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ORDEM DOS REVISORES OFICIAIS DE CONTAS

AUMENTO DE CAPITAL

POR INCORPORAÇÃO DE CRÉDITOS

“LEITMOTIV” PARA UMA REVISÃO DA DRA 841

MIGUEL CARRASQUEIRA BAPTISTA


MAIO 2008
ÍNDICE

1. Introdução 1

2. Conceito de crédito 2

3. Regime geral do aumento de capital 4

4. Regime particular do aumento de capital por incorporação 5

de créditos – Análise crítica da DRA 841

5. A tributação do aumento de capital 14

6. Conclusão 15

Anexo – Bibliografia
1. INTRODUÇÃO

O direito comercial latu sensu, e o direito das sociedades em particular, têm sido alvo dos mais
variados excursos doutrinais e jurisprudenciais no âmbito do ordenamento jurídico nacional.

Especificamente no que se refere à temática dos aumentos de capital, diversos autores


ciclicamente têm vindo a abordar esta matéria, ajudando a interpretar e a melhor compreender a
ratio, e bem assim as motivações, que terão levado o legislador a tratar de determinada forma a
questão no ordenamento jurídico nacional.

No entanto, reportando-nos especificamente ao tema da presente dissertação – aumento de capital


por incorporação de créditos – tanto o legislador como a jurisprudência, bem como a doutrina em
geral, muito pouco se têm pronunciado sobre uma questão que poderá revelar-se decisiva no
âmbito do desenvolvimento da vida societária.

Desde já se salienta que a Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (“ROC”) se pronunciou sobre
esta matéria, abordando a mesma na Directriz de Revisão/Auditoria (“DRA”) 841. Contudo,
como se procurará demonstrar infra, a abordagem adoptada poderá não se encontrar isenta de
críticas, motivo adicional para atribuir especial relevância à discussão que se visa suscitar. Em
face do exposto, a referida DRA poderá ser o motivo principal, na acepção germânica o leitmotiv,
para a análise crítica do tema em apreço.

Para tal, iremos procurar abordar sistematicamente a questão, desenvolvendo, em primeiro lugar,
o conceito de crédito, quer este seja de terceiros face à sociedade, quer este provenha dos
próprios sócios/accionistas.

Posteriormente, será abordado o regime geral dos aumentos de capital, analisando-se em seguida
o caso particular do aumento de capital por incorporação de créditos.

Por fim, será abordado um tema imprescindível para a actividade do Revisor Oficial de Contas,
designadamente a aferição da tributação associada ao processo de aumento de capital.

1
2. CONCEITO DE CRÉDITO

Naturalmente que, em ordem a qualquer operação de realização de um aumento de capital por


incorporação de créditos, torna-se necessário a sociedade ter previamente contraído um crédito.
Neste contexto, importa atender à definição do mesmo, de molde a que se possa aferir a natureza
do direito convertido.

Sendo o direito de crédito um direito subjectivo, não existe propriamente uma definição
doutrinária unânime quanto ao conceito do mesmo. Assim, o próprio Código Civil adopta uma
definição de crédito a partir do seu objecto, prevendo o seu artigo 397.º que este será “o vínculo
jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma
prestação.”

Deste modo, e abreviando, o direito de crédito será o direito de obter de outrem uma determinada
prestação (vide, por todos, Menezes Leitão1).

Especificamente no que se refere ao objecto do presente estudo, os créditos a converter serão o


resultado de situações jurídicas mediante as quais a sociedade se obrigou a uma determinada
contraprestação, vindo posteriormente essa prestação, por via do aumento de capital, a extinguir-
se mediante a entrega de partes de capital representativas da sociedade.

2.1 Crédito de sócios/accionistas – Suprimentos

Nos termos do artigo 243.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), “Considera-se contrato
de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa
fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo
qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre
ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência.”

Devido às características específicas do regime do contrato de suprimento, pretendidas pelo


legislador em face do facto de o sócio poder vir a influenciar a vida da sociedade, nomeadamente
no que se refere à definição de determinadas características do suprimento como sejam as
próprias condições do empréstimo, bem como ao tempo e ao modo como a solvência do mesmo

1
In “Direito das Obrigações”, Vol.1, Almedina, pag. 81

2
será efectuada, o legislador definiu (além das características subjectivas sócio/sociedade)
características objectivas específicas para que um empréstimo de um sócio se possa considerar
um suprimento, das quais importa destacar, nomeadamente, o carácter de permanência.

No entanto, devido às dificuldades de definição objectiva de qual o período de tempo que permita
considerar um empréstimo como permanente, o legislador estabeleceu, no n.º 2 do citado artigo, a
presunção de um ano, presunção essa que poderá ser ilidida, quer pelos credores, quer pelos
sócios nos termos do n.º 4 do referido artigo 243.º.

Por seu lado, o n.º 5 deste artigo estabelece que os créditos contra a sociedade que os sócios
venham a adquirir de terceiros, aos quais as acima referidas características subjectivas e
objectivas possam ser aplicáveis, ficam sujeitos ao mesmo regime dos contratos de suprimentos.

Por último, visando agilizar todo o processo, o legislador entendeu ser conveniente que o
contrato de suprimento não requeresse qualquer exigência especial de forma.

Tal como definem Raúl Ventura2 e Pinto Furtado3, o contrato de suprimento tem natureza real,
bastando que o sócio entregue o dinheiro (ou outra coisa fungível) à sociedade para a perfeição
do mesmo. Neste contexto, conforme infra se procurará demonstrar, a conversão dos créditos dos
sócios em capital implicará uma entrada em espécie e não uma entrada em dinheiro (pese
embora, de facto, o bem que tenha primacialmente vindo ao património da sociedade possa ser
dinheiro ou outro bem fungível).

Embora o âmbito da presente dissertação não permita discutir a temática no detalhe que a mesma
exigiria, diversos autores (dos quais destacamos Alexandre da Mota Pinto4) consideram que o
regime de restituição de suprimentos aos sócios (previsto no artigo 245.º do CSC) compele a que
os mesmos sejam considerados “capital quase-próprio” (designadamente porque os mesmos em
caso de falência só podem ser reembolsados depois de inteiramente satisfeitas as dívidas da
sociedade para com terceiros, e bem assim, porquanto os credores, também no caso de falência da
sociedade, poderão requerer a resolução do reembolso dos suprimentos que ocorra no ano
anterior à sentença de falência).

2
In “Sociedade por Quotas”, Vol. II, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, pág. 101.
3
In “Curso de Direito das Sociedades”, Almedina, 5º Edição, pag. 213.
4
In “Do Contrato de Suprimento: o financiamento da sociedade entre o capital próprio e o capital alheio,
Almedina, pag. 52.

3
3. REGIME GERAL DO AUMENTO DE CAPITAL
O aumento de capital pode ser definido como a operação através da qual o capital social da
sociedade é alterado, aumentando o seu valor (cfr., por todos, Pinto Furtado5). Este aumento pode
ser efectuado por duas formas:

a) Sem incremento de património social (sendo um aumento de capital por incorporação


de reservas);
b) Com incremento de património social (mediante novas entradas).

É sobre esta última modalidade, nomeadamente quando as novas entradas resultem da conversão
de créditos anteriormente contraídos pela sociedade, que nos iremos debruçar no presente estudo.

Em termo gerais, o capital social poderá ser aumentado sempre que a Assembleia Geral assim o
delibere, ou no caso das Sociedades Anónimas, caso o contrato de sociedade autorize o órgão de
administração a aumentá-lo, caso em que bastará uma determinação deste órgão nesse sentido.

A referida deliberação deverá, nos termos do artigo 87.º do CSC, mencionar expressamente: a) A
modalidade do aumento de capital; b) o montante do aumento de capital; c) o montante nominal
das novas participações; d) A natureza das novas entradas; e) o ágio, se o houver; f) os prazos
dentro dos quais as entradas deverão ser efectuadas; g) as pessoas que participarão nesse aumento
de capital.

Um novo aumento de capital social mediante novas entradas só poderá ser deliberado após
definitivamente registado o aumento anterior ou após estarem vencidas todas as anteriores
prestações de capital (cfr. número 3 do artigo 87.º do CSC).

Nos termos do artigo 265.º do CSC, a deliberação de aumento de capital tem de ser tomada por,
pelo menos, três quartos do capital social, podendo o contrato social exigir uma maioria mais
qualificada.

Para efeitos internos, segundo o disposto no artigo 88.º do CSC, o capital considerar-se-á
aumentado na data da deliberação acima referida caso da acta conste que não são necessárias
novas entradas ou, caso a acta não faça menção a esse facto, a partir do momento em que algum
5
In “Curso de Direito das Sociedades”, Almedina, 5º Edição, pag. 514

4
membro da administração declare, por escrito e sob sua responsabilidade, quais as entradas já
realizadas, tendo ainda que declarar que por lei, pelo contrato ou pela deliberação, não são
exigidas outras entradas.

Regra geral, aplicam-se às novas entradas o regime das entradas da mesma natureza no aumento
de capital (cfr. artigo 89.º do CSC), com excepção de: a) Se a deliberação for omissa quanto ao
diferimento das novas entradas em dinheiro, são estas exigíveis a partir do registo do aumento de
capital; b) caso a declaração supra referida não possa ser emitida no prazo de um ano, por as
novas entradas não estarem realizadas, a deliberação do aumento da capital caduca.

4. REGIME PARTICULAR DO AUMENTO DE CAPITAL POR INCORPORAÇÃO DE


CRÉDITOS – ANÁLISE CRÍTICA DA DRA 841

A temática do aumento de capital por incorporação de créditos reveste uma particular


especificidade face aos restantes tipos de aumentos de capital porquanto não se encontra
cabalmente previsto na Lei se este aumento de capital deve ser considerado um aumento de
capital em espécie ou em dinheiro.

Para a Ordem dos ROC, e para a actividade dos ROC em geral, essa questão não deverá ser
considerada como uma questão de somenos importância, visto que no primeiro caso, a
intervenção do ROC neste tipo de operações é exigida por lei, enquanto no segundo essa
intervenção encontra-se legalmente dispensada, cabendo à sociedade determinar se, por uma
questão de transparência e de idoneidade, tal se revela necessário.

Analisando a questão em concreto, temos que, de acordo com o disposto no artigo 28.º do CSC
(sob a epígrafe entradas em espécie), “As entradas em bens diferentes de dinheiro devem ser
objecto de um relatório elaborado por um revisor oficial de contas sem interesses na sociedade,
designado por deliberação dos sócios na qual estão impedidos de votar os sócios que efectuam
as entradas” (sublinhado nosso que revelará especial preponderância em face do infra exposto).

Este preceito vem estabelecer a obrigação da intervenção de uma entidade externa à sociedade,
munida da idoneidade reconhecida, quer legalmente (pelo Estatuto dos ROC e restante legislação
aplicável), quer socialmente (pela competência reconhecida pela sociedade aos membros da

5
Ordem dos ROC), por forma a que se possa efectuar a entrada de capital em espécie para a
sociedade.

Note-se, neste âmbito, o disposto na alínea a) do artigo 20.º do CSC que estabelece que todo o
sócio é obrigado a “A entrar para a sociedade com bens susceptíveis de penhora ou, nos tipos de
sociedade em que tal seja permitido, com indústria”. Os dois preceitos supra citados, embora
relativos às entradas na constituição da sociedade, terão aplicação ao caso concreto dos aumentos
de capital, uma vez que, nos termos do previsto no artigo 89.º do CSC, “Aplica-se às entradas
nos aumentos de capital o preceituado quanto a entradas da mesma natureza na constituição da
sociedade (…)”.

Neste contexto, entendeu o legislador estabelecer regimes diferentes para as entradas em dinheiro
e para as entradas “em bens diferentes de dinheiro”, sujeitando somente as segundas a obrigação
de verificação por um ROC.

Tal resulta, naturalmente, de a tutela da segurança jurídica e da boa fé pública nas entradas em
dinheiro puderem ser asseguradas pelo notário ou pelo conservador que efectuem,
respectivamente, a escritura pública (que recentemente deixou de ser obrigatória para os
aumentos de capital6, só o sendo caso as entradas dos bens exijam a forma mais solene de
escritura pública – vide artigo 7.º do CSC) ou o registo da constituição da sociedade ou do seu
aumento de capital – vide artigo 18.º do CSC.

Dado o facto de a prova da entrada de dinheiro na sociedade poder ser efectuada por uma forma
tão simples como o registo do depósito numa instituição de crédito dos montantes a favor da
sociedade, facilmente se compreende a opção do legislador.

Do mesmo modo se compreende que, no caso das entrada em bens diferentes de dinheiro, a tutela
dos outros sócios, credores e dos restantes stakeholders da sociedade só fique definitivamente
assegurada com a intervenção de uma entidade externa que valide a existência, titularidade e
valorização da mesma (motivo pelo qual o relatório elaborado pelo ROC deve ser, nos termos
legais, publicado ou pelo menos publicada a menção do depósito do mesmo no registo comercial
– cfr. número 6 do artigo 28.º do CSC).

6
Vide Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março

6
Nos termos das diferentes alíneas do n.º 3 do artigo 28.º do CSC, o relatório do ROC deve, pelo
menos: a) descrever os bens; b) identificar os seus titulares; c) avaliar os bens, indicando os
critérios utilizados para a avaliação; d) declarar se os valores encontrados atingem ou não o valor
nominal da parte, quota ou acções atribuídas aos sócios que efectuaram tais entradas, acrescido
dos prémios de emissão, se for caso disso, ou a contrapartida a pagar pela sociedade.

Para maior acuidade do referido relatório, estabelece o n.º 4 do citado artigo 28.º que: i) O
relatório não deve ser de data anterior em 90 dias à do contrato de sociedade (ou da alteração
deste ex vi o citado artigo 89.º do CSC); ii) o ROC deve informar os fundadores
[sócios/accionistas no caso dos aumentos de capital] da sociedade de alterações relevantes de
valores, ocorridas durante aquele período, de que venha a ter conhecimento.

Analisada a perspectiva legal, e porque de curial importância para a actividade dos ROC, importa
analisar o disposto nas DRA emanadas pela Ordem do ROC quanto a esta matéria.

Em concreto, a temática do artigo 28.º do CSC, e das intervenções dos ROC nos aumentos de
capital em geral, encontra-se definida na DRA 841.

Em primeiro lugar, estabelece o número 2 da referida DRA que as entradas em dinheiro podem
“ter tido inicialmente objectivo diferente, designadamente prestação suplementar ou acessória,
empréstimo, suprimento, adiantamento, abono, avanço, etc., sendo posteriormente utilizadas
para a realização de capital.”

Em face disto, tem-se entendido que a incorporação de créditos no capital de sociedades, quando
estes tenham tido inicialmente dinheiro por objecto e mesmo que inicialmente os créditos tenham
sido concedidos com outro fim, não requer a intervenção do ROC, porquanto considerando a
DRA em apreço que a mesma se trata de uma entrada em dinheiro, esta não se encontra
abrangida pelo disposto no artigo 28.º do CSC.

Neste sentido, estabelece também o número 20 da DRA 841 que “Não se está em presença de
uma efectiva entrada em espécie, quando se pretende realizar capital com créditos provenientes
de entradas em dinheiro que inicialmente tenham tido, ou não, objectivo diferente.”

7
Nesta sede, refira-se que não se compreende o conteúdo útil da expressão “ou não” já que se o
dinheiro entrou inicialmente para a sociedade tutelando uma entrada de capital (única
interpretação possível do vocábulo), logicamente a mesma nunca poderia ser considerada uma
entrada em espécie.

No entanto, ultrapassando este aspecto, prossegue o número 20 da citada DRA 841 “Esta
situação [aumento de capital por incorporação de créditos] não está abrangida pelo artigo 28.º
do CSC, mas no entanto e se tal for solicitado, poderá ser elaborada declaração comprovativa.
Tal declaração será elaborada pelo próprio revisor responsável pelo exame e certificação legal
das contas, não carecendo de verificação especial, uma vez que se insere no âmbito normal do
seu trabalho. Quando a sociedade não estiver sujeita a revisão legal das contas, o revisor
designado limitar-se-á a verificar os movimentos financeiros subjacentes e a elaborar aquela
declaração.”

Compreende-se a intenção do Conselho Directivo da Ordem dos ROC ao aprovar os citados


números no âmbito da DRA 841, i.e., tendo inicialmente entrado dinheiro para a sociedade,
poderá invocar-se que a materialidade/substância desse mesmo dinheiro permanece mesmo que
os créditos que lhe estejam subjacentes sejam convertidos em capital, pelo que a operação
resultaria, ultima ratio, numa entrada em dinheiro.

Contudo, salvo melhor opinião, não será essa a posição adoptada no presente estudo. A boa fé
pública e a protecção dos restantes sócios e credores exigem, na óptica ora defendida,
precisamente o contrário. De facto, conforme infra se procurará demonstrar, o decurso do tempo,
e bem assim a vida da sociedade, podem cabalmente afectar a substância do crédito, dificultando
a comprovação da sua existência, titularidade e mensuração.

Prefigure-se o caso em que o sócio/accionista concede à sociedade um crédito de € 10.000.


Posteriormente, durante um período de 5 anos, instala-se no país um regime de inflação de 10%
ao ano. Caso a sociedade efectue um aumento de capital por incorporação de créditos no final do
período de 5 anos, a sociedade estará a entregar acções no valor nominal de € 10.000 (quando o
valor real do crédito nessa data será substancialmente inferior). Ou, dito de outra forma, para
entregar as mesmas acções a um novo sócio que quisesse entrar para o capital da sociedade, esta
iria exigir uma entrada em dinheiro de € 15.000, ao passo que ao credor que viu o seu crédito
convertido foi, nessa data, somente exigido somente € 10.000.

8
O exemplo em apreço serve precisamente para demonstrar que o valor actual do dinheiro varia
em função do tempo e em particular das condições macroeconómicas registadas ao longo desse
período, razão pela qual não deverá sempre ser concedida uma total igualdade/paridade entre os
créditos convertidos em capital e as entradas em dinheiro, mesmo que aqueles tenham tido
inicialmente dinheiro por objecto.

Conforme refere, e.g. Raúl Ventura7, “Se as novas participações sociais forem atribuídas (é
indiferente que o sejam a novos sócios ou só a alguns dos antigos sócios) mediante uma entrada
de valor inferior ao real valor das participações, todos (ou alguns) sócios são prejudicados no
valor potencial das suas participações”.

Por outro lado, o que a lei claramente procura salvaguardar nas entradas em espécie é o princípio
"nemo judex in re sua", i. e., poderá haver um conflito de interesses se acaso a mesma entidade
que beneficiar da conversão de créditos for aferir a legalidade em termos técnicos da mesma,
razão pela qual deverá ser requerida a intervenção do ROC na validação da entrada em espécie.

Daí que, também ao abrigo de uma interpretação teleológica do conceito de entrada em espécie, e
das especiais exigências formais e materiais requeridas pelo legislador para este tipo de entradas,
se deva requerer a intervenção do ROC no âmbito da validação e efectivação do aumento de
capital. Aliás, dado a eventual degradação da qualidade do crédito e bem assim devido à sua
eventual frustração, facilmente se compreende que a lei preveja a obrigatoriedade de uma
intervenção externa. No entanto, não é só devido a uma interpretação teleológica do conceito que
a posição aqui preconizada deve ser defendida.

De facto, o legislador foi muito claro no âmbito da requerida intervenção do ROC na validação
das entradas de capital para as sociedades. Podendo optar por diversas formas de caracterizar o
conceito de entrada em espécie, o legislador foi bastante lacónico ao definir como tal todas as
entradas em bens diferentes de dinheiro (o que se compreende, conforme acima referido, dado a
facilidade de prova das entradas de dinheiro para a sociedade quando confrontada com outro tipo
de entradas).

Assim, uma vez que os créditos literalmente não serão dinheiro, também uma interpretação literal
do texto do artigo 28.º do CSC compelirá o intérprete a requerer a intervenção do ROC no

77
In “Alterações do contrato de sociedade”, 2.º Edição, Almedina, pag. 99

9
aumento de capital por incorporação de créditos.

Neste contexto, refira-se que uma interpretação restritiva do conceito de entradas em dinheiro (e,
por contraposição, um alargamento do escopo do conceito de entradas em espécie) poderá ser
especialmente ancorado nas eventuais cautelas que o legislador deposita neste tipo de entradas,
razão pela qual deverá ser afastada uma interpretação extensiva do conceito de entradas em
dinheiro como aquele que parece presidir à redacção da DRA 841.

A defesa de que a conversão de créditos em capital não corresponde a uma entrada em dinheiro
não ficará completa sem que se aborde o conceito de “dinheiro” para efeitos do artigo 28.º do
CSC.

Neste contexto, defende Pinto Furtado8 que “Entrada diferente de dinheiro – portanto, uma
entrada em espécie – é aquela que consiste em tudo o que não seja numerário (notas ou moedas
com curso legal) ou não possa ser directa e imediatamente convertido em dinheiro. Um crédito,
mesmo que seja sobre a própria sociedade – como um suprimento, por exemplo – ou uma
participação social constituem entrada em espécie”(sublinhado nosso).

No mesmo sentido, defende Raul Ventura9 que “Na prática e até mesmo em leis fala-se em
“conversão de créditos em capital”, maneira de descrever a operação que não afecta a natureza
jurídica desta, como aumento de capital por entradas em espécie, sujeito à respectiva regulação”
(sublinhado nosso).

Deste modo se comprova que a mais ilustre doutrina jus-comercial considera como uma entrada
em bens diferente de dinheiro a incorporação de créditos em capital, logo sujeitando a mesma aos
requisitos do artigo 28.º do CSC.

No que se refere à jurisprudência, esta não tem tido uma actividade muito prolífica na matéria em
apreço. Da pesquisa efectuada, o Acórdão que melhor se poderá aplicar à temática aqui debatida
foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a 29 de Junho de 200010.
Estando em questão uma conversão de créditos de terceiros perante a sociedade no âmbito de um
processo de reestruturação financeira – elaborado nos termos do Código dos Processos Especiais

8
In “Curso de Direito das Sociedades”, 5.º Edição, Almedina, pag. 96
9
In “Alterações do contrato de sociedade”, 2.º Edição, Almedina, pag. 141.
10
In www.dgsi.pt

10
de Recuperação da Empresa e de Falência – para a qual não foi obtido o relatório do ROC nos
termos do artigo 28.º do CSC, o STJ defendeu que o mesmo não seria necessário porquanto a
tutela dos credores estava assegurada uma vez que a referida conversão foi requerida por todos
eles, mas também porque a deliberação favorável àquela conversão tinha sido homologada pelo
tribunal a quo onde o processo de falência decorria.

Ora, uma interpretação a contrario do referido Acórdão, isto é, nos casos em que a tutela de
todos os credores não seja assegurada por não ter a conversão dos créditos sido por estes
requerida ou na qual não seja possível garantir a legalidade da deliberação de conversão mediante
a homologação da mesma perante um Tribunal, sugere que a intervenção do ROC será necessária
para conferir idoneidade e legalidade em todas as restantes situações de incorporação de créditos
no capital das sociedades. No entanto, aguarda-se ainda uma cabal posição da jurisprudência
nesta matéria, por forma a resolver as dúvidas que poderão resultar da interpretação aqui
defendida.

Por seu lado, também a Direcção-Geral dos Registos e do Notariado (“DGRN”) já teve
oportunidade de se debruçar sobre a presente matéria. No seu Parecer relativo ao Processo
n.º 64/93 (“Parecer n.º 64/93”), homologado por Despacho da Subdirectora-Geral datado de 4 de
Fevereiro de 1994 – Parecer exclusivamente dedicado à matéria em apreço – conclui-se que
“Quaisquer suprimentos, sejam ou não em dinheiro, feitos pelos sócios à sociedade, constituem
créditos destes sobre aquela. Sendo o aumento de capital realizado através de tais créditos - que
não são, portanto, o mesmo que dinheiro - é, consequentemente, necessário juntar o relatório do
revisor oficial de contas, sem o que não pode ser feito o registo definitivo do mencionado
aumento de capital” (sublinhado nosso).

Para a presente dissertação importa ainda referir que segundo o Parecer da DGRN, os créditos
como suprimentos, mesmo que “(…) tivessem sido realizados em dinheiro - não são exactamente
o mesmo que dinheiro.” Por outro lado, e adoptando uma perspectiva mais prática “Note-se ainda
que a lei exige que a deliberação do aumento e o título mencionem expressamente "a natureza"
das entradas (alínea d) do artº. 87º , nº. 1, do C.S.C.). Ora, nunca se poderia mencionar que as
realizadas através de suprimentos tinham a natureza de dinheiro. São, como se disse, coisa
diferente: créditos do sócio sobre a sociedade.”

11
Também com interesse para a discussão aqui abordada se revela o facto de o Recorrente no
referido processo referir que a conversão em questão deveria considerar-se uma entrada em
dinheiro uma vez que se os sócios quisessem, “(…) através de uma simples operação
contabilística se resolvia a questão: dando-se saída do montante correspondente aos
suprimentos e, noutra rubrica, na mesma data, a entrada do mesmo valor para a realização do
aumento de capital.”

Ao que o Parecer em apreço cabalmente responde afirmando que as entradas se realizaram com
suprimentos. “Com suprimentos, "tout court". Não com o prévio pagamento deles, feito pela
sociedade, e posterior realização de entradas, com esse mesmo dinheiro. Ora, a circunstância de
poder ou não ser feita qualquer outra operação contabilística nada pode demonstrar no sentido
de alterar ou invalidar a afirmação contida no título. De resto, a contabilização é que terá de ser
uma consequência técnica do que na verdade se passou. Não é nunca a realidade que se irá
moldar aos lançamentos contabilísticos. Seria um notório raciocínio de inversão, inadmissível
na apreciação do pedido de registo.”

Neste contexto, na óptica adoptada pela DGRN no presente Parecer, não subsistem dúvidas
quanto à necessidade de intervenção do ROC nos processos de aumento de capital por
incorporação de créditos.

Contudo, no Parecer relativo ao Processo nº 106/2002, terá sido adoptada uma óptica diversa.
Saliente-se, no entanto, que na nossa óptica, existem diversas razões para atribuir uma menor
acutilância ao disposto neste Parecer que ao disposto no Parecer anteriormente citado, a saber: i)
no texto do presente Parecer, ao contrário do Parecer n.º 63/94, não se encontra justificada a
posição adoptada; ii) a única referência a uma eventual justificação consta de uma nota de
rodapé; iii) na qual se qualifica a situação enquanto susceptível de “alguma delicadeza” e na qual
se refere ser “sustentável que nos encontramos [na conversão dos créditos em capital] perante
“nova entrada em espécie”; iv) Não se desenvolve na mesma nota qualquer asserção crítica da
DRA 841, limitando-se o autor do Parecer a remeter para esta.

Em face de todo o exposto, e não existindo qualquer referência à revogação do Parecer n.º 63/94,
ou bem assim, qualquer Parecer com carácter uniformizador da interpretação da DGNR quanto a
esta matéria, julgamos ser defensável que se pugne pela atribuição de maior relevância ao Parecer
n.º 64/93 que ao Parecer relativo ao Processo n.º 106/2002.

12
Por último, considerar o aumento de capital por incorporação de créditos como um aumento de
capital em dinheiro pode levantar situações que prejudiquem a normal vida societária, podendo
criar quezílias internas que venham a melindrar a salutar convivência entre os sócios.

Prefigure-se a situação em que, perante um crédito do credor X a sociedade propõe converter esse
crédito em capital. Caso a posição da Directriz seja adoptada, essa conversão terá de ser tratada
como uma entrada em dinheiro, em relação à qual, nos termos dos artigos 266.º (para as
sociedades por quotas) e 458.º (para as sociedades anónimas) os sócios possuem um direito de
preferência.

Assim, caso qualquer sócio o pretenda, poderá reivindicar o exercício desse direito, frustrando a
entrada em questão (conversão do crédito de terceiro), mantendo a sociedade o crédito para com
o credor X. Ora, tal poder-se-á revelar impeditivo da normal vida societária, frustrando a
actividade da sociedade em apreço que poderia ter todo o interesse em converter o crédito em
capital. O que não se verificaria se o aumento de capital em questão for considerado um aumento
em espécie, pois nestes a lei não prevê o referido direito de preferência.

Em face do exposto, e a título de súmula, preconiza-se na presente dissertação uma eventual


revisão da DRA 841 por forma a que se possa incluir o aumento de capital por incorporação de
créditos (mesmo que inicialmente este tenha tido dinheiro por objecto) no âmbito material das
entradas em espécie, sendo esta a melhor forma de afastar a dicotomia ínsita na referida DRA, e
bem assim, de afastar eventuais quezílias legais e doutrinais quer com a jurisprudência, quer com
a doutrina defensora da posição ora preconizada.

Por outro lado, a DRA 841, ao compelir o ROC que intervenha num aumento de capital por
incorporação de créditos a efectuar uma mera declaração (conferir Modelo 3 da DRA 841),
segundo a qual meramente ateste a “verificação dos movimentos financeiros subjacentes” (cfr.
parte final do número 20 da DRA 841) e não um verdadeiro relatório relativo ao aumento de
capital em espécie, com todos os requisitos que o número 3 do artigo 28.º do CSC prescreve,
poderá vir a sujeitar a responsabilidade civil ou a responsabilidade tributária o ROC que assim
actue.

A responsabilidade civil poderá ser provocada pela demanda da sociedade que veja anulada a
deliberação de aumento de capital por incorporação de créditos por a mesma não cumprir com os

13
critérios do citado artigo 28.º do CSC. A responsabilidade tributária poderá resultar do disposto
no n.º 2 do artigo 24.º da Lei Geral Tributária, uma vez que, conforme infra será demonstrado, os
aumentos de capital em dinheiro (como será o caso da incorporação de créditos que inicialmente
tenham tido dinheiro por objecto à luz da Directriz acima citada) não estarão sujeitos a Imposto
do Selo, ao passo que os aumentos de capital em espécie estarão sujeitos ao referido Imposto.
Face a tudo o acima exposto, urge efectuar um verdadeiro e profundo debate sobre a matéria em
apreço e, caso necessário, proceder à revisão das normas controvertidas.

5. A TRIBUTAÇÃO DO AUMENTO DE CAPITAL

Com as alterações introduzidas no Código do Imposto do Selo pela Lei do Orçamento de Estado
para 2008, na sequência da decisão do Tribunal de Justiça da Comunidades Europeias (“TJCE”)
no Caso Optimus11, a questão do aumento de capital por incorporação de créditos ser considerado
um aumento de capital em espécie ou em dinheiro recebeu especial relevância. Tal resulta do
facto de, nos termos da Verba 26.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo, só serem sujeitos a
tributação em sede deste imposto os aumentos de capital realizados em forma diversa de
numerário.

Em face da posição adoptada na presente dissertação, os aumentos de capital por incorporação de


créditos estariam sujeitos a Imposto do Selo, aplicando-se uma taxa de 0,4% sobre o valor real
dos bens entregues, ao passo que caso se entendesse que essa operação seria considerada como
um aumento de capital em dinheiro (dada a identidade material com o vocábulo numerário
preconizado na DRA), a operação não estaria sujeita a Imposto do Selo.

Pelo que, dadas as funções desempenhadas pelo ROC, a questão em apreço reveste especial
importância, sob pena de, caso a Administração Fiscal não concorde com a posição adoptada na
DRA 841, existir imposto em falta – caso o Imposto do Selo não seja liquidado no aumento de
capital –, ao qual acrescerão as coimas e os devidos juros compensatórios.

Ressalve-se, neste contexto, que à data da aprovação da DRA 841 esta questão não se colocava
uma vez que ambos os tipos de aumento de capital (em espécie ou numerário) estavam sujeitos a
tributação em sede de Imposto do Selo. Em face do exposto, será esta uma outra razão para
eventualmente se suscitar a revisão da DRA em apreço.

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Cfr. Acórdão do TJCE relativo ao Processo C-366/05.

14
6. CONCLUSÃO

No início do presente trabalho ficou estabelecido o objectivo de elaborar uma dissertação crítica
da temática do aumento de capital por incorporação de créditos, prestando especial atenção à
regulação da mesma efectuada por parte da DRA 841.

Partindo de uma abordagem sistemática do tema, procurando não descurar a teleologia das
normas analisadas, procurámos perceber a razão de uma parte da doutrina, liderada pela referida
DRA, entender que, desde que inicialmente concedidos em dinheiro, a conversão de créditos em
capital deveria ser considerada uma entrada em dinheiro.

No entanto, após uma cuidada análise da perspectiva da doutrina maioritária, nomeadamente da


doutrina jus-comercial e, se bem ajuizámos, da DGRN e da jurisprudência, considerámos que o
critério a adoptar deveria ir no sentido inverso, i.e., no sentido de considerar os aumentos de
capital por incorporação de créditos enquanto uma entrada em espécie, subsequentemente,
sujeitando os mesmos ao escrutínio de um Revisor Oficial de Contas sem interesses na sociedade.

Tal posição, conforme detalhadamente se aprofundou supra, radica no facto de uma interpretação
efectuada com base nos elementos literal e teleológico impelir a uma qualificação enquanto bens
diferentes de dinheiro todos aqueles que não possam directa e irrefragavelmente ser convertidos
em numerário.

Adicionalmente, a intervenção do ROC no processo em apreço, nos termos requeridos pelo artigo
28.º do CSC, será também a posição que defende uma maior protecção de todos os sujeitos
envolvidos no aumento de capital, visando assegurar uma tutela mais completa e justa dos
intervenientes em todo o processo, subsequentemente dos credores da sociedade.

Por último, sendo a matéria em apreço consensualmente considerada como controvertida, e uma
vez que a posição adoptada pela DRA 841 poderá implicar responsabilidade civil e/ou
responsabilidade tributária, adoptar a posição contrária à mesma será um imperativo de uma
prudente conduta.

Em resumo, esperemos que as razões supra aduzidas contribuam para suscitar uma eventual
discussão da matéria em apreço, que ultima ratio, poderá levar à revisão da DRA 841 no sentido
acima preconizado.

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ANEXO - BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE CARDOSO CORREIA DA MOTA PINTO, Do Contrato de Suprimento: o


financiamento da sociedade entre o capital próprio e o capital alheio, Almedina, 2002;

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, Almedina, 3.º Edição, 2008;

JOAQUIM NEVES AUGUSTO, A prática dos processos especiais de recuperação da empresa e de


falência, E.L.C.L.A., 1996;

JORGE HENRIQUE PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 5.º Edição, Almedina;

JORGE HENRIQUE PINTO FURTADO, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.º Edição,
Petrony;

JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Suprimentos, In Estudos em Homenagem ao Prof.


Doutor Raúl Ventura Volume II - Direito Comercial, Coimbra, 2003;

JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I e II, Almedina, 3.º
Edição

JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Comercial, Vol. IV, Lisboa, 2000;

JOSÉ MARIA MENDES, Sociedades por quotas e anónimas: aumento e redução de capital,
cessão, divisão e unificação de quotas, fusão mudança de sede e transformação: guia prático, 7.º
Edição, Almedina;

LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de


Empresas Anotado, Almedina, 2008;

LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2000;
PAUL MARIA, Des Modifications du Capital Social au cours de la vie sociale de les sociétés
commerciales par actions, Arthur Rousseau, 1913;

RAÚL VENTURA, Alterações do Contrato de Sociedade, Comentário ao Código das Sociedades


Comerciais, Almedina, 2.º Edição;

RAÚL VENTURA, Sociedade por Quotas, Vol. II, Comentário ao Código das Sociedades
Comerciais, Almedina;

SÓNIA SANTOS VIANA, A Empresa no direito da recuperação da empresa e de falência em


Portugal, Relatório de Mestrado em Ciências Jurídicas, 2002;

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