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A HISTÓRIA ATRAVÉS DA LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM OS

CONTOS “CELEIRO EM CHAMAS” E “MEU TIO, O IAUARETÊ”

Nathália de Castro Aggeu Ricardo1

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discutir as relações entre história e literatura,
observando a participação dos grupos marginalizados e suas representações. A
fundamentação teórica baseia-se nos autores Walter Benjamin, com seu texto Sobre o
conceito de história (1987), Hayden White, com O texto histórico como artefato literário
(1994), Willian Faulkner, de Celeiro em Chamas (s.d.), e como representante brasileiro,
João Guimarães Rosa, com Meu tio, o Iauaretê (1985). Posteriormente à análise, destaca-
se o papel da literatura como ferramenta de resistência contra o discurso dominante, abrindo
espaço para as vozes dos vencidos, ignoradas muitas vezes pela história, também possam
ser ouvidas.
Palavras-chave: Walter Benjamin, William Faulkner, Guimarães Rosa, história, literatura,
resistência.

INTRODUÇÃO

A história é geralmente relacionada à literatura quando se destaca a


historiografia literária propriamente. Ainda assim, esse processo não traduz por si só
a função literária para a história, já que esta não se limita a ser contada linearmente
e para fins didáticos. Participa também dos processos de mudança social e, com seu
conteúdo, pode tanto corroborar o discurso dominante quanto questioná-lo. Sendo
assim, é possível estabelecer uma relação entre os contos Celeiro em chamas (s.d.),
de William Faulkner e Meu tio, o Iauaretê (1985), de Guimarães Rosa, e esse
conceito de história.

1. A VOZ DO OUTRO NA LITERATURA

Os contos analisados tratam das nuances do tema “justiça” pela visão de


personagens que são parte de camadas oprimidas e subjugadas socialmente: os
vencidos. Em cada um deles, o assunto é apresentado de forma a fomentar o
debate sobre suas significações em determinados contextos sociais.

No primeiro, temos a personagem do garoto, filho de um meeiro – posição


rural subalterna de alguém que trabalha em terras das quais os donos são mais
1
Formada em Letras e Pós-graduanda em Literatura na Universidade de Taubaté (UNITAU).
abastados em troca de parte da colheita – cuja concepção de justiça é contrária à de
seu pai. Para este, a justiça confunde-se com a vingança do oprimido contra seu
opressor, personificado no conto nas figuras de seus patrões. Já para aquele, a ideia
é muito mais próxima ao entendimento atual sobre esse conceito, mas nem por isso
deixa de permitir questionamentos. Diante da agressão e intimidação do pai ao
perceber que poderia ser traído por alguém de seu próprio sangue, o garoto reflete
consigo:

Mais tarde, vinte anos mais tarde, ele iria dizer para si mesmo, “se eu
dissesse que eles só queriam a verdade, justiça, ele teria me batido de
novo”. Mas agora ele não disse nada. Ele não estava chorando. Ele só ficou
ali, em pé. (s.d., p. 4)

Já em “Meu tio, o Iauaretê”, temos uma personagem de mestiçagem branca e


indígena que não se encaixa socialmente. De vários nomes e ao mesmo tempo
nome nenhum, conhecido pelo patrão como Tonho Tigreiro, contratado e isolado
para eliminar onças que, tempos depois, reconhece como seus iguais. Começa,
então, a matar para elas.
A civilização mostra-se no papel do interlocutor oculto, que assassina seu
anfitrião quando este começa a sua transformação, enquanto o outro, meio onceiro e
meio onça, representa um justiceiro, vingando aqueles que foram escravizados e
tiveram suas vozes ignoradas pelo homem branco – no caso do conto, os povos
indígenas, ou seja, sua família por parte de mãe. O trecho abaixo resume bem o que
levou Tonho a essa posição, desde seu isolamento por uma sociedade que não o
admitia até o reconhecimento e aceitação daqueles que considera seus verdadeiros
familiares:

Aquele Nhô NhuãoGuede. Pai da moça gorda, pior homem que tem: me
botou aqui. Falou: -- “Mata as onças todas!” Me deixou aqui sozinho, eu
nhum, sozinho de não poder falar sem escutar.... Sozinho, o tempo todo,
periquito passa gritando, grilo assovia (...) tenho pai nem mãe. Só matava
onça. Não devia. Onça tão bonita, parente meu. (...) Sabia só matar onça.
Ah, não devia! Ninguém não queria me ver, gostava de mim não, todo
mundo me xingando. Maria-Maria veio, veio. Então eu ia matar Maria-
Maria? Como é que eu podia? Podia matar onça nenhuma não, onça
parente meu, tava triste de ter matado. (s.d., p. 115)
2. O CONCEITO DE HISTÓRIA

Sobre o conceito de história (1987), texto de Walter Benjamin, é composto de


18 fragmentos que, em seu decorrer, revelam um novo conceito de história cunhado
pelo autor e com intenções revolucionárias. Para isso, o pesquisador parte do
materialismo histórico, porém sem deixar de levar em consideração as
subjetividades e as particularidades espirituais da humanidade, para discutir sua
visão. Propõe, para isso, uma fusão entre o materialismo histórico e a teologia.
De acordo com o autor, em sua terceira tese, “(...) nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (1987). Afirma também
que, no entanto, o ponto de vista dos vencidos tem sido privilegiado em detrimento
daqueles que foram dominados e oprimidos e muitas vezes apagados do relato
histórico, esclarecendo que a humanidade só se redimirá quando puder falar sobre
os diversos assuntos, inclusive aqueles considerados tabus, de maneira igual.

Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se


totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade
redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. (1987, tese
3)

É possível relacionar aqui a visão de White (1994), ao expor que dividir o fato
do fictício não é admissível, uma vez que a história, quando escrita, ainda que sob o
manto da verdade absoluta, não passa ela mesma de uma ficção, pois representa
um ponto de vista enquanto vale-se durante esse processo de mecanismos próprios
da arte literária.

Elas [as narrativas históricas] conseguem dar sentido a conjuntos de


acontecimentos passados, além e acima de qualquer compreensão que
forneçam, recorrendo a supostas leis causais, mediante a exploração das
similaridades metafóricas entre os conjuntos de acontecimentos reais e as
estruturas convencionais das nossas ficções. (1994, p. 108)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao compreender a íntima correlação entre a narrativa histórica e a literária,
percebe-se que a segunda, então, pode aparecer como uma forma de afrontar o
caos em determinada época. Através dela, aqueles que foram esquecidos podem ter
a chance de expressar o seu lado da história.
Hayden (1994, p. 98) não hesita em afirmar que as narrativas históricas são
“ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos” e
continua ao explicar que suas “formas têm mais em comum com os seus
equivalentes na literatura do que com seus correspondentes nas ciências. ” A partir
disso, compreende-se a incompletude do relato histórico, que como anteriormente
citado, é também uma ficção.
Por outro lado, pode-se pensar que essas afirmações, de certa forma,
legitimam o papel da própria literatura ao se apresentar em conjunto com a história,
visto que ela pode possibilitar certa ponderação sobre os recortes históricos já feitos.
Desse modo, é perceptível nesses autores a utilização da literatura como ferramenta
de reflexão social e, sobretudo, resistência. Os temas escolhidos, bem como a
linguagem empregada nas obras reflete uma escolha – ainda que nem sempre tão
óbvia – por aqueles que muitas vezes não aparecem nos discursos históricos e
literários.
A crítica política e a história que podem ser consideradas a partir dessa
manifestação artística implicam em parte importante e fundamental de sua
existência. Enquanto comumente o ponto de vista dos vencedores se sobressai, o
contexto literário pode – e deve – ser um espaço de discussão e reflexão,
demonstrando a veracidade da fala de Benjamin quando reconhece que:

Articular historicamente o passado não significa conhece-lo ‘como ele de


fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja
no momento de um perigo. (1987, tese 5)

Esse “momento de um perigo” descrito pelo autor também é uma porta para a
criação literária. A capacidade de abordar temáticas diversas, desde morais até
psicológicas e sociais, torna possível que a literatura possa ser compreendida, tanto
pelo seu valor estético, quanto pelo seu papel documental para a história. E é essa
criação, nascida em meio ao conflito, que é capaz de suscitar questionamentos e
transformações na sociedade.
REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas. Vol. 1. São
Paulo: Brasiliense, 1987.

FAULKNER, William. Celeiro em chamas. (Conto). Trad. Paulo Moreira. s.d.

WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In:_____. Trópicos do


discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994,

ROSA, João Guimarães. Meu tio, o Iauaretê. In: Estas estórias. 3. ed. Rio de
Janeiro: NovaFronteira, 1985.

Universidade de Taubaté
A HISTÓRIA ATRAVÉS DA LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM
OS CONTOS “CELEIRO EM CHAMAS E “MEU TIO, O IAUARETÊ”

NATHÁLIA DE CASTRO AGGEU RICARDO

Taubaté
Outubro - 2017
NATHÁLIA DE CASTRO AGGEU RICARDO

A história através da literatura e suas relações com os contos “Celeiro


em Chamas” e “Meu tio, o Iauaretê”

Trabalho apresentado à professora Thais


Travassos da disciplina de Literatura,
história e contexto social do curso de Pós-
Graduação de Literatura

Universidade de Taubaté
Taubaté - 2017

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