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Dayet
EXERCÍCIOS
PREPARATÓRIOS
PARA A CONSAGRAÇÃO DE
SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT
1ª edição
Brasília – DF
2012
© 2012 Editora Pinus
www.editorapinus.com.br
Capa e diagramação:
rosalis.com.br
Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
A
Consagração de São Luís Maria de Montfort é coisa tão emi-
nente e tão perfeita que todas as pessoas atraídas a ela come-
çam a experimentar a necessidade de uma séria e sólida pre-
paração. Não pode ser suficiente, de fato, exprimir num determinado
dia essa total doação de si mesmo, por mais sinceras que possam
ser, então, as disposições de cada um. O essencial será “entrar em seu
espírito, que é o de tornar uma alma interiormente dependente e escrava da San-
tíssima Virgem e de Jesus por meio dela”. (Segredo de Maria, n. 44)
Eis por que nosso Santo não hesitou em pedir a todos os que
desejam engajar-se nesse caminho de perfeição um trabalho ascético
claramente delimitado. “Depois de ter empregado, diz ele, pelo menos doze
dias para ESVAZIAR-SE do espírito do mundo, contrário ao de Jesus Cristo,
empregarão três semanas para ENCHER-SE de Jesus Cristo, por meio da
Santíssima Virgem. Eis a ordem que poderão observar:
Durante a primeira semana, empregarão todas as suas orações e
ações de piedade para pedir o conhecimento de si mesmos e a contrição de
seus pecados; e farão tudo em espírito de humildade...
Durante a segunda semana, dedicar-se-ão, em todas as suas ora-
ções e obras de cada dia, a conhecer a Santíssima Virgem. Pedirão esse
conhecimento ao Espírito Santo...
Empregarão a terceira semana para conhecer Jesus Cristo...
Ao fim dessas três semanas, confessar-se-ão e comungarão,
visando doar-se a Jesus Cristo, na qualidade de escravos de amor, pelas
mãos de Maria. E, depois da comunhão, recitarão a fórmula de sua
consagração... Importa que a escrevam ou a façam escrever, se ela
não estiver impressa, e que a assinem no mesmo dia em que a fize-
rem”. (Verdadeira Devoção, n. 227-231.)
Como vemos, esses Exercícios preparatórios estão divididos em
quatro períodos de diferente duração: um primeiro período de doze dias e
outros três períodos de seis dias cada um, denominados como “semanas”
por nosso santo; o que leva a uma duração total da preparação de exata-
mente trinta dias.
Que essas três semanas sejam cada uma de seis dias somente, indi-
ca-o expressamente o Padre de Montfort, que escreve, a propósito
da semana consagrada ao conhecimento de si mesmo: “Durante os seis
dias dessa semana...” (n. 228.)
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6 J. M. Dayet
Eis o plano geral dos Exercícios de São Luís Maria de Montfort.
E nada há que deva ser mudado. Ele mesmo indicou sua ordem e
fixou sua duração. Teve o cuidado de determinar, para cada período, os
temas de meditação, assim como as orações particulares que lhes são
próprias. “Poder-se-á, anota ele, ler e meditar sobre o que dissemos
a respeito do conhecimento de si mesmo, da Santa Virgem, de Nosso
Senhor. Recitar-se-ão todos os dias as ladainhas do Espírito Santo, a Ave
Maris Stella...”, etc... (n. 228-230).
No espírito de nosso santo, esses diversos períodos preparatórios
devem revestir o caráter de verdadeiros Exercícios espirituais, isto é,
como o nome indica, as almas formadas nessa escola devem sujei-
tar-se à sua disciplina, o que parece indubitável quando se leem as
outras linhas do Padre de Montfort, no fim do capítulo que explica a
preparação: “Pelo menos uma vez por ano, no mesmo dia, renovarão a mesma
consagração, observando as mesmas práticas durante três semanas.” (n. 233).
Será preciso, pois, durante a vida inteira, exercitar-se novamente a
cada ano, durante três semanas, isto é, repetir os mesmos atos, retomar
o treinamento, adquirir uma docilidade maior de alma para se deixar
instruir pelo espírito de Maria, de maneira a não ter “vida interior e
operação espiritual senão na dependência dela”. (Segredo, n. 46.)
E se Montfort não exige mais a repetição dos doze dias preli-
minares, é porque supõe as almas inteiramente consagradas a Maria
bem afastadas, desde então, dos caminhos do pecado, e bem avança-
das na via da união. Supõe-nas plenamente introduzidas no espírito de
sua consagração, praticamente dependentes e escravas da Santíssima
Virgem, e de Jesus Cristo por meio dela.
Nada nos impedirá, contudo, de voltar, de tempos em tempos, ao
trabalho dos doze dias preliminares. Ganharemos sempre com isso,
ao menos avivando, intensificando em nossos corações esse ódio
pelo espírito do mundo, que deve marcar fortemente todos os que
pertencem à raça da irreconciliável inimiga do demônio. E bem-aven-
turados seremos, se nossa consciência nos apresentar o testemunho
de não ter de modo algum falhado quanto a esse ponto capital.
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8 J. M. Dayet
É com essa Sabedoria soberana que desejamos contrair uma
Aliança infinita. Que esse pensamento eleve nossa alma, desde o
começo, bem acima de si mesma, segundo o conselho que nos dá o
autor do Eclesiástico, quando escreveu, falando da Sabedoria:
É
um princípio admitido por todos os mestres da vida espiritual
que a alma que deseja se elevar, por uma generosa corres-
pondência à graça, até a perfeita união com o Esposo celeste,
deve primeiro preparar para o Amado, em seu interior, uma morada
digna do Hóspede divino. Importa-lhe, pois, começar por afastar os
obstáculos que se opõem a essa união.
O Doutor Angélico nos ensina, de fato, que a dedicação principal
da alma que se inicia na caridade deve ser em afastar-se dos caminhos
do pecado e resistir às cobiças maliciosas que vêm incessantemente
contrariar seu movimento em direção a Deus.2 E é nisso que con-
siste o trabalho particular da fase purgativa, assim denominada porque
tende principalmente a purificar nosso coração do pecado e a curá-lo
de todas as enfermidades espirituais, contraídas nas relações com as
criaturas em detrimento das leis de Deus.
Ora, é bem a esse trabalho de purificação interior que tende radi-
calmente São Luís Maria de Montfort, quando começa por exigir das
almas que querem, como ele, consagrar-se inteiramente a Maria, o esva-
ziamento completo, nelas, do espírito do mundo. Esse é o primeiro
trabalho imposto, ao qual elas deverão se dedicar durante pelo menos
doze dias, desde o começo dos Exercícios. Esse não é ainda senão um
trabalho preliminar e como que uma primeira etapa a ultrapassar no
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sedução. Operar em si o esvaziamento do espírito do mundo será,
pois, banir para sempre de seu interior esse amor pelos prazeres sen-
suais, pelas riquezas e honras, preconizado como uma sabedoria, para
abraçar o espírito do Evangelho, que é um espírito de penitência, de
desapego e de humildade.
Isso significará, por consequência, libertar-se da tirania do pecado,
e retirar, assim, o primeiro e principal obstáculo à graça e à vida de
união. Significará, ao mesmo tempo, decretar e fixar sua escolha entre
o Céu ou o inferno, entre o Cristo ou Satanás, entre a escravidão de
amor de um ou a escravidão de ódio do outro; e isto para obedecer a
esta palavra do Salvador: Nemo potest duobus dominis servire, “ninguém
pode servir a dois senhores”. (Mt 6, 24.) “Ou importa que os cristãos
sejam escravos do diabo, diz Montfort, ou que sejam escravos de
Jesus Cristo.” (V. D., n. 73.)
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8º dia: Uma oração contínua.
9º dia: Uma mortificação universal.
10º dia: Uma verdadeira Devoção a Maria.
Sendo esse quarto meio o maior, o mais poderoso de todos, insis-
tiremos – sempre com Montfort – sobre essa inimizade irreconcili-
ável, desejada por Deus, entre Maria e o príncipe do mundo; a qual
deve se reproduzir em todos os fiéis escravos da Virgem. Essas serão
nossas duas últimas meditações do período preliminar:
11º dia: A inimizade entre Satanás e Maria.
12º dia: A inimizade entre a raça de Satanás e a descendência de Maria.
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Eis o trabalho de nossa purificação primeira. E essa purificação
deve ser radical. A tendência mais funesta para a alma seria querer
conciliar entre si as coisas mais inconciliáveis: acomodar Jesus Cristo
ao mundo e engajar-se em um caminho de perfeição conservando
sempre alguma afeição pelo século. Não há acordo possível. A esco-
lha da alma deve ser definitiva, sua eleição deve ser irrevogável.
Assim, desde o fim dos doze dias preliminares, podemos con-
siderar nossa Consagração como uma perfeita renovação das pro-
messas do batismo, segundo a vontade expressa de São Luís Maria
de Montfort. E seremos sinceros ao dizer à Santa Virgem: “Renovo e
ratifico hoje, entre vossas mãos, os votos de meu batismo. Renuncio para sempre a
Satanás, às suas pompas (suas seduções) e às suas obras; e entrego-me inteira-
mente a Jesus Cristo, a sabedoria encarnada...”
Assim deve ser, como no dia do batismo, o esvaziamento do espí-
rito do mundo no coração que se consagra a Maria. E esse trabalho
– repitamo-lo – é indispensável para o valor e a fecundidade de nossa
Doação. A Sabedoria divina não habita em um coração escravo do
pecado. É preciso ser puro, ou ao menos purificado desse espírito do
mundo, oposto ao de Jesus Cristo, antes de ser conformado a esse
MOLDE virginal no qual se preparam os eleitos.4
4 O Pe. de Montfort não indica orações especiais para os doze dias prelimi-
nares. Poder-se-á recitar, todas as manhãs, o Veni Creator Spiritus e a Ave
Maris Stella.
“Meus filhinhos, dizia o apóstolo São João, não ameis o mundo nem
as coisas do mundo, porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne,
concupiscência dos olhos e soberba da vida.” (1Jo 2, 15-16.)
Detenhamo-nos hoje na primeira dessas indicações: o amor
pelos prazeres da carne. Esse é o ponto de partida da corrupção do
mundo, o que, à primeira vista, manifesta seu espírito. É invariavel-
mente pelos prazeres dos sentidos que ele começa a retirar as almas
dos benefícios do mandamento divino.
Consideraremos as obras e as máximas dos que são instruídos por
esse espírito, com o único fim de nos desviar dele para sempre.
Ó Maria, vós que a Igreja denomina a Mãe castíssima – Mater
castissima –, ajudai-nos a refletir sobre a falsa conduta dos mundanos,
escravos da concupiscência carnal. No momento da morte, ser-lhes-á
forçoso reconhecer que se enganaram: Ergo erravimus. (Sab 5, 6.)
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as quais nosso inimigo nos combate.”5 Desde a decadência de nossa
natureza, a carne cobiça incessantemente contra o espírito; uma lei
imperiosa de rebelião se faz sentir em nossos membros, e as solici-
tações do corpo oprimem a alma com tamanha tirania que ouvimos
até mesmo os santos exclamarem gemendo, segundo o apóstolo: Quis
me liberabit de corpore mortis hujus? (Rom 7, 24.) Quem nos livrará desse
corpo mortal cujo peso irrita nossa vontade e nos arrasta, como contra
nosso desejo, na direção do mal? Quem nos libertará de sua tirania?
A graça de nosso divino Salvador opera nas almas justas o pre-
lúdio dessa libertação, mas importa-lhes lutar até o livramento com-
pleto; e essa luta íntima, que se transforma em vitória, se torna dis-
tinção para a coroa eterna.
O mundo, ao contrário, inimigo da graça do Cristo, rejeita essa
luta. Tirando sua força da decadência de nossa natureza, ele conduz
seus adeptos ao amor desenfreado por todos os prazeres do corpo,
fascina-os pela reverberação de suas gozações, que ele sabe multipli-
car e variar com arte. Romances, espetáculos, cinemas, modas cor-
ruptoras, festins opulentos, danças sem pudor, perfumes anestesian-
tes, invenções refinadas, tudo lhe serve de alimento. Ele apresenta
a luxúria a todos os sentidos, projetando sobre o mal as aparências
mais sedutoras. Sob o encanto dessas aparências, não quer senão
gozar, gozar de tudo, gozar sempre; é a magia do mundo.
As almas, carregadas com ele nesse turbilhão do prazer, apegam-se
ao corpo e a todas as suas exigências. Longe de se libertarem dele, mer-
gulham mais nesse estado de servidão no qual o pecado nos estabelece
desde nosso nascimento; elas se entregam a todas as baixezas, a todos
os excessos, a todas as desordens; e assim, se constituem escravas dos
hábitos vergonhosos que essas desordens engendram.
Então, nosso corpo se torna, realmente, “essa carne tão constan-
temente e severamente condenada na Escritura, essa carne que não
é mais o corpo precisamente, mas o que o degrada, o corrompe, o
sujeita e o perde; essa carne que é a inimiga armada do espírito e a
contradição viva da graça; essa carne que é em nós o anjo de Satanás
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Não permitais que esses prazeres nos tomem e nos cativem;
fazei-nos viver mais alto do que nosso corpo e do que todos os delei-
tes que o afligem. Fixai nosso coração no amor do Coração de vosso
divino Filho: é somente a ele que devemos a soberana preferência,
e somente ele deve permanecer como a regra invariável de nossos
outros amores.
II
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que é a mais terrível, vive sob a tirania do erro e da mentira, e, nessa
servidão, não tem mais gosto senão pelas coisas da carne. (Rom 8, 5.)
Assim, diz Santo Agostinho, “o homem que devia ser espiritual mesmo na
carne, tornou-se carnal mesmo no espírito”.9
E essa degradação o assemelha a esses povos selvagens ou mesmo
civilizados dos quais fala Bossuet, “que não têm mais espírito senão
para o corpo, e em quem o que há de mais puro é o respirar.”10
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9 Qui futurus erat etiam carne spiritalis, factus est mente carnalis. (De Civitate Dei,
lib. XIV, cap. XV.)
10 Tratado da concupiscência, cap. VII.
LEITURAS
EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 5, v. 1-16: As Beatitudes.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. I: Da vaidade das criaturas.
22 J. M. Dayet
SEGUNDO DIA
JESUS CRISTO
E SEU ESPÍRITO DE PENITÊNCIA
24 J. M. Dayet
outra penitência corporal, afirmação do vigor da alma – o cristão se
liberta das servidões inferiores que o ameaçam sempre. É a superação
vitoriosa sobre o carnal, sem o qual, em nós, não é possível ao espiri-
tual progredir.
Ai! Para a maioria, as sugestões enganosas de Satanás, utilizando o
instinto de nosso corpo, fazem esquecer que as próprias condições de
nossa natureza nos obrigam a essa luta. Recusando o combate, encon-
tramos então todos os pretextos para nada recusar do pão do corpo.
Ao mesmo tempo, o espírito, sujeito à carne, permanecerá sem defesa
diante das mais fortes tentações que não tardarão a se apresentar. É
assim que o demônio consegue afastar as almas fracas desse espírito de
Jesus Cristo que se manifesta à primeira vista pela penitência.
_______________
II
26 J. M. Dayet
Pouco a pouco, Jesus obriga-a assim a reconhecer e a confessar
sua miséria. E diante dessa mulher que vive desregradamente há mui-
tos anos, mas que agora se abre à penitência, ele deixa escapar de seus
lábios a grande palavra reveladora: O Messias – aquele que vem apagar
os pecados do mundo – sou eu, que falo contigo.
A samaritana cai de joelhos, reergue-se e se vira, transformada.
Em sua alegria de convertida, ela esqueceu seu cântaro na borda do
poço. Mas que lhe importa! Ela conhece agora a Fonte de beatitude
que sacia a sede; não voltará mais às gozações da vida que deixam as
almas sedentas e intranquilas.
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28 J. M. Dayet
Foi dito dessa parábola que ela era o evangelho do evangelho. Nenhuma
outra justifica tanto a palavra de Jesus: Não vim chamar os justos, mas
os pecadores à penitência (Lc 5, 32); e esta outra: Misericordiam volo. Antes
de tudo, quero a misericórdia (Mt 9, 13). A esse querer de miseri-
córdia devemos responder com nosso querer de conversão. Se não,
nos veremos diante desta alternativa: ou a penitência ou a danação,
visto que não é tanto o pecado que condena, mas o endurecimento
no pecado, a obstinação em rejeitar o perdão salvador. Se não fizerdes
penitência, todos perecereis. (Lc 13, 5.)
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LEITURAS
30 J. M. Dayet
nesse horizonte limitado. “O avarento, diz o Sábio, jamais se fartará de
dinheiro; e o que ama as riquezas, não tirará delas fruto. Logo também isto é
vaidade... E de que servem os bens a quem os possui, senão para ver com seus
olhos as suas riquezas? (Ecl 5, 9.)
“É para ele, acrescenta Bossuet, como que uma coisa sagrada da
qual não se permite aproximar suas mãos. Todo coração apaixonado
embeleza em sua imaginação o objeto de sua paixão. Este dá ao seu
ouro e à sua prata um brilho que a natureza não lhe dá; ele é ofuscado
por esse falso brilho; a luz do sol, que é a verdadeira alegria dos olhos,
não lhe parece tão bela.”11 Tal é o vazio dessa cobiça que denuncia o
apóstolo São João.
E, no entanto, seu desejo é insaciável. Nada pode contentar a
fome devoradora do coração apegado às riquezas. A característica
da avareza é precisamente tornar uma alma cada vez mais ávida em
seu desejo de possuir. Essa paixão do desejo é seu único gozo, ou,
antes, seu tormento. As outras cobiças encontram um limite para sua
saciedade: o sensual pode apaziguar sua paixão nos prazeres da carne;
o guloso pode saciar nos festins seu amor pela fartura; mas o cora-
ção cobiçoso nunca está satisfeito. “Essa gula dos olhos, observa ainda
Bossuet, nunca está contente; ela não tem, por assim dizer, nem fundo
nem margem.” Por isso a Escritura compara os olhos do homem avaro
ao sepulcro ou ao abismo que uma nova presa nunca sacia.
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II
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• seja até mesmo as ciências verdadeiras, mas de maneira insufi-
ciente, ou excessiva, ou simplesmente egoísta.
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34 J. M. Dayet
contentar e considerar os limites destinados ao nosso exílio. O que
quer sondar a majestade será oprimido pela sua glória (Prov 25, 27). A histó-
ria eclesiástica está repleta de quedas de sábios espíritos, desmedida-
mente curiosos. “Quantos encontraram sua condenação na medita-
ção excessiva dos segredos da predestinação e da graça!” (Bossuet.) O
mistério da predestinação e da reprovação é impenetrável, não podemos
senão balbuciar alguma explicação sobre ele. Sejamos, pois, sóbrios e
moderados no estudo dessas questões reveladas, assim como São Paulo
nos exorta, recomendando-nos a ciência e a sabedoria: Non plus sapere
quam oportet sapere, sed sapere ad sobrietatem (Rom 12, 3). “Hoje, creiamos
simplesmente; amanhã, os véus cairão, a grande visão surgirá, e o mis-
tério terá desaparecido para sempre.”15
– Por fim, protejamo-nos contra esse outro vício, que consiste
em recolher e ajuntar conhecimentos, mesmo sobrenaturais, unica-
mente para si, para sua própria satisfação, como um tesouro impro-
dutivo, o que seria a avareza do espírito. Deus não nos deu o gosto
e a capacidade de conhecer, de estudar, somente para nosso deleite
pessoal. A inteligência, assim como o dinheiro, só serve com a con-
dição de ser utilizada no interesse do próximo. Nossas faculdades
não nos pertencem; elas nos foram emprestadas por Deus como um
depósito para ser multiplicado. O conhecimento da verdade, e sobre-
tudo da verdade revelada, confere a quem o possui o dever de disse-
miná-lo. Que nossa ciência desabroche em desejo de apostolado.
Assim nos libertaremos, com o auxílio da Santíssima Virgem, de
toda curiosidade perigosa.
III
36 J. M. Dayet
Assim ele infundiu no mundo esse espírito de posse, justamente
denominado pelo apóstolo São João como concupiscência dos olhos: dos
olhos que querem se alimentar da riqueza por si mesma, ou dos olhos
que querem se abrir sobre o conhecimento do pecado. Os olhos se
abrem então, com efeito, mas é “para ver sua desgraça e uma desor-
dem em si mesmo, que não se teria visto sem isso” (Bossuet). Quanto
aos olhos avaros ou cobiçosos, seu miserável deleite será passageiro.
Ó Maria, visto que a perversidade e a mentira do mundo nos apare-
cem cada vez mais claramente, não permitais que nos deixemos enga-
nar por ela um só dia. Que vossos encantos, vossos atrativos, vossas
virtudes, vossos exemplos nos cativem e nos retenham nos momentos
de tentação. Atraí-nos a vós. Ter-vos, possuir-vos, não é ter e possuir
todos os bens? Não sois o tesouro de Deus, e, pois, também o nosso?
“Oh! – exclamava o Pe. de Montfort, que confiança e que consolação
para uma alma que pode dizer que o tesouro de Deus, onde ele pôs
tudo o que tem de mais precioso, é também o seu! Ipsa est thesaurus
Domini. Ela é, diz um santo, o tesouro do Senhor.” (V. D., n. 216.)
E essa é a riqueza que nossa Doação total nos assegura.
LEITURAS
38 J. M. Dayet
E eis que, obrigada pelas circunstâncias, ela o vê chegar longe
dessa casa de família, em uma gruta aberta a todos os ventos, em
plena noite de inverno. Entrando imediatamente, porém, na inte-
ligência desse mistério, ela adorou a vontade de seu divino Filho.
Compreendeu que, encarnando-se por todos os homens, ele devia
servir de exemplo aos mais abandonados e mais deserdados entre
eles. Aqueles que a miséria afligir, por consequência de faltas ou de
injustiças e de violências, poderão olhar para seu estábulo de Belém
e dizer-se: Ele, o Soberano Mestre, poderia ter escolhido outra coisa
como lugar de nascimento; se não o fez, foi para que os infelizes
pudessem encontrar, em sua lembrança sempre viva, a força para
resistir à provação que oprime.
E a Virgem pensava também que os outros – aqueles que a des-
graça não atingir – serão mesmo assim atraídos à manjedoura do Sal-
vador, para ali recolher uma primeira lição de desapego face aos bens
dos quais gozam. Visto que Aquele que possui tudo não quis, desde
seu nascimento, tirar proveito das vantagens que a riqueza obtém,
por que os que possuem alguma coisa apegariam a ela seu coração?
Com a Virgem Maria, compreendamos e apreciemos o valor
dessa graça que nos oferece Jesus ao nascer.
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Durante sua vida pública, Jesus não terá sequer uma habitação
para si. “E, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum (cidade) marítima”
(Mt 4, 13). É ali que seus discípulos exercem seu ofício de pescadores.
Uma de suas casas – a de Simão Pedro, acredita-se – será sua morada
emprestada. Uma morada sem beleza, desprovida de todo conforto,
em um bairro populoso da cidade, nas vizinhanças do porto. A mobí-
lia é rudimentar. O chão é de terra batida. Uma casa térrea. Um teto
tão pouco elevado e tão frágil que o descobrirão facilmente para fazer
passar pela abertura, um dia, um paralítico sobre seu catre (Mc 2, 4).
Assim reaparece, nessa instalação de humildes pessoas trabalha-
doras, esse espírito de desapego que encontramos em todas as etapas
da vida do Salvador. Um refúgio de pastores em Belém, uma tenda de
artesão em Nazaré, e agora, sobre as margens do lago, um casebre de
barqueiros. Ficou nesse casebre durante os dois anos de suas viagens
apostólicas através da Galileia.
Quando deixar essa província para se reaproximar da Judeia, na
outra extremidade da palestina, nenhuma morada fixa se oferecerá
mais a recebê-lo. Ele e seus apóstolos não saberão mais, pela manhã,
onde dormirão na noite seguinte. E chegada a noite, nem sempre
estarão mais bem garantidos. Ao atravessar o vilarejo de Samaria, as
casas recusaram, uma após a outra, abrir-se diante deles.
Por isso, quando num dia dessas caminhadas sobre os caminhos
molhados pelas chuvas de outono, um escriba – um letrado – veio
pedir ao Salvador para segui-lo, sem ter medido antes que privações
podiam aguardá-lo, Jesus lhe respondeu: “As raposas têm covis, e as aves
do céu têm ninhos, porém o Filho do homem (menos rico do que elas) não
40 J. M. Dayet
tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 57-58). Era verdade, literalmente. Jesus
se dirigiu então para Jerusalém, para a última Páscoa, a Páscoa san-
grenta. Somente ali – depois da acolhida amigável de uma noite na
Betânia – ele terá onde repousar sua cabeça, e será sobre o madeiro
da Cruz. Assim, do nascimento à morte, que exemplo de progressivo
desapego nos dá ele em sua Pessoa!
Ó Maria, que seguistes as etapas desse desapego, fazei que con-
servemos como vós os olhos fixados sobre o divino Modelo. Visto
que ele desejou – mesmo sendo o Rei do Céu e da terra – conten-
tar-se com tão pouco, durante os anos de sua passagem entre nós,
ensinai-nos, a seu exemplo, a usar sempre com moderação os bens
temporais colocados por sua Providência à nossa disposição. Então,
mais desapegados e desembaraçados, avançaremos com um coração
leve e passos rápidos rumo à posse dos bens imperecíveis.
II
42 J. M. Dayet
Por isso, Nosso Senhor recomenda aos seus discípulos que se
previnam contra a paixão das riquezas: “Guardai-vos e acautelai-vos de
toda a avareza, porque a vida de cada um, ainda que esteja na abundância,
não depende dos bens que possui.” (Lc 12, 15.) Nossa vida se apoia sobre
Deus; se nela há abundância, é ele quem a dá, é ele também quem
a retira; reconheçamos nossa dependência diante dele. O perigo das
riquezas vem precisamente do fato de que elas fazem esquecer a fonte
de todos os bens e o único tesouro de uma criatura inteligente.
Não queria concordar com isso, esse rico da Palestina, cujos cam-
pos haviam produzido muito e que, não tendo mais lugar para guar-
dar suas colheitas, pensava já em construir novos celeiros. Apesar
de suas múltiplas preocupações, ele relatava sua alegria a si mesmo:
“Ó alma, tens muitos bens em depósito para largos anos; descansa, come, bebe,
regala-te.” Mas a morte vem de repente arruinar esses belos cálculos,
nos quais nem a menor parte era dedicada a Deus e aos pobres: “Nés-
cio, diz-lhe o Senhor da vida e da morte, esta noite te virão demandar a tua
alma; e as coisas que juntaste, para quem serão?...” (Lc 12.)
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44 J. M. Dayet
Ele, que era infinitamente rico, “se fez pobre por vós” (2Cor 8, 9); e
prometeu aos seus uma felicidade e riquezas “onde não chega o ladrão,
nem a traça rói”. (Lc 12, 33.) Até a morte, essa grande espoliadora que
leva tudo, será impotente para nos despojar de nossos bens eternos.
É por isso que encontramos lá em cima, entre as mãos de nossa
divina Mãe e Rainha, o mérito de nossa pobreza evangélica transfor-
mado em glória; e, de modo semelhante, todos os outros méritos que
lhe tivermos confiado em virtude de nossa Consagração. Sem contar
que tal desapego até de nossos bens espirituais não pode senão nos
fazer penetrar cada dia mais profundamente na alegria da primeira
Beatitude proclamada sobre a montanha.
Saboreemos nossa alegria na companhia de São Luís Maria de
Montfort, esse pobre entre os pobres, cuja alma cheia de cânticos
entoava ainda sobre esse leito de agonia:
Vamos, caros amigos,
Vamos ao paraíso:
O que quer que se ganhe aqui,
Mais vale o paraíso.
O paraíso, a posse do reino dos Céus, era a recompensa de todas as
suas bem-aventuradas renúncias aos bens deste mundo. Será um dia
a nossa, se deixarmos Maria nos encher cada vez mais do espírito de
desapego de seu divino Filho.
LEITURAS
46 J. M. Dayet
Mas essa graça não era ainda a glória. Para que se transformasse
nela, era necessária a cooperação de sua livre vontade à moção de
Deus que os levava a se elevarem rumo à sua felicidade nele. Era pre-
ciso uma homenagem de sujeição e de dependência diante da coroa
apresentada ao seu amor. Estabelecidos no estado de justiça, mas não
confirmados no bem, os anjos deviam merecer a beatitude eterna.
Esse foi o instante da provação.
Qual era a obediência que Deus lhes pedia? Era simplesmente
entoar um cântico à sua glória, ou, em vez disso, se inclinar diante
da revelação do mistério de seu Verbo que devia um dia se encarnar?
Pouco importa o motivo. O essencial era adorar.
O que Lúcifer se recusou a fazer. Ele, o primeiro dos Serafins,
marcado de modo excelente com o selo da semelhança divina: Tu
signaculum similitudinis; cheio de sabedoria e perfeito na beleza: plenus
sapientia et perfectus decore (Ez 28, 12), ele esqueceu o nada de sua origem
e se fixou na contemplação de sua própria grandeza. Longe de consi-
derar a vontade divina como a regra suprema à qual deve se confor-
mar toda liberdade criada, ele saiu de sua posição de ser dependente
para buscar a felicidade somente nos recursos de sua natureza finita,
fora dos limites determinados por seu soberano Senhor.
O orgulho, em sua intensidade máxima, hipnotizou-o na conside-
ração de si mesmo. Inebriado por seus esplendores de empréstimo,
“ele deixou, diz Bossuet, essa primeira Bondade que não era somente
o apoio necessário de sua felicidade, mas também o único funda-
mento de seu ser”.17 Non serviam, ousou proferir ao Eterno esse
espírito soberbo: não me curvarei, não adorarei; não me reconhecerei
escravo de Deus. Rejeito sua graça e sua glória; sou para mim mesmo
meu fim e minha felicidade: a perfeição de minha natureza basta à
minha felicidade.
E o grito de revolta ecoou entre as hierarquias celestiais: um terço
dos anjos, segundo uma piedosa interpretação, seguiu em seu pecado
Lúcifer, agora Satanás, o adversário de Deus.
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48 J. M. Dayet
Mãe de seu Verbo, segunda Pessoa da Trindade. Diante da revelação
de tamanha grandeza, longe de pensar em si mesma e se agradar
com isso, a Virgem se anula em sua humildade, se rebaixa diante
de Deus, reconhece seus direitos, adora seus desígnios de misericór-
dia. Ela pensa nas almas, em todas as almas que serão resgatadas, e
dá seu consentimento: Ecce ancilla Domini, Sou a escrava do Senhor
Soberano que é Deus. E ela quis permanecer a escrava de Deus no
instante mesmo em que se tornou sua Mãe, quando se vê elevada
bem acima das hierarquias angelicais. O que mostra bem que ela não
considera a honra que lhe é dada. Olha unicamente para Deus e para
nossas almas.
Esse contraste entre Lúcifer e Maria nos faz compreender melhor
qual foi a aberração do primeiro dos Serafins, e qual é também, no
presente, a loucura dos que preferem seguir esse revoltado.
II
50 J. M. Dayet
Insidiosa tentação de soberba! Jesus resistiu, mas como o mundo,
amigo da vã ostentação e de todas as temeridades, se deixa enganar
por ela!
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LEITURAS
52 J. M. Dayet
SEXTO DIA
JESUS CRISTO
E SEU ESPÍRITO DE HUMILDADE
54 J. M. Dayet
um nome, uma grandeza, uma dignidade que superam tudo o que
pode ser nomeado no mundo, a fim de que, segundo a palavra de
Isaías (45, 24), ao nome de Jesus todo joelho se dobre no Céu, sobre
a terra, no inferno, e que uma homenagem universal testemunhe que
Jesus Cristo é Rei e Senhor para a glória de seu Pai.”
Propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi nomem quod est super
omne nomen: ut in nomine Jesu omne genu flectatur, coelestium, terrestrium et
infernorum, et omnis lingua confiteatur quia Dominus Jesus Christus in gloria
est Dei Patris. (Flp 2, 9-11.)
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II
56 J. M. Dayet
ele se colocou, ao se encarnar, na condição de escravo: formam servi acci-
piens, foi, evidentemente, para estar à disposição de todos aqueles que
ele vinha resgatar. Ele não fará, pois, outra coisa além de servi-los.
Ele mesmo o declara em termos formais: “O Filho do homem,
isto é, o Verbo encarnado, o Filho de Deus que se tornou o filho
de uma Mãe humana, não veio para ser servido, mas para servir.” (Mt 20,
28.) Dizei-me: “Qual é o maior, o que está à mesa, ou o que serve? Não é
maior o que está sentado à mesa? Pois eu estou no meio de vós como um que
serve.” (Lc 22, 27.)
E o que ele diz, pratica-o. Na noite da Quinta-Feira Santa, no
começo dessa refeição, o última que ele faz com seus apóstolos, ele
se levanta da mesa, cinge-se da libré do serviço: ajoelhado diante dos
doze, lava os pés de cada um com uma humildade que os confunde.
Função, labor de todos os humildes, de todos os submissos, de todos
os prostrados aos pés de um senhor terreno. É seu trabalho e eles o
cumprem.
Jesus não quis assemelhar-se aos grandes da terra, que dominam
pela força e tratam seus súditos como se fossem feitos para eles. Ao
contrário, em seu Reino, ele quer que aqueles que são chamados a
conduzir os outros se considerem como os servos de seus inferiores,
buscando somente fazer-lhes o bem. Por isso, ele quer que seu gesto
da Quinta-Feira Santa seja imitado no curso dos séculos por todos os
que se glorificarem por serem seus.
“Compreendeis o que vos fiz? – pergunta Jesus aos seus apóstolos.
Vós chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se eu, pois, Senhor
e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque
eu dei-vos o exemplo, para que, como eu vos fiz, assim façais vós também. Em
verdade, em verdade vos digo: O servo (literalmente: o escravo) não é maior
do que seu senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Se compre-
endeis estas coisas, bem-aventurados sereis se as praticardes.”
Como ressaltar melhor a diferença entre o espírito do cristianismo
e o espírito do mundo? O Filho de Deus se fez até o fim o servo
de seus próprios servos. E não foi devido a essa admirável humil-
dade que o divino Mestre exerceu uma influência profunda sobre um
número tão grande de almas? Não foi graças a esse esquecimento
total de si, que não deixava transparecer nele senão a paixão de fazer
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58 J. M. Dayet
não são graças protetoras e imperativas? Deixemo-nos ganhar, sem
opor a menor resistência.
Como a Santíssima Virgem, olhemos Deus, Deus feito homem, e
olhemos somente para ele. Olhares favoráveis sobre nós mesmos sig-
nificariam fraqueza e covardia. Apenas retardaríamos nosso encami-
nhamento a uma Consagração que quer ser como uma continuação
da atitude do Verbo encarnado, escravo de amor de Deus, seu pai,
por meio de Maria, sua Santa Mãe.
LEITURAS
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19 Non est ista sapientia desursum descendens, sed terrena, animalis, dia-
bolica. (Tg 3, 15.)
60 J. M. Dayet
I. – OBJETO DE NOSSO DESEJO. Não é outro senão Jesus
Cristo, considerado como a divina Sabedoria, a única e verdadeira
Sabedoria, o Bem mais desejável, aquele que supera infinitamente
todos os bens dos quais podemos desejar a posse.
Mas para desejar e buscar essa divina Sabedoria, é necessá-
rio que nos dediquemos a conhecê-la, como já começamos a fazer
em nossas primeiras meditações. Pois é possível amar o que não se
conhece? Pode-se verdadeiramente desejar o que se conhece apenas
imperfeitamente?20 “Por que, interroga Montfort, ama-se tão pouco
o adorável Jesus, senão porque não se o conhece, ou muito pouco?
Não há quase ninguém que estude, como se deve, como o Apóstolo,
essa ciência tão eminente de Jesus, que é, no entanto, a mais nobre,
a mais doce, a mais útil e a mais necessária de todas as ciências e de
todos os conhecimentos.”
Ela é a mais nobre, porque tem por objeto o que há de mais
sublime, a Sabedoria eterna e encarnada, que encerra em si toda a
plenitude da divindade e da humanidade, tudo o que há de maior no
Céu e sobre a terra, todas as criaturas visíveis e invisíveis, espirituais e
corpóreas. São João Crisóstomo diz que Nosso Senhor é um sumário
das obras de Deus, um quadro resumido de todas as suas perfeições
e de todas as perfeições que estão nas criaturas. Jesus Cristo, a Sabe-
doria eterna, é tudo o que podeis e deveis desejar. Desejai-o, buscai-o,
porque ele é essa única e preciosa pérola pela compra da qual deveis
vender, sem dificuldade, tudo o que possuís...
Não há, também, ciência mais doce do que o conhecimento da
divina Sabedoria. Bem-aventurados são os que a escutam; mais felizes
ainda os que a desejam e a buscam; todavia, os mais felizes são os
que guardam seus caminhos e experimentam em seu coração essa
doçura infinita, alegria e felicidade do Pai eterno, e glória dos anjos.
Não se pode saber qual é o prazer que prova uma alma que conhece
a beleza da Sabedoria, particularmente quando ela faz ouvir estas
62 J. M. Dayet
“Eu amo os que me amam, disse-nos a Sabedoria, e os que vigiam desde
manhã para me buscarem, achar-me-ão, e, achando-me, encontrarão a abundân-
cia de todos os bens... Pois os bens duráveis comigo estão; e é incomparavelmente
melhor me possuir do que possuir todo o ouro e toda a prata do mundo... Conduzo
os homens que vêm a mim pelos caminhos da justiça e da prudência, e os enri-
queço, satisfazendo os seus desejos... E estejais convencidos de que meus mais doces
prazeres, minhas delícias mais caras são conversar e permanecer com os filhos dos
homens.” (Prov. 8, 17-21.)
E como se os homens temessem ainda se aproximar dela, devido
ao seu brilho maravilhoso e à sua majestade soberana, ela faz dizer a
eles que é de fácil acesso; que se deixa facilmente ver por aqueles que a amam; que
se antecipa aos que a desejam e se mostra antes a eles, e aquele que a buscar desde a
aurora não terá trabalho, pois a encontrará sentada à sua porta (Sab 6, 12-14).
Muito mais, “essa Sabedoria eterna, para se aproximar ainda mais
dos homens e testemunhar-lhes mais sensivelmente seu amor, não
chegou ao ponto de se fazer homem, ao ponto de se tornar criança, ao
ponto de se tornar pobre e ao ponto de morrer por eles sobre a cruz?
Quantas vezes ela exclamou, enquanto vivia sobre a terra: Vinde a
mim, vinde todos a mim; sou eu, não temais. Por que temeríeis? Sou
semelhante a vós e vos amo. Será porque sois pecadores? Ora! É a
eles que busco. Será porque vos afastastes do redil por erro vosso?
Ora! Eu sou o Bom Pastor. Será porque vos enchestes de pecados,
vos cobristes de sujeira, vos oprimistes pela tristeza? Ora! É justa-
mente por isso que deveis vir a mim; pois eu vos aliviarei, eu vos
consolarei...
“Como, conclui nosso santo, não ser tocado por desejos tão zelo-
sos, por buscas tão amorosas e por testemunhos de uma amizade tão
persistente?” (A.S.E., n. 67, 69, 70, 72.)
Desejemos, pois, por nossa vez, e busquemos unicamente essa
divina Sabedoria, tal como ela se apresentou a nós em nossas medita-
ções precedentes, em oposição à sabedoria mundana. É ela somente
que devemos adorar. A outra é enganosa e mentirosa, feita de apa-
rências e cheia de decepções; os que nela se comprazem levam uma
existência vazia, fora do caminho da verdade. “Até quando, grita-lhes
Montfort, tereis o coração pesado e voltado para a terra? Até quando
amareis a vaidade e buscareis a mentira?” (A.S.E, n. 181.)
64 J. M. Dayet
seu espírito de desapego dos bens terrenos, ele que possuía toda a
riqueza da terra e dos Céus; seu espírito de admirável humildade
diante de Deus e dos homens, enquanto era igual a Deus e enquanto
assim permanece para sempre?...
E enquanto ele projeta assim essa luz sobre tua inteligência, não
sentes, como os discípulos de Emaús, o teu coração queimar no peito?
Não experimentas então mais intensamente o desejo de amá-lo, de
segui-lo em seu caminho austero e doloroso, a fim de entrar um dia
na participação de sua glória?...
Oh! Sim, guardemos que, para preservar e cultivar em nós esse
desejo ardente da divina Sabedoria, é preciso apenas ter habitualmente
diante de nossos olhos e repassar em nosso espírito os ensinamentos
do Evangelho. O encantamento dessa ciência das ciências nos desen-
cantará para todo sempre das aparências e vaidades do mundo.
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66 J. M. Dayet
Esses eleitos que se apaixonam assim pela divina Sabedoria são
os pobres e os ignorantes segundo o mundo, os oprimidos e os fra-
cos, os pequenos e os humildes, as almas de silêncio e de sacrifício
que, através de todas as dificuldades inerentes à sua condição, ali-
mentam o ardor de seu desejo ao contato das verdades eternas e das
promessas infalíveis.
O que esses pobres e esses desprezados do mundo obtiveram com
o auxílio da graça, por que não o obteríamos? Por que suspirar por mais
tempo por esses desejos que não terminam jamais? Por que correr o
risco de perder os bens imperecíveis, detendo nosso coração sobre as
miseráveis riquezas de um dia? Não é melhor, para nossa felicidade,
nos voltarmos decididamente à única e verdadeira Sabedoria?
Então, nosso desejo subirá de um coração ardente, isto é, de uma
vontade sem langor, de uma vida sem disfarce, de um amor sem falsas
alianças. Não nos espalharemos mais na multidão das coisas vãs, mas
nos recolheremos e nos estabeleceremos na unidade da incorruptível
Sabedoria. E a Virgem, tendo atraído todas as nossas capacidades à
inestimável vida interior, nos revestirá desse manto de luz que é o
espírito de seu Senhor Jesus.
LEITURAS
68 J. M. Dayet
Por outro lado, Deus resiste aos soberbos. A alma orgulhosa não
pede, ela não quer se humilhar. O amor por sua própria excelência
mantém sobre seus olhos a venda que cegou Lúcifer e sopra em sua
vontade o mesmo sentimento de falsa independência: Non serviam:
se é preciso inclinar-me para receber os benefícios divinos, não me
inclinarei.
Essa inconcebível loucura nos faz também compreender por que
São Luís Maria de Montfort quer que adicionemos ao desejo da ver-
dadeira Sabedoria o auxílio e a força da prece. Assim, ele nos liberta
desse orgulho que é a manifestação mais evidente e mais obstinada
do espírito do mundo. Ele encaminha nosso desejo, pelo caminho da
humildade, rumo à aquisição do maior de todos os dons de Deus.
“O mundo esteve, por milhares de anos, a pedir a Encarnação da
divina Sabedoria”, porque essa divina Sabedoria não encontrava no
mundo a medida de humildade capaz de atraí-la sobre a terra. Mesmo
a humilde Virgem Maria “esteve quatorze anos se preparando, por
meio da prece, para recebê-la em seu ventre”.
Se algum de vós necessita de Sabedoria, diz São Tiago (1, 5), peça-a a
Deus, que a todos dá liberalmente e não lança em rosto, e ser-lhe-á concedida.
“Notai de passagem, sublinha Montfort, que o Espírito Santo não
diz: Se alguém necessita de caridade, de humildade, de paciência, etc.,
que são virtudes tão excelentes, mas: Se alguém necessita da Sabe-
doria. Pois, pedindo-a, pedimos todas as virtudes que estão contidas
nela”, e que ela deseja nos comunicar. (n. 184.)
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70 J. M. Dayet
II. NOSSO PEDIDO PELA DIVINA SABEDORIA DEVE
SER CONTÍNUO. No mesmo cântico, Montfort – dirigindo-se à
divina Sabedoria – se atrevia a dizer-lhe:
Se não quereis que eu vos pertença,
Deixai-me vos importunar,
Deixai-me sempre no castigo
De vos buscar sem encontrar.
Como exprimir melhor a continuidade com a qual, sem jamais
nos cansar, devemos pedir a divina Sabedoria? “É para a aquisição
dessa pedra preciosa, desse tesouro infinito, que importa fazer uso de
uma santa importunidade junto a Deus, sem a qual nunca a teremos.
“Não se deve fazer como a maioria das pessoas que pedem a
Deus alguma graça. Depois de terem orado durante um tempo bas-
tante considerável, até anos inteiros, e não verem suas preces aten-
didas por Deus, elas se desencorajam e deixam de orar, acreditando
que Deus não quer escutá-las. Elas perdem, assim, o fruto de suas
preces, e até mesmo ofendem a Deus, que ama doar e que atende
sempre – infalivelmente – as preces bem feitas, seja de uma maneira,
seja de outra.
“Aquele que deseja, pois, obter a divina Sabedoria deve pedi-la
dia e noite, sem se cansar e sem se desencorajar. Mil vezes bem-
aventurado será se obtiver após dez, vinte, trinta anos de preces, e
mesmo uma hora antes de morrer. E se a recebe depois de ter pas-
sado toda sua vida a buscá-la e a pedi-la e a merecê-la por toda sorte
de trabalhos e de cruzes, que esteja bem convencido de que não lhe é
dada por justiça, como uma recompensa, mas por pura misericórdia,
como uma esmola.
“Não, não, não são essas almas negligentes e inconstantes em
suas preces e suas buscas que terão a divina Sabedoria.” Serão aque-
las que se parecerem com aquele pedinte importuno do qual fala o
Evangelho, que foi no meio da noite bater na porta de seu amigo,
pedindo-lhe três pães.
Observai, diz Montfort, que é a própria Sabedoria quem, nessa
parábola, nos indica a maneira pela qual importa pedir para obter.
Esse amigo bate e repete suas batidas e sua prece, e cada vez com mais
força e mais insistência. Sem demora, ele pede os três pães para um
72 J. M. Dayet
amor maternal. São João Crisóstomo se espanta: “Que novidade sur-
preendente, exclama; buscais as outras, essa infeliz busca a vós, e a
repelis!...”
A cananeia, sem perder confiança, se põe a seguir Jesus, repe-
tindo seu chamado à piedade; a ponto de os apóstolos, cansados de
seus gritos, pedirem ao seu Mestre que lhe conceda a graça solicitada.
Jesus sai então de seu silêncio, mas não para pronunciar a palavra de
cura, e sim – parece – para excluir de sua misericórdia essa pobre mãe
desolada: Eu não fui enviado senão às ovelhas desgarradas da casa de Israel, e
não para as ovelhas estrangeiras ao meu redil...
A cananeia não se desconcerta. Ela se aproxima mais do Senhor,
que, neste momento, entrou numa casa; ela se joga aos seus pés:
Senhor, vale-me. Jesus parece mais rigoroso, mais implacável: Deixa,
responde-lhe diretamente desta vez, que primeiro sejam fartos os filhos,
porque não é bem tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cães.
A pobre mãe assim o tenciona. “Ela não tem um movimento de
revolta, diz Santo Agostinho, nem um sobressalto de dignidade ofen-
dida.” Com uma palavra admirável e uma fé que nada desencoraja,
ela faz observar humildemente ao Senhor que sua prece é autorizada
pela resposta mesma que ele acaba de lhe dar. Assim é, Senhor, não sou
digna de comer o pão dos filhos, sou uma estrangeira. Mas vossa mesa é rica: há
migalhas que caem no chão, e deixa-se que os cachorrinhos da casa comam essas
migalhas. Ah! Senhor, dai-me essas migalhas, nada peço além disto.
Diante de uma réplica tão humilde, Jesus deixa enfim falar seu
coração: Ó mulher, disse-lhe com admiração, grande é a tua fé: Magna est
fides tua! Vai, o demônio saiu de tua filha. (Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30.)
A prece triunfa sobre tudo, ela desarma até mesmo a Deus, que
concede, então, muito mais do que pedimos. Nessa cena do Evan-
gelho, nosso olhar visa somente cura da menina; mas há também o
outro milagre, o mais importante, o que atrai os olhares do divino
Mestre: a ascensão sublime de uma alma que persevera em pedir com
uma fé e uma humildade crescentes, apesar da recusa aparente e ape-
sar da prova de humilhação.
Assim Deus nos atenderá infalivelmente, se vir que continuamos
a rezar mesmo assim, mesmo que fosse preciso esperar anos e tal-
vez uma vida inteira, como nos disse mais acima São Luís Maria de
74 J. M. Dayet
Suprimiremos assim, cada vez mais, “a leviandade, a presunção, o orgu-
lho, a falta de profundidade daqueles que cumprem sua tarefa cotidiana,
mesmo nas circunstâncias mais importantes, sem separar um tempo para
refletir, para se recolher, para implorar as luzes do alto, colocar-se em
conexão íntima de confiança, de abandono, de espírito filial, com
a Sabedoria sem limites, de quem tudo depende e sem a qual nada
pode, neste mundo, chegar ao seu termo final.”24
Como se deve lamentar por aqueles que não oram ou que se
contentam com preces furtivas, abreviadas, distraídas, mecânicas,
sem benefícios para sua vida! Desperdiçam esse tempo, que nos é
dado para preparar nossa eternidade. Dir-se-ia que só respiram para
o seu corpo. A alma continua enfraquecida, enquanto poderia estar
transbordante de vida divina. Eles não conhecerão as doçuras e as
bênçãos que Nossa Senhora reserva aos que imploram, sem jamais
se cansarem, a posse da eterna Sabedoria.
LEITURAS
76 J. M. Dayet
“Não imagineis, prossegue ele, que essa Sabedoria, mais pura que
os raios de sol, entre em uma alma e em um corpo sujos pelos pra-
zeres dos sentidos. Não penseis que ela ofereça seu repouso, sua paz
inefável, aos que amam as companhias e as vaidades do mundo. Não
dou, diz ela, meu maná escondido senão aos que são vitoriosos do mundo e de si
mesmos. (Apoc 2, 17.)
“Essa amável Soberana, embora por sua luz infinita conheça e
distinga todas as coisas em um instante, anda à procura dos que são dignos
dela (Sab 6, 17). Ela procura, porque o número deles é tão pequeno,
que com dificuldade encontra alguns desligados do mundo o bas-
tante, interiores e mortificados o bastante, para serem dignos dela,
dignos de sua Pessoa e de seus tesouros e de sua aliança.” (A.S.E.,
n. 194-195.)
Ó meu Deus, como essas palavras, jorradas do coração de um
santo, devem determinar minha conversão completa ao espírito de
vosso divino Filho! Até o presente, o desejo da única e verdadeira
Sabedoria, assim como a prece necessária para adquiri-la, levaram
minha vontade a uma escolha definitiva; mas desejo e prece não son-
daram o lado vulnerável de minha natureza, não me colocaram frente
a frente à sua corrupção e às suas fraquezas. A mortificação me atinge
no âmago do ser, ela me engaja em uma luta decisiva contra os ins-
tintos e as paixões que o mundo tenta tornar seus cúmplices. Aceitar
a luta, persegui-la generosamente, é vencer o mundo, é me tornar
capaz de aspirar às alegrias da divina Sabedoria.
Recuarei agora? Tornarei inúteis meus precedentes esforços? Por
que persistiria em cultivar em minha natureza, ferida pelo pecado
original e enfraquecida por meus pecados pessoais, as brechas pelas
quais penetra o espírito de gozação de vida do século? Minha própria
segurança não me ordena fechar-lhe todo acesso?...
Para qualquer lado que me volte, a mesma alternativa se apre-
senta sempre: ou o espírito do mundo, ou o espírito de Jesus Cristo...
Posso seguir o caminho largo do prazer... Posso engajar-me também,
seguindo meu divino Mestre, no caminho estreito do sacrifício. O
melhor não é assumir, não é aceitar tudo o que acaba de me dizer São
Luís Maria de Montfort, tal como o expressa à luz e com a força dos
textos inspirados, sem tentar negligenciar o que quer que seja?...
78 J. M. Dayet
cobrir a feiúra do pecado e da mentira, que consiste essa malignidade
da qual fala São João: Mundus totus in maligno positus est (1Jo 5, 19). Por
toda parte o mundo é penetrado por essa malignidade, e agora mais
do que nunca.” É a porta larga aberta a todos os prazeres proibidos.
“Por fim, se se permanece no século, é preciso, tanto quanto pos-
sível, fugir das companhias dos homens, não somente das dos munda-
nos, que são perniciosas ou perigosas, mas até mesmo as das pessoas
devotas, quando são inúteis e fazem perder tempo.” As conversa-
ções se tornam, então, o alimento dessa curiosidade que desenvolve
os gostos terrenos e prejudica grandemente a vida interior. (A.S.E.,
197-200.)
Eis a mais fundamental mortificação cristã: nenhuma aliança,
nenhum compromisso com o espírito do mundo, mesmo permane-
cendo no mundo. “O ponto capital da vida cristã, escrevia o grande
Pontífice Leão XIII, é não ceder à corrupção dos costumes do século,
mas opor-lhe uma luta, uma resistência constante.”
_______________
25 Nostrae caenae, nostrae nuptiae nondum sunt. Non possumus cum illis discumbere,
quia nec illi nobiscum. (De spectac., n. 28.)
80 J. M. Dayet
Não é preciso dizer que a mortificação, assim compreendida,
difere da penitência. Esta tem como efeito reparar os pecados que
tivemos a infelicidade de cometer; a mortificação, ao contrário, visa,
antes de tudo, a prevenir as faltas. Sem dúvida, ela pode também
contribuir para nos purificar das faltas passadas; mas seu objetivo
principal é nos precaver contra as do presente e do futuro, dimi-
nuindo em nós o amor do prazer, fonte de todos os nossos pecados,
e mantendo-nos, por isso mesmo, opostos ao espírito do mundo.
Avançamos, assim, com passos seguros rumo a esse fim beatificante
que Montfort não deixa de nos indicar: a posse de Jesus, a Sabedoria
encarnada, com todos os bens que encerra sua divina Pessoa.
Ó Maria, apegai cada vez mais nossos corações a essa felicidade
que não engana e não passa jamais. Se desejamos gozar dela um dia
no Céu, face a face com a eternidade, não devemos, desde agora,
buscar e encontrar um antegozo dela nas intimidades que nos oferece
nossa vida de graça santificadora? Nossa Consagração de escravos
de amor acrescentará também a ela as alegrias de um pertencimento
total e indefectível.
LEITURAS
EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 8, 1-27: Jesus prova sua mis-
são por meio de milagres.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XVIII: Do exemplo dos santos.
Eis enfim o maior dos meios que nos propõe São Luís Maria de
Montfort para nos libertar do espírito do mundo e nos fazer adquirir
o espírito de Jesus Cristo: ter uma verdadeira devoção pela Santa Virgem.
Esse é o maior dos meios, porque para praticar os meios de sal-
vação e de santidade, a graça nos é absolutamente necessária; mas
a graça, isto é, a vida divina de Jesus em nós, só nos é comunicada
por Maria.
Consideraremos, pois, por que a graça nos é dada por Maria, e o
quanto importa nos dispor a recebê-la por uma verdadeira devoção a essa
divina Mãe.
Tornemos nossa meditação cada vez mais fervorosa, à medida
que nos aproximamos do fim deste primeiro período de nossos
Exercícios preparatórios à Consagração.
82 J. M. Dayet
1º Ela é sua MÃE digníssima, porque a encarnou e pôs no mundo
como o fruto de suas entranhas, o que lhe repetimos muitas vezes
todos os dias: Bendito o fruto do vosso ventre, Jesus.
Assim, por toda parte onde se encontra Jesus, no Céu ou sobre a
terra, em nossos tabernáculos ou em nossos corações, é verdadeiro
dizer que ele é o fruto de Maria; que somente Maria é a árvore da
vida, e que somente Jesus é o fruto dela.
Aquele que deseja, pois, ter esse fruto admirável em seu coração
deve ter a árvore que o produz: quem deseja ter Jesus deve ter Maria.
2º Maria é a SENHORA da divina Sabedoria. Não porque esteja
acima da divina Sabedoria, verdadeiro Deus, ou que seja igual a ela;
seria uma blasfêmia pensá-lo e dizê-lo; mas porque Deus Filho, a
Sabedoria Eterna, tendo-se submetido perfeitamente a Maria como
à sua Mãe, deu-lhe sobre si mesmo um poder materno e natural que
é incompreensível, e isto não somente durante sua vida sobre a terra,
mas também agora, no Céu, visto que a glória, longe de destruir a
natureza, aperfeiçoa-a no mais alto grau.
Por isso, no Céu, Jesus é, mais do que nunca, filho de Maria, e
Maria, Mãe de Jesus. Nessa qualidade, ela tem poder sobre ele; e ele
está submetido, porque o deseja. O que significa dizer que Maria,
por suas poderosas preces e sua maternidade divina, obtém de Jesus
tudo o que deseja. E o dá a quem quiser. Ela o gera todos os dias nas
almas que deseja.
Oh! Diz ainda nosso Santo, como uma alma que ganhou as boas
graças de Maria é feliz! Ela deve se sentir segura de possuir em breve
a Sabedoria; pois, como Maria ama os que a amam, comunica-lhes
seus bens de mãos cheias, e o bem infinito no qual todos os outros
estão contidos, Jesus, o fruto do seu ventre.
Se é, pois, verdade que Maria é, no sentido indicado, a Senhora
da Sabedoria encarnada, que devemos pensar do poder que ela tem
sobre todas as graças e sobre todos os dons de Deus, e da liberdade
que ela tem de dá-los a quem lhe aprouver? Ela é o tesouro inesgotá-
vel do Senhor e a tesoureira, a dispensadora de todos os seus dons.
É da vontade de Deus que, desde que deu a ela seu Filho, rece-
bamos tudo por sua mão; e não desce nenhum dom celeste sobre a terra sem
passar por ela... É de sua plenitude que todos nós recebemos, e se há
84 J. M. Dayet
II
86 J. M. Dayet
à carne, em seus tédios e suas paixões; e ao diabo, em suas tentações; de
modo que uma pessoa verdadeiramente devota a Maria não é incons-
tante nem melancólica.
Não que ela não caia algumas vezes, ou que não tenha nada a
sofrer na sensibilidade de sua devoção. Mas se ela cai, reergue-se ime-
diatamente, estendendo a mão à sua boa Mãe; se ela perde o gosto
e o fervor sensível, não sofre por isso, pois em sua inteligência a fé
continua a projetar luzes sobre as grandezas de Maria e sobre a soli-
dez de sua devoção. (V.D., n. 109.)
Ela luta assim, e de forma meritória, contra a leviandade de tan-
tas pobres pessoas no mundo, que não amam a Santa Virgem senão
por intervalos e em repentes. A momentos de fervor sucedem dias
de mornidão; a compromissos e promessas de fidelidade não corres-
ponde nenhum esforço louvável para mantê-los. Mais vale prome-
ter menos, e permanecer fiel; mais vale se contentar com as práticas
essenciais, e nunca omiti-las, salvo caso de impossibilidade.
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88 J. M. Dayet
Maria tinha para si como uma lei salvar por sua misericórdia esse tipo
de pessoas, ela autorizaria o crime, e ajudaria a crucificar e ultrajar seu
filho; quem ousaria jamais pensá-lo?
“Digo que abusar assim da devoção à Santa Virgem é cometer
um horrível sacrilégio. Depois do sacrilégio da comunhão indigna, é
o maior e o menos perdoável.” (n. 98.)
Grande advertência de um Santo que nos põe continuamente
atentos contra o espírito do mundo, insuflado por Satanás até na
devoção a Maria. “O diabo, como um falso negociador e um enga-
nador sutil e experimentado, tanto enganou e condenou almas por
uma falsa devoção à Santíssima Virgem, que se serve todos os dias de
sua experiência diabólica para perder muitos outros, entretendo-os e
adormecendo-os no pecado, sob o pretexto de algumas preces mal
ditas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira.” (n. 90.)
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LEITURAS
90 J. M. Dayet
Foi então que interveio o tentador. Satanás, o Serafim decaído,
ciumento da felicidade desses dois seres fiéis a Deus, começou por
atacar a mulher, como a uma presa mais fácil de agarrar. Oculto sob
a forma de uma serpente, o mais ardiloso de todos os animais, ele
deslizou, ondeando em meio às folhagens, e se aproximou de Eva,
para lhe fazer ouvir palavras sedutoras e mentirosas. A fraqueza de
Eva foi entabular com ele a conversação que conhecemos que se
termina com uma dupla desobediência: a sua primeiro, depois a de
Adão. A felicidade do paraíso terrestre findava. Nossos primeiros
pais se encontravam diante de Deus, tremendo de medo, corando de
vergonha, querendo apenas esconder-se.
Deus interroga os culpados. Adão confessa, mas atribui a culpa à
mulher. Eva também confessa, e faz recair uma parte de sua respon-
sabilidade sobre a serpente. “O Senhor Deus disse então à serpente:
porque fizeste isto, és maldita entre os animais domésticos e as feras
dos campos; rastejarás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias
de tua vida. “Porei inimizades entre ti e a Mulher, e entre a tua posteridade e
a posteridade dela. Ela (a descendência ou posteridade dessa Mulher) te
pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.” (Gên 3, 13-15.)
Essa sentença divina compreende duas partes bem distintas. A
primeira enuncia um castigo aflitivo contra a serpente-animal, ferida
em si mesma como instrumento e figura do tentador: “És maldita...”.
Tu serás esse ser rastejante que inspira horror e repulsa.27 A segunda
expõe uma pena vindicativa contra a Serpente infernal, Satanás, o ini-
migo de Deus, que subordinou a si o corpo de uma serpente real para
falar a Eva e fazê-la desobedecer ao seu Criador e Santificador: “Porei
inimizades entre ti e a Mulher...”
Porque te serviste de Eva para seduzir Adão e tentar arruinar
minha obra de graça, eu também me servirei da Mulher e de sua
27 A serpente já rastejava antes: isso está em sua natureza; mas Deus pro-
mulga que ela será, por sua reptação, o símbolo de Satanás. É assim que
o arco-íris, fenômeno natural, é apresentado pela Bíblia como criado
por Deus após o dilúvio, o que quer dizer que ele será doravante o Sinal
da Aliança entre Deus e a terra. (Ver Bonnefoy, O Mistério de Maria segun-
do o Protoevangelho e o Apocalipse, p. 49-50.)
92 J. M. Dayet
Cristo: ipse conteret caput tuum.”29 É ele que te esmagará a cabeça, que
tirará de ti com grande luta o benefício de tua vitória sobre nossos
primeiros pais.
A Vulgata utilizou o pronome feminino ipsa, atribuindo assim a
vitória à Mulher, mais do que à sua descendência; mas, no texto hebreu,
o pronome é masculino, assim como na Septuaginta e na versão siría-
ca.30 É o Cristo, o Rebento por excelência da Mulher, que será o grande
vitorioso de Satanás, e Maria será associada, em qualidade de Corredentora,
à vitória Daquele que representará de modo eminente sua posteri-
dade.
Essa interpretação, aliás, ajuda-nos a compreender as últimas pala-
vras da sentença divina. “O Rebento da Mulher te esmagará a cabeça, e
tu morderás o seu calcanhar.” Diferentemente de sua Mãe, o Salvador, com
efeito, será exposto à mordedura da Serpente infernal, isto é, às embos-
cadas que lhe preparará esta: pouco tempo depois de seu nascimento,
ele deverá sofrer a fuga ao Egito para escapar do massacre prescrito
por Herodes, instrumento do demônio; logo após sua entrada na vida
pública, será tentado no deserto; ao longo de seus anos de apostolado,
sofrerá as perseguições dos fariseus, “raça de víboras”; e finalmente, na
hora do poder das trevas, sofrerá a Paixão e a morte sobre a Cruz. Foi
assim que o Cristo foi mordido no calcanhar, na parte inferior de si
mesmo, em sua humanidade, mais exatamente em seu corpo: ele pagou
sua vitória com suas feridas e com sua vida corporal.
Por outro lado, Maria Corredentora será isenta de toda mordedura
da Serpente infernal: não sofrerá nem as tentações provenientes de
sua astúcia, nem as perseguições dos inimigos de seu divino Filho.
“Em parte alguma se vê que os homens tenham atacado diretamente
sua pessoa. Sobre o Calvário, nem antes nem depois do Cenáculo,
ela é o objeto, parece-nos, de qualquer zombaria, de qualquer mau
94 J. M. Dayet
ela chama sobre todos eles a vinda do Espírito Santo. São eles que
vão começar a conquista das almas, iniciar a conversão do mundo
pagão, arrancar de Satanás província por província. E enquanto ocor-
rem seus primeiros combates, enquanto eles fundam e multiplicam
as cristandades, enquanto se espalham sobre todos os caminhos do
imenso império romano, Maria continua a orar na solidão e no retiro.
Seu divino Filho a deixa um certo número de anos sobre a terra para
a consolação dos primeiros batizados, dos primeiros perseguidos, dos
primeiros mártires: todos extraem sua força e seu ardor dessa oração
de Maria, que eles sabem estar ainda presente entre eles.
A Igreja primitiva guardou de tal maneira essa lembrança que, nas
pinturas da Catacumbas e nos afrescos de suas primeiras Basílicas,
Maria não será representada senão como a grande Orante, as mãos
sempre levantadas ao Céu. Qual devia ser a raiva de Satanás contra
essa contínua e onipotente intercessão da Virgem, no tempo em que
começava a desabar seu império terrestre!
No Céu de sua triunfante Assunção, Maria permanece ainda
muito mais onipotente em suas súplicas: omnipotentia supplex. Ela não
cessa de obter e distribuir para nós todas as graças da Redenção. Sua
missão muito precisa é povoar o Paraíso dos eleitos, encher todos os
lugares da Corte celeste. “Deus lhe deu, escreve Montfort, o poder e a
incumbência de encher de santos os tronos vazios dos quais os anjos apóstatas caí-
ram por soberba.” (V. D., n. 28.) Que nova e estrondosa desforra sobre
Lúcifer! Ela assegura não somente a simples entrada dos eleitos na
glória, mas também sua colocação no seio das hierarquias angelicais.
“Como recompensa de sua humildade”, Maria foi estabelecida Sobe-
rana do Reino celeste, com o poder e a missão de devolver a Deus a
glória que os anjos rebeldes lhe roubaram.
Nessa missão que deve durar até o fim dos séculos, os anjos que
permaneceram fiéis estão a seu serviço e, mais do que todos eles,
São Miguel, o vencedor de Lúcifer. Esse Chefe e Príncipe da Milícia
celestial será o mais zeloso em executar suas ordens, seja nos grandes
combates da Igreja, onde Maria aparecerá sempre como a extermi-
nadora das heresias, seja nas lutas íntimas em que cada cristão deve se
engajar no curso de sua vida, contra o demônio, e sobretudo na hora
decisiva da morte, onde Maria não pede senão que seja justificado
96 J. M. Dayet
Ora, eis Maria aparecendo em Fátima e denunciando a Rússia
como o lar do comunismo. Ao mesmo tempo, ela solicita preces e
atos pela conversão dessa infeliz nação, governada pelos Sem-Deus.
Ela promete o triunfo final de seu Coração imaculado, a cessação das
guerras e perseguições, se a obedecermos, se abandonarmos o espí-
rito do mundo para retornar ao espírito do Evangelho. Vemo-la, pois,
levantar-se novamente contra Satanás e suas legiões infernais.
Por meio da solene Definição do dogma de sua Assunção cor-
poral, sobrevivendo ao momento em que Satanás pensava possuir
sua vitória, ela esmaga com um só golpe todos os erros comunistas.
Ela afirma diante do Universo a diferença entre a alma e o corpo, a
sobrevivência da alma, a existência de uma outra vida, a participação
do corpo na felicidade da alma, a pessoa humana reconstituída em
dignidade, a vida eterna com Deus.
Mais do que isso, para mostrar o laço que ela quis estabelecer
entre essa Definição solene e sua Mensagem de Fátima, por quatro
vezes: nos dias 30 e 31 de outubro de 1950, no dia 1º de novembro
(dia da Definição) e no dia 8 de novembro, dia oitavo, ela renova para
Pio XII somente, nos jardins do Vaticano, o grande milagre do sol, sinal
da autenticidade de sua Mensagem de 1917. Como poderia mostrar-
nos de modo mais evidente sua onipotência de Inimiga de Satanás?
Por fim, a Santa Virgem havia pedido que a Rússia fosse especial-
mente consagrada ao seu Coração imaculado; e toda a catolicidade
estremeceu de alegria diante do gesto magnífico do Soberano Pontí-
fice, no dia 7 de julho de 1952. Por meio desse gesto, Maria atinge o
comunismo em seu ponto crucial, pois a conversão da Rússia, anun-
ciada por ela, acarretará certamente a conversão das outras nações
que gemem sob o jugo infernal.
Esse será seu triunfo e seu reino de paz. Assim vemos se veri-
ficar o que escrevia Montfort em seu Tratado da Verdadeira Devoção:
“Deus formou apenas uma inimizade, mas irreconciliável, que durará
e aumentará até o fim: é entre Maria, sua digna Mãe, e o diabo; entre
os filhos e servos da Santa Virgem, e os filhos e cúmplices de Lúci-
fer; de modo que a mais terrível das inimigas que Deus estabeleceu
contra o diabo é Maria, sua santa Mãe.” (n. 52.)
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LEITURAS
98 J. M. Dayet
DÉCIMO SEGUNDO DIA
A INIMIZADE
ENTRE A RAÇA DE SATANÁS
E A DESCENDÊNCIA DE MARIA
100 J. M. Dayet
verdadeiros filhos e servos da Santa Virgem e os filhos e escravos do
demônio. Eles não se amam mutuamente, não têm correspondência
interior uns com os outros.
“Os Filhos de Belial, os escravos de Satanás, os amigos do mundo
(pois é a mesma coisa), sempre perseguiram até aqui e perseguirão
mais do que nunca aqueles e aquelas que pertencem à Santíssima
Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú seu
irmão Jacó, que são as figuras dos reprovados e dos predestinados.
“Mas a humilde Maria terá sempre a vitória sobre esse orgulhoso,
e tão grande, que esmagará a cabeça onde reside seu orgulho. Ela
descobrirá sempre sua malícia de serpente...” (V. D., n. 54.)
No tempo da Encarnação, ela já arrancou dele, por meio de seu
divino Filho, esse império do mundo que ele detinha incontesta-
velmente há milênios. Na manhã de Pentecostes, ela opôs ao seu
ódio a força irresistível de conquista da Igreja nascente. A pregação
dos apóstolos, sustentada pela virtude do Espírito Santo, permitiu-
lhe gerar incontáveis filhos e ver surgirem cristandades magníficas.
Durante cerca de quatro séculos, os imperadores pagãos provocaram
perseguições sobre perseguições, que fizeram milhares de mártires.
Essas perseguições são as mordeduras da raça da Serpente contra a
descendência espiritual de Maria, contra “os outros filhos da Mulher”,
revestida de sol e coroada de estrelas. (Apoc 12, 17.) Satanás, por
meio de seus cúmplices, obstinou-se em ferir seus corpos com toda
sorte de torturas, até provocar sua morte violenta. Da mesma forma
que perseguiu o Cristo, perseguiu os primeiros cristãos.
Sempre foi assim na vida da Igreja. Sobre todas as praias às quais
os missionários chegaram para anunciar a Virgem e seu divino Filho,
eles arrancaram muitas almas de Satanás; mas Satanás não tardou a
suscitar contra eles sangrentas perseguições. Contudo, os mártires
sempre triunfaram sobre seus carrascos, e seu sangue derramado se
tornou uma semente de novas cristandades para Maria.
Mesmo nos países em que a Igreja afirma há séculos o poder
de sua hierarquia, se Satanás nem sempre pode provocar persegui-
ções sangrentas, emprega armas assassinas contra as almas. É a lai-
cização desmedida; é a mentirosa e odiosa propaganda comunista,
é a imprensa perniciosa, cada vez mais invasora com seus livros,
II
102 J. M. Dayet
São as duas escravidões que se enfrentam, pois todos os que se
colocam obstinadamente do lado de Satanás são seus escravos desde
este mundo, e o serão ainda mais no inferno. São, aqui, seus escravos
de obrigação: querendo ou não, Satanás os arrasta em sua revolta
contra o plano divino, como arrastou outrora a terça parte dos espíri-
tos angélicos. No inferno, eles serão, com Satanás e sob a dominação
de Satanás, os escravos de obrigação da justiça de Deus, sofrendo um
castigo implacável e sem esperança de término. Saberão, então, que
Deus é o Senhor: Et scient quia ego Dominus.
Contra os escravos de Satanás, Maria levanta o exército de seus
escravos de amor, que ela formou à semelhança de seu divino Filho.
Sua pequenez aos olhos do mundo, sua humildade, seu espírito de
dependência, sua pobreza e seu desapego dos bens terrenos, sua falta
de relevância do ponto de vista humano e natural, todo seu exterior
evangélico atiçarão o ódio de Satanás. Mais do que os outros, eles
sofrerão suas mordeduras. “Eles serão pisados e perseguidos, como
o calcanhar o é em relação aos outros membros do corpo.” Serão
desprezados, contrariados, tratados como insensatos.
Mas Maria lhes comunicará uma força sobrenatural que os tor-
nará invencíveis. Distribuir-lhes-á abundantemente suas graças, de
modo que quanto mais parecerem pobres aos olhos do mundo, mais
serão ricos em virtudes e méritos; quanto mais forem vistos como
pequenos e desprezados, mais serão “grandes e elevados em santi-
dade diante de Deus”.
“Eles serão superiores a toda criatura por seu zelo avivado”, o que
quer dizer que seu apostolado não se deterá nem diante dos poderes
infernais enfurecidos, nem diante dos poderes humanos cúmplices.
E se sentirão “tão fortemente apoiados pelo socorro divino, que com
a humildade de seu calcanhar, em união com Maria, esmagarão a
cabeça do diabo”, arrancarão muitas almas de sua escravidão, con-
verterão os pecadores, recuarão as fronteiras do que ainda lhe resta
como império. “E eles farão triunfar Jesus Cristo”, estabelecerão seu
Reino, esse Reino magnífico que todas as almas santas esperam, e
pelo qual oram e se sacrificam.
Será o belo triunfo da Era mariana. Pois “Deus quer que sua santa
Mãe seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada do que
104 J. M. Dayet
é o Verbo de Luz, é a Sabedoria encarnada. Somente ele diz as palavras
que conduzem à vida eterna; e permaneço em santidade enquanto
guardo seu ensinamento.
Deposito esta renovação de minhas promessas batismais entre as
mãos de Maria Imaculada, rogando humildemente que ela coloque
em minha alma a inimizade que o próprio Deus estabeleceu entre ela
e o demônio. Peço-lhe que torne essa inimizade total, sem corrupção,
irredutível, eterna.
Assim ela me receberá, no dia de minha perfeita Consagração,
entre seus escravos de amor, que não se dão inteiramente a ela a não
ser para pertencer inteiramente a Jesus Cristo.
LEITURAS
PRIMEIRO DIA
CONHECER-SE PARA RENUNCIAR A SI MESMO
A
primeira Semana de nossos Exercícios preparatórios à Per-
feita Consagração deve ser empregada, segundo o conselho
de São Luís Maria de Montfort, a adquirir o conhecimento de
nós mesmos (V. D., n. 228). Perguntemo-nos, imediatamente, qual
é a razão de ser desse novo trabalho; em que difere do trabalho dos
doze dias preliminares?
A PALAVRA de Nosso Senhor: “Se alguém quer vir após de mim,
negue-se a si mesmo” (Lc 9, 23) será, nesta meditação, nossa maior luz.
Um duplo EXEMPLO do Evangelho, o do apóstolo Judas e o
do apóstolo Simão Pedro, fornecer-nos-á depois sua eloquente con-
firmação.
Imploremos o auxílio da Santíssima Virgem, e não deixemos de
repetir-lhe, durante os seis dias desta primeira Semana: O Domina,
noverim me! Ó divina Mãe e Senhora, ajudai-me a me conhecer bem, a
fim de bem renunciar a mim mesmo.
I
108 J. M. Dayet
Desejamos possuí-lo cada vez mais intimamente? Oramos a ele inces-
santemente, tanto em nossas tristezas quanto em nossas alegrias,
tanto no fervor quanto nos momentos de tentação ou de desenco-
rajamento, sem medo de importuná-lo, antecipadamente certos de
ser socorridos da melhor maneira em nossos interesses espirituais?
Somos também fiéis ao nos cercar da muralha da mortificação cristã,
vigiando sobre nossos sentidos, nossas leituras, nossas conversações
e convívio (pois o mundo está sempre à nossa porta, e o demônio
ronda ao nosso redor, buscando uma presa que possa devorar)?
Acima de tudo, estimamos, como o maior meio de perseverança,
uma verdadeira devoção a Maria, tal como São Luís Maria de Montfort
no-la descreveu, com as características que a distinguem das falsifi-
cações das quais o demônio se serve para enganar muitas almas; tal
como, sobretudo, no-la revelará sua perfeita Consagração?
Se chegamos a esse ponto, devemos reconhecer com toda since-
ridade que o trabalho dos doze dias preliminares é coisa cumprida ou
em bom caminho para se cumprir, e que é preciso continuar a nos
empenhar. Pois atingimos somente a indispensável primeira etapa: a
vida manifestamente cristã, oposta à vida mundana.
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110 J. M. Dayet
Em seguida, dedicar-nos-emos a conhecer melhor:
II
112 J. M. Dayet
bebida. O que come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu
o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6.)
Diante de tais afirmações, os espíritos que o orgulho cegava se
rebelaram; e muitos judeus, que tinham seguido o Salvador até então,
encontraram um pretexto para se afastar dele definitivamente. Em face
dessa deserção, Jesus, voltando-se aos seus Apóstolos, propôs-lhes cla-
ramente a questão de confiança: “Quereis vós também retirar-vos?”.
Simão Pedro tomou então a palavra em nome de seus irmãos:
Ah! Senhor, a quem iríamos? Somente vós tendes todos os segredos
da vida eterna, e no-los revelais em vossas palavras. Não há outro
Mestre além de vós. Sabemos que sois o Cristo, o Filho de Deus.
Admirável afirmação de fé! Se Jesus já havia feito tantos milagres,
seu amor todo-poderoso bem poderia cumprir também o milagre
eucarístico. Não se podia, pois, duvidar de sua palavra.
Mas, entre os Apóstolos, Judas não pensava assim. Grande fora
sua decepção ao ouvir o Salvador prometer, não uma felicidade ter-
rena, mas o alimento de uma vida sobrenatural que não seria outra
senão Ele mesmo. Visto que Jesus não tratava de suas intenções, ele
só podia deixá-lo. Por isso, sua apostasia era coisa decidida; e, na
falta de um lugar lucrativo no reino de seus sonhos, retiraria anteci-
padamente tudo o que pudesse do caixa apostólico, para assegurar
seu futuro temporal. Tornou-se ladrão. A palavra é do apóstolo São
João (12, 6). A paixão do dinheiro chegará ao ponto de conduzi-lo à
traição e ao deicídio.
Em vão Jesus tentará fazê-lo refletir sobre seus atos, tendo em
vista o horror mesmo do que visava fazer: Não fui eu que vos escolhi, a
vós os doze?, diz ele aos seus Apóstolos. No entanto, apesar dessa esco-
lha de predileção, um de vós é um demônio, isto é, semelhante ao diabo,
que, de bom, se fez mau. (Jo 6, 71.)
Outras advertências se seguirão, às quais o desgraçado não dará
nenhum valor. Ir-se-á, com a cabeça baixa, rumo à danação. Na
noite da instituição da santa Eucaristia, Judas consumará sua aposta-
sia, entregando o divino Mestre por trinta moedas de prata. Depois
disso, louco de desespero, enforcar-se-á. Triste fim de uma alma que
preferiu obstinadamente o espírito do mundo ao espírito de Jesus.
Oh! Agradeçamos ainda a São Luís Maria de Montfort por ter-nos
114 J. M. Dayet
seus privilégios no seio do Colégio apostólico não o garantiam contra
as tentações que podiam sobrevir.
O próprio Jesus teve o cuidado de adverti-lo quanto a isso. Na
última Ceia, falara da separação próxima, e da impossibilidade, para
os discípulos, de segui-lo aonde ele ia, isto é, ao martírio, à cruz.
“Para onde vais, Senhor?”, perguntou Pedro, ansioso. “Para onde vou,
respondeu Jesus, não podes me seguir agora, mas me seguirás mais tarde.” E
Pedro insistia: “Por que não posso te seguir desde agora? Eu daria minha vida
por ti!”.
– Ah! Simão, Simão, continua Jesus, não sabes que Satanás recebeu
permissão, pois é sua hora, para vos sacudir como o trigo que se depura? Todos
vós sereis escandalizados nesta noite por causa de mim.”
Pedro tenta, então, se justificar, tão seguro está de si mesmo e de
seu amor pelo Salvador: “Ainda que todos os outros se escandalizassem a
vosso respeito, eu não me escandalizaria!”
“Em verdade te digo, afirma Jesus, tu, tu, Simão, hoje, nesta noite, antes
que o galo cante duas vezes, ter-me-ás negado três vezes.”
Essa asserção é intolerável ao Apóstolo; ele contesta fortemente,
ousa contradizer seu divino Mestre, que é a própria Verdade: “Mesmo
que tivesse de morrer convosco, não, eu não vos negaria. Senhor, eu estou pronto a
ir contigo para a prisão e para a morte.” (Lc 22, 33.)
Em face de tamanha presunção, Jesus se cala. Esperará a lição dos
acontecimentos que se desenrolarão. Depois de sua prisão no jardim
das Oliveiras, todos os Apóstolos haviam começado a fugir. Pedro,
entretanto, tem outra opinião, e seguindo de longe a tropa, consegue
entrar no pátio do palácio de Caifás, onde servos e guardas se aque-
ciam ao redor de um fogo de brasa. De modo imprudente, juntou-se
a eles e quis esperar para ver como o julgamento terminaria.
Mas a porteira, aproximando-se do grupo e olhando Pedro com
atenção: “Tu também, disse-lhe ela, és um dos discípulos desse Nazareno?
– Não, respondeu o Apóstolo. Eu não sei, não compreendo o que queres
dizer.”
Um primeiro canto do galo ressoa, ao qual Pedro não dá atenção.
E eis que outra serva anuncia aos que se aqueciam que aquele homem
estava realmente com Jesus, o Nazareno. Pedro negou uma segunda
vez, e até com juramento: “Não conheço o homem do qual me falais.”
Não temamos, pois, projetar a luz sobre nós mesmos. Esse tra-
balho espiritual é indispensável. Que sua austeridade não nos assuste.
Para nos encorajar, pensemos desde agora na alegria das duas Sema-
nas que seguirão, nossa meditação fixada então sobre a Santa Virgem
e sobre Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa Consagração a esses Mes-
tres divinos exige que comecemos por nos humilhar e nos libertar
do obstáculo do “eu” egoísta, do apego ao nosso espírito próprio e à
nossa vontade própria.
116 J. M. Dayet
Se, em nosso passado, temos a deplorar faltas que lembram o
pecado de fraqueza do apóstolo Simão Pedro, imitemos seu arrepen-
dimento, confiando no Coração sempre amoroso do Salvador. Um
olhar bastou para fazer romper em lágrimas o apóstolo infiel e para
dissipar para sempre a orgulhosa estima que ele tinha por si mesmo.
Por isso, quando Jesus lhe pedir um triplo juramento de amor, em
compensação da tripla negação: “Simão Pedro, tu me amas, me amas
mais do que os outros?”, o Apóstolo não responderá diretamente à ques-
tão. Não se elevará mais, não se comparará mais, não afirmará mais
nada de sua pessoa; não se derramará mais em vãs afirmações, em
promessas verbais ilusórias. Terá renunciado a tudo isso e se conten-
tará a apresentá-lo ao testemunho e à ciência infinita de seu Mestre:
Sim, Senhor, vós que ledes no fundo do meu coração, sabeis bem que
vos amo, e não mais “eu”, como outrora.
A humildade – uma humildade profunda – havia entrado em sua
alma com a triste experiência de sua queda e o conhecimento de seu
defeito dominante. O mesmo se dará conosco. O conhecimento que
adquiriremos de nossas fraquezas e de nossas tendências defeituosas
fará caírem nossas ilusões. Ela nos encaminhará a essa virtude de
humildade que é a única que pode favorecer de modo eficaz a renún-
cia a si exigida por Nosso Senhor.
Peçamos ao Espírito Santo que nos ilumine, recitando suas Lita-
nias todos os dias desta Semana, como prescreve nosso Padre de
Montfort. Recorramos também, todos os dias, à Santíssima Virgem,
por meio da recitação da Ave, maris Stella e de suas Litanias, para
“pedir-lhe esta grande graça (o conhecimento de nós mesmos) que deve
ser o fundamento das outras”. (V. D., n. 228.)
LEITURAS
118 J. M. Dayet
santificadora, da participação na própria vida de Deus. Essa privação
da vida sobrenatural faz com que nasçamos submissos à influência do
demônio. Ele é o senhor em nós, um senhor tirânico, que não possui
nenhum direito, mas que ocupa seu espaço. É por isso que, antes de
derramar a água santa do batismo sobre nossa cabeça, o sacerdote
realiza os exorcismos contra Satanás: “Sai desta criança, espírito imundo,
e deixa lugar ao Espírito Santo!” Por duas ou três vezes, a mesma ordem
é reiterada: Sai! Vai-te! Não és mais o senhor aqui. Retira-te, espírito
do mal, e deixa lugar ao Espírito Santo.
Em virtude dessas palavras, unidas à do rito essencial, o demônio
é obrigado a se retirar; e Deus, Trindade santa, faz em nossa alma
sua entrada silenciosa e santificadora. A vida sobrenatural, que fora
dada ao nosso primeiro pai, e que ele havia perdido para si e para seus
descendentes, por sua grave desobediência, é misericordiosamente
devolvida a nós nesse instante. Tornamo-nos filhos de Deus. Satanás
não poderá exercer sua tirania, a menos que o obriguemos a retornar,
cometendo o pecado mortal.
Que os homens que vivem sem a graça do batismo sejam escra-
vos do demônio, podemos nos convencer disto ao refletir sobre o
que era o mundo pagão antes da vinda de Nosso Senhor, e sobre o
que ele é ainda hoje, depois de dezenove séculos de pregação evangé-
lica. Satanás reinava e reina ainda como senhor absoluto. Que estra-
gos provoca ele nas almas! Que degradação produz até nos corpos!
Mesmo em nossos velhos países cristãos, que retornam, em
grande parte, ao paganismo, ou – pecado ainda mais grave – que
professam abertamente o ateísmo, não vemos Satanás triunfar nova-
mente, e multiplicar por milhares e milhares o número de seus escra-
vos? É uma verdade experimentada que nos tornamos escravos de
nosso sedutor. “A ordem da justiça divina é assim constituída, ensina
São Tomás de Aquino,34 que se alguém cede à sugestão de outro
para pecar, deve submeter-se ao poder desse outro para ser punido,
segundo esta palavra de São Pedro em sua segunda epístola: a quo quis
superatus est, hujus et servus est.” (2, 19.) Somos escravos daquele por
120 J. M. Dayet
II
36 Mt 21, 19.
37 Mt 25, 24-30.
38 Ef 2, 10.
122 J. M. Dayet
Visto que somos “seus verdadeiros escravos” no sentido pleno do
termo, seria manifestar-lhe nossa mais amorosa gratidão entregar-
nos assim ao seu serviço, para honrá-lo pertencendo a ele. Não
temamos ostentar confiantemente, assim como fez o apóstolo São
Paulo (Rom 1, 1), esse nobre título de escravos de Jesus Cristo.
“Escravos”, e não simplesmente “servos”. O servo só depende par-
cialmente de seu senhor: ele trabalha pela contrapartida dos rendi-
mentos, e por um tempo limitado. Por isso, não se pode chamá-lo
de servo de amor.
Nós desejamos, ao contrário, dar-nos inteiramente e para sem-
pre, respeitando nosso inteiro e eterno pertencimento, reconhecido e
amado. Desejamos que nada possa limitar nossa doação, nem medi-la,
restringi-la ou condicioná-la.
Não se trata, aqui, senão da escravidão por vontade, a qual pro-
cede do coração; e a palavra “escravo”, como a entendemos, não é
de modo algum oposta a “livre”, mas somente a “Senhor”. Escravos
de um Senhor que se chama Nosso Senhor Jesus Cristo, o que pode
haver de mais espontâneo, de mais livre, de mais impregnado de amor
profundo? Nunca o amaremos ou pertenceremos a ele demais; é por
isso que prosseguimos utilizando a palavra mais forte em nossas lín-
guas humanas, para exprimir-lhe nossa total e absoluta dependência.
Compreendemos, com isso, a incansável insistência da Igreja em
terminar todas as suas Orações litúrgicas, todas as suas implorações
de graças, recorrendo à fórmula que relembra e honra seus direitos
de Redentor: Per Dominum nostrum Jesum Christum... Por Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Mestre. Se o reconhecemos “Senhor e Mestre” (e
é o único Senhor e Mestre: Tu solus Dominus... Jesu Christe, dizemos
na Gloria da missa), é preciso que a esse título corresponda o nosso
título de escravos, assim como ao título de “pai” corresponde o de
“filho”. Um chama o outro; são inseparáveis.
Na manhã da Anunciação, quando a Virgem de Nazaré aceitou
essa divina Maternidade corredentora que o enviado do Céu lhe
propunha, não começou por inclinar toda a sua pessoa diante dos
direitos de Deus? Ela não hesitou em se proclamar sua escrava: Ecce
ancilla Domini, isto é, segundo a força do texto original, não somente
a serva, mas a escrava de seu Senhor e único Mestre, Deus. E de
modo semelhante, desde a primeira estrofe de seu cântico do Magnifi-
124 J. M. Dayet
Conhecendo, pois, agora, o que somos em relação a Jesus Cristo,
amaremos nosso fundamental pertencimento de resgatados. Amaremos
o termo que o exprime: é o da humildade na verdade. As almas verdadei-
ramente humildes não experimentam qualquer dificuldade em assumi-lo,
pois ele vai ao encontro de sua necessidade de depender, de servir e de
doar-se. As objeções sobrevêm somente se nos colocamos diante dos
homens e de nós mesmos, enquanto importaria colocar-se unicamente
diante de Deus, como fez a Virgem em Nazaré. Se olharmos para os
homens, constataremos apenas violências e ultrajes à dignidade humana.
Se nos detivermos em nós mesmos, estaremos às voltas com pensamen-
tos de egoísmo e de amor-próprio.
Olhemos para o alto, bem acima dos homens e de nós mesmos!
Olhemos o adorável e amável Jesus, a Sabedoria eterna e encarnada,
que nos comprou ao preço de todo o seu sangue. Rendamos-lhe graças
por ele ter aniquilado a si mesmo, assumindo a forma de um escravo,
para nos tirar da cruel escravidão do demônio. Peçamos-lhe, pela santa
Mãe, a contrição e o perdão de nossas faltas, e ofereçamo-nos genero-
samente a todas as renúncias que exige nosso divino pertencimento.
LEITURAS
126 J. M. Dayet
Em nossa inteligência, a ignorância substituiu a ciência infusa. O
primeiro homem recebera de Deus a revelação das verdades sobre-
naturais que seu estado de justiça comportava, assim como um con-
junto de conhecimentos sobre as coisas necessárias à vida, em razão
de sua condição de cabeça e educador do gênero humano. Como essa
ciência foi perdida, devemos remediar esse mal por meio da ciência
adquirida. Quando chegamos ao mundo, ignoramos tudo: nossa inte-
ligência se encontra tão nua quanto uma placa de mármore bem lisa
onde não há nada gravado, ou quanto um painel em branco, sobre
o qual nada está pintado. Tudo deverá começar a chegar a nós pelos
sentidos, e durante nossa vida inteira será preciso aprender.
Um duro e contínuo trabalho se impõe, pois a ignorância, sobre-
tudo a das verdades importantes para a direção de nossa vida moral
e de nossa vida espiritual, não é facilmente vencida. É um fato que
o a maioria dos batizados se mostra resistente a cultivar e desenvol-
ver em si os ensinamentos do catecismo. Contentam-se com pouco,
não compreendem que importaria nunca se desabituar do estudo das
verdades reveladas. Por isso, quantas deficiências, quantas lacunas,
quantos erros nos espíritos em matéria religiosa!
Mesmo naqueles que se dirigem decididamente ao conhecimento
de Deus e das coisas divinas, que se dedicam a reduzir tanto quanto
possível a ignorância nativa por meio da inteligência dos mistérios da
fé e pelas iluminações provenientes dos dons do Espírito Santo, uma
grande parte de obscuridade permanece. Avançam às cegas rumo à
plena luz reservada à gloria, sabendo bem que se entregam ao estudo
de uma ciência infinita, mas que produz sua beatitude neste mundo.
“Ó Senhor, suplicava santo Agostinho, que vossas Escrituras sejam sempre
minhas castas delícias. Que eu beba de vossas águas salutares, desde o começo
do Livro sagrado, em que vemos a criação do Céu e da terra, até o fim, onde
contemplamos a consumação do Reino perpétuo de vossa Cidade santa.” Santo
Agostinho era, no entanto, um grande gênio. O que pensar, então, de
nós mesmos e de nossas ignorâncias humilhantes?
Com a ciência infusa, o pecado original nos fez perder igualmente
o domínio sobre nossas paixões. A vontade de Adão inocente, espe-
cialmente fortificada pela graça, matinha facilmente a ordem em meio
às tendências das faculdades inferiores. “O poder da imagem de Deus na
128 J. M. Dayet
Quanto às duas outras feridas do pecado original, o sofrimento e
a morte, elas permanecem inelutáveis e implacáveis para todos. Deve-
mos comer nosso pão com o suor de nosso rosto, expostos às doenças
e enfermidades de toda sorte; esperando voltar um dia à terra da qual
fomos tirados. Mas aqui também, com a graça redentora usada provei-
tosamente, podemos santificar o sofrimento e suavizar o que a morte
comporta de pavoroso e de cruel. Lembremo-nos do que diz o Padre
de Montfort quanto à morte dos fiéis escravos de Maria: ela é doce e
tranqüila, tendo ordinariamente a assistência da Virgem para conduzi-
los pessoalmente às alegrias da eternidade. (V. D., n. 200.)
II
130 J. M. Dayet
mais ainda a desejar sempre ter razão, a não reconhecer seus erros,
a não considerar as advertências recebidas; a não se dobrar, a não
ceder; muito mais, a resistir a tudo e contra tudo. E diante de uma
resistência, irritam-se, indispõem-se, chegam às vezes à cólera, que faz
perder o controle das faculdades. Esse defeito, como vimos, era o do
apóstolo Simão Pedro, cabeça do colégio apostólico. Por não tê-lo
reconhecido, expôs-se à tentação sem precauções nem garantias, e
caiu em um triplo pecado grave. Acrescentemos, em seu louvor, que
depois de ter reconhecido e chorado suas negações, tornou-se o mais
humilde de todos, como testemunhou sua morte na cruz.
A ambição e o desejo de dominar derivam da mesma fonte. A natu-
reza ama e busca as honras, as dignidades. Quer chegar aos primeiros
cargos; e por isso, mostra-se lisonjeira, elogiosa, buscando o favor dos
que estão no alto. Quando ali chega de fato, para manter seu posto,
não pensa duas vezes antes de afastar as pessoas que a incomodam,
e cerca-se de outras que a adulam. A inveja ou o ciúme entram então
em jogo em relação a quem exerça uma ascendência capaz de destruir
sua situação elevada ou rivalizar com as qualidades brilhantes que
admira em si. Sofre ao ouvir louvar os outros; esforça-se por atenuar
esses elogios por meio de críticas malignas.
Tal é a triste demonstração do defeito de orgulho. Como vemos,
ele se opõe antes de tudo ao espírito de humildade.
A cobiça da carne leva-nos a amar o corpo mais do que devemos:
é uma tendência muito pronunciada a se dedicar excessivamente às
satisfações que o afetam. Aqueles em que domina esta cobiça têm de
lutar mais do que os outros contra a preguiça, a gula, e contra as afei-
ções sensíveis. A preguiça faz recuar diante de todo esforço corporal:
o trabalho assíduo, as obrigações, os empregos que reclamam uma
coragem perseverante. Por outro lado, ela se compraz no que favo-
rece o descanso do corpo, seu bem-estar, como o sono prolongado,
os banhos frequentes, o uso dos perfumes, as vestimentas delicadas,
os passeios agradáveis, as visitas sem razão. Essa preguiça, se não é
combatida, expõe a muitas tentações.
A gula revela um abuso do prazer legítimo que Deus quis rela-
cionar ao comer e ao beber: seja consumindo alimento ou bebida
sem necessidade, fora das refeições, pelo prazer de se satisfazer; seja
132 J. M. Dayet
O preceito evangélico da renúncia se impõe. Importa-nos, diz
Montfort, “renunciar às operações das faculdades de nossa alma”. (V. D., n.
81.) No que concerne à nossa INTELIGÊNCIA, renunciar a esse
mal que é a ignorância religiosa. Dediquemo-nos a conhecer o que diz
respeito a Deus, nosso fim derradeiro, e aos meios de chegar a ele.
Esse conhecimento é primordial: seria insensato se ocupar das ciên-
cias humanas e negligenciar a ciência da salvação. Quantos batizados,
muito instruídos neste ou naquele ramo do saber humano, têm um
conhecimento bastante imperfeito das verdades cristãs.
Renunciar a essa vã curiosidade, que busca antes de tudo e de
maneira excessiva as leituras agradáveis, como as dos romances, dos
jornais e de certas revistas da moda, onde a alma não encontra nada
que possa elevá-la ou enriquecê-la. Fazemos, assim, o agradável pas-
sar à frente do útil e do necessário, perdemos um tempo precioso,
transformamos o que devia ser momento de relaxamento em uma
ocupação vazia que se prolonga e prejudica grandemente o bom
emprego do dia.
Renunciar também e, sobretudo, a essa particularidade de orgulho
do espírito, que pretende bastar a si mesmo e se inclina com dificuldade
diante dos ensinamentos da fé ou das diretivas do Magistério, como
também diante da obediência devida aos Superiores. Argumentamos,
criticamos, agarramo-nos às nossas próprias ideias, não consultamos
a autoridade, só temos confiança em nosso julgamento, tratamos
com desdém as opiniões dos outros. Semeamos, assim, a divisão, em
vez de cultivar a paz e a concórdia.
No que concerne à VONTADE, que é em nós a faculdade mes-
tra, a causa de nossos méritos ou deméritos, devemos renunciar a
seguir as exigências das faculdades inferiores, a fim de sempre sub-
meter perfeitamente nosso querer ao de Deus; o que exige muitos
sacrifícios, em particular o sacrifício de nossos gostos, de nossos
caprichos, de nossos interesses naturais.
Renunciar à irreflexão que nos faz seguir o impulso do momento,
o arrebatamento ou mesmo a rotina. Não refletimos antes de agir,
não nos perguntamos o que Deus espera de nós.
Renunciar à displicência, à indecisão, à falta de força moral,
todas coisas que paralisam as forças da vontade. Importa adquirir,
134 J. M. Dayet
No que concerne às palavras contrárias à pureza ou à caridade,
se não podemos evitar ouvi-las, ao menos não as escutemos, não
ofereçamos a elas um ouvido atento; sobretudo, não interroguemos
para estabelecer ou prolongar uma conversação já perniciosa em si
mesma. É muito raro que conversações desonestas ou contrárias à
caridade não produzam efeitos desastrosos nos que as escutam. As
primeiras acendem desejos maus e provocam o pecado; as segun-
das conduzem a falatórios que prejudicam a reputação do próximo:
somos levados a repetir o que ouvimos. Apreciemos as conversações
que são luz e benevolência, ao mesmo tempo que sábia distração.
Assim usaremos deste mundo como se não usássemos, sabendo
que tudo nele é passageiro, caduco, efêmero. É o que São Paulo
denomina “morrer todos os dias”: Quotidie morior (1Cor 15, 31). Jesus,
recorrendo a uma comparação que lhe é familiar, já havia dito: “Se
o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer,
produz muito fruto.” (Jo 12, 24.) Se não morrermos para nós mesmos,
explica Montfort, e se nossas devoções mais santas não nos levam a
essa morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha
para a vida eterna, nossas devoções se tornarão inúteis, todas as nos-
sas obras de justiça serão manchadas por nosso amor-próprio e por
nossa vontade, o que fará que Deus abomine os maiores sacrifícios
e as melhores ações que possamos realizar. No momento de nossa
morte, nos encontraremos com as mãos vazias de virtudes e de méri-
tos; não teremos uma centelha do puro amor, que só é comunicado
às almas mortas para si mesmas, cuja vida está escondida com Jesus
Cristo em Deus. (V. D., n. 81.)
_______________
LEITURAS
136 J. M. Dayet
QUARTO DIA
SOMOS POBRES PECADORES
43 Essa é maneira que adota Montfort, quando explica os três Domine, non
sum dignus do momento da comunhão. (V. D., n. 267, 268, 269.)
138 J. M. Dayet
vencer a morte, permanecer sempre presente em nosso meio: dei-
xar que nos alimentemos dele, para sermos transformados nele. É
assim que, sabendo que era chegada a hora de passar deste mundo
ao seu Pai, e tendo-nos amado até então, amou-nos ainda mais nesse
momento supremo, elevando-se a esse topo de afeição sobre o qual
seu Coração estará para sempre.
A esse Jesus amoroso ao extremo nós prometemos uma devoção
fiel e inviolável. Quantas vezes renovamos-lhe nossas promessas de
fidelidade! Quantas vezes também, talvez, nos separamos dele, nos
desligamos dele, tornando-nos como membros mortos no seio do
Corpo místico. Pois o pecado grave cometido de modo consciente
consiste nisto: uma ofensa que acarreta a interrupção da graça santi-
ficante, um corte do influxo vital proveniente do Cristo.
Misericordiosamente, após a humilde confissão de nossas faltas,
com o arrependimento de nosso coração, Jesus nos perdoa e nos
religa a ele, devolve-nos sua vida; mas teremos sempre a lamentar
nos termos separado dele, desprezando seu amor, seus sofrimentos e
sua morte na cruz, desprezando sua Eucaristia. Como devemos nos
humilhar, nos reconhecer indignos das ternuras e das predileções que
ele se oferece a nos devolver, como se nunca o tivéssemos ofendido!
Oh! Nossa miséria de pecadores arrependidos em face desse Amor
que quer tudo esquecer e aceitar outra vez nossas promessas!
Ingratos para com o pai, infiéis para com o Filho, é preciso ainda
que reconheçamos nossa MORNIDÃO para com o Espírito Santo,
hóspede tão doce da alma em estado de graça. Não é ele o artesão
de nossa santificação? Por suas inspirações, suas iluminações, suas
moções, ele indica o caminho a seguir, desperta os pensamentos de
fé, os bons desejos, os ímpetos generosos, os ardores de apostolado;
ele convida ao recolhimento, ao silêncio interior, à vida interior pro-
funda, à subida rumo à perfeição, aos progressos incessantes nas vir-
tudes e sobretudo na Caridade, que é o amor de Deus e do próximo.
Ele ama e quer nos ver amar sem voltar atrás.
As faltas graves o fazem ir embora; as faltas veniais voluntárias
o contristam; a solidão à qual o abandonamos tão frequentemente
provoca seus gemidos de amor não reconhecido, que são ainda cha-
mados da graça.
II
140 J. M. Dayet
Por meio de Jesus Cristo, apoiados e revestidos por seus méri-
tos, acedemos ao Pai, oramos a ele com toda a Igreja triunfante e
militante. Quando recitamos o Pater, é pelo coração e pelos lábios do
Filho que fazemos subir essa prece que glorifica e que pede. Não foi
ele quem no-la ensinou? É também por seus méritos que podemos
chamar Deus “nosso Pai”, visto que sua redenção conquistou para
nós a graça de nossa filiação divina. Desse modo, não nos apoiamos
sobre nós mesmos, sobre nossos próprios trabalhos, habilidades e
preparações, que seriam de pouca importância diante de Deus, para
fazê-lo se unir a nós e nos atender.
Negligenciar essa meditação e querer nos aproximar diretamente
da Majestade e da Santidade do Pai, sem nenhuma recomendação,
seria, diz-nos Montfort, “faltar com humildade, faltar com respeito
para com um Deus tão elevado e tão santo; seria fazer menos caso
desse Rei dos reis do que faríamos de um rei ou um príncipe da
terra, do qual não desejaríamos nos aproximar sem algum amigo que
falasse em nosso favor”. (V. D., n. 83.)
Mas nossa miséria de pobres pecadores é tamanha – como acaba-
mos de ver – que, mesmo junto de Jesus Mediador, precisamos ainda
de Maria Mediadora. Apesar de possuir uma natureza semelhante à
nossa, Jesus permanece “Deus, em todas as coisas igual ao seu Pai.
Ele é, por isso, o Santo dos santos, tão digno de respeito quanto seu
Pai. Se, por sua caridade infinita, ele se fez nossa caução e nosso
mediador junto a Deus, seu Pai, para aplacar sua ira e pagar-lhe o que
lhe devemos, importa, por essa razão, que tenhamos menos respeito
e temor por sua Majestade e sua Santidade?
“Digamos, portanto, ousadamente com São Bernardo, continua Montfort,
que necessitamos de um mediador junto ao próprio Mediador, e que a divina Maria
é a mais capaz de cumprir esse ofício caridoso.”44
A primeira e melhor razão é a que nos dá o próprio Verbo encar-
nado, quando de sua Encarnação: visto que é por intermédio de Maria
que ele veio até nós, é, pois, por Maria que devemos ir a ele. Não
podemos fazer melhor do que imitar seu exemplo. Em Belém, os
142 J. M. Dayet
Mãe de Deus e de Corredentora de nossas almas. Nunca escrutaram,
sobretudo, o fundo de suas misérias. Um pouco de humildade abrir-
lhes-ia os olhos.
Sucede também que encontramos outras almas – estas muito
humildes e belas – que amaram e amam muito ainda a Santa Virgem,
mas que, a partir de um certo tempo, se acostumaram a se dirigir mais
frequentemente a Nosso Senhor diretamente, a falar-lhe familiar-
mente e a provar da intimidade de sua união com ele. Experimentam,
então, alguns temores, perguntam-se se ainda estão no bom caminho,
se amam ainda a Santa Virgem como antes; e interrogam, pedem
conselho. É preciso tranquilizá-las: nessas almas amorosas e dóceis,
Maria Mediadora cumpriu sua obra de santificação. Despojou-as de
seu amor-próprio e de sua própria vontade; revestiu-as com suas vir-
tudes amáveis; colocou-as em intimidade direta com Nosso Senhor.
Depois, ela não se retirou (pois nunca se retira), mas como que se
apagou, se eclipsou, pôs-se na sombra, a fim de deixar essas almas
saborearem melhor as alegrias de sua união ao seu divino Filho.
Esse é o testemunho que nos deu de si mesma a reclusa carmelita
do beguinário de Gante, Maria de Santa Teresa (Ϯ 1677), alma admi-
ravelmente privilegiada. Espantando-se, um dia, por não mais gozar
com tanta frequência como outrora da presença da amável Maria e
de suas instruções ou afetuosas palavras, ela tinha, contudo, a íntima
convicção de que seu amor era mais tão terno, inocente, filial e doce
do que nunca. Veio-lhe, então, esta resposta interior: quando a amá-
vel Mãe estava constantemente junto de ti e te guiava no caminho
de suas virtudes, era a fim de te preparar para a união perfeita com
seu caríssimo Filho. Agora que essa união se cumpriu, ela se mantém
afastada e te deixa conversar sozinha com ele...45 Essa alma gozava
da união mística.
Ainda não chegamos a esse ponto. Enquanto permanecemos às
voltas com nossas misérias, sentimos profundamente essa necessi-
dade de recorrer a Maria, de sempre passar por sua intercessão para
ir a Jesus. Quando, recitando as Ave de nosso Rosário, bendizemo-la
45 Ver A União mística a Maria, por Maria de Santa Teresa, nos Cadernos da
Virgem, n. 15. Editions du Cerf.
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144 J. M. Dayet
Santíssima Mãe, que me destes como Mediadora junto a vós; e é por meio dela
que espero obter de vós a contrição e o perdão de meus pecados”, isto é, a graça
que vai primeiro curar e purificar minha alma; depois, “a aquisição e a
conservação da Sabedoria”, isto é, a graça que me transformará progres-
sivamente, até fazer-me possuir constantemente o amável e adorável
Jesus, gozando dos tesouros que sua divina Pessoa encerra.
Com que confiança e que perseverança devemos, então, implorar
tais graças pela intercessão e pela misericórdia de nossa celeste Media-
dora! Que consolação para nossa miséria de pobres pecadores!
LEITURAS
146 J. M. Dayet
apresentar, nossa pobre natureza humana saberá resistir? Lembremo-
nos do exemplo do apóstolo Simão Pedro: ele prometera tudo, e com
que fervor; e, diante das interrogações de uma serva, soçobra mise-
ravelmente.
O espírito está pronto para prometer, isto é, a alma, a vontade,
com seus entusiasmos fáceis; mas a carne, isto é, a natureza humana,
permanece tristemente frágil na presença de uma ocasião que a tenta.
Não pensamos que isso poderá nos arrastar para longe. Detemo-nos,
argumentamos; expomo-nos, assim, ao perigo, cultivamo-lo, brinca-
mos com ele, presumimos de modo imprudente sobre nossa força,
até que chega um momento em que a fraqueza da carne prevalece
contra essa força do espírito, e caímos gravemente.
Teria sido melhor, seguindo a recomendação de Nosso Senhor
(Mt 26, 41), cercar-se de vigilância, não cair na armadilha, e recorrer
à oração para ter a graça de resistir. Quantas vezes, talvez, apesar das
experiências do passado, ignoramos essa advertência do divino Mes-
tre, que nos alertava contra nossa fraqueza!
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148 J. M. Dayet
“Não somente nas praias, ou nos locais de veraneio, mas por toda
parte, mesmo nas ruas das cidades e dos vilarejos, nos lugares priva-
dos e públicos, e amiúde quase nos templos consagrados a Deus, se
exibe uma indigna e inconveniente moda do vestuário... Em particu-
lar, as vestimentas femininas são às vezes tais que parecem favorecer
mais a impudicícia do que o pudor.
“Chegamos ao ponto em que tudo o que se passa ou se exibe na
vida privada ou em público, como depravação ou desonestidade, é
relatado impudentemente nos jornais, nas publicações e revistas de
todos os gêneros; enquanto nas incontáveis salas de cinema isso é
exposto aos olhos de todos sobre a tela; de modo que não somente a
fraca e displicente juventude, mas também a idade madura é profunda-
mente impressionada por esses espetáculos imorais, tão perniciosos para
os espíritos sãos. Que males decorrem deles, a que perigos expõem,
e ninguém se dá conta disso.”46
No século V, o papa São Leão Magno denunciava a corrupção
do mundo, num ponto em que se tornava como que necessário, dizia
ele, que mesmo os corações religiosos fossem manchados, senão por
sua lama, ao menos por sua poeira.47 Em nossos tempos, é sua lama
que se propaga sobre a sociedade cristã inteira; “de modo que, acres-
centava Montfort depois de ter citado esse texto, é uma espécie de
milagre quando uma pessoa permanece firme no meio dessa torrente
impetuosa sem ser arrastada, no meio desse mar revolto sem ser sub-
merso, no meio desse ar empestado sem sofrer dano” (n. 89). Ai de
mim! Que diria ele hoje, na presença dessa exposição de corrupção
que a voz de Roma estigmatizava acima? Entretanto, acrescenta ele
ainda, se for preciso um milagre, “é a Virgem unicamente fiel... que
o fará em favor daqueles e daquelas que a servem da maneira correta”
(n. 81), isto é, pela Consagração vivida para a qual nos preparamos.
150 J. M. Dayet
Ouçamos agora Montfort exaltar a fidelidade da Santíssima Virgem.
“Ela é a Virgem fiel que, por sua fidelidade a Deus, repara as perdas
que produziu Eva, a infiel, por sua infidelidade, e que obtém a fideli-
dade a Deus e a perseverança àqueles e àquelas que se apegam a ela. É
por isso que São João Damasceno a compara a uma âncora firme, que
os segura e os impede de naufragar no mar agitado deste mundo, onde
tantas pessoas perecem por não se prenderem a essa âncora firme.
Prendemos, diz ele, as almas à vossa esperança, como a uma âncora firme.50
“Foi a Maria que os santos que se salvaram mais se apegaram, e
apegaram os outros, a fim de perseverar na virtude. Felizes, pois, e
mil vezes felizes os cristãos que agora se apegam fielmente e intei-
ramente a ela como a uma âncora firme. Os esforços da tempes-
tade deste mundo não os farão submergir, nem perder seus tesouros
celestiais. Felizes aqueles e aquelas que entram nela como na arca de
Noé! As águas do dilúvio de pecados, que afogam tantas pessoas,
não os prejudicarão, pois aqueles que estão em mim para trabalhar em sua
salvação não pecarão, diz ela com a Sabedoria.51 Felizes os filhos infiéis
da desventurada Eva que se apegam à Mãe e Virgem fiel, que permanece
sempre fiel e jamais nega a si mesma,52 e que ama sempre os que a amam,53 não
somente com um amor afetivo, mas com um amor efetivo e eficaz,
impedindo-os, por uma grande abundância de graças, de recuar na
virtude ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
“Essa boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo o que lhe
é confiado em depósito; e, depois de o ter recebido uma vez na qua-
lidade de depositária, é obrigada por justiça, em virtude do contrato
de depósito, a guardá-lo para nós; assim como uma pessoa a quem eu
tivesse confiado mil escudos em depósito seria obrigada a guardá-los
para mim, de modo que se, por sua negligência, meus mil escudos
viessem a ser perdidos, ela seria justamente responsável por isso. Mas
não, jamais a fiel Maria deixará se perder, por sua negligência, o que
50 Serm. in Dormitione B. M. V.
51 Qui operantur in me non peccabunt. (Eclo 24, 30.)
52 Fidelis permanet, se ipsam negare non potest. Aplicação à Santa Virgem do
texto de São Paulo: 2Tim 2, 13.
53 Ego diligentes me diligo. (Prov 8, 17.)
LEITURAS
152 J. M. Dayet
SEXTO DIA
FAÇAMOS VALER NOSSO SEGREDO DE GRAÇA
154 J. M. Dayet
Vigiaremos, semelhantemente, para ordenar nossa sensibilidade
segundo a direção que a própria Virgem lhe imprime. Sendo Maria
a Rainha de nosso coração, seu amor deve dirigir todas as nossas
afeições. Quantas alegrias experimentaremos então, como nos senti-
remos livres para amar as almas, todas as almas das quais nos apro-
ximarmos, sobretudo as almas dos pequenos, dos humildes, dos
pobres, dos abandonados e deserdados deste mundo, as dos doen-
tes, dos sofredores, dos cobertos de provações. Não era para ela,
antes dos outros, que se dirigia a ternura do divino Mestre? Maria não
deseja nos ver amar nossos irmãos como seu divino Filho amou a
todos nós, com bondade, doçura, paciência, condescendência, mise-
ricórdia, com espírito de solidariedade e de auxílio mútuo? Conserva-
remos assim da nossa sensibilidade – essa preciosa faculdade que não
é, de modo algum, sentimentalidade ou pieguice – toda a sua força
de devotamento ao serviço de uma vontade unicamente desejosa de
testemunhar compaixão aos que têm mais necessidade.
Quanto à nossa memória, o melhor não é conservá-la sempre
rica da lembrança dos benefícios dos quais fomos objeto da parte
de Maria? De quantos favores nos cobriu ela? De quantas quedas
nos reergueu? De quantos acidentes nos preservou! Cultivemos essas
reconfortantes lembranças: elas nos libertarão de certas outras nas
quais se agitam os ressentimentos, os rancores, as voltas e o isola-
mento sobre nós mesmos. Na basílica de Nossa Senhora de Liesse,
perto de Laon, sobre um dos ex-votos que forram suas paredes, lê-se
esta inscrição: “A Santa Virgem trouxe alegria à minha vida.” Teste-
munho de uma alma que soube se elevar acima das adversidades e
contrariedades da vida presente para se refugiar na alegria pacifica-
dora que lhe trazia seu amor por Maria.
_______________
156 J. M. Dayet
lhe entregamos; e, além disso, o valor que contêm nossas boas ações
passadas, presentes e futuras: seu triplo valor de mérito, de oração e
de sacrifício.
Seu valor de mérito é confiado à guarda da Santíssima Virgem. É
coisa estritamente pessoal, inalienável, incomunicável. Nossos méri-
tos são os títulos com os quais compramos nosso lugar no paraíso.
Mas esses títulos, como vimos em nossa meditação precedente, não
estão em maior segurança nas mãos de Maria do que nas nossas? Ela
saberá guardá-los fielmente, visando nosso melhor interesse. Saberá
defendê-los. Entreguemos-lhos com confiança.
Seu valor de oração e de sacrifício não é coisa inalienável: podemos
beneficiar outras pessoas com ele. Por meio de nossas preces, pode-
mos obter favores espirituais e temporais para esta ou aquela pessoa.
Por meio de nossos sacrifícios, nossas satisfações, podemos obter para
pecadores, moribundos, para almas do Purgatório a redução da pena,
devida aos pecados perdoados. As indulgências, que nos dedicamos a
ganhar, abrangem essencialmente essa vantagem tão apreciável.
Desse duplo valor da prece e do sacrifício, fazemos a Maria um
abandono completo, incondicional. Renunciamos a dispor deles, e dei-
xamo-la livre para utilizá-los conforme sua vontade, como bem lhe
parecer. Nossa primeira e direta intenção não é precisamente nos
privar em favor dos outros, mas deixar a Maria a inteira liberdade de
fazer o que desejar, no maior desinteresse de nós mesmos.
“Que eu saiba, escrevia o cardeal Mercier, não existe ato mais abran-
gente que a alma pode dedicar a Deus e a Cristo (por intermédio de Maria)
do que esse ato de renúncia, tal como o entende São Luís Maria de Montfort...
Os conselhos evangélicos, tal como são correntemente praticados, comportam a
renúncia aos bens exteriores, às satisfações dos sentidos, à independência da von-
tade pessoal. A devoção de Montfort vai mais longe: renuncia até mesmo à livre
disposição de tudo o que, em nossa vida espiritual, é suscetível de ser objeto de
renúncia... Oh! Sim, vai longe o abandono que ele prega; vai, parece, ao extremo.
Somente Deus, para cada alma, pode medir seu alcance.”55
II
158 J. M. Dayet
pessoal e inalienável, não teremos ganhado com isto a posse de um
Céu mais belo?
Quão vã parece, então, a apreensão, às vezes manifesta, de uma
estadia prolongada no Purgatório! Como “uma alma fervorosa e
generosa, que faz os interesses de Deus e do próximo estarem antes
dos seus; e que dá a Deus tudo o que tem, sem reserva, de modo
que não pode mais: non plus ultra; como essa alma generosa e liberal,
que não respira senão a glória de Deus e o reino de Jesus Cristo por
sua santa Mãe, e que se sacrifica inteiramente para conquistá-lo, será
punida no outro mundo, por ter sido mais liberal e mais desinteres-
sada do que as outras? Pelo contrário, afirma Montfort; essa alma
será mais magnificamente recompensada neste mundo e no outro.”
(V. D., n. 133.)
Neste mundo, pois a Santíssima Virgem não se deixa jamais vencer
em amor e em liberalidade: ela mesma “se dá também inteiramente e
de maneira inefável àquele que lhe dá tudo. Ela o faz ser tragado no
abismo de suas graças; orna-o com seus méritos; apoia-o com seu poder;
ilumina-o com sua luz; abrasa-o com seu amor; comunica-lhe suas vir-
tudes: sua humildade, sua fé, sua pureza, etc.; torna-se sua caução, seu
suplemento, e seu valioso tudo para com Jesus”. (V. D., n. 144.)
No outro mundo, nossa recompensa será sermos introduzidos mais
rapidamente no paraíso, pois a caridade perfeita suprime o Purgatório,
ou – se resta ainda alguma expiação – diminui-o notavelmente. Muito
mais, como dissemos, aumentando nossos méritos, ela aumenta tam-
bém nosso grau de glória no Céu. Podemos desejar mais rica recom-
pensa? Jamais se realiza melhor a palavra do Evangelho: “Dai, e dar-se-
vos-á: uma medida boa, cheia, recalcada e acogulada...” (Lc 6, 38.)
_______________
LEITURAS
160 J. M. Dayet
A SEGUNDA SEMANA
CONHECIMENTO
DA SANTA VIRGEM
PRIMEIRO DIA
SEU LUGAR NO PLANO REDENTOR
162 J. M. Dayet
E eis que se cumpriu o mistério:
“Deus Pai comunicou a Maria sua fecundidade, tanto quanto era
possível a uma pura criatura, para dar-lhe o poder de produzir seu
Filho e todos os membros de seu Corpo místico.” A Virgem gera,
neste mundo e segundo a natureza humana, o mesmo Filho que o
Pai gerou eternamente e segundo a natureza divina. Como ele, ela
pode dizer ao Verbo encarnado: Tu és meu Filho. O termo das duas
gerações é o mesmo. Maria participa, assim, da fecundidade do Pai,
“tanto quanto era possível a uma pura criatura”.
Além disso, como veremos mais longamente, o Verbo encar-
nado, vindo a nós como Redentor, é inseparável de seus resgatados.
Ele tomou, pois, em Maria um Corpo místico, formado por todos os
que crerem nele e quiserem viver de sua vida. É por isso que Maria,
intimamente associada a ele, produz ao mesmo tempo o corpo físico
de Jesus e seu Corpo místico. Mistério de amor insondável.
“Deus Filho desceu ao seu ventre virginal, como o novo Adão
ao seu paraíso terrestre, para encontrar nele seu contentamento e
operar secretamente maravilhas de graça.” Que superabundância de
vida divina seu amor filial derramou então sobre sua santa Mãe ima-
culada! “Deus feito homem encontrou sua liberdade ao se ver apri-
sionado em seu ventre; fez brilhar sua força ao se deixar carregar por
essa jovem; encontrou sua glória e a glória de seu Pai ao esconder
seus esplendores de todas as criaturas deste mundo, para revelá-las
somente a Maria. Glorificou sua independência e sua majestade ao
depender dessa amável Virgem em sua concepção, em seu nasci-
mento, em sua apresentação no Templo, em sua vida escondida de
trinta anos, até à sua morte, a qual ela devia assistir, para fazer com
ela um só sacrifício, e para ser imolado por seu consentimento ao Pai
eterno, como outrora Isaac pelo consentimento de Abraão à vontade
de Deus. Foi ela quem o amamentou, alimentou, sustentou, criou e
sacrificou por nós. Ó admirável e incompreensível dependência de
um Deus!” (n. 18.)
Durante nossa terceira Semana, meditaremos largamente sobre
essa admirável e incompreensível dependência de Deus feito homem.
Ela é a causa exemplar de nossa Consagração da Santa Escravidão.
Poderemos algum dia dar a Maria, em nossa vida espiritual, um lugar
II
164 J. M. Dayet
muda e não mudará até a consumação dos séculos. É por isso que
Montfort nos mostra, agora, as três Pessoas divinas derramando sobre
Maria tudo o que possuem, para que nós mesmos sejamos enriqueci-
dos por seu intermédio.
“Deus Pai fez uma reunião de todas as águas, que chamou mar; fez
uma reunião de todas as suas graças, que chamou Maria. Esse grande Deus
tem um tesouro riquíssimo, onde encerrou tudo o que há de belo, de
luminoso, de raro e de precioso, até seu próprio Filho; e esse tesouro
imenso não é outro senão Maria, chamada pelos santos o tesouro do
Senhor, da plenitude do qual os homens são enriquecidos.” (n. 23.)
Desde o instante de sua Concepção imaculada, ele a dotou de
uma plenitude de graça santificante, diante da qual empalidecerá o
esplendor sobrenatural de todos os anjos e de todos os santos. Essa
plenitude inicial, que sempre aumentará, continha já “tudo o que há de
belo, de luminoso, de raro, de precioso”, isto é, todas as riquezas de san-
tificação, todas as graças gerais e particulares concedidas às outras
criaturas, todo esse interior de beleza, de caridade, de heroísmo, todas
essas profundezas de amor e de ternura que admiramos nos amados
do Senhor.
Ela não fez, no entanto, senão preparar uma graça de ordem
superior e especial a Maria, a graça única da Maternidade divina.
O Pai, encerrando em Maria “até seu próprio Filho”, cobriu-a de uma
riqueza tamanha que nenhuma criatura pode receber riqueza maior.
A Virgem carrega em si a Pessoa divina do Verbo encarnado. Esse
contato com a humanidade e a divindade de Jesus faz afluir em ondas
intensas na bem-aventurada Mãe, cujas disposições são tão perfeitas,
uma vida sobrenatural, por assim dizer, sem limite. É uma plenitude
de superabundância. Mesmo a imensidão do mar – única compara-
ção possível – pode nos dar apenas uma fraca ideia dessa plenitude.
Maria é, pois, esse tesouro imenso do Senhor, do qual todos os cris-
tãos, sacerdotes e fiéis, que se sucederão sobre a terra e todos os os
apóstolos, os mártires, os confessores da fé, os virgens e os santos de
todos os tempos poderão se munir, sem medo de esgotá-lo. Essa é a
vontade tão amorosa do Pai dos Céus.
_______________
“Deus Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel Esposa, seus dons
inefáveis, e escolheu-a como dispensadora de tudo o que possui; de modo
que ela distribui a quem deseja, tanto quanto deseja, como e quando
deseja, todos os seus dons e suas graças; pois não se dá nenhum dom
celeste aos homens sem que passe por suas mãos virginais.” (n. 25.)
166 J. M. Dayet
Como o Espírito Santo não teria ornado a alma de Maria com a
plenitude de seus dons desde o instante de sua criação? Esse Espírito
de amor logo a tomou por Esposa, devendo “produzir nela e por ela
Jesus Cristo e seus membros”. (n. 21.) É por isso que, na manhã da
Anunciação, o anjo responde à interrogação da Virgem: “O Espí-
rito Santo sobrevirá em ti...”, como princípio fecundante dessa divina
Maternidade virginal.
Ele já tinha vindo, desde o primeiro instante, depositar entre seus
presentes de bodas todas as joias que possui enquanto Espírito san-
tificador: seus dons inefáveis e suas graças de santidade crescente. Maria,
gozando então milagrosamente da ciência infusa, consentiu com toda
a força de sua inteligência e de sua vontade com essa incomparável
união de amor.
Depois, o Espírito Santo não deixou de enriquecê-la, a ponto de
querer, no dia do Pentecostes, que ela fosse a dispensadora visível de
seus dons e graças de santificação, e dos carismas que os acompa-
nham. Por meio dela, presente no meio do Cenáculo, ele se derramou
sobre os Apóstolos e sobre os fiéis que compunham, então, o berço
da Igreja nascente.
Desde esse dia, todas as santificações visíveis, todos os Pente-
costes que se cumprem no íntimo das almas, se fazem por sua ação,
unida à do Espírito Santo. Essa união é tão grande que Maria pode
livremente dar a quem desejar: tanto a uma Teresa de Lisieux quanto a
um Charles de Foucauld ou a um Alphonse Ratisbonne; quanto desejar,
pois não há limite à sua generosidade: quantas graças de luz distri-
buiu ela a São Bernardo, a São Francisco de Sales, a São Luís Maria
de Montfort, e a tantos outros; como desejar, isto é, da maneira que
julgar mais eficaz para atingir e ganhar os corações, seja por meio de
suas aparições, seus milagres, ou pelo sentimento de sua presença na
alma obediente; quando desejar: encontramo-la trabalhando em todas
as épocas da Igreja, mas é manifesto que nestes tempos que são os
nossos, sua ação se afirma com um poder extraordinário. Não se dá,
assim, nenhum favor celestial aos homens, sem que passe por suas
mãos virginais.
168 J. M. Dayet
Maria um grande lugar na piedade. É possível contentar-se com essa
devoção, e muitos o fazem.
Há, entretanto, os que desejam ir mais além, pois, por mais louvá-
vel que seja essa maneira de honrar Maria, é preciso reconhecer que
não lhe concede senão uma parte do tempo, uma parte das preces
e das boas obras. Não se pode dizer que essas práticas exteriores e
transitórias se harmonizam com o lugar dado à Virgem no plano
divino.
É por isso que, se desejamos imitar a conduta das três Pessoas
divinas em relação a Maria, devemos chegar até a DOAÇÃO TOTAL
de nós mesmos e até uma VIDA DE UNIÃO em todos os instantes,
que dela decorre. É preciso – e meditaremos sobre isso nos dias que
seguem – escolher Maria como a Mãe e a Senhora de toda a nossa
vida sobrenatural, como o Verbo encarnado a escolheu como sua
Mãe e sua Cooperadora na obra de nossa salvação. É preciso entre-
gar às suas mãos tudo o que nos é possível dar-lhe, sem nenhuma
restrição nem reserva; assim como Deus Pai comunicou-lhe todas as
suas graças, Deus Filho todos os seus méritos, Deus Espírito Santo
todos os seus dons inefáveis; bem convencidos de que o que damos
é pouco em relação ao que eles lhe deram.
Essa é a CONSAGRAÇÃO a Maria, tão recomendada pelo Papa
Pio XII, e que ele mesmo definiu como “uma doação total de si por toda
a vida e pela eternidade; não uma doação de pura forma ou de puro sentimento,
mas um dom efetivo, realizado na intensidade da vida mariana e cristã”.57 “Essa
definição, escrevia Mons. Théas, bispo de Lourdes, harmoniza-se
perfeitamente com a doutrina de São Luís Maria de Montfort, e não
poderíamos responder melhor ao desejo de Sua Santidade do que
adotando, para nos consagrar a Maria, a fórmula de São Luís Maria
de Montfort.”58
Doação total, que entrega a Maria nossa pessoa e todos os nos-
sos bens, bens de natureza e bens de graça; que lhe deixa inteiro e
pleno direito de dispor deles segundo sua vontade, para maior glória
LEITURAS
170 J. M. Dayet
SEGUNDO DIA
MÃE DO CRISTO TOTAL
172 J. M. Dayet
mesmo tempo divina e espiritual de Maria. A Virgem da Anunciação
começou a se tornar nossa Mãe desde o instante em que se tornava
a Mãe de Jesus Redentor. Estávamos presentes no seu pensamento e
no seu amor. Importa-nos refletir sobre isso.
II
174 J. M. Dayet
todos os séculos, que retornarão à casa do Pai, e aqueles - ai de mim!
- que nunca desejarão voltar, tornavam cada vez mais pesado para o
seu coração o peso de sua Maternidade.
Diante do fracasso aparente das pregações e dos milagres do Salva-
dor, ela compreendia o que era preciso, então, de preces, de privações,
de aflições, de trabalhos, de fadigas; o que custaria de sangue e de lágri-
mas para o resgate de uma só alma mergulhada no pecado. A traição de
Judas, o julgamento de Caifás, o escárnio de Herodes, os tormentos da
flagelação e da coroação de espinhos, a condenação à morte na cruz, a
subida do caminho doloroso diziam-no cruelmente.
III
176 J. M. Dayet
vida terrena. Agora que vou morrer, ela vos gera para esta vida de graça
que minha Paixão e sua Compaixão conquistam para vós.
_______________
178 J. M. Dayet
TERCEIRO DIA
MÃE DOS PREDESTINADOS
“DEUS PAI deseja gerar filhos para si, por intermédio de Maria, até a
consumação dos séculos, e diz-lhe esta palavra: In Jacob inhabita, isto
é, fazei vossa morada em meus filhos e predestinados, simbolizados
por Jacó, e não nos filhos do diabo e nos reprovados, simbolizados
por Esaú.” (V. D., n. 29.)
II
180 J. M. Dayet
Porque “Jesus Cristo, Cabeça dos homens, nasceu em Maria, os
predestinados – que são os membros dessa Cabeça – devem também
nascer nela por uma consequência necessária. Pois tanto na ordem da graça
quanto na ordem da natureza, uma mesma mãe não põe no mundo a
cabeça sem os membros, nem os membros sem a cabeça”.
Maria, como vimos, é Mãe do Cristo total, de modo que “pode-
mos aplicar a ela, com mais verdade do que São Paulo as aplica a si
mesmo, estas palavras: Quos iterum parturio, donec formetur Christus in
vobis (Gál 4, 19): gero todos os dias os filhos de Deus, até que Jesus
Cristo, meu Filho, seja formado neles na plenitude de sua idade”
sobre a terra, tendo cada um atingido sua medida de graça, seu grau
de semelhança.
E é aqui que Montfort relata o notável testemunho do Bispo de
Hipona em seu Tratado sobre o Símbolo, dirigido aos catecúmenos (Liv.
IV, cap. I): “Santo Agostinho, superando-se a si mesmo, e a tudo o
que acabo de dizer, ensina que todos os predestinados, para se con-
formarem à imagem do Filho de Deus, estão neste mundo escondidos
no seio da Santíssima Virgem, onde são guardados, alimentados, criados
e desenvolvidos por essa boa Mãe, até que ela os gere para a glória, após a
morte, que é propriamente o dia de seu nascimento, como a Igreja denomina
a morte dos justos.” (n. 33.)
Na noite de Natal, Maria se separou do corpo físico de Jesus, mas
não de seu Corpo místico; e não se separará dele enquanto viver um
predestinado sobre a terra. Nossa vida inteira de graça santificante
é, assim, se a compreendemos bem, uma morada contínua em Maria,
no seio de Maria, in sinu Mariae: infância, crescimento, maturidade
espiritual. Extraímos nossa vida divina do belo interior de onde Jesus
extraiu sua vida humana, do ventre que ele santificou e onde deixou
para nós graças inesgotáveis.
Não é esse o mistério da Encarnação vivido pelos eleitos? Infe-
lizmente, esse mistério de nossa sobrenatural formação em Maria
continua pouco conhecido até mesmo pelos predestinados. A insis-
tência de Montfort em relembrá-lo mostra a que ponto desejava nos
ver tomar consciência dele. Apreciemos dedicar-lhe nossa medita-
ção, e façamos as almas que buscam a luz conhecerem esse segredo
III
182 J. M. Dayet
raízes de suas virtudes. Segundo a cultura desse terreno, as virtudes
vão crescer e desabrochar como flores, cada uma lembrando ao Espí-
rito Santo alguma coisa da beleza interior de sua fiel Esposa.
O essencial será, pois, ser uma alma muito viva, muito unida ao
Cristo Jesus, dócil para se deixar cultivar pela divina Mãe. O pro-
gresso espiritual se acentuará sempre, até produzir uma santidade
semelhante. “Que vossa fé, diz ainda a Maria o Espírito Santo, me dê fiéis;
que vossa pureza me dê virgens; que vossa fecundidade me dê eleitos e templos”
com interiores esplêndidos (n. 34). A graça santificante das virtudes e
dos dons, tendo-se tornado maternal em Maria, chega a nós impreg-
nada de todas as suavidades de sua alma santíssima.
Felizes as almas assim santificadas! “Quando Maria lança suas raízes
numa alma, produz maravilhas de graça que só ela pode produzir... Ela pro-
duz, com o Espírito Santo, a maior coisa que já existiu e que existirá,
que é um Homem-Deus; e produzirá, consequentemente, as maiores
coisas que existirão nos últimos tempos. A formação e a educação
dos grandes santos que surgirão no fim do mundo estão-lhe reserva-
das...” (n. 35.)
Pois então sobrevirão inesperados Pentecostes íntimos: “Quando
o Espírito Santo encontra Maria em uma alma, voa até ela, entra plenamente
nela, comunica-se a essa alma abundantemente e tanto quanto ela dá lugar à sua
Esposa indissociável...” (n. 36). Os eleitos deste mundo, santificados por
essas admiráveis visitas do Espírito de amor, não são o triunfo da
Maternidade de graça de Maria?
_______________
LEITURAS
61 Ver sua obra: A Mãe do Salvador e nossa Vida espiritual, p. 194, primeira
edição.
184 J. M. Dayet
QUARTO DIA
SENHORA DOS PREDESTINADOS
II
186 J. M. Dayet
liberdade é violentada. Bem ao contrário, pois a Virgem está de tal
modo unida a Deus e a nós, que tudo se passa ainda entre Deus e
nossa alma.
“Graça singular do Altíssimo”, diz nosso santo. “Singular”, não
somente porque é magnífica, mas porque é única. A Virgem é a única
que possui esse domínio de nossas almas. Nem os santos do Céu e da
terra, nem mesmo os bons anjos, nem, com maior razão, os demô-
nios, têm o direito de penetrar em nosso interior, e ainda menos o de
residir em nós como senhores. Somente Maria, depois de Deus, tem
livre acesso a nós, como uma rainha em seu próprio palácio.
_______________
III
188 J. M. Dayet
Se ele acrescenta que “Maria é a Rainha do Céu e da terra por graça,
como Jesus é seu Rei por natureza e por conquista” (n. 38), é para chegar a
uma conclusão que confirma a precedente, a saber, o Reino de Maria
nos corações.
A Realeza de Maria, assim como a do Cristo, é universal, se esten-
dendo sobre o mundo dos corpos e sobre o mundo dos espíritos; mas
diferente é sua origem. Jesus é rei “por natureza”, isto é, por direito de
nascimento, enquanto Verbo encarnado, e “por conquista”, enquanto
Redentor. Maria é Rainha “por graça”, pela graça totalmente gratuita
de sua Maternidade divina e pela graça muito meritória de sua cola-
boração na obra redentora.
“Ora, como o Reino de Jesus Cristo consiste principalmente no coração ou no
interior do homem, segundo esta palavra: o Reino de Deus está dentro de vós
(Lc 17, 21); assim também, o Reino da Santíssima Virgem está principalmente
no interior do homem, isto é, em sua alma; e é principalmente nas almas que ela é
mais glorificada com seu Filho do que em todas as criaturas visíveis...” (n. 38.)
Nossas almas são, pois, o elemento primeiro de sua Soberania.
Elas formam seu domínio de escolha; Maria reina em plenitude lá
onde se exerce e desabrocha sua Maternidade de graça.
Por isso, Montfort nos pede para escolhê-la, não somente como
nossa Mãe, mas também como nossa Senhora: MATER e DOMINA.
Essa escolha repousa sobre realidades sobrenaturais misericordiosa-
mente desejadas por Deus em nós. De modo tão verdadeiro quanto
Maria é nossa Mãe, ela é, também, nossa Senhora: ela forma e faz crescer
Jesus Cristo em nós, até que cheguemos à plenitude de sua idade
sobre a terra, isto é, ao grau de santidade determinado para cada um
de nós. Para esse fim, ela nos possui e nos governa interiormente. Sua
ação se exerce até nas mais misteriosas profundezas de nosso ser. Sua
dominação irradia no centro de nosso coração.
Eis por que “podemos chamá-la, com os santos, a RAINHA DOS
CORAÇÕES”. (n. 38.) Esse vocábulo é o equivalente e o sinônimo
de Senhora das almas; apresenta a vantagem de ser mais bem com-
preendido e mais amado. É por isso que foi mantido para designar a
associação dos escravos de amor de Maria. Ao título já tão amado de
Mãe, somamos assim o título muito agradável de Rainha dos corações,
isto é, de Soberana incontestável das almas que lhe são inteiramente
190 J. M. Dayet
LEITURAS
192 J. M. Dayet
pertencimento decorre dos direitos de sua Redenção. Ele pagou por
nossas almas um alto preço, o preço de todo o seu sangue. Ele der-
ramou por nós um resgate infinito, como compensação da ofensa
infinita do pecado.
Estamos, pois, como dizíamos, divinamente marcados com o
selo de sua posse. Somos seu bem, sua propriedade, sua conquista, em
estrito rigor de justiça. Tornamo-nos “seus verdadeiros escravos”,
que não devem viver, trabalhar e frutificar senão para ele. Ele é nosso
Senhor e Mestre: Dominus noster; um Mestre de coração infinitamente
bom, que nos arrancou da servidão tirânica do demônio, e que se
apresenta a nós como soberanamente respeitoso de nossa liberdade.
Ele não se impõe à força. Mesmo possuindo sobre nós todos os
direitos, solicita que nos coloquemos livremente a seu serviço.
É por isso que nós mesmos devemos nos alegrar por reconhe-
cer esse total pertencimento, e desejar, em retorno, servir esse bom
Senhor, não somente como servos mercenários (o desejo da recom-
pensa celestial não deve ser excluído de nossas intenções), mas,
também, como escravos de amor, que, por uma escolha refletida,
se doam e se entregam sem nenhum motivo de interesse pessoal,
somente pela honra de pertencer-lhe. (V. D., n. 68, 73.)
Nessa passagem de seu Tratado, Montfort acrescentava: “O que
digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o relativamente da Santíssima Virgem.”
(n. 74.) O que significa que Maria, ela também, tem direito à home-
nagem de nossa amorosa e inteira dependência, mas por um motivo
diferente. Jesus tem direito a ela a título pessoal: ele é nosso Redentor
por conquista, somente ele podia igualar a reparação à ofensa. Maria
tem direito pelo motivo puramente gratuito de união ao seu Filho: ela
é nossa Corredentora por graça, pela graça da vontade divina que a
associou à Encarnação.
Como já dissemos,62 o Salvador podia dispensar qualquer auxiliar
na obra de nossa reparação; agradou-lhe – e era o plano eterno – que
a Virgem lhe fosse associada em todas as coisas. “Tendo Jesus Cristo
escolhido-a como a companheira indissolúvel de sua vida, de sua morte, de sua
glória e de seu poder no Céu e sobre a terra, deu-lhe por graça, relativamente à
II
194 J. M. Dayet
alma livre e amorosa, e que corresponda adequadamente à Domina-
ção que Maria exerce dentro de nós mesmos.
Essa outra coisa, essa espontaneidade de um amor, emanando
da luz e que conduz à doação total, só se exprime em nossas línguas
humanas pela palavra “escravo”, tão comumente empregada na Bíblia
e nas orações da Igreja.
O escravo é, por definição, aquele que se encontra inteiramente,
pessoa e bens, sob a posse e a dependência de um senhor. No caso
concreto que nos ocupa, sendo o Senhor o próprio Deus, revelan-
do-se por intermédio de Maria, não podemos experimentar senão
uma alegria intensa ao nos proclamar escravos da Virgem, exata-
mente como ela mesma se proclamou escrava do Senhor. Esse termo
não é mais desusado hoje do que no tempo da Anunciação, visto que
implica sempre a mesma viva realidade.
Se Montfort se contentasse em se entregar na qualidade de filho,
no sentido de dependência limitada que esse termo comporta na lingua-
gem usual, seu amor não conseguiria corresponder, tanto quanto lhe
é possível, à plenitude de dominação que ele descobre em Maria.
Por outro lado, ao se entregar na qualidade de escravo por vontade,
ele atinge adequadamente seu duplo título de “Mãe” e de “Senhora” das
almas. Glorifica sua Maternidade, apresentando-se com toda a força de
seu querer à formação do Corpo místico do qual é membro.
Da mesma forma, a palavra escravo está longe de se opor a filho.
Existe entre esses dois termos exatamente a mesma conexão que
descobrimos entre os termos correlativos de Senhora e de Mãe, apli-
cados a Maria.
Em Maria, a denominação de Senhora inclui o conceito de Mãe e
o intensifica: a Virgem estende seu domínio de amor para dentro de
nós, na medida em que desabrocha sua Maternidade de graça.
Em nós, semelhantemente, a denominação de escravo de Maria
supõe a de filho e a intensifica; supera-a, acrescentando-lhe a ideia de
uma dependência sem limite e sem fim. Consagramo-nos escravos de
Maria, porque – sendo já seus filhos desde nosso batismo – deseja-
mos viver nossa filiação mariana da maneira mais perfeita, por meio
de uma inteira submissão de nossa vontade, que jamais conhecerá
emancipação ou independência.
196 J. M. Dayet
Mas sua dominação maternal encontra uma resistência mais ou
menos obstinada. Ela os governa ainda, de certa forma, por incen-
tivos de graças atuais, por chamados de misericórdia que preparam
os caminhos para sua conversão. Ela os governará melhor no dia em
que, retornando enfim à Casa do Pai de família, esses filhos pródigos
se prestarem docilmente à sua ação santificante.
Revertere ad Dominam tuam; et humiliare sub manu illius.63 Volta, pobre
filho desviado, para tua Senhora, que é também tua verdadeira Mãe, e
humilha-te sob o cetro de amor que te apresenta sua mão onipotente.
Essa consideração faz compreender melhor o quanto a Virgem é
plenamente Senhora daqueles entre seus filhos que vivem fielmente
sua Consagração de escravos de amor. Longe de se subtraírem no que
quer que seja à dominação materna de Maria, esforçam-se por acen-
tuar a cada dia sua dependência e submissão filial. Dedicam-se a se
tornar como criancinhas que não têm outra vontade senão a vontade
de sua mãe, nem outro refúgio senão seus braços e seu coração.
Sua total dependência e submissão deve conduzi-los infalivel-
mente ao desabrochamento do espírito de infância. Os fiéis escra-
vos de amor de Maria são as almas santas, na força e no vigor de
sua maturidade espiritual, que permanecem ou se tornam semelhan-
tes às criancinhas. Obedecem em todas as coisas à sua divina Mãe
e Senhora, e se deixam conduzir docilmente “por seu espírito, que é o
Espírito Santo de Deus”. (V. D., n. 258.) São, então, os perfeitos filhos de
Deus e de Maria.
“Aqueles que são conduzidos pelo espírito de Deus, são filhos
de Deus: Qui spiritu Dei aguntur, ii sunt filii Dei (Rom 8, 14). Aqueles
que são conduzidos pelo espírito de Maria, são filhos de Maria, e,
consequentemente, filhos de Deus.” (n. 258.) São os filhos de Deus
e de Maria em perfeição, porque, “possuídos e governados” pelo Espírito
Santo e pela Esposa do Espírito Santo, oferecem-lhe em toda cir-
cunstância obediência e submissão de amor. Nossa consagração não
suprime nada, pois, do título de filho que o batismo imprime sobre
LEITURAS
198 J. M. Dayet
SEXTO DIA
MÃE SEMPRE PRESENTE
200 J. M. Dayet
dispõe de longe as coisas para isentar seus servos de toda sorte de
males e cobri-los de toda sorte de bens. Ela mesma administra seus
interesses (n. 203.)
2º “Ela lhes dá bons conselhos”, como Rebeca a Jacó: Fili mi, acquiesce
consiliis meis: Meu filho, segue os meus conselhos. (Gen 27, 8.) E, entre
outros conselhos, o de trazer-lhe dois cabritos, isto é, seu corpo e sua
alma, e de consagrá-los para torná-los agradáveis a Deus; também
o de fazer tudo o que Jesus Cristo, seu Filho, ensinou por meio de
suas palavras e de seus exemplos. Se não é sempre por ela mesma,
por suas inspirações, que ela lhes dá esses conselhos por meio das
graças atuais das quais dispõe, é pelo ministério dos anjos, que não
conhecem maior felicidade do que obedecer aos seus mandamentos.
Quantas vezes nos acontece sentir muito visivelmente as iluminações
dos bons anjos. (n. 204.)
3º “Quando lhe trouxemos e consagramos nosso corpo e nossa alma com
tudo o que deles depende, sem nada omitir, o que faz essa boa Mãe?
O que fez outrora Rebeca com os dois cabritos que lhe entregou Jacó:
ela os mata, fazendo-os morrer para a vida do velho Adão; esfola-os e despoja-os
de sua pele natural, de suas inclinações naturais, de seu amor-próprio
e própria vontade, e de todo apego à criatura; purifica-os de suas man-
chas, sujeitas e pecados; prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior
glória. Como somente ela conhece perfeitamente esse gosto divino e
essa maior glória, somente ela pode, sem se enganar, acomodar e pre-
parar nosso corpo e nossa alma a esse gosto infinitamente sublime
e a essa glória infinitamente secreta.” (n. 205.) Ela conduz, assim, ao
aperfeiçoamento o trabalho de nossa primeira Semana.
4º Depois, para torná-los ainda mais dignos de se apresentarem
diante do Pai celestial, Maria não se contenta em despojar seus fiéis
escravos de seus velhos hábitos, os trapos do pecado, e em lavá-los
das máculas contraídas; mas “ela os reveste com as roupas próprias, novas,
preciosas e perfumadas de Jesus Cristo, que ela guarda em sua casa, isto é,
que ela tem em seu poder, sendo a tesoureira e a dispensadora uni-
versal e eterna dos méritos e das virtudes de seu Filho, que ela dá e
comunica a quem deseja, quando deseja, como e quanto deseja” (n.
206), como vimos em nossa meditação do terceiro Dia.
67 Ver Tratado da Verdadeira Devoção, edição com Notas, pelo Pe. Plessis,
montfortino: nota 37 do n. 206.
202 J. M. Dayet
5º “Ela os faz, por fim, obter a bênção do Pai celestial”, à qual somente
Nosso Senhor tem direito, sendo seu Filho por natureza, enquanto
somos seus filhos apenas por graça. “Com essas vestes novas, tão
preciosas e tão perfumadas; com seu corpo e sua alma bem prepa-
rados e prontos, eles se aproximam com toda confiança do leito de
repouso de seu Pai celestial. Este ouve e distingue sua voz, que é a
de Jacó; toca suas mãos cobertas de peles, sente o perfume de suas
roupas; come com alegria do que Maria, sua Mãe, lhe preparou; e,
reconhecendo neles os méritos e o perfume de seu Filho e de sua
santa Mãe:
“1) Dá-lhes sua dupla bênção: benção do orvalho do Céu, isto é, a
graça divina que é a semente da glória; bênção da gordura da terra,
isto é, da segurança do pão cotidiano e uma abundância suficiente
dos bens deste mundo.
“2) Torna-os senhores de seus irmãos, os reprovados: primazia ver-
dadeira, ainda que não se manifeste sempre neste mundo, onde os
reprovados dominam amiúde; mas que se manifestará plenamente no
outro mundo e por toda a eternidade...
“3) Não contente em abençoá-los, em suas pessoas e em seus
bens, abençoa também todos os que os bendizerem, e amaldiçoa todos os que
os maldisserem e perseguirem.” (n. 207.)
Tal é o amor eficaz de Maria para com seus escravos fiéis. É uma
presença maternal sempre desperta e sempre em ação: ela toma a
dianteira e solicita nossa obediência. Por isso, nossa maior alegria
deve ser obedecer a essa Mãe amorosa e permanecer em sua com-
panhia, trabalhando sob seu olhar e convivendo com ela. Pois, como
Montfort nos dirá, continuamos sendo o objeto de sua predileção e
de seus obséquios.
II
204 J. M. Dayet
Um filho obediente a Maria, sua diretora esclarecida, pode se per-
der nos caminhos da eternidade? “Seguindo-a, diz São Bernardo,68
não vos desviais.” Ipsam sequens, non devias. Ele não pode se deixar
tomar nem pelas ilusões do espírito maligno, nem pelas sutilezas
enganosas dos hereges: Ipsa tenente, non corruis. “Se Maria vos sustenta,
não caireis.” (n. 209.)
Precedentemente, no n. 167, Montfort havia reconhecido que
poderia suceder a esse filho obediente “errar materialmente, embora
mais dificilmente do que os outros; mas, acrescentava ele, cedo ou
tarde, ele reconhecerá seu erro material; e quando o reconhecer, não
se obstinará de maneira alguma em crer e sustentar o que havia pen-
sado ser verdade”. Quantas vezes teremos constatado a veracidade
dessa asserção, a propósito de condenações apresentadas pela Igreja.
Ó bem-aventurada segurança que nos vale essa presença iluminada!
3º Maria defende e protege seus escravos de amor contra seus inimigos.
“Rebeca, por meio de seus cuidados e habilidades, livrou Jacó de
todos os perigos em que se encontrou, e particularmente da morte
que seu irmão Esaú lhe teria aparentemente causado pelo ódio e pela
inveja que lhe tinha, como outrora Caim ao seu irmão Abel.” Ela
separou os dois irmãos, enviando Jacó à Caldeia, para a casa de seu
tio Labão, enquanto durasse a cólera de Esaú.
Assim, Maria, a boa Mãe dos predestinados, protege seus fiéis
filhos e escravos que amiúde estão, neste mundo, expostos ao ódio
e à perseguição dos reprovados. “Ela os esconde sob as asas de sua
proteção, como uma galinha seus pintinhos; ela fala, se inclina a eles,
condescende com todas as suas fraquezas. Para protegê-los do gavião
e do abutre, ela se coloca em volta deles, e os acompanha como um
exército em ordem de batalha: ut castrorum acies ordinata (Cânt 6, 3).
Que poderia um homem temer de seus inimigos, se estivesse cer-
cado por um exército bem ordenado de cem mil soldados? Um fiel
servo de Maria, cercado de sua proteção e de seu poder imperial,
tem ainda menos a temer. Se fosse preciso, essa boa Mãe e Princesa
poderosa despacharia imediatamente batalhões de milhões de anjos
para socorrer um de seus servos; pois jamais se ouviu dizer que um
206 J. M. Dayet
A Santíssima Virgem continua sendo para eles essa “ajuda muito
presente”: ADJUTRIX PRAESENTISSIMA, que invocamos na
Pequena Coroa (12ª Estrela). Repitamos-lhe, pois, com Montfort: “Ó
Santa Virgem, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles, repito-o
com os êxtases de meu coração, quão felizes são aqueles e aquelas
que guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas
ordens!” (n. 200.)
LEITURAS
PRIMEIRO DIA
Ó SABEDORIA ETERNA!
208 J. M. Dayet
Como nas Semanas precedentes, recitaremos as ladainhas do
Espírito Santo e a Ave, Maris Stella, acrescentando-lhes todos os dias
a ladainha do Santo Nome de Jesus ou do Sagrado Coração. Podere-
mos também dizer a oração de Santo Agostinho (V. D., n. 67). Não
temamos rezar demais durante esta última Semana, que deve ser a
mais rica e a mais fecunda.
210 J. M. Dayet
de Jesus Cristo o que esses belos textos e outros ainda dos Livros
sapienciais dizem da Sabedoria divina.70
São João, o Vidente de Patmos, completou então São Paulo,
chamando pelo nome de “Verbo” essa Sabedoria “saída da boca do
Altíssimo”,71 preexistindo a tudo, e enchendo com sua presença a
Revelação ainda velada do Antigo Testamento.
In principio erat Verbum... (Jo 1, 1): “No princípio existia o Verbo...”,
ou o Filho de Deus ou a Sabedoria Eterna. Pelo nome de “Verbo”,
São João nos revelava que sublime geração de inteligência, geração
toda espiritual, toda imaculada, seu olhar descobria no seio da Trin-
dade. O Pai, sendo por si mesmo objeto infinito de conhecimento
e de contemplação, produz, gera um Filho que é seu Pensamento
subsistente, sua Palavra interiormente proferida, sua Imagem per-
feita, idêntica em natureza, igual em perfeição, seu Verbo íntimo e
inseparável, outro Dele mesmo, por meio do qual ele exprime para si
mesmo sua inesgotável riqueza.
“No princípio era o Verbo”; isto é, quando começaram as coisas que
tiveram um começo, o Verbo já existia. Ele é, pois, eterno, pois para
além do tempo, antes da criação das coisas contingentes, há somente
a eternidade.
Nessa imóvel eternidade, “o Verbo habitava junto de Deus”, como
Ideia da divina Beleza contemplando a si mesma, como Pessoa dis-
tinta levando com Deus uma mesma vida em comum.
“E o Verbo era Deus”, consubstancial a Deus, possuindo a mesma
natureza que Deus.
Nada de mais profundo poderia ser dito. Assim, tudo se con-
cilia nos Livros santos, para nos mostrar a Sabedoria mergulhando
sua origem até as profundezas da eternidade: ela vem de Deus e é
Deus. Adoremo-la, louvemo-la, glorifiquemo-la com São Luís Maria
de Montfort.
70 Ver Col 1, 15-16; Heb 1, 3. Quanto aos Livros sapienciais, as passagens mais
importantes são: Provérvios (8, 19); Eclesiástico (1, 24); Sabedoria (6, 9). “É
preciso entendê-las, diz o Pe. Saint-Jure, segundo a interpretação comum
dos Padres, de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada.” (Do Co-
nhecimento e do Amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tomo I, cap. IV.)
71 Ego ex ore Altissimi providi (Eclo 24, 5).
212 J. M. Dayet
para agradecer-lhe, bendizê-la com um ímpeto do coração, é carregar
em si uma alma de oração.
_______________
III
214 J. M. Dayet
acalmar a cólera de Deus, e desejando, no entanto, salvar o homem
que ela amava por inclinação, encontra um meio admirável. Coisa
espantosa, amor incompreensível que chega ao excesso, essa amável
e soberana Princesa oferece a si mesma em sacrifício ao seu Pai para
pagar sua justiça, para acalmar sua cólera e para nos retirar da escravi-
dão do demônio e das chamas do inferno, e conquistar para nós uma
eternidade de bem-aventurança.
“Sua oferta é aceita. O conselho é confirmado e decretado: a
Sabedoria Eterna, ou o Filho de Deus, se fará homem no tempo
oportuno e nas circunstâncias determinadas.” (n. 41-46.)
_______________
216 J. M. Dayet
Por fim, duas últimas comparações declaram sua prodigiosa
fecundidade:
Por isso, vemos sair desse povo privilegiado ilustres e santos per-
sonagens como Moisés, Samuel, Elias, Eliseu; poetas de gênio que
nos deixaram os Salmos e os livros sapienciais; grandes Videntes
dos quais admiramos os escritos proféticos. A Igreja se serve deles
durante todo seu Ano litúrgico.
Entre os cinco Livros sapienciais, o da “Sabedoria”, composto
no primeiro século antes de Jesus Cristo, preparou imediatamente o
Evangelho. Ele transborda de elogios sobre as excelências, as belezas,
as amabilidades da Sabedoria Eterna, e sobre o desejo que ela tem
de ganhar o coração do homem. Esse Livro, diz-nos Montfort, foi
escrito exatamente para isso: devemos considerá-lo como uma carta
de uma amante ao seu amante, para ganhar sua afeição. Os desejos
que ela testemunha do coração do homem são tão calorosos, a busca
por sua amizade é tão terna, seus chamados e seus votos são tão amo-
rosos, que ao ouvi-la falar diríeis que ela não é a Soberana do Céu e
da terra, e que precisa do homem para ser feliz.
Ora, para ir ao encontro do homem, ela corre pelas grandes
estradas; ora sobe ao topo das mais altas montanhas; ora vem às
portas das cidades; ora entra até nas praças públicas, no meio das
assembleias, gritando o mais alto que pode: Ó homens! Ó filhos dos
homens, é a vós que minha voz clama há tanto tempo. O viri, ad vos
clamito, et vox mea ad filios hominum. (Prov 8, 4.) Sois vós que desejo, que
procuro, que reclamo. Escutai, vinde a mim: quero vos tornar feliz...
E como se os homens temessem ainda, devido ao seu brilho
maravilhoso e à sua majestade soberana, aproximar-se dela... faz-lhes
dizer que ela é de um acesso fácil; que se deixa facilmente ver por aqueles que a
amam; que protege os que a desejam; que se mostra a eles primeiro, e que aquele
73 ab 6, 12 et seq.
74 O sapientia, quae ex ore Altissimi prodiisti... veni ad liberandum nos. (Grande
Antífona do Advento.)
218 J. M. Dayet
LEITURAS
220 J. M. Dayet
“E eis a grande maravilha do Céu e da terra, o excesso prodi-
gioso do amor de Deus: VERBO CARO FACTUM EST; o Verbo se
fez carne,75 a Sabedoria Eterna encarnou. Deus se tornou Homem, sem
deixar de ser Deus; e esse Homem-Deus se chama Jesus Cristo, isto
é, Salvador.” (A. S. E., n. 105-108.)
_______________
75 Jo 1, 14.
222 J. M. Dayet
no estábulo, ficaram tão encantados com a doçura e a beleza de seu
semblante, que permaneciam dias inteiros, como fora de si mesmos,
olhando-os. Os reis, tendo sentido os traços amorosos desse belo
Menino, abandonaram imediatamente todo orgulho, e caíram sem
resistência ao pé da manjedoura. Quantas vezes disseram uns aos
outros: Amigos, como é bom estar aqui! Não encontramos, em nos-
sos palácios, prazeres semelhantes aos que provamos neste estábulo,
vendo esse amável Menino-Deus.
“Sendo ainda Jesus muito jovem, as pessoas aflitas e as crianças
vinham, de todos os lugares circunvizinhos, para vê-lo e se regozi-
jar, e diziam entre si: Vamos ver o pequeno Jesus, o belo Menino de
Maria. A beleza e a majestade de sua face, diz São João Crisóstomo,
eram tão doces e tão respeitáveis ao mesmo tempo, que os que o
conheciam não podiam deixar de amá-lo... Alguns autores afirmam
que, se os soldados romanos e os judeus velaram-lhe o rosto, foi para
esbofeteá-lo e maltratá-lo mais facilmente, porque saía de seus olhos
e de seu rosto um brilho de beleza tão doce e tão arrebatador que
desarmava os mais cruéis.”
4º A doçura de suas PALAVRAS. “Ninguém o ouviu gritar ou
discutir, como os Profetas haviam predito: Non contendet neque clamabit,
neque audiet aliquis in plateis vocem ejus. (Is 42, 2; Mt 12, 19.) Todos os
que o escutavam sem inveja ficavam tão encantados com as palavras
de vida que saíam de sua boca, que exclamavam: Nunquam sic locutus
est homo sicut hic homo (Jo 7, 46); e até os que o odiavam, surpresos com
a eloquência e com a sabedoria de suas palavras, perguntavam: Unde
huic sapientia haec? (Mt 13, 54.) Nunca homem algum falou com tanta
mansidão e graça. Donde lhe vem tal sabedoria em suas palavras?
“Muitos milhares de pobres deixavam suas casas e suas famílias
para ir escutá-lo até nos desertos, passando vários dias sem beber e
sem comer, saciados apenas com a doçura de sua palavra. Foi pela
doçura de suas palavras que ele atraiu, como com uma isca, seus
apóstolos após si, que curou os doentes mais incuráveis e consolou
os mais aflitos. Apenas disse a Maria Madalena, totalmente desolada,
esta palavra: Maria, e encheu-a de alegria e de doçura.”
5º A doçura de suas AÇÕES. “Jesus, por fim, é doce em suas
ações e em toda a conduta de sua vida: Bene omnia fecit (Mc 7, 37); ele
224 J. M. Dayet
exércitos, mas a ternura de um esposo e a doçura de um amigo. Ela
se deixou ver, algumas vezes, na Eucaristia; mas não me recordo de
ter lido que tenha aparecido com outra forma senão a de um doce e
belo menino...
“Depois disto, não amaríamos essa Sabedoria Eterna que nos
amou mais e ainda nos ama mais do que sua vida, e cuja beleza e
doçura superam tudo o que há de mais belo e mais doce no Céu e
sobre a terra?” (A. S. E., n. 118-128, 131.)
_______________
II
226 J. M. Dayet
3º Seguir alguns Conselhos, ditados semelhantemente pela Eterna
Sabedoria:
Nunca olhar para trás (Lc 9, 62) e confiar no Salvador (Lc 12, 7;
Jo 3, 17).
Amar viver na Luz (Jo 3, 20), pois Deus é Espírito... (Jo 4, 24), e... a
carne para nada aproveita... (Jo 6, 64), e todo o que comete o pecado, é escravo
do pecado... (Jo 8, 34-35); mas o que é fiel no pouco, também é fiel no muito
(Lc 16, 10), e faz obras de luz... (Mt 5, 16).
Buscar uma justiça abundante, maior que a dos escribas e fariseus
(Mt 5, 20); uma justiça pronta a todos os sacrifícios... quer se trate de
um membro, se esse membro nos escandaliza (Mt 5, 29; 11, 12); quer
de tesouros que a ferrugem pode corroer e os ladrões podem roubar
(Mt 6, 19-20); ou, sobretudo, de julgamento feito sobre o próximo, pois
o mesmo julgamento nos será aplicado (Mt 7, 1-2).
Mostrar-se sempre circunspecto, seja diante dos falsos profetas
cobertos de veste de ovelhas (Mt 7, 15-16); seja diante dos peque-
ninos: é preciso ter cuidado para não desprezar nenhum deles, pois
seus anjos no Céu veem incessantemente a face do Pai (Mt 18, 10).
Além disso, mostrar-se vigilante, pois não sabemos nem o dia, nem a
hora em que o Senhor virá (Mt 25, 13).
Não se inquietar senão pela salvação da alma e pelo julgamento de
Deus. Logo, não temer os que podem matar somente o corpo (Lc
12, 4-5), e não se atormentar quanto ao alimento e ao vestuário, pois
o Pai celestial sabe o que nos é necessário (Lc 12, 22, 30); mas ter a
firme convicção de que tudo o que está agora escondido e secreto
será um dia descoberto e revelado (Lc 8, 17).
Praticar, enfim, o bem para com todos, amigos e inimigos (Mt
20, 26-27; 5, 44), em um grande espírito de desinteresse, sobretudo
diante das riquezas (Mc 10, 23; Lc 18, 23). Ai de vós que tendes a vossa
consolação neste mundo. (Lc 6, 24.)
4º Essa é a Porta estreita, indicada pela Sabedoria (Mt 7, 13-14; 20,
16). Seu humilde discípulo sempre se lembrará de que deve dar (At
20, 35), perdoar (Mt 5, 39-40), orar sem nunca se cansar (Lc 18, 1; Mt
26, 41), dar esmola (Lc 6, 41), e amar humilhar-se (Lc 14, 11).
Ele terá, então, acesso às Beatitudes prometidas e esta será sua
recompensa, ainda neste mundo:
LEITURAS
228 J. M. Dayet
TERCEIRO DIA
JESUS
SABEDORIA DEPENDENTE E SUBMISSA
230 J. M. Dayet
até ali maculado pelo pecado original – em justo e em filho de Deus.
Por meio dela, semelhantemente, ele enche Isabel – já em estado de
justiça e de santidade – com tamanha abundância dos dons do Espí-
rito Santo, que sua alma exulta de júbilo na plena luz da Revelação:
“Donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo? Porque,
logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de ale-
gria no meu ventre. Bem-aventurada a que acreditou, porque se hão de cumprir as
coisas que da parte do Senhor te foram ditas.” (Lc 1, 43-45.) Toda a Encar-
nação foi-lhe revelada. Ela dá graças por isso a Maria. A humilde
Maria responde com seu cântico do Magnificat.
_______________
_______________
232 J. M. Dayet
tamente ameaçado; mas a Mãe com ele. Como Jesus, mal tendo com-
pletado dois meses,76 poderia se separar dela? É ela quem o carrega.
Imaginemos essa fuga perturbada, em várias etapas, por um per-
curso muito longo, através do deserto, rumo ao Delta do Nilo. De
dia, os fugitivos param longe do caminho, para ter o descanso neces-
sário; retomam sua rota no fim da tarde ou durante a noite. Uma vez
passada a Torrente do Egito, que marca a fronteira, José sentiu suas
forças renovadas. Tranquilizou a valente Mãe, que segurava sempre o
divino fardo em seus braços. O Menino estava salvo. Ó dependência
cada vez mais acentuada, que não deixa os seus em repouso! O Egito
após Belém...
Quanto tempo durou o exílio? Não se sabe ao certo. Provavel-
mente, cerca de dois anos, o tempo que dura o aleitamento. Que
alegria quando José, visitado novamente pelo anjo durante seu sono,
soube que podia voltar ao país de Israel: “Levanta-te, toma o Menino e
sua Mãe (Jesus era, pois, ainda pequenino...). Morreram os que procura-
vam tirar a vida do menino.” (Mt 2, 20.)
Os exilados retomaram a estrada, sem ruído, furtivamente, como
haviam chegado. Com uma diferença: Jesus era agora mais pesado,
mais difícil de carregar.77 Em pequenas etapas, chegaram à Palestina,
onde uma terceira intervenção do Céu advertiu José que fosse à Gali-
leia. Foi assim que, após mais alguns dias de caminhada pelo caminho
que ladeava o mar, evitando, desse modo, a Judeia, chegaram à sua
querida Nazaré. O Menino estava enfim em sua casa, nesse pacífico
lar de família, onde Maria sonhara trazê-lo ao mundo... Por meio dela,
na terra do exílio, ele deixara graças abundantes para aqueles que
viriam povoar o deserto da Tebaida e fazer dele o primeiro claustro
da vida religiosa.
234 J. M. Dayet
viva e como que atual da cruz ensanguentada! Não estamos auto-
rizados, então, a pensar, como outros o fizeram,78 que, tomado por
esse conhecimento e pela impressão de espanto que ela provocou
em todo o seu ser humano, ainda tão jovem, Jesus tenha desejado
prolongar sua estadia em Jerusalém, a fim de ficar sozinho face a
face às coisas de seu Pai celestial? Lentamente, terá ele percorrido a
Via dolorosa e, tendo chegado ao topo do Calvário, deve ter orado
por muito tempo, os braços estendidos, como crucificado nos braços
desse Pai, oferecendo-lhe tudo o que devia suportar por nós vinte
anos mais tarde.
Assim, antecipava ele, de certo modo, sua santa Paixão, e com o
fato desse brusco desaparecimento, Maria sofria, ela também anteci-
padamente, as dores de sua Compaixão materna. Pois durante esses
três dias, ou – mais exatamente para ela – uma noite, um dia e outra
noite, como no tempo do grande abandono que irá da noite da Sexta-
Feira Santa até à manhã de Páscoa, a Virgem não podia distrair seu
espírito do pensamento de que Jesus fora sem dúvida, na Cidade
santa, reconhecido por herodianos, preso e talvez já morto.79
Desse modo, Jesus, a Sabedoria Encarnada, sempre para obede-
cer às vontades de seu Pai celestial, preparava de longe sua santa Mãe,
sua Associada na obra de nossa salvação, para suportar o peso imenso
das dores redentoras. Essas dores foram-lhe de tamanha intensidade
que, sem essa preparação, seu coração teria se rompido em seu peito,
como o Coração de seu Filho no jardim da agonia.
Em semelhante ocorrência, não se pode prevenir, guarda-se o
silêncio. A explicação desejada virá em seu tempo. Se Maria tivesse
compreendido todo o alcance da resposta de seu filho no momento
do Reencontro, seu sofrimento teria sido ainda maior.
Na manhã do terceiro dia, quando Maria e José80 encontraram
Jesus no Templo, no meio dos Doutores, o Evangelho nos diz que
78 Ver Grimal: Com Jesus formando em nós seu sacerdote, tomo I, 13ª meditação,
p. 132-133.
79 Mons. Gay, Mistério do Rosário. O Reencontro, p. 288, 289.
80 Sofrendo com Maria durante esses três dias, José – que não veria a Pai-
xão – participou dela, contudo, antes de entrar na glória.
236 J. M. Dayet
do Salvador, logo no início de seu ministério, nos dá a prova disso.
“Jesus, diz Montfort, quis começar seus milagres por Maria.” (V. D., n. 19.)
Vemo-lo, com efeito, realizar nas bodas de Caná seu primeiro milagre
de natureza, como outrora, na casa de Isabel, realizara seu primeiro
milagre de graça. Por meio do mesmo sinal sensível da voz e do
pedido de sua Mãe, ele faz ser transmitida a graça que santifica João,
o Precursor, e que transforma a água em vinho.
Montfort denomina a santificação do Precursor “seu primeiro e
maior milagre de graça”. (n. 18.) O milagre de Caná será não menos pro-
digioso, se considerarmos que ele pressagiava uma outra transforma-
ção ainda mais surpreendente, a da última refeição familiar, na noite
da Quinta-Feira Santa, e que teve, imediatamente, a imensa repercus-
são sobrenatural de fortalecer a vocação, recém-desabrochada, dos
primeiros discípulos do Salvador, seus mais caros apóstolos e seus
sacerdotes de amanhã: Et crediderunt in eum discipuli ejus. (Jo 2, 11.)
Eles jamais esquecerão, sobretudo quando tiverem de renovar
o gesto consagrador do Cristo na última Ceia, que Maria, a Mãe de
Jesus, esteve no ponto de partida de sua vocação, isto é, de sua res-
posta iluminada e firme ao chamado do Mestre. Há, pois, em torno
desse milagre de Caná, a graça eucarística em perspectiva e a graça
sacerdotal em germe. Há mais do que isso: encontramos nele, de
fato, a graça conferida do sacramento do matrimônio, o sacramento
que assegura, neste mundo, a perpetuidade do Corpo místico, e que
deve povoar o Céu de eleitos.81 Todos brotam do Coração de Jesus
obediente a Maria.
Compreendemos, então, o pedido da Virgem. Vendo ao lado de
seu Filho, nos discípulos e nos novos casados, uma primeira manifes-
tação da Igreja, ela solicitou um milagre que fortaleceria a fé de uns
e a despertaria nos outros. “Meu Filho, eles não têm mais vinho”,
Vinum non habent. Jesus responde-lhe: “Mulher, que significava, em seu
238 J. M. Dayet
mava abundantemente seus favores na irradiação da prece e, às vezes,
da discreta presença de Maria. Ele não tardara, aliás, em abandonar
definitivamente Nazaré para ir morar em Cafarnaum: Et relicta civitate
Nazareth, venit et habitavit in Capharnaum maritima. (Mt 4, 13.) São João
especifica que ele foi com sua Mãe: Post hoc descendit Capharnaum, ipse
et mater ejus... (Jo 2, 12.) Essa estadia não durou senão certo tempo,
mas é significativa.83
São Lucas (8, 2,3) nomeia algumas das santas mulheres que
seguiam habitualmente o Salvador e seus apóstolos e assistiam-nos
com suas posses. Como não admitir que a Santa Virgem estivesse às
vezes entre elas, visto que entre elas estava nos dias da Paixão? Da
mesma forma, não podemos deixar de acreditar que ela havia prece-
dido seu Filho na morada tão hospitaleira de Betânia.
_______________
83 “Jesus, em Cafarnaum, sai da pequena morada onde vive sua Mãe; pas-
seia sobre as margens do lago de Genesaré, ou mar da Galileia...” Dom
Delatte, L´Evangile de Notre-Seigneur Jésus-Christ, p. 153.
240 J. M. Dayet
LEITURAS
242 J. M. Dayet
expia os pecados do espírito. Expiação dominante em cada um dos
três Mistérios, mas não exclusiva.
No Mistério da Agonia, justamente chamado de Paixão do Coração
de Jesus, nosso dulcíssimo Salvador viu passar diante de seu espírito
todos os pecados do mundo e, de maneira mais intensa, os crimes
que gera a miserável avareza. Não foi, aliás, no tempo mesmo em que
ele entrou em sua voluntária e terrível Agonia, que Judas, “um dos
Doze”, o vendeu por trinta moedas de prata; e não foi nesse jardim
das Oliveiras que o traidor chegou logo depois, liderando um bando
armado, para consumar o crime de sua traição?
Assim, Judas cometeu seu grave crime e se afundou, em seguida,
no desespero, como consequência da torpe paixão que devorava sua
alma. Ele preferiu o dinheiro ao sangue do seu divino Mestre. Quan-
tos outros se perdem como ele, os olhares obstinadamente cravados
na terra! Devemos pensar que um grande número de condenados
– talvez a maioria deles – o são por amor do dinheiro e de tudo o
que se pode obter por meio do dinheiro, visto que cada vez que o
Evangelho fala de condenados é sempre por seu apego calculado às
riquezas deste mundo e à dureza de coração que dele decorre.86
Não podemos imaginar que universo de iniquidades sai dessa
miserável paixão pelo dinheiro: as cobiças, as idolatrias, os roubos, as
mentiras, os perjúrios, os suicídios, as divisões de famílias, as simonias,
as traições, as hipocrisias, os ódios tenazes, as crueldades, os assas-
sínios, as guerras injustas, as guerras com seu cortejo de crimes e de
violências de toda sorte...
Jesus teve a visão de tudo isso, e sentiu uma dor indescritível em
seu coração. Quae utilitas in sanguine meo? (Sl 29, 10.) Por que meu san-
gue será derramado por tantos e tantos infelizes que não tirarão pro-
veito dele, que se perderão sem volta e me odiarão eternamente? Essa
ideia da inutilidade dos sofrimentos redentores para muitos homens
provoca em sua alma tamanho pavor, tamanho abatimento que ele
suplica ao seu Pai, por três vezes, que afaste, se possível, esse cálice
de amargura; e, não encontrando ao redor de si nenhuma consolação
244 J. M. Dayet
excessos! Quantos pecados graves são cometidos no arrebatamento
da paixão sensual! Quantas orgias, abominações e requintes, quantas
impurezas e impudicícias! Pecados de luxúria que gritam vingança,
a ponto de terem provocado o dilúvio, a destruição de Sodoma e
Gomorra, e tantos outros castigos.
Jesus vai sofrer pavorosamente como expiação dessas faltas
incontáveis. No pretório de Pilatos, seu sangue divino se derramará
novamente, mas desta vez por consequência das feridas infligidas à
sua carne inocente. Para começar, eis seu corpo, “esse corpo sagrado,
tão belo, tão casto e mais que virginal; esse corpo que nenhum olho
humano vira desde os dias de sua primeira infância, ei-lo desnudado,
ei-lo exposto a olhos cheios de ódio, curiosos, impudentes, cínicos.”88
Que humilhação e que tortura para o mais belo, o mais puro dos
homens; para o mais sublime dos mestres da santidade e da grandeza
moral! Ele se queixa disso nos Salmos: “Por tua causa, meu Deus, sofri
afronta...” (Sl 68, 8.) “Eles mesmos me estiveram considerando e olhando...”
(Sl 21, 18), “e alargaram contra mim a sua boca, e disseram: Bem, bem, nossos
olhos viram!” (Sl 34, 21.)
Logo depois, sua carne é mutilada sob os golpes de correias guar-
necidas de ossos ou bolas de chumbo. Os soldados da guarnição
batem com violência, sucedendo-se sem descanso nem intervalo,
excitando-se entre si por meio de zombarias, grosserias, blasfêmias.
Quanto tempo durou o suplício? Quantos golpes recebeu a
Vítima? O limite ordinário foi, sem dúvida, ultrapassado. “Sobre o
meu dorso trabalharam os pecadores; prolongaram a sua iniquidade.” (Sl 128,
3.) Seu objetivo não era, conforme a ordem dada pelo procurador,
oprimir o paciente a ponto de causar piedade ao povo?
Na verdade, Deus encontrava ali uma compensação suficiente
para todas as abominações carnais. A santidade, a caridade, a pureza
dessa hóstia viva e gemente, às voltas com incomensuráveis dores,
cobriam e absorviam o mal; sem contar que ela arrancava do coração
do Pai dos Céus graças de misericórdia, com vistas ao retorno à casa
de família dos filhos pródigos de todos os séculos, que se deixarem
tocar pelo arrependimento.
_______________
246 J. M. Dayet
Pecado gravíssimo, o mais grave que pode existir. Soberba auda-
ciosa que faz levantar a cabeça acima dos homens, para dominá-los,
e contra Deus, para afrontá-lo. Como expiação desse ultraje à Majes-
tade divina, Jesus vai sofrer em sua Cabeça adorável, que a Flagela-
ção parece ter poupado. A cabeça, essa parte mais nobre do corpo
humano, onde é sediada a inteligência, onde brilha, sobre a fronte e
nos olhos, um reflexo da luz do Alto. A cabeça, sobre a qual, como
sinal de Soberania reconhecida, são postas a coroa dos reis e a tiara
dos pontífices.
Por isso, os soldados de Pilatos, que ouviram a principal acusa-
ção lançada pelos judeus, dedicar-se-ão a ridicularizar essa pretensa
Realeza. Reúnem o cortejo. Uma coroa de espinhos é rapidamente
trançada e enfiada brutalmente sobre a cabeça do Salvador. E para
que nada falte a essa paródia sacrílega, jogam sobre seus ombros um
andrajo escarlate, colocam entre suas mãos, à guisa de cetro, um des-
ses caniços ocos mas sólidos, que chamamos de bambu, e que crescem
em abundância na Judeia.89 Fazem-no sentar sobre algum pedaço de
coluna; depois, um após o outro, esses pagãos desfilam diante dele,
dobrando o joelho, zombando e dizendo: “Salve, rei dos judeus!”. Uns
dão-lhe bofetadas, outros sujam de cuspidelas o augusto Semblante.
Há os que, tirando o caniço de suas mãos, desferem com ele golpes
sobre a cabeça, somando o sarcasmo à raiva de fazer sofrer.
Os espinhos, longos e agudos, traspassam a fronte e as têmporas.
Os cabelos são arrancados, os olhos se enchem de sangue, os ouvi-
dos zumbem de dor. Jesus reaparece assim diante dos judeus, carre-
gando sempre a coroa e a púrpura, quase não tendo mais aparência
humana. Ecce Homo! “Eis o homem!”, diz-lhes Pilatos, aquele que se
disse vosso Rei; vede no que se transformou. Que temor pode vos
inspirar doravante?
Sim, eis o Homem-Deus, o Filho amado, em quem o Pai declarou
solenemente, por duas vezes, ter depositado suas graças; o Filho da
Virgem, a quem o anjo da Anunciação havia prometido como um
Rei, e um Rei cujo Reino não teria fim: Et Regni ejus non erit finis (Lc
1, 32-33). Rei, hoje coroado de espinhos, escarnecido, “sem beleza
II
90 Is 53, 2.
248 J. M. Dayet
que retornava dos campos, a carregar a Cruz após ele. Foi então, ou
um pouco antes, que aconteceu esse encontro de Jesus e de sua santa
Mãe, cuja tradição de Jerusalém conservou-nos a memória?91 Do que
nossos corações não podem duvidar é que Maria, acompanhada de
João e das habituais seguidoras de Jesus, se apresentou ao seu Filho
logo que pôde se juntar a ele, através da multidão e da sombria escolta
dos soldados e dos ladrões.
Pobre e corajosa Maria, vendo seu Jesus nesse estado irreconhecí-
vel ao qual o reduziram, em algumas horas, os cruéis tratamentos dos
homens! Ela não o deixará mais, até o sepulcro. Juntos, eles galgam o
Calvário, semeando graças em sua passagem. Uma dessas graças foi,
sem dúvida, a transformação que deve ter começado a se operar na
alma de Simão, o Cireneu, no contato com a Cruz e a proximidade
de Maria implorante. Se os Evangelistas conservaram seu nome, o de
sua pátria de origem,92 e os nomes de seus dois filhos, Alexandre e
Rufo, é porque se tratava, então, de personagens bem conhecidos da
primeira comunidade cristã.93
Graça como a advertência dada às mulheres de Jerusalém, a essas
desconhecidas que seguiam o cortejo ou estiveram em sua passagem,
fazendo ouvir lamentações segundo o hábito oriental. Elas choram
simplesmente movidas de piedade natural por aquele que ia morrer.
“Filhas de Jerusalém, disse-lhes Jesus, não choreis sobre mim, mas chorai
sobre vós mesmas e sobre vossos filhos.” Pois pertenceis a essa nação ingrata
que a mim renuncia e me assassina. Chorai sobre os males que vos
esperam: a ruína de vossa cidade, a destruição de vossa pátria, a dis-
persão de vosso povo. Nesses dias que se aproximam, dir-se-á: “Dito-
sas as estéreis, e os seios que não geraram e os peitos que não amamentaram!”.
Ver-se-ão mães, enlouquecidas pela fome, devorarem seus próprios
filhos. Os homens desejarão, então, ser engolidos pelas montanhas e
pelas colinas. E esses desejos do impossível serão apenas o anúncio
do que sucederá no grande Dia do Julgamento. É a necessidade da
Justiça; se me tratam como o fazem, a mim, o lenho verde, o Santo
250 J. M. Dayet
de repente, diante dessa Páscoa ensanguentada, como não teriam tes-
temunhado, prontamente, sua profunda simpatia àquela que viam tão
cruelmente golpeada em seu amor materno? E porque não podiam
mais servir o Salvador e seus apóstolos, foi-lhes uma consolação
acompanhar Maria, que acorria adiante de seu Filho, e formar assim
o grupo das amigas fiéis que subiam ao Calvário.
Com Maria e João, elas foram as consoladoras do Coração de
Jesus agonizante. Quantas graças terão valido a elas essas horas de
fervorosa assistência ao seu sacrifício! Entre elas, e as mais próximas,
havia duas mães de apóstolos, sacerdotes consagrados da véspera:
Salomé, a mãe de João e de Tiago Maior; Maria de Cléofas, mãe de
Tiago Menor e de Judas Tadeu. Ei-las intimamente unidas à santa
Mãe do Soberano Sacerdote, que oferecia ao Pai dos Céus sua imo-
lação redentora!
Havia Maria Madalena, a perdoada, que se mantinha bem perto
de Maria Imaculada, e banhava sua alma no sangue da divina Vítima.
Favor inaudito, prodígio de infinita misericórdia! Suas lágrimas do
Calvário, unidas às lágrimas, às dores, às preces da Virgem, terão con-
tribuído, sem dúvida, para obter a conversão de um dos ladrões cru-
cificados ao lado de Jesus. Como seu companheiro, ele começara por
insultar o Salvador. Mas logo depois, vendo sua paciência nas tor-
mentas, a compaixão de sua santa Mãe, a fidelidade dos amigos silen-
ciosos, em contraste com os judeus blasfemadores e a multidão que
uivava, muda seu proceder, abre sua alma à fé na Divindade e na Rea-
leza supraterrestre Daquele que acabara de perdoar seus carrascos.
Confessa a inocência total de Jesus, e, virando-se para ele, implora
humildemente uma lembrança em seu favor: “Senhor, lembra-te de mim,
quando entrares no teu Reino. – Hoje, responde Jesus, estarás comigo no para-
íso.” (Lc 23, 42-43.) Foi a única vez, como já observamos, que Nosso
Senhor fez essa promessa; foi a primeira vez que falou do paraíso, e
foi a um pecador que ele falou assim.96
_______________
97 Omnis turba eorum qui simul aderant ad spectaculum istud (23, 48).
252 J. M. Dayet
minha vida divina, de todos os homens resgatados em meu sangue,
que representa aqui meu discípulo mais querido. Eu vou morrer, eu
concluo nossa obra redentora, e quero que façais que eles sejam bene-
ficiados por ela até o fim dos tempos, pelo ministério de meus sacer-
dotes, de meus apóstolos, de todos aqueles que crerem em mim. Eles
não ficarão órfãos. Sereis sua Mãe, sua Mãe segundo a graça, como sou
vosso Filho segundo a natureza. Ecce filius tuus. Ecce Mater tua.
Palavra testamentária muito amorosa, que se junta ao doce anún-
cio de Nazaré, e projeta sobre as dores da Virgem uma luz plena-
mente reveladora. Assim como foram necessários os sofrimentos e
a morte de Jesus para que tenhamos direito à herança celestial, eram
necessários também os sofrimentos de Maria, sua comunhão de alma
na morte na cruz de seu Filho, para que ela pudesse nos gerar para a
vida sobrenatural. Nascemos de Deus e de Maria na noite dolorosa
do Calvário.
Jesus se recolhe, agora, no longo silêncio de várias horas que
precedeu sua morte. É a grande Elevação de sua Missa sangrenta.
Ele ora, murmura ao seu Pai os versículos dos Salmos que detalha-
ram, antecipadamente, os sofrimentos de sua Paixão e nos descreve-
ram seu desespero: Deus, Deus meus, quare me dereliquisti?” “Ó Deus,
Deus meu, por que me desamparaste?”. Esse é primeiro versículo do
Salmo 21, que recitamos na Sexta-Feira Santa, no despojamento dos
altares. Essa prece intensa e prolongada é o que dá o peso às torturas
de seu pobre corpo martirizado. A alma está mais viva e mais reli-
giosa do que nunca, toda impregnada de paciência, de abandono, de
submissão total. Ela domina e controla a lenta agonia, a ponto de se
ouvir Jesus, no momento de expirar, pronunciar com uma voz forte
– que não é a de um moribundo – o sexto versículo do Salmo 30,
fazendo-o preceder da palavra “Pai”: In manus tuas commendo spiritum
meum. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” Ele oferece sua
vida por espontânea vontade. Ninguém a tira dele (Jo 10, 18). Ele
mesmo a depõe livremente sob os olhos de sua santa Mãe, silenciosa,
orante e consentindo como ele.
Consummatum est. Agora, tudo está cumprido; sua obediência,
sua dependência está consumada. Ele prosseguiu com ela tão longe
quanto possível, até à morte, e morte de cruz. Et inclinato capite, emisit
Assim, desde sua Agonia do jardim das Oliveiras até sua Agonia
da Cruz, Jesus não deixou de oferecer seus sofrimentos e de pro-
digalizar suas graças, na dependência de sua santa Mãe. Sabedoria
dolorosa, Sabedoria crucificada e expirante, ele conserva a mesma
amorosa conduta que foi a de toda a sua vida terrena. Que encora-
jamento para santificar nossos sofrimentos, nossas provações, nos-
sas humilhações; para carregar todas as nossas cruzes, pequenas ou
grandes, em união com Maria! Não somente carregá-las, mas amá-
las, desejá-las, abraçá-las com alegria quando chegam a nós, a fim de
aumentar nossa sobrenatural semelhança, nossa configuração ao seu
divino Filho.
É por isso que a Santíssima Virgem, longe de poupar as cruzes
aos seus fiéis servos e escravos, envia-lhes cruzes mais numerosas,
mais pesadas, mais persistentes do que a outros que não lhe são total-
mente devotados. É a marca, neles, de suas predileções; assim como
a facilidade com a qual vemo-los carregar essas cruzes é o sinal da
doçura e da unção que ela derrama então em suas almas.99
Regozijemo-nos, pois, com São Luís Maria de Montfort, esse
amante apaixonado da Cruz, e ouçamo-lo nos dizer: “Como foi preciso
254 J. M. Dayet
que a Sabedoria Encarnada entrasse no Céu por meio da cruz, é necessário entrar
nele, após ela, pelo mesmo caminho... A verdadeira Sabedoria habita de tal modo
na cruz que, fora dela, não a encontrareis neste mundo; e ela se incorporou e uniu
de tal como com a cruz, que se pode dizer, em verdade, que a Sabedoria é a Cruz
e que a Cruz é a Sabedoria.” (A. S. E., n. 180.)
Palavra profunda. Montfort não teme identificar Jesus com a
Cruz ou a Cruz com Jesus. Amar o sofrimento é, pois, amar Jesus;
como amar Jesus, o Jesus de Maria, é amar o sofrimento.
LEITURAS
EVANGELHO segundo São João, cap. 14, 1-31: Discurso de Jesus após
a Ceia.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. VIII: Da Oblação de Jesus
Cristo sobre a Cruz.
256 J. M. Dayet
I
258 J. M. Dayet
de espírito dos amigos do Salvador. Estes haviam posto nele todas
as suas esperanças, pensando “que ele resgataria Israel” e devolver-
lhe-ia seu antigo esplendor. Mas eis, dizia Cléofas, que nossos sumos
sacerdotes e nossos magistrados o entregaram para ser condenado à
morte, e o crucificaram; e estamos no terceiro dia depois que essas
coisas sucederam. “É bem verdade, acrescentava ele, que algumas
mulheres, das que estavam entre nós, tendo ido ao Sepulcro ao ama-
nhecer, não encontraram o corpo. Voltaram dizendo que tinham tido
uma aparição de anjos, os quais disseram que ele está vivo. Alguns
dos nossos foram ao Sepulcro e acharam como as mulheres tinham
dito; mas não o encontraram!”.
Esses espíritos retos, inteiramente conquistados pelo Cristo,
esperavam ao menos uma Ressurreição estrondosa, que teria sido
a revanche imediata sobre os que o haviam condenado e também o
restabelecimento do antigo reino de Israel, seu sonho nacional de
sempre. Mas nada mudou, os líderes do momento são os mesmos,
tudo está, pois, terminado.
O Forasteiro que os escuta censura-lhes o fato de serem tardos
para crer no que haviam anunciado os profetas com respeito ao Mes-
sias: “Não era necessário que o Cristo sofresse tais coisas, e que assim entrasse na
sua glória?”. E ao longo do caminho, ele retoma e comenta tudo o que
fora dito a seu respeito nas Escrituras. Conhecemos a continuação
da narrativa de São Lucas. O que importa, sobretudo, reter, é o argu-
mento do qual se serve Jesus para reanimar a fé no coração desses
discípulos desencorajados, e assegurar-lhes seu verdadeiro e sólido
fundamento: a autoridade da palavra divina. Devemos crer no que Deus
teve o cuidado de nos revelar por intermédio de seus Profetas e de
seu Filho. Bem-aventurados os que aceitam essa revelação e lhe con-
cedem toda sua confiança, não importa o que aconteça!
Nesse mistério que nos ocupa, a Santa Virgem continua sendo o
modelo único. Somente ela creu sem hesitação, e as almas que cre-
ram primeiro são precisamente aquelas que a acompanharam até a
Cruz e até o Sepulcro: primeiro o apóstolo João, depois Madalena;
e depois de Madalena, Maria Cléofas e Salomé, com as outras segui-
doras de Jesus no tempo de suas pregações. Todas essas mulheres
tiveram o insigne privilégio de ver brevemente Jesus ressuscitado,
260 J. M. Dayet
a quem ele sentia uma necessidade irresistível de confessar sua falta
e pedir perdão. Estava ávido por saber o que havia sucedido desde a
condenação na casa de Caifás.”101 Que torrente de lágrimas terá derra-
mado então! Maria lhe tinha devolvido a confiança, orara, obtivera para
ele essa Aparição privilegiada da manhã de Páscoa. Pedro foi, pois, o
primeiro entre os apóstolos a ver com seus olhos Jesus ressuscitado;
Pedro, permanecendo como Cabeça do Colégio apostólico, e tornan-
do-se, assim, a primeira testemunha nomeada da Ressurreição do Sal-
vador. Sim, Aparição privilegiada, como a concedida a Madalena.
Como duvidar, depois disto, de que Jesus tenha começado por
se manifestar à sua santa Mãe? O Evangelho não fala disso. E não
precisava falar: ele relata as Aparições cujo fim era provar a vitória do
Cristo sobre as tormentas e a morte, e, com isso, obter uma fé a toda
prova no sucesso da obra redentora, apesar das aparências contrá-
rias. Maria, como dissemos, não deixara de crer na Ressurreição; por
isso, não a vemos tomar uma parte qualquer nas preocupações das
santas mulheres com relação ao embalsamamento do Corpo enter-
rado. Essa atitude deve ter tocado o espírito observador e intuitivo
do apóstolo João; foi por isso que, diante do Sepulcro vazio, aceitara
imediatamente a evidência do grande milagre.
Qual foi a beatitude de Maria ao contemplar o Corpo, doravante
glorioso, de seu Jesus? Faltam-nos as palavras para exprimi-la. Era
esse mesmo Corpo vindo dela, e que vira crescer, sofrer, morrer
sobre a Cruz e ser carregado ao sepulcro de José de Arimateia. Os
estigmas acrescentavam a ele sua prova impressionante. Essa Apari-
ção em nada se assemelhava às que se seguiriam, tanto superava, por
seu esplendor, sua doce e santa intimidade, por sua efusão celestial,
seus abraços, suas trocas de carinho, por suas ações de graças tam-
bém, após tantos sofrimentos juntamente suportados e superados.
Era uma alegria sublime, intraduzível; uma felicidade sobre-humana
que ultrapassa nossas concepções, ao mesmo tempo que uma justa e
majestosa recompensa de sua fé. Que divina lição para nos encorajar
a implorar de Maria essa FÉ inabalável, que se apoia, antes de tudo,
262 J. M. Dayet
Entretanto, não era na Galileia que Jesus desejava dar aos seus
apóstolos seu adeus terrestre. Impõe-lhes, pois, voltar a Jerusalém,
e determina como lugar do último encontro esse Cenáculo onde os
consagrou seus sacerdotes e dispensadores de sua Eucaristia. Ali os
encontramos, exatamente dez dias antes do Pentecostes, dispostos
a receber suas recomendações supremas. Sua pregação deverá, pri-
meiro, se apoiar sobre a autoridade das Escrituras. Era preciso que se
cumprisse tudo o que fora dito a seu respeito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos: seus sofrimentos, sua morte na cruz, sua res-
surreição no terceiro dia. Depois, eles deverão proclamar ao mundo
os fatos dos quais foram testemunhas, e os homens crerão com base em
suas afirmações. Dentro em breve, aliás, o Espírito Santo os revestirá
de sua força. Jesus faz-lhes esse anúncio.
E leva-os ao monte das Oliveiras. Ali, estendendo as mãos sobre
eles, abençoa-os e sobe ao Céu. Todos o viram subir majestosamente
nos ares: os apóstolos, muitos discípulos, e Maria com as santas
mulheres que vieram com eles ao Cenáculo.
Era meio-dia. O sol inundava o firmamento. Num triunfo tran-
quilo, a pouca distância do pretório de Pilatos, Jesus retornava ao
seu Pai no Reino do eterno encontro. “Vou preparar o lugar para vós”,
dissera ele aos seus em seu discurso após a Ceia. (Jo 14, 2.) Que doce
e luminoso convite! Como melhor nos fazer entender que a Igreja lá
do alto não é senão uma continuação da Igreja terrestre?
Apóstolos e discípulos retornaram a Jerusalém com grande júbilo,
observa São Lucas (24, 52.) Todo medo desaparecera. Suas ilusões
judias, apesar de tenazes, acabavam de desvanecer. Não esperavam
mais pelo restabelecimento temporal do antigo reino, e compreen-
diam, enfim, que Jesus não viera para isso. Uma outra esperança, de
outro modo grande e bela, enchia seus corações. Dois anjos acaba-
vam de dizer-lhes que esse Jesus, que subira ao céu, voltaria um dia,
tal como o viram subir. Então, surgirá sobre as nuvens em toda a sua
glória, para julgar o mundo e inaugurar um Reino sem fim. E depois,
tendo Jesus partido, Maria permanecia com eles. Tanto já intercedera
diante de sua lentidão para crer. Ela se regozijara com as santas mulhe-
res pelas Aparições maravilhosas que se sucediam, totalmente à revelia
das autoridades da nação. Não ignorava seu incalculável alcance, apesar
264 J. M. Dayet
um deles o desejo de receber esse divino Paracleto, tantas vezes pro-
metido por seu Filho e do qual ela permanece como Esposa muito
fiel e muito amorosa.
Eis que há muitos anos Ela mesma recebeu sua vinda e sua esta-
dia; mas importa que o receba novamente, ostensivamente, desta vez,
para comunicá-lo à Igreja nascente. Importa que ela seja reconhecida
no pleno exercício de suas funções maternas. É por isso que o Livro
dos Atos assinalou expressamente sua presença entre os apóstolos
e os discípulos em oração. Ainda alguns dias, e o Amor pessoal do
Pai e do Filho derramará, por intermédio deles, sua caridade sobre
o mundo. Maria os prepara, infundindo-lhes seu próprio amor. Na
manhã do Pentecostes, antes que se abrissem as portas do Cenáculo,
é sobre ela, em primeiro lugar, que descerá o Espírito Santo, e, por
meio dela, se espalhará, na plenitude de seus dons, sobre cada uma
das pessoas presentes.
Então, sob o impulso do grande sopro vindo do alto, ocorrerá o
abrasamento dos corações e o desatamento das línguas. Doravante,
nada mais deterá os apóstolos. Na Jerusalém surpresa, espantada,
ouçamo-los – Simão Pedro à frente deles – pregar ousadamente o
Cristo ressuscitado dentre os mortos. E esses milhares de peregrinos,
vindos das províncias mais distantes para a Festa das colheitas, uma
das três grandes festas do ano, escutam-nos e compreendem-nos,
apesar da diversidade de seus idiomas particulares. “Somos as testemu-
nhas de sua Ressurreição”, dizem eles; e essa Ressurreição foi anunciada
por Davi, seu Profeta, assim como sua condenação e sua Paixão.
Impossível repreendê-los por terem crido levianamente ou por
influência de uns sobre os outros. Eles foram, ao contrário, os mais
rebeldes a crer; Jesus precisou ganhá-los e convencê-los um a um,
por assim dizer. Sua afirmação não teme ser desmentida. Foi ela que
converteu em massa esses primeiros ouvintes: creem em sua palavra,
como o divino Mestre lhes havia predito; têm a prova da Divindade
do Cristo e da verdade de seu Evangelho. É ela também que fechará
a boca dos inimigos, prontos a ressurgir: “Não podemos calar sobre o que
vimos e ouvimos.”
Esse poder de convicção, emanando do Espírito que os inflama,
fá-los-á afrontar as ameaças, os tribunais, a prisão, até a morte violenta.
II
266 J. M. Dayet
celebravam o triunfo de seu Filho e sustentavam, nesse momento, a
marcha da Igreja.
Maria, aliás, não podia senão estar maternalmente atenta a essa
cristandade da capital, já às voltas com as autoridades judias e tão feliz
por sua assistência. Por meio de João, ela conhecia e acompanhava o
avanço da pregação apostólica na Judeia, na Samaria, e além. Quanto
deve ter admirado e louvado a força de alma do santo diácono Estê-
vão, o primeiro mártir! Com que fervor implorava pela conversão de
Saulo de Tarso, o mais obstinado dos perseguidores! Agradecia ao
Senhor por tomar conhecimento do regozijo dos apóstolos, depois
de terem sido presos e surrados com varas, por amor de seu Mestre.
Mais tarde, quando findar a perseguição, ela estará lá para conso-
lar e sustentar os amigos de seu Filho. Após a fundação da Igreja de
Antioquia, ela entregará aos Evangelistas, a Lucas, em particular, o
fiel companheiro de Paulo, os mais íntimos segredos de seu coração,
o relato da Anunciação, seu cântico do Magnificat, com tantos deta-
lhes que somente ela conhecia.
Tudo isto não impedia sua contemplação, mas a elevava ainda
mais, e a estendia sobre todas as almas que virão beber, no curso do
tempo, na fonte evangélica. Jesus, no entanto, não podia tardar mais
em chamá-la a si. Amamos, segundo a Tradição mais antiga, vê-la par-
tir deste mundo na cidade de Jerusalém, para sempre santificada pela
morte e pela Ressurreição de seu Filho. Os apóstolos, em sua maio-
ria, se haviam dispersado através das nações; São João, seu sacerdote
e confidente, permanecia fielmente junto dela, na casa de Getsêmani,
certamente com alguns parentes e cristãos devotados. É ele quem
poderia nos descrever esses dias de espera pacífica que precederam
sua Dormição; ou bem nos dizer em termos claros que a vira, assim
como outras pessoas presentes, partir corporalmente, viva, imortal,
e não ressuscitada. Ele preferiu o silêncio, contentando-se, em seu
Apocalipse, em levantar um canto do véu, como veremos, e deixando
à Igreja o cuidado de definir, em seu tempo, essa misteriosa partida.
Séculos foram necessários.
Nossa geração foi a bem-aventurada beneficiária da Definição
dogmática, feita por S. S. Pio XII, na manhã de 1º de novembro de
1950, na praça São Pedro, em Roma. Ela pôde ouvir, diretamente ou
102 Essa visão da “Mulher” no Apocalipse parece ser, ao Pe. Jugie, A. A.,
a grande prova escriturária do Dogma definido. Ver seu artigo no Ano
teológico, 1951, p. 97-116.
268 J. M. Dayet
pacífica. Assim, o plano de revanche sobre o demônio surge total e
sem restrição, ao menos em um membro da humanidade resgatada.103
_______________
Que dizer agora da acolhida feita por Jesus à sua Mãe, quando os
anjos a viram elevada acima de suas hierarquias mais altas no Céu da
Trindade? É ele, esse Filho amado, quem a apresenta, a entrega ao
seu Pai para que entre na posse eterna da beatitude das três Pessoas,
na visão face a face. É ele quem a faz sentar-se ao seu lado sobre o
mesmo trono: Adstitit Regina a dextris tuis (Sl 44, 10), para sua Coroa-
ção de glória.
Houve um rito sensível dessa Entronização e dessa Coroação,
visto que Jesus coroava aqui, como homem, a cabeça glorificada de sua
Mãe? Sem dúvida, uma bênção, uma consagração, uma imposição de
suas mãos adoráveis, como pensa Mons. Gay. “Quanto a dizer, acres-
centa esse autor místico, a amplitude, a graça, a incomparável beleza
desse gesto do Cristo, a expressão que assumiu então o seu rosto, toda
a sua atitude, enfim, no momento em que serviu de instrumento às
três Pessoas divinas para coroar sua Mãe, nem o mais sublime gênio
da arte o sonhou, nem a mais alta contemplação dos maiores santos
pôde entrevê-lo. Foi, no Céu inteiro, a causa de um verdadeiro êxtase,
mas isto resta para nós indescritível e inefável; e o mesmo se deve dizer
da atitude e da fisionomia da Santa Virgem.”104 Que exaltação de sua
humildade de escravo do Senhor na manhã do Anúncio angélico, e
como seu cântico do Magnificat é admiravelmente colocado sobre nos-
sos lábios no Evangelho da nova missa de Assunção!
Ei-la Soberana bem-aventurada da Corte celeste e “Onipotente
Suplicante” junto ao seu Filho, em favor de seus filhos da terra.
LEITURAS
270 J. M. Dayet
SEXTO DIA
JESUS
SABEDORIA AMADA E IMITADA
272 J. M. Dayet
Dirigindo-se então Àquela que “Jesus lhe deu como Media-
neira”, Montfort saúda com entusiasmo a grandeza de sua Materni-
dade divina. “Eu vos saúdo, pois, ó Maria imaculada, Tabernáculo vivo da
Divindade, onde a eterna Sabedoria, oculta, quer ser adorada pelos anjos e pelos
homens.”
O Filho de Deus se agradou em se esconder em seio virginal,
desejando receber ali as adorações dos anjos desde o primeiro ins-
tante de sua Encarnação, e também as adorações dos homens que,
no decorrer dos séculos, descobrirão os esplendores desse mistério
de humildade.
Devido a essa Presença do Verbo feito carne em Maria Imaculada,
o Pai comunicou-lhe a universalidade de seu Poder, e o Espírito Santo,
a atração de sua misericordiosa Bondade. Montfort saúda, semelhante-
mente, esses privilégios: “Eu vos saúdo, ó Rainha do Céu e da terra, ao impé-
rio de quem tudo está submetido, tudo o que está abaixo de Deus. Eu vos saúdo, ó
Refúgio seguro dos pecadores, cuja misericórdia nunca faltou a ninguém.”
II
274 J. M. Dayet
de natureza, convoca, reclama minha dependência mais completa.
Eu vos entrego, pois, e consagro meu corpo e minha alma; meus bens
exteriores que afetam mais especialmente meu corpo e são ordenados
à minha vida presente; meus bens interiores, que são a riqueza de minha
alma e preparam minha eternidade bem-aventurada.
Sendo estes nossa mais preciosa oferta, Montfort especifica que
entregamos a Maria estes bens em si mesmos: graças, virtudes, méri-
tos; e, além disso, o valor que encerram nossas boas ações passadas, pre-
sentes e futuras. Seu valor de mérito – título de justiça para a glória eterna
– é confiado, lembremo-lo, à guarda da Santíssima Virgem, pois essa
riqueza é inalienável; mas, entre suas mãos, sabemos que está mais
segura do que entre as nossas. O valor de oração e de sacrifício (obten-
ção de graças e força de reparação) é deixado à sua livre disposição,
no maior desinteresse de nós mesmos. Quer seja em nosso favor ou
em favor de outrem, isto cabe a ela decidir. Que ela se sirva de nossos
rendimentos para exercer sua caridade em nosso nome para com o
próximo da Igreja militante ou da Igreja sofredora, isto é seu assunto.
Ela conhece melhor do que nós o que mais pode nos santificar e
aumentar nossos méritos. Ela conhece as intenções pelas quais mais
prezamos, o que não nos impede, aliás, de recomendar-lhas. Mas o
melhor será sempre perdê-las em suas grandes intenções, afastando,
assim, todo sentimento de amor-próprio, todo pensamento de ego-
ísmo ou de interesse pessoal, que viria macular a pureza, a generosi-
dade de nossa oferta.
Esse abandono do valor de todas as nossas boas ações enriquece
nossa Consagração com um aperfeiçoamento que não encontramos em
outra parte. Nem as promessas do batismo, nem os votos religiosos
exigem semelhante desapego. É por isso que, de todos os grupos
religiosos (Ordens antigas ou Congregações recentes), almas se dire-
cionam à Fórmula montfortina, felizes por acrescentar sua Doação
total aos sacrifícios já consentidos. Todas podem se beneficiar dela,
sem nada mudar no teor ou no espírito de suas Constituições. Não é
questão, aqui, senão de um enriquecimento da vida interior de cada
uma delas, enriquecimento este que não pode ser limitado.
Continuemos, pois, a dizer, com Montfort, pesando bem cada
uma de suas palavras: Deixando-vos, ó Maria, inteiro e pleno direito de
III
276 J. M. Dayet
quando nos submetemos, para agradar-lhe, a Maria, a exemplo de Jesus Cristo,
nosso único Modelo!” (V. D., n. 18.)
“É aqui, repito-o, que o espírito humano se perde, quando faz uma séria
reflexão sobre essa conduta da Sabedoria encarnada... Essa Sabedoria infinita,
que tinha um desejo imenso de glorificar a Deus, seu Pai, e de salvar os homens,
não encontrou meio mais perfeito e mais curto para fazê-lo do que se submeter em
todas as coisas à Santíssima Virgem...” (V. D., n. 139.)
Nem mesmo agora, que a Redenção se cumpriu e que Jesus subiu
novamente ao Pai, sua dependência filial de Maria cessou. Ela con-
tinua a se manifestar nas atividades da vida gloriosa. “Como a graça
aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é certo, afirma Montfort,
que Nosso Senhor é ainda no Céu tão Filho de Maria quanto era sobre a terra,
e que, consequentemente, conservou a submissão e a obediência do mais perfeito de
todos os filhos em relação à melhor de todas as mães.” (n. 27.) O que significa
que Jesus, no Céu, não derrama sobre nossas almas os benefícios de
sua Redenção senão numa dependência desejada de sua santa Mãe.
Essa dependência filial nunca terá, pois, fim. Ela começou nesta
vida, e se prolonga na eternidade. Sim, mesmo quando o número
dos eleitos estiver completo, quando todos os lugares do Céu estive-
rem ocupados, quando as portas da Sala do Banquete das Bodas do
Cordeiro forem fechadas definitivamente, Jesus permanecerá sempre
na mesma disposição de amor, visto que, sendo a glória o desabro-
char da graça, ele nos dará eternamente essa glória, como agora nos
dá seu germe, por meio de sua Humanidade triunfante que sempre
procederá de sua Mãe, e por essa divina Mãe ela mesma, para sempre
associada, num nível à parte, ao seu triunfo.
Eis o EXEMPLAR vivo e permanente que Montfort contem-
plou e que deseja honrar por meio de sua Doação total: “Recebei, ó
Virgem benigna, esta pequena oferta de minha escravidão em honra e união à
submissão que a Sabedoria eterna desejou ter de vossa Maternidade.” É como
se ele dissesse: Ah! Bem sei que não há, que não pode haver propor-
ção entre minha maneira e sua maneira de vos honrar; entre o que eu
vos dou e o que Ele vos deu. Jamais chegarei a vos amar como seu
Coração de Homem-Deus vos amou. Mas, enfim, quis fazer como
ele fez primeiro, e perder minha conduta na sua.
278 J. M. Dayet
Na ordem da graça, seu Poder se afirma mais ainda: Jesus é nosso
Redentor por justiça, Maria, nossa Corredentora por misericórdia,
como explicamos. Ambos, ainda que por razões diferentes, têm
direito e dominação sobre nossas almas e sobre todas as nossas obras
de escravos resgatados. É esse direito que Montfort quer glorificar,
quando roga a eles que aceitem sua “pequena oferta” em homenagem
ao Poder que ambos têm “sobre esse miserável pecador”; pecador resgatado,
regenerado, perdoado, santificado; pecador que lhes deve tudo e que
não é nada, que não pode nada sem seu influxo sobrenatural.
Reconheçamos o fundamento dessa homenagem do “miserável
pecador”, somando-se à do “pequeno verme”. Um e outro nos fazem
compreender que, pertencendo a Jesus e a Maria como seus escra-
vos, e dependendo, pois, de seu Poder, nossa Consagração nos con-
cilia com o que existe de fato e por direito. Que segurança saber-nos
assim na verdade! Quantas pessoas, diante da Doação montfortina,
começam por se indignar e colocar oposição a ela, não desejando
se entregar “na qualidade de escravas”! Quantas outras, ao contrário,
alegram-se por poder realizar esse ato de elementar submissão e de
grata justiça! Elas vivem na luz; sua humildade agrada Àquela que se
proclamou a escrava do Senhor, e no momento mesmo em que ela
se tornava sua Mãe.
Por fim, Montfort roga a Maria que acolha sua pequena oferta “em
ação de graças pelos privilégios com os quais a Santa Trindade a favoreceu”. Deus
Pai a escolheu como sua Filha amada; Deus Filho, como sua Mãe dignís-
sima e sua Associada na obra da salvação de nossas almas; Deus Espírito
Santo, como sua fiel Esposa na obra da santificação dos eleitos.
É, pois, sempre a mesma humildade, o mesmo esquecimento de
si que outrora, o mesmo sentimento de não ter senão pouca coisa a
oferecer diante das munificências divinas. Ele tem a confiança, con-
tudo, de que Nossa Senhora aceitará sua Doação. É por isso que
roga a ela sob o vocábulo de VIRGEM BENIGNA, isto é, indul-
gente, condescendente, de acolhida sempre benévola. Sua bondade
maternal saberá levar em conta que ele quis sobretudo glorificá-la,
imitando seu divino Filho e toda a Trindade.
Esse querer é tão intenso à sua alma, que, antes de prosseguir
com sua prece, ele deseja declarar abertamente a Maria a firme
280 J. M. Dayet
desde o instante de sua regeneração de graça até o de sua apresen-
tação de glória. Que outra mulher carregou o peso de uma Materni-
dade como essa?
Tendo, assim, assegurado entre as mãos de Maria a perenidade
de seu título de escravo, Montfort volta à petição que domina toda a
sua fórmula de Consagração: a obtenção da divina Sabedoria: “Ó Mãe
de misericórdia, dai-me a graça de obter a verdadeira Sabedoria de Deus.” Ele
não se entregou senão para esse fim: “Atendei, dizia, os desejos que tenho
da divina Sabedoria e recebei, para isto, os votos e as ofertas que minha humilde
condição vos apresenta.” E se dirigia, então, Àquela “cuja misericórdia nunca
faltou a ninguém”.
Dirige-se novamente a ela com uma insistência crescente: “Ó
MÃE DE MISERICÓRDIA, agora, que me consagrei vosso escravo,
e pela eternidade, “dai-me a graça de obter a verdadeira Sabedoria de Deus”,
que Jesus, sendo a Sabedoria eterna e encarnada, não deixou de mani-
festar a nós em seus ensinamentos e em sua conduta. E, para que eu
obtenha essa graça, contai-me entre vossos predestinados mais ama-
dos, em quem exerceis livremente vossas funções de Mãe e de Senhora
das almas, e que vedes, devido à sua amorosa e incansável obediência,
como “vossos filhos e vossos escravos. Vós os amais, os ensinais, os conduzis, os
alimentais, os protegeis”, como Mãe sempre presente e ativa.106
Para terminar, a invocação à VIRGEM FIEL solicita uma última
graça, coroamento das outras: a de atingir, por meio de perseverantes
e sempre crescentes progressos em nossa Santa Escravidão, o grau
de santidade determinado por Deus, desde toda a eternidade, para
cada um de nós.
“Ó Virgem fiel”, vós que sempre respondestes aos chamados do
Senhor, “fazei de mim em todas as coisas”, tanto nas circunstâncias mais
importantes de minha vida quanto nas ações ordinárias que preen-
chem meus dias, “um discípulo tão perfeito, imitador e escravo da Sabedoria
encarnada, Jesus Cristo, vosso Filho”; discípulo atento aos seus ensinamen-
tos, imitador de sua filial e permanente dependência, escravo de suas
vontades como ele foi das vontades de seu Pai, “que eu chegue, por vossa
intercessão” de Mediadora, à qual me apressei a recorrer, e “conforme
LEITURAS
282 J. M. Dayet
Dia de Fechamento
CONSAGRAÇÃO E VIDA DE UNIÃO
CONSAGRAÇÃOD E SI MESMO
A JESUS CRISTO, A SABEDORIA ENCARNADA
PELAS MÃOS DE MARIA
A homenagem a Jesus
Ó Sabedoria eterna e encarnada! Ó amável e adorável Jesus, ver-
dadeiro Deus e verdadeiro homem, Filho único do Pai eterno e de
Maria sempre Virgem!
A homenagem a Maria
Eu vos saúdo, ó Maria imaculada, tabernáculo vivo da Divindade,
onde a Sabedoria eterna, oculta, quer ser adorada pelos anjos e pelos
homens.
Eu vos saúdo, ó Rainha do Céu e da terra, a cujo império tudo
está submetido, tudo o que existe abaixo de Deus.
Eu vos saúdo, ó Refúgio seguro dos pecadores, cuja misericórdia
nunca faltou a ninguém; atendei os desejos que tenho da divina Sabe-
doria, e recebei, para isto, os votos e as ofertas que minha humilde
condição vos apresenta.
284 J. M. Dayet
Renovação dos votos do batismo
Eu, N..., pecador infiel, renovo e ratifico hoje, entre vossas mãos,
os votos de meu batismo; renuncio para sempre a Satanás, às suas
seduções e às suas obras, e entrego-me inteiramente a Jesus Cristo, a
Sabedoria encarnada, para carregar minha cruz após ele todos os dias
de minha vida; e a fim de que eu lhe seja mais fiel do que fui até aqui:
Doação a Maria
Eu vos escolho hoje, ó Maria, na presença de toda a corte celes-
tial, como minha Mãe e Senhora. Eu vos entrego e consagro, na qua-
lidade de escravo, meu corpo e minha alma, meus bens interiores e
exteriores, e o valor mesmo de minhas boas ações passadas, presen-
tes e futuras, deixando-vos o inteiro e pleno direito de dispor de mim
e de tudo o que me pertence, sem exceção, segundo vossa vontade,
para a maior glória de Deus, nesta vida e na eternidade.
Oração final
Recebei, ó Virgem benigna, esta pequena oferta de minha escravi-
dão, em honra e união à submissão que a Sabedoria eterna desejou
ter de vossa maternidade; em homenagem ao poder que vós e vosso
Filho tendes sobre este pequeno verme e este miserável pecador; e
em ação de graças pelos privilégios com os quais a Santa Trindade
vos favoreceu. Declaro que desejo, doravante, como vosso verdadeiro
escravo, buscar vossa honra e obedecer-vos em todas as coisas.
Ó Mãe admirável! Apresentai-me ao vosso querido Filho na quali-
dade de escravo eterno, a fim de que, tendo-me resgatado por vosso
intermédio, por vosso intermédio me receba.
Ó Mãe de misericórdia! Dai-me a graça de obter a verdadeira Sabe-
doria de Deus, e de ser contado, por isto, entre aqueles que amais, que
ensinais, que conduzis, que alimentais e protegeis como vossos filhos
e vossos escravos.
286 J. M. Dayet
Senhor em sua alma e nas faculdades de sua alma, que se tornou seu
próprio espírito. (V. D., n. 258.)
Doutrina tão bela, tão consoladora, visto que, obedecendo a
Maria, estamos certos de obedecer ao Espírito Santo. Seguindo as
inspirações de Maria, seguimos as inspirações do Espírito Santo.
Caminhamos na santidade, uma santidade que se torna mais doce
pela suavidade das influências da Virgem, como se a ação do Espírito
Santo se fizesse maternal ao passar por Maria, e, assim, mais prepa-
rada para nos comover e provocar nossa docilidade.
Obedecer às inspirações da graça sempre foi a marca da verda-
deira santidade, a marca dos verdadeiros filhos de Deus, segundo o
grande ensinamento do apóstolo São Paulo (Rom 8, 14), a que Mon-
tfort remete nesta passagem de seu Tratado: Qui Spiritu Dei aguntur, ii
sunt filii Dei. “Os que agem, os que são conduzidos pelo Espírito de
Deus, são filhos de Deus.” Da mesma forma, obedecer a Maria será
sempre nossa marca de verdadeiros filhos e escravos de Maria, que a
escolhemos como nossa Mãe e Senhora; logo, que estamos sob seu
influxo de graça, em sua dependência, sob sua direção; a fim de que
ela nos conduza no sentido de nossa doação total; a fim de nos deixar
conduzir POR ELA no sentido dessa doação total.
Para nos levar a essa obediência perfeita, Montfort indica dois meios,
sobre os quais nossa Preparação projetou grandemente sua luz: renunciar
a nós mesmos e nos abandonar. Renúncia a si, abandono a Maria.
Renúncia a si, no momento de começar uma ação. Renúncia ao
que percebemos vir de nossa natureza, buscando uma satisfação
oposta à graça. Quase sempre, com efeito, nesse momento, uma
voz em nós se faz ouvir, muito diferente da voz da Santa Virgem. Por
exemplo, na hora de nosso despertar matinal, a natureza encontrará
pretextos para prolongar o repouso da noite. Se renunciamos a escu-
tá-la, essa será nossa primeira vitória, nossa primeira obediência, nosso
primeiro mérito do dia. Se a seguimos, será a primeira derrota, seguida,
ai de mim!, por muitas outras. Não é essa renúncia a si que Nosso
Senhor exige, em primeiro lugar, de toda alma decidida a segui-lo no
caminho de seus preceitos ou de seus conselhos, e, com maior razão,
de sua dependência mariana? Caminhamos com o Evangelho, de pleno
acordo com as meditações de nossa primeira Semana.
288 J. M. Dayet
Como na fórmula precedente, Montfort nos indica dois meios
muito eficazes: examinar e meditar sobre as grandes virtudes que Nossa
Senhora praticou durante sua vida. Examinar corresponde ao olhar
atual de nossa alma, o do momento presente. Meditar corresponderá
ao olhar habitual, o de nosso chamado interior em todo tempo.
O olhar atual tem como objeto a ação do momento em que esta-
mos. Retomemos o exemplo de nosso despertar. Ele se assemelha ao
de Maria? Lembra algo do de Maria? Observemo-la no Templo ou
em Nazaré nesse instante de seu despertar. Que impulso imediato
de sua alma no coração de seu Amado! A ele a oferta desse primeiro
instante de graça. A ele as primícias do novo dia. A ele o fervor de
amor desses minutos que marcam o tempo do mérito. “Ó minha
divina Mãe, ajudai-me a colocar em meu despertar algo do fervor do
vosso...”. Há algo melhor, pois, do que o despertar viril, o despertar
ao primeiro sinal. Há o despertar de uma alma que olhou, logo em
seguida, para Maria, e que se esforça por imitá-la. E isto é um pro-
gresso. Esse único exemplo nos faz compreender o movimento de
progresso da fórmula “Com Maria”. Erguemo-nos na luz.
Observemos também Maria em nossas outras ações: em nossa
oração, nossa missa, nossa comunhão; em nossas conversações e
relações com o próximo. Observemo-la e examinemo-la. Se formos
sinceros, ganharemos cada vez mais em humildade, por nos perce-
bermos muito distantes desse Modelo ideal. Ganharemos também
em emulação santa, em desejos de fazer melhor, visto que esse
Modelo permanece-nos acessível. Desejaremos nos aproximar do
recolhimento de Maria, de seu espírito de oração, de sua penetra-
ção no Santo Sacrifício, sua fome eucarística, sua atividade silenciosa
e ordenada, sua caridade fraterna, seu sentimento da presença de
Deus... Nossas ações se elevam, assim, progressivamente, e tendem
a se revestir da pureza, da beleza, da santidade das ações de Maria.
Estabelecemo-nos na virtude sólida.
Esse progresso se acentuará sempre, se somarmos ao olhar de
exame que visa a ação presente o olhar de meditação que terá como
objeto precisamente as “grandes virtudes” do Coração de Maria.
Montfort atribui-lhes esse qualificativo, “grandes”, porque a Virgem
290 J. M. Dayet
nós sua imagem e semelhança. Nossa prática interior “com Maria”
produz plenamente seu efeito.
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292 J. M. Dayet
união vital transformadora. A alma chega ao seu estado de perfeição
no Corpo místico. Atinge, ou fica a ponto de atingir sua idade per-
feita, a idade perfeita de sua vida de graça. Resta-lhe somente esperar
o dia de seu nascimento para a beatitude eterna.
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294 J. M. Dayet