicalismo plebeu, levando-a através rar o passado histórico para compre- de compreender como se constituem
do ludismo até a época histórica no ender o presente; mais do que isso, o os sujeitos não só como produtos das
final das Guerras Napoleônicas, vir-a-ser conquista seu espaço no circunstâncias sociais. Isto é revela-
Thompson reascende as experiênci- processo de formação social: “ao in- do pela sua tese central n’A forma-
as passadas em articulação com as vestigar a história não estamos pas- ção da classe operária inglesa: o fa-
atuais para apreender a nova forma sando em revista uma série de instan- zer-se da classe operária é um fato
de consciência dos trabalhadores em tâneos, cada qual mostrando um mo- tanto da história política e cultural
relação aos seus interesses e à sua mento do tempo social transfixado quanto da econômica. Ela não foi ge-
situação de classe. Percebe as mu- numa única e eterna pose: pois cada rada espontaneamente pelo sistema
danças e o sentido histórico das as- um desses instantâneos não é ape- fabril. Nem devemos imaginar alguma
sociações e experiências coletivas: nas um momento do ser, mas também força exterior – a revolução industri-
dos confrontos pessoais aos emba- um momento do vir-a-ser” (1981, p. al. A classe operária formou a si pró-
tes massivos impessoais do futuro; 58). Por sua vez, Marx percebe que “o pria tanto quanto foi formada.
das atitudes subpolíticas à auto- desenvolvimento das contradições Há necessidade, hoje, de incorpo-
consciência de classe; da experiên- de uma forma histórica de produção rar o sujeito ao discurso, diante de um
cia da Turba às multidões revolucio- é, no entanto, o único caminho histó- conjunto de pressões temporais, téc-
nárias; da destruição das máquinas rico de sua dissolução e estruturação nicas, instrumentais de formação, em
à luta contra as relações explorado- de uma nova” (1985, p. 90). que o sujeito tem sido mutilado por
ras do capitalismo industrial. muitas lógicas (econômica, política,
O combate ao erro das generali- Conclusões informacional), tendo reduzidas suas
zações, alertado por Thompson, nos capacidades mentais e instrumentais.
faz atentar para a diversidade das A análise das contradições e am- Enquanto a realidade sócio-his-
experiências coletivas, diversidade bivalências das experiências históri- tórica estiver fora do objeto real, exi-
local e regional, mas também de ações cas; das condições objetivas e sub- gindo a sua adaptação à teoria e,
e práticas sociais, desenvolvidas em jetivas das situações reais; o estudo portanto, naturalizando as relações
contextos e situações específicas do contexto social e das tradições sociais, o conhecimento perde seu
que encontram sentido no interior das experiências que nele emergem sentido e retira de si a responsabili-
das relações sociais. são eixos de análise presentes no dade não só com a explicação, mas
A necessária dialética de passa- estudo d’A formação da classe ope- também com a transformação.
do, presente e futuro nos leva a con- rária inglesa (Thompsom, 1987a, b
siderar, na análise da atualidade, a e c) e elementos preciosos para pen- Referências
memória histórica e a projeção do sar o movimento social atual.
futuro. Para apreender os saberes Thompson fornece suporte para DOSSE, F. 1992. A história em migalhas:
constituídos no trabalho, é preciso analisar, especialmente, as experiênci- dos Annales à nova história. São Paulo/
considerar a forma de trabalho na as coletivas, considerando o contexto Campinas, Ensaio/UNICAMP, 267 p.
atualidade, as formas anteriores e as FIOD, E.G.M. 2005. Mudanças nas for-
social que as produz. Há diversas for-
mas de aprendizagem do trabalhador.
perspectivas apontadas por Marx de mas e espaços de vivenciar experiên-
In: B.W. AUED, Traços do trabalho
um trabalho com base na livre asso- cias, de aprender com elas e de lhes coletivo. São Paulo, Casa do Psicólo-
ciação entre os trabalhadores; assim dar sentido, mas é indiscutível que o go, p. 237-274.
como considerar os modos de apren- coletivo, pensado aqui como coletivo GOHN, M.G. 1997. Teorias dos movimen-
dizado presentes nas diferentes for- que reúne as pessoas em torno de ob- tos sociais: paradigmas clássicos e
mas históricas do trabalho. “Nosso jetivos comuns, em torno de algo que contemporâneos. São Paulo, Edições
conhecimento não fica (esperamos) as identifica, permite a vivência de ex- Loyola, 396 p.
por isto aprisionado nesse passado. periências que podem vir a se tornar HOBSBAWM, E. 1991. A era das revolu-
Ele nos ajuda a conhecer quem so- emancipadoras. Portanto, estudar a ções. Rio de Janeiro, Editora Paz e
mos, porque estamos aqui, que pos- Terra, 366 p.
experiência significa estudar o proces-
MARX, K. 1985a. Maquinaria e grande
sibilidades humanas se manifestam, so social que a engendra, com suas
indústria. In: K. MARX, O capital: crí-
e tudo quanto podemos saber sobre tradições passadas, levando-se em tica da economia política. 2ª ed., São
a lógica e as formas de processo so- conta a vida material, bem como suas
128 cial” (Thompson, 1981, p. 57). perspectivas futuras.
Paulo, Nova Cultural, p. 7-101. (Os
economistas, 2).
Assim como Marx, Thompson não Um importante aspecto do pensa- MARX, K. 1985b. A mercadoria. In: K.
está preocupado apenas em recupe- mento de Thompson (1987a, b e c) é o MARX, O capital: crítica da economia

Educação Unisinos

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A contribuição de E. P. Thompson para a apreensão dos saberes produzidos do/no trabalho

política. 2ª ed., São Paulo, Nova Cultu- THOMPSON, E. 1987a. A formação da Rio de Janeiro, Paz e Terra, 440 p.
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Célia Regina Vendramini


UFSC, SC, Brasil

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volume 10, número 2, maio • agosto 2006

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