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Universidade de Brasília

Departamento de Matemática
Prof. Celius A. Magalhães

Cálculo II
Notas da Aula 14 ∗

Sistemas de Equações Diferenciais Lineares de 1a Ordem


Além de seu interesse intrínseco, os sistemas de equações de 1a ordem estão estreitamente ligados às
equações de ordem superior. Assim é que uma equação de 2a ordem pode ser estudada via sistema de 1a
ordem, e vise-versa. Os próximos exemplos ilustram como transitar entre esses dois problemas.

Primeiro Exemplo
Considere duas cidades próximas C e D onde, além do crescimento natural, tem um fluxo migratório
entre elas. Suponha que o crescimento natural para as duas cidades seja de 5% ao ano, que o fluxo de C
para D seja de 2% e o de D para C seja de 1% ao ano. Veja o diagrama a seguir. É claro que o crescimento
da população de uma cidade interfere no crescimento da outra, e essa é a ideia central dos sistemas.

Em termos de um modelo, indique por t o tempo em anos e por x(t)


e y(t) as populações das cidades C e D no tempo t. De acordo com
as hipóteses, a taxa de variação x′ (t) é dada por C
1%
5 2 1 3 1 5%
x′ (t) = x(t) − x(t) + y(t) = x(t) + y(t)
100 100 100 100 100 5%
2%
e depende tanto de x(t) quanto de y(t). Analogamente, D

2 5 1 2 4
y′ (t) = x(t) + y(t) − y(t) = x(t) + y(t)
100 100 100 100 100

e portanto y′ (t) também depende de x(t) e de y(t). Deve-se então resolver simultaneamente as equações

3 1


x (t) = 100 x(t) + 100 y(t)


(1)
y′ (t) = 2 x(t) + 4 y(t)


100 100
que são ditas um sistema de equações diferenciais lineares de 1a ordem.
De início, não parece que o sistema (1) possa ser estudado por meio de uma única equação de 2a
ordem. E, reciprocamente, não é óbvio que uma equação de 2a ordem possa ser transformada em um
sitema semelhante a (1). Mas, como visto a seguir, é possivel transitar entre esses dois problemas.

Método de Substituição
Considere primeiro a questão de reduzir (1) a uma única equação de 2a ordem. Para isso, deve-se usar o
método da substituição, semelhante ao usado para resolver sistemas de equações algébricas.
Com efeito, isolando y(t) da primeira equação em (1) obtém-se y(t) = 100x′ (t) − 3x(t) e, derivando,
y′ (t) = 100x′′ (t) − 3x′ (t). Substituindo essas expressões na segunda equação de (1), segue-se que

2 4
100x′′ (t) − 3x′ (t) = y′ (t) = x(t) + y(t)
100 100
2 4
100x′ (t) − 3x(t)

= x(t) +
100 100
10
=− x(t) + 4x′ (t)
100
∗ Texto digitado e diagramado por Henrique Reis a partir de anotações de sala de Olaia Diniz
e, portanto, x(t) é solução da equação de 2a ordem

10
100x′′ (t) − 7x′ (t) + x(t) = 0 (2)
100
Pronto! O estudo do sistema (1) fica reduzido ao estudo da equação (2), que é bem conhecida. Com
10 2 5
efeito, o polinômio característico de (2) é p(r) = 100r2 − 7r + 100 , cujas raízes são r1 = 100 e r2 = 100 .
Daí segue-se que (2) possui o sistema fundamental de soluções {x1 (t), x2 (t)}, onde

x1 (t) = er1t e x2 (t) = er2t

e a solução geral daquela equação é dada por x(t) = c1 x1 (t) + c2 x2 (t).


Voltanto ao sistema (1), da igualdade y(t) = 100x′ (t) − 3x(t) e da expressão de x(t), segue-se que

y(t) = 100x′ (t) − 3x(t) = 100(c1 x′1 (t) + c2 x′2 (t)) − 3(c1 x1 (t) + c2 x2 (t))
= 100(c1 r1 x1 (t) + c2 r2 x2 (t)) − 3(c1 x1 (t) + c2 x2 (t))
= c1 (100r1 − 3)x1 (t) + c2 (100r2 − 3)x2 (t)
= c1 (−x1 (t)) + c2 (2x2 (t))
2 5
onde foram usadas as expressões de r1 = 100 e r2 = 100 . Finalmente, denotanto por

y1 (t) = −x1 (t) = − er1t e y2 (t) = 2x2 (t) = 2 er2t

a solução geral do sistema (1) é dada por


(
x(t) = c1 x1 (t) + c2 x2 (t)
(3)
y(t) = c1 y1 (t) + c2 y2 (t)

Vale um comentário sobre como essas soluções se comportam no longo prazo. É certo que as po-
pulações estão crescendo, mas o fluxo entre elas tende a se estabilizar, no sentido de que o número de
pessoas que vão de C para D tende a ser o mesmo número de pessoas que vão de D para C. Ora! como o
fluxo de C para D é de 2% e o fluxo de D para C é de 1%, um fluxo será igual ao outro se a população de
D for o dobro da de C. Assim, no longo prazo, espera-se que a população de D seja duas vezes a de C.
E, com efeito, usando a solução geral obtida acima, segue-se que

y(t) c1 y1 (t) + c2 y2 (t) −c1 er1t +c2 2 er2t −c1 e(r1 −r2 )t +c2 2
= = =
x(t) c1 x1 (t) + c2 x2 (t) c1 er1t +c2 er2t c1 e(r1 −r2 )t +c2

onde r1 − r2 < 0, e, portanto, limt→∞ e(r1 −r2 )t = 0. Assim, pasanto o limite com t → ∞ segue-se que

y(t) −c1 e(r1 −r2 )t +c2 2


lim = lim =2
t→∞ x(t) t→∞ c1 e(r1 −r2 )t +c2

o que significa que, no longo prazo, y(t) ≈ 2x(t), como esperado!

Versão Matricial
O problema pode ser descrito com a notação de matrizes. Para isso, denote por
3 1
! !
x(t)
z(t) = e A = 100 2
100
4
y(t) 100 100

Assim, z(t) é a matriz coluna das populações das cidades C e D, e A é a matriz dos coeficientes do
sistema (1). Usando a multiplicação de matrizes, o sistema (1) pode ser escrito como
3 1 3 1
! ! ! !
′ x′ (t) 100 x(t) + 100 y(t) 100 100 x(t)
z (t) = ′ = 2 4 = 2 4 = Az(t)
y (t) 100 x(t) + 100 y(t) 100 100 y(t)

Cálculo II Notas da Aula 14 2/5


A notação de matrizes, com z′ (t) = Az(t), é uma forma bem mais concisa de escrever o sitema (1), e
só isso já é uma boa vantagem do uso das matrizes.
E as soluções obtidas em (3), como descreve-las na forma de matrizes? Fácil! Usando as expressões
de x1 (t) = er1t , x2 (t) = er2t , y1 (t) = − er1t e y2 (t) = 2 er2t obtidas acima, tem-se que
! ! ! !
x(t) c1 x1 (t) + c2 x2 (t) x1 (t) x2 (t)
z(t) = = = c1 + c2
y(t) c1 y1 (t) + c2 y2 (t) y1 (t) y2 (t)
! ! ! !
er1t er2t 1 r1 t 1 r2 t
= c1 + c2 = c1 e +c2 e
− er1t 2 e r2 t −1 2

= c1 v1 er1t +c2 v2 er2t

1 1
onde foi usada a notação v1 = e v2 = . Denotanto ainda por
 
−1 2

1 r1 t 1 r2 t
   
r1 t r2 t
z1 (t) = v1 e = e e z2 (t) = v2 e = e
−1 2

a solução geral em (3) escreve-se, também de forma mais concisa, como

z(t) = c1 z1 (t) + c2 z2 (t)

Ótimo. O problema e a solução já foram traduzidos para a linguagem das matrizes. O próximo passo
é esclarecer a relação entre o sistema z′ (t) = Az(t) e as soluções z1 (t) e z2 (t). Nesse sentido, é claro que
os número r1 e r2 e os vetores v1 e v2 foram obtidos a partir da matriz A, mas de que maneira? Bem,
2
lembrando que r1 = 100 e calculando, obtém-se

3 1 3 1 2
! ! ! !
1 − 100 2 1

100 100 100 100
Av1 = 2 4
= 2 4
= = = r1 v1
100 100
−1 100 − 100 −2
100
100 −1

Surpresa! r1 é um autovalor e v1 um autovetor da matriz A. Essa é uma descoberta interessante, pois


r1 e v1 foram encontrados em momentos diferentes, sem que houvesse uma relação aparente entre eles.
Muito bom. Para o vetor v2 as contas são análogas, mas é tão interessante que vale repetir:
3 1 3 2 5
!  ! ! !
100 100 1 100 + 100 100 5 1
Av2 = 2 4 = 2 8 = 10 = = r2 v2
100 100
2 100 + 100 100
100 2

Agora fica claro a relação do sistema z′ (t) = Az(t) com as soluções z1 (t) e z2 (t). Com efeito, como
z1 (t) = v1 er1t e Av1 = r1 v1 , segue-se que

z′1 (t) = r1 v1 er1t = (Av1 ) er1t = A(v1 er1t ) = Az1 (t)

e analogamente para z2 (t). Essa notação de matrizes é mesmo poderosa!


Resumindo, a solução do sitema (1) pelo método da substituição resultou na solução geral em (3);
traduzindo para a linguagem de matrizes, descobriu-se que a solução geral é uma combinação linear das
soluções z1 (t) = v1 er1t e z2 (t) = v2 er2t , onde r1 e r2 são autovalores e v1 e v2 são autovetores associados.

Método dos Autovalores


Esse resumo sugere resolver o sistema (1) usando apenas a linguagem das matrizes. Nesse sentido, uma
α
boa tentativa é obter uma solução para o sistema z′ (t) = Az(t) na forma z(t) = v ert , onde v = β ∈ R2
e r ∈ R devem ser escolhidos apropriadamente. Então,

z′ (t) = rv ert e Az(t) = (Av) ert

e, para que z′ (t) = Az(t), deve-se ter Av = rv, isto é, r deve ser um autovalor e v um autovetor associado.

Cálculo II Notas da Aula 14 3/5


Já foi visto em aulas anteriores que os autovalores são as raízes do polinômio

det(A − rI) = r2 − tr(A)r + det A

onde I = 10 é a matriz identidade, tr(A) 


é o traçode A (a soma dos elementos da diagonal) e det A é o

01
3 1
7 10
determinante de A. No caso da matriz A = 100 100
2 4
o polinômio é p(r) = r2 − 100 r + 100 2 , com raízes
100 100
2 5
r1 = 100 e r2 = (como esperado!).
100
α
O autovetor v1 = β é obtido como uma solução do sistema
3 2 1 1 1
! ! ! ! !
100 − 100 100 α 100 100 α 0
(A − r1 I)v1 = 2 4 2 = 2 2 =
100 100 − 100 β 100 100 β 0

e pode-se escolher v1 = −11 . Analogamente, v2 = 12 é um autovetor associado ao autovalor r2 .


 

A partir dos autovalores e autovetores obtém-se as soluções z1 (t) = v1 er1t e z2 (t) = v2 er2t , como
visto anteriormente. Além disso, pelo princípio da superposição, as combinações lineares

z(t) = c1 z1 (t) + c2 z2 (t) (4)

são também soluções do sistema. De maneira mais explicita, e usando a notação

1 r1 t 1 r2 t
       
r1 t x1 (t) r2 t x2 (t)
z1 (t) = v1 e = e = e z2 (t) = v2 e = e =
−1 y1 (t) 2 y2 (t)
 
x(t)
as soluções z(t) = y(t) em (4) escrevem-se como
       
x(t) x1 (t) x2 (t) c1 x1 (t) + c2 x2 (t)
= c1 + c2 = (5)
y(t) y1 (t) y2 (t) c1 y1 (t) + c2 y2 (t)
Essas são, de fato, todas as soluções do sistem (1), o que pode ser concluído a partir do método da
substituição visto acima. Mas como chegar a essa conclusão usando apenas a notação de matrizes?
Essa questão será abordada com detalhes mais adiante. Mas já se pode mostrar que as soluções em
(4) (ou em (5)) são suficientes para resolver o PVI
(
z′ (t) = Az(t)
x0  (6)
z(0) = y0

para qualquer condição inicial z(0) = ( xy00 ). Com efeito, as combinações lineares em (5) já são soluções
do sistema em (6), e basta então obter constantes c1 e c2 que sejam soluções do sistema
     
x(0) c1 x1 (0) + c2 x2 (0) x
z(0) = = = 0 (7)
y(0) c1 y1 (0) + c2 y2 (0) y0
 
x (0) x (0)
Ora! O determinante det y11 (0) y22 (0) = det −11 12 = 3 é não nulo, e, portanto, o sistema acima tem


solução para quaisquer x0 e y0 dados. Isso mostra que o PVI tem solução na forma (4) (ou (5)) para
x0
qualquer condição inicial
 z(0) = (y0 ).
x (t) x (t)
O determinante det y11 (t) y22 (t) é dito o wronskiano das soluções z1 (t) e z2 (t). Como no caso de
equações de 2a ordem, o wronskiano desempenha um papel central também no estudo dos sistemas de
equações diferenciais lineares de 1a ordem.
O próximo exemplo ilustra como resolver uma equação de 2a ordem via sistema de 1a ordem.
 Exemplo 1 Obtenha a soluão do PVI a seguir via sistema de 1a ordem.
(
x′′ (t) + 4x′ (t) + 3x(t) = 0
(8)
x(0) = 1, x′ (0) = 1


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Solução. A equação pode ser transformada em um sistema de 1a ordem introduzindo a nova variável
y(t) = x′ (t). Com efeito, da equação segue-se que y′ (t) = x′′ (t) = −3x(t) − 4x′ (t) = −3x(t) − 4y(t).
Assim, a equação é equivalente ao sistema
(
x′ (t) = y(t)

y (t) = −3x(t) − 4y(t)

Introduzindo a notação ! !
x(t) 0 1
z(t) = e A=
y(t) −3 −4
o PVI é equivalente a 
z′ (t) = Az(t)
  (9)
z(0) = 1
1

Como sugerido no exemplo anterior, tenta-se solução na forma z(t) = v ert , e obtém-se que r deve ser
um autovalor e v um autovetor associado. Os autovalores são as raízes do polinômio

det(A − rI) = r2 − tr(A)r + det A = r2 + 4r + 3

e são dados por r1 = −1 e r2 = −3. O autovalor v1 = αβ associado a r1 é uma solução do sitema




! ! !
1 1 α 0
(A − r1 I)v1 = =
−3 −3 β 0

1 1
e pode-se escolher v1 = . Analogamente, v2 = é um autovetor associado a r2 . As soluções
 
−1 −3
correspondentes são

1 −t 1 −3t
       
r1 t x1 (t) r2 t x2 (t)
z1 (t) = v1 e = e = e z2 (t) = v2 e = e =
−1 y1 (t) −3 y2 (t)

e, por superposição, z(t) = c1 z1 (t) + c2 z2 (t) é também solução para quaisquer números c1 e c2 .
Resta apenas a condição inicial. Para isso, c1 e c2 devem ser soluções do sistema
! ! ! ! ! !
c1 x1 (0) + c2 x2 (0) x1 (0) x2 (0) c1 1 1 c1 1
z(0) = = = =
c1 y1 (0) + c2 y2 (0) y1 (0) y2 (0) c2 −1 −3 c2 1
 x (0) x (0) 
1 1
 
1 2
Como o wronskiano det = det −1 −3 = −2 é não nulo, o sistema pode ser resolvido
y1 (0) y2 (0)
pela regra de Crames, e as soluções são
! !
1 1 1 1 1 1
c1 = det = 2 e c2 = det = −1
−2 1 −3 −2 −1 1

Assim, a solução do PVI em (9) é dada por

1 −t 1 −3t 2 e−t − e−3t


     
z(t) = 2z1 (t) − z2 (t) = 2 e − e =
−1 −3 −2 e−t +3 e−3t

Em particular, x(t) = 2 e−t − e−3t é a solução do PVI em (8), e a segunda coordenada


y(t) = −2 e−t +3 e−3t é apenas a derivada y(t) = x′ (t). 

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