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J. M.

Dayet

EXERCÍCIOS
PREPARATÓRIOS
PARA A CONSAGRAÇÃO DE
SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT

1ª edição
Brasília – DF
2012
© 2012 Editora Pinus
www.editorapinus.com.br

Todos os direitos reservados.

Capa e diagramação:
rosalis.com.br
Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

I. Os doze Dias preliminares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11


A. O espírito do mundo, oposto ao espírito de Jesus Cristo.
1º DIA: O mundo e seu espírito de gozação de vida . . . . . . . . . . . . 16
2º DIA: Jesus Cristo e seu espírito de penitência . . . . . . . . . . . . . . . 23
3º DIA: O mundo e seu espírito de posse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
4º DIA: Jesus Cristo e seu espírito de desapego . . . . . . . . . . . . . . . . 38
5º DIA: O mundo e seu espírito de soberba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
6º DIA: Jesus Cristo e seu espírito de humildade . . . . . . . . . . . . . . . 53
B. Os meios que nos dispõem a adquirir o espírito de Jesus Cristo.
7º DIA: Um desejo ardente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
8º DIA: Uma oração contínua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
9º DIA: Uma mortificação universal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
10º DIA: Uma verdadeira Devoção a Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
11º DIA: A inimizade entre Satanás e Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
12º DIA: A inimizade entre a raça de Satanás e a descendência
de Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

II. As três Semanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107


Primeira Semana. Conhecimento de si mesmo
1º DIA: Conhecer-se para renunciar a si mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . 107
2º DIA: Somos resgatados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
3º DIA: Somos grandes feridos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
4º DIA: Somos pobres pecadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
5º DIA: Permanecemos fracos e frágeis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
6º DIA: Façamos valer nosso segredo de graça . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
Segunda Semana. Conhecimento da Santa Virgem
1º DIA: Seu lugar no plano redentor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
2º DIA: Mãe do Cristo total . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
3º DIA: Mãe dos predestinados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
4º DIA: Senhora dos predestinados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
5º DIA: Escravos de amor de Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192
6º DIA: Mãe sempre presente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Terceira Semana. Conhecimento de Jesus Cristo
1º DIA: Ó Sabedoria eterna! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
2º DIA: Ó Sabedoria encarnada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220
3º DIA: Jesus, Sabedoria dependente e submissa . . . . . . . . . . . . . . . . 229
4º DIA: Jesus, Sabedoria sofredora e crucificada . . . . . . . . . . . . . . . . 242
5º DIA: Jesus, Sabedoria gloriosa e triunfante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
6º DIA: Jesus, Sabedoria amada e imitada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

III. Dia de fechamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283


Consagração e vida de união . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
Consagraçãod e si mesmo a Jesus Cristo, a sabedoria
encarnada pelas mãos de Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
A homenagem a Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
A homenagem a Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284
Renovação dos votos do batismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
Oração final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
Introdução

A
Consagração de São Luís Maria de Montfort é coisa tão emi-
nente e tão perfeita que todas as pessoas atraídas a ela come-
çam a experimentar a necessidade de uma séria e sólida pre-
paração. Não pode ser suficiente, de fato, exprimir num determinado
dia essa total doação de si mesmo, por mais sinceras que possam
ser, então, as disposições de cada um. O essencial será “entrar em seu
espírito, que é o de tornar uma alma interiormente dependente e escrava da San-
tíssima Virgem e de Jesus por meio dela”. (Segredo de Maria, n. 44)
Eis por que nosso Santo não hesitou em pedir a todos os que
desejam engajar-se nesse caminho de perfeição um trabalho ascético
claramente delimitado. “Depois de ter empregado, diz ele, pelo menos doze
dias para ESVAZIAR-SE do espírito do mundo, contrário ao de Jesus Cristo,
empregarão três semanas para ENCHER-SE de Jesus Cristo, por meio da
Santíssima Virgem. Eis a ordem que poderão observar:
Durante a primeira semana, empregarão todas as suas orações e
ações de piedade para pedir o conhecimento de si mesmos e a contrição de
seus pecados; e farão tudo em espírito de humildade...
Durante a segunda semana, dedicar-se-ão, em todas as suas ora-
ções e obras de cada dia, a conhecer a Santíssima Virgem. Pedirão esse
conhecimento ao Espírito Santo...
Empregarão a terceira semana para conhecer Jesus Cristo...
Ao fim dessas três semanas, confessar-se-ão e comungarão,
visando doar-se a Jesus Cristo, na qualidade de escravos de amor, pelas
mãos de Maria. E, depois da comunhão, recitarão a fórmula de sua
consagração... Importa que a escrevam ou a façam escrever, se ela
não estiver impressa, e que a assinem no mesmo dia em que a fize-
rem”. (Verdadeira Devoção, n. 227-231.)
Como vemos, esses Exercícios preparatórios estão divididos em
quatro períodos de diferente duração: um primeiro período de doze dias e
outros três períodos de seis dias cada um, denominados como “semanas”
por nosso santo; o que leva a uma duração total da preparação de exata-
mente trinta dias.
Que essas três semanas sejam cada uma de seis dias somente, indi-
ca-o expressamente o Padre de Montfort, que escreve, a propósito
da semana consagrada ao conhecimento de si mesmo: “Durante os seis
dias dessa semana...” (n. 228.)
_______________

O primeiro período, que é um período preliminar, destina-se a


fazer em nossa alma o esvaziamento do espírito do mundo, isto é, a
demover – se houver necessidade – o principal obstáculo à graça e
à vida de união, que é a escravidão do pecado. Esse é o fundamento
necessário e indispensável.
As três semanas têm por objeto o conhecimento das únicas três
coisas no mundo que possam verdadeiramente nos interessar tanto
nesta vida como na outra: primeiro, nossa alma, que devemos san-
tificar e salvar; depois, Maria, associada ao Cristo na obra de nossa
redenção e santificação; por fim, o próprio Jesus Cristo, a Sabedoria
eterna e encarnada.
Nossa alma, Maria, Jesus! Observaremos, desde agora, esse lugar
dado por Montfort à Santíssima Virgem em seus Exercícios espirituais:
é o mesmo lugar que lhe dá em sua Consagração. Maria ali está, em
seu verdadeiro lugar, seu lugar de Mediadora entre o Cristo e nós, o
lugar desejado por Deus e o único em harmonia com o plano integral
de nossa reparação.
Quando esse triplo conhecimento for, pois, adquirido, e, sob o
influxo da graça, nossa vontade tiver escolhido Maria como seu cami-
nho mais seguro para chegar a Jesus, então só lhe restará entregar-se
irrevogavelmente a essa divina Mãe e Senhora, esperando dela, como
recompensa, nada além da “honra de pertencer a uma Princesa tão
amável, e a felicidade de ser por ela unido a Jesus, seu Filho, com um
laço indissolúvel, nesta vida e na eternidade”. (V. D., n. 265.)

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Eis o plano geral dos Exercícios de São Luís Maria de Montfort.
E nada há que deva ser mudado. Ele mesmo indicou sua ordem e
fixou sua duração. Teve o cuidado de determinar, para cada período, os
temas de meditação, assim como as orações particulares que lhes são
próprias. “Poder-se-á, anota ele, ler e meditar sobre o que dissemos
a respeito do conhecimento de si mesmo, da Santa Virgem, de Nosso
Senhor. Recitar-se-ão todos os dias as ladainhas do Espírito Santo, a Ave
Maris Stella...”, etc... (n. 228-230).
No espírito de nosso santo, esses diversos períodos preparatórios
devem revestir o caráter de verdadeiros Exercícios espirituais, isto é,
como o nome indica, as almas formadas nessa escola devem sujei-
tar-se à sua disciplina, o que parece indubitável quando se leem as
outras linhas do Padre de Montfort, no fim do capítulo que explica a
preparação: “Pelo menos uma vez por ano, no mesmo dia, renovarão a mesma
consagração, observando as mesmas práticas durante três semanas.” (n. 233).
Será preciso, pois, durante a vida inteira, exercitar-se novamente a
cada ano, durante três semanas, isto é, repetir os mesmos atos, retomar
o treinamento, adquirir uma docilidade maior de alma para se deixar
instruir pelo espírito de Maria, de maneira a não ter “vida interior e
operação espiritual senão na dependência dela”. (Segredo, n. 46.)
E se Montfort não exige mais a repetição dos doze dias preli-
minares, é porque supõe as almas inteiramente consagradas a Maria
bem afastadas, desde então, dos caminhos do pecado, e bem avança-
das na via da união. Supõe-nas plenamente introduzidas no espírito de
sua consagração, praticamente dependentes e escravas da Santíssima
Virgem, e de Jesus Cristo por meio dela.
Nada nos impedirá, contudo, de voltar, de tempos em tempos, ao
trabalho dos doze dias preliminares. Ganharemos sempre com isso,
ao menos avivando, intensificando em nossos corações esse ódio
pelo espírito do mundo, que deve marcar fortemente todos os que
pertencem à raça da irreconciliável inimiga do demônio. E bem-aven-
turados seremos, se nossa consciência nos apresentar o testemunho
de não ter de modo algum falhado quanto a esse ponto capital.
_______________

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


7
Resta esclarecer uma última questão, que desperta particular-
mente a inquietação das almas, tanto no mundo quanto no claustro e
entre os sacerdotes. Por que o Padre de Montfort, descrevendo deta-
lhadamente os diferentes períodos de seus Exercícios, não fixou PARA
CADA DIA um tema especial de meditação? Ele se contentou, como
vimos, em indicar sumariamente o trabalho ascético de cada período,
remetendo, para fecundar seus dias, ao que ele escreveu em diferen-
tes passagens de seu Tratado.
Não quis precisar mais, seja por falta de tempo: “Não farei senão
um resumo”, diz ele, no começo do capítulo dos Exercícios; seja, ainda
mais, a fim de deixar maior liberdade às pessoas que quiserem se ins-
truir dessa espiritualidade, a qual pode se adaptar, com efeito, a todos
os estados de vida.
Estão livres, pois, aqueles que desejam ajudar as almas, a propor
seus comentários sobre os temas indicados, sob a condição, contudo,
de respeitar a ordenança indicada dos Exercícios, e de desenvolver
a doutrina na luz da espiritualidade da santa Escravidão. Já foram
tentados muitos ensaios nesse sentido, na França, na Itália, na Bélgica,
na Holanda, na Espanha e no Brasil, os quais fizeram e continuam
fazendo muito bem. O presente trabalho não pede senão a continua-
ção desse apostolado e a maior satisfação possível das aspirações pro-
fundas das almas desejosas de se entregarem a Maria, tanto quanto
o deseja São Luís de Montfort. Não era ele quem protestava com
veemência não conhecer via de perfeição semelhante àquela que ele
ensina, “que exige de uma alma mais sacrifícios por Deus, que a esvazia mais
de si mesma e de seu amor-próprio, que a conserva mais fielmente na graça, e a
graça nela, que a une mais perfeitamente e mais facilmente a Jesus Cristo, e, por
fim, que seja mais gloriosa para Deus, santificadora para a alma e útil para o
próximo”? (V.D., n. 118.)
Não temamos, pois, começar nosso indispensável trabalho de
preparação. Se ele pode parecer bastante árduo durante os doze dias
preliminares e a primeira semana, tudo se torna doçura e prazer com
as semanas empregadas no conhecimento das grandezas de Maria e
no da divina Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria encar-
nada e crucificada.

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É com essa Sabedoria soberana que desejamos contrair uma
Aliança infinita. Que esse pensamento eleve nossa alma, desde o
começo, bem acima de si mesma, segundo o conselho que nos dá o
autor do Eclesiástico, quando escreveu, falando da Sabedoria:

“Põe os teus pés nos seus grilhões,


e o teu pescoço nas suas cadeias.
Baixa o teu ombro e leva-a às costas,
e não te desgostes com as suas prisões.
Aproxima-te dela de todo o teu coração,
e guarda os seus caminhos com todas as tuas forças.
Busca-a e ela se te manifestará, e, quando já a possuíres, não a deixes,
porque nela encontrarás no fim o teu descanso,
e ela se converterá para ti em gosto.
E os seus grilhões serão para ti uma forte proteção e um firme apoio,
e as suas cadeias, um vestido de glória.”
(Eclo 6, 25-30.)

Visivelmente, o autor desenvolve a ideia de uma escravidão eterna


sob o amável jugo da sabedoria. Ele nos recomenda aceitar nossas
cadeias com amor, pois, após o período obscuro, virá a fase mística,
que transformará em colares preciosos e resplandecentes as cadeias
de ferro que podem ter nos ferido no começo.
É assim que, após os meses de preparação, nossa doação total
nos introduzirá progressivamente no belo interior de Maria para ali
provar e saborear as delícias da união a Jesus.1

1 Na sequência de cada Meditação, indicamos Leituras, extraídas do Evange-


lho, da Imitação de Jesus Cristo ou – para a segunda Semana – do Tratado da
Verdadeira Devoção. Essas Leituras são facultativas; cada um pode escolher
o que melhor lhe convém para enriquecer a reflexão desses dias prepara-
tórios.

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Os Doze Dias
Preliminares

É
um princípio admitido por todos os mestres da vida espiritual
que a alma que deseja se elevar, por uma generosa corres-
pondência à graça, até a perfeita união com o Esposo celeste,
deve primeiro preparar para o Amado, em seu interior, uma morada
digna do Hóspede divino. Importa-lhe, pois, começar por afastar os
obstáculos que se opõem a essa união.
O Doutor Angélico nos ensina, de fato, que a dedicação principal
da alma que se inicia na caridade deve ser em afastar-se dos caminhos
do pecado e resistir às cobiças maliciosas que vêm incessantemente
contrariar seu movimento em direção a Deus.2 E é nisso que con-
siste o trabalho particular da fase purgativa, assim denominada porque
tende principalmente a purificar nosso coração do pecado e a curá-lo
de todas as enfermidades espirituais, contraídas nas relações com as
criaturas em detrimento das leis de Deus.
Ora, é bem a esse trabalho de purificação interior que tende radi-
calmente São Luís Maria de Montfort, quando começa por exigir das
almas que querem, como ele, consagrar-se inteiramente a Maria, o esva-
ziamento completo, nelas, do espírito do mundo. Esse é o primeiro
trabalho imposto, ao qual elas deverão se dedicar durante pelo menos
doze dias, desde o começo dos Exercícios. Esse não é ainda senão um
trabalho preliminar e como que uma primeira etapa a ultrapassar no

2 Primo quidem incumbit homini studium principale ad recedendum a peccato et re-


sistendum concupiscentiis ejus quae in contrarium caritatis movent. (IIa IIae, Quest
XIV, art. 9.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


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caminho purgativo; pois as almas, mesmo purificadas do espírito do
mundo, deverão, além disso, durante a primeira Semana, se purificar de
si mesmas e de todas as ligações com seu espírito próprio.
_______________

Notemos, em seguida, que Montfort faz esse trabalho preliminar


visar não somente ao mundo, da maneira como o opomos às vezes
ao demônio e à carne, mas de maneira mais geral, ao espírito do mundo,
enquanto espírito diretamente oposto ao de Jesus Cristo. Contra as
afirmações do divino Mestre, ele apresenta um conjunto de máximas
que são mais perniciosas do que o próprio pecado, no sentido de que
tendem a justificar o pecado e a ignorar a graça, seu remédio.
Isto é o que Montfort denomina, à imitação de São Paulo (1Cor
1, 20-21), a sabedoria do mundo. Ela seduz por seu falso brilho, por
suas aparências enganosas, muitas almas superficiais ou que tinham
permanecido, até então, inocentes. Ela se apresenta, a princípio, “não
de maneira grosseira e gritante... mas de maneira sutil, enganosa e
política; de outro modo, não seria mais, segundo o mundo, uma sabe-
doria, mas uma libertinagem”. (Amor, Sabedoria Eterna, 74-75.)
Para melhor desmascarar essa falsa sabedoria do mundo, ele a
divide em sabedoria terrena, carnal e diabólica, apoiando-se sobre o
texto do apóstolo São Tiago: Non est ista sapientia desursum descendens,
sed terrena, animalis, diabolica (3, 15). O que significa dizer que ela é filha
da tripla concupiscência plenamente adulada e satisfeita.
A sabedoria terrena é o amor desregrado pelos bens deste mundo.
A sabedoria carnal é o amor pelos prazeres dos sentidos.
A sabedoria diabólica é a busca ardente pela estima, pelas honras e
dignidades, por tudo o que pode saciar o orgulho humano.
Essas são, com efeito, as invariáveis manifestações do espírito do
mundo. É por isso que o apóstolo São João dizia também aos seus
cristãos das Igrejas da Ásia Menor: “Não ameis o mundo nem as
coisas do mundo; porque tudo o que há no mundo é concupiscência da
carne (insaciável em seus prazeres), concupiscência dos olhos (ávidos por
posses terrenas) e soberba da vida.” (1Jo 2, 15.)
São João designa em primeiro lugar o convite dos prazeres da
carne, porque é sempre por eles que o mundo começa sua obra de

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sedução. Operar em si o esvaziamento do espírito do mundo será,
pois, banir para sempre de seu interior esse amor pelos prazeres sen-
suais, pelas riquezas e honras, preconizado como uma sabedoria, para
abraçar o espírito do Evangelho, que é um espírito de penitência, de
desapego e de humildade.
Isso significará, por consequência, libertar-se da tirania do pecado,
e retirar, assim, o primeiro e principal obstáculo à graça e à vida de
união. Significará, ao mesmo tempo, decretar e fixar sua escolha entre
o Céu ou o inferno, entre o Cristo ou Satanás, entre a escravidão de
amor de um ou a escravidão de ódio do outro; e isto para obedecer a
esta palavra do Salvador: Nemo potest duobus dominis servire, “ninguém
pode servir a dois senhores”. (Mt 6, 24.) “Ou importa que os cristãos
sejam escravos do diabo, diz Montfort, ou que sejam escravos de
Jesus Cristo.” (V. D., n. 73.)
_______________

Compreendemos desde logo por que nosso Santo apresenta às


almas o trabalho preliminar de sua purificação sob essa forma de
esvaziamento radical do espírito do mundo, seja se tratando da con-
versão propriamente dita ou da eliminação de apegos secretos em
corações convertidos. Preocupado, desde o início, em lançá-los no
molde imaculado da Virgem bendita, que guardou e guardará sem-
pre os puros contornos de Cristo, ele sabe que essas almas jamais
serão suscetíveis de receber em si essa forma enquanto apresentarem
a Maria um espírito oposto ao de seu divino Filho.
Ora, como faz observar Montfort em um de seus sermões iné-
ditos sobre o texto de São João mencionado acima, “o mundo não é
oposto a Jesus Cristo somente por paixão e por surpresa, mas deliberadamente...
ele faz disso uma profissão”.3 Em verdade, nada é mais evidente, em todo
o Evangelho, do que esse antagonismo declarado de Jesus Cristo e
do mundo. É uma contradição perpétua e de todos os instantes. O
mundo odeia a Cristo, e Cristo não pleiteia pelo mundo.
Ele, o doce e misericordioso Salvador, sempre pronto a oferecer
seu Coração tão compassivo às almas decaídas ou vacilantes, não tem

3 Sermão sobre o reino das três concupiscências no mundo.

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senão dureza e anátemas para o mundo: Vae mundo a scandalis (Mt 18,
7), “ai do mundo por causa dos escândalos!”: o escândalo de seus
exemplos, claramente contrários aos exemplos de Jesus, e o escândalo
de suas máximas, que são a contrapartida dos ensinamentos do Evan-
gelho. Não há e nunca haverá conciliação possível entre o espírito do
mundo e o espírito de Jesus Cristo.
Mas, além disso, esse espírito do mundo é igualmente contrário
ao da Virgem, e não é sua característica afastar ainda mais da Mãe
do que do filho, desde que, na origem, Deus estabeleceu inimizades
entre Maria e o Príncipe do mundo, assim como entre suas raças? O
mundo quer ignorar a Mãe, a fim de poder melhor ignorar o Filho.
Haverá sempre, pois, um ódio irredutível entre a Santa Virgem e o
mundo, entre os filhos e escravos de amor de Maria e os filhos e
escravos de opressão de Satanás. A Imaculada, que se proclamou a
escrava fiel do Senhor, pisará sempre sobre a cabeça daquele que foi o
primeiro a ousar dirigir-se contra Deus e afirmar que não o serviria.
_______________

Importa necessariamente que a alma desejosa de se lançar a Maria,


para melhor se conformar a Jesus, se dedique a fazer em seu inte-
rior o esvaziamento completo desse espírito satânico que está como
que encarnado no mundo. Para isso é preciso, antes de tudo, refletir
sobre A OPOSIÇÃO QUE EXISTE ENTRE O MUNDO E JESUS
CRISTO. Consagraremos a isso as meditações dos seis primeiros dias:
1º dia: O mundo e seu espírito de gozação da vida.
2º dia: Jesus Cristo e seu espírito de penitência.
3º dia: O mundo e seu espírito de posse.
4º dia: Jesus Cristo e seu espírito de desapego.
5º dia: O mundo e seu espírito de orgulho.
6º dia: Jesus Cristo e seu espírito de humildade.
Aprofundaremos, depois, os QUATRO MEIOS que Montfort
nos propõe nos últimos capítulos de seu Amor da Sabedoria Eterna
para nos libertar do espírito do mundo e nos preparar para adquirir
o espírito de Jesus Cristo:
7º dia: Um desejo ardente.

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8º dia: Uma oração contínua.
9º dia: Uma mortificação universal.
10º dia: Uma verdadeira Devoção a Maria.
Sendo esse quarto meio o maior, o mais poderoso de todos, insis-
tiremos – sempre com Montfort – sobre essa inimizade irreconcili-
ável, desejada por Deus, entre Maria e o príncipe do mundo; a qual
deve se reproduzir em todos os fiéis escravos da Virgem. Essas serão
nossas duas últimas meditações do período preliminar:
11º dia: A inimizade entre Satanás e Maria.
12º dia: A inimizade entre a raça de Satanás e a descendência de Maria.
_______________
Eis o trabalho de nossa purificação primeira. E essa purificação
deve ser radical. A tendência mais funesta para a alma seria querer
conciliar entre si as coisas mais inconciliáveis: acomodar Jesus Cristo
ao mundo e engajar-se em um caminho de perfeição conservando
sempre alguma afeição pelo século. Não há acordo possível. A esco-
lha da alma deve ser definitiva, sua eleição deve ser irrevogável.
Assim, desde o fim dos doze dias preliminares, podemos con-
siderar nossa Consagração como uma perfeita renovação das pro-
messas do batismo, segundo a vontade expressa de São Luís Maria
de Montfort. E seremos sinceros ao dizer à Santa Virgem: “Renovo e
ratifico hoje, entre vossas mãos, os votos de meu batismo. Renuncio para sempre a
Satanás, às suas pompas (suas seduções) e às suas obras; e entrego-me inteira-
mente a Jesus Cristo, a sabedoria encarnada...”
Assim deve ser, como no dia do batismo, o esvaziamento do espí-
rito do mundo no coração que se consagra a Maria. E esse trabalho
– repitamo-lo – é indispensável para o valor e a fecundidade de nossa
Doação. A Sabedoria divina não habita em um coração escravo do
pecado. É preciso ser puro, ou ao menos purificado desse espírito do
mundo, oposto ao de Jesus Cristo, antes de ser conformado a esse
MOLDE virginal no qual se preparam os eleitos.4

4 O Pe. de Montfort não indica orações especiais para os doze dias prelimi-
nares. Poder-se-á recitar, todas as manhãs, o Veni Creator Spiritus e a Ave
Maris Stella.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


15
PRIMEIRO DIA
O MUNDO
E SEU ESPÍRITO DE GOZAÇÃO DE VIDA

“Meus filhinhos, dizia o apóstolo São João, não ameis o mundo nem
as coisas do mundo, porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne,
concupiscência dos olhos e soberba da vida.” (1Jo 2, 15-16.)
Detenhamo-nos hoje na primeira dessas indicações: o amor
pelos prazeres da carne. Esse é o ponto de partida da corrupção do
mundo, o que, à primeira vista, manifesta seu espírito. É invariavel-
mente pelos prazeres dos sentidos que ele começa a retirar as almas
dos benefícios do mandamento divino.
Consideraremos as obras e as máximas dos que são instruídos por
esse espírito, com o único fim de nos desviar dele para sempre.
Ó Maria, vós que a Igreja denomina a Mãe castíssima – Mater
castissima –, ajudai-nos a refletir sobre a falsa conduta dos mundanos,
escravos da concupiscência carnal. No momento da morte, ser-lhes-á
forçoso reconhecer que se enganaram: Ergo erravimus. (Sab 5, 6.)

Suas OBRAS consistem em “não buscar senão os prazeres dos


sentidos, diz o Pe. de Montfort. Eles amam regalar-se, afastam de si
tudo o que pode mortificar ou incomodar o corpo... não pensam,
ordinariamente, senão em beber, comer, jogar, rir, se divertir e passar
agradavelmente o tempo...” (Amor Sabedoria Eterna, n. 81.)
Essa busca do bem-estar e das satisfações sensuais leva-os, então,
a todos os exageros da preguiça e da intemperança, para arrastá-los
finalmente, por um pendor fatal, até as fruições grosseiras que não se
podem sequer nomear na assembleia dos santos.
O mundo não tem dificuldade em agarrar as almas levianas por
essa isca do prazer dos sentidos. “Vindos de uma carne de pecado,
diz o papa São Gregório, carregamos em nós mesmos as armas com

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as quais nosso inimigo nos combate.”5 Desde a decadência de nossa
natureza, a carne cobiça incessantemente contra o espírito; uma lei
imperiosa de rebelião se faz sentir em nossos membros, e as solici-
tações do corpo oprimem a alma com tamanha tirania que ouvimos
até mesmo os santos exclamarem gemendo, segundo o apóstolo: Quis
me liberabit de corpore mortis hujus? (Rom 7, 24.) Quem nos livrará desse
corpo mortal cujo peso irrita nossa vontade e nos arrasta, como contra
nosso desejo, na direção do mal? Quem nos libertará de sua tirania?
A graça de nosso divino Salvador opera nas almas justas o pre-
lúdio dessa libertação, mas importa-lhes lutar até o livramento com-
pleto; e essa luta íntima, que se transforma em vitória, se torna dis-
tinção para a coroa eterna.
O mundo, ao contrário, inimigo da graça do Cristo, rejeita essa
luta. Tirando sua força da decadência de nossa natureza, ele conduz
seus adeptos ao amor desenfreado por todos os prazeres do corpo,
fascina-os pela reverberação de suas gozações, que ele sabe multipli-
car e variar com arte. Romances, espetáculos, cinemas, modas cor-
ruptoras, festins opulentos, danças sem pudor, perfumes anestesian-
tes, invenções refinadas, tudo lhe serve de alimento. Ele apresenta
a luxúria a todos os sentidos, projetando sobre o mal as aparências
mais sedutoras. Sob o encanto dessas aparências, não quer senão
gozar, gozar de tudo, gozar sempre; é a magia do mundo.
As almas, carregadas com ele nesse turbilhão do prazer, apegam-se
ao corpo e a todas as suas exigências. Longe de se libertarem dele, mer-
gulham mais nesse estado de servidão no qual o pecado nos estabelece
desde nosso nascimento; elas se entregam a todas as baixezas, a todos
os excessos, a todas as desordens; e assim, se constituem escravas dos
hábitos vergonhosos que essas desordens engendram.
Então, nosso corpo se torna, realmente, “essa carne tão constan-
temente e severamente condenada na Escritura, essa carne que não
é mais o corpo precisamente, mas o que o degrada, o corrompe, o
sujeita e o perde; essa carne que é a inimiga armada do espírito e a
contradição viva da graça; essa carne que é em nós o anjo de Satanás

5 De carnis peccato propagati, habemus etiam in nobis unde certamen toleremus.


(Hom. 26 in Evang.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


17
(Gál 5, 17), dando-nos essas bofetadas que amamos – ai de mim! –,
ainda que desonrem; essa carne que é como nosso anticristo pessoal
e íntimo, o antagonista declarado de Deus e de seus direitos; essa
carne, enfim, que é a razão mais clara para a reprovação, segundo está
escrito (1Cor 15, 50): a carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus”.6
(Mons. Gay.)
Examinemos nossa consciência sobre esse ponto, pois importa
desvencilhar nossa vida cristã de toda aliança com o mundo e a carne.
Se não há lama em nossos corações, será que não há poeira? São Leão
Magno nos afirma que, mesmo para os corações religiosos, é como
que necessário estar sujo pela poeira do mundo. Necesse est de mundano
pulvere etiam religiosa corda sordescere.
E que dizer, então, daqueles que têm complacências culposas pelo
século ou por tudo o que agrada a cobiça carnal? O que pensar das
almas que lançam na lama a coroa de seu batismo e a de sua confir-
mação, para não dizer das outras? Há em cada um de nós uma secreta
disposição para os prazeres da carne; se cedemos e nos entregamos
aos seus atrativos, ultrapassamos facilmente os justos limites.
“Todos os prazeres dos sentidos, diz-nos Bossuet, estimulam uns
aos outros; a alma que experimenta um remonta facilmente à fonte
que produz todos. Assim os mais inocentes, se não estamos perma-
nentemente atentos, preparam os mais culposos; os menores fazem
sentir a alegria que provaríamos nos maiores...”. É por isso que “toda
alma pudica foge do ócio, das afeições que amolecem o coração, de
tudo o que agrada os sentidos, dos alimentos deliciosos: tudo isso
não é senão o alimento da concupiscência da carne que São João nos
proíbe, e alimenta o seu fogo.”7
_______________

Ó Maria, desapegai nosso coração e mantende-o desapegado de


todo amor pelos prazeres culposos. A austeridade da vida cristã, sus-
tentada por vossa graça, exige de nós esse desapego, com a santa
temperança no uso dos prazeres permitidos com os quais desejais
guarnecer nosso percurso de exílio.

6 Instruções para as pessoas do mundo. 1ª instrução.


7 Tratado da concupiscência, cap. V.

18 J. M. Dayet
Não permitais que esses prazeres nos tomem e nos cativem;
fazei-nos viver mais alto do que nosso corpo e do que todos os delei-
tes que o afligem. Fixai nosso coração no amor do Coração de vosso
divino Filho: é somente a ele que devemos a soberana preferência,
e somente ele deve permanecer como a regra invariável de nossos
outros amores.

II

Quanto às MÁXIMAS daqueles sujeitados ao espírito do mundo,


elas são fundamentalmente perniciosas. Estas vêm após as obras e
pretendem ser a sua justificação. Formam o código dessa sabedoria
mundana tão claramente oposta à Sabedoria evangélica. Por meio
delas, sobretudo, o espírito do mundo penetra nas inteligências e
as corrompe de modo quase irremediável, pois elas tendem a nada
menos do que fazer ignorar Deus, a graça, a vida futura; a destruir,
consequentemente, todo sobrenatural na alma dos batizados.
Para os mundanos libertinos, com efeito, o pecado – em particu-
lar o pecado da carne – não é um mal, uma ofensa à santidade divina
e à dignidade humana, mas uma simples exigência da natureza, assim
como o comer, o beber, o dormir: “Não se contraria a natureza.”
Quem não ouviu as teorias do mundo sobre esse ponto? Com que ar
de ciência não pretende ele impô-las? E de que sarcasmos também
não cobre os continentes e os castos, aqueles e aquelas que especial-
mente consagraram por profissão religiosa ao Cristo a nobre integri-
dade de seu corpo? O mundo não acredita na virtude.
Além disso, para esses mundanos, Jesus Cristo não é o grande
inimigo; ele é, antes, o grande desconhecido e o grande desdenhado.
Não querem declarar-lhe uma guerra aberta, preferem tratá-lo como
se não existisse: que ele nos deixe com nossos prazeres e amores
livres; não queremos conceder-lhe nem um olhar, nem atenção, nem
lembrança. E, sob o manto dessa ignorância voluntária e culpada,
sufocam toda ideia do mandamento divino ou da proibição divina,
afirmam sua própria independência e, nessa louca emancipação, sen-
tem-se mais à vontade para saciar paixões vergonhosas.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


19
São tais consciências falseadas que mostram, então, essas máxi-
mas e outras semelhantes: “Os jovens são como são, é preciso respei-
tar a liberdade de cada um, é preciso ser de seu século e viver como
todo o mundo; afinal, nossos prazeres não fazem mal a ninguém...”
Máximas às quais dão força de lei tantas covardes complacências da
parte dos bons.
Por fim, para esses mundanos libertinos, somente a vida presente
importa, e não temos outro destino. A preocupação com o outro
mundo não passa por seu espírito. “Disseram, pois, no desvairamento dos
pensamentos: O tempo de nossa vida é curto e cheio de tédio, e não há nenhum bem
a esperar depois da morte, e também não se conhece ninguém que tenha voltado
dos infernos. Porque do nada somos nascidos, e depois desta vida seremos como se
nunca tivéramos sido... E o nosso nome com o tempo ficará sepultado no esqueci-
mento e ninguém se lembrará das nossas obras... Vinde, pois, e gozemos dos bens
presentes e apressemo-nos a usar das criaturas como na mocidade. Enchamo-nos
de vinho precioso e de perfumes, e não deixemos passar a flor da primavera.
Coroemo-nos de rosas, antes que murchem... Deixemos em toda a parte sinais de
alegria, porque esta é a parte que nos toca, e esta é a nossa sorte (Sab 2, 1-9.)
Essas são as máximas dos voluptuosos descritas no Livro da Sabe-
doria, há dois mil anos.8 Os mundanos de hoje se resumem na frase
corrente: “É preciso viver a vida”, isto é, é preciso tirar da existência
a maior soma possível de gozações, depois do que a morte nos lança
no nada. “Enganaram-se, acrescenta o autor sagrado, porque a sua malícia
os cegou... Deus criou o homem imortal.” E o divino Mestre pronunciou
esta outra palavra: “O que ama a sua vida, perdê-la-á.”
Quando esse pernicioso espírito do mundo governa uma alma,
toda conversão parece impossível, pois a fé é expulsa de seus últimos
refúgios. Se não houvesse nessa alma senão obras de pecado, a graça
divina poderia ainda triunfar nela, pois o sangue de Cristo apaga as
faltas; mas não há espaço para o arrependimento, visto que o pecado
não é mais a ofensa a Deus, e toda crença no dogma da vida futura
desapareceu. O mundano sofre, então, essa escravidão do espírito,

8 Concorda-se, atualmente, em fixar a composição do Livro da Sabedoria


na Alexandria, por volta do ano 50 antes de Jesus Cristo. Esse é o livro do
Antigo Testamento que imediatamente precedeu e preparou o Evangelho.

20 J. M. Dayet
que é a mais terrível, vive sob a tirania do erro e da mentira, e, nessa
servidão, não tem mais gosto senão pelas coisas da carne. (Rom 8, 5.)
Assim, diz Santo Agostinho, “o homem que devia ser espiritual mesmo na
carne, tornou-se carnal mesmo no espírito”.9
E essa degradação o assemelha a esses povos selvagens ou mesmo
civilizados dos quais fala Bossuet, “que não têm mais espírito senão
para o corpo, e em quem o que há de mais puro é o respirar.”10
_______________

Como importa, pois, odiar o mundo, segundo o preceito de São


João, visto que ele está a tal ponto submerso pela concupiscência
da carne. Tenhamos horror, sobretudo, às suas máximas: elas cor-
rompem o coração, cegando o espírito. Quanto aos prazeres que ele
propõe com tanto artifício, despojemo-los de sua sedutora aparência,
e eles se mostrarão em sua realidade, curtos, vazios e não apazigua-
dores. “Não recusei aos meus olhos coisa alguma de tudo o que eles desejaram,
escrevia Salomão; nem proibi ao meu coração que gozasse de todo o prazer...
depois vi em tudo vaidade e aflição de espírito.” (Ecl 2, 10.)
“Desgosto, apetite, mais desgosto, depois renovação do ardor”
(Bossuet), é o círculo vicioso onde giram todos os prazeres dos
sentidos.
Estejamos atentos. Vigiemos para não abrir ao demônio tentador
a porta de nossos sentidos. Pois se o mundo começa sua obra de
sedução pela apresentação dos prazeres sensuais, ele só faz seguir,
nisto, a invariável tática daquele que Nosso Senhor denomina “seu
Príncipe” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre onde reinava a abundância,
como no deserto de Jericó, onde grassava a extrema escassez, Satanás
se dirige primeiramente à carne: comer o fruto proibido, transformar
as pedras em pães.
E se ele agiu assim com seres no estado de inocência e diante do
próprio Cristo, quanto mais continua a fazê-lo conosco, que vivemos
num estado de decadência.

9 Qui futurus erat etiam carne spiritalis, factus est mente carnalis. (De Civitate Dei,
lib. XIV, cap. XV.)
10 Tratado da concupiscência, cap. VII.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


21
Adão e Eva caíram por ter escutado o Tentador. Jesus o rejeitou
com uma palavra da Escritura inspirada.
Também assim o rejeitaremos, interrogando o Evangelho na
meditação que seguirá, para descobrir a oposição que existe entre
Jesus Cristo e o mundo sobre o ponto que nos ocupa.
Peçamos à Virgem puríssima que nos ajude a escutar e a seguir os
ensinamentos de seu Filho, a Sabedoria encarnada.

LEITURAS
EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 5, v. 1-16: As Beatitudes.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. I: Da vaidade das criaturas.

22 J. M. Dayet
SEGUNDO DIA
JESUS CRISTO
E SEU ESPÍRITO DE PENITÊNCIA

Em oposição ao mundo prazeroso, gozador da vida, Jesus Cristo


– a Sabedoria encarnada – nos apresenta um espírito de penitência.
Essa é sua marca de Redentor. Fomos por ele resgatados; é, pois,
a ele que devemos seguir, amar e imitar. Encher-nos de seu espírito
será o meio mais radical de nos esvaziar do espírito do mundo.
Peçamos a Maria que nos faça aderir com todas as nossas forças
ao nosso Redentor vivo:

1. ao EXEMPLO que ele nos dá em sua divina Pessoa,


2. aos ENSINAMENTOS que ele nos deixou em seu Evangelho.

O espírito de penitência de Jesus Cristo se manifestou desde que


ele começou sua vida pública, após longos anos de anonimato em
Nazaré.
É um fato muito espantoso que ele deseje ter, como seu anuncia-
dor, um homem cuja vida é magnificamente a de um penitente e de um
casto. Há trinta anos, João, filho de Zacarias, leva no deserto a existên-
cia mais mortificada possível, tratando rudemente seu corpo em todos
os prazeres que o afetam: a alimentação, o vestuário, a habitação.
Agora que chegou a hora de entrar em cena, João prega com
autoridade a penitência às multidões que se reúnem ao seu redor:
Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus (Mt 3, 2.) Assim ele
cumpre sua missão, que é preparar os caminhos daquele que vem
após ele e que é mais forte que ele, e do qual ele não se julga digno de
desatar a correia das sandálias.
Jesus aparece, por sua vez. Logo que se apresenta a João, é para
pedir-lhe o batismo de penitência reservado aos pecadores, desejando

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


23
mostrar que tomava o lugar deles. E imediatamente se afasta até a
região desértica e acidentada que se estende entre Jericó e Jerusalém,
para fazer um retiro de quarenta dias, em uma penitência voluntária
que faz nossa natureza estremecer.
Foi ali conduzido pelo Espírito Santo. Como se os anos de Nazaré
não tivessem bastado para preparar seu apostolado! Nazaré, desde
o retorno do Egito, havia sido para ele um interior tranquilo e reco-
lhido, onde sua vida decorria na oração, no silêncio, no trabalho, no
sofrimento íntimo, na companhia de sua santa Mãe e de seu pai adotivo.
Por mais santamente austera que fosse essa vida oculta, era necessária
ainda uma outra coisa a Jesus antes de se manifestar como o Fundador
de um Reino espiritual que possuía promessas de eternidade.
Era preciso que ele desse às gerações longínquas o exemplo de
uma penitência memorável: quarenta dias do jejum mais rigoroso,
sem comer nada, no auge da estação fria e chuvosa, absolutamente
separado dos seus, afastado de toda criatura humana. Ele estava entre
as feras, dir-nos-á São Marcos.
E é durante essa reclusão no deserto que Satanás, o Príncipe
deste mundo, vem multiplicar contra ele seus assaltos de tentador.
Ele receia que esse solitário penitente seja o Messias que deve destruir
seu império, pois, em verdade, é ele quem reina sobre toda a terra.
Então, ele se mostra sem disfarce, ataca-o face a face, propõe-lhe
sucessivamente todos esses prazeres inferiores por meio dos quais,
até o presente, ele manteve o mundo sob sua dominação. E, como
no paraíso terrestre, dirige-se em primeiro lugar aos sentidos, ele que
é espírito. É sua porta de entrada.
Jesus, soberanamente senhor de si mesmo, apesar do esgotamento
de seu organismo humano, responde vitoriosamente ao demônio e
obriga-o a se retirar. Que força essa heroica penitência pôs em sua
alma! Com uma palavra, com uma citação da Escritura inspirada (Dt
8, 3), o divino Mestre rejeita e derruba a sugestão diabólica: “O homem
– sob a condução do Espírito Santo – não vive só de pão, mas de toda a
palavra que sai da boca de Deus.”
Jesus afirma a primazia da alma. As necessidades do corpo vêm
depois das do espírito. Por meio do jejum voluntário – ou de qualquer

24 J. M. Dayet
outra penitência corporal, afirmação do vigor da alma – o cristão se
liberta das servidões inferiores que o ameaçam sempre. É a superação
vitoriosa sobre o carnal, sem o qual, em nós, não é possível ao espiri-
tual progredir.
Ai! Para a maioria, as sugestões enganosas de Satanás, utilizando o
instinto de nosso corpo, fazem esquecer que as próprias condições de
nossa natureza nos obrigam a essa luta. Recusando o combate, encon-
tramos então todos os pretextos para nada recusar do pão do corpo.
Ao mesmo tempo, o espírito, sujeito à carne, permanecerá sem defesa
diante das mais fortes tentações que não tardarão a se apresentar. É
assim que o demônio consegue afastar as almas fracas desse espírito de
Jesus Cristo que se manifesta à primeira vista pela penitência.
_______________

Se a penitência caracteriza o Salvador no limiar de sua vida de


apostolado, ela deve caracterizar semelhantemente todos os que deci-
diram segui-lo.
Apeguemo-nos, pois, a Jesus penitente, como fizeram os primei-
ros discípulos do Precursor, quando este, pouco antes da provação
da tentação no deserto, designou-lhes o Cristo que vinha em sua dire-
ção, dizendo: Ecce Agnus Dei! Ei-lo, o Cordeiro de Deus, aquele que
carrega e tira os pecados do mundo. Sendo a inocência, a santidade
perfeita, nada tem a expiar por si mesmo; mas será o grande Peni-
tente pelos outros, até a imolação da cruz.
Ecce Agnus Dei! Admiremos esse primeiro nome ou título oficial
dado a Jesus por aquele cuja missão foi ser a testemunha de sua vinda.
Nome de pureza, de doçura e, sobretudo, de sofrimento redentor.
Jesus Cristo é o Cordeiro do qual Isaías, o profeta-evangelista, des-
creveu antecipadamente a imolação silenciosa em meio aos tormen-
tos. Ele é o Cordeiro que o apóstolo São João nos mostra, em seu
Apocalipse, imolado ao pé do trono de Deus, tendo purificado tudo
em seu sangue. Ele é o Cordeiro inocente, a Vítima sem mácula, que
pagou ao Pai um justo resgate pelos pecados de todos os homens,
pelas impurezas incontáveis de todos os séculos, provocadoras dos
castigos da cólera divina.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


25
Ele é, sobretudo, para nós, o Cordeiro de Maria, que nasceu da
mais doce e mais terna de todas as mães. “Explicai-me a mansidão
de Jesus”, pedia o Padre de Montfort. E ele respondia: “Explicai-me
primeiro a mansidão de sua Mãe, a quem ele se assemelha no tempe-
ramento.” (A.S.E., n. 118.) É por isso que ele nunca quis quebrar a
cana rachada, nem apagar a mecha que ainda fumega. Se nos sujamos
no contato do mundo, não temamos, pois, nos aproximar dele, res-
pirar os perfumes de seu sangue, purificar nele as nossas faltas e dele
extrair o gosto da pureza e da penitência. Quantas vezes a Santíssima
Virgem veio nos relembrar, da parte de seu divino Filho, essa neces-
sidade da penitência!

II

Ele mesmo, no curso de seus anos de pregação, havia multipli-


cado nesse sentido suas advertências de graça.
Desde seu primeiro contato com as multidões, ouvimo-lo repe-
tir a fórmula de seu Precursor: “Fazei penitência, porque está próximo
o reino dos céus. (Mt 4, 17.) E acrescentava: “Fazei penitência, crede no
Evangelho” (Mc 1, 15.) O que quer dizer: crede Naquele que vos traz a
Boa Nova das misericórdias divinas, do perdão de Deus concedido a
todos, mesmo aos mais decaídos dentre os pecadores. Pois vim chamar
os pecadores à penitência. (Lc 5, 32.)
E como entre os pecadores a maioria se deixa arrastar aos pra-
zeres da carne, Jesus – nos primeiros tempos de seu ministério –
atravessou a inospitaleira província de Samaria unicamente para ir
ao encontro de uma dessas pobres almas culpadas e despertar nela o
arrependimento. Sentado sobre o parapeito do velho poço de Jacó,
depois de uma longa caminhada sob o sol, ele vê chegar essa alma.
Dirige-lhe primeiro a palavra, estabelece uma conversa e faz-lhe ouvir
palavras as mais graves, as mais profundas, as mais majestosas que
poderiam sair de seu Coração: “Se tu conheceras o dom de Deus, e quem
é que te diz, que ele é a Fonte eternamente abundante e que só quer
saciar a sede de tua alma, tu mesmo, apesar de tua indignidade, apesar
de tuas máculas, já lhe terias pedido para beber.”

26 J. M. Dayet
Pouco a pouco, Jesus obriga-a assim a reconhecer e a confessar
sua miséria. E diante dessa mulher que vive desregradamente há mui-
tos anos, mas que agora se abre à penitência, ele deixa escapar de seus
lábios a grande palavra reveladora: O Messias – aquele que vem apagar
os pecados do mundo – sou eu, que falo contigo.
A samaritana cai de joelhos, reergue-se e se vira, transformada.
Em sua alegria de convertida, ela esqueceu seu cântaro na borda do
poço. Mas que lhe importa! Ela conhece agora a Fonte de beatitude
que sacia a sede; não voltará mais às gozações da vida que deixam as
almas sedentas e intranquilas.
_______________

Um pouco mais tarde, na pessoa de Madalena, Jesus nos dá um


exemplo ainda mais tocante de uma alma conquistada pelo espírito
de penitência. Madalena era pecadora de notoriedade pública. Ainda
que preservando certa dignidade exterior, vivia na mundanidade e na
satisfação dos prazeres sensuais.
Mas, um dia, perdida na multidão, ela ouvira o divino Mestre. Tal-
vez, seu discurso sobre a montanha: Bem-aventurados os puros de coração!
E essa palavra, que não se parecia a qualquer outra ouvida até então,
havia-a profundamente perturbado, a ponto de todos os seus praze-
res não lhe parecerem mais senão mentira e vaidade.
Resolvida a deixar sua vida mundana e a dar logo a prova mani-
festa disso, entrou, sem ser convidada, na casa de Simão fariseu, no
momento em que este recebia o Salvador em sua mesa. Na presença
dos convivas, e num gesto irreversível, ela foi diretamente ajoelhar
seu arrependimento aos pés Daquele que secretamente havia trans-
formado seu coração.
O fariseu se escandaliza, e Jesus ouve sua reflexão silenciosa.
Longe de aprová-la, toma ostensivamente a defesa de Madalena, louva
sem restrição os sinais não equívocos que ela dá de sua conversão.
Visto que ele veio chamar os pecadores à penitência, não pode senão se
regozijar ao ver uma pobre alma desviada vir solicitar seu perdão.
Madalena, a pecadora, será doravante o modelo das almas arrepen-
didas. Ela se apegará aos passos de Jesus e o seguirá até ao Calvário. E a

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


27
Igreja, que a inscreverá no catálogo de seus santos, não terá senão uma
palavra para qualificá-la: sancta Maria Magdalena PAENITENS.
_______________

Por mais instigante que seja esse exemplo de conversão, Jesus


Cristo quis nos propor também a parábola do filho pródigo, uma de suas
últimas parábolas. Ela vem depois das parábolas da ovelha desgar-
rada e da dracma perdida (Lc 15); e vai além das duas, exaltando o
arrependimento, suprema conquista da afeição divina.
Sob o véu transparente dessa parábola, é preciso ver uma alma
cristã, desertora da Igreja de seu batismo e de suas comunhões, caída
tão baixo quanto possível na lama dos gozos carnais. Os males que
lhe sobrevém após o esgotamento de suas forças são o desfecho fatal
de uma vida de devassidão. A alma experimenta, então, uma fome
cruel, e se vê reduzida, sob a dominação de Satanás, a considerar a
sorte dos animais irracionais mais feliz do que a sua.
E, no entanto, o Pai dos Céus – pois ninguém é tão Pai quanto
ele – não deixou de amar essa pobre alma e de esperar seu retorno.
Aproximando-se com amabilidade, ele a obrigará a refletir, a se lem-
brar da casa de família onde abunda para todos o Pão eucarístico; a
se lembrar sobretudo Dele, que foi tão ofendido, mas que permanece
sempre seu Pai.
E eis o arrependimento que jorra das profundezas da consciên-
cia. Surgam. Levantar-me-ei e irei até meu Pai. Desafiarei todos os
obstáculos, suportarei todas as fadigas, aceitarei todas as humilha-
ções, farei todas as confissões, renunciarei a todas as vantagens de
outrora, solicitarei o último lugar...
A resolução é executada imediatamente. Et surgens venit ad Patrem.
No coração do Pai que corre ao seu encontro, a alma arrependida
encontra somente misericórdia e a necessidade infinita de perdoar.
Não somente seus pecados são apagados, esquecidos; mas a graça
santificadora faz-lhe recuperar a brancura de sua túnica batismal,
lavada no sangue do Cordeiro que tira os pecados do mundo. E o
festim eucarístico recomeça, para assegurar desta vez uma perseve-
rança que não se desmentirá mais.

28 J. M. Dayet
Foi dito dessa parábola que ela era o evangelho do evangelho. Nenhuma
outra justifica tanto a palavra de Jesus: Não vim chamar os justos, mas
os pecadores à penitência (Lc 5, 32); e esta outra: Misericordiam volo. Antes
de tudo, quero a misericórdia (Mt 9, 13). A esse querer de miseri-
córdia devemos responder com nosso querer de conversão. Se não,
nos veremos diante desta alternativa: ou a penitência ou a danação,
visto que não é tanto o pecado que condena, mas o endurecimento
no pecado, a obstinação em rejeitar o perdão salvador. Se não fizerdes
penitência, todos perecereis. (Lc 13, 5.)

_______________

Importa, pois, que a penitência produza primeiro em nós seu


fruto normal, regular: uma mudança de alma e consequentemente de
conduta, segundo o que exigir nosso passado de faltas. Mais do que
nunca serão impositivas, então, as privações exigidas pela Igreja em
certos dias do ano. De maneira geral, convirá conservar uma mode-
ração muito grande no uso dos bens sensíveis.
E se tivemos a felicidade de conservar uma alma pura e membros
castos, nosso mérito será grande por nos dedicarmos a nos reapro-
ximar sempre mais de Jesus penitente, a exemplo de seu Precursor.
Maria Imaculada, elevada em corpo e em alma ao Céu, nos fará pro-
var das alegrias espirituais que não se podem comparar a nenhum
dos prazeres do mundo: elas são de outra ordem. Nossa consagração
no-las reserva em um grau eminente; por isso, devemos dar decidida-
mente esse primeiro passo de nossos Exercícios preparatórios.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 5, 17-26: A nova Lei, com-


plemento da antiga Lei.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. II: Do sentimento de sua própria
humildade.

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29
TERCEIRO DIA
O MUNDO
E SEU ESPÍRITO DE POSSE

A segunda fonte da corrupção do mundo, segundo São João, é a


concupiscência dos olhos. Essa cobiça, adulada, engendra em alguns
o amor da riqueza por si mesma, o desejo de ajuntar bens terrestres
cuja visão atrai e retém seus olhares. É a COBIÇA, chamada mais
comumente de avareza.
Mais sutilmente, essa mesma cobiça se apresenta, em outros, de
forma mais espiritual. Ela engendra, então, o amor pela vã ciência,
pelo saber inútil e perigoso, o desejo de conhecer e de experimentar
o que não se deve. É uma CURIOSIDADE perniciosa, contrária à fé
e muito nociva à vida espiritual.
Consideraremos sob seu duplo aspecto essa segunda manifestação do
espírito do mundo; e constataremos, à luz dos textos revelados, que
ela também vem de Satanás.
Roguemos a Maria, a Virgem de coração simples, que foi tão mag-
nificamente desapegada dos bens deste mundo e de tudo o que não se
relaciona a Deus. Peçamos-lhe que coloque em nossas almas seu amor
pelos bens imperecíveis, sua bela inteligência das verdades da fé.

Aqueles que o mundo detém, pela concupiscência dos olhos do


corpo, testemunham acima de tudo um apego desregrado às riquezas,
cujo brilho os ofusca e os fascina. Eles buscam essas riquezas não com
o fim de satisfazer uma paixão carnal, mas pelo prazer de tê-las sob
seus olhos e de saborear sua posse vã. O bem-estar do avaro reside
nesse contentamento egoísta: sou o possuidor desta fortuna; sou o
senhor deste ouro, destas terras, deste domínio, desta rica mobília.
O amor do dinheiro é seu repouso e sua felicidade. Ele não o dis-
sipa no exterior, guarda-o e fixa-lhe os olhos, encerra sua felicidade

30 J. M. Dayet
nesse horizonte limitado. “O avarento, diz o Sábio, jamais se fartará de
dinheiro; e o que ama as riquezas, não tirará delas fruto. Logo também isto é
vaidade... E de que servem os bens a quem os possui, senão para ver com seus
olhos as suas riquezas? (Ecl 5, 9.)
“É para ele, acrescenta Bossuet, como que uma coisa sagrada da
qual não se permite aproximar suas mãos. Todo coração apaixonado
embeleza em sua imaginação o objeto de sua paixão. Este dá ao seu
ouro e à sua prata um brilho que a natureza não lhe dá; ele é ofuscado
por esse falso brilho; a luz do sol, que é a verdadeira alegria dos olhos,
não lhe parece tão bela.”11 Tal é o vazio dessa cobiça que denuncia o
apóstolo São João.
E, no entanto, seu desejo é insaciável. Nada pode contentar a
fome devoradora do coração apegado às riquezas. A característica
da avareza é precisamente tornar uma alma cada vez mais ávida em
seu desejo de possuir. Essa paixão do desejo é seu único gozo, ou,
antes, seu tormento. As outras cobiças encontram um limite para sua
saciedade: o sensual pode apaziguar sua paixão nos prazeres da carne;
o guloso pode saciar nos festins seu amor pela fartura; mas o cora-
ção cobiçoso nunca está satisfeito. “Essa gula dos olhos, observa ainda
Bossuet, nunca está contente; ela não tem, por assim dizer, nem fundo
nem margem.” Por isso a Escritura compara os olhos do homem avaro
ao sepulcro ou ao abismo que uma nova presa nunca sacia.
_______________

Os males que a cobiça engendra são incontáveis. São Paulo, que


não receia chamá-la de “idolatria” (Ef 5, 5), diz também que ela é a
raiz de todos os vícios: Radix omnium malorum est cupiditas. (1Tim 6,
10.). Ela dá origem a muitas iniquidades, porque precipita seus escra-
vos na tentação e nas armadilhas de Satanás. O homem de dinheiro
rapidamente se torna injusto, velhaco, enganador. Sempre se mos-
tra insensível e duro às misérias do próximo, como nos descreve
a parábola do mau rico do Evangelho. Ele chega ao ponto de não
recuar nem diante do roubo ou do homicídio, nem diante da traição
à maneira do apóstolo Judas.

11 Tratado da Concupiscência, cap. IX.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


31
Sua repugnância pelas coisas divinas é invencível. O desgosto
pelas realidades eternas invade a alma loucamente apaixonada pelos
bens deste mundo. “Não podeis servir a Deus e às riquezas”, disse Nosso
Senhor (Lc 16, 13). Nosso coração não pode reunir esses dois amo-
res: é preciso escolher entre as riquezas do século presente e as rique-
zas do século vindouro. Se ele confina sua eleição ao círculo estreito
das primeiras, poderá talvez provar por um tempo o bem-estar de um
paraíso terrestre; as delícias do Paraíso dos eleitos permanecer-lhe-ão
desconhecidas para sempre. O cobiçoso está mais distante da salva-
ção do que o voluptuoso. A caridade do Salvador converteu Mada-
lena, a pecadora, mas não triunfou sobre o endurecimento de Judas.
A concupiscência dos olhos, instalada como rainha em um cora-
ção que idolatra riquezas, destrói sem esperança todo impulso da von-
tade rumo a um mundo melhor. Nihil est iniquius quam amare pecuniam
(Eclo 10, 10). Nada é mais sórdido que o amor do dinheiro. Aquele
que inflama essa cobiça carrega consigo uma alma venal, amontoa
um tesouro de cólera para o dia do julgamento.
Eis, no entanto, o grande talismã que o mundo apresenta àque-
les que seu espírito tiraniza. Supliquemos à Santíssima Virgem que
desvie para sempre dele nossos olhos e nossos corações. E repitamo-
nos, desde agora, que nossa Consagração, fielmente vivida, nos asse-
gura a posse tranquila da divina Sabedoria, puro tesouro que não se alia
com as riquezas da terra:

“Porque todo o ouro ao seu lado é um pouco de areia,


e a prata será considerada como lodo à sua vista.”
(Sab 7, 9.)

II

Dissemos que é preciso relacionar também à concupiscência dos


olhos a curiosidade vã. Os olhos devem então ser entendidos como a
inteligência, uma inteligência que busca possuir:

• seja conhecimentos inúteis e frívolos,


• seja certas ciências perniciosas,

32 J. M. Dayet
• seja até mesmo as ciências verdadeiras, mas de maneira insufi-
ciente, ou excessiva, ou simplesmente egoísta.
_______________

A vã curiosidade se apresenta mais comumente como o desejo de


saber, sem razão alguma, tudo o que se passa no mundo e em volta de
si, as notícias insignificantes que circulam, o que indistintamente rela-
tam os jornais e o rádio; e também os segredos das famílias, a con-
duta e os negócios do vizinho, os complôs, as intrigas, as maneiras
de agir deste e daquele... “Ó Deus, exclamava Bossuet, que alimento
para as almas curiosas, e por isso vãs e fracas!”.12
E que porta aberta ao espírito do século! Por isso os mundanos
excelem na aquisição dessa ciência superficial e vazia. Ela satisfaz
sua leviandade, ocupa seu tempo, enche sua existência de vento e de
sombra. Fascinados por essas insignificâncias, eles fecham os olhos
interiores à única ciência necessária, que é a da salvação.
Quando essa curiosidade se apodera de uma alma cristã ou con-
sagrada, torna-se-lhe “uma causa como que infinita de distrações e de
preocupações; desenvolve o sentido humano, os gostos terrenos. Ela
é contrária ao recolhimento, torna a oração pouco a pouco impossí-
vel e mina a vida interior”.13
_______________

A esses conhecimentos inúteis e frívolos importa ainda acrescen-


tar as ciências perniciosas que despertam a curiosidade supersticiosa
de muitas pessoas. Seu desejo imoderado de conhecer leva-as até a
consultar mestres reprovados. É um fato da experiência: o mundo
orienta invariavelmente seus adeptos para os detentores das ciências
ocultas. Persuade-os de que eles poderão, assim, penetrar os segredos
do futuro, adquirir uma ciência capaz de bastar em face do temível
mistério da vida após a morte.

12 Tratado da Concupiscência, cap. 8.


13 Mons. Gay, Vida e virtudes cristãs. Da humildade.

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33
Em seu livro sobre o Amor da Sabedoria eterna, o Padre de Mon-
tfort advertia os cristãos contra esses tipos de ciências falsas e enga-
nosas (n. 85-89). Se as manifestações que ele denuncia, e que gras-
savam em seu tempo, parecem procedimentos hoje envelhecidos, a
astúcia do mundo não mudou tanto assim. Ainda em nossos dias,
“quantas cartomantes, quantas adivinhas, quantos espíritas, quantos
especuladores e prometedores de toda sorte de coisas ocultas, ou de
felicidade e de vida fácil! Quantas superstições são a realidade de uma
multidão de pessoas que se vangloriam ainda de serem cristãs! Nin-
guém negará que o dinheiro que ali perdem, o tempo que ali passam
e sua fé, que elas abalam, sejam fatos cotidianos”.14
Montfort concluía que se dedicar a tais ciências é fazer injúria a
Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, em quem estão todos os tesouros da
Sabedoria e da Ciência de Deus.
_______________

Por fim, no que concerne às ciências verdadeiras, humanas ou


divinas, é preciso proteger nosso espírito de um triplo perigo: o de
não fazer convergir todo raio de sol rumo à Luz eterna, objeto de
nossa felicidade; o de querer escrutar com excesso os segredos da
graça, que ultrapassam o alcance de nossa inteligência; o de querer
ajuntar conhecimentos sem nenhum desejo de apostolado.
Curiosidade perecível; curiosidade presunçosa e temerária; curio-
sidade que se transforma em egoísmo.
– Toda ciência que não eleva nossa alma às realidades imortais é
uma ciência caduca. Conhecer Jesus Cristo, autor da graça, é a vida
eterna, é simplesmente a vida, pois não há para nós vida verdadeira
diferente da do Espírito do Cristo em nós. Importa, pois, sobrenatu-
ralizar nossos estudos, orientá-los sempre a essa verdade divina que é
o Cristo. Então, nossa ciência, mesmo profana, desabrochará na luz,
em vez de ser somente o fruto efêmero de uma atividade natural.
– Quanto à própria verdade divina, tragamo-la para ser contem-
plada pelo olhar humilde desses corações simples e retos a quem
Deus se revela. Não busquemos o que nos ultrapassa. Saibamos nos

14 Nota do Pe. Huré, montfortino, na edição de 1929, p. 135.

34 J. M. Dayet
contentar e considerar os limites destinados ao nosso exílio. O que
quer sondar a majestade será oprimido pela sua glória (Prov 25, 27). A histó-
ria eclesiástica está repleta de quedas de sábios espíritos, desmedida-
mente curiosos. “Quantos encontraram sua condenação na medita-
ção excessiva dos segredos da predestinação e da graça!” (Bossuet.) O
mistério da predestinação e da reprovação é impenetrável, não podemos
senão balbuciar alguma explicação sobre ele. Sejamos, pois, sóbrios e
moderados no estudo dessas questões reveladas, assim como São Paulo
nos exorta, recomendando-nos a ciência e a sabedoria: Non plus sapere
quam oportet sapere, sed sapere ad sobrietatem (Rom 12, 3). “Hoje, creiamos
simplesmente; amanhã, os véus cairão, a grande visão surgirá, e o mis-
tério terá desaparecido para sempre.”15
– Por fim, protejamo-nos contra esse outro vício, que consiste
em recolher e ajuntar conhecimentos, mesmo sobrenaturais, unica-
mente para si, para sua própria satisfação, como um tesouro impro-
dutivo, o que seria a avareza do espírito. Deus não nos deu o gosto
e a capacidade de conhecer, de estudar, somente para nosso deleite
pessoal. A inteligência, assim como o dinheiro, só serve com a con-
dição de ser utilizada no interesse do próximo. Nossas faculdades
não nos pertencem; elas nos foram emprestadas por Deus como um
depósito para ser multiplicado. O conhecimento da verdade, e sobre-
tudo da verdade revelada, confere a quem o possui o dever de disse-
miná-lo. Que nossa ciência desabroche em desejo de apostolado.
Assim nos libertaremos, com o auxílio da Santíssima Virgem, de
toda curiosidade perigosa.

III

Para terminar de nos desviar para sempre desse espírito do mundo,


sob seu duplo aspecto, de avareza e de curiosidade, percebamos, agora,
que ele vem diretamente de Satanás, o adversário de Deus e o inimigo
de nossas almas. Sobre esse ponto particular, em parte alguma sua
tática de corruptor se mostra tão a descoberto como na tentação

15 Mons. Gay, Vida e virtudes cristãs. Da humildade.

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35
de nossos primeiros pais no paraíso terrestre e na tentação do novo
Adão no deserto da Judeia.
No paraíso terrestre, nossos primeiros pais tinham tudo em abun-
dância. Não tinham nenhuma necessidade de tocar o fruto marcado
com a proibição divina. É por isso que o diabo não lhes propôs um
acréscimo de riquezas ou de bem-estar, mas visou à inteligência deles.
Diante dos olhos de seu espírito, ele abriu uma curiosidade como que
infinita, prometendo a posse de uma ciência que lhes permitiria des-
cobrir até os segredos do governo de Deus: “Não, vós não morrereis
comendo do fruto desta árvore. Deus sabe, ao contrário, que no dia em
que dele comerdes, vossos olhos serão abertos.” Aperientur oculi vestri.
Vossos olhos serão abertos, isto é, vosso espírito se abrirá a uma
ciência superior, até aqui desconhecida. As luzes que tendes nada são
na presença daquelas que a virtude oculta nesse fruto ainda esconde
de vós. Por essa ciência sereis esclarecidos sobre todas as coisas que
podem vos tornar felizes ou infelizes. Penetrareis por vós mesmos
nesse conhecimento misterioso e reservado do bem e do mal, do qual
Deus parece tão ciumento.
E eis a terrível cobiça despertada em seu espírito. Adão e Eva se
deixaram levar por ela.
No deserto da Judeia, a situação era totalmente diferente. Durante
seu jejum de quarenta dias, Jesus vivia na escassez mais absoluta. Por
isso o demônio, vencido sobre a tentação da fome, propõe em seguida
ao Salvador a sedução das riquezas deste mundo. Segundo o relato
de São Lucas (4, 5-8), ele o transportou então sobre uma montanha
muito elevada, de onde descobriu aos seus olhos em um instante todos os
reinos do universo com sua magnificência e seus tesouros: “Te darei
todos esses bens, te estabelecerei como dono de toda essa opulência,
se, caindo aos meus pés, tu te prostrares diante de mim!”
Com uma palavra de mandamento, Jesus rejeitou o tentador cuja
tática era a mesma que no paraíso terrestre. Que o demônio ataque
os olhos de nosso espírito ou os de nosso corpo, seu objetivo será
sempre atrair os humanos a uma felicidade mentirosa, pela promessa
de bens que nos desviam de Deus e nos lançam aos seus pés.
_______________

36 J. M. Dayet
Assim ele infundiu no mundo esse espírito de posse, justamente
denominado pelo apóstolo São João como concupiscência dos olhos: dos
olhos que querem se alimentar da riqueza por si mesma, ou dos olhos
que querem se abrir sobre o conhecimento do pecado. Os olhos se
abrem então, com efeito, mas é “para ver sua desgraça e uma desor-
dem em si mesmo, que não se teria visto sem isso” (Bossuet). Quanto
aos olhos avaros ou cobiçosos, seu miserável deleite será passageiro.
Ó Maria, visto que a perversidade e a mentira do mundo nos apare-
cem cada vez mais claramente, não permitais que nos deixemos enga-
nar por ela um só dia. Que vossos encantos, vossos atrativos, vossas
virtudes, vossos exemplos nos cativem e nos retenham nos momentos
de tentação. Atraí-nos a vós. Ter-vos, possuir-vos, não é ter e possuir
todos os bens? Não sois o tesouro de Deus, e, pois, também o nosso?
“Oh! – exclamava o Pe. de Montfort, que confiança e que consolação
para uma alma que pode dizer que o tesouro de Deus, onde ele pôs
tudo o que tem de mais precioso, é também o seu! Ipsa est thesaurus
Domini. Ela é, diz um santo, o tesouro do Senhor.” (V. D., n. 216.)
E essa é a riqueza que nossa Doação total nos assegura.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 5, v. 27-32: A nova Lei,


complemento da antiga Lei (continuação).
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. III: Da doutrina da verdade.

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37
QUARTO DIA
JESUS CRISTO
E SEU ESPÍRITO DE DESAPEGO

Ao espírito de posse dos mundanos, sejamos felizes por opor o


espírito de desapego do Salvador. Que força para nossas almas cris-
tãs! E também que segurança! Estamos assegurados de avançar no
reto caminho, seguindo o Mestre em quem não há engano.
Como precedentemente, em nossa meditação do segundo dia,
consideraremos:

• o exemplo que Jesus nos dá,


• e os ensinamentos de seu Evangelho.

Roguemos à Santa Virgem que coloque em nosso coração os sen-


timentos de admiração, os ímpetos de amor que ela experimentava,
neste mundo, ao ver e ao escutar seu divino Filho.

Aquele que, havia longos séculos, a humanidade inteira espe-


rava como seu Libertador da tirania de Satanás, quis dar desde seu
nascimento o EXEMPLO de um sublime desapego diante dos bens
deste mundo. Rei do Céu e da terra, poderia ter vindo em meio aos
esplendores de um palácio. Preferiu a pobreza de um estábulo. É o
sinal que os anjos dão aos pastores dos campos de Belém: Nasceu-vos
um Salvador... Encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa man-
jedoura (Lc 2, 11-12).
Nem mesmo a Virgem Maria havia sonhado tal vinda de seu filho
entre nós. Ela havia esperado recebê-lo em sua casa de Nazaré, uma
morada bem pobre, sem dúvida, mas onde haveria, para o recém-nas-
cido, um quarto fechado, a tranquilidade de uma casa, a intimidade
do lar familiar, a facilidade dos cuidados a oferecer.

38 J. M. Dayet
E eis que, obrigada pelas circunstâncias, ela o vê chegar longe
dessa casa de família, em uma gruta aberta a todos os ventos, em
plena noite de inverno. Entrando imediatamente, porém, na inte-
ligência desse mistério, ela adorou a vontade de seu divino Filho.
Compreendeu que, encarnando-se por todos os homens, ele devia
servir de exemplo aos mais abandonados e mais deserdados entre
eles. Aqueles que a miséria afligir, por consequência de faltas ou de
injustiças e de violências, poderão olhar para seu estábulo de Belém
e dizer-se: Ele, o Soberano Mestre, poderia ter escolhido outra coisa
como lugar de nascimento; se não o fez, foi para que os infelizes
pudessem encontrar, em sua lembrança sempre viva, a força para
resistir à provação que oprime.
E a Virgem pensava também que os outros – aqueles que a des-
graça não atingir – serão mesmo assim atraídos à manjedoura do Sal-
vador, para ali recolher uma primeira lição de desapego face aos bens
dos quais gozam. Visto que Aquele que possui tudo não quis, desde
seu nascimento, tirar proveito das vantagens que a riqueza obtém,
por que os que possuem alguma coisa apegariam a ela seu coração?
Com a Virgem Maria, compreendamos e apreciemos o valor
dessa graça que nos oferece Jesus ao nascer.
_______________

Se continuamos a observar o divino Modelo, seja durante os meses


de seu exílio no Egito, seja, sobretudo, durante os anos de Nazaré,
encontramo-lo às voltas com as mesmas dificuldades de existência.
Os de sua vizinhança, na Galileia, que o conhecem e o observam,
têm serviços para prestar-lhe ou pedem-lhe trabalho, todos o con-
sideram como pertencente, em verdade, a uma família de pobres.
Não de indigentes ou miseráveis, pois a miséria não é uma qualidade:
mas pobres trabalhadores, honestos e dignos, que asseguram para si
recursos muito modestos, suficientes para cada dia, como fruto de
seu incessante e muitas vezes penoso trabalho.
Essa sujeição a um trabalho manual cotidiano, esse desejado
e amado distanciamento da riqueza, essa ausência de conforto, de
bem-estar temporal, não é o que aparecia, então, no primeiro plano

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


39
dos dias de Jesus? Seus compatriotas não podiam perceber os esplen-
dores espirituais dessa existência tão comum, mas se dão conta e
testemunham que esse jovem é o filho de um carpinteiro de vilarejo,
e carpinteiro ele mesmo (Mc 6, 3), um simples marceneiro, que deve
labutar o dia todo.
Constatação benéfica para nós, que não ignoramos mais o por-
quê de tal pobreza voluntária.
_______________

Durante sua vida pública, Jesus não terá sequer uma habitação
para si. “E, deixando Nazaré, foi habitar em Cafarnaum (cidade) marítima”
(Mt 4, 13). É ali que seus discípulos exercem seu ofício de pescadores.
Uma de suas casas – a de Simão Pedro, acredita-se – será sua morada
emprestada. Uma morada sem beleza, desprovida de todo conforto,
em um bairro populoso da cidade, nas vizinhanças do porto. A mobí-
lia é rudimentar. O chão é de terra batida. Uma casa térrea. Um teto
tão pouco elevado e tão frágil que o descobrirão facilmente para fazer
passar pela abertura, um dia, um paralítico sobre seu catre (Mc 2, 4).
Assim reaparece, nessa instalação de humildes pessoas trabalha-
doras, esse espírito de desapego que encontramos em todas as etapas
da vida do Salvador. Um refúgio de pastores em Belém, uma tenda de
artesão em Nazaré, e agora, sobre as margens do lago, um casebre de
barqueiros. Ficou nesse casebre durante os dois anos de suas viagens
apostólicas através da Galileia.
Quando deixar essa província para se reaproximar da Judeia, na
outra extremidade da palestina, nenhuma morada fixa se oferecerá
mais a recebê-lo. Ele e seus apóstolos não saberão mais, pela manhã,
onde dormirão na noite seguinte. E chegada a noite, nem sempre
estarão mais bem garantidos. Ao atravessar o vilarejo de Samaria, as
casas recusaram, uma após a outra, abrir-se diante deles.
Por isso, quando num dia dessas caminhadas sobre os caminhos
molhados pelas chuvas de outono, um escriba – um letrado – veio
pedir ao Salvador para segui-lo, sem ter medido antes que privações
podiam aguardá-lo, Jesus lhe respondeu: “As raposas têm covis, e as aves
do céu têm ninhos, porém o Filho do homem (menos rico do que elas) não

40 J. M. Dayet
tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 57-58). Era verdade, literalmente. Jesus
se dirigiu então para Jerusalém, para a última Páscoa, a Páscoa san-
grenta. Somente ali – depois da acolhida amigável de uma noite na
Betânia – ele terá onde repousar sua cabeça, e será sobre o madeiro
da Cruz. Assim, do nascimento à morte, que exemplo de progressivo
desapego nos dá ele em sua Pessoa!
Ó Maria, que seguistes as etapas desse desapego, fazei que con-
servemos como vós os olhos fixados sobre o divino Modelo. Visto
que ele desejou – mesmo sendo o Rei do Céu e da terra – conten-
tar-se com tão pouco, durante os anos de sua passagem entre nós,
ensinai-nos, a seu exemplo, a usar sempre com moderação os bens
temporais colocados por sua Providência à nossa disposição. Então,
mais desapegados e desembaraçados, avançaremos com um coração
leve e passos rápidos rumo à posse dos bens imperecíveis.

II

Provaremos melhor também dos ENSINAMENTOS que Jesus


nos deixou ao longo das páginas de seu Evangelho.
O sermão da montanha começa por exaltar a felicidade dos que
carregam dentro de si uma alma de pobreza. Beati pauperes spiritu (Mt
5, 3). Bem-aventurados os pobres de espírito. No primeiro plano, os
pequenos e os humildes, os deserdados deste mundo, que aceitam sua
condição modesta em um sentimento de submissão e de abandono à
Providência. Depois deles, os favorecidos dos bens da fortuna, mas
que dão valor unicamente aos bens da alma. Uns e outros se reúnem
como amantes dessa pobreza que é uma virtude, muito mais do que
uma situação de fato: a pobreza interior, o desapego das riquezas, o
espírito de pobreza.
As evidências indicam que Nosso Senhor não quis beatificar
somente a pobreza material. Aquele que é pobre, mas que inveja a
riqueza, que a deseja ardentemente, que põe nela sua felicidade, que
acredita ser infeliz pelo tempo em que não a possui, não é pobre no
sentido de Jesus e não pode ser chamado por ele de bem-aventurado.
Ai de mim! Quantos pobres invejosos, revoltados, ladrões, homicidas!

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41
Jesus não condenou a riqueza em si mesma. A fortuna propria-
mente dita não é coisa condenável, visto que pode comportar o essen-
cial da pobreza espiritual. Os Magos, que correram à manjedoura,
eram ricos. José de Arimateia é indicado no Evangelho como um
rico personagem de Jerusalém, membro do Sinédrio, homem justo
e bom. Eles puseram seus bens a serviço do Cristo. Permaneciam
pobres internamente, por suas disposições interiores. Eles detinham
a promessa do reino dos Céus.
Não é menos verdade que, ao proclamar sua primeira Beatitude,
o divino Mestre quis declarar privilegiados os que são pobres em
espírito e de fato. A esses ele dá suas preferências. Ele mesmo, como
vimos, se colocou do lado deles desde seu nascimento. E desde que
começou sua vida pública, esteve com eles. Mais do que isso, ele
anuncia sua atitude em relação a eles como um sinal de sua missão,
conforme a predição de Isaías: “O Espírito do Senhor repousou sobre mim;
pelo que me ungiu para evangelizar os pobres.” (Lc 4, 18-19.)
Regozijemo-nos, pois, se somos desprovidos ou pouco favoreci-
dos com os bens da fortuna. Razão a mais para nos desapegarmos
desse pouco e para aceitarmos de modo cristão os sofrimentos de
nossa condição. Se possuímos, ao contrário, alguns bens na terra,
não busquemos encontrar neles nossa satisfação; mas vigiemos para
fazer uso deles com uma alma de pobre. Assim nos conformaremos
ao espírito de Jesus Cristo.16
_______________

Na sequência de seu ensinamento, se nosso divino Salvador


nunca condenou a riqueza, insistiu muito, porém, sobre a dificuldade
para os ricos de conquistar sua salvação. Estes estão mais propensos
a esquecer Deus e a vida vindoura, devido à facilidade de encontrar
neste mundo todas as satisfações que desejam.

16 Importa também distinguir essa pobreza, que é beatitude, da pobreza de


conselho. A primeira, como se vê, é necessária à salvação. A outra é dei-
xada à livre escolha daqueles que desejam ser perfeitos: ela acrescenta o
despojamento real dos bens temporais.

42 J. M. Dayet
Por isso, Nosso Senhor recomenda aos seus discípulos que se
previnam contra a paixão das riquezas: “Guardai-vos e acautelai-vos de
toda a avareza, porque a vida de cada um, ainda que esteja na abundância,
não depende dos bens que possui.” (Lc 12, 15.) Nossa vida se apoia sobre
Deus; se nela há abundância, é ele quem a dá, é ele também quem
a retira; reconheçamos nossa dependência diante dele. O perigo das
riquezas vem precisamente do fato de que elas fazem esquecer a fonte
de todos os bens e o único tesouro de uma criatura inteligente.
Não queria concordar com isso, esse rico da Palestina, cujos cam-
pos haviam produzido muito e que, não tendo mais lugar para guar-
dar suas colheitas, pensava já em construir novos celeiros. Apesar
de suas múltiplas preocupações, ele relatava sua alegria a si mesmo:
“Ó alma, tens muitos bens em depósito para largos anos; descansa, come, bebe,
regala-te.” Mas a morte vem de repente arruinar esses belos cálculos,
nos quais nem a menor parte era dedicada a Deus e aos pobres: “Nés-
cio, diz-lhe o Senhor da vida e da morte, esta noite te virão demandar a tua
alma; e as coisas que juntaste, para quem serão?...” (Lc 12.)

_______________

Como se essa lição não bastasse, Jesus acrescentará a ela a terrível


parábola do mau rico. Muitos Pais da Igreja acreditaram que se tra-
tava de uma história real. O ensinamento permanece o mesmo. Esse
homem foi condenado às chamas inextinguíveis por ter guardado seu
ouro, sendo egoísta, e por ter negado pão a um mendigo: “Lembra-te
que recebestes os bens em tua vida, e Lázaro, ao contrário, males; por isso ele é
agora consolado e tu és atormentado.” (Lc 16.)
Não se observou que os únicos condenados dos quais fala o
Evangelho foram condenados por não saberem escapar da tirania do
dinheiro? No seio mesmo do colégio apostólico, o desgraçado Judas
caminhará para sua perda, preferindo sua bolsa ao amor do Cristo e
das almas. Prova trágica de que a conciliação entre esses dois amores
é coisa impossível. “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar o outro. Não
podeis servir a Deus e à riqueza.” (Mt 6, 24.)

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43
– “Bom Mestre, perguntava um dia a Jesus um jovem, cuja alma era
bem orientada, que devo fazer para obter a vida eterna?”. Ele havia obser-
vado todos os mandamentos. Sua fidelidade e sua inocência estavam
de acordo com a resposta do divino Mestre. E, no entanto, faltava-lhe
algo, pois ele sentia no mais íntimo de si mesmo subir um chamado
a uma vida mais perfeita. Por isso, Jesus olhou-o afetuosamente e lhe
disse: “Ainda te falta uma coisa: Vende tudo quanto tens, dá-o aos pobres e
terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me.”
Foi então que o semblante do adolescente se entristeceu, pois ele
possuía grandes bens. Negou comprar o tesouro dos Céus ao preço
de seu sacrifício... Quantas almas bem-nascidas passaram, assim,
ao largo da perfeição, da verdadeira felicidade, unicamente porque
tinham em seu poder riquezas materiais.
Repitamo-lo: ser rico não é um pecado; mas o apego exagerado à
riqueza pode fazer reprovar toda uma vida.
Enquanto o jovem se afastava com sua melancolia, Jesus também
se entristeceu, e, percorrendo com o olhar o círculo de seus discípu-
los, disse-lhes: “Quanto é difícil que aqueles que têm riquezas entrem no reino
de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo orifício de uma agulha.” (Lc 18.)
Sem dúvida, é preciso entender essa comparação como uma espé-
cie de provérbio oriental; importa considerar que ela nos apresenta
sob uma luz crua o pensamento do divino Mestre. Há impossibilidade
moral, não mais somente de perfeição, mas também de salvação, para
o rico prisioneiro e vítima da fortuna. Somente o ensinamento do
Cristo, somente a graça do Cristo poderão obter esse milagre: desligar
um coração de seus bens, mesmo sem tirá-los dele. Bem-aventurados
todos os que carregam em si mesmos essa alma de pobreza.
_______________

Dediquemo-nos, pois, a sempre preservar nosso coração muito


desapegado, mesmo do pouco que possamos possuir, no abandono
à Providência do Pai dos Céus. E se às vezes estivermos tentados a
lançar um olhar invejoso sobre aqueles a quem nada parece faltar,
reconduzamos em seguida nossa alma à presença do exemplo e dos
ensinamentos de Jesus Cristo.

44 J. M. Dayet
Ele, que era infinitamente rico, “se fez pobre por vós” (2Cor 8, 9); e
prometeu aos seus uma felicidade e riquezas “onde não chega o ladrão,
nem a traça rói”. (Lc 12, 33.) Até a morte, essa grande espoliadora que
leva tudo, será impotente para nos despojar de nossos bens eternos.
É por isso que encontramos lá em cima, entre as mãos de nossa
divina Mãe e Rainha, o mérito de nossa pobreza evangélica transfor-
mado em glória; e, de modo semelhante, todos os outros méritos que
lhe tivermos confiado em virtude de nossa Consagração. Sem contar
que tal desapego até de nossos bens espirituais não pode senão nos
fazer penetrar cada dia mais profundamente na alegria da primeira
Beatitude proclamada sobre a montanha.
Saboreemos nossa alegria na companhia de São Luís Maria de
Montfort, esse pobre entre os pobres, cuja alma cheia de cânticos
entoava ainda sobre esse leito de agonia:
Vamos, caros amigos,
Vamos ao paraíso:
O que quer que se ganhe aqui,
Mais vale o paraíso.
O paraíso, a posse do reino dos Céus, era a recompensa de todas as
suas bem-aventuradas renúncias aos bens deste mundo. Será um dia
a nossa, se deixarmos Maria nos encher cada vez mais do espírito de
desapego de seu divino Filho.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 5, 33-48: A nova Lei, com-


plemento da antiga Lei (continuação).
IMITAÇÃO DE JESUS CRISTO, livro I, cap. V: Da leitura das Santas
Escrituras.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


45
QUINTO DIA
O MUNDO
E SEU ESPÍRITO DE SOBERBA

A terceira manifestação do espírito do mundo é chamada por São


João de “soberba da vida”, superbia vitae. Ela é essa depravação que
leva seres criados, dotados de inteligência, a adorarem a si mesmos,
rejeitando deliberadamente sua dependência em relação a de Deus.
Quando tal espírito molda uma alma humana, como moldou,
outrora, Lúcifer, que se tornou Satanás, tem-se a marca da reprova-
ção. Pois nada é mais pernicioso do que se opor a Deus, querendo
tratá-lo como igual.
Consideraremos primeiro, na revolta de Lúcifer, A ORIGEM
manifesta dessa aberração. Veremos, em seguida, por meio de que
TÁTICA Satanás se esforça para arrastar os homens após si.
Ó Maria, humilde escrava do Senhor, ajudai-nos a extrair das
considerações que seguirão um respeito cada vez mais profundo pela
soberana autoridade de Deus.

Deus tinha acabado de criar os anjos. Havia-os feito próximos


de si, puros espíritos maravilhosamente belos. Inteligência plena de
ciência, vontade plena de força, liberdade sem entraves, poder quase
sem limites sobre o mundo exterior; e, como coroamento dessas per-
feições, a visão radiosa da imortalidade. Assim eram os anjos em seu
estado de natureza.
A essas magnificências, Deus havia acrescentado os esplendores
de sua graça. Esses puros espíritos brilhavam de inocência e de felici-
dade. A vida divina impregnava a substância deles. E as luzes da fé, os
ardores da caridade, o desabrochar de todas as virtudes projetavam
sobre a retidão de suas faculdades uma sabedoria e uma harmonia
incomparáveis.

46 J. M. Dayet
Mas essa graça não era ainda a glória. Para que se transformasse
nela, era necessária a cooperação de sua livre vontade à moção de
Deus que os levava a se elevarem rumo à sua felicidade nele. Era pre-
ciso uma homenagem de sujeição e de dependência diante da coroa
apresentada ao seu amor. Estabelecidos no estado de justiça, mas não
confirmados no bem, os anjos deviam merecer a beatitude eterna.
Esse foi o instante da provação.
Qual era a obediência que Deus lhes pedia? Era simplesmente
entoar um cântico à sua glória, ou, em vez disso, se inclinar diante
da revelação do mistério de seu Verbo que devia um dia se encarnar?
Pouco importa o motivo. O essencial era adorar.
O que Lúcifer se recusou a fazer. Ele, o primeiro dos Serafins,
marcado de modo excelente com o selo da semelhança divina: Tu
signaculum similitudinis; cheio de sabedoria e perfeito na beleza: plenus
sapientia et perfectus decore (Ez 28, 12), ele esqueceu o nada de sua origem
e se fixou na contemplação de sua própria grandeza. Longe de consi-
derar a vontade divina como a regra suprema à qual deve se confor-
mar toda liberdade criada, ele saiu de sua posição de ser dependente
para buscar a felicidade somente nos recursos de sua natureza finita,
fora dos limites determinados por seu soberano Senhor.
O orgulho, em sua intensidade máxima, hipnotizou-o na conside-
ração de si mesmo. Inebriado por seus esplendores de empréstimo,
“ele deixou, diz Bossuet, essa primeira Bondade que não era somente
o apoio necessário de sua felicidade, mas também o único funda-
mento de seu ser”.17 Non serviam, ousou proferir ao Eterno esse
espírito soberbo: não me curvarei, não adorarei; não me reconhecerei
escravo de Deus. Rejeito sua graça e sua glória; sou para mim mesmo
meu fim e minha felicidade: a perfeição de minha natureza basta à
minha felicidade.
E o grito de revolta ecoou entre as hierarquias celestiais: um terço
dos anjos, segundo uma piedosa interpretação, seguiu em seu pecado
Lúcifer, agora Satanás, o adversário de Deus.
_______________

17 Sermão sobre os demônios.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


47
Reflitamos que dessa palavra proveio o espírito de soberba do
mundo. Tudo o que, nesta terra, resiste a Deus, à sua luz, à sua ver-
dade, à sua graça, ao seu amor, à sua beatitude, repete ainda o Non
serviam.
Todo o que pretende poder se bastar sob o ponto de vista da
felicidade, sem nada dever a Deus, por horror da dependência em
relação a esse Mestre supremo, repete ainda o Non serviam.
Todo o que se coloca como obstáculo aos favores do Cristo, todo
o que se revolta contra o livre exercício que ele faz de sua Soberania
sobre seus membros resgatados, repete ainda o Non serviam.
Todo o que nega obediência à Igreja e à autoridade de seu Chefe;
tudo o que se denomina espírito de independência, ou de insubmis-
são, ou de naturalismo e de laicismo, conserva também como palavra
de ordem o Non serviam de Lúcifer: não serei o escravo de Deus.
O mundo, maldito por Nosso Senhor, está inteiramente imbuído
desse espírito de Satanás. É nele que bebe sua seiva, que toma sua
forma mais característica, sua forma definitiva. Se ele começa pelo
engodo dos prazeres carnais ou pela sedução das riquezas, é para
redundar na recusa da graça e da felicidade de Deus.
Entretanto, Deus será para sempre o Mestre incontestável. Se não
queremos depender dele livremente e por amor, será preciso, ainda
assim, depender dele por obrigação e por ódio. Essa é, há milhares
de séculos, a sorte de Satanás, o escravo rebelde: ele está condenado
sem esperança.
_______________

Em contrapartida ao drama angelical, amemos contemplar a amo-


rosa submissão de Maria, a primeira e a mais privilegiada de todas as
criaturas humanas. Agraciada ela também, e desde o primeiro instante
de sua concepção imaculada, com todos os dons da natureza e da graça,
ela não deixara de responder, com o pleno ímpeto de sua vontade, à
aproximação divina. Até que, na manhã da Anunciação, ela atingiu um
grau de graça santificante superior ao que podemos imaginar.
Foi então que Deus lhe propôs – não a entrada na glória eterna
– mas uma graça eminente, de ordem transcendente, a de se tornar a

48 J. M. Dayet
Mãe de seu Verbo, segunda Pessoa da Trindade. Diante da revelação
de tamanha grandeza, longe de pensar em si mesma e se agradar
com isso, a Virgem se anula em sua humildade, se rebaixa diante
de Deus, reconhece seus direitos, adora seus desígnios de misericór-
dia. Ela pensa nas almas, em todas as almas que serão resgatadas, e
dá seu consentimento: Ecce ancilla Domini, Sou a escrava do Senhor
Soberano que é Deus. E ela quis permanecer a escrava de Deus no
instante mesmo em que se tornou sua Mãe, quando se vê elevada
bem acima das hierarquias angelicais. O que mostra bem que ela não
considera a honra que lhe é dada. Olha unicamente para Deus e para
nossas almas.
Esse contraste entre Lúcifer e Maria nos faz compreender melhor
qual foi a aberração do primeiro dos Serafins, e qual é também, no
presente, a loucura dos que preferem seguir esse revoltado.

II

Pois, atormentado pelo ciúme, Satanás teve muito sucesso em


arrastar os homens em seu orgulho e em sua queda.
Não começou ele por atacar nossos primeiros pais no paraíso
terrestre? Não provocou a desobediência deles, fazendo-lhes crer que
eles seriam como deuses, os iguais de Deus, encontrando, pois, em si
mesmos sua felicidade?
Adão e Eva não tinham qualquer necessidade, nem mesmo qual-
quer desejo de provar o sabor do fruto proibido. Os frutos saborosos
não lhes faltavam. A astúcia do demônio foi dirigir-se à inteligência
deles pela falsa afirmação de que esse fruto continha uma ciência de
certo modo divinizante. O que os fazia sair de sua condição para se
elevarem à altura do próprio Deus. “Deus vos proibiu de tocar esse fruto
para vos impedir de conhecer tudo o que ele conhece, e de ter como ele uma exce-
lência divina...”
E nossos primeiros pais beberam esse veneno mortal. “Levan-
tou-se em seu coração uma certa atenção a si mesmos que não lhes
era permitida, um amor por sua própria excelência; e de tudo isto
um secreto prazer de provarem a si mesmos antes de provarem o

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


49
fruto proibido, e de se agradarem com sua própria perfeição, que, até
então, inocentes e simples, eles não haviam visto senão em Deus.”
(Bossuet.)
Sua desobediência foi, pois, uma desobediência de soberba. De
modo traiçoeiro, Satanás lhes havia infundido sua malícia, seu espí-
rito de insubordinação: libertar-se de seu Criador e Santificador, fazer
de sua pessoa uma divindade.
_______________

É sempre nessa soberba que desemboca sua tática de tentador,


qualquer que seja o meio de sedução que ele empregue.
Mesmo em sua luta com o Cristo no deserto, ele não teve medo
de praticar esse supremo ataque. São Lucas nos relata, com efeito,
que depois das duas primeiras tentações, o demônio levou Jesus à
Cidade santa e o colocou sobre o pináculo do templo, isto é, sobre a
torre mais elevada do edifício, a que se projetava, a quarenta metros
do chão, sobre todo o vale de Josafá. “Se és filho de Deus, lança-te daqui
abaixo! Não há nenhum perigo. Não está escrito (no salmo 90) que Deus
mandou aos seus anjos que te guardem... e que te sustenham em suas mãos, para
não magoares o teu pé em nenhuma pedra?”
Soprava-lhe uma ideia de presunção e de vanglória.
Que presunção deixar o caminho onde o Senhor ordena andar, o
caminho simples do dever de estado, para se precipitar nas temerida-
des e nas loucuras da vontade própria. Deus prometeu a assistência
dos santos anjos guardiões somente àqueles que permanecem em
seu lugar, nos caminhos dele: in viis tuis. Satanás, no texto que cita,
suprimiu essas duas palavras essenciais.
Vanglória e também vã ostentação de se oferecer aos olhares da
multidão que enchia o recinto sagrado, por uma ação pomposa, um
prodigioso lance teatral, uma espécie de publicidade estridente, que
o faria ser aclamado imediatamente pela nação inteira como o mais
glorioso de seus taumaturgos. Jesus teria, assim, assumido o papel de
um Messias político e mundano, enquanto deve, ao contrário, salvar
os homens da servidão do pecado por meio da humilhação, do sofri-
mento e da morte.

50 J. M. Dayet
Insidiosa tentação de soberba! Jesus resistiu, mas como o mundo,
amigo da vã ostentação e de todas as temeridades, se deixa enganar
por ela!
_______________

São Lucas acrescenta que o demônio, vencido, se afastou do Sal-


vador, mas somente até outra ocasião (4, 13). Efetivamente, Satanás
voltará a essa cidade de Jerusalém no momento da Paixão, que será
sua hora, “a hora do Príncipe das trevas”. Então, ele se tornará de tal
modo inspirador e senhor dos Pontífices da nação judia, que estes
conseguirão fazer morrer Jesus, unicamente por ciúme de soberba.
“Não queremos que este homem, que se diz ser o Filho de Deus, venha tomar
nosso lugar e dominar sobre nós. Não nos curvaremos diante dele. Somos os
chefes. A nós somente devem se dirigir as homenagens do povo. Que importam os
milagres desse sedutor! Que importa a afirmação de sua divindade. Ele blasfema,
quando se diz rei e filho de Deus. Ele merece a morte. Que nos desvencilhemos
dele. Crucifiquemo-lo...”
E eis, traduzida em linguagem humana, a orgulhosa revolta de
Lúcifer. É ainda o Verbo encarnado que ele persegue com seu ódio
invejoso e tenaz. Ele havia, outrora, arrastado após si um terço dos
anjos. Arrasta agora, arrasta sempre em sua rebelião uma multidão de
homens. E estes – que o seguem conscientemente – são mais culpa-
dos do que os pecam por ignorância ou por fraqueza, porque atacam
diretamente a Deus. A autoridade de Deus os ofusca, seus manda-
mentos e os de sua Igreja os revoltam. A majestosa Realeza do Cristo
desperta sempre seu ciúme. Esse desprezo por Deus e por seu Cristo
constitui o pecado do espírito e dá à soberba toda sua intensidade.
Não há malícia maior.
Por outro lado, esses seres orgulhosos, para quem Deus não
importa, aspiram com veemência a dominar seus semelhantes. Seu
triunfo brilha quando conseguem pôr tudo sob seus pés. Que jac-
tância, então, e que exibição de sua superioridade! Somente a eles
as homenagens e os aplausos do público. É preciso carregá-los em
triunfo e aclamá-los, e que eles se manifestem como tendo usurpado
o lugar de Deus. É o reino da soberba em seu apogeu.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


51
Em geral, esse reino dura pouco. Inebriados com sua própria gló-
ria, eles se lançam em intentos temerários, logo seguidos de quedas
estrondosas. É então que o soberano Senhor, ultrajado, quebra o cetro
desses ambiciosos, e, por um singular retorno da Providência, o opró-
brio se torna definitivamente sua herança e seu castigo. De quantos
exemplos famosos não fomos testemunhas nestes últimos tempos!
_______________

Tal é o triste desfecho dessa soberba da vida que constitui a base


do espírito do mundo. Torna-se muito evidente, com isso, a impossi-
bilidade para uma alma de iniciar a Consagração da santa escravidão
enquanto estiver, de uma maneira ou de outra, sob a mordida desse
veneno violento.
Ó Maria, mantende nosso espírito atento contra toda tentação
de desobediência a Deus e de contentamento em nós mesmos. Aju-
dai-nos a fugir de tudo o que pareça ostentação, jactância, vanglória,
ambição, desejo de aparecer e de dominar. Sabemos que tudo isso
não pode vir senão do demônio.
Colocai em nós vossos sentimentos de humildade, vosso amor
pela submissão e pela dependência, vosso soberano respeito pelos
direitos de Deus, vosso constante cuidado em tudo reportar à sua
glória, como testemunhastes em vosso cântico do Magnificat.
Então, seremos felizes por nos reconhecer, seguindo-vos e ao
vosso exemplo, os escravos do amor de Deus. Não há pertencimento
mais nobre: é dele que se glorificam todos os justos que estão sobre
a terra e todos os santos que estão no Céu.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 6, 1-15: Vícios a evitar na


vida cristã.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. VI: Das afeições desregradas.

52 J. M. Dayet
SEXTO DIA
JESUS CRISTO
E SEU ESPÍRITO DE HUMILDADE

Sendo a soberba a característica de Satanás, o Príncipe do mundo,


devemos esperar encontrar em Jesus Cristo um espírito de humildade
que será também como sua nota dominante e constituirá a base de
sua santidade.
Lúcifer, simples criatura angélica, se agradara de sua excelência,
que lhe fora emprestada, a ponto de querer se tornar igual a Deus. O
Verbo encarnado, Filho de Deus e Deus ele mesmo, esquecerá, por
assim dizer, sua infinita grandeza e se rebaixará a ponto de se fazer
homem, nosso semelhante, no apagamento total de sua Personali-
dade divina.
Consideraremos seu espírito de humildade:

1º face a Deus, seu Pai;


2º diante dos homens, seus irmãos.

Ó Maria, que tivestes a felicidade de ser, neste mundo, a testemu-


nha dessa humildade, ajudai-nos a impregnar com ela as capacidades
de nossa alma, de maneira a poder edificar sobre esse sólido funda-
mento toda a nossa vida espiritual.

Ninguém, mais do que o apóstolo São Paulo, mostrou-nos o


quanto o Verbo encarnado, quando de sua encarnação, se tornou
humilde ao extremo EM FACE DE SEU PAI. Desejando exortar à
humildade seus caros cristãos de Filipos, na Macedônia, momentane-
amente expostos a certas rivalidades de pessoas, escrevia-lhes:
“Nada façais por espírito de partido ou por vanglória e por um
esforço do ciúme. Mas, no apagamento de todo pensamento pessoal,

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


53
olhai-vos como inferiores aos vossos irmãos, sempre preocupados,
não com vossos interesses próprios, mas com o interesse e o bem
dos outros.
“Tende em vós os mesmos sentimentos, as mesmas disposições
profundas que animavam o Cristo Jesus. Ele estava e permanece na
condição de Deus, coeterno e igual a Deus; e, no entanto, não abra-
çou avidamente sua igualdade com Deus, mas espontaneamente se
despojou de sua grandeza divina, que se tornara incômoda e quase
importuna para a obra que ele vinha cumprir. Ele assumiu a condição
de escravo, tornou-se semelhante aos homens, e, sob a vestimenta da
carne, tornou-se como um de nós.”
Semetipsum exinanivit, formam servi accipiens, in similitudinem hominum
factus, et habitu inventus ut homo (Flp 2, 3-7.)
Isto não é tudo. A lição de humildade do Verbo encarnado vai
muito mais longe. Fazer-se escravo de natureza de seu Pai não lhe bas-
tou, ele quis sobretudo se fazer seu escravo de amor.
“Depois de se ter despojado de sua glória divina, depois de ter
renunciado ao benefício de sua igualdade eterna com Deus, como se
esse abandono primeiro não fosse ainda para ele senão um degrau
rumo a um desinteresse mais profundo, uma etapa somente rumo a
uma renúncia maior; depois se ter tornado homem e um de nós, uma
vez em posse dessa natureza criada que era para ele um meio de se
humilhar e de sofrer; depois de ter despojado Deus, ele quis também
despojar o homem.
“Com a mesma tranquila espontaneidade, com uma adorável
escolha pela humildade, ele se fez pequeno, se fez obediente até à
morte; e como se fosse insaciável de humilhação, até à morte de
cruz...” Humiliavit semetipsum, factus obediens usque ad mortem, mortem
autem crucis.
“Por que, então, meus caros filipenses, não vos humilhar? Por
que não consentir em transigir sobre vossos direitos e a abandonar
vossas miúdas exigências pessoais? Vede, aliás, o que o rebaixamento
voluntário do Cristo fez-lhe merecer. A medida da humilhação bus-
cada e amada foi a medida da grandeza que ele recebeu de seu Pai.
“Com efeito, em troca de todos esses abandonos consentidos,
Deus o elevou ao infinito, até à partilha de seu trono eterno. Deu-lhe

54 J. M. Dayet
um nome, uma grandeza, uma dignidade que superam tudo o que
pode ser nomeado no mundo, a fim de que, segundo a palavra de
Isaías (45, 24), ao nome de Jesus todo joelho se dobre no Céu, sobre
a terra, no inferno, e que uma homenagem universal testemunhe que
Jesus Cristo é Rei e Senhor para a glória de seu Pai.”
Propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi nomem quod est super
omne nomen: ut in nomine Jesu omne genu flectatur, coelestium, terrestrium et
infernorum, et omnis lingua confiteatur quia Dominus Jesus Christus in gloria
est Dei Patris. (Flp 2, 9-11.)
_______________

Não parece, observa Dom Delatte, de quem emprestamos esse


rico comentário,18 que a alma batizada possa resistir à eficácia de tal
exemplo. Que contraste, que oposição com Lúcifer! Tanto o orgu-
lhoso Serafim havia proferido seu Non serviam à face de Deus, tanto
e mais ainda nosso humilde Salvador se proclama o escravo de amor
de seu Pai: O Domine... ego servus tuus! Esta palavra se encontra no
Salmo messiânico 115. Jesus a exala de seu coração como uma prece
de gratidão para com seu Pai por tê-lo livrado, não dos sofrimen-
tos excessivos que precederam sua morte, mas dos laços da própria
morte. O Cristo devia morrer, visto que sua morte constituía o sacri-
fício de nossa redenção. Foi uma morte de obediência heroica, como
acabamos de ver.
Deus Pai o recompensa por isso imediatamente, ressuscitando-o.
E Jesus agradece então seu Pai: Quid retribuam Domino?... O Domine,
quia ego servus tuus, ego servus tuus et filius ancillae tuae, dirupisti vincula mea.
“Que darei em retribuição ao Senhor?... Ah! Senhor, porque sou teu
escravo, teu escravo por vontade amorosa, e o filho de tua serva, tu
quebrastes as cadeias que a morte me havia imposto.”
Jesus – notemo-lo bem – não se limita a reconhecer aqui sua
dependência de natureza, que lhe é comum com todos os homens. Ele
menciona, como único motivo de sua ressurreição, sua dependência

18 As Epístolas de São Paulo reintegradas ao meio histórico dos atos dos


Apóstolos. Ver a Epístola aos Filipenses.

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55
de amor, que acentua ainda com uma maravilhosa repetição de pala-
vras. Ele ofereceu a seu Pai uma vontade soberanamente humilde;
uma vontade humana, feliz por poder adorá-lo, agradecê-lo, oferecer-
lhe um sacrifício expiatório e súplicas de um valor infinito; uma von-
tade dependente até nos suplícios extremos e na morte violenta da
cruz. Ele se mostrou verdadeiramente o escravo de amor de seu Pai
na oblação sangrenta de si mesmo; e foi pelo mérito dessa obediência
que seu Pai quebrou, em seu favor e em favor dos justos, as cadeias
de toda morte.
E eis a atitude de Cristo em face de Deus, seu Pai. Desde o pri-
meiro instante de sua Encarnação, ele havia exclamado: “Não aceitaste,
ó Pai, as oblações antigas; mas formaste para mim um corpo (escravidão de
natureza); então eu disse: eis-me aqui, eu venho, ó Deus, para fazer a tua
vontade (escravidão de amor).” Nas alegrias de sua Ressurreição, sua
oração de ação de graças é também a de uma alma ajoelhada diante
da vontade de seu Pai.
Essa atitude de obediência é e sempre será a marca mais autêntica
da verdadeira humildade. Obedecer é humilhar-se. Obedecer a Deus
é humilhar-se diante de Deus, é reconhecer que ele é o Soberano
Senhor, que seus mandamentos são adoráveis, que suas vontades são
santas e santificadoras. Obedecer a Deus é o melhor uso que pode-
mos fazer de nosso livre-arbítrio.
A consagração da santa escravidão nos oferece constantemente
essa alegria de ter de obedecer e de ter somente que obedecer. Ela
nos mantém, pois, na humildade verdadeira, nessa humildade da Vir-
gem de Nazaré se proclamando, na manhã da Anunciação, a escrava
de amor de seu Senhor. Como estamos longe, então, do espírito de
soberba do mundo! Ó nossa Senhora e Rainha, cultivai em nossas
almas vossos sentimentos de humildade e as disposições profundas
do Coração de vosso divino Filho. Que graça poder conformar a ele
tão plenamente quanto possível a nossa vida espiritual.

II

DIANTE DOS HOMENS, seus irmãos, Jesus Cristo manifestou


o mesmo espírito de humildade que em face de seu Pai. De resto, se

56 J. M. Dayet
ele se colocou, ao se encarnar, na condição de escravo: formam servi acci-
piens, foi, evidentemente, para estar à disposição de todos aqueles que
ele vinha resgatar. Ele não fará, pois, outra coisa além de servi-los.
Ele mesmo o declara em termos formais: “O Filho do homem,
isto é, o Verbo encarnado, o Filho de Deus que se tornou o filho
de uma Mãe humana, não veio para ser servido, mas para servir.” (Mt 20,
28.) Dizei-me: “Qual é o maior, o que está à mesa, ou o que serve? Não é
maior o que está sentado à mesa? Pois eu estou no meio de vós como um que
serve.” (Lc 22, 27.)
E o que ele diz, pratica-o. Na noite da Quinta-Feira Santa, no
começo dessa refeição, o última que ele faz com seus apóstolos, ele
se levanta da mesa, cinge-se da libré do serviço: ajoelhado diante dos
doze, lava os pés de cada um com uma humildade que os confunde.
Função, labor de todos os humildes, de todos os submissos, de todos
os prostrados aos pés de um senhor terreno. É seu trabalho e eles o
cumprem.
Jesus não quis assemelhar-se aos grandes da terra, que dominam
pela força e tratam seus súditos como se fossem feitos para eles. Ao
contrário, em seu Reino, ele quer que aqueles que são chamados a
conduzir os outros se considerem como os servos de seus inferiores,
buscando somente fazer-lhes o bem. Por isso, ele quer que seu gesto
da Quinta-Feira Santa seja imitado no curso dos séculos por todos os
que se glorificarem por serem seus.
“Compreendeis o que vos fiz? – pergunta Jesus aos seus apóstolos.
Vós chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se eu, pois, Senhor
e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque
eu dei-vos o exemplo, para que, como eu vos fiz, assim façais vós também. Em
verdade, em verdade vos digo: O servo (literalmente: o escravo) não é maior
do que seu senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Se compre-
endeis estas coisas, bem-aventurados sereis se as praticardes.”
Como ressaltar melhor a diferença entre o espírito do cristianismo
e o espírito do mundo? O Filho de Deus se fez até o fim o servo
de seus próprios servos. E não foi devido a essa admirável humil-
dade que o divino Mestre exerceu uma influência profunda sobre um
número tão grande de almas? Não foi graças a esse esquecimento
total de si, que não deixava transparecer nele senão a paixão de fazer

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57
o bem aos outros? Nenhuma outra virtude, parece-nos, contribuiu
tanto para que ganhasse a confiança até mesmo de seus apóstolos,
senão a mansidão que é seu acompanhamento natural e previne todo
desejo de vã ostentação. “Estais em minha escola, poderia dizer-lhes,
pois bem, aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração.” (Mt 11, 29.)
Penetrados desses mesmos sentimentos, exercereis uma ação bené-
fica sobre todos aqueles dos quais vos aproximardes.
Foi por isso que Jesus não omitiu nenhuma ocasião de dar-lhes
lições de humildade, mesmo quando se tratava das relações que eles
tinham entre si, no seio de sua pequena Comunidade. Nem toda vai-
dade havia desaparecido de seus corações. Muito pelo contrário. Um
dia, eles discutiam, afastadamente, sobre a rota de Cafarnaum, para
saber qual dentre eles seria o maior nesse novo Reino que seu divino
Mestre veio fundar sobre a terra. Miserável questão de precedência.
Culpados olhares de complacência sobre sua miséria. Chegam à casa
que os hospeda. Jesus os interroga: “De que vínheis vós discutindo pelo
caminho?”. Ninguém ousa responder. Então, Jesus chama uma criança
que passava diante da porta, a leva para perto de si e abraça-a afetuo-
samente, o que significava visivelmente que lhe dava o primeiro lugar.
“Na verdade vos digo que, se vos não converterdes, se não vos despojardes
de vossos pensamentos vaidosos e vos não tornardes como meninos, não
entrareis no reino dos céus. Aquele pois que se fizer pequeno, como este menino,
esse será o maior no reino dos céus.” (Mc 9, 32-35; Mt 18, 2-3.)
Preservada por sua candura, a alma infantil não olha para si mesma.
Ela não se pergunta se vale mais que as outras. Ela se ignora. Retorne-
mos a essa simplicidade. Eliminemos toda preocupação como nossa
própria gloríola, todo espírito de rivalidades, de ciúmes mesquinhos,
toda exibição de uma superioridade mal-compreendida. A luta contra a
soberba não é coisa a adiar, é um fundamento a estabelecer.

_______________

É, pois, de todo o coração e com uma vontade firme que deve-


mos nos dedicar a nos impregnar do espírito de humildade de Jesus
Cristo. As fulgurantes luzes de seu exemplo e de seus ensinamentos

58 J. M. Dayet
não são graças protetoras e imperativas? Deixemo-nos ganhar, sem
opor a menor resistência.
Como a Santíssima Virgem, olhemos Deus, Deus feito homem, e
olhemos somente para ele. Olhares favoráveis sobre nós mesmos sig-
nificariam fraqueza e covardia. Apenas retardaríamos nosso encami-
nhamento a uma Consagração que quer ser como uma continuação
da atitude do Verbo encarnado, escravo de amor de Deus, seu pai,
por meio de Maria, sua Santa Mãe.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 6, 16-34: Vícios a evitar na


vida cristã (continuação).
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. IX: Da obediência e da submissão.

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59
SÉTIMO DIA
O DESEJO ARDENTE

Nossas meditações dos seis primeiros dias lançaram luz sobre a


oposição absoluta que existe entre o espírito do mundo e o espírito
de Jesus. Nenhum acordo, nenhuma conciliação é possível. O mundo
engaja seus adeptos no caminho largo da perdição; Jesus nos faz seguir
o caminho estreito que leva à eternidade bem-aventurada. É ele, pois,
que devemos amar, e não o mundo, como nos disse o apóstolo João; é
aos seus exemplos e ao seu ensinamento que devemos nos apegar.
É por isso que importa, agora, recorrer aos meios indicados por
nosso mestre espiritual, São Luís Maria de Montfort. Os três primei-
ros são: o desejo ardente, a prece contínua, a mortificação universal. Veremos
o quanto esses meios são soberanamente eficazes para nos desvenci-
lhar, nos liberar dessa falsa sabedoria do mundo, que o apóstolo São
Tiago qualificou como terrena, carnal, diabólica.19
O desejo ardente elevará nossas almas bem acima da sabedoria ter-
rena, ligada ao amor dos bens deste mundo. A prece incessante, sempre
com base na humildade, será nossa força contra a sabedoria diabólica,
apaixonada por tudo o que pode saciar o orgulho humano. A mortifi-
cação universal nos obrigará a lutar vitoriosamente contra a sabedoria
carnal, que ama e busca somente os prazeres dos sentidos. Assim
atingiremos, com o auxílio da graça, o fim perseguido por Montfort
durante o período preliminar de seus Exercícios espirituais.
Peçamos hoje a Maria que acenda e alimente em nossos corações
a chama do desejo ardente; ela, cuja jovem alma esteve sempre ofe-
gante pelo Salvador prometido, mais do que todos os Patriarcas e os
Profetas da antiga Lei.

_______________

19 Non est ista sapientia desursum descendens, sed terrena, animalis, dia-
bolica. (Tg 3, 15.)

60 J. M. Dayet
I. – OBJETO DE NOSSO DESEJO. Não é outro senão Jesus
Cristo, considerado como a divina Sabedoria, a única e verdadeira
Sabedoria, o Bem mais desejável, aquele que supera infinitamente
todos os bens dos quais podemos desejar a posse.
Mas para desejar e buscar essa divina Sabedoria, é necessá-
rio que nos dediquemos a conhecê-la, como já começamos a fazer
em nossas primeiras meditações. Pois é possível amar o que não se
conhece? Pode-se verdadeiramente desejar o que se conhece apenas
imperfeitamente?20 “Por que, interroga Montfort, ama-se tão pouco
o adorável Jesus, senão porque não se o conhece, ou muito pouco?
Não há quase ninguém que estude, como se deve, como o Apóstolo,
essa ciência tão eminente de Jesus, que é, no entanto, a mais nobre,
a mais doce, a mais útil e a mais necessária de todas as ciências e de
todos os conhecimentos.”
Ela é a mais nobre, porque tem por objeto o que há de mais
sublime, a Sabedoria eterna e encarnada, que encerra em si toda a
plenitude da divindade e da humanidade, tudo o que há de maior no
Céu e sobre a terra, todas as criaturas visíveis e invisíveis, espirituais e
corpóreas. São João Crisóstomo diz que Nosso Senhor é um sumário
das obras de Deus, um quadro resumido de todas as suas perfeições
e de todas as perfeições que estão nas criaturas. Jesus Cristo, a Sabe-
doria eterna, é tudo o que podeis e deveis desejar. Desejai-o, buscai-o,
porque ele é essa única e preciosa pérola pela compra da qual deveis
vender, sem dificuldade, tudo o que possuís...
Não há, também, ciência mais doce do que o conhecimento da
divina Sabedoria. Bem-aventurados são os que a escutam; mais felizes
ainda os que a desejam e a buscam; todavia, os mais felizes são os
que guardam seus caminhos e experimentam em seu coração essa
doçura infinita, alegria e felicidade do Pai eterno, e glória dos anjos.
Não se pode saber qual é o prazer que prova uma alma que conhece
a beleza da Sabedoria, particularmente quando ela faz ouvir estas

20 Entretanto, não está em questão aqui senão um conhecimento inicial,


indispensável aos principiantes. Mais tarde, em nossa terceira Semana,
nos dedicaremos a conhecer, de maneira mais aprofundada, Jesus Cris-
to, a Sabedoria eterna e encarnada.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


61
palavras: Provai e vede... e inebriai-vos de minhas doçuras eternas,
pois a minha conversação não tem nada de desagradável, nem a minha convivên-
cia desgosto, mas tudo nela é satisfação e alegria. (Sab 8, 16.)
Esse conhecimento da divina Sabedoria é também o mais útil e
o mais necessário, porque a vida eterna consiste em conhecer Deus e seu Filho,
Jesus Cristo (Jo 17, 3). Porque o conhecer-te, exclama o Sábio, falando com
a Sabedoria, é a justiça consumada; e o reconhecer a tua justiça e o teu poder
é a raiz da imortalidade. (Sab 15, 3.) Se desejamos, em verdade, ter a
vida eterna, tenhamos, pois, o conhecimento da divina Sabedoria; se
desejamos ter a perfeição da santidade neste mundo, conheçamos a
Sabedoria; se desejamos ter em nosso coração a raiz da imortalidade,
tenhamos em nosso espírito o conhecimento da Sabedoria.
“Saber Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, é saber o bastante. Saber tudo
e não sabê-lo, é nada saber... De que nos servirão todas as outras ciências
necessárias à salvação, se não sabemos a de Jesus Cristo, que é a única
necessária e o centro ao qual todas devem convergir?...”
E se apoiando sobre o exemplo de São Paulo, Montfort acres-
centa: “Embora o grande Apóstolo soubesse tantas coisas e fosse
versado nas Letras humanas, dizia por toda parte que julgava não dever
saber coisa alguma senão a Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2, 2). Digamos
com ele: Desprezo todos esses conhecimentos que até hoje considerei lucro, em
comparação ao conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor (Flp 3, 7-8). Vejo
agora e experimento que essa ciência é tão excelente, tão deliciosa,
tão proveitosa e tão admirável, que hoje não levo em consideração
todas as outras, que outrora tanto me agradaram... Digo-vos que Jesus
Cristo é o abismo de toda a ciência, a fim de que não vos deixeis enganar pelas
belas e magníficas palavras dos oradores, nem pelas sutilezas tão falaciosas dos
filósofos (Col 2, 4-8), isto é, de todos os que pensam, falam e ensinam
apenas segundo a ciência natural e o espírito do mundo.” (Amor Sabe-
doria Eterna, n. 8-12.)
_______________

Amaremos ainda mais conhecer a divina Sabedoria porque ela


mesma teve o cuidado de nos testemunhar o zelo que tem por nos
ver desejá-la e buscá-la.

62 J. M. Dayet
“Eu amo os que me amam, disse-nos a Sabedoria, e os que vigiam desde
manhã para me buscarem, achar-me-ão, e, achando-me, encontrarão a abundân-
cia de todos os bens... Pois os bens duráveis comigo estão; e é incomparavelmente
melhor me possuir do que possuir todo o ouro e toda a prata do mundo... Conduzo
os homens que vêm a mim pelos caminhos da justiça e da prudência, e os enri-
queço, satisfazendo os seus desejos... E estejais convencidos de que meus mais doces
prazeres, minhas delícias mais caras são conversar e permanecer com os filhos dos
homens.” (Prov. 8, 17-21.)
E como se os homens temessem ainda se aproximar dela, devido
ao seu brilho maravilhoso e à sua majestade soberana, ela faz dizer a
eles que é de fácil acesso; que se deixa facilmente ver por aqueles que a amam; que
se antecipa aos que a desejam e se mostra antes a eles, e aquele que a buscar desde a
aurora não terá trabalho, pois a encontrará sentada à sua porta (Sab 6, 12-14).
Muito mais, “essa Sabedoria eterna, para se aproximar ainda mais
dos homens e testemunhar-lhes mais sensivelmente seu amor, não
chegou ao ponto de se fazer homem, ao ponto de se tornar criança, ao
ponto de se tornar pobre e ao ponto de morrer por eles sobre a cruz?
Quantas vezes ela exclamou, enquanto vivia sobre a terra: Vinde a
mim, vinde todos a mim; sou eu, não temais. Por que temeríeis? Sou
semelhante a vós e vos amo. Será porque sois pecadores? Ora! É a
eles que busco. Será porque vos afastastes do redil por erro vosso?
Ora! Eu sou o Bom Pastor. Será porque vos enchestes de pecados,
vos cobristes de sujeira, vos oprimistes pela tristeza? Ora! É justa-
mente por isso que deveis vir a mim; pois eu vos aliviarei, eu vos
consolarei...
“Como, conclui nosso santo, não ser tocado por desejos tão zelo-
sos, por buscas tão amorosas e por testemunhos de uma amizade tão
persistente?” (A.S.E., n. 67, 69, 70, 72.)
Desejemos, pois, por nossa vez, e busquemos unicamente essa
divina Sabedoria, tal como ela se apresentou a nós em nossas medita-
ções precedentes, em oposição à sabedoria mundana. É ela somente
que devemos adorar. A outra é enganosa e mentirosa, feita de apa-
rências e cheia de decepções; os que nela se comprazem levam uma
existência vazia, fora do caminho da verdade. “Até quando, grita-lhes
Montfort, tereis o coração pesado e voltado para a terra? Até quando
amareis a vaidade e buscareis a mentira?” (A.S.E, n. 181.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


63
Ó Nossa Senhora da Sabedoria, protegei-nos de imitar a conduta
desses pretensos sábios do século; e visto que nosso coração é feito
de tal modo que não pode permanecer sem amor, no lugar da cobiça
terrena, cultivai em nós o desejo sobrenatural. Longe daqueles que
se mantém unicamente inclinados sobre os bens deste mundo, elevai
nossos corações a esse Bem inestimável e esse tesouro sem preço que
é vosso divino Filho. Então, nosso desejo não será ilusão, e nosso
amor se dirigirá a uma realidade imperecível.
Por que importa que os filhos do século sejam mais prudentes
em seus negócios do que os filhos da luz na perseguição da verda-
deira Sabedoria? Aqueles não descansam até que tenham obtido o
transitório bem-estar cobiçado; e nós, não faríamos nenhum esforço
para chegar à posse da suprema e indefectível Riqueza da terra e dos
Céus? Ó Maria, ajudai-nos a compreender o quanto tudo nos falta,
se não a possuímos.
_______________

II. – QUALIDADE DE NOSSO DESEJO. Ele deve ser


ARDENTE, isto é, avivado pela chama de um constante amor pela
adorável Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Visto que devemos
transmitir às nossas almas os sentimentos e as disposições da alma
dele, como não amá-lo com toda a força de nossa vontade? Como
não buscar intensificar sempre nosso amor no contato de seus exem-
plos e de suas palavras, tais como no-los propõe o Evangelho?
Conhecemos o episódio dos dois discípulos desamparados de
Emaús, na noite da Páscoa. Enquanto caminhavam em companhia
do viajante desconhecido, que veio se juntar a eles, e que o escutavam
explicar-lhes as Escrituras desde Moisés até os Profetas, sobre como
importava que o Cristo sofresse para entrar em sua glória... seu cora-
ção, até ali pesado de tristeza, tornou-se de repente ardente em seu
peito. O que não os espantou mais quando reconheceram, no partir
do pão, o Salvador ressuscitado.
Ó minha alma, não é esse mesmo Salvador que te fala hoje, que
te explica seu Evangelho, que te manifesta, ao longo das páginas do Livro
inspirado, seu espírito de penitência, ele que era a própria inocência;

64 J. M. Dayet
seu espírito de desapego dos bens terrenos, ele que possuía toda a
riqueza da terra e dos Céus; seu espírito de admirável humildade
diante de Deus e dos homens, enquanto era igual a Deus e enquanto
assim permanece para sempre?...
E enquanto ele projeta assim essa luz sobre tua inteligência, não
sentes, como os discípulos de Emaús, o teu coração queimar no peito?
Não experimentas então mais intensamente o desejo de amá-lo, de
segui-lo em seu caminho austero e doloroso, a fim de entrar um dia
na participação de sua glória?...
Oh! Sim, guardemos que, para preservar e cultivar em nós esse
desejo ardente da divina Sabedoria, é preciso apenas ter habitualmente
diante de nossos olhos e repassar em nosso espírito os ensinamentos
do Evangelho. O encantamento dessa ciência das ciências nos desen-
cantará para todo sempre das aparências e vaidades do mundo.
_______________

Seremos fiéis, então, em observar os mandamentos do Senhor,


na certeza de chegar à posse do Tesouro tão desejado e buscado. “É
preciso, nos diz Montfort, que o desejo da Sabedoria seja um grande
dom de Deus, visto que é a recompensa da fiel observação de seus
mandamentos...”. A Sabedoria, com efeito, não entrará em uma alma
perversa, não habitará um corpo sujeito ao pecado: quoniam in malevolam
animam non introibit Sapientia, nec habitabit in corpore subdito peccatis (Sap. 1, 4).
Não poderia, pois, bastar ter esses desejos mornos, essas veleidades do
bem, que não fazem abandonar o pecado e não obrigam a se fazer vio-
lência. Esses são desejos falsos e enganosos que matam e condenam. O
castigo é temível, mesmo desde este mundo: “Desprezando eles a Sabedoria,
diz o Espírito Santo, não só caíram na ignorância do bem, mas deixaram ainda
aos homens uma lembrança da sua loucura, de tal sorte que não puderam ocultar os
pecados que cometeram” (Sab 10, 8.) Ignorância, louca cegueira, escândalo...
três desgraças que ferem durante esta vida aqueles que fugiram, despre-
zaram e ofenderam a amável e soberana Sabedoria.
“Mas, prossegue Montfort, qual é sua desgraça no momento da
morte, quando, contra sua vontade, ouvem a Sabedoria lhes dizer: Eu vos
chamei, e vós não quisestes ouvir-me (Prov 1, 24); eu vos estendi o braço todo

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


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o dia, e resististes a mim; eu vos esperei, sentada em vossa porta, e não
viestes a mim... Também me rirei de vossa ruína, e zombarei de vós, quando vos
suceder o que temíeis (Prov 1, 26). Não terei mais nem ouvidos para escutar
vossos gritos, nem olhos para ver vossas lágrimas, nem coração para ser
tocado por vossos soluços, nem mãos para vos prestar socorro.
“Enfim, qual será sua desgraça no inferno!”. Leiamos o que o
Espírito Santo disse das lamentações, dos remorsos, do desespero
dos pobres condenados:

Logo, nós nos extraviamos do caminho da verdade,


A luz da justiça não raiou para nós,
E o sol da inteligência não nasceu para nós.
Cansamo-nos da senda da iniquidade e da perdição,
Andamos por caminhos ásperos, e ignoramos o caminho do Senhor.
De que nos aproveitou a soberba?
De que nos serviu a vã ostentação das riquezas?
Todas aquelas coisas passaram como sombra,
Como um mensageiro fugaz...
(Sap. 5, 6-9.)
“Tarde demais, eles reconhecem sua loucura e sua desgraça por terem
desprezado a Sabedoria de Deus. Começam a falar sabiamente, mas
no inferno.” (A.S.E., n. 72.)
_______________

Não é, pois, para os sábios segundo o mundo que devemos vol-


tar nossos olhares, mas aos eleitos de Deus, a fim de inflamar nosso
desejo com o ardor de seu amor. Estes não tentaram conciliar o espí-
rito de Jesus Cristo com o espírito do século. A vida deles foi sem dis-
farce, e seu desejo surgia de uma vontade reta, que visava somente o
bem. Se o mundo com seus encantos, ou a concupiscência com suas
febres vinham às vezes tentar sua constância, eles sabiam desprezar
essas aproximações e tiravam a energia para vencerem a si mesmos
do pensamento de que a vida do homem neste mundo não é uma
busca dos bens perecíveis e passageiros, mas uma luta perseverante
pela obtenção da coroa da glória.

66 J. M. Dayet
Esses eleitos que se apaixonam assim pela divina Sabedoria são
os pobres e os ignorantes segundo o mundo, os oprimidos e os fra-
cos, os pequenos e os humildes, as almas de silêncio e de sacrifício
que, através de todas as dificuldades inerentes à sua condição, ali-
mentam o ardor de seu desejo ao contato das verdades eternas e das
promessas infalíveis.
O que esses pobres e esses desprezados do mundo obtiveram com
o auxílio da graça, por que não o obteríamos? Por que suspirar por mais
tempo por esses desejos que não terminam jamais? Por que correr o
risco de perder os bens imperecíveis, detendo nosso coração sobre as
miseráveis riquezas de um dia? Não é melhor, para nossa felicidade,
nos voltarmos decididamente à única e verdadeira Sabedoria?
Então, nosso desejo subirá de um coração ardente, isto é, de uma
vontade sem langor, de uma vida sem disfarce, de um amor sem falsas
alianças. Não nos espalharemos mais na multidão das coisas vãs, mas
nos recolheremos e nos estabeleceremos na unidade da incorruptível
Sabedoria. E a Virgem, tendo atraído todas as nossas capacidades à
inestimável vida interior, nos revestirá desse manto de luz que é o
espírito de seu Senhor Jesus.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 7, 1-16: Vícios a evitar na


vida cristã (continuação).
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XIII: Da resistência às tentações.

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67
OITAVO DIA
A PRECE CONTÍNUA

Decididos a nos libertar do espírito do mundo, voltamos nossos


olhares para a única e verdadeira Sabedoria. Nosso desejo de possuí-la
se eleva de um coração fervoroso. Por isso, espontaneamente, a prece
se apresenta a nós como a ajuda mais poderosa para manter nosso
desejo em seu fervor e para atrair em nossa alma a divina Sabedoria.
Com nosso mestre espiritual, meditaremos sobre a maravilhosa
obrigação de ter de pedir esse grande Dom de Deus, e sobre a continui-
dade que deverá caracterizar nosso pedido.
Recorramos humildemente a Maria Mediadora, cuja função é
acolher todas as preces e transmitir todas as graças.
_______________

I. É PRECISO PEDIR A DIVINA SABEDORIA. “Quanto


mais um dom de Deus é grande, mais difícil é obtê-lo. Que preces,
então, e que trabalhos não exige o dom da Sabedoria encarnada, o
maior de todos os dons de Deus!
“Escutemos o que diz a própria divina Sabedoria: Pedi, e vos será
dado; buscai e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Mt 7, 7; Lc 11, 9; Mc 11, 24).
Como se Ela dissesse: se quereis encontrar-me, é preciso buscar-me;
se quereis entrar em meu palácio, é preciso bater em minha porta; se
quereis receber-me, é preciso pedir-me. Ninguém me encontra se não
me busca; ninguém entra em minha casa se não bate em minha porta;
ninguém me obtém se não me pede; e tudo se faz por meio da prece.
“A prece é o canal ordinário por meio do qual Deus comunica
suas graças, particularmente sua Sabedoria.” (A.S.E., n. 184.)
Senhor absoluto de seus dons, ele deseja que reconheçamos
primeiro nossa extrema indigência. O pobre, porque é pobre, pede
a esmola. Todos nós somos pobres diante de Deus; implorando a
ele, confessamos nossa miséria, expomos-lhe a necessidade de que
nossa pobreza seja socorrida. Colocamo-nos, assim, na disposição
requerida para obter os benefícios desejados. Essa confissão de nossa
miséria toca infalivelmente o coração do Pai dos Céus.

68 J. M. Dayet
Por outro lado, Deus resiste aos soberbos. A alma orgulhosa não
pede, ela não quer se humilhar. O amor por sua própria excelência
mantém sobre seus olhos a venda que cegou Lúcifer e sopra em sua
vontade o mesmo sentimento de falsa independência: Non serviam:
se é preciso inclinar-me para receber os benefícios divinos, não me
inclinarei.
Essa inconcebível loucura nos faz também compreender por que
São Luís Maria de Montfort quer que adicionemos ao desejo da ver-
dadeira Sabedoria o auxílio e a força da prece. Assim, ele nos liberta
desse orgulho que é a manifestação mais evidente e mais obstinada
do espírito do mundo. Ele encaminha nosso desejo, pelo caminho da
humildade, rumo à aquisição do maior de todos os dons de Deus.
“O mundo esteve, por milhares de anos, a pedir a Encarnação da
divina Sabedoria”, porque essa divina Sabedoria não encontrava no
mundo a medida de humildade capaz de atraí-la sobre a terra. Mesmo
a humilde Virgem Maria “esteve quatorze anos se preparando, por
meio da prece, para recebê-la em seu ventre”.
Se algum de vós necessita de Sabedoria, diz São Tiago (1, 5), peça-a a
Deus, que a todos dá liberalmente e não lança em rosto, e ser-lhe-á concedida.
“Notai de passagem, sublinha Montfort, que o Espírito Santo não
diz: Se alguém necessita de caridade, de humildade, de paciência, etc.,
que são virtudes tão excelentes, mas: Se alguém necessita da Sabe-
doria. Pois, pedindo-a, pedimos todas as virtudes que estão contidas
nela”, e que ela deseja nos comunicar. (n. 184.)
_______________

Para tê-la, é preciso, pois, pedi-la, e pedi-la não somente com um


grande espírito de humildade, mas também com uma fé viva e firme,
isenta de hesitação, pois aquele que tem somente uma fé vacilante
não deve esperar obtê-la. Nosso erro não é nos aproximarmos de
Deus com um coração sem confiança, que parece temer, antecipada-
mente, ser atendido? Nossa natureza se rebela diante dos sacrifícios
mal entrevistos; queremos e não queremos; e nossos pedidos são
indecisos, porque não procedem de um espírito de fé decididamente
orientado à santidade, como se o mundo nos retivesse ainda pela
doçura de seus encantos.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


69
Além disso, “é preciso pedir a Sabedoria com uma fé pura, sem
apoiar sua prece sobre consolações sensíveis ou revelações particu-
lares. Embora tudo isso possa ser bom e verdadeiro, como se pode
ver na vida de vários Santos, é sempre perigoso fiar-se a isso; e a fé é
tanto menos pura e meritória quanto mais se apoia sobre essas espé-
cies de graças extraordinárias e sensíveis”...
O que o Evangelho nos fez conhecer dos exemplos e dos ensi-
namentos da Sabedoria encarnada, os desejos que Ela mesma mani-
festa de se oferecer a nós, as necessidades que temos dela e de seus
tesouros de graça, são motivos poderosos o bastante para nos fazer
desejá-la e pedi-la a Deus com zelo.
“O justo, ou o sábio, vive da fé,21 sem ver nem sentir, nem provar
e sem vacilar. Deus o disse ou o prometeu, eis a pedra fundamental de
todas as suas preces e de todas as suas ações, embora lhe pareça
naturalmente que Deus não tem olhos para ver sua miséria, ouvidos
para escutar seus pedidos, braços para arrasar seus inimigos, nem
mão para prestar-lhe ajuda; embora ele seja atacado por distrações,
por dúvidas e por trevas no espírito, por ilusões na imaginação, por
desgostos e melancolia no coração, por tristeza e agonia na alma.
“Ele não pede para ver coisas extraordinárias como os Santos
viram, nem para provar doçuras sensíveis em suas preces e suas devo-
ções. Ele pede com fé a divina Sabedoria, e tem como certo que ela
lhe será dada, mais do que se um anjo tivesse descido dos Céus para
certificá-lo disso, porque a própria Sabedoria disse: Omnis qui petit
accipit (Lc 11, 10), todos os que pedem a Deus como se deve obtêm o
que pedem.” (A.S.E., n. 185-187.)
Ó Maria, trono acessível da divina Sabedoria, tornai meu coração
ávido de possuir esse grande dom de Deus; tocai nele as fibras de
vosso espírito de oração. Imploro vossa poderosa mediação:
Comunicai-me vossa fé,
Terei a Sabedoria por meio dela,
E todos os bens virão a mim.22
_______________

21 Rom 1, 17; Hebr 10, 38; Gál 3, 11.


22 Cânticos do Pe. de Montfort. Os desejos da divina Sabedoria, n. 74.

70 J. M. Dayet
II. NOSSO PEDIDO PELA DIVINA SABEDORIA DEVE
SER CONTÍNUO. No mesmo cântico, Montfort – dirigindo-se à
divina Sabedoria – se atrevia a dizer-lhe:
Se não quereis que eu vos pertença,
Deixai-me vos importunar,
Deixai-me sempre no castigo
De vos buscar sem encontrar.
Como exprimir melhor a continuidade com a qual, sem jamais
nos cansar, devemos pedir a divina Sabedoria? “É para a aquisição
dessa pedra preciosa, desse tesouro infinito, que importa fazer uso de
uma santa importunidade junto a Deus, sem a qual nunca a teremos.
“Não se deve fazer como a maioria das pessoas que pedem a
Deus alguma graça. Depois de terem orado durante um tempo bas-
tante considerável, até anos inteiros, e não verem suas preces aten-
didas por Deus, elas se desencorajam e deixam de orar, acreditando
que Deus não quer escutá-las. Elas perdem, assim, o fruto de suas
preces, e até mesmo ofendem a Deus, que ama doar e que atende
sempre – infalivelmente – as preces bem feitas, seja de uma maneira,
seja de outra.
“Aquele que deseja, pois, obter a divina Sabedoria deve pedi-la
dia e noite, sem se cansar e sem se desencorajar. Mil vezes bem-
aventurado será se obtiver após dez, vinte, trinta anos de preces, e
mesmo uma hora antes de morrer. E se a recebe depois de ter pas-
sado toda sua vida a buscá-la e a pedi-la e a merecê-la por toda sorte
de trabalhos e de cruzes, que esteja bem convencido de que não lhe é
dada por justiça, como uma recompensa, mas por pura misericórdia,
como uma esmola.
“Não, não, não são essas almas negligentes e inconstantes em
suas preces e suas buscas que terão a divina Sabedoria.” Serão aque-
las que se parecerem com aquele pedinte importuno do qual fala o
Evangelho, que foi no meio da noite bater na porta de seu amigo,
pedindo-lhe três pães.
Observai, diz Montfort, que é a própria Sabedoria quem, nessa
parábola, nos indica a maneira pela qual importa pedir para obter.
Esse amigo bate e repete suas batidas e sua prece, e cada vez com mais
força e mais insistência. Sem demora, ele pede os três pães para um

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


71
viajante que acaba de chegar, e ao qual tem nada a oferecer; pede-os
em uma hora indevida e ainda que seu amigo esteja dormindo.
A resposta é primeiro uma recusa: Não me sejas importuno, grita o
que dormia, descontente por ter sido tirado de seu sono. A porta já
está fechada, os meus filhos estão deitados comigo; não me posso levantar para te
dar coisa alguma... Mas a solicitação continua a ressoar em sua soleira.
Como continuar resistindo? – Digo-vos, prossegue Jesus, se o outro per-
severar em bater, ainda que ele não se levantasse a dar-lhos, por ser seu amigo,
certamente pela sua importunação se levantará e lhe dará quantos pães precisar.
(Lc 11, 5-8.)
Eis, concluiu Montfort, a maneira pela qual se deve rezar para ter
a divina Sabedoria; e infalivelmente, cedo ou tarde, Deus, que deseja
ser importunado, se levantará, abrirá a porta de sua misericórdia e
nos dará os três pães da Sabedoria: o pão da vida, isto é, a graça em
abundância, a vida divina comunicada com magnificência; o pão do
entendimento, isto é, a inteligência das verdades do Evangelho; o pão dos
anjos, isto é, o próprio Jesus dado como alimento e fruição à alma no
sacramento da Eucaristia. (A.S.E., n. 188-190.)
_______________

A história da mulher cananeia, na região de Tiro, é um exemplo


ainda mais tocante das graças que pode obter a oração perseverante.
O Salvador havia se afastado da Galileia para escapar da cólera dos
fariseus; ele voltava a subir à Síria, esforçando-se por dissimular o
máximo possível sua presença. Mas o renome de seus milagres o
havia precedido. Logo que soube de sua chegada, uma mulher, ori-
ginária do país, correu para ele: Senhor, filho de Davi, tem piedade de
mim, gritou ela. Minha filha está miseravelmente atormentada do demônio.
Sua prece é transbordante de fé, como a do centurião de Cafarnaum;
ela chama Jesus por seu nome messiânico; reconhece, pois, sua divin-
dade e seu poder.
No entanto, Jesus nada responde, parece desatento, continua
caminhando. Esse é o único exemplo desse gênero em todo o Evan-
gelho. Ele, que acolheu outras mulheres culpadas, não se detém a
esta, que é simplesmente desafortunada, e desafortunada em seu

72 J. M. Dayet
amor maternal. São João Crisóstomo se espanta: “Que novidade sur-
preendente, exclama; buscais as outras, essa infeliz busca a vós, e a
repelis!...”
A cananeia, sem perder confiança, se põe a seguir Jesus, repe-
tindo seu chamado à piedade; a ponto de os apóstolos, cansados de
seus gritos, pedirem ao seu Mestre que lhe conceda a graça solicitada.
Jesus sai então de seu silêncio, mas não para pronunciar a palavra de
cura, e sim – parece – para excluir de sua misericórdia essa pobre mãe
desolada: Eu não fui enviado senão às ovelhas desgarradas da casa de Israel, e
não para as ovelhas estrangeiras ao meu redil...
A cananeia não se desconcerta. Ela se aproxima mais do Senhor,
que, neste momento, entrou numa casa; ela se joga aos seus pés:
Senhor, vale-me. Jesus parece mais rigoroso, mais implacável: Deixa,
responde-lhe diretamente desta vez, que primeiro sejam fartos os filhos,
porque não é bem tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cães.
A pobre mãe assim o tenciona. “Ela não tem um movimento de
revolta, diz Santo Agostinho, nem um sobressalto de dignidade ofen-
dida.” Com uma palavra admirável e uma fé que nada desencoraja,
ela faz observar humildemente ao Senhor que sua prece é autorizada
pela resposta mesma que ele acaba de lhe dar. Assim é, Senhor, não sou
digna de comer o pão dos filhos, sou uma estrangeira. Mas vossa mesa é rica: há
migalhas que caem no chão, e deixa-se que os cachorrinhos da casa comam essas
migalhas. Ah! Senhor, dai-me essas migalhas, nada peço além disto.
Diante de uma réplica tão humilde, Jesus deixa enfim falar seu
coração: Ó mulher, disse-lhe com admiração, grande é a tua fé: Magna est
fides tua! Vai, o demônio saiu de tua filha. (Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30.)
A prece triunfa sobre tudo, ela desarma até mesmo a Deus, que
concede, então, muito mais do que pedimos. Nessa cena do Evan-
gelho, nosso olhar visa somente cura da menina; mas há também o
outro milagre, o mais importante, o que atrai os olhares do divino
Mestre: a ascensão sublime de uma alma que persevera em pedir com
uma fé e uma humildade crescentes, apesar da recusa aparente e ape-
sar da prova de humilhação.
Assim Deus nos atenderá infalivelmente, se vir que continuamos
a rezar mesmo assim, mesmo que fosse preciso esperar anos e tal-
vez uma vida inteira, como nos disse mais acima São Luís Maria de

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


73
Montfort, para obter a divina Sabedoria com todos os seus tesouros
escondidos. A oração perseverante, manifestação de nosso desejo
ardente, fará nossa alma subir a essas regiões espirituais aonde não
chegam os ruídos do mundo e de seus falsos prazeres.
_______________

À oração vocal que se exprime por meio de palavras, acrescenta-


remos – seguindo um último conselho de Montfort – a oração mental
que se faz no interior da alma. “Ela ilumina o espírito”, nos diz ele,
porque obriga à reflexão, reapresentando aos nossos olhos as verda-
des eternas. “Ela inflama o coração”, porque nos faz solicitar a graça
de Deus com tanto mais ardor por termos, pela reflexão, sentido
melhor nossa impotência. “Ela nos torna capazes de escutar a voz da
divina Sabedoria, de provar suas doçuras e de possuir seus tesouros”,
porque essa conversação com Deus se torna então cada dia mais
íntima, mais afetuosa e mais prolongada; ela chega até mesmo a con-
tinuar durante todo o dia, em meio às nossas diferentes ocupações.
A prática do santo Rosário nos oferece o meio mais fácil de unir
constantemente a oração vocal à oração mental. Todas as vantagens
se encontram nele reunidas: a recitação das mais belas fórmulas de
oração que conhecemos; a meditação dos mistérios de alegria, de dor
e de glória que compõem a vida de Jesus e de Maria; a perseverança
em voltar às mesmas súplicas sem jamais nos cansar, precisamente
porque nossa meditação não esgotará jamais o conteúdo dos misté-
rios, nem nossa alma as graças que deles decorrem.23 Agradeçamos
ao Pe. de Montfort por nos facilitar, por meio de uma grande fideli-
dade à prece do Rosário, a obtenção dessa graça das graças: “O Reino
de Deus, a Sabedoria eterna dentro de nós”. (n. 193.)
_______________

Ó Maria, tornai-nos almas de oração, almas felizes por poderem


recorrer a essa força sobrenatural que está sempre à nossa disposição.

23 Voltaremos com maior detalhe, em nossa terceira Semana, aos mistérios


do Rosário, falando da dependência de Jesus em relação a Maria.

74 J. M. Dayet
Suprimiremos assim, cada vez mais, “a leviandade, a presunção, o orgu-
lho, a falta de profundidade daqueles que cumprem sua tarefa cotidiana,
mesmo nas circunstâncias mais importantes, sem separar um tempo para
refletir, para se recolher, para implorar as luzes do alto, colocar-se em
conexão íntima de confiança, de abandono, de espírito filial, com
a Sabedoria sem limites, de quem tudo depende e sem a qual nada
pode, neste mundo, chegar ao seu termo final.”24
Como se deve lamentar por aqueles que não oram ou que se
contentam com preces furtivas, abreviadas, distraídas, mecânicas,
sem benefícios para sua vida! Desperdiçam esse tempo, que nos é
dado para preparar nossa eternidade. Dir-se-ia que só respiram para
o seu corpo. A alma continua enfraquecida, enquanto poderia estar
transbordante de vida divina. Eles não conhecerão as doçuras e as
bênçãos que Nossa Senhora reserva aos que imploram, sem jamais
se cansarem, a posse da eterna Sabedoria.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 7, 15-29: Vícios a evitar na


vida cristã (continuação).
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XVI: Da necessidade de supor-
tar os defeitos dos outros.

24 Cristiani. Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, I, p. 280.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


75
NONO DIA
A MORTIFICAÇÃO UNIVERSAL

O desejo ardente pela verdadeira Sabedoria desvia para sempre


nossas almas dessa cobiça dos mundanos, unicamente preocupados
com os bens da terra. A oração perseverante nos livra do seu espírito de
soberba, porque nos ajoelha continuamente diante de Deus, conscien-
tes de nossa impotência para obter por nós mesmos o Bem supremo
tão desejado. Por sua vez, a mortificação será nossa defesa mais segura
contra essa febre de prazeres, tão disseminada em nossos dias.
Dediquemo-nos, pois, corajosamente a meditar, com nosso São
Luís Maria de Montfort, sobre a importância da mortificação em nossa
vida de batizados e sobre a extensão que ela deve ter. Que a Santa Vir-
gem nos conceda, então, a abundância dessas alegrias espirituais que
são sempre a herança e a recompensa dos corações verdadeiramente
mortificados.
_______________

I. IMPORTÂNCIA DA MORTIFICAÇÃO. Ela é indispensável


a quem deseja adquirir o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo. “A
Sabedoria, nos diz o Espírito Santo, não se encontra na terra dos que vivem
em delícias (Jó 28, 13), que dão às suas paixões e aos seus sentidos tudo o que
desejam; pois os que estão na carne não podem agradar a Deus, e a sabedoria da
carne é inimiga de Deus.” (Rom 8, 7-8.)
“Todos os que pertencem a Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada,
crucificaram a sua própria carne com os vícios e concupiscências (Gál 5, 24);
trazem sempre em seu corpo a mortificação de Jesus (2Cor 4, 10), negam conti-
nuamente a si mesmos, tomam sua cruz todos os dias (Lc 9, 23); e por fim, estão
mortos e enterrados com Jesus Cristo (Rom 7, 4).
“Eis palavras do Espírito Santo, nos declara Montfort, que mos-
tram de modo mais claro que o dia que para possuir a Sabedora
encarnada, Jesus Cristo, é preciso praticar a mortificação, a renún-
cia ao espírito de gozação de vida daqueles que o mundo considera
como seus.

76 J. M. Dayet
“Não imagineis, prossegue ele, que essa Sabedoria, mais pura que
os raios de sol, entre em uma alma e em um corpo sujos pelos pra-
zeres dos sentidos. Não penseis que ela ofereça seu repouso, sua paz
inefável, aos que amam as companhias e as vaidades do mundo. Não
dou, diz ela, meu maná escondido senão aos que são vitoriosos do mundo e de si
mesmos. (Apoc 2, 17.)
“Essa amável Soberana, embora por sua luz infinita conheça e
distinga todas as coisas em um instante, anda à procura dos que são dignos
dela (Sab 6, 17). Ela procura, porque o número deles é tão pequeno,
que com dificuldade encontra alguns desligados do mundo o bas-
tante, interiores e mortificados o bastante, para serem dignos dela,
dignos de sua Pessoa e de seus tesouros e de sua aliança.” (A.S.E.,
n. 194-195.)
Ó meu Deus, como essas palavras, jorradas do coração de um
santo, devem determinar minha conversão completa ao espírito de
vosso divino Filho! Até o presente, o desejo da única e verdadeira
Sabedoria, assim como a prece necessária para adquiri-la, levaram
minha vontade a uma escolha definitiva; mas desejo e prece não son-
daram o lado vulnerável de minha natureza, não me colocaram frente
a frente à sua corrupção e às suas fraquezas. A mortificação me atinge
no âmago do ser, ela me engaja em uma luta decisiva contra os ins-
tintos e as paixões que o mundo tenta tornar seus cúmplices. Aceitar
a luta, persegui-la generosamente, é vencer o mundo, é me tornar
capaz de aspirar às alegrias da divina Sabedoria.
Recuarei agora? Tornarei inúteis meus precedentes esforços? Por
que persistiria em cultivar em minha natureza, ferida pelo pecado
original e enfraquecida por meus pecados pessoais, as brechas pelas
quais penetra o espírito de gozação de vida do século? Minha própria
segurança não me ordena fechar-lhe todo acesso?...
Para qualquer lado que me volte, a mesma alternativa se apre-
senta sempre: ou o espírito do mundo, ou o espírito de Jesus Cristo...
Posso seguir o caminho largo do prazer... Posso engajar-me também,
seguindo meu divino Mestre, no caminho estreito do sacrifício. O
melhor não é assumir, não é aceitar tudo o que acaba de me dizer São
Luís Maria de Montfort, tal como o expressa à luz e com a força dos
textos inspirados, sem tentar negligenciar o que quer que seja?...

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


77
Ó Maria, modelo dos corações fortes, engajai e mantende meus
passos no caminho que me indica vosso amor, o caminho da divina
Sabedoria.
_______________

II. EXTENSÃO DA MORTIFICAÇÃO. “A Sabedoria não pede,


para se comunicar, uma mortificação pela metade e uma mortificação
de alguns dias; mas uma mortificação universal e contínua, corajosa
e discreta.
“Para ter a Sabedoria, isto é, para possuir Jesus Cristo com seus
tesouros de graças e de virtudes, é preciso deixar realmente os bens
do mundo, como fizeram os apóstolos, os discípulos, os primeiros
cristãos, e como fazem os religiosos: é o meio mais rápido, o melhor,
o mais seguro; ou, ao menos, é preciso desapegar seu coração dos
bens, e possuí-los como sem os possuir, sem se apressar para tê-los,
sem se inquietar para conservá-los, sem se queixar nem se impacien-
tar quando se os perde: o que é muito difícil de executar.”
Muitos cristãos, contudo, conseguem se santificar permanecendo
no mundo. Mas então “não se devem conformar aos modos exteriores
dos mundanos, seja no vestuário, seja nos móveis, seja nas casas, seja
nas refeições e nos outros usos e ações da vida. Nolite conformari huic
saeculo. (Rom 12, 2.) Essa prática é mais necessária do que se pensa”.
Ela põe um freio ao amor do bem-estar e das satisfações naturais.
“Não se deve nem crer nem seguir as falsas máximas do mundo,
como já vimos em nossa meditação do primeiro dia. Não se deve
pensar, falar, agir como os mundanos. Eles têm uma doutrina tão
contrária à da Sabedoria encarnada quanto as trevas à luz e a morte
à vida.
“Examinai bem seus sentimentos e suas palavras: eles pensam
e falam mal de todas as maiores verdades. É verdade que não men-
tem abertamente; mas disfarçam suas mentiras sob a aparência da
verdade; não pensam que estão mentindo, mas mentem ainda assim.
Em geral, não ensinam o pecado abertamente, mas tratam-no como
virtude, ou honestidade, ou de coisa indiferente e de pouca impor-
tância. É nessa sutileza, que o mundo aprendeu com o demônio para

78 J. M. Dayet
cobrir a feiúra do pecado e da mentira, que consiste essa malignidade
da qual fala São João: Mundus totus in maligno positus est (1Jo 5, 19). Por
toda parte o mundo é penetrado por essa malignidade, e agora mais
do que nunca.” É a porta larga aberta a todos os prazeres proibidos.
“Por fim, se se permanece no século, é preciso, tanto quanto pos-
sível, fugir das companhias dos homens, não somente das dos munda-
nos, que são perniciosas ou perigosas, mas até mesmo as das pessoas
devotas, quando são inúteis e fazem perder tempo.” As conversa-
ções se tornam, então, o alimento dessa curiosidade que desenvolve
os gostos terrenos e prejudica grandemente a vida interior. (A.S.E.,
197-200.)
Eis a mais fundamental mortificação cristã: nenhuma aliança,
nenhum compromisso com o espírito do mundo, mesmo permane-
cendo no mundo. “O ponto capital da vida cristã, escrevia o grande
Pontífice Leão XIII, é não ceder à corrupção dos costumes do século,
mas opor-lhe uma luta, uma resistência constante.”
_______________

“Para ter a Sabedoria, continua Montfort, é preciso também


mortificar o corpo, não somente sofrendo pacientemente as enfermi-
dades que o afetam, as injúrias das estações e os golpes que recebe,
nesta vida, das criaturas; mas também procurando-se alguns casti-
gos e mortificações, como os jejuns, as vigílias, e outras austeridades
de santos penitentes. É preciso coragem para isso, porque a carne
é naturalmente idólatra de si mesma; e o mundo vê e rejeita como
inúteis todas as mortificações do corpo. O que ele não diz, o que
ele não faz para desviar da prática das austeridades os santos que,
todos, mais ou menos, reduziram seu corpo à servidão? Eles haviam
feito como um pacto com ele, de não lhe conceder nenhum descanso
neste mundo.”
São esses grandes vitoriosos que devemos imitar, sem dar aten-
ção à zombaria dos mundanos: nossos gostos não lhes são contrá-
rios, nossos hábitos não lhes são opostos? Repitamos-lhes a palavra
de Tertuliano: “O tempo de nossos banquetes e de nossas núpcias
ainda não chegou: não podemos nos regozijar convosco, porque

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


79
vós também não podereis vos regozijar conosco.”25 Virá o tempo de
nosso banquete, pois o Esposo divino nos convidou às suas bodas
eternas; então, os que carregaram em seu corpo a mortificação do
Salvador Jesus entrarão na alegria de sua beatitude infinita, enquanto
os mundanos libertinos serão enviados ao lugar das lágrimas e do
ranger de dentes.
“A fim de que essa mortificação exterior e voluntária seja boa,
importa necessariamente uni-la à mortificação do julgamento e da vontade,
por meio da santa obediência; porque, sem essa obediência, toda mortifi-
cação é manchada pela vontade própria, e geralmente mais agradável
ao demônio do que a Deus. É por isso que não devemos nos entregar
a nenhuma mortificação considerável sem conselho... Aquele que não
quer se arrepender do que fez não deve fazê-lo antes de ter pedido
o parecer de um homem prudente e experimentado. Esse é o grande
conselho que o Espírito Santo nos dá... (Eclo 32, 24.)
“Por meio dessa obediência, o amor-próprio, que tudo estraga, é
repelido; a menor coisa se torna muito meritória; estamos protegidos
da ilusão do demônio.” (A.S.E., n. 196-202.)
São Luís Maria de Montfort nos faz assim entender que a mortifi-
cação interior ou espiritual é superior à mortificação exterior ou cor-
poral, mas uma não é menos necessária que a outra, de outro modo
não chegaremos a triunfar sobre essa cobiça carnal que carregamos
em nós mesmos, e não avançaremos jamais seriamente na virtude. A
mortificação corporal, praticada com essa moderação e essa prudên-
cia, que acaba de nos recomendar nosso guia espiritual, será sempre
nossa força contra a tendência de nossa natureza decaída a buscar o
prazer por toda parte onde podemos encontrá-lo. Afinal, ela nos fará
gozar também dessa paz, dessa alegria, dessa serenidade de alma que
imploramos à Santíssima Virgem no começo de nossa meditação. Os
cristãos mortificados experimentam uma felicidade íntima que jamais
conhecerão os mundanos entregues a toda sorte de prazeres.
_______________

25 Nostrae caenae, nostrae nuptiae nondum sunt. Non possumus cum illis discumbere,
quia nec illi nobiscum. (De spectac., n. 28.)

80 J. M. Dayet
Não é preciso dizer que a mortificação, assim compreendida,
difere da penitência. Esta tem como efeito reparar os pecados que
tivemos a infelicidade de cometer; a mortificação, ao contrário, visa,
antes de tudo, a prevenir as faltas. Sem dúvida, ela pode também
contribuir para nos purificar das faltas passadas; mas seu objetivo
principal é nos precaver contra as do presente e do futuro, dimi-
nuindo em nós o amor do prazer, fonte de todos os nossos pecados,
e mantendo-nos, por isso mesmo, opostos ao espírito do mundo.
Avançamos, assim, com passos seguros rumo a esse fim beatificante
que Montfort não deixa de nos indicar: a posse de Jesus, a Sabedoria
encarnada, com todos os bens que encerra sua divina Pessoa.
Ó Maria, apegai cada vez mais nossos corações a essa felicidade
que não engana e não passa jamais. Se desejamos gozar dela um dia
no Céu, face a face com a eternidade, não devemos, desde agora,
buscar e encontrar um antegozo dela nas intimidades que nos oferece
nossa vida de graça santificadora? Nossa Consagração de escravos
de amor acrescentará também a ela as alegrias de um pertencimento
total e indefectível.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 8, 1-27: Jesus prova sua mis-
são por meio de milagres.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XVIII: Do exemplo dos santos.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


81
DÉCIMO DIA
UMA VERDADEIRA DEVOÇÃO
A MARIA

Eis enfim o maior dos meios que nos propõe São Luís Maria de
Montfort para nos libertar do espírito do mundo e nos fazer adquirir
o espírito de Jesus Cristo: ter uma verdadeira devoção pela Santa Virgem.
Esse é o maior dos meios, porque para praticar os meios de sal-
vação e de santidade, a graça nos é absolutamente necessária; mas
a graça, isto é, a vida divina de Jesus em nós, só nos é comunicada
por Maria.
Consideraremos, pois, por que a graça nos é dada por Maria, e o
quanto importa nos dispor a recebê-la por uma verdadeira devoção a essa
divina Mãe.
Tornemos nossa meditação cada vez mais fervorosa, à medida
que nos aproximamos do fim deste primeiro período de nossos
Exercícios preparatórios à Consagração.

POR QUE A GRAÇA NOS É DADA POR MARIA. Nunca


houve alguém além de Maria, nos diz Montfort, que tenha encontrado
graça diante de Deus para si mesma e para todo o gênero humano,
e que tenha tido o poder de encarnar e pôr no mundo a Sabedoria
Eterna; e ainda hoje somente ela tem, pela ação do Espírito Santo, o
poder de encarná-la, por assim dizer, nos predestinados.
Os patriarcas, os profetas e os santos personagens da antiga
Lei haviam gritado, suspirado e pedido a encarnação da Sabedoria
Eterna; mas ninguém pôde merecê-la. Somente Maria, pela sublimi-
dade de sua virtude, atingiu o trono da Divindade e mereceu esse
benefício infinito.
Ela se tornou, assim, a Mãe, a Senhora e o Trono da Sabedoria
Eterna.

82 J. M. Dayet
1º Ela é sua MÃE digníssima, porque a encarnou e pôs no mundo
como o fruto de suas entranhas, o que lhe repetimos muitas vezes
todos os dias: Bendito o fruto do vosso ventre, Jesus.
Assim, por toda parte onde se encontra Jesus, no Céu ou sobre a
terra, em nossos tabernáculos ou em nossos corações, é verdadeiro
dizer que ele é o fruto de Maria; que somente Maria é a árvore da
vida, e que somente Jesus é o fruto dela.
Aquele que deseja, pois, ter esse fruto admirável em seu coração
deve ter a árvore que o produz: quem deseja ter Jesus deve ter Maria.
2º Maria é a SENHORA da divina Sabedoria. Não porque esteja
acima da divina Sabedoria, verdadeiro Deus, ou que seja igual a ela;
seria uma blasfêmia pensá-lo e dizê-lo; mas porque Deus Filho, a
Sabedoria Eterna, tendo-se submetido perfeitamente a Maria como
à sua Mãe, deu-lhe sobre si mesmo um poder materno e natural que
é incompreensível, e isto não somente durante sua vida sobre a terra,
mas também agora, no Céu, visto que a glória, longe de destruir a
natureza, aperfeiçoa-a no mais alto grau.
Por isso, no Céu, Jesus é, mais do que nunca, filho de Maria, e
Maria, Mãe de Jesus. Nessa qualidade, ela tem poder sobre ele; e ele
está submetido, porque o deseja. O que significa dizer que Maria,
por suas poderosas preces e sua maternidade divina, obtém de Jesus
tudo o que deseja. E o dá a quem quiser. Ela o gera todos os dias nas
almas que deseja.
Oh! Diz ainda nosso Santo, como uma alma que ganhou as boas
graças de Maria é feliz! Ela deve se sentir segura de possuir em breve
a Sabedoria; pois, como Maria ama os que a amam, comunica-lhes
seus bens de mãos cheias, e o bem infinito no qual todos os outros
estão contidos, Jesus, o fruto do seu ventre.
Se é, pois, verdade que Maria é, no sentido indicado, a Senhora
da Sabedoria encarnada, que devemos pensar do poder que ela tem
sobre todas as graças e sobre todos os dons de Deus, e da liberdade
que ela tem de dá-los a quem lhe aprouver? Ela é o tesouro inesgotá-
vel do Senhor e a tesoureira, a dispensadora de todos os seus dons.
É da vontade de Deus que, desde que deu a ela seu Filho, rece-
bamos tudo por sua mão; e não desce nenhum dom celeste sobre a terra sem
passar por ela... É de sua plenitude que todos nós recebemos, e se há

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


83
em nós alguma graça, alguma esperança de salvação, é um bem que
nos vem de Deus por meio dela. Ela é tão senhora dos bens de Deus,
que dá a quem desejar, quanto desejar, quando e da maneira que
desejar, todas as graças de Deus, todas as virtudes de Jesus Cristo e
todos os dons do Espírito Santo, todos os bens da natureza, da graça
e da glória...
Todavia, por mais dons que nos conceda essa soberana e amável
Princesa, ela não se contenta enquanto não nos dá a Sabedoria encar-
nada, seu Filho Jesus; e todos os dias se dedica a buscar almas dignas
dela, a fim de conceder-lha.
3º Além disso, Maria é o TRONO real da Sabedoria Eterna. É em
Maria que essa Sabedoria Eterna, quando de sua encarnação, deixa ver
suas grandezas, descobre seus tesouros e encontra seu contentamento.
Não há lugar, no Céu e sobre a terra, no qual ela faça ver tanta magnifi-
cência e assuma tanta complacência quanto na incomparável Maria.
É por isso que os Pais e os Doutores da Igreja chamam a Santís-
sima Virgem de santuário da Divindade, repouso e contentamento da
Santa Trindade, trono de Deus, cidade de Deus, altar de Deus, tem-
plo de Deus, mundo de Deus e paraíso de Deus. Todos esses louvo-
res são muito verdadeiros para nos fazer compreender as diferentes
maravilhas que o Altíssimo operou em Maria. (A.S.E., n. 203-208.)
_______________

Monfort nos conduz, assim, a esta firme conclusão: “Somente por


intermédio de Maria, pois, se pode obter a Sabedoria”, isto é, a posse da
divina Pessoa de Jesus, com todos os tesouros de graça e de santidade
que ela encerra.
A devoção a Maria nos aparece então, com toda evidência, como o
maior dos meios para atingir o fim que perseguimos em nossos Exer-
cícios espirituais. Sem Jesus e seus tesouros de vida divina não pode-
mos nada fazer, não podemos ganhar qualquer mérito; e é somente
Maria que nos dá Jesus. Ela o deu ao mundo, e o dá a cada alma
em particular. Devemos, pois, amá-la, recorrer a ela, testemunhar-lhe
uma verdadeira devoção e permitir-lhe assim exercer a nosso respeito
sua missão de graça.

84 J. M. Dayet
II

O QUE SE DEVE ENTENDER COMO VERDADEIRA


DEVOÇÃO A MARIA. A verdadeira devoção a Maria se reconhece
nas qualidades seguintes: ela é interior, terna, constante e santa. Montfort
tem o cuidado de nos indicar essas qualidades antes de avançar, para
nos precaver contra as falsas devoções que correm o mundo, e das
quais o demônio se serve para enganar e perder muitas almas. Seria
funesto para nós, de fato, visar a Perfeita Consagração a Maria, se nossa
devoção não apresentasse as qualidades de base, que nos serão sem-
pre luz e força.
Antes de tudo, a verdadeira devoção a Maria é INTERIOR, o
que quer dizer que ela parte de nosso espírito e de nosso coração: de
nosso espírito que formou para si mesmo – como acabamos de ver –
uma alta ideia das grandezas de Maria; de nosso coração, que tem por
ela um amor inabalável. A inteligência e a vontade são conquistadas, a
alma inteira lhe é devotada. Consequentemente, esforçamo-nos para
manifestar externamente essa estima e esse amor por meio de diver-
sas práticas de piedade deixadas à iniciativa de cada um, e também
por um zelo diligente em aproveitar todas as ocasiões de fazer conhe-
cer a Santa Virgem e de propagar sua devoção ao redor de si.
Entre as práticas de piedade, apegar-nos-emos, sobretudo, ao
santo Rosário que Montfort, aqui mesmo, já nos recomendou como
o meio mais poderoso de atrair a Sabedoria Eterna para dentro de
nós.26 Vigiaremos para dizê-lo com fervor e meditação dos mistérios,
lutando incessantemente contra a rotina e a indiferença. Separar-nos-
emos assim claramente desses devotos exteriores que descreve nosso
santo em seu Tratado da Verdadeira Devoção (n. 96). Eles também acei-
tam de bom grado as práticas habituais de devoção a Maria, mas
experimentam somente seu exterior. Tudo o que se vê os atrai. Sua
sensibilidade assim se satisfaz. Não vão além disso. Falta-lhes o espí-
rito interior.
Vós os vedes “recitar muitos rosários apressadamente, ouvir
várias missas sem atenção, ir às procissões sem devoção, entrarem

26 Ver nosso 8º dia: A prece contínua.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


85
em todas as confrarias sem correção de sua vida, sem violência às
suas paixões e sem imitação das virtudes da Santa Virgem”. Assim
os observais hoje, assim os revereis mais tarde. A alma não retirou
qualquer fruto de práticas tão santificadoras em si mesmas.
“O mundo, observa judiciosamente o Pe. de Montfort, está cheio
dessa espécie de devotos exteriores.” Reconhecemo-los por seu espí-
rito de curiosidade e de difamação. Pois “não há gente mais crítica das
pessoas de oração, que se dedicam ao interior como ao essencial”.
_______________

A verdadeira devoção a Maria é TERNA, isto é, cheia de con-


fiança em Maria, como a de um filho em sua boa Mãe. A alma recorre
então à sua intercessão com grande simplicidade, em todas as suas
necessidades, tanto as do corpo quanto as do espírito. Ela implora
por sua ajuda, sua assistência em todo tempo, em todo lugar e em
todas as coisas: “em suas dúvidas, para ser iluminada; em seus desvarios,
para ser corrigida; em suas tentações, para ser fortificada; em suas que-
das, para ser reerguida; em seus desencorajamentos, para ser encorajada;
em suas inquietações morais, para ser livre delas; em suas cruzes, trabalhos
e problemas da vida, para ser consolada” (V. D., n. 107).
Maria é seu recurso ordinário, e jamais aflora o medo de importu-
nar essa boa Mãe ou de desagradar a Jesus Cristo. Admirável simpli-
cidade, ela é o sinal de uma alma que ama verdadeiramente. Como, por
isso, nos aparece diferente e censurável a conduta dos que têm sempre
medo de fazer demais pela Santa Virgem, como se a Santa Virgem
retivesse consigo mesma as homenagens que lhe dirigimos; como se o
maior desejo de Maria não fosse nos ver amar cada vez mais seu divino
Filho. Que eles compreendam, pois, também, que Jesus Cristo honrou
sua Mãe, mais do que nós mesmos a poderemos honrar.
_______________

A verdadeira devoção a Maria é CONSTANTE. Ela firma a alma


no bem, leva-a a não deixar facilmente suas práticas de piedade. Tor-
na-a corajosa para se opor ao mundo, em seus modos e suas máximas;

86 J. M. Dayet
à carne, em seus tédios e suas paixões; e ao diabo, em suas tentações; de
modo que uma pessoa verdadeiramente devota a Maria não é incons-
tante nem melancólica.
Não que ela não caia algumas vezes, ou que não tenha nada a
sofrer na sensibilidade de sua devoção. Mas se ela cai, reergue-se ime-
diatamente, estendendo a mão à sua boa Mãe; se ela perde o gosto
e o fervor sensível, não sofre por isso, pois em sua inteligência a fé
continua a projetar luzes sobre as grandezas de Maria e sobre a soli-
dez de sua devoção. (V.D., n. 109.)
Ela luta assim, e de forma meritória, contra a leviandade de tan-
tas pobres pessoas no mundo, que não amam a Santa Virgem senão
por intervalos e em repentes. A momentos de fervor sucedem dias
de mornidão; a compromissos e promessas de fidelidade não corres-
ponde nenhum esforço louvável para mantê-los. Mais vale prome-
ter menos, e permanecer fiel; mais vale se contentar com as práticas
essenciais, e nunca omiti-las, salvo caso de impossibilidade.
_______________

Por fim, a verdadeira devoção a Maria é SANTA, o que significa


que ela leva uma alma a evitar o pecado e a imitar as virtudes da San-
tíssima Virgem. Evitar o pecado não basta, é o lado negativo da vida
cristã. É preciso, sobretudo, dedicar-se a manifestar em sua conduta
as virtudes tão recomendadas por Nosso Senhor em seu Evangelho.
Essas virtudes, encontramo-las todas no Coração de Maria, onde elas
se nos tornam amáveis, atraentes, acessíveis, porque praticadas por
uma pessoa humana, irmã de nossas almas, que andou em nossos
caminhos e que, agora, facilita nosso acesso ao Cristo Jesus.
O Pe. de Montfort enumera, no n. 108 de seu Tratado, as dez prin-
cipais virtudes de Nossa Senhora. O que quer dizer que não deve-
mos negligenciar nenhuma delas. Mas, para começar, poderemos
nos dedicar a imitar especialmente sua humildade profunda, virtude
básica que nada substitui (voltaremos a esse tema em nossa primeira
Semana); depois, sua obediência inabalável, sua paciência heroica, sua
doçura angelical. Quando essas virtudes aparecem em uma alma, as

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


87
outras estão também em bom caminho, e a solidez da devoção se
afirma cada vez mais.
Como estamos longe, então, desses devotos presunçosos que Mon-
tfort assinala e estigmatiza como sendo os piores de todos. Pecadores
entregues às suas paixões ou amantes do mundo, eles escondem –
sob a aparência de algumas práticas de devoção em relação a Maria
– faltas graves de dormem em paz em seus maus costumes. A Santa
Virgem, dizem, não os deixará morrer sem confissão; eles não serão
condenados, desde que continuem rogando a ela. Esperam evitar
assim a condenação, continuando a cometer o pecado.
São os piores falsos devotos, porque neles a vontade é fundamen-
talmente má. Não se trata, observemo-lo bem, de pobres pecadores,
vítimas de sua fraqueza, deplorando suas quedas e recorrendo a Maria
para se reerguer e sair desse miserável estado. Trata-se de pecadores
cometendo conscientemente o pecado mortal, e negando toda corre-
ção enquanto lhes sorrir a vida presente.
“Admito, reconhece Montfort, que para ser verdadeiramente
devoto à Santa Virgem não é absolutamente necessário ser tão santo
a ponto de evitar todo pecado, embora isso fosse desejável; mas é
preciso ao menos (e que se observe bem o que vou dizer) estar em
uma sincera resolução de evitar pelo menos todo pecado mortal; ser
duro consigo mesmo para evitar o pecado; participar das confrarias,
recitar o terço, o rosário ou outras orações, jejuar no sábado, etc...
“Isso é maravilhosamente útil à conversão de um pecador,
mesmo endurecido; e se meu leitor é assim, mesmo que tenha um
pé no abismo, assim o aconselho; mas com a condição de que não
pratique essas boas obras senão com a intenção de obter de Deus,
pela intercessão da Santa Virgem, a graça da contrição e do perdão
de seus pecados, e de vencer seus maus hábitos, e não para permane-
cer tranquilamente no estado do pecado contra os remorsos de sua
consciência, o exemplo de Jesus Cristo e dos santos, e as máximas do
Evangelho.” (V. D., 99, 100.)
Pois “nada é tão condenável, no cristianismo, quanto essa pre-
sunção diabólica. Podemos dizer com verdade que amamos e hon-
ramos a Santa Virgem quando, com nossos pecados, perfuramos,
traspassamos, crucificamos e ultrajamos Jesus Cristo, seu Filho? E se

88 J. M. Dayet
Maria tinha para si como uma lei salvar por sua misericórdia esse tipo
de pessoas, ela autorizaria o crime, e ajudaria a crucificar e ultrajar seu
filho; quem ousaria jamais pensá-lo?
“Digo que abusar assim da devoção à Santa Virgem é cometer
um horrível sacrilégio. Depois do sacrilégio da comunhão indigna, é
o maior e o menos perdoável.” (n. 98.)
Grande advertência de um Santo que nos põe continuamente
atentos contra o espírito do mundo, insuflado por Satanás até na
devoção a Maria. “O diabo, como um falso negociador e um enga-
nador sutil e experimentado, tanto enganou e condenou almas por
uma falsa devoção à Santíssima Virgem, que se serve todos os dias de
sua experiência diabólica para perder muitos outros, entretendo-os e
adormecendo-os no pecado, sob o pretexto de algumas preces mal
ditas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira.” (n. 90.)
_______________

Estaremos ao abrigo de todas as suas armadilhas, lembrando-nos


frequentemente do que Deus fez pela Santíssima Virgem: como a
escolheu para ser a Mãe e a Senhora de seu divino Filho, e o Trono de
onde quer irradiar sobre o mundo todas as graças da redenção. Ao
contemplar Maria tão grande no pensamento e no coração de Deus,
desejaremos que ela seja grande também na devoção verdadeira que
lhe dedicamos, e que veremos desabrochar, no termo destes Exercí-
cios, na Perfeita Consagração de São Luís Maria de Montfort.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 9, 1-13: Cura de um paralí-


tico e vocação de Mateus, o publicano.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XXIII: Da meditação sobre a
morte.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


89
DÉCIMO PRIMEIRO DIA
A INIMIZADE
ENTRE SATANÁS E MARIA

Sendo nossa devoção à Santa Virgem o maior, o mais poderoso


meio de atrair às nossas almas Jesus Cristo, a Sabedoria eterna e
encarnada, ela é também, por isso mesmo, o meio mais radical de
nos libertar do espírito do mundo, sempre em viva oposição com o
do Evangelho.
É por isso que convém – ao terminar este período preliminar de
nossos Exercícios espirituais – fixar nossa meditação sobre a inimi-
zade irreconciliável, desejada por Deus, entre a Virgem e Satanás, o
Príncipe do mundo. Essa mesma inimizade deverá ser encontrada em
todos os que desejam ser fiéis escravos de amor de Maria.
Ao mesmo tempo, uma luz mais viva se projetará sobre as promessas
de nosso santo Batismo, e nos convidará a renová-las com um acréscimo
de fervor. Renunciar a Satanás e às suas seduções, nos devolver para sem-
pre a Jesus por intermédio de Maria, como conciliar melhor nossas almas
com o que constitui o fundamento da vida cristã? Atingimos plenamente
o objetivo de nosso trabalho dos doze dias preliminares.
Detenhamo-nos hoje em considerar a inimizade que existe entre
Satanás e Maria; a inimizade que nos revela a sentença proclamada
por Deus no paraíso terrestre contra a serpente tentadora. Veremos
como, em virtude dessa sentença, Maria foi inteiramente subtraída do
poder do demônio: ele nunca pôde e não poderá prejudicá-la. Por outro
lado, a Virgem será sempre onipotente face ao seu ódio de condenado.
_______________

I – MARIA, INTEIRAMENTE SUBTRAÍDA DO PODER DE


SATANÁS. Adão e Eva, criados no estado de inocência ou de justiça
original, gozavam de sua felicidade no jardim do Éden, onde Deus os
havia colocado. Para provar sua fidelidade, o Senhor havia estabelecido
uma proibição; e nossos primeiros pais se submetiam docilmente a ela.

90 J. M. Dayet
Foi então que interveio o tentador. Satanás, o Serafim decaído,
ciumento da felicidade desses dois seres fiéis a Deus, começou por
atacar a mulher, como a uma presa mais fácil de agarrar. Oculto sob
a forma de uma serpente, o mais ardiloso de todos os animais, ele
deslizou, ondeando em meio às folhagens, e se aproximou de Eva,
para lhe fazer ouvir palavras sedutoras e mentirosas. A fraqueza de
Eva foi entabular com ele a conversação que conhecemos que se
termina com uma dupla desobediência: a sua primeiro, depois a de
Adão. A felicidade do paraíso terrestre findava. Nossos primeiros
pais se encontravam diante de Deus, tremendo de medo, corando de
vergonha, querendo apenas esconder-se.
Deus interroga os culpados. Adão confessa, mas atribui a culpa à
mulher. Eva também confessa, e faz recair uma parte de sua respon-
sabilidade sobre a serpente. “O Senhor Deus disse então à serpente:
porque fizeste isto, és maldita entre os animais domésticos e as feras
dos campos; rastejarás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias
de tua vida. “Porei inimizades entre ti e a Mulher, e entre a tua posteridade e
a posteridade dela. Ela (a descendência ou posteridade dessa Mulher) te
pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar.” (Gên 3, 13-15.)
Essa sentença divina compreende duas partes bem distintas. A
primeira enuncia um castigo aflitivo contra a serpente-animal, ferida
em si mesma como instrumento e figura do tentador: “És maldita...”.
Tu serás esse ser rastejante que inspira horror e repulsa.27 A segunda
expõe uma pena vindicativa contra a Serpente infernal, Satanás, o ini-
migo de Deus, que subordinou a si o corpo de uma serpente real para
falar a Eva e fazê-la desobedecer ao seu Criador e Santificador: “Porei
inimizades entre ti e a Mulher...”
Porque te serviste de Eva para seduzir Adão e tentar arruinar
minha obra de graça, eu também me servirei da Mulher e de sua

27 A serpente já rastejava antes: isso está em sua natureza; mas Deus pro-
mulga que ela será, por sua reptação, o símbolo de Satanás. É assim que
o arco-íris, fenômeno natural, é apresentado pela Bíblia como criado
por Deus após o dilúvio, o que quer dizer que ele será doravante o Sinal
da Aliança entre Deus e a terra. (Ver Bonnefoy, O Mistério de Maria segun-
do o Protoevangelho e o Apocalipse, p. 49-50.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


91
descendência para o meu plano de revanche. É por isso que esta-
beleço uma inimizade entre ti, demônio, e a Mulher por excelência,
desde já predestinada, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a
Virgem Maria. Essa inimizade é minha obra, minha obra pessoal. Eu
a estabeleço e a manterei: ela é santa, absoluta, incondicional.
“Maria será, pois, a nascida inimiga de Satanás. Ela ainda não existe
e Deus já a predestinou a esse papel. Ela começará a desempenhá-lo
no instante mesmo em que começar a existir. Ela será a inimiga de
Satanás desde o momento de sua concepção, que contrastará, assim,
com a dos outros descendentes de Adão e Eva. Eles serão concebi-
dos no pecado. A concepção de Maria será imaculada.”28 A Virgem entrará
na existência sob o signo da inimizade estabelecida por Deus.
Concebida imaculada, Maria será, além disso, confirmada em graça,
isto é, preservada de todo pecado, mesmo venial, ao abrigo de toda
fraqueza. Ela será inteiramente subtraída aos ataques do demônio.
Satanás nunca poderá fazer nada contra ela, nem mesmo levá-la a
cometer a menor das faltas, a mais ligeira desobediência. Que con-
traste com o poder que ele teve sobre Eva!
Maria será, sobretudo, a Mãe Daquele que esmagará a cabeça da
Serpente infernal, a Mãe do grande vencedor de Satanás: “Ponho
uma inimizade entre ti, Satanás, e a Mulher que virá; entre tua raça
e sua descendência. Esta – a descendência dessa Mulher – te esma-
gará a cabeça...”, isto é, arruinará teu império, destruirá teu poder
de “Chefe”, de “Príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). O que só pode
dizer respeito, em primeiro lugar, ao Cristo Jesus, o misericordioso
Salvador do gênero humano.
Maria será, pois, a Mãe do Redentor, e, com seu Filho, a vencedora
de Satanás. Ela será sua mãe e sua colaboradora na obra divina de des-
forra. “Eva havia colaborado ativamente em nossa perda, Maria cola-
borará não menos ativamente em nossa salvação. Mas, assim como
a desobediência de Eva não consumou nossa perda, a obediência de
Maria não rematará nossa salvação: ambas agem secundariamente.
Ao grande responsável que foi Adão, Deus oporá o grande Fiador, o

28 Bonnefoy, O. F. M., O Mistério de Maria segundo o Protoevangelho e o Apoca-


lipse, p. 60.

92 J. M. Dayet
Cristo: ipse conteret caput tuum.”29 É ele que te esmagará a cabeça, que
tirará de ti com grande luta o benefício de tua vitória sobre nossos
primeiros pais.
A Vulgata utilizou o pronome feminino ipsa, atribuindo assim a
vitória à Mulher, mais do que à sua descendência; mas, no texto hebreu,
o pronome é masculino, assim como na Septuaginta e na versão siría-
ca.30 É o Cristo, o Rebento por excelência da Mulher, que será o grande
vitorioso de Satanás, e Maria será associada, em qualidade de Corredentora,
à vitória Daquele que representará de modo eminente sua posteri-
dade.
Essa interpretação, aliás, ajuda-nos a compreender as últimas pala-
vras da sentença divina. “O Rebento da Mulher te esmagará a cabeça, e
tu morderás o seu calcanhar.” Diferentemente de sua Mãe, o Salvador, com
efeito, será exposto à mordedura da Serpente infernal, isto é, às embos-
cadas que lhe preparará esta: pouco tempo depois de seu nascimento,
ele deverá sofrer a fuga ao Egito para escapar do massacre prescrito
por Herodes, instrumento do demônio; logo após sua entrada na vida
pública, será tentado no deserto; ao longo de seus anos de apostolado,
sofrerá as perseguições dos fariseus, “raça de víboras”; e finalmente, na
hora do poder das trevas, sofrerá a Paixão e a morte sobre a Cruz. Foi
assim que o Cristo foi mordido no calcanhar, na parte inferior de si
mesmo, em sua humanidade, mais exatamente em seu corpo: ele pagou
sua vitória com suas feridas e com sua vida corporal.
Por outro lado, Maria Corredentora será isenta de toda mordedura
da Serpente infernal: não sofrerá nem as tentações provenientes de
sua astúcia, nem as perseguições dos inimigos de seu divino Filho.
“Em parte alguma se vê que os homens tenham atacado diretamente
sua pessoa. Sobre o Calvário, nem antes nem depois do Cenáculo,
ela é o objeto, parece-nos, de qualquer zombaria, de qualquer mau

29 Obra citada, p. 74.


30 O próprio São Jerônimo reconhecia que a versão original é ipse, con-
servada em diversos manuscritos antigos da Vulgata. Um copista, não
compreendendo a relação de ipse (ou ipsum) com semen, teria escrito ipsa.
O sentido, aliás, não é essencialmente diferente. (Cf. a Bíblia de Cram-
pon, nota, Gênesis 3, 15.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


93
tratamento.”31 As primeiras perseguições contra a Igreja também não
a atingirão. Ela viverá tranquilamente junto a São João, como em um
lugar de retiro e de contemplação, como em um “deserto” (Apoc 12, 6
e 14), a ponto de seu nome desaparecer completamente das Escritu-
ras a partir do Pentecostes.
Se se deve admitir, apoiando-se sobre a crença universal, que
Maria tenha conhecido a morte corporal, essa morte não podia ser
senão um êxtase de amor, uma saída muito doce da alma, uma dormi-
ção tranquila seguida de um pronto despertar; em resumo, uma morte
que não comportou nenhum caráter penal, caso único na história do
mundo. Pois não somente a morte dos pecadores, mas até a dos santos,
e sobretudo a do Cristo, se revestem desse caráter.
Satanás não pôde, então, prejudicar Maria de qualquer maneira. Sem
dúvida, a Virgem sofreu durante a vida do Salvador, e principalmente ao
pé da Cruz. Ela sofreu, não em seu corpo, mas em sua alma, como
lho havia predito o santo ancião Simeão. Ela sofreu com seu Filho
e em seu Filho. Aos méritos da dolorosa “agonia”, ela acrescentava
os de sua Compaixão. Seus sofrimentos, unidos às suas preces, con-
tribuíram para nossa Redenção, isto é, para a derrota de Satanás. Ela
se mostrou, assim, sua inimiga ativa, e sem jamais sofrer a menor
mordedura.
Admiremos esse triunfo de Deus em seu plano de desforra.
Admiremos a nova Eva, inteiramente subtraída ao poder do tenta-
dor, às ciladas da “antiga serpente, que se chama demônio e satanás”
(Apoc 12, 9), “por inveja de quem a morte entrou no mundo” (Sab
2, 24). Com Maria vitoriosa, a vida nos foi devolvida, e a vitória é
assegurada a nós, pois se o demônio não pode nada contra a Virgem,
por seu turno a Virgem pode tudo contra ele.
_______________

II. – MARIA, ONIPOTENTE CONTRA SATANÁS. Sua oni-


potência aparece desde o Cenáculo, berço da Igreja nascente. A Mãe
de Jesus ali está, no meio dos apóstolos e dos discípulos; e ela ora,

31 Obra citada, p. 76.

94 J. M. Dayet
ela chama sobre todos eles a vinda do Espírito Santo. São eles que
vão começar a conquista das almas, iniciar a conversão do mundo
pagão, arrancar de Satanás província por província. E enquanto ocor-
rem seus primeiros combates, enquanto eles fundam e multiplicam
as cristandades, enquanto se espalham sobre todos os caminhos do
imenso império romano, Maria continua a orar na solidão e no retiro.
Seu divino Filho a deixa um certo número de anos sobre a terra para
a consolação dos primeiros batizados, dos primeiros perseguidos, dos
primeiros mártires: todos extraem sua força e seu ardor dessa oração
de Maria, que eles sabem estar ainda presente entre eles.
A Igreja primitiva guardou de tal maneira essa lembrança que, nas
pinturas da Catacumbas e nos afrescos de suas primeiras Basílicas,
Maria não será representada senão como a grande Orante, as mãos
sempre levantadas ao Céu. Qual devia ser a raiva de Satanás contra
essa contínua e onipotente intercessão da Virgem, no tempo em que
começava a desabar seu império terrestre!
No Céu de sua triunfante Assunção, Maria permanece ainda
muito mais onipotente em suas súplicas: omnipotentia supplex. Ela não
cessa de obter e distribuir para nós todas as graças da Redenção. Sua
missão muito precisa é povoar o Paraíso dos eleitos, encher todos os
lugares da Corte celeste. “Deus lhe deu, escreve Montfort, o poder e a
incumbência de encher de santos os tronos vazios dos quais os anjos apóstatas caí-
ram por soberba.” (V. D., n. 28.) Que nova e estrondosa desforra sobre
Lúcifer! Ela assegura não somente a simples entrada dos eleitos na
glória, mas também sua colocação no seio das hierarquias angelicais.
“Como recompensa de sua humildade”, Maria foi estabelecida Sobe-
rana do Reino celeste, com o poder e a missão de devolver a Deus a
glória que os anjos rebeldes lhe roubaram.
Nessa missão que deve durar até o fim dos séculos, os anjos que
permaneceram fiéis estão a seu serviço e, mais do que todos eles,
São Miguel, o vencedor de Lúcifer. Esse Chefe e Príncipe da Milícia
celestial será o mais zeloso em executar suas ordens, seja nos grandes
combates da Igreja, onde Maria aparecerá sempre como a extermi-
nadora das heresias, seja nas lutas íntimas em que cada cristão deve se
engajar no curso de sua vida, contra o demônio, e sobretudo na hora
decisiva da morte, onde Maria não pede senão que seja justificado

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


95
seu título consolador de “Porta do Céu”, isto é, que seja salvo o maior
número possível de almas.
_______________

É por isso que sua onipotência se manifesta sobretudo em relação


aos pecadores. Coisa maravilhosa: Maria, a inimiga irreconciliável de
Satanás, não será a inimiga daqueles que Satanás possui e detém no
pecado. Ela será, ao contrário, seu Refúgio, a Esperança dos desespe-
rados, como a chama Santo Efrém. Ela os arrancará do inferno, se
consentirem invocá-la e implorar seu perdão; pois nunca se dirá que
algum daqueles que recorreram à sua misericórdia tenha sido aban-
donado ou rejeitado.
Compreendemos, então, o ódio que Satanás continua a ter por
ela, seu furor contra suas milagrosas intervenções, contra Lourdes, La
Salette, Fátima, contra todas as suas aparições. Pois é fato que estas se
manifestam sempre em favor dos pecadores e suscitam incontáveis
conversões.
Se Nossa Senhora de Fátima chegou ao ponto de mostrar aos
seus três filhos privilegiados uma visão do inferno, esse é o sinal de
que ela deseja, com toda a força de seu poder, evitar a desgraça da
danação eterna a tantas pobres almas, que o inferno – mais furioso
do que nunca – se obstina a perder. E se ela acaba de percorrer como
Peregrina o mundo inteiro – mesmo o mundo hindu e muçulmano –,
semeando em toda parte graças por onde passa, esse é também um
sinal manifesto de sua luta contra Satanás e de sua incansável miseri-
córdia por aqueles que este acredita possuir para sempre.
Não se pode negar que o comunismo seja hoje a mais mons-
truosa heresia que já houve. Ele é a negação absoluta de Deus e de
todos os seus mandamentos. É uma empresa de ateísmo universal.
Por meio de seus adeptos, que não admitem senão a matéria e a vida
presente, ele se dedica a tornar a terra pagã outra vez. Seu sucesso é
fulminante: um quarto da população do globo está em seu poder. Na
Encíclica Divini Redemptoris, Pio XI declarava que a difusão tão rápida
das ideias comunistas através do mundo só pode ser explicada por
“uma propaganda verdadeiramente diabólica”.

96 J. M. Dayet
Ora, eis Maria aparecendo em Fátima e denunciando a Rússia
como o lar do comunismo. Ao mesmo tempo, ela solicita preces e
atos pela conversão dessa infeliz nação, governada pelos Sem-Deus.
Ela promete o triunfo final de seu Coração imaculado, a cessação das
guerras e perseguições, se a obedecermos, se abandonarmos o espí-
rito do mundo para retornar ao espírito do Evangelho. Vemo-la, pois,
levantar-se novamente contra Satanás e suas legiões infernais.
Por meio da solene Definição do dogma de sua Assunção cor-
poral, sobrevivendo ao momento em que Satanás pensava possuir
sua vitória, ela esmaga com um só golpe todos os erros comunistas.
Ela afirma diante do Universo a diferença entre a alma e o corpo, a
sobrevivência da alma, a existência de uma outra vida, a participação
do corpo na felicidade da alma, a pessoa humana reconstituída em
dignidade, a vida eterna com Deus.
Mais do que isso, para mostrar o laço que ela quis estabelecer
entre essa Definição solene e sua Mensagem de Fátima, por quatro
vezes: nos dias 30 e 31 de outubro de 1950, no dia 1º de novembro
(dia da Definição) e no dia 8 de novembro, dia oitavo, ela renova para
Pio XII somente, nos jardins do Vaticano, o grande milagre do sol, sinal
da autenticidade de sua Mensagem de 1917. Como poderia mostrar-
nos de modo mais evidente sua onipotência de Inimiga de Satanás?
Por fim, a Santa Virgem havia pedido que a Rússia fosse especial-
mente consagrada ao seu Coração imaculado; e toda a catolicidade
estremeceu de alegria diante do gesto magnífico do Soberano Pontí-
fice, no dia 7 de julho de 1952. Por meio desse gesto, Maria atinge o
comunismo em seu ponto crucial, pois a conversão da Rússia, anun-
ciada por ela, acarretará certamente a conversão das outras nações
que gemem sob o jugo infernal.
Esse será seu triunfo e seu reino de paz. Assim vemos se veri-
ficar o que escrevia Montfort em seu Tratado da Verdadeira Devoção:
“Deus formou apenas uma inimizade, mas irreconciliável, que durará
e aumentará até o fim: é entre Maria, sua digna Mãe, e o diabo; entre
os filhos e servos da Santa Virgem, e os filhos e cúmplices de Lúci-
fer; de modo que a mais terrível das inimigas que Deus estabeleceu
contra o diabo é Maria, sua santa Mãe.” (n. 52.)
_______________

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


97
Que esta meditação nos ajude a compreender o quanto devemos
nós também permanecer, por toda a nossa vida, seguindo os passos
da Virgem, os inimigos declarados de Satanás. Ele tem o poder de
nos tentar, é verdade; mas não o de nos fazer sucumbir. Podemos
opor-lhe a energia de nossa vontade sustentada pela graça.
No dia de nosso batismo, as preces sacramentais da Igreja expul-
saram de nossa alma o demônio que nela se encontrava instalado em
consequência do pecado original. “Sai desta criança, disse-lhe o sacer-
dote, e dá lugar ao Espírito Santo.” Pela virtude dessa ordem, Satanás
teve de sair, e o Espírito Santo entrou com a intenção de ali sempre
permanecer.
Se chegamos a cometer um pecado mortal, revertemos essa forte
palavra do sacerdote; somos nós, então, que dizemos ao Espírito
Santo: “Sai de minha casa, e dá de novo lugar ao demônio.” O demô-
nio retorna, e faz estragos.
Reflitamos no sofrimento que a Santa Virgem experimenta cada
vez que um batizado pactua assim com o demônio. E quanto mais se
se trata de uma alma, escrava de Maria, que consente se tornar outra
vez escrava de Satanás! Sem dúvida, há o remédio do sacramento da
Penitência, se a alma pecadora apresenta a Deus as disposições dese-
jadas; por outro lado, é santificador poupar a si mesmo dos remorsos
de uma consciência manchada e de uma prestação de contas mais
penosa no dia do julgamento.
Saibamos empregar para nosso proveito a onipotência da Santa
Virgem contra o demônio tentador, a fim de que ele não possa nos
prejudicar de modo algum. Avançaremos, então, na fidelidade às pro-
messas de nosso Batismo e de nossa Consagração, sobre o caminho
que conduz à eterna recompensa.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 9, 14-17: Por que os discípu-


los de Jesus não jejuam.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XXIV: Do julgamento e dos
castigos do pecado.

98 J. M. Dayet
DÉCIMO SEGUNDO DIA
A INIMIZADE
ENTRE A RAÇA DE SATANÁS
E A DESCENDÊNCIA DE MARIA

Após a queda de nossos primeiros pais, Deus não se contentou em


estabelecer uma inimizade total, irremissível, entre Satanás, o demônio
tentador, e Maria, a Mulher que estará intimamente associada à obra de
reparação. Ele estabeleceu, de modo também formal, a mesma inimi-
zade entre a raça de Satanás e a descendência da Virgem.
A raça de Satanás é formada por todos os homens perversos que
imitam sua conduta de revoltado. Quanto à descendência de Maria,
compreende Jesus, seu Filho por natureza, e todos os seus filhos por
graça, os predestinados, membros do Corpo místico do Cristo.
Foi essa descendência de Maria que recebeu a missão de esmagar
a cabeça da serpente infernal, como vimos em nossa meditação do
11º dia. Jesus, Verbo encarnado, se manifestou, no curso de sua exis-
tência terrena, como o grande Vencedor de Satanás e dos aliados de
Satanás. Mas estes não se desarmaram por causa disso. Até o fim do
mundo, não deixarão de atacar e de perseguir todos os que perten-
cem à descendência espiritual de Maria. Os justos terão, pois, de lutar
eles também, e de vencer.
Consideraremos primeiro como o mundo está dividido em dois
campos adversos. Compreenderemos melhor, em seguida, o quanto
devemos nos felicitar por estarmos do lado dos escravos da Virgem, na
certeza de nossa vitória sobre os escravos de Satanás.

OS DOIS CAMPOS ADVERSOS. É um fato inegável que o


mundo se encontra dividido em dois grupos: de um lado, Satanás
e a raça dos maus; de outro, Maria e sua descendência. À cidade do
mal, Deus – por meio de sua sentença do Paraíso terrestre – opôs a
cidade do bem.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


99
Essa cidade do mal já existia, na pessoa de Lúcifer e de seus
anjos rebeldes. Sabemos que os espíritos angelicais, no momento de
sua criação, foram submetidos a uma prova, a fim de merecerem a
entrada no Céu da visão beatífica. Em um desígnio de amor, Deus
lhes revelava o mistério da Encarnação de seu Filho. Esse Filho, pre-
destinado a ser seu Rei, “não lhes era apresentado em sua glória,
nem mesmo na plenitude de sua vida humana, mas na humilhação:
era uma criança, uma criança no ventre de sua mãe”. (Apoc 12, 2).32
Seguindo o orgulhoso Lúcifer, alguns não querem reconhecê-lo e se
levantam contra ele. Os outros, sob a liderança de Miguel, tomam sua
defesa e o adoram.
Houve um grande combate entre eles, mas o dragão vermelho e seus
anjos não puderam vencer, e até mesmo seu lugar foi tirado do Céu.
Assim, foi em torno da Virgem-Mãe do Verbo encarnado que
se fez a eterna partilha dos bons e dos maus, do bem e do mal, na
criação. O inferno nasceu dessa revolta dos maus anjos, logo trans-
formados em demônios. Compreendemos, por esse fato, seu ódio
contra a Virgem e contra sua descendência espiritual.
_______________

No Paraíso terrestre, o sinal mariano é levantado novamente,


colocando-se, desta vez, diante da humanidade pecadora. É preciso
escolher entre a Mulher corredentora e o demônio, corruptor das
almas; entre Maria ou Satanás. Não há meio-termo. Os homens se
dividirão em dois campos, com os anjos: uns aceitarão o misericor-
dioso plano da redenção, outros rejeitarão essa imensa graça que lhes
é oferecida. Os primeiros se colocarão do lado da Virgem; os segun-
dos, por soberba, ficarão do lado de Satanás, o inimigo da Mulher e
de sua descendência. Haverá os bons e os maus, os obedientes e os
rebeldes, os eleitos e os reprovados. Haverá os escravos de Maria e
os escravos de Satanás.
Entre uns e outros, nenhuma aliança será possível. “Deus esta-
beleceu, diz Montfort, inimizades, antipatias, ódios secretos, entre os

32 Ver Bonnefoy, O mistério de Maria segundo o Protoevangelho e o Apocalipse,


p. 111.

100 J. M. Dayet
verdadeiros filhos e servos da Santa Virgem e os filhos e escravos do
demônio. Eles não se amam mutuamente, não têm correspondência
interior uns com os outros.
“Os Filhos de Belial, os escravos de Satanás, os amigos do mundo
(pois é a mesma coisa), sempre perseguiram até aqui e perseguirão
mais do que nunca aqueles e aquelas que pertencem à Santíssima
Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú seu
irmão Jacó, que são as figuras dos reprovados e dos predestinados.
“Mas a humilde Maria terá sempre a vitória sobre esse orgulhoso,
e tão grande, que esmagará a cabeça onde reside seu orgulho. Ela
descobrirá sempre sua malícia de serpente...” (V. D., n. 54.)
No tempo da Encarnação, ela já arrancou dele, por meio de seu
divino Filho, esse império do mundo que ele detinha incontesta-
velmente há milênios. Na manhã de Pentecostes, ela opôs ao seu
ódio a força irresistível de conquista da Igreja nascente. A pregação
dos apóstolos, sustentada pela virtude do Espírito Santo, permitiu-
lhe gerar incontáveis filhos e ver surgirem cristandades magníficas.
Durante cerca de quatro séculos, os imperadores pagãos provocaram
perseguições sobre perseguições, que fizeram milhares de mártires.
Essas perseguições são as mordeduras da raça da Serpente contra a
descendência espiritual de Maria, contra “os outros filhos da Mulher”,
revestida de sol e coroada de estrelas. (Apoc 12, 17.) Satanás, por
meio de seus cúmplices, obstinou-se em ferir seus corpos com toda
sorte de torturas, até provocar sua morte violenta. Da mesma forma
que perseguiu o Cristo, perseguiu os primeiros cristãos.
Sempre foi assim na vida da Igreja. Sobre todas as praias às quais
os missionários chegaram para anunciar a Virgem e seu divino Filho,
eles arrancaram muitas almas de Satanás; mas Satanás não tardou a
suscitar contra eles sangrentas perseguições. Contudo, os mártires
sempre triunfaram sobre seus carrascos, e seu sangue derramado se
tornou uma semente de novas cristandades para Maria.
Mesmo nos países em que a Igreja afirma há séculos o poder
de sua hierarquia, se Satanás nem sempre pode provocar persegui-
ções sangrentas, emprega armas assassinas contra as almas. É a lai-
cização desmedida; é a mentirosa e odiosa propaganda comunista,
é a imprensa perniciosa, cada vez mais invasora com seus livros,

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


101
brochuras e revistas com gravuras obscenas, é o mau cinema, são
todas as atrações do mundo.
Nunca as mordeduras da raça da Serpente foram mais veneno-
sas e mais cruéis. Jamais a cidade do mal se levantou tanto contra a
cidade do bem. Deus deixou ao demônio o poder de fazer o mal, a
fim de dar aos filhos da Virgem a glória de combater e de sofrer para
merecer a coroa eterna. Entretanto, esse poder é limitado, e durará
somente por um tempo; é por isso que vemos o demônio – sabendo
que lhe resta pouco tempo – intensificar seu ódio e ganhar em toda
parte, para sua causa, multidões de homens perversos, para combater
mais do que nunca os fiéis filhos e escravos da Virgem.
Como devemos nos felicitar por desejar pertencer a Maria como
seus escravos de amor, nessa luta formidável dos últimos tempos
anunciada por Montfort, e que terminará com o triunfo majestoso de
Jesus Cristo e de seu Reino nos séculos dos séculos.

II

A VITÓRIA DOS ESCRAVOS DE MARIA SOBRE OS ESCRA-


VOS DE SATANÁS. “Mas o poder de Maria sobre todos os diabos
se evidenciará particularmente nos últimos tempos, quando Satanás
puser armadilhas ao seu calcanhar, isto é, aos seus humildes escravos e
aos seus pobres filhos, que ela suscitará para declarar-lhe guerra.
“Eles são pequenos e pobres segundo o mundo, e rebaixados
diante de todos como o calcanhar, pisados e perseguidos como o cal-
canhar o é em relação aos outros membros do corpo. Mas, em com-
pensação, serão ricos em graças de Deus, que Maria lhes distribuirá
abundantemente; grandes e destacados em santidade diante de Deus,
superiores a toda criatura por seu zelo animado, e tão fortemente
apoiados do socorro divino, que com a humildade de seu calcanhar,
em união com Maria, esmagarão a cabeça do diabo e farão triunfar
Jesus Cristo.” (V. D., n. 54.)
Não nos espantemos, pois, ao ver o ódio dos escravos de Satanás
se manifestar de modo característico contra os apóstolos e escravos
de Maria, isto é, contra aqueles e aquelas que, totalmente devotados à
sua causa, se esforçam para promover seu Reino no mundo.

102 J. M. Dayet
São as duas escravidões que se enfrentam, pois todos os que se
colocam obstinadamente do lado de Satanás são seus escravos desde
este mundo, e o serão ainda mais no inferno. São, aqui, seus escravos
de obrigação: querendo ou não, Satanás os arrasta em sua revolta
contra o plano divino, como arrastou outrora a terça parte dos espíri-
tos angélicos. No inferno, eles serão, com Satanás e sob a dominação
de Satanás, os escravos de obrigação da justiça de Deus, sofrendo um
castigo implacável e sem esperança de término. Saberão, então, que
Deus é o Senhor: Et scient quia ego Dominus.
Contra os escravos de Satanás, Maria levanta o exército de seus
escravos de amor, que ela formou à semelhança de seu divino Filho.
Sua pequenez aos olhos do mundo, sua humildade, seu espírito de
dependência, sua pobreza e seu desapego dos bens terrenos, sua falta
de relevância do ponto de vista humano e natural, todo seu exterior
evangélico atiçarão o ódio de Satanás. Mais do que os outros, eles
sofrerão suas mordeduras. “Eles serão pisados e perseguidos, como
o calcanhar o é em relação aos outros membros do corpo.” Serão
desprezados, contrariados, tratados como insensatos.
Mas Maria lhes comunicará uma força sobrenatural que os tor-
nará invencíveis. Distribuir-lhes-á abundantemente suas graças, de
modo que quanto mais parecerem pobres aos olhos do mundo, mais
serão ricos em virtudes e méritos; quanto mais forem vistos como
pequenos e desprezados, mais serão “grandes e elevados em santi-
dade diante de Deus”.
“Eles serão superiores a toda criatura por seu zelo avivado”, o que
quer dizer que seu apostolado não se deterá nem diante dos poderes
infernais enfurecidos, nem diante dos poderes humanos cúmplices.
E se sentirão “tão fortemente apoiados pelo socorro divino, que com
a humildade de seu calcanhar, em união com Maria, esmagarão a
cabeça do diabo”, arrancarão muitas almas de sua escravidão, con-
verterão os pecadores, recuarão as fronteiras do que ainda lhe resta
como império. “E eles farão triunfar Jesus Cristo”, estabelecerão seu
Reino, esse Reino magnífico que todas as almas santas esperam, e
pelo qual oram e se sacrificam.
Será o belo triunfo da Era mariana. Pois “Deus quer que sua santa
Mãe seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada do que

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


103
nunca...” (V. D., n. 55.) “Foi por Maria que a salvação do mundo
começou, e é por Maria que ela deve ser consumada. Maria quase
não apareceu na primeira vinda de Jesus Cristo... : mas na segunda
(isto é, nos últimos tempos que precederão a aparição do Salvador
na glória de seu triunfo), Maria deve ser conhecida e revelada pelo
Espírito Santo, a fim de fazer, por meio dela, conhecer, amar e servir
Jesus Cristo.” (n. 49.)
“Maria deve brilhar, mais do que nunca, em misericórdia, em força
e em graça, nesses últimos tempos: em misericórdia, para reconduzir e
receber amorosamente os pobres pecadores e desviados que se conver-
terão e voltarão à Igreja católica; em força, contra os inimigos de Deus...
que se revoltarão terrivelmente para seduzir e fazer cair, por meio de
promessas e ameaças, todos os que lhes forem contrários; e, por fim,
ela deve brilhar em graça (como vimos), para animar e sustentar os
valentes soldados e fiéis servos de Jesus Cristo que combaterão por
seus interesses...” (n. 50.)
É muito visível que entramos nessa Era mariana das grandes lutas
da Igreja. Se, por um lado, vemos o exército dos escravos de Satanás
mais organizado e mais decidido do que nunca, por outro lado, é
incontestável que cada vez mais almas vêm à perfeita Consagração,
tanto em nossas velhas regiões cristãs quanto em todos os países de
Missão. Regozijemo-nos, pois, por desejar, por nossa Consagração,
caminhar à frente do exército do Bem.
_______________

Tendo chegado ao termo do período preliminar de nossos Exer-


cícios, não podemos dar a Maria um prazer maior do que renovando
entre suas mãos as promessas de nosso batismo. Nossos doze dias
nos preparam admiravelmente para isso.
Visto que estamos decididos a seguir não a Satanás, o príncipe
deste mundo, mas a Jesus Cristo, a Sabedoria eterna e encarnada,
digamos com todo o fervor de nossa alma: Renuncio para sempre a
Satanás, a todas as suas seduções e às suas obras de pecado, e entre-
go-me para sempre a Jesus Cristo. Ele é o único Senhor, o Senhor
humilde e manso que não mente jamais. Ele é a Verdade por essência,

104 J. M. Dayet
é o Verbo de Luz, é a Sabedoria encarnada. Somente ele diz as palavras
que conduzem à vida eterna; e permaneço em santidade enquanto
guardo seu ensinamento.
Deposito esta renovação de minhas promessas batismais entre as
mãos de Maria Imaculada, rogando humildemente que ela coloque
em minha alma a inimizade que o próprio Deus estabeleceu entre ela
e o demônio. Peço-lhe que torne essa inimizade total, sem corrupção,
irredutível, eterna.
Assim ela me receberá, no dia de minha perfeita Consagração,
entre seus escravos de amor, que não se dão inteiramente a ela a não
ser para pertencer inteiramente a Jesus Cristo.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 9, 18-34: Milagres realizados


por Jesus.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro I, cap. XXV: Da necessidade de traba-
lhar na correção de nossa vida.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


105
As três Semanas
A PRIMEIRA SEMANA
CONHECIMENTO DE SI MESMO

PRIMEIRO DIA
CONHECER-SE PARA RENUNCIAR A SI MESMO

A
primeira Semana de nossos Exercícios preparatórios à Per-
feita Consagração deve ser empregada, segundo o conselho
de São Luís Maria de Montfort, a adquirir o conhecimento de
nós mesmos (V. D., n. 228). Perguntemo-nos, imediatamente, qual
é a razão de ser desse novo trabalho; em que difere do trabalho dos
doze dias preliminares?
A PALAVRA de Nosso Senhor: “Se alguém quer vir após de mim,
negue-se a si mesmo” (Lc 9, 23) será, nesta meditação, nossa maior luz.
Um duplo EXEMPLO do Evangelho, o do apóstolo Judas e o
do apóstolo Simão Pedro, fornecer-nos-á depois sua eloquente con-
firmação.
Imploremos o auxílio da Santíssima Virgem, e não deixemos de
repetir-lhe, durante os seis dias desta primeira Semana: O Domina,
noverim me! Ó divina Mãe e Senhora, ajudai-me a me conhecer bem, a
fim de bem renunciar a mim mesmo.
I

A PALAVRA de Nosso Senhor: “Se alguém quer vir após de mim,


negue-se a si mesmo”. Conhecemos há muito tempo essa palavra do
divino Mestre, convidando-nos a segui-lo em seu caminho evangé-
lico; mas será que percebemos que essas duas partes da frase cor-
respondem exatamente ao duplo trabalho pedido por Montfort no
início de seus Exercícios?
Primeiro, “SE ALGUÉM QUER VIR APÓS DE MIM”...
Querer seguir Jesus, isto é, escolhê-lo deliberadamente como único
Senhor, ele e não Satanás, o Príncipe do mundo; aceitar com gratidão
dar-lhe todo o nosso amor, sem associação, sem concessões, sem
comprometimentos com as seduções do tentador; encontrar-nos
muito felizes por caminhar após ele no reto caminho de seus ensi-
namentos e na luz dos exemplos que ele não deixou de dar durante
os trinta e três anos de sua vida terrena; estar decididos a levar uma
vida de modo perseverantemente cristão, em oposição declarada com
a vida mundana, e em conformidade com as promessas de nosso
santo Batismo, não foi a isso que visaram as meditações de nossos
doze dias preliminares?
Querer seguir Jesus... em sua vida penitente e sofredora, em seu espí-
rito de desapego em relação aos bens deste mundo, em seu amor pela
humildade e pela obediência. Ele não proclamou bem-aventurados os
corações puros que têm horror pelo pecado, e os pobres de espírito,
isto é, os que carregam dentro de si mesmos uma alma de pobreza?
E ele não se mostrou no meio de nós o Senhor manso e humilde,
aquele que quis se fazer obediente até a morte, e morte da Cruz?
O caminho traçado por ele é luminoso e plenamente seguro.
Podemos testemunhar-nos tê-lo fielmente seguido?... E se nos afas-
tamos dele por causa de ofensas mais ou menos graves, será que
voltamos a ele com um coração contrito e com a firme resolução de
não mais deixá-lo?... Caminhamos agora após nosso divino Salvador,
profundamente convencidos de que ele é a Sabedoria eterna e encar-
nada, de que tudo o que ele quer é se comunicar a nós, com todos os
seus tesouros de graças e de virtudes?

108 J. M. Dayet
Desejamos possuí-lo cada vez mais intimamente? Oramos a ele inces-
santemente, tanto em nossas tristezas quanto em nossas alegrias,
tanto no fervor quanto nos momentos de tentação ou de desenco-
rajamento, sem medo de importuná-lo, antecipadamente certos de
ser socorridos da melhor maneira em nossos interesses espirituais?
Somos também fiéis ao nos cercar da muralha da mortificação cristã,
vigiando sobre nossos sentidos, nossas leituras, nossas conversações
e convívio (pois o mundo está sempre à nossa porta, e o demônio
ronda ao nosso redor, buscando uma presa que possa devorar)?
Acima de tudo, estimamos, como o maior meio de perseverança,
uma verdadeira devoção a Maria, tal como São Luís Maria de Montfort
no-la descreveu, com as características que a distinguem das falsifi-
cações das quais o demônio se serve para enganar muitas almas; tal
como, sobretudo, no-la revelará sua perfeita Consagração?
Se chegamos a esse ponto, devemos reconhecer com toda since-
ridade que o trabalho dos doze dias preliminares é coisa cumprida ou
em bom caminho para se cumprir, e que é preciso continuar a nos
empenhar. Pois atingimos somente a indispensável primeira etapa: a
vida manifestamente cristã, oposta à vida mundana.
_______________

É preciso, agora, começar e conduzir corajosamente a luta contra


nós mesmos, isto é, contra o inimigo interior: é a obra da RENÚNCIA.
O mundo, agente do demônio, é o inimigo exterior: ele nos atrai
do exterior por meio do engodo dos prazeres, das riquezas e das
honras. Mas no interior de nós mesmos há – e como o experimenta-
mos! – o eu natural, sempre levado a visar e satisfazer a si mesmo, em
detrimento do trabalho da graça.
A graça, que vem de Deus, não pode senão nos atrair para o alto,
rumo à prática das virtudes. Nossa natureza decaída, e que perma-
nece ferida pelo pecado original, nos arrasta pra baixo, em direção ao
pecado atual. É preciso resistir, combater, se não queremos cair. É
preciso negarmos a nós mesmos. É a luta contra nós mesmos, luta
penosa com peripécias diversas; luta que, praticamente, só terminará
no momento de nossa morte.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


109
Como ensina São Paulo (Ef 4, 22, 24), há em nós dois homens:
o homem regenerado pelo batismo e fortificado pela Confirmação,
o homem novo com tendências sobrenaturais, divinas, que o Espírito
Santo produz em nossa alma; tendências às quais nos esforçamos
para corresponder por meio de nossa fidelidade à oração e o recurso
aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Mas, ao lado, há o
homem natural, o homem carnal, o velho homem com suas tendên-
cias perniciosas que o batismo não retirou de nossa alma.
O batismo nos purifica do pecado original, fazendo-nos renascer
para a vida da graça; mas deixa em nós, como veremos, esse foco
de cobiça que chamamos de concupiscência, cuja característica é tender
incessantemente para o mal. Ela não é o pecado, mas vem do pecado
e nos leva ao pecado. É por isso que se encontra, com mais ou menos
força, mesmo nas almas que não têm ou não têm mais o espírito do
mundo. Seu esforço deve se dirigir a essa luta contra si mesmo, a fim
de poder avançar na prática das virtudes e merecer a coroa eterna.
Pois não haverá coroados, definitivamente, além daqueles que tive-
rem corajosamente combatido.
É, pois, às almas decididas a seguir Jesus no caminho de seus
mandamentos e também de seus conselhos evangélicos, que incumbe
esse trabalho da negação de si mesmo.
_______________

Mas para negar a si mesmo importa, antes de tudo, CONHE-


CER-SE bem. Como lutar com sucesso contra as tendências perni-
ciosas de nossa natureza, se não as conhecemos? Tanto mais porque
em cada um de nós há uma que domina as outras e que nos atrai mais
imperiosamente ao mal na medida em que já a tenhamos satisfeito.
E como aceitar reconhecer essa má tendência dominante, assim
como nossos outros defeitos, sem um grande espírito de humildade, sem
confessar que, entregues a nós mesmos, não valemos nem podemos
nada? Não temamos, pois, meditar sobre as fortes verdades fundamen-
tais que nos propõe o Padre de Montfort.
Com ele, consideraremos, antes de tudo, nosso inteiro pertencimento a
Jesus Cristo: nós fomos resgatados pelo preço de seu sangue; não somos,
pois, senhores de nós mesmos, dependemos da graça redentora.

110 J. M. Dayet
Em seguida, dedicar-nos-emos a conhecer melhor:

• nossa queda original e as tristes conseqüências que ela acarreta


para cada um de nós;
• nossa miséria de pobres pecadores e a profunda necessidade que
temos do socorro de Maria Medianeira;
• nossa fraqueza pessoal face aos inimigos de nossa salvação, se
não confiamos a Maria nosso tesouro de graças.
• Descobriremos assim as razões que nos obrigam a negar a
nós mesmos:
• renunciar a tudo o que seria contrário às obrigações decor-
rentes de nosso pertencimento a Jesus Cristo;
• renunciar, se não queremos perder o mérito de nossas boas
ações, ao que sentimos subir das partes mais baixas de nossa
natureza como consequência do pecado original e de nossos
pecados pessoais;
• renunciar a todo pensamento de autossuficiência, a todo sen-
timento de prazer em nós mesmos; o que nos levaria a negli-
genciar o maior Meio de nos unir a Jesus Cristo;
• renunciar também a essa louca confiança de pretender sal-
vaguardar, com a ajuda de nossas limitadas habilidades, o
tesouro de graças e de virtudes que carregamos em vasos
frágeis.

Em último lugar, felicitar-nos-emos ao constatar que escolhemos,


segundo o conselho de nosso mestre espiritual, a forma de devoção
a Maria que mais nos conduz a essa negação e que a facilita. Veremos
que ela é a melhor e a mais santificadora: é o nosso “segredo de graça”,
que se apressam em agarrar as almas humildes e obedientes ao Espí-
rito Santo.
Tal será o trabalho de nossa primeira Semana, durante a qual
Montfort nos recomenda “fazer tudo em espírito de humildade” (n. 228).
Como vemos, ele se anuncia muito diferente daquele dos doze Dias
preliminares. É bem superior a ele. Uma coisa é renunciar a Satanás
e ao mundo; outra coisa é caminhar nos passos do Cristo, negando a
si mesmo. Estamos aqui no trabalho da vida verdadeiramente cristã,

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


111
trabalho que exige constantes esforços para a aquisição do Reino
de Deus.
Se nos recusamos a realizar esses esforços, não somente não pro-
grediremos, mas, quando se apresentar a ocasião de pecar, sucum-
biremos; e este será talvez o começo de uma série de quedas que
mancharão as páginas de nossa vida.
Como importa, pois, conhecer bem a si mesmo, a fim de saber
lutar contra si mesmo, sobretudo nos momentos de tentação.

II

O duplo EXEMPLO do apóstolo Judas e do apóstolo Simão


Pedro vai nos mostrar agora, de maneira concreta, de um lado, a
desgraça de uma alma que se deixou tomar pelo espírito do mundo;
e, de outro lado, o grande perigo ao qual se expõe a alma que não
nega a si mesma.
JUDAS, chamado a seguir Jesus na qualidade de apóstolo, tinha
começado bem. Ocupava até mesmo uma posição privilegiada na
pequena comunidade apostólica, visto que era seu tesoureiro, o que
era um sinal de confiança.
Por que ele não perseverou? Como explicar sua decadência? É
que ele logo dirigiu sua visão para algo limitado, vil e desprezível: o
proveito honorífico e lucrativo que ele podia retirar de seu título de
apóstolo e de sua colaboração na obra de Jesus. Como muitos de seus
compatriotas, ele havia sonhado com um Messias glorioso e vence-
dor, que seria o Rei temporal de Israel. Esperava, pois, alcançar uma
situação muito vantajosa no reino, libertado, ao mesmo tempo, dos
romanos e da raça usurpadora dos Herodes.
Os exemplos, a pregação do Salvador, e sua intimidade com ele,
deveriam tê-lo afastado do desenvolvimento de semelhante espe-
rança e de tão louca ambição. Não foi o que aconteceu.
Os pensamentos de Judas foram desmascarados no dia seguinte
ao do grande milagre da primeira multiplicação dos pães. Jesus havia
aproveitado esse milagre para anunciar ao povo, em termos precisos e
com insistência, a maravilha ainda maior de sua Eucaristia. “Eu sou o pão
da vida. A minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente

112 J. M. Dayet
bebida. O que come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu
o ressuscitarei no último dia.” (Jo 6.)
Diante de tais afirmações, os espíritos que o orgulho cegava se
rebelaram; e muitos judeus, que tinham seguido o Salvador até então,
encontraram um pretexto para se afastar dele definitivamente. Em face
dessa deserção, Jesus, voltando-se aos seus Apóstolos, propôs-lhes cla-
ramente a questão de confiança: “Quereis vós também retirar-vos?”.
Simão Pedro tomou então a palavra em nome de seus irmãos:
Ah! Senhor, a quem iríamos? Somente vós tendes todos os segredos
da vida eterna, e no-los revelais em vossas palavras. Não há outro
Mestre além de vós. Sabemos que sois o Cristo, o Filho de Deus.
Admirável afirmação de fé! Se Jesus já havia feito tantos milagres,
seu amor todo-poderoso bem poderia cumprir também o milagre
eucarístico. Não se podia, pois, duvidar de sua palavra.
Mas, entre os Apóstolos, Judas não pensava assim. Grande fora
sua decepção ao ouvir o Salvador prometer, não uma felicidade ter-
rena, mas o alimento de uma vida sobrenatural que não seria outra
senão Ele mesmo. Visto que Jesus não tratava de suas intenções, ele
só podia deixá-lo. Por isso, sua apostasia era coisa decidida; e, na
falta de um lugar lucrativo no reino de seus sonhos, retiraria anteci-
padamente tudo o que pudesse do caixa apostólico, para assegurar
seu futuro temporal. Tornou-se ladrão. A palavra é do apóstolo São
João (12, 6). A paixão do dinheiro chegará ao ponto de conduzi-lo à
traição e ao deicídio.
Em vão Jesus tentará fazê-lo refletir sobre seus atos, tendo em
vista o horror mesmo do que visava fazer: Não fui eu que vos escolhi, a
vós os doze?, diz ele aos seus Apóstolos. No entanto, apesar dessa esco-
lha de predileção, um de vós é um demônio, isto é, semelhante ao diabo,
que, de bom, se fez mau. (Jo 6, 71.)
Outras advertências se seguirão, às quais o desgraçado não dará
nenhum valor. Ir-se-á, com a cabeça baixa, rumo à danação. Na
noite da instituição da santa Eucaristia, Judas consumará sua aposta-
sia, entregando o divino Mestre por trinta moedas de prata. Depois
disso, louco de desespero, enforcar-se-á. Triste fim de uma alma que
preferiu obstinadamente o espírito do mundo ao espírito de Jesus.
Oh! Agradeçamos ainda a São Luís Maria de Montfort por ter-nos

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


113
tão fortemente protegido desse pernicioso espírito que sempre con-
duz à danação eterna.
_______________

O apóstolo SIMÃO PEDRO nunca se deixara tomar pelo espí-


rito do mundo. Seu amor por Nosso Senhor era sincero; seu devo-
tamento, sem igual; sua fé, acima de todo elogio. Acabamos de vê-lo
confessar a divindade de Jesus em uma circunstância aparentemente
trágica para o sucesso da pregação evangélica.
Um pouco mais tarde, em Cesareia de Filipe, não longe das fon-
tes do Jordão, outra confissão de Simão Pedro será ainda mais explí-
cita. Vendo-se sozinho com seus apóstolos, Jesus os interroga: “Quem
dizem os homens que é o Filho do homem?”. As apreciações são variadas,
respondem eles. Uns vos tomam por João Batista ressuscitado, outros
por Elias ou por Jeremias, ou ainda por algum dos antigos profetas
que voltou sobre a terra.
“E vós, prossegue o Salvador, quem dizeis que eu sou?”. Sem uma
sombra de hesitação, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus
vivo.” Nada de mais completo se poderia formular. O Apóstolo não
diz: estimamos, cremos, estamos convencidos; sua resposta afirma
o que é. Vós, Senhor, que nossos olhos contemplam na realidade
de vossa natureza humana, vós sois, para além do que aparece aos
olhares, sois o Filho eterno do Deus vivo; sois o Cristo, isto é, o
Ungido de Deus, o Messias esperado, Filho de Deus, do único Deus
verdadeiro.33
Asserção tão bela e tão plena que, incontinenti, Jesus declara-lhe
que ele será a pedra fundamental de sua Igreja: “E eu, por minha
vez, como recompensa de tua fé, digo-te que tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.”
(Mt 16.)
Como explicar então a queda, nas horas dolorosas da Paixão, de
um apóstolo tão fortemente ligado ao seu divino Mestre?...
Pedro não conhecia o ponto fraco de sua natureza impetuosa.
Tinha uma confiança em si mesmo que chegava até à presunção; e

33 Ver Dom Delatte, O Evangelho de Nosso Senhor, p. 431.

114 J. M. Dayet
seus privilégios no seio do Colégio apostólico não o garantiam contra
as tentações que podiam sobrevir.
O próprio Jesus teve o cuidado de adverti-lo quanto a isso. Na
última Ceia, falara da separação próxima, e da impossibilidade, para
os discípulos, de segui-lo aonde ele ia, isto é, ao martírio, à cruz.
“Para onde vais, Senhor?”, perguntou Pedro, ansioso. “Para onde vou,
respondeu Jesus, não podes me seguir agora, mas me seguirás mais tarde.” E
Pedro insistia: “Por que não posso te seguir desde agora? Eu daria minha vida
por ti!”.
– Ah! Simão, Simão, continua Jesus, não sabes que Satanás recebeu
permissão, pois é sua hora, para vos sacudir como o trigo que se depura? Todos
vós sereis escandalizados nesta noite por causa de mim.”
Pedro tenta, então, se justificar, tão seguro está de si mesmo e de
seu amor pelo Salvador: “Ainda que todos os outros se escandalizassem a
vosso respeito, eu não me escandalizaria!”
“Em verdade te digo, afirma Jesus, tu, tu, Simão, hoje, nesta noite, antes
que o galo cante duas vezes, ter-me-ás negado três vezes.”
Essa asserção é intolerável ao Apóstolo; ele contesta fortemente,
ousa contradizer seu divino Mestre, que é a própria Verdade: “Mesmo
que tivesse de morrer convosco, não, eu não vos negaria. Senhor, eu estou pronto a
ir contigo para a prisão e para a morte.” (Lc 22, 33.)
Em face de tamanha presunção, Jesus se cala. Esperará a lição dos
acontecimentos que se desenrolarão. Depois de sua prisão no jardim
das Oliveiras, todos os Apóstolos haviam começado a fugir. Pedro,
entretanto, tem outra opinião, e seguindo de longe a tropa, consegue
entrar no pátio do palácio de Caifás, onde servos e guardas se aque-
ciam ao redor de um fogo de brasa. De modo imprudente, juntou-se
a eles e quis esperar para ver como o julgamento terminaria.
Mas a porteira, aproximando-se do grupo e olhando Pedro com
atenção: “Tu também, disse-lhe ela, és um dos discípulos desse Nazareno?
– Não, respondeu o Apóstolo. Eu não sei, não compreendo o que queres
dizer.”
Um primeiro canto do galo ressoa, ao qual Pedro não dá atenção.
E eis que outra serva anuncia aos que se aqueciam que aquele homem
estava realmente com Jesus, o Nazareno. Pedro negou uma segunda
vez, e até com juramento: “Não conheço o homem do qual me falais.”

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


115
Cerca de uma hora se passa. O infeliz Pedro não podia se decidir
a sair e tomava parte na conversação. Alguns lhe disseram, então:
“Mas seguramente és galileu, teu modo de falar te traiu”. Um dos servos do
Pontífice chegou a precisar: “Eis que te vi com ele no jardim.” Pedro afir-
mou com juramento e imprecação que ignorava o que queriam dizer,
que de modo algum conhecia aquele homem.
As denegações perduravam ainda quando o galo cantou pela
segunda vez. O Apóstolo se lembrou, então, da predição do Senhor:
“Antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes.” Ai de mim!
Estava feito. E eis em que quedas lamentáveis podemos incorrer,
ainda que não tendo o espírito do mundo, quando não conhecemos
e não negamos a nós mesmos.
Simão Pedro não desejara reconhecer a fraqueza de sua vontade
uma vez entregue a si mesma. Bem ao contrário, ele se afirma com
força, chegando a se exaltar acima dos outros e a acreditar ser impe-
cável. A principal culpabilidade de Pedro está nessa louca estima que
tem por si mesmo: em vez de se humilhar diante das advertências de
Jesus, ele cai na presunção e na temeridade. O resto se segue, logo
que a ocasião se apresenta.
Esse pecado do Apóstolo deve nos mostrar, mais do que todas as
considerações e razões, a conformidade de nossa primeira Semana.
Empregando-a ao conhecimento de nós mesmos, em um grande
espírito de humildade, atacamos a causa de quedas sempre possíveis.
Prevenimos essas quedas porque, com a graça de Deus que não falta
àquele que a pede, facilitamos as renúncias que se impõem para resis-
tirmos às tentações e permanecermos fiéis a Jesus.
_______________

Não temamos, pois, projetar a luz sobre nós mesmos. Esse tra-
balho espiritual é indispensável. Que sua austeridade não nos assuste.
Para nos encorajar, pensemos desde agora na alegria das duas Sema-
nas que seguirão, nossa meditação fixada então sobre a Santa Virgem
e sobre Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa Consagração a esses Mes-
tres divinos exige que comecemos por nos humilhar e nos libertar
do obstáculo do “eu” egoísta, do apego ao nosso espírito próprio e à
nossa vontade própria.

116 J. M. Dayet
Se, em nosso passado, temos a deplorar faltas que lembram o
pecado de fraqueza do apóstolo Simão Pedro, imitemos seu arrepen-
dimento, confiando no Coração sempre amoroso do Salvador. Um
olhar bastou para fazer romper em lágrimas o apóstolo infiel e para
dissipar para sempre a orgulhosa estima que ele tinha por si mesmo.
Por isso, quando Jesus lhe pedir um triplo juramento de amor, em
compensação da tripla negação: “Simão Pedro, tu me amas, me amas
mais do que os outros?”, o Apóstolo não responderá diretamente à ques-
tão. Não se elevará mais, não se comparará mais, não afirmará mais
nada de sua pessoa; não se derramará mais em vãs afirmações, em
promessas verbais ilusórias. Terá renunciado a tudo isso e se conten-
tará a apresentá-lo ao testemunho e à ciência infinita de seu Mestre:
Sim, Senhor, vós que ledes no fundo do meu coração, sabeis bem que
vos amo, e não mais “eu”, como outrora.
A humildade – uma humildade profunda – havia entrado em sua
alma com a triste experiência de sua queda e o conhecimento de seu
defeito dominante. O mesmo se dará conosco. O conhecimento que
adquiriremos de nossas fraquezas e de nossas tendências defeituosas
fará caírem nossas ilusões. Ela nos encaminhará a essa virtude de
humildade que é a única que pode favorecer de modo eficaz a renún-
cia a si exigida por Nosso Senhor.
Peçamos ao Espírito Santo que nos ilumine, recitando suas Lita-
nias todos os dias desta Semana, como prescreve nosso Padre de
Montfort. Recorramos também, todos os dias, à Santíssima Virgem,
por meio da recitação da Ave, maris Stella e de suas Litanias, para
“pedir-lhe esta grande graça (o conhecimento de nós mesmos) que deve
ser o fundamento das outras”. (V. D., n. 228.)

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 24: Discurso aos Apóstolos


sobre a ruína de Jerusalém e a segunda vinda do Cristo.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro II, cap. II: Da humilde submissão de
si mesmo.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


117
SEGUNDO DIA
SOMOS RESGATADOS

Para nós, que nos preparamos para professar a Consagração


montfortina, importa conhecer e aprofundar, em primeiro lugar, o
que somos em relação a Jesus Cristo. O fim dessa Consagração não é nos
tornar, por intermédio de Maria, seus fiéis, seus perfeitos escravos? “Ó
Sabedoria eterna e encarnada, ó tão amável e adorável Jesus, diremos
nós... eu vos louvo e glorifico por terdes desejado vos submeter a
Maria, vossa Santa Mãe, em todas as coisas, a fim de me tornar, por meio
dela, vosso fiel escravo.” E, no último parágrafo: “Ó Virgem fiel, tornai-me
em todas as coisas um escravo tão perfeito da Sabedoria encarnada, Jesus Cristo,
vosso Filho...”.
Que abundância de luz afluirá ao nosso espírito, se adquirirmos
desde agora a certeza racional de que somos, com toda verdade, pela
graça de nosso batismo, seus escravos resgatados pelo preço de seu sangue!
Nossa doação total vai aparecer para nós, então, como a ratificação
pessoal e amorosa das realidades redentoras. Dediquemo-nos, pois, a
reconhecer, antes de qualquer outra consideração, NOSSO INTEIRO
PERTENCIMENTO A JESUS CRISTO. Submeter-nos-emos com
maior generosidade às OBRIGAÇÕES que dele decorrem.
Roguemos ao Espírito Santo e à divina Mãe que nos iluminem.
Peçamos-lhes que desenvolvam em nossas almas sentimentos de gra-
tidão e de humildade, na lembrança da graça de nossa redenção. Veni,
Sancte Spiritus! Ave, Maria.

NÓS PERTENCEMOS A JESUS CRISTO NA QUALIDADE


DE ESCRAVOS. “Antes do batismo, escreve São Luís Maria de Mon-
tfort, éramos escravos do diabo; o batismo nos tornou os verdadei-
ros escravos de Jesus Cristo.” (V. D., n. 68 e 73.) Em consequência do
erro de Adão, cabeça do gênero humano, chegamos ao mundo com
uma alma manchada pelo pecado original, isto é, privada da graça

118 J. M. Dayet
santificadora, da participação na própria vida de Deus. Essa privação
da vida sobrenatural faz com que nasçamos submissos à influência do
demônio. Ele é o senhor em nós, um senhor tirânico, que não possui
nenhum direito, mas que ocupa seu espaço. É por isso que, antes de
derramar a água santa do batismo sobre nossa cabeça, o sacerdote
realiza os exorcismos contra Satanás: “Sai desta criança, espírito imundo,
e deixa lugar ao Espírito Santo!” Por duas ou três vezes, a mesma ordem
é reiterada: Sai! Vai-te! Não és mais o senhor aqui. Retira-te, espírito
do mal, e deixa lugar ao Espírito Santo.
Em virtude dessas palavras, unidas à do rito essencial, o demônio
é obrigado a se retirar; e Deus, Trindade santa, faz em nossa alma
sua entrada silenciosa e santificadora. A vida sobrenatural, que fora
dada ao nosso primeiro pai, e que ele havia perdido para si e para seus
descendentes, por sua grave desobediência, é misericordiosamente
devolvida a nós nesse instante. Tornamo-nos filhos de Deus. Satanás
não poderá exercer sua tirania, a menos que o obriguemos a retornar,
cometendo o pecado mortal.
Que os homens que vivem sem a graça do batismo sejam escra-
vos do demônio, podemos nos convencer disto ao refletir sobre o
que era o mundo pagão antes da vinda de Nosso Senhor, e sobre o
que ele é ainda hoje, depois de dezenove séculos de pregação evangé-
lica. Satanás reinava e reina ainda como senhor absoluto. Que estra-
gos provoca ele nas almas! Que degradação produz até nos corpos!
Mesmo em nossos velhos países cristãos, que retornam, em
grande parte, ao paganismo, ou – pecado ainda mais grave – que
professam abertamente o ateísmo, não vemos Satanás triunfar nova-
mente, e multiplicar por milhares e milhares o número de seus escra-
vos? É uma verdade experimentada que nos tornamos escravos de
nosso sedutor. “A ordem da justiça divina é assim constituída, ensina
São Tomás de Aquino,34 que se alguém cede à sugestão de outro
para pecar, deve submeter-se ao poder desse outro para ser punido,
segundo esta palavra de São Pedro em sua segunda epístola: a quo quis
superatus est, hujus et servus est.” (2, 19.) Somos escravos daquele por

34 Sum. theol.; Pars. Ia; quaest. 63; art. 8.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


119
quem nos deixamos vencer. É assim que Satanás se torna o tirano de
toda alma da qual Deus não é mais o Senhor.
Como devemos, então, estimar a graça de nosso batismo! Ao nos
arrancar da escravidão de obrigação do demônio, ela nos torna os
verdadeiros escravos de Jesus Cristo. Pois a vida divina não é então
derramada em nossa alma senão em virtude dos méritos da Paixão e
da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Adão, abusando de sua liberdade, pôde desobedecer a Deus e
ofendê-lo gravemente; todavia, depois do pecado cometido, ele não
podia justificar a si mesmo. Impotente para oferecer uma reparação
adequada, igual à ofensa, ele arrastava consigo toda a sua descendên-
cia à danação.
Foi então que, por uma misericordiosa condescendência, o Filho
de Deus se ofereceu ao seu Pai para satisfazer a Justiça divina, infinita-
mente ofendida. Ele se fez homem na plenitude dos tempos. Durante
os trinta e três anos de sua vida sobre a terra, ele rezou, trabalhou,
lutou, sofreu para arrancar nossas almas da escravidão do demônio.
Sendo todas as suas ações e sofrimentos, e principalmente sua morte
na cruz, de um valor infinito, ele pagou nossa dívida. Ele nos resgatou
por um alto preço, “não a preço de coisas corruptíveis, de ouro ou de
prata, mas a preço de todo o seu sangue”. (1Pdr 1, 18-19.)
Somos sua Conquista, seu povo adquirido, sua herança, seu bem,
sua propriedade. Pertencemos-lhe inteiramente. Estamos divinamente
marcados pelo selo de seu domínio. Eis que nos tornamos “seus verda-
deiros escravos” por meio de um prodígio inaudito de seu amor, pois
foi seu amor que o fez encarnar e aceitar morrer por nós.
Como testemunhar-lhe melhor nossa gratidão senão derramando
nosso espírito, nosso coração, toda a nossa alma na sabedoria desse
maravilhoso plano redentor? É precisamente isto que nos pede São
Luís Maria de Montfort, quando propõe aos batizados, em resposta
ao seu inteiro pertencimento a Jesus Cristo, que se consagrem ao seu
serviço por meio de uma dependência total, espontânea e livre, com
base unicamente no amor.

120 J. M. Dayet
II

Tal atitude de nossa parte parecerá ainda mais atraente, se con-


siderarmos, agora, as OBRIGAÇÕES que decorrem de nossa bem-
aventurada condição de escravos de Jesus Cristo. Roguemos nova-
mente ao Espírito Santo.
Não pertencendo mais a nós, mas inteiramente ao nosso divino
Redentor, fica claro que devemos viver, trabalhar e produzir frutos
somente para ele. Seus direitos de propriedade sobre nossas obras são
a consequência de seus direitos sobre nossa pessoa. O dono do campo
é o dono dos frutos que esse campo produz. “É por essa razão, diz-
nos Montfort (V. D., n. 68), que o Espírito Santo nos compara: a
árvores plantadas ao longo das águas da graça, no campo da Igreja,
que devem dar seus frutos em seu tempo; às varas de uma vinha da
qual Jesus Cristo é a vide, que devem produzir boas uvas; a um rebanho
do qual Jesus Cristo é o Pastor, que deve ser multiplicado e produzir
leite; a uma boa terra da qual Deus é o lavrador e na qual a semente se
multiplica e produz na espiga trinta vezes, sessenta vezes, cem vezes
o grão confiado ao solo.”35
Essas belas comparações bíblicas nos mostram, com efeito, muito
claramente, a obrigação de produzir obras de santidade e a proprie-
dade de Jesus sobre essas obras desde que elas se abrem e desabro-
cham em nossas almas. Os frutos do campo pertencem a ele, assim
como os cachos da vinha, o leite do rebanho e o bom grão multiplicado.
Tudo lhe pertence: o campo, a vinha, o rebanho, a terra, assim como
nossas pessoas. Nossa felicidade dever ser fazer valer seus bens, para
o enriquecimento de sua glória e para o louvor de sua graça, que ele
infunde incessantemente em nossas almas.
A imagem da vinha, tão amada por Nosso Senhor, é das mais
significativas. Jesus Cristo é a “Videira” que mergulha suas raízes
nas profundezas da Trindade, e nós somos os galhos cheios de seiva
divina. Os cachos de uva são o bem e a glória da vinha. Quanto
mais pesados e coloridos são esses cachos, mais glorificam a seiva
vivificante que sobe da videira e chega até as extremidades dos mais

35 Cf. Sl 1, 3; Jo 15, 1; 10, 11; Mt 13, 3, 8.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


121
longínquos galhos. A ninguém sucede pensar que os cachos que pen-
dem dos ramos pertencem a si mesmos, independentemente da vinha
que os suporta e produz.
Assim nossas obras, frutos da graça, pertencem em primeiro
lugar a Jesus Cristo. Quanto mais essas obras se mostram impregna-
das de seiva divina, embebidas e como que saturadas de santidade,
mais também elas reivindicam a honra de ser a riqueza e a glória de
sua incessante ação em nós.
Nossas obras sobrenaturais e meritórias são de tal modo o bem
de Nosso Senhor, que “Jesus amaldiçoou a figueira seca36 e proferiu a
condenação contra o servo inútil37 que não fizera valer seu talento” (V.
D., n. 68.) A árvore era o bem do Senhor, assim como o escravo e o
talento concedido; o Senhor tinha, pois, o direito de esperar frutos de
sua árvore e os lucros do trabalho de seu escravo. Se ele não os colhe
nem os recebe, vê-se frustrado com rigor de justiça, e é por isso que
amaldiçoa e condena.
“Tudo isto, acrescenta São Luís Maria de Montfort, prova-nos
que Jesus Cristo deseja receber alguns frutos de nossas frágeis pessoas,
conhecer nossas boas obras, porque essas boas obras lhe pertencem
unicamente (nossa cooperação com a graça sendo ela mesma o resul-
tado de uma graça): creati in operibus bonis in Christo Jesu,38 fomos criados
para realizar boas obras em Jesus Cristo.” Nossa regeneração é, com
efeito, uma criação nova no Cristo, cujo fim é nos fazer produzir obras
novas que Deus espera de nós e que são em nós o fruto de sua graça.
Assim, “Jesus Cristo é o único princípio e deve ser o único fim de todas
as nossas boas obras.” (V. D., n. 68.) Pertencemos-lhe inteiramente.
_______________

Dessa doutrina, Montfort não hesita em extrair a conclusão seguinte,


a saber, que devemos servir nosso divino Redentor e Senhor “não somente
como servos que recebem sua paga, mas como escravos de amor”. (n. 68.)

36 Mt 21, 19.
37 Mt 25, 24-30.
38 Ef 2, 10.

122 J. M. Dayet
Visto que somos “seus verdadeiros escravos” no sentido pleno do
termo, seria manifestar-lhe nossa mais amorosa gratidão entregar-
nos assim ao seu serviço, para honrá-lo pertencendo a ele. Não
temamos ostentar confiantemente, assim como fez o apóstolo São
Paulo (Rom 1, 1), esse nobre título de escravos de Jesus Cristo.
“Escravos”, e não simplesmente “servos”. O servo só depende par-
cialmente de seu senhor: ele trabalha pela contrapartida dos rendi-
mentos, e por um tempo limitado. Por isso, não se pode chamá-lo
de servo de amor.
Nós desejamos, ao contrário, dar-nos inteiramente e para sem-
pre, respeitando nosso inteiro e eterno pertencimento, reconhecido e
amado. Desejamos que nada possa limitar nossa doação, nem medi-la,
restringi-la ou condicioná-la.
Não se trata, aqui, senão da escravidão por vontade, a qual pro-
cede do coração; e a palavra “escravo”, como a entendemos, não é
de modo algum oposta a “livre”, mas somente a “Senhor”. Escravos
de um Senhor que se chama Nosso Senhor Jesus Cristo, o que pode
haver de mais espontâneo, de mais livre, de mais impregnado de amor
profundo? Nunca o amaremos ou pertenceremos a ele demais; é por
isso que prosseguimos utilizando a palavra mais forte em nossas lín-
guas humanas, para exprimir-lhe nossa total e absoluta dependência.
Compreendemos, com isso, a incansável insistência da Igreja em
terminar todas as suas Orações litúrgicas, todas as suas implorações
de graças, recorrendo à fórmula que relembra e honra seus direitos
de Redentor: Per Dominum nostrum Jesum Christum... Por Jesus Cristo,
Nosso Senhor e Mestre. Se o reconhecemos “Senhor e Mestre” (e
é o único Senhor e Mestre: Tu solus Dominus... Jesu Christe, dizemos
na Gloria da missa), é preciso que a esse título corresponda o nosso
título de escravos, assim como ao título de “pai” corresponde o de
“filho”. Um chama o outro; são inseparáveis.
Na manhã da Anunciação, quando a Virgem de Nazaré aceitou
essa divina Maternidade corredentora que o enviado do Céu lhe
propunha, não começou por inclinar toda a sua pessoa diante dos
direitos de Deus? Ela não hesitou em se proclamar sua escrava: Ecce
ancilla Domini, isto é, segundo a força do texto original, não somente
a serva, mas a escrava de seu Senhor e único Mestre, Deus. E de
modo semelhante, desde a primeira estrofe de seu cântico do Magnifi-

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


123
cat: Minh’alma engrandece ao Senhor... pois contemplou a humildade
de sua escrava.
Ó esplendor de humildade! Maria pronuncia essas palavras,
quando se vê elevada à transcendente dignidade de Mãe de Deus. Já,
pela graça de sua Imaculada Conceição, ela era sua Filha amada, a
mais privilegiada e a mais agraciada; muito acima de todas as outras
criaturas angelicais ou humanas. E eis que ela se afirma sua escrava.
Ela é, pois, ao mesmo tempo a Filha, a Mãe e a Escrava de Deus.
Prova evidente de que essas palavras e esses títulos se harmoni-
zam. E se se harmonizam em Maria, por que não se harmonizariam
em nós as palavras e os títulos de filhos de Deus e de escravos de Jesus
Cristo? Filhos do Pai dos Céus pela graça de nosso batismo; escravos
de Jesus Cristo pelo reconhecimento de seus direitos de Redentor:
essa é nossa amorosa resposta ao infinito benefício do preço de seu
sangue. Sendo seus verdadeiros escravos, oferecemo-nos a “servi-lo
nessa qualidade, pela única honra de pertencer a ele”. (V. D., n. 73.)
Conformamo-nos, assim, ao ensinamento do Catecismo do
Concílio de Trento,39 quando prescreve aos pastores que conduzam
aos fiéis a relembrar e crer que estão ligados e consagrados a Nosso
Senhor Jesus Cristo como escravos ao seu Redentor e Senhor: non
secus ac mancipia Redemptori nostro et Domino. (V. D., n. 72 e 129.) Os
dois termos “Redentor e Senhor” são unidos propositadamente, para
mostrar que nosso pertencimento ao Cristo decorre diretamente dos
direitos que sua Redenção lhe confere.
Concluamos com São Luís Maria de Montfort: “Ou importa que os
cristãos sejam escravos do diabo, ou escravos de Jesus Cristo.” (V. D., n. 3.) Não
há meio-termo. Escravidão de obrigação, de um lado; escravidão de
vontade, do outro. Ambas começando durante a vida e consumadas
após a morte. No inferno, os reprovados são os eternos escravos do
ódio de Satanás. No Céu, os eleitos são os eternos escravos de amor
de Deus: o apóstolo São João os viu reunidos de todas as nações da
terra e gloriosamente marcados na fronte com o selo do Cordeiro
imolado (Apoc 7, 2-12.)
_______________

39 Pars Ia, cap. 3, art. 2, § 15. De secundo Symboli articulo, in fine.

124 J. M. Dayet
Conhecendo, pois, agora, o que somos em relação a Jesus Cristo,
amaremos nosso fundamental pertencimento de resgatados. Amaremos
o termo que o exprime: é o da humildade na verdade. As almas verdadei-
ramente humildes não experimentam qualquer dificuldade em assumi-lo,
pois ele vai ao encontro de sua necessidade de depender, de servir e de
doar-se. As objeções sobrevêm somente se nos colocamos diante dos
homens e de nós mesmos, enquanto importaria colocar-se unicamente
diante de Deus, como fez a Virgem em Nazaré. Se olharmos para os
homens, constataremos apenas violências e ultrajes à dignidade humana.
Se nos detivermos em nós mesmos, estaremos às voltas com pensamen-
tos de egoísmo e de amor-próprio.
Olhemos para o alto, bem acima dos homens e de nós mesmos!
Olhemos o adorável e amável Jesus, a Sabedoria eterna e encarnada,
que nos comprou ao preço de todo o seu sangue. Rendamos-lhe graças
por ele ter aniquilado a si mesmo, assumindo a forma de um escravo,
para nos tirar da cruel escravidão do demônio. Peçamos-lhe, pela santa
Mãe, a contrição e o perdão de nossas faltas, e ofereçamo-nos genero-
samente a todas as renúncias que exige nosso divino pertencimento.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 25, 14-30: Parábola dos


talentos.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro II, cap. V: Da consideração de si
mesmo.

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125
TERCEIRO DIA
SOMOS GRANDES FERIDOS

É-nos permitido, agora, dedicar-nos ao conhecimento de nossas misérias.


Há, primeiro, aquelas que derivam em linha direta do pecado original.
Esse pecado deixou em nosso ser natural FERIDAS profundas. Consi-
deremo-las uma após a outra. Quanto mais as conhecermos, mais nos
dedicaremos a aplicar-lhes os REMÉDIOS da ascese cristã.
Continuemos a invocar o Espírito Santo e sua Esposa imaculada.
Em razão de sua preservação do pecado original, Maria – muito mais
profundamente do que nós – é capaz de compreender nossa miséria
moral; e toda a sua maternal compaixão só pede para nos socorrer.

As FERIDAS do pecado original. Adão, no estado de inocência,


não possuía somente a graça santificante em sua alma; ele gozava
ainda, por uma abundância de graça, privilégios magníficos que aper-
feiçoavam sua natureza e o tornavam mais apto a viver com segu-
rança e alegria seu papel de cabeça do gênero humano.
Esses privilégios – dons absolutamente gratuitos – eram a ciência
infusa, que o aproximava dos anjos; o domínio sobre as paixões, isto é, a
isenção da concupiscência ou da inclinação ao mal; a impassibilidade,
isto é, a exclusão da enfermidade e de todo sofrimento; a imortali-
dade, isto é, a isenção da morte corporal. Tendo transcorrido o tempo
da prova, Adão devia passar sem dificuldade do paraíso terrestre ao
paraíso celestial. Mas, por sua desobediência grave, ele perdeu de
uma só vez a graça santificante e todos os privilégios que Deus lhe
havia concedido.
O sacramento do batismo nos devolve a graça santificante com
o direito à felicidade do Céu; mas não nos restitui os dons preter-
naturais que a acompanhavam. Permanecemos, assim, num estado de
decadência, de desgraça, de empobrecimento, sofrendo em nossa natu-
reza o que denominamos as feridas do pecado original: a ignorância, a
concupiscência, o sofrimento e a morte.

126 J. M. Dayet
Em nossa inteligência, a ignorância substituiu a ciência infusa. O
primeiro homem recebera de Deus a revelação das verdades sobre-
naturais que seu estado de justiça comportava, assim como um con-
junto de conhecimentos sobre as coisas necessárias à vida, em razão
de sua condição de cabeça e educador do gênero humano. Como essa
ciência foi perdida, devemos remediar esse mal por meio da ciência
adquirida. Quando chegamos ao mundo, ignoramos tudo: nossa inte-
ligência se encontra tão nua quanto uma placa de mármore bem lisa
onde não há nada gravado, ou quanto um painel em branco, sobre
o qual nada está pintado. Tudo deverá começar a chegar a nós pelos
sentidos, e durante nossa vida inteira será preciso aprender.
Um duro e contínuo trabalho se impõe, pois a ignorância, sobre-
tudo a das verdades importantes para a direção de nossa vida moral
e de nossa vida espiritual, não é facilmente vencida. É um fato que
o a maioria dos batizados se mostra resistente a cultivar e desenvol-
ver em si os ensinamentos do catecismo. Contentam-se com pouco,
não compreendem que importaria nunca se desabituar do estudo das
verdades reveladas. Por isso, quantas deficiências, quantas lacunas,
quantos erros nos espíritos em matéria religiosa!
Mesmo naqueles que se dirigem decididamente ao conhecimento
de Deus e das coisas divinas, que se dedicam a reduzir tanto quanto
possível a ignorância nativa por meio da inteligência dos mistérios da
fé e pelas iluminações provenientes dos dons do Espírito Santo, uma
grande parte de obscuridade permanece. Avançam às cegas rumo à
plena luz reservada à gloria, sabendo bem que se entregam ao estudo
de uma ciência infinita, mas que produz sua beatitude neste mundo.
“Ó Senhor, suplicava santo Agostinho, que vossas Escrituras sejam sempre
minhas castas delícias. Que eu beba de vossas águas salutares, desde o começo
do Livro sagrado, em que vemos a criação do Céu e da terra, até o fim, onde
contemplamos a consumação do Reino perpétuo de vossa Cidade santa.” Santo
Agostinho era, no entanto, um grande gênio. O que pensar, então, de
nós mesmos e de nossas ignorâncias humilhantes?
Com a ciência infusa, o pecado original nos fez perder igualmente
o domínio sobre nossas paixões. A vontade de Adão inocente, espe-
cialmente fortificada pela graça, matinha facilmente a ordem em meio
às tendências das faculdades inferiores. “O poder da imagem de Deus na

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


127
alma era tamanho, escreve Bossuet, que sobre tudo tinha controle.” O corpo
estava submisso à alma, como a alma estava submissa a Deus.
Com o desaparecimento da graça, o domínio sobre as paixões
também desapareceu. Nossas faculdades reclamam, às vezes impe-
riosamente, suas satisfações. Nossos sentidos exteriores, nossos olhares,
por exemplo, dirigem-se com avidez ao que agrada à curiosidade;
nossos ouvidos escutam com zelo as novidades que se apresentam;
nosso tato busca as sensações agradáveis, e isto, amiúde, para além
dos limites permitidos pela lei moral. O mesmo se dá com nossos
sentidos interiores: a imaginação representa para nós toda sorte de cenas
mais ou menos sensuais; a sensibilidade cobiça fruições inferiores.
Todos esses sujeitos revoltados tentam arrastar o consentimento da
vontade. É a tirania da CONCUPISCÊNCIA, a inclinação violenta
ao mal, a atração desordenada pelo prazer proibido.
Seguramente, a vontade pode resistir; mas ela mesma experimenta
os efeitos da desobediência de nosso primeiro pai. É difícil para ela
se submeter a Deus e aos seus representantes sobre a terra. Tem
pretensões à independência; de bom grado pensa bastar a si mesma.
Por isso, quantos esforços são-lhe necessários para vencer os obstá-
culos que se opõem à realização do bem. Quanta fraqueza, quanta
inconstância nesses esforços! Quantas vezes ela se deixa arrastar pelo
sentimento e pelas paixões!
São Paulo (Rom 7, 19-25) descreveu, em termos tocantes, essa
deplorável fraqueza: “Eu não faço o bem que quero, mas faço o mal que
não quero... Vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito,
e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus membros. Infeliz de
mim! Quem me livrará deste corpo de morte?...”.40 É a luta da carne con-
tra o espírito. Todo filho de Adão a experimenta vivamente em sua
alma. A graça batismal, desenvolvendo-se em uma vida cristã verda-
deiramente virtuosa, corrige, atenua essa propensão ao pecado; mas
nunca a cura inteiramente. O domínio sobre eles mesmos, quase sem
falha, que admiramos nos santos, é o resultado de lutas heroicas e de
pacientes esforços, sustentados por uma graça poderosa.

40 Ver Tanquerey, Compêndio de teologia ascética e mística, n. 74 e 75.

128 J. M. Dayet
Quanto às duas outras feridas do pecado original, o sofrimento e
a morte, elas permanecem inelutáveis e implacáveis para todos. Deve-
mos comer nosso pão com o suor de nosso rosto, expostos às doenças
e enfermidades de toda sorte; esperando voltar um dia à terra da qual
fomos tirados. Mas aqui também, com a graça redentora usada provei-
tosamente, podemos santificar o sofrimento e suavizar o que a morte
comporta de pavoroso e de cruel. Lembremo-nos do que diz o Padre
de Montfort quanto à morte dos fiéis escravos de Maria: ela é doce e
tranqüila, tendo ordinariamente a assistência da Virgem para conduzi-
los pessoalmente às alegrias da eternidade. (V. D., n. 200.)

II

Os REMÉDIOS da ascese cristã. Conhecendo as feridas que car-


regamos em nossa natureza humana, importa-nos não somente crer
no dogma do pecado original, mas, em consequência disso, desen-
volver em nós, de maneira habitual, uma grande humildade de espírito.
Essa humildade será o primeiro remédio para a nossa miséria nativa:
é impossível conceber seres decaídos que se exaltam.
Sem dúvida, nossa natureza não está corrompida em si mesma.
As expressões, geralmente fortes, da tradição cristã sobre a deca-
dência original, devem ser entendidas sobre o homem em relação
à sua condição primeira, não da natureza considerada em si mesma.
Esta, mesmo após o pecado, não é intrinsecamente má; ela conserva
seu livre-arbítrio, é ainda capaz de algum bem em sua ordem. Resta,
contudo, que somos seres enfraquecidos, empobrecidos, degrada-
dos, desfigurados, privados de dons magníficos: a natureza era feita
para a graça. Quando dizemos privação, falamos de uma coisa que
falta, enquanto devia estar presente; e, por isso mesmo, é um mal,
é uma desordem essa ausência. É uma desordem diante de Deus, é
a desordem do pecado original acarretando todas as consequências
que assinalamos.41 Ainda que, pessoalmente, não sejamos culpados
por ele, devemos nos humilhar. Essa é a atitude que nos convém: ela
vai nos ajudar, agora, a melhor conhecer as tendências perniciosas

41 Ver Ecclesia (Bloud e Gay, 1929), p. 116, 2ª coluna.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


129
que predominam em nós e se opõem à aquisição das virtudes. Elas
são a causa mais frequente de nossos pecados atuais.
Essas tendências, chamadas comumente de defeitos dominantes, não
são outra coisa senão o apego a si mesmo, enraizado mais fortemente
em uma ou outra das três grandes cobiças que nos arrastam para o
mal: o orgulho, a cobiça da carne e a dos olhos. Importa conhecê-las
bem, a fim de estar em condições de melhor combatê-las.42
O orgulho nos arrasta a um amor excessivo por nossa pessoa. Esse
amor se manifesta de diversas maneiras: sob a forma de egoísmo, ou de
vaidade, ou de presunção, ou ainda de ambição com desejo de dominar.
Certas naturezas são de um egoísmo muito acentuado, sempre
pronto a se mostrar: o eu vem em primeiro lugar. Tudo está con-
centrado em si mesmo, não há preocupação ou inquietação senão
em relação a si, a natureza fecha-se em si mesma como se fosse seu
próprio centro. Não pensa nos outros, não se interessa por eles, não
desenvolve simpatia. Esse defeito traz muito sofrimento aos que a
cercam. Não podeis dizer nada, nem sobre uma dificuldade, nem
sobre uma alegria, nem evocar uma lembrança ou relatar vossas
impressões, sem que vosso interlocutor, de imediato, sem dar ouvi-
dos a nada, vos dirija ao que ele mesmo viu, conheceu, experimentou:
eu isto, eu aquilo... É sempre o eu posto adiante.
Outras naturezas são vaidosas: buscam a estima, a aprovação, o
louvor. A exibição não as constrange: falam de si com vantagem, de
sua inteligência, de suas capacidades, de seus talentos, de sua habili-
dade; e também de sua família, de suas relações, de seus sucessos, que
sempre superaram os sucessos dos outros. Gostam também de atrair
sobre si a atenção por certas maneiras de agir, de se vestir, de apare-
cer, por uma pompa que manifestam sempre que há ocasião, ou por
singularidades que se permitem. Medíocres satisfações que privam a
alma de muitos méritos.
Outros apresentam o defeito de presunção: trata-se de uma con-
fiança ilimitada em si mesmo, em suas faculdades naturais, em sua
ciência, sua força, e até mesmo em suas virtudes. Donde a tendência
a se elevar acima dos outros, a querer fazer coisas surpreendentes; e

42 Ver Tanquerey, obra citada, n. 818 e seguintes.

130 J. M. Dayet
mais ainda a desejar sempre ter razão, a não reconhecer seus erros,
a não considerar as advertências recebidas; a não se dobrar, a não
ceder; muito mais, a resistir a tudo e contra tudo. E diante de uma
resistência, irritam-se, indispõem-se, chegam às vezes à cólera, que faz
perder o controle das faculdades. Esse defeito, como vimos, era o do
apóstolo Simão Pedro, cabeça do colégio apostólico. Por não tê-lo
reconhecido, expôs-se à tentação sem precauções nem garantias, e
caiu em um triplo pecado grave. Acrescentemos, em seu louvor, que
depois de ter reconhecido e chorado suas negações, tornou-se o mais
humilde de todos, como testemunhou sua morte na cruz.
A ambição e o desejo de dominar derivam da mesma fonte. A natu-
reza ama e busca as honras, as dignidades. Quer chegar aos primeiros
cargos; e por isso, mostra-se lisonjeira, elogiosa, buscando o favor dos
que estão no alto. Quando ali chega de fato, para manter seu posto,
não pensa duas vezes antes de afastar as pessoas que a incomodam,
e cerca-se de outras que a adulam. A inveja ou o ciúme entram então
em jogo em relação a quem exerça uma ascendência capaz de destruir
sua situação elevada ou rivalizar com as qualidades brilhantes que
admira em si. Sofre ao ouvir louvar os outros; esforça-se por atenuar
esses elogios por meio de críticas malignas.
Tal é a triste demonstração do defeito de orgulho. Como vemos,
ele se opõe antes de tudo ao espírito de humildade.
A cobiça da carne leva-nos a amar o corpo mais do que devemos:
é uma tendência muito pronunciada a se dedicar excessivamente às
satisfações que o afetam. Aqueles em que domina esta cobiça têm de
lutar mais do que os outros contra a preguiça, a gula, e contra as afei-
ções sensíveis. A preguiça faz recuar diante de todo esforço corporal:
o trabalho assíduo, as obrigações, os empregos que reclamam uma
coragem perseverante. Por outro lado, ela se compraz no que favo-
rece o descanso do corpo, seu bem-estar, como o sono prolongado,
os banhos frequentes, o uso dos perfumes, as vestimentas delicadas,
os passeios agradáveis, as visitas sem razão. Essa preguiça, se não é
combatida, expõe a muitas tentações.
A gula revela um abuso do prazer legítimo que Deus quis rela-
cionar ao comer e ao beber: seja consumindo alimento ou bebida
sem necessidade, fora das refeições, pelo prazer de se satisfazer; seja

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


131
buscando nas refeições o que há de melhor, os pratos mais bem pre-
parados, como fazem os gastrônomos; seja consumindo uma quan-
tidade exagerada de alimentos, com o risco de comprometer a saúde
(quantas enfermidades provêm dos excessos à mesa!); seja, ainda,
comendo com avidez, um pouco como os animais que se precipi-
tam sobre o que lhes dão. Quantas faltas cometemos assim contra a
mortificação.
As afeições ou amizades sensíveis, buscadas por si mesmas, sem outra
razão senão a satisfação do coração, são sempre perigosas, pois o limite
é rapidamente ultrapassado, e passa do sensível ao sensual, e do sen-
sual ao carnal. Entregamo-nos, não vigiamos nossa imaginação, nossa
sensibilidade, nossos olhares e sobretudo o sentido do toque. Esse é
o defeito dominante de certas naturezas que podem ser muito ricas,
mas que são, ao mesmo tempo, muito fracas. É preciso saber colocar
ordem nisto desde o começo, senão correremos ao encontro de quedas
lamentáveis. Essas espécies de afeições são permitidas somente entre
os que têm a liberdade e a intenção de se unirem em matrimônio.
A cobiça dos olhos inclina à avareza, que entendemos aqui como o
apego exagerado aos bens que se possui ou dos quais se pode dispor.
Temos a tendência de guardar de modo ciumento nosso dinheiro
uma vez adquirido. Gastamos com pesar, com mesquinharia. Recu-
samos ajudar os nossos, não damos nada ou quase nada aos pobres
e às boas obras. Em vez de economizar sabiamente, capitalizamos
com exagero, por medo de que venha a faltar, e sem confiar no Pai
dos Céus, que cuida de nossas necessidades. Assim, pouco a pouco,
os olhos se cravam na terra, como se fôssemos permanecer nela para
sempre. Amemos doar, amemos dar a esmola.
Todos esses defeitos não são pecados em si mesmos, mas nos
fazem cometer muitas faltas, em geral veniais; e à medida que os
satisfazemos, eles se fortificam e se tornam cada vez mais exigen-
tes. Podem, então, arrastar-nos aos pecados graves, e até se transfor-
mar em hábitos viciosos, tirânicos. É então que, às consequências do
pecado original, somam-se as consequências muito mais acentuadas
dos pecados pessoais.
_______________

132 J. M. Dayet
O preceito evangélico da renúncia se impõe. Importa-nos, diz
Montfort, “renunciar às operações das faculdades de nossa alma”. (V. D., n.
81.) No que concerne à nossa INTELIGÊNCIA, renunciar a esse
mal que é a ignorância religiosa. Dediquemo-nos a conhecer o que diz
respeito a Deus, nosso fim derradeiro, e aos meios de chegar a ele.
Esse conhecimento é primordial: seria insensato se ocupar das ciên-
cias humanas e negligenciar a ciência da salvação. Quantos batizados,
muito instruídos neste ou naquele ramo do saber humano, têm um
conhecimento bastante imperfeito das verdades cristãs.
Renunciar a essa vã curiosidade, que busca antes de tudo e de
maneira excessiva as leituras agradáveis, como as dos romances, dos
jornais e de certas revistas da moda, onde a alma não encontra nada
que possa elevá-la ou enriquecê-la. Fazemos, assim, o agradável pas-
sar à frente do útil e do necessário, perdemos um tempo precioso,
transformamos o que devia ser momento de relaxamento em uma
ocupação vazia que se prolonga e prejudica grandemente o bom
emprego do dia.
Renunciar também e, sobretudo, a essa particularidade de orgulho
do espírito, que pretende bastar a si mesmo e se inclina com dificuldade
diante dos ensinamentos da fé ou das diretivas do Magistério, como
também diante da obediência devida aos Superiores. Argumentamos,
criticamos, agarramo-nos às nossas próprias ideias, não consultamos
a autoridade, só temos confiança em nosso julgamento, tratamos
com desdém as opiniões dos outros. Semeamos, assim, a divisão, em
vez de cultivar a paz e a concórdia.
No que concerne à VONTADE, que é em nós a faculdade mes-
tra, a causa de nossos méritos ou deméritos, devemos renunciar a
seguir as exigências das faculdades inferiores, a fim de sempre sub-
meter perfeitamente nosso querer ao de Deus; o que exige muitos
sacrifícios, em particular o sacrifício de nossos gostos, de nossos
caprichos, de nossos interesses naturais.
Renunciar à irreflexão que nos faz seguir o impulso do momento,
o arrebatamento ou mesmo a rotina. Não refletimos antes de agir,
não nos perguntamos o que Deus espera de nós.
Renunciar à displicência, à indecisão, à falta de força moral,
todas coisas que paralisam as forças da vontade. Importa adquirir,

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


133
desenvolver as convicções de fé, que estimulam nosso querer e o
determinam a escolher o que se conforma ao querer divino.
Renunciar ao medo do fracasso: ele é uma falta de confiança, e, por
isso mesmo, diminui singularmente nossas forças. Importa, ao con-
trário, lembrar-nos de que com o auxílio da graça temos a certeza de
alcançar bons resultados.
Renunciar também a esse outro medo que é o respeito humano:
temendo as críticas ou as zombarias dos outros, apoiamo-nos menos
sobre o julgamento de Deus, o único que importa; nossa vontade é,
assim, enfraquecida.
Quanto aos maus exemplos, devemos resistir-lhes com força, pois nos
arrastam mais facilmente na medida em que correspondem a uma pro-
pensão de nossa natureza. Vimos em nossas meditações dos dias preli-
minares que é Nosso Senhor que devemos imitar, e não o mundo.
_______________

É preciso, além disso, diz-nos Montfort, “renunciar às operações dos


sentidos de nosso corpo”, isto é, “devemos ver como se não víssemos,
ouvir como se não ouvíssemos, nos servir das coisas deste mundo
como se não o fizéssemos”. (V. D., n. 81.) Essa é a doutrina do após-
tolo São Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios (7, 29-31).
Decorre disso que devemos renunciar aos olhares gravemente cul-
pados, aqueles que são comandados por maus desejos. Nosso Senhor
reprova-os energicamente quando diz: “Se o teu olho direito é para ti
causa de queda, arranca-o e lança-o para longe de ti, porque é melhor
para ti que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo
seja lançado na geena.” (Mt 5, 29.) O que não quer dizer que deve-
mos furar nossos olhos, mas que é preciso saber arrancar seu olhar da
visão de pessoas ou objetos que são motivo de escândalo.
Mas devemos também renunciar aos olhares simplesmente curio-
sos: eles podem suscitar tentações; são sempre causa de uma multidão
de lembranças e de imagens que dissipam a alma, obstruem a memó-
ria e ocasionam a maior parte de nossas distrações na oração. Purifi-
quemos nossos olhares, pousando-os sobre tudo o que é de natureza
a elevar nossa alma e a nos fazer bendizer o Criador.

134 J. M. Dayet
No que concerne às palavras contrárias à pureza ou à caridade,
se não podemos evitar ouvi-las, ao menos não as escutemos, não
ofereçamos a elas um ouvido atento; sobretudo, não interroguemos
para estabelecer ou prolongar uma conversação já perniciosa em si
mesma. É muito raro que conversações desonestas ou contrárias à
caridade não produzam efeitos desastrosos nos que as escutam. As
primeiras acendem desejos maus e provocam o pecado; as segun-
das conduzem a falatórios que prejudicam a reputação do próximo:
somos levados a repetir o que ouvimos. Apreciemos as conversações
que são luz e benevolência, ao mesmo tempo que sábia distração.
Assim usaremos deste mundo como se não usássemos, sabendo
que tudo nele é passageiro, caduco, efêmero. É o que São Paulo
denomina “morrer todos os dias”: Quotidie morior (1Cor 15, 31). Jesus,
recorrendo a uma comparação que lhe é familiar, já havia dito: “Se
o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer,
produz muito fruto.” (Jo 12, 24.) Se não morrermos para nós mesmos,
explica Montfort, e se nossas devoções mais santas não nos levam a
essa morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha
para a vida eterna, nossas devoções se tornarão inúteis, todas as nos-
sas obras de justiça serão manchadas por nosso amor-próprio e por
nossa vontade, o que fará que Deus abomine os maiores sacrifícios
e as melhores ações que possamos realizar. No momento de nossa
morte, nos encontraremos com as mãos vazias de virtudes e de méri-
tos; não teremos uma centelha do puro amor, que só é comunicado
às almas mortas para si mesmas, cuja vida está escondida com Jesus
Cristo em Deus. (V. D., n. 81.)
_______________

Tenhamos, pois, a coragem, com a graça divina, de não recuar


diante do austero preceito da negação de si mesmo: ele é a con-
dição primeira e indispensável de nossa caminhada após o divino
Mestre. Mas, como a graça divina não nos é dada senão por Maria,
as meditações que seguirão – ainda continuando a descobrir nos-
sas misérias – nos mostrarão que poderoso socorro é a Santíssima
Virgem, quando sabemos fazer bom uso de seu papel providencial

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


135
de Mediadora. Longe de nos apoiar somente sobre nossos esforços
pessoais, nos dedicaremos a recorrer continuamente à sua ajuda e
intercessão. Assim, cultivaremos e desenvolveremos em nós a virtude
da humildade; e Maria estará presente para fortificar nossa vontade
na luta contra nós mesmos e contra os inimigos que se opõem ao
nosso progresso espiritual.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 25, 31-46: Descrição do Juízo


final.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro III, cap. 8: Da pequena estima por si
mesmo aos olhos de Deus.

136 J. M. Dayet
QUARTO DIA
SOMOS POBRES PECADORES

Consideraremos hoje nossa miséria de pobres pecadores, isto


é, as faltas que cometemos no passado e as que cometemos ainda
no presente. Esse exame de nossa consciência nos fará reconhecer
o quanto somos indignos de nos aproximar diretamente e por nós
mesmos da santa e augusta Majestade de Deus; o quanto, também,
devemos sentir profundamente a necessidade de recorrer a Maria Media-
dora, misericordiosamente colocada entre nossa miséria de pecadores
e a santidade divina.
Para nosso maior auxílio, percorreremos nossas faltas segundo
ofendem mais especialmente uma ou outra das três adoráveis Pes-
soas da Trindade: nossas ingratidões para com o pai, nossas infidelidades
para com o Filho, nossa mornidão para com o Espírito Santo.43 Humi-
lhados e contritos, ficaremos felizes por encontrar, então, o rosto
acolhedor Daquela cuja misericórdia nunca faltou a ninguém. É
sua Mediação que obtém para nós as graças do perdão e as graças
mais excelentes de nossa união a Jesus Cristo.
Repitamos-lhe, para começar, a invocação familiar “Santa Maria,
Mãe de Deus, rogai por nós, pobres pecadores.”

NOSSA MISÉRIA DE POBRES PECADORES. Reconheça-


mos primeiro nossas INGRATIDÕES para com o Pai. Ele é nosso
primeiro e maior benfeitor. Devemos-lhe tudo, nossa vida de natu-
reza e nossa vida de graça. Ele nos criou, ele nos mantém na exis-
tência. Nossa alma unida ao nosso corpo, nossas faculdades, nossas
potências de conhecer e de amar vêm-nos diretamente dele. Como

43 Essa é maneira que adota Montfort, quando explica os três Domine, non
sum dignus do momento da comunhão. (V. D., n. 267, 268, 269.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


137
devemos apreciar esse dom da vida, de uma vida inteligente e livre, que
faz brilhar sobre nossa fronte algo da luz de sua Face. “Ó Deus, bendito
Sejais por ter-me criado!”, murmurava, ao morrer, Santa Clara de Assis.
A graça santificadora, recebida no batismo, é um benefício de
ordem incomparavelmente superior. Por meio dela, podemos com
toda verdade chamar Deus como “nosso Pai”, visto que ela nos dá
participação, não em sua essência (esta não se partilha), mas em sua
vida, isto é, em seu modo de agir, em sua atividade íntima. Começa-
mos, desde este mundo, a conhecê-lo como ele mesmo se conhece em
seu Verbo, e a amá-lo como ele mesmo se ama em seu Espírito Santo, o
que constitui sua vida bem-aventurada. A felicidade de Deus se torna,
assim, nossa felicidade, mesmo nesta vida presente; e foi para conquis-
tá-la para nós que o Pai deu ao mundo o Filho de sua complacência.
Que amor supõe semelhante dom, o maior que se possa conceber!
Como respondemos a esses benefícios de nossa criação e de
nossa divinização? Em vez de nos mostrarmos filialmente gratos,
não fomos, ao contrário, filhos negligentes, ingratos e revoltados, a
ponto de nos expor a perder nossos direitos à herança celeste? Não
imitamos o filho pródigo, afastando-se da casa paterna para ir dissipar
seu bem nos prazeres proibidos? Quantas faltas graves terão sujado
nossa alma no passado? O que nos reprova nossa consciência?... Se
nossas ofensas são perdoadas, resta que elas foram cometidas e que
devem nos humilhar ao pensarmos na infinita santidade de nosso tão
amoroso Pai dos Céus.
Nossas INFIDELIDADES para com o Filho nos tornaram mais
culpados ainda. Ele é nosso Redentor: por seus sofrimentos e sua
morte na cruz, pelo preço de seu sangue derramado até à última gota,
ele conquistou para nós a graça de nossa filiação divina. Muito mais,
ele nos incorporou a si: formamos com ele um só Corpo vivo, do
qual ele é a Cabeça e nós somos os membros. Vivemos de sua vida:
ele é em nós e nós somos nele. É com toda verdade que cada bati-
zado, fiel ao seu batismo, pode dizer como São Paulo: “Já não sou eu
que vivo, é Cristo que vive em mim.” Ele vive e cresce em mim pela graça
dos sacramentos e principalmente por sua Eucaristia.
Reflitamos sobre esse dom inefável que ele nos proporcionou na
véspera de sua morte, sobre essa invenção de amor que lhe permitiu

138 J. M. Dayet
vencer a morte, permanecer sempre presente em nosso meio: dei-
xar que nos alimentemos dele, para sermos transformados nele. É
assim que, sabendo que era chegada a hora de passar deste mundo
ao seu Pai, e tendo-nos amado até então, amou-nos ainda mais nesse
momento supremo, elevando-se a esse topo de afeição sobre o qual
seu Coração estará para sempre.
A esse Jesus amoroso ao extremo nós prometemos uma devoção
fiel e inviolável. Quantas vezes renovamos-lhe nossas promessas de
fidelidade! Quantas vezes também, talvez, nos separamos dele, nos
desligamos dele, tornando-nos como membros mortos no seio do
Corpo místico. Pois o pecado grave cometido de modo consciente
consiste nisto: uma ofensa que acarreta a interrupção da graça santi-
ficante, um corte do influxo vital proveniente do Cristo.
Misericordiosamente, após a humilde confissão de nossas faltas,
com o arrependimento de nosso coração, Jesus nos perdoa e nos
religa a ele, devolve-nos sua vida; mas teremos sempre a lamentar
nos termos separado dele, desprezando seu amor, seus sofrimentos e
sua morte na cruz, desprezando sua Eucaristia. Como devemos nos
humilhar, nos reconhecer indignos das ternuras e das predileções que
ele se oferece a nos devolver, como se nunca o tivéssemos ofendido!
Oh! Nossa miséria de pecadores arrependidos em face desse Amor
que quer tudo esquecer e aceitar outra vez nossas promessas!
Ingratos para com o pai, infiéis para com o Filho, é preciso ainda
que reconheçamos nossa MORNIDÃO para com o Espírito Santo,
hóspede tão doce da alma em estado de graça. Não é ele o artesão
de nossa santificação? Por suas inspirações, suas iluminações, suas
moções, ele indica o caminho a seguir, desperta os pensamentos de
fé, os bons desejos, os ímpetos generosos, os ardores de apostolado;
ele convida ao recolhimento, ao silêncio interior, à vida interior pro-
funda, à subida rumo à perfeição, aos progressos incessantes nas vir-
tudes e sobretudo na Caridade, que é o amor de Deus e do próximo.
Ele ama e quer nos ver amar sem voltar atrás.
As faltas graves o fazem ir embora; as faltas veniais voluntárias
o contristam; a solidão à qual o abandonamos tão frequentemente
provoca seus gemidos de amor não reconhecido, que são ainda cha-
mados da graça.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


139
Quantas vezes o obrigamos a partir? Quantas vezes o contrista-
mos? Quantas vezes o abandonamos, não tendo um olhar para ele,
arrebatados que estamos na dissipação das coisas exteriores? Quanta
dispersão exterior de nosso ser! Quantas distrações em nossas preces!
Quantas confissões, quantas comunhões feitas sem uma preparação
conveniente, sem uma correção séria de nossa vida espiritual! E nos-
sas transgressões à caridade em pensamentos e em palavras, nossas
palavras inúteis e más, nossos ressentimentos, às vezes, no fundo de
nosso coração, a busca de nosso comodismo, de nosso bem-estar, de
nossas satisfações naturais; nossas imortificações, nossas resistências
multiplicadas às inspirações do Espírito Santo...; quantos obstáculos
que se opõem à sua ação santificadora!
Chegamos assim à tibieza, ao contentamento de si na mediocri-
dade. Não há progresso, não há avanço, não há coragem e energia
para uma tentativa de melhora. Não nos inquietamos, e isso pode
durar muito tempo.
Então, tomando consciência de todas as nossas faltas passadas e
presentes, de nossa miséria real de pobres pecadores, reconheçamos
humildemente que somos indignos de nos aproximar por nós mes-
mos da infinita santidade das três adoráveis Pessoas divinas. Reco-
nheçamos também a sabedoria do Plano redentor, que nos deu Jesus,
Verbo encarnado, como Mediador junto ao Pai, e Maria, Mãe de Jesus, como
Mediadora junto a seu Filho.
Por Maria, que nos dedicaremos a conhecer melhor durante nossa
segunda Semana, não temeremos nos aproximar de Jesus e nos unir a ele,
sob a condução do Espírito Santo. Por Jesus, estaremos unidos ao Pai, na
unidade de amor desse mesmo Espírito Santo. Reconheçamos a necessi-
dade que temos de uma Mediadora junto ao próprio Mediador.

II

PRECISAMOS DE MARIA MEDIADORA. Jesus Cristo é


nosso Mediador de redenção e de justiça junto ao seu Pai. Maria é nossa
Mediadora de intercessão e de misericórdia junto ao seu Filho.

140 J. M. Dayet
Por meio de Jesus Cristo, apoiados e revestidos por seus méri-
tos, acedemos ao Pai, oramos a ele com toda a Igreja triunfante e
militante. Quando recitamos o Pater, é pelo coração e pelos lábios do
Filho que fazemos subir essa prece que glorifica e que pede. Não foi
ele quem no-la ensinou? É também por seus méritos que podemos
chamar Deus “nosso Pai”, visto que sua redenção conquistou para
nós a graça de nossa filiação divina. Desse modo, não nos apoiamos
sobre nós mesmos, sobre nossos próprios trabalhos, habilidades e
preparações, que seriam de pouca importância diante de Deus, para
fazê-lo se unir a nós e nos atender.
Negligenciar essa meditação e querer nos aproximar diretamente
da Majestade e da Santidade do Pai, sem nenhuma recomendação,
seria, diz-nos Montfort, “faltar com humildade, faltar com respeito
para com um Deus tão elevado e tão santo; seria fazer menos caso
desse Rei dos reis do que faríamos de um rei ou um príncipe da
terra, do qual não desejaríamos nos aproximar sem algum amigo que
falasse em nosso favor”. (V. D., n. 83.)
Mas nossa miséria de pobres pecadores é tamanha – como acaba-
mos de ver – que, mesmo junto de Jesus Mediador, precisamos ainda
de Maria Mediadora. Apesar de possuir uma natureza semelhante à
nossa, Jesus permanece “Deus, em todas as coisas igual ao seu Pai.
Ele é, por isso, o Santo dos santos, tão digno de respeito quanto seu
Pai. Se, por sua caridade infinita, ele se fez nossa caução e nosso
mediador junto a Deus, seu Pai, para aplacar sua ira e pagar-lhe o que
lhe devemos, importa, por essa razão, que tenhamos menos respeito
e temor por sua Majestade e sua Santidade?
“Digamos, portanto, ousadamente com São Bernardo, continua Montfort,
que necessitamos de um mediador junto ao próprio Mediador, e que a divina Maria
é a mais capaz de cumprir esse ofício caridoso.”44
A primeira e melhor razão é a que nos dá o próprio Verbo encar-
nado, quando de sua Encarnação: visto que é por intermédio de Maria
que ele veio até nós, é, pois, por Maria que devemos ir a ele. Não
podemos fazer melhor do que imitar seu exemplo. Em Belém, os

44 Serm. in Domin. infra octav. Assumptionis, n. 2; Montfort, no n. 85 do Trata-


do, apenas cita esse sermão de São Bernardo.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


141
pastores o contemplam ainda pequenino, deitado por sua Mãe em
uma manjedoura. Um pouco mais tarde, são os Magos que o ado-
ram sobre os joelhos e nos braços de sua Mãe. Por meio dela, ele
enche-os todos com seus tesouros de graças. O mesmo se dará ao
longo de toda a sua vida terrena: desde sua Apresentação no Templo,
onde começa ostensivamente seu Sacrifício, até o Calvário, onde ele
se consuma, é sempre Jesus que se oferece ao seu Pai e que se doa,
por meio de Maria, ao mundo manchado de crimes que ele veio lavar
em seu sangue.
Nossa miséria de pobres pecadores deve, pois, nos levar a implo-
rar com ousadia a ajuda e a intercessão de Maria. Ela é boa, acolhe-
dora, acessível aos nossos pedidos. “Nada há nela de austero nem
de desencorajador, nada de sublime ou brilhante demais; vendo-a,
vemos nossa natureza pura.” Por mais santa, por mais elevada que
seja, ela permanece sendo uma simples pessoa humana. “Ela não é
o sol que, pela vivacidade de seus raios, poderia nos cegar devido à
nossa fraqueza; mas ela é bela e doce como a lua, que recebe sua luz
do sol para torná-la conforme ao nosso pequeno alcance.
Ela é tão caridosa que não rejeita nenhum daqueles que pedem
sua intercessão, por mais pecadores que sejam; pois, como dizem
os santos, nunca se ouviu dizer, desde que o mundo é mundo, que
alguém tenha recorrido à Santa Virgem com confiança e perseve-
rança, e tenha sido por ela rejeitado.
Ela é tão poderosa que seus pedidos nunca foram negados. Ela só
precisa se apresentar diante de seu Filho para pedir a ele, que logo
concede, que logo acolhe; é sempre amorosamente vencido pelo seio,
pelas entranhas e pelas preces de sua caríssima Mãe”. (V. D., n. 85.)
_______________

Encontramos às vezes certas almas, orgulhosas até em sua pie-


dade, que vos dizem que não têm necessidade de passar pela Santa
Virgem, nem de recorrer à sua intercessão; dirigem-se diretamente ao
Nosso Senhor e se unem assim a ele. É preciso desculpá-las: falta-lhes
luz sobre a Santa Virgem e sobre si mesmas. Não refletiram sobre o
lugar central que ocupa Maria no plano divino em sua qualidade de

142 J. M. Dayet
Mãe de Deus e de Corredentora de nossas almas. Nunca escrutaram,
sobretudo, o fundo de suas misérias. Um pouco de humildade abrir-
lhes-ia os olhos.
Sucede também que encontramos outras almas – estas muito
humildes e belas – que amaram e amam muito ainda a Santa Virgem,
mas que, a partir de um certo tempo, se acostumaram a se dirigir mais
frequentemente a Nosso Senhor diretamente, a falar-lhe familiar-
mente e a provar da intimidade de sua união com ele. Experimentam,
então, alguns temores, perguntam-se se ainda estão no bom caminho,
se amam ainda a Santa Virgem como antes; e interrogam, pedem
conselho. É preciso tranquilizá-las: nessas almas amorosas e dóceis,
Maria Mediadora cumpriu sua obra de santificação. Despojou-as de
seu amor-próprio e de sua própria vontade; revestiu-as com suas vir-
tudes amáveis; colocou-as em intimidade direta com Nosso Senhor.
Depois, ela não se retirou (pois nunca se retira), mas como que se
apagou, se eclipsou, pôs-se na sombra, a fim de deixar essas almas
saborearem melhor as alegrias de sua união ao seu divino Filho.
Esse é o testemunho que nos deu de si mesma a reclusa carmelita
do beguinário de Gante, Maria de Santa Teresa (Ϯ 1677), alma admi-
ravelmente privilegiada. Espantando-se, um dia, por não mais gozar
com tanta frequência como outrora da presença da amável Maria e
de suas instruções ou afetuosas palavras, ela tinha, contudo, a íntima
convicção de que seu amor era mais tão terno, inocente, filial e doce
do que nunca. Veio-lhe, então, esta resposta interior: quando a amá-
vel Mãe estava constantemente junto de ti e te guiava no caminho
de suas virtudes, era a fim de te preparar para a união perfeita com
seu caríssimo Filho. Agora que essa união se cumpriu, ela se mantém
afastada e te deixa conversar sozinha com ele...45 Essa alma gozava
da união mística.
Ainda não chegamos a esse ponto. Enquanto permanecemos às
voltas com nossas misérias, sentimos profundamente essa necessi-
dade de recorrer a Maria, de sempre passar por sua intercessão para
ir a Jesus. Quando, recitando as Ave de nosso Rosário, bendizemo-la

45 Ver A União mística a Maria, por Maria de Santa Teresa, nos Cadernos da
Virgem, n. 15. Editions du Cerf.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


143
primeiro: “bendita sois vós entre as mulheres”, é para melhor bendizer, em
seguida, seu divino Filho: “bendito o fruto de vosso ventre, Jesus”. “A mais
forte inclinação de Maria, diz-nos Montfort, é de nos unir a Jesus
Cristo, seu Filho; e a mais forte inclinação do Filho é que nos dirija-
mos a ele por meio de sua santa Mãe.” (V. D., n. 75.) Oferecemos-
lhe honra e prazer quando seguimos o caminho virginal que ele quis
tomar para vir a nós. Maria atrai pelo encanto de sua bondade mater-
nal, mas não retém jamais uma só alma; e é coisa muito notável que
as almas verdadeiramente marianas sejam sempre almas eucarísticas.
A maravilha de Lourdes se realiza nelas: em nenhum lugar, como
nesse canto de terra aonde se dirigem as multidões do mundo inteiro,
Jesus-Hóstia é mais amado, mais aclamado e mais glorificado. Maria
exerce ali, com esplendor, seu papel de Mediadora.

_______________

No início da fórmula de Consagração que nos preparamos a


professar ou a renovar, São Luís Maria de Montfort nos faz seguir
esse caminho da mediação mariana. Depois de ter oferecido a Jesus
Cristo, a Sabedoria eterna e encarnada, a homenagem de sua adoração
e de sua gratidão, ele se humilha e nos convida a nos humilharmos
com ele, considerando nossa miséria de pobres pecadores: “Mas, ai
de mim! Ingrato e infiel que sou, não conservei (ó Jesus) os votos
e as promessas que vos fiz tão solenemente em meu batismo, não
cumpri minhas obrigações; não mereço ser chamado vosso filho nem
vosso escravo.” Vosso filho, porque tantas vezes, talvez, perdi por
minhas faltas vossa graça santificante; vosso escravo, porque quis
emancipar-me e subtrair-me aos direitos de vossa Redenção. Por isso,
“como não há nada em mim que não mereça vossa rejeição e vossa
cólera, não ouso mais me aproximar, por mim mesmo, de vossa santa e augusta
Majestade”. É a homenagem da satisfação se elevando de um coração
contrito, humilhado à lembrança de suas faltas passadas e à visão de
sua miséria presente.
Então, ocorre o pedido, a imploração das graças, aos pés de Maria
Mediadora: “É por isso que recorro à intercessão e à misericórdia de vossa

144 J. M. Dayet
Santíssima Mãe, que me destes como Mediadora junto a vós; e é por meio dela
que espero obter de vós a contrição e o perdão de meus pecados”, isto é, a graça
que vai primeiro curar e purificar minha alma; depois, “a aquisição e a
conservação da Sabedoria”, isto é, a graça que me transformará progres-
sivamente, até fazer-me possuir constantemente o amável e adorável
Jesus, gozando dos tesouros que sua divina Pessoa encerra.
Com que confiança e que perseverança devemos, então, implorar
tais graças pela intercessão e pela misericórdia de nossa celeste Media-
dora! Que consolação para nossa miséria de pobres pecadores!

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 13, 1-21: A figueira estéril. A


mulher encurvada. O grão de mostarda e de fermento.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro III, cap. XIII: Da obediência do servo
humilde, a exemplo de Jesus Cristo.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


145
QUINTO DIA
PERMANECEMOS FRACOS E FRÁGEIS

Não chegamos ainda ao termo do conhecimento de nossas misé-


rias. São Luís Maria de Montfort (V. D., n. 87) pede-nos ainda que
consideremos o quanto “é difícil, dada nossa fraqueza e fragilidade, con-
servar em nós as graças e os tesouros que recebemos de Deus”, se
não os confiamos à Santíssima Virgem. É preciso lutar constante-
mente, com efeito, contra nós mesmos, contra a malícia e a astúcia
dos demônios, contra a corrupção do mundo.
Importa, pois: 1º RECONHECER nossa fraqueza e fragilidade,
face a inimigos que nunca se desarmam; 2º RENUNCIAR a nos
pensar capazes de conservar, por nossos próprios meios, os tesouros
recebidos de Deus. Confiando-os a Maria, essa boa Mãe nos ajudará
poderosamente a triunfar sobre nossos inimigos, e assegurará nossa
perseverança. Essa é a imensa vantagem que nos oferece nossa doa-
ção total entre suas mãos.
Oremos a ela com um novo ímpeto de fervor: Ave, Maria!

Reconheçamos primeiro a grande dificuldade de conservar em nós os tesouros


que recebemos de Deus. Esses tesouros são a graça santificante, nos-
sas virtudes, os méritos de nossas boas obras. “Eles valem mais, diz
Montfort, do que o Céu e a terra”, isto é, toda a criação material,
visto que nos asseguram a eterna beatitude.
É certo que teremos sempre de lutar contra nós mesmos. Nossas
meditações precedentes provaram-no de forma abundante. Nosso
corpo corruptível, se não é duramente tratado, busca seu bem-estar fora
de todo espírito de mortificação. Nossa alma, abandonada a si mesma,
é fraca e inconstante: qualquer insignificância a perturba e abate. Se não
ficamos atentos, nossas melhores resoluções se dissipam, e vemo-nos
novamente a vegetar em vez de progredir. Como não temer, então,
perder o que trabalhosamente adquirimos? Na primeira ocasião que se

146 J. M. Dayet
apresentar, nossa pobre natureza humana saberá resistir? Lembremo-
nos do exemplo do apóstolo Simão Pedro: ele prometera tudo, e com
que fervor; e, diante das interrogações de uma serva, soçobra mise-
ravelmente.
O espírito está pronto para prometer, isto é, a alma, a vontade,
com seus entusiasmos fáceis; mas a carne, isto é, a natureza humana,
permanece tristemente frágil na presença de uma ocasião que a tenta.
Não pensamos que isso poderá nos arrastar para longe. Detemo-nos,
argumentamos; expomo-nos, assim, ao perigo, cultivamo-lo, brinca-
mos com ele, presumimos de modo imprudente sobre nossa força,
até que chega um momento em que a fraqueza da carne prevalece
contra essa força do espírito, e caímos gravemente.
Teria sido melhor, seguindo a recomendação de Nosso Senhor
(Mt 26, 41), cercar-se de vigilância, não cair na armadilha, e recorrer
à oração para ter a graça de resistir. Quantas vezes, talvez, apesar das
experiências do passado, ignoramos essa advertência do divino Mes-
tre, que nos alertava contra nossa fraqueza!
_______________

Devemos considerar também os demônios, “que são sutis ladrões,


diz-nos Montfort: eles podem nos surpreender inesperadamente
para nos roubar e saquear; espreitam noite e dia o momento favorá-
vel para isso; rodeiam incessantemente para nos devorar (1Pdr 5, 8),
e tirar de nós em um instante, por um pecado, tudo o que pudemos
ganhar de graças, de méritos em vários anos.
“Sua malícia, sua experiência, suas astúcias e seu número devem
nos fazer temer infinitamente essa desgraça, visto que pessoas mais
cheias de graças, mais ricas em virtudes, mais fundadas em experi-
ência e mais elevadas em santidade foram surpreendidas, roubadas e
pilhadas deploravelmente.
“Ah!, prossegue ele, quantos cedros do Líbano e estrelas do firma-
mento vimos cair miseravelmente, e perder toda sua altura e claridade
em pouco tempo!”. Alusão à palavra de Santo Agostinho, que dizia:
“Vi caírem cedros do Líbano, isto é, homens de uma virtude consu-
mada, cuja queda pensava ser tão possível quanto a de um Jerônimo

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


147
e de um João Crisóstomo.” A história da Igreja, com efeito, poderia
nos lembrar de certas quedas retumbantes, que rasgaram sua túnica
sem costura. Nós mesmos, em nosso meio mais ou menos próximo,
não ficamos, às vezes, surpresos ao saber, de repente, do escândalo
ocasionado por este ou aquele tão destacado, que pensávamos ao
abrigo de semelhante desastre?
“De onde vem essa mudança?” – interroga nosso santo missioná-
rio, que tinha uma longa experiência com as almas. E responde: “Não
foi falta de graça, que não falta a ninguém, mas falta de humildade. Eles
pensaram ser mais fortes e autossuficientes do que eram, acreditaram
ser capazes de conservar seus tesouros; se fiaram e se apoiaram sobre
si mesmos; pensaram que sua casa estava segura o bastante, e que
seus cofres eram fortes o bastante para guardar o precioso tesouro
da graça, e foi por causa desse apoio, mesmo imperceptível, que eles
tinham em si mesmos (embora lhes parecesse que se apoiavam unica-
mente sobre a graça de Deus), que o Senhor justíssimo permitiu que
fossem roubados, abandonando-os a si mesmos.” (V. D., n. 88.)
Isso não lhes teria sucedido, se tivessem confiado seu tesouro
à Santíssima Virgem, consagrando-se inteiramente a ela, como em
breve diremos.
_______________

Por fim, mesmo depois de ter renunciado terminantemente a


seguir o espírito do mundo, como fizemos, devemos nos proteger
contra sua corrupção. Ela está mais contagiosa do que nunca.
Em todo tempo, o mundo foi corrompido e corruptor; mais hoje
ele expõe claramente sua corrupção, sem sombra de pudor, atacando,
assim, a infância, a juventude, as almas cristãs que não tencionam de
modo algum querer pertencer-lhe.
Como fez dizer o Papa Pio XII por meio de uma Carta do Cardeal
Prefeito da Sagrada Congregação do Concílio aos bispos do mundo
inteiro, “ninguém ignora que, durante a estação estival, sobretudo,
vemos, aqui e ali, coisas que não podem deixar de ofender os olhos e
as almas daqueles que não põem em segundo plano ou não despre-
zam completamente a virtude cristã e o pudor humano.

148 J. M. Dayet
“Não somente nas praias, ou nos locais de veraneio, mas por toda
parte, mesmo nas ruas das cidades e dos vilarejos, nos lugares priva-
dos e públicos, e amiúde quase nos templos consagrados a Deus, se
exibe uma indigna e inconveniente moda do vestuário... Em particu-
lar, as vestimentas femininas são às vezes tais que parecem favorecer
mais a impudicícia do que o pudor.
“Chegamos ao ponto em que tudo o que se passa ou se exibe na
vida privada ou em público, como depravação ou desonestidade, é
relatado impudentemente nos jornais, nas publicações e revistas de
todos os gêneros; enquanto nas incontáveis salas de cinema isso é
exposto aos olhos de todos sobre a tela; de modo que não somente a
fraca e displicente juventude, mas também a idade madura é profunda-
mente impressionada por esses espetáculos imorais, tão perniciosos para
os espíritos sãos. Que males decorrem deles, a que perigos expõem,
e ninguém se dá conta disso.”46
No século V, o papa São Leão Magno denunciava a corrupção
do mundo, num ponto em que se tornava como que necessário, dizia
ele, que mesmo os corações religiosos fossem manchados, senão por
sua lama, ao menos por sua poeira.47 Em nossos tempos, é sua lama
que se propaga sobre a sociedade cristã inteira; “de modo que, acres-
centava Montfort depois de ter citado esse texto, é uma espécie de
milagre quando uma pessoa permanece firme no meio dessa torrente
impetuosa sem ser arrastada, no meio desse mar revolto sem ser sub-
merso, no meio desse ar empestado sem sofrer dano” (n. 89). Ai de
mim! Que diria ele hoje, na presença dessa exposição de corrupção
que a voz de Roma estigmatizava acima? Entretanto, acrescenta ele
ainda, se for preciso um milagre, “é a Virgem unicamente fiel... que
o fará em favor daqueles e daquelas que a servem da maneira correta”
(n. 81), isto é, pela Consagração vivida para a qual nos preparamos.

46 Carta sobre a imodéstia da moda, dirigida em 15 de agosto de 1954, por


S. Em. o Cardeal Ciriaci, Prefeito da S. C. do Concílio, aos bispos do
mundo inteiro, segundo mandato recebido de S. S. Pio XII.
47 Necesse est de mundano pulvere etiam religiosa corda sordescere. (Serm. 4 de
Quadrag.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


149
II

Renunciando, pois, a nos acreditar capazes de conservar, por nós


mesmos, nossos tesouros de graça, confiá-los-emos a Maria. Essa boa
Mãe nos ajudará poderosamente na luta contra nossos inimigos, e assegurará
assim nossa perseverança.
Por meio da Consagração que Montfort nos propõe, “confiamos à
Santa Virgem, que é fiel, diz ele, tudo o que possuímos; constituímo-la
depositária universal de todos os nossos bens de natureza e de graça. É
na sua fidelidade que nos fiamos, é sobre seu poder que nos apoiamos,
é sobre sua misericórdia e sua caridade que nos fundamos, a fim de que
ela conserve e aumente nossas virtudes e méritos, apesar do diabo, do
mundo e da carne, que se esforçam para roubá-los de nós.
“Dizemos-lhe, como um bom filho à sua mãe, e um fiel servo
à sua senhora: minha boa Mãe e Senhora, reconheço que até aqui
recebi mais graças de Deus, por vossa intercessão, do que mereço;
e minha funesta experiência me ensina que carrego esse tesouro em
um vaso muito frágil e que sou fraco demais e miserável demais para
conservá-las em mim mesmo; por vossa graça, recebei como depó-
sito tudo o que possuo, e conservai-mo por vossa fidelidade e vosso
poder. Se me guardardes, nada perderei; se me sustentardes, não cai-
rei; se me protegerdes, estarei a salvo dos meus inimigos.
“Isto é, acrescenta ele, o que diz São Bernardo em termos for-
mais, para nos inspirar essa prática: Quando Maria vos sustenta, vós não
caís; quando ela vos protege, não temeis; quando ela vos conduz, não vos cansais;
quando ela vos é favorável, chegais até o porto de salvação.48
“São Boaventura parece dizer também a mesma coisa em termos
mais formais: A Santa Virgem não é somente conservada na plenitude dos
santos; mas ela conserva também e guarda os santos em sua plenitude, a fim de
que esta não diminua; ela impede que seus méritos pereçam, que suas graças se
percam, que os demônios os prejudiquem; enfim, ela impede que Nosso Senhor os
castigue quando pecam.”49 (V. D., n. 174.)
_______________

48 Homilia II super Missus est, n. 17.


49 S. Bonav. in speculo B. Virginis.

150 J. M. Dayet
Ouçamos agora Montfort exaltar a fidelidade da Santíssima Virgem.
“Ela é a Virgem fiel que, por sua fidelidade a Deus, repara as perdas
que produziu Eva, a infiel, por sua infidelidade, e que obtém a fideli-
dade a Deus e a perseverança àqueles e àquelas que se apegam a ela. É
por isso que São João Damasceno a compara a uma âncora firme, que
os segura e os impede de naufragar no mar agitado deste mundo, onde
tantas pessoas perecem por não se prenderem a essa âncora firme.
Prendemos, diz ele, as almas à vossa esperança, como a uma âncora firme.50
“Foi a Maria que os santos que se salvaram mais se apegaram, e
apegaram os outros, a fim de perseverar na virtude. Felizes, pois, e
mil vezes felizes os cristãos que agora se apegam fielmente e intei-
ramente a ela como a uma âncora firme. Os esforços da tempes-
tade deste mundo não os farão submergir, nem perder seus tesouros
celestiais. Felizes aqueles e aquelas que entram nela como na arca de
Noé! As águas do dilúvio de pecados, que afogam tantas pessoas,
não os prejudicarão, pois aqueles que estão em mim para trabalhar em sua
salvação não pecarão, diz ela com a Sabedoria.51 Felizes os filhos infiéis
da desventurada Eva que se apegam à Mãe e Virgem fiel, que permanece
sempre fiel e jamais nega a si mesma,52 e que ama sempre os que a amam,53 não
somente com um amor afetivo, mas com um amor efetivo e eficaz,
impedindo-os, por uma grande abundância de graças, de recuar na
virtude ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
“Essa boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo o que lhe
é confiado em depósito; e, depois de o ter recebido uma vez na qua-
lidade de depositária, é obrigada por justiça, em virtude do contrato
de depósito, a guardá-lo para nós; assim como uma pessoa a quem eu
tivesse confiado mil escudos em depósito seria obrigada a guardá-los
para mim, de modo que se, por sua negligência, meus mil escudos
viessem a ser perdidos, ela seria justamente responsável por isso. Mas
não, jamais a fiel Maria deixará se perder, por sua negligência, o que

50 Serm. in Dormitione B. M. V.
51 Qui operantur in me non peccabunt. (Eclo 24, 30.)
52 Fidelis permanet, se ipsam negare non potest. Aplicação à Santa Virgem do
texto de São Paulo: 2Tim 2, 13.
53 Ego diligentes me diligo. (Prov 8, 17.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


151
lhe tivermos confiado: o Céu e a terra passariam antes que ela fosse
negligente e infiel para com os que se fiam nela...
“Que os fiéis servos da Santa Virgem digam, pois, ousadamente,
com São João Damasceno: Tendo confiança em vós, ó Mãe de Deus, serei
salvo; tendo vossa proteção, não temerei nada; com vosso auxílio eu combaterei e
porei em retirada meus inimigos, pois vossa devoção é uma arma de salvação que
Deus dá àqueles que ele deseja salvar.” (V. D., n. 175, 176, 182.)
_______________

Como vemos, nossa inteira confiança em Maria não nos dispensa,


de modo algum, de prosseguir na luta contra nós mesmos e contra os
inimigos de nossa alma; mas que segurança ela nos assegura, e quanto
facilita nossas renúncias, sempre penosas em si mesmas! Jamais nos
desencorajemos. Nossa inconstância pode ser muito grande, e nossa
fraqueza, extrema; razão a mais para entregar tudo às mãos de Maria
e para continuar a trabalhar com sua ajuda para aumentar a cada dia
nosso tesouro de méritos e de virtudes.
Reconheçamo-lo; esta primeira Semana de nossos Exercícios
não apresenta mais, doravante, sua austeridade do princípio: Maria
Mediadora se encontra cada vez mais em nosso caminho, fiel e vigi-
lante Guardiã.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 14, 37-54: Censuras de Jesus


aos fariseus.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro III, cap. XX: Da confissão de sua
fragilidade e das misérias desta vida.

152 J. M. Dayet
SEXTO DIA
FAÇAMOS VALER NOSSO SEGREDO DE GRAÇA

A Consagração, que nos preparamos para professar ou renovar,


não nos pede somente para renunciar – para o maior benefício de
nossas almas – a querer conservar por nossos próprios meios os
tesouros que recebemos de Deus, ela exige também muitas outras
renúncias. Propondo-a à nossa livre escolha, São Luís Maria de Mon-
tfort não nos diz que ela é, entre todas as formas da verdadeira devo-
ção à Santíssima Virgem, “a que mais nos conduz a essa morte para nós
mesmos”? Por isso, ele a vê, com seu olhar de santo, “como sendo a melhor
e a mais santificadora”. Ela é “um desses segredos de graça, desconhecido pela
maioria”, para chegar “em pouco tempo, com suavidade e facilidade, a nos esva-
ziar de nós mesmos, a nos encher de Deus e nos tornar perfeitos” (n. 62).
Ao terminar nossa primeira Semana, não podemos fazer nada
melhor do que considerar as renúncias que exige nossa Consagração,
e a riqueza de santificação que essas renúncias trazem às nossas almas.
Roguemos ao Espírito santificador e à Virgem, Mediadora de todas
as graças. Veni, sancte Spiritus! Ave, gratia plena.

RENÚNCIAS QUE PEDE NOSSA CONSAGRAÇÃO. Entre-


gando a Maria nosso CORPO com todos os seus sentidos e membros, renun-
ciamos a nos servir deles de modo diferente ao que ela mesma nos
inspira a fazer. Essa ideia já nos conduz para além da simples renún-
cia, assinalada em nossa meditação do terceiro Dia: ela nos leva a
sacrifícios imediatos mais generosamente consentidos.
Que se trate de nossos olhares, de nossas conversações, do que
afeta nosso paladar, nosso olfato, nosso tato, não nos contentaremos
somente em afastar o que seria mau ou rasteiro; mas vigiaremos para
orientar a atividade de nossos sentidos interiores na direção do que
os eleva, regozija, dilata, aumenta, rumo ao que favorece a irradiação
interior. Olhar uma imagem ou estátua da Santa Virgem e sorrir-lhe se

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


153
estamos sofrendo; falar às almas da felicidade de pertencer-lhe, ofere-
cer-lhe certas pequenas privações, o sábado principalmente, saber dizer
sempre que possível, com São Francisco de Sales: “Os maus odores são
rosas para mim”; aceitar com alegria as estações como se apresentam...
Maria está ali, sempre muito próxima, com suas graças atuais que ela
nos convida a possuir por meio das renúncias aceitas por seu amor.
Quanto a nossos membros, se são fortes, sejamos felizes por ofe-
recer-lhe, todos os dias, as fadigas do trabalho da jornada; se estão
doentes ou frágeis, nossa oferenda, feita de paciência, de submissão,
de abandono, será ainda mais meritória.
Entregando a Maria nossa ALMA com todas as suas faculdades, o
horizonte se amplia ainda mais. Nossa inteligência, nosso juízo, nosso
querer, e nossos sentidos inteiros de imaginação, de sensibilidade, de
memória, são em nós maravilhosas capacidades de luz, de amor, de
devotamento; forças de radiação e de apostolado, recursos de vida e de
imolação. Cabe à nossa generosidade abri-las também tão amplamente
quanto possível à ação santificadora de Maria, rogar a ela que penetre
como em seu domínio, para que nos leve a nos servir delas no esque-
cimento de nós mesmos e dos desejos de conquista.
Estimaremos ocupar nosso pensamento com a Virgem, ler e
meditar sobre o que pode nos ajudar a aprofundar seu mistério. Esti-
maremos oferecer-lhe uma vontade forte, intransigente em face do
pecado; uma vontade obediente, impregnada do espírito de depen-
dência, pronta a perceber suas inspirações.
Estimaremos descobrir, tanto nas belezas da natureza quanto no
contato das coisas familiares, evocações Daquela que a Igreja canta
em suas Ladainhas de Loreto e nas estrofes do Cântico dos Cânticos.
Lembramo-nos dos atos deliciosos de M. Olier, em sua Jornada cristã,
tirando proveito de todas as circunstâncias da vida cotidiana como
de degraus para nos elevar até Deus: “Quando vamos aos campos,
quando vemos o sol, quando vemos a terra, a grama, as flores, os fru-
tos, quando ouvimos cantar os pássaros...” Assim tiraremos proveito
dos mais humildes espetáculos que se oferecem à nossa imaginação
para bendizer Maria, louvá-la, agradecer-lhe, cantar-lhe nosso cântico
interior. Como nos encontramos longe, então, das regiões de sonhos
e quimeras onde rodeia o tentador.

154 J. M. Dayet
Vigiaremos, semelhantemente, para ordenar nossa sensibilidade
segundo a direção que a própria Virgem lhe imprime. Sendo Maria
a Rainha de nosso coração, seu amor deve dirigir todas as nossas
afeições. Quantas alegrias experimentaremos então, como nos senti-
remos livres para amar as almas, todas as almas das quais nos apro-
ximarmos, sobretudo as almas dos pequenos, dos humildes, dos
pobres, dos abandonados e deserdados deste mundo, as dos doen-
tes, dos sofredores, dos cobertos de provações. Não era para ela,
antes dos outros, que se dirigia a ternura do divino Mestre? Maria não
deseja nos ver amar nossos irmãos como seu divino Filho amou a
todos nós, com bondade, doçura, paciência, condescendência, mise-
ricórdia, com espírito de solidariedade e de auxílio mútuo? Conserva-
remos assim da nossa sensibilidade – essa preciosa faculdade que não
é, de modo algum, sentimentalidade ou pieguice – toda a sua força
de devotamento ao serviço de uma vontade unicamente desejosa de
testemunhar compaixão aos que têm mais necessidade.
Quanto à nossa memória, o melhor não é conservá-la sempre
rica da lembrança dos benefícios dos quais fomos objeto da parte
de Maria? De quantos favores nos cobriu ela? De quantas quedas
nos reergueu? De quantos acidentes nos preservou! Cultivemos essas
reconfortantes lembranças: elas nos libertarão de certas outras nas
quais se agitam os ressentimentos, os rancores, as voltas e o isola-
mento sobre nós mesmos. Na basílica de Nossa Senhora de Liesse,
perto de Laon, sobre um dos ex-votos que forram suas paredes, lê-se
esta inscrição: “A Santa Virgem trouxe alegria à minha vida.” Teste-
munho de uma alma que soube se elevar acima das adversidades e
contrariedades da vida presente para se refugiar na alegria pacifica-
dora que lhe trazia seu amor por Maria.
_______________

Com nosso corpo e nossa alma, entregamos a Maria todos os


BENS que possuímos: bens exteriores de ordem temporal e, sobre-
tudo, bens interiores de ordem espiritual. Os primeiros concernem
principalmente ao nosso corpo; os segundos constituem a riqueza de
nossa alma.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


155
Entregando a Maria nossos bens exteriores, renunciamos a conside-
rá-los senão como pertencendo a ela em primeiro lugar. Na reali-
dade, ela já os possui, visto que o universo inteiro é seu domínio;
mas queremos que ela os possua também pelo motivo particular de
nossa doação pessoal. Reconhecemos expressamente que eles são
sua propriedade, que conservamos somente o seu uso. Vemos, logo,
que elevação de espírito supõe semelhante renúncia.
Aparentemente, aos olhares daqueles no meio dos quais vivemos,
continuamos nossas compras e nossas despesas segundo as neces-
sidades da existência e segundo as exigências de nossa situação. É
preciso que seja assim. Mas, no íntimo, uma nova luz está presente,
projetando seus raios sobre o uso que devemos fazer, na dependên-
cia da vontade de Maria, dos bens de fortuna, do fruto de nosso
trabalho, de nossas economias, para não dispor deles senão em um
grande espírito de desapego, de justiça, de gratidão, de moderação
quanto a si mesmo e caridade para com os outros.
Da mesma forma, quando compramos ou recebemos uma
roupa, um alimento, um remédio, um livro, tal utensílio de escritó-
rio, tal artigo de toilette, etc., nosso primeiro gesto deve ser aceitar
essas coisas como provenientes das mãos da Santa Virgem. Devemos
agradecer-lhe imediatamente, oferecer-lhe o uso que faremos delas e
sempre considerar sua glória antes de nosso proveito.
M. Olier seguia pontualmente esse hábito. “Nunca ousei, confes-
sou ele, servir-me de alguma coisa, como de chapéus, roupas, sem ter
consagrado a Maria o primeiro uso dela... Ao perceber que só eu o
praticava, cheguei a pensar que se tratava de uma fraqueza, uma tolice
e uma sujeição exagerada. Mas quando deixava de fazê-lo, naquele dia
mesmo, ou pouco tempo depois, minhas coisas se perdiam, ou se quei-
mavam, ou se rasgavam; e esse castigo visível me advertia para corrigir
minha falta e não mais cometê-la.”54 Há, pois, uma virtude especial
nesse fato de oferecer cada vez a Maria até os menores objetos que
adquirimos: isto supõe múltiplas renúncias secretas que ela nos faz
cumprir “com suavidade e facilidade”, como Montfort nos prevenira.
A completa doação à Santa Virgem de nossos bens interiores exige
ainda outras renúncias. É toda a riqueza de nossa vida espiritual que

54 M. Letourneau, Pensamentos escolhidos de M. Olier, 2ª edição, 1915. p. 143.

156 J. M. Dayet
lhe entregamos; e, além disso, o valor que contêm nossas boas ações
passadas, presentes e futuras: seu triplo valor de mérito, de oração e
de sacrifício.
Seu valor de mérito é confiado à guarda da Santíssima Virgem. É
coisa estritamente pessoal, inalienável, incomunicável. Nossos méri-
tos são os títulos com os quais compramos nosso lugar no paraíso.
Mas esses títulos, como vimos em nossa meditação precedente, não
estão em maior segurança nas mãos de Maria do que nas nossas? Ela
saberá guardá-los fielmente, visando nosso melhor interesse. Saberá
defendê-los. Entreguemos-lhos com confiança.
Seu valor de oração e de sacrifício não é coisa inalienável: podemos
beneficiar outras pessoas com ele. Por meio de nossas preces, pode-
mos obter favores espirituais e temporais para esta ou aquela pessoa.
Por meio de nossos sacrifícios, nossas satisfações, podemos obter para
pecadores, moribundos, para almas do Purgatório a redução da pena,
devida aos pecados perdoados. As indulgências, que nos dedicamos a
ganhar, abrangem essencialmente essa vantagem tão apreciável.
Desse duplo valor da prece e do sacrifício, fazemos a Maria um
abandono completo, incondicional. Renunciamos a dispor deles, e dei-
xamo-la livre para utilizá-los conforme sua vontade, como bem lhe
parecer. Nossa primeira e direta intenção não é precisamente nos
privar em favor dos outros, mas deixar a Maria a inteira liberdade de
fazer o que desejar, no maior desinteresse de nós mesmos.
“Que eu saiba, escrevia o cardeal Mercier, não existe ato mais abran-
gente que a alma pode dedicar a Deus e a Cristo (por intermédio de Maria)
do que esse ato de renúncia, tal como o entende São Luís Maria de Montfort...
Os conselhos evangélicos, tal como são correntemente praticados, comportam a
renúncia aos bens exteriores, às satisfações dos sentidos, à independência da von-
tade pessoal. A devoção de Montfort vai mais longe: renuncia até mesmo à livre
disposição de tudo o que, em nossa vida espiritual, é suscetível de ser objeto de
renúncia... Oh! Sim, vai longe o abandono que ele prega; vai, parece, ao extremo.
Somente Deus, para cada alma, pode medir seu alcance.”55

55 Carta pastoral sobre a Mediação universal da Santíssima Virgem e a Ver-


dadeira Devoção a Maria, segundo São L. M. de Montfort, novembro
1924.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


157
Que coroamento de todos os sacrifícios já consentidos! Oh!
Agradeçamos ao Padre de Montfort por ter-nos legado tamanho
segredo de graça!

II

Para intensificar nossa gratidão, consideremos agora A RIQUEZA


DE SANTIFICAÇÃO que beneficiará nossas almas. Nossas renúncias
entre as mãos de Maria nos fazem exercer, com efeito, de maneira muito
perfeita, a caridade para com Deus e a caridade para com o próximo.
A caridade para com Deus, pois é absolutamente certo que a San-
tíssima Virgem empregará nossa posse espiritual primeiro e antes de
todo para a maior glória de Deus, o que é o fim mais elevado e mais
nobre. É também - ai de mim! - o fim em que geralmente menos pen-
samos. “Quase ninguém, constatava Montfort, age para esse nobre
fim, embora sejamos a ele obrigados; seja porque não sabemos onde
está a maior glória de Deus, seja porque não a desejamos.”
É tão fácil iludir-nos sobre aquilo que cremos ser a maior gló-
ria de Deus, e, sobretudo, tão difícil afastar toda busca de interesse
pessoal. Mas “Maria conhece muito perfeitamente onde está a maior
glória de Deus, e tudo faz pela maior glória de Deus. Podemos, pois,
estar seguros de que o valor de todas as nossas ações, pensamentos
e palavras será empregado para a maior glória de Deus”! A Santa
Virgem exerce assim, em nosso nome, a primeira das caridades, essa
caridade perfeita que faz os interesses de Deus estarem antes dos
nossos. “Pode-se encontrar algo de mais consolador para uma alma
que ama Deus com um amor puro?” (V. D., n. 151.) Que riqueza de
méritos decorre disto! Longe de perder o que quer que seja, adquiri-
mos um tesouro incalculável com vistas à eternidade.
Além disso, se a Santa Virgem quiser também exercer, em nosso
nome, a caridade para com o próximo, o próximo conhecido e desco-
nhecido, o próximo da Igreja universal, o das missões longínquas
e das regiões mais abandonadas do Purgatório, perderemos nisto
alguma coisa? Aqui também, não é a caridade que causa o mérito,
que aumenta nossos méritos? E como nossos méritos são coisa

158 J. M. Dayet
pessoal e inalienável, não teremos ganhado com isto a posse de um
Céu mais belo?
Quão vã parece, então, a apreensão, às vezes manifesta, de uma
estadia prolongada no Purgatório! Como “uma alma fervorosa e
generosa, que faz os interesses de Deus e do próximo estarem antes
dos seus; e que dá a Deus tudo o que tem, sem reserva, de modo
que não pode mais: non plus ultra; como essa alma generosa e liberal,
que não respira senão a glória de Deus e o reino de Jesus Cristo por
sua santa Mãe, e que se sacrifica inteiramente para conquistá-lo, será
punida no outro mundo, por ter sido mais liberal e mais desinteres-
sada do que as outras? Pelo contrário, afirma Montfort; essa alma
será mais magnificamente recompensada neste mundo e no outro.”
(V. D., n. 133.)
Neste mundo, pois a Santíssima Virgem não se deixa jamais vencer
em amor e em liberalidade: ela mesma “se dá também inteiramente e
de maneira inefável àquele que lhe dá tudo. Ela o faz ser tragado no
abismo de suas graças; orna-o com seus méritos; apoia-o com seu poder;
ilumina-o com sua luz; abrasa-o com seu amor; comunica-lhe suas vir-
tudes: sua humildade, sua fé, sua pureza, etc.; torna-se sua caução, seu
suplemento, e seu valioso tudo para com Jesus”. (V. D., n. 144.)
No outro mundo, nossa recompensa será sermos introduzidos mais
rapidamente no paraíso, pois a caridade perfeita suprime o Purgatório,
ou – se resta ainda alguma expiação – diminui-o notavelmente. Muito
mais, como dissemos, aumentando nossos méritos, ela aumenta tam-
bém nosso grau de glória no Céu. Podemos desejar mais rica recom-
pensa? Jamais se realiza melhor a palavra do Evangelho: “Dai, e dar-se-
vos-á: uma medida boa, cheia, recalcada e acogulada...” (Lc 6, 38.)
_______________

Ofereçamos, pois, a Maria, com a mais absoluta confiança, todas


as renúncias que nos pede nossa Consagração. Digamos-lhe, desde
agora, o que lhe diremos com ainda mais fervor no fim destes Exercí-
cios preparatórios, que nós lhe “deixamos o inteiro e pleno direito de dispor
de nós e de tudo o que nos pertence, sem exceção, segundo sua vontade, para a
maior glória de Deus, neste mundo e na eternidade”.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


159
Caminharemos de luz em luz. As duas Semanas que seguem nos
reservam claridades de uma ordem superior.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 17, 12-19: Os dez leprosos; e


cap. 18, 9-14: O fariseu e o publicano.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, Livro III, cap. XXX: Devemos pedir a
Deus seu auxílio.

160 J. M. Dayet
A SEGUNDA SEMANA
CONHECIMENTO
DA SANTA VIRGEM

PRIMEIRO DIA
SEU LUGAR NO PLANO REDENTOR

Entremos com alegria nesta segunda Semana, que devemos


empregar no conhecimento da Santíssima Virgem. Trabalho amável
e exaltante, impede-nos de nos demorar em demasia na considera-
ção de nossas misérias. Ganhamos incomparavelmente ao olhar para
Maria, a criatura mais amada de Deus, e que nós mesmos, por causa
disso, nunca devemos temer amar em excesso.
Se Maria não é tão amada quanto deveria ser, é porque não é
conhecida o bastante. Muitos de seus filhos testemunham-lhe apenas
uma devoção limitada. Eles a amariam mais, se possuíssem mais luz.
Agradeçamos ao Padre de Montfort por ter-nos dado seu Tra-
tado mariano, cuja profunda doutrina nos conduz logicamente à mais
luminosa maneira de amar Maria e de nos entregar inteiramente à sua
ação materna.
Com ele consideraremos, nesta primeira meditação, o lugar da
Santíssima Virgem no plano divino redentor: ela está no centro, com
Jesus e na dependência de Jesus. Deus quis cumprir a Encarnação por meio
de Maria, e Deus quer ainda cumprir por meio de Maria a santificação
das almas.
Valendo-nos dessa luz reveladora, perguntar-nos-emos que lugar
nós mesmos desejamos dar à Santíssima Virgem em nossa vida interior.
Recitemos todos os dias, como na primeira Semana, as ladainhas do
Espírito Santo e a Ave, maris Stella. Além disso, é-nos recomendado
recitar um rosário todos os dias, ou, pelo menos, um terço, para obter
do Espírito Santo essa graça do conhecimento de sua Esposa Imacu-
lada. (V. D., n. 229.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


161
I

DEUS QUIS CUMPRIR A ENCARNAÇÃO POR INTERMÉDIO


DE MARIA

Montfort começa por mostrar-nos as três Pessoas divinas fixando


sobre Maria a escolha de seu eterno conselho:
“Deus Pai deu seu Filho único ao mundo por intermédio de Maria.
Por mais que tenham suspirado os patriarcas, por mais que tenham
pedido os profetas e os santos da antiga Lei, durante milênios, para
ter esse tesouro, somente Maria o mereceu e achou graça diante de Deus
(Lc 1, 30), pela força de suas preces e pela elevação de suas virtudes.
O mundo era indigno, diz Santo Agostinho, de receber o Filho de
Deus imediatamente das mãos do Pai; deu-o a Maria, a fim de que o
mundo o recebesse por meio dela.
“Deus Filho se fez homem por nossa salvação, mas em Maria (em seu
ventre virginal) e por Maria (por sua cooperação voluntária e amorosa).
“(Foi por isso que) Deus Espírito Santo formou Jesus Cristo em
Maria, mas depois de ter-lhe pedido seu consentimento por intermé-
dio de um dos primeiros ministros de sua corte”. (V. D., n. 16.)
Que excessos de deferência, poder-se-ia dizer! Entre todas as filhas
de Israel, somente Maria de Nazaré é o objeto dos olhares divinos. O
Pai foi amorosamente vencido por suas preces. O Filho escolheu, para
encarnar, o caminho mariano de preferência a todos os outros. O Espí-
rito Santo não realizará essa grande obra sem ter obtido previamente o
consentimento da Virgem. Que visão profunda, nessas poucas linhas,
da predestinação da Virgem! Ao lado de Jesus, predestinado a ser o
Verbo encarnado, Maria, desde toda a eternidade, aparece predestinada
a ser sua Mãe, a verdadeira Mãe de Deus. Esta é uma predestinação
superior à de toda criatura, de uma superioridade não somente de grau,
mas de ordem. Que magnífico anúncio, também, dessa maravilha que
será a união ativa e contínua de Jesus e de Maria na obra redentora!56
_______________

56 Ver o Comentário do Tratado da Verdadeira Devoção, pelo Pe. Plessis,


montfortino (n. 16).

162 J. M. Dayet
E eis que se cumpriu o mistério:
“Deus Pai comunicou a Maria sua fecundidade, tanto quanto era
possível a uma pura criatura, para dar-lhe o poder de produzir seu
Filho e todos os membros de seu Corpo místico.” A Virgem gera,
neste mundo e segundo a natureza humana, o mesmo Filho que o
Pai gerou eternamente e segundo a natureza divina. Como ele, ela
pode dizer ao Verbo encarnado: Tu és meu Filho. O termo das duas
gerações é o mesmo. Maria participa, assim, da fecundidade do Pai,
“tanto quanto era possível a uma pura criatura”.
Além disso, como veremos mais longamente, o Verbo encar-
nado, vindo a nós como Redentor, é inseparável de seus resgatados.
Ele tomou, pois, em Maria um Corpo místico, formado por todos os
que crerem nele e quiserem viver de sua vida. É por isso que Maria,
intimamente associada a ele, produz ao mesmo tempo o corpo físico
de Jesus e seu Corpo místico. Mistério de amor insondável.
“Deus Filho desceu ao seu ventre virginal, como o novo Adão
ao seu paraíso terrestre, para encontrar nele seu contentamento e
operar secretamente maravilhas de graça.” Que superabundância de
vida divina seu amor filial derramou então sobre sua santa Mãe ima-
culada! “Deus feito homem encontrou sua liberdade ao se ver apri-
sionado em seu ventre; fez brilhar sua força ao se deixar carregar por
essa jovem; encontrou sua glória e a glória de seu Pai ao esconder
seus esplendores de todas as criaturas deste mundo, para revelá-las
somente a Maria. Glorificou sua independência e sua majestade ao
depender dessa amável Virgem em sua concepção, em seu nasci-
mento, em sua apresentação no Templo, em sua vida escondida de
trinta anos, até à sua morte, a qual ela devia assistir, para fazer com
ela um só sacrifício, e para ser imolado por seu consentimento ao Pai
eterno, como outrora Isaac pelo consentimento de Abraão à vontade
de Deus. Foi ela quem o amamentou, alimentou, sustentou, criou e
sacrificou por nós. Ó admirável e incompreensível dependência de
um Deus!” (n. 18.)
Durante nossa terceira Semana, meditaremos largamente sobre
essa admirável e incompreensível dependência de Deus feito homem.
Ela é a causa exemplar de nossa Consagração da Santa Escravidão.
Poderemos algum dia dar a Maria, em nossa vida espiritual, um lugar

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


163
tão grande quanto o que lhe deu o Verbo encarnado em todas as
etapas de sua vida terrena?...
“Sendo Deus Espírito Santo estéril em Deus, isto é, não produzindo
outra pessoa divina, tornou-se fecundo por Maria, que desposou. Foi
com ela e nela que produziu sua obra-prima, que é um Deus feito
homem, e que ele produz todos os dias, até o fim do mundo, os pre-
destinados e membros do corpo desse Cabeça adorável...” (n. 20.)
O Espírito Santo é o Amor recíproco do Pai e do Filho, o laço
vivo de sua ardente dileção. Ele solda, assim, na indivisível unidade
da natureza divina, a Trindade das Pessoas. Mas, pela intermediação da
Santíssima Virgem, da qual ele deseja se servir, exerce sua fecundidade
fora da Trindade, produzindo nela e por ela a humanidade santa do
Verbo encarnado e os membros de seu Corpo místico. Maria é, assim,
chamada a Esposa do Espírito Santo; pode haver união mais íntima?
Em sua Oração abrasada, Montfort, dirigindo-se a esse Espírito de
amor do Pai e do Filho, dir-lhe-á magnificamente: “Espírito Santo,
lembrai-vos de produzir e formar filhos de Deus, com vossa divina
e fiel Esposa Maria. Formastes a Cabeça dos predestinados com ela
e nela; é com ela e nela que deveis formar todos os seus membros.
Não gerais nenhuma pessoa divina na Divindade; mas somente vós
formais todas as pessoas divinas fora da Divindade; e todos os san-
tos, que existiram e existirão até o fim do mundo, são obras de vosso
amor unido a Maria.”
Se refletirmos sobre essa inefável conduta das três Pessoas divinas
escolhendo Maria para dar Jesus às almas e uni-las a ele, como não reconhecer
lealmente que amar Maria de todo o nosso coração não nos impede, de
modo algum, de centrar nossa vida espiritual sobre a Trindade?
Nós imitamos a conduta das três Pessoas divinas; damos a Maria
o lugar que o próprio Deus quis lhe dar. Nosso amor por ela não
pode se desviar.

II

QUANTO À SANTIFICAÇÃO DAS ALMAS, prolongamento


da Encarnação, DEUS QUER TAMBÉM CUMPRI-LA POR
INTERMÉDIO DA SANTÍSSIMA VIRGEM: Sua conduta não

164 J. M. Dayet
muda e não mudará até a consumação dos séculos. É por isso que
Montfort nos mostra, agora, as três Pessoas divinas derramando sobre
Maria tudo o que possuem, para que nós mesmos sejamos enriqueci-
dos por seu intermédio.
“Deus Pai fez uma reunião de todas as águas, que chamou mar; fez
uma reunião de todas as suas graças, que chamou Maria. Esse grande Deus
tem um tesouro riquíssimo, onde encerrou tudo o que há de belo, de
luminoso, de raro e de precioso, até seu próprio Filho; e esse tesouro
imenso não é outro senão Maria, chamada pelos santos o tesouro do
Senhor, da plenitude do qual os homens são enriquecidos.” (n. 23.)
Desde o instante de sua Concepção imaculada, ele a dotou de
uma plenitude de graça santificante, diante da qual empalidecerá o
esplendor sobrenatural de todos os anjos e de todos os santos. Essa
plenitude inicial, que sempre aumentará, continha já “tudo o que há de
belo, de luminoso, de raro, de precioso”, isto é, todas as riquezas de san-
tificação, todas as graças gerais e particulares concedidas às outras
criaturas, todo esse interior de beleza, de caridade, de heroísmo, todas
essas profundezas de amor e de ternura que admiramos nos amados
do Senhor.
Ela não fez, no entanto, senão preparar uma graça de ordem
superior e especial a Maria, a graça única da Maternidade divina.
O Pai, encerrando em Maria “até seu próprio Filho”, cobriu-a de uma
riqueza tamanha que nenhuma criatura pode receber riqueza maior.
A Virgem carrega em si a Pessoa divina do Verbo encarnado. Esse
contato com a humanidade e a divindade de Jesus faz afluir em ondas
intensas na bem-aventurada Mãe, cujas disposições são tão perfeitas,
uma vida sobrenatural, por assim dizer, sem limite. É uma plenitude
de superabundância. Mesmo a imensidão do mar – única compara-
ção possível – pode nos dar apenas uma fraca ideia dessa plenitude.
Maria é, pois, esse tesouro imenso do Senhor, do qual todos os cris-
tãos, sacerdotes e fiéis, que se sucederão sobre a terra e todos os os
apóstolos, os mártires, os confessores da fé, os virgens e os santos de
todos os tempos poderão se munir, sem medo de esgotá-lo. Essa é a
vontade tão amorosa do Pai dos Céus.
_______________

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


165
“Deus Filho comunicou à sua Mãe tudo o que ele adquiriu por sua vida
e sua morte, seus méritos infinitos e suas virtudes admiráveis; e a cons-
tituiu como tesoureira de tudo o que seu Pai lhe deu como herança.
É por meio dela que ele aplica seus méritos aos seus membros, que ele
comunica suas virtudes e distribui suas graças. Ela é seu canal miste-
rioso, seu aqueduto, por onde ele faz passar docemente e abundante-
mente suas misericórdias.” (n. 24.)
Esse papel de Maria, que lhe é atribuído na distribuição das gra-
ças da Redenção, é a consequência do papel que ela teve em sua aqui-
sição, tendo Jesus “escolhido-a como companheira indissolúvel de sua vida e de
sua morte”. (n. 74.) O Salvador podia, seguramente, dispensar qualquer
auxiliar na obra redentora; mas agradou-lhe, e era o plano eterno,
que a Virgem fosse associada às suas dores. Tendo um só decreto
decidido, ao mesmo tempo, a Encarnação e a Maternidade divina, o
Cristo e a Virgem foram inseparáveis na obra de nossa salvação. O
que Jesus mereceu por justiça, Maria o mereceu por afinidade.
Agora que a Virgem está associada ao seu triunfo e ao seu poder
soberano, gozando com ele da herança celestial, ele a constituiu, para
nós, tesoureira de todos os bens dessa herança. Nenhuma aplicação de seus
méritos redentores, nenhuma comunicação de suas virtudes e de suas
graças se faz sem Maria. Ela é seu canal misterioso, seu aqueduto por onde
ele faz passar docemente (maternalmente, poder-se-ia dizer) e abundan-
temente suas misericórdias, pois ele não pode recusar nada aos pedidos que
ela lhe faz em favor dos pobres filhos que somos. Maria obtém, assim,
como diz São Bernardo (Serm. 98), “aos cativos a libertação, aos enfer-
mos a cura, aos aflitos a consolação, aos pecadores o perdão, aos justos a
graça sempre crescente”. As belas orações do Memorare e do Salve, Regina,
devem ter brotado da meditação dessa doutrina.
_______________

“Deus Espírito Santo comunicou a Maria, sua fiel Esposa, seus dons
inefáveis, e escolheu-a como dispensadora de tudo o que possui; de modo
que ela distribui a quem deseja, tanto quanto deseja, como e quando
deseja, todos os seus dons e suas graças; pois não se dá nenhum dom
celeste aos homens sem que passe por suas mãos virginais.” (n. 25.)

166 J. M. Dayet
Como o Espírito Santo não teria ornado a alma de Maria com a
plenitude de seus dons desde o instante de sua criação? Esse Espírito
de amor logo a tomou por Esposa, devendo “produzir nela e por ela
Jesus Cristo e seus membros”. (n. 21.) É por isso que, na manhã da
Anunciação, o anjo responde à interrogação da Virgem: “O Espí-
rito Santo sobrevirá em ti...”, como princípio fecundante dessa divina
Maternidade virginal.
Ele já tinha vindo, desde o primeiro instante, depositar entre seus
presentes de bodas todas as joias que possui enquanto Espírito san-
tificador: seus dons inefáveis e suas graças de santidade crescente. Maria,
gozando então milagrosamente da ciência infusa, consentiu com toda
a força de sua inteligência e de sua vontade com essa incomparável
união de amor.
Depois, o Espírito Santo não deixou de enriquecê-la, a ponto de
querer, no dia do Pentecostes, que ela fosse a dispensadora visível de
seus dons e graças de santificação, e dos carismas que os acompa-
nham. Por meio dela, presente no meio do Cenáculo, ele se derramou
sobre os Apóstolos e sobre os fiéis que compunham, então, o berço
da Igreja nascente.
Desde esse dia, todas as santificações visíveis, todos os Pente-
costes que se cumprem no íntimo das almas, se fazem por sua ação,
unida à do Espírito Santo. Essa união é tão grande que Maria pode
livremente dar a quem desejar: tanto a uma Teresa de Lisieux quanto a
um Charles de Foucauld ou a um Alphonse Ratisbonne; quanto desejar,
pois não há limite à sua generosidade: quantas graças de luz distri-
buiu ela a São Bernardo, a São Francisco de Sales, a São Luís Maria
de Montfort, e a tantos outros; como desejar, isto é, da maneira que
julgar mais eficaz para atingir e ganhar os corações, seja por meio de
suas aparições, seus milagres, ou pelo sentimento de sua presença na
alma obediente; quando desejar: encontramo-la trabalhando em todas
as épocas da Igreja, mas é manifesto que nestes tempos que são os
nossos, sua ação se afirma com um poder extraordinário. Não se dá,
assim, nenhum favor celestial aos homens, sem que passe por suas
mãos virginais.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


167
III

Essa adorável conduta das três divinas Pessoas em relação a


Maria, no cumprimento do mistério da Encarnação e na obra da
santificação das almas, mostra-nos claramente o LUGAR da Virgem
no plano redentor. Cumprindo a eterna e misericordiosa vontade de
Deus, ela está no CENTRO com Jesus e na dependência de Jesus.
Esse é o mesmo lugar que todas as almas cristãs deveriam dar-lhe em sua vida
interior. Felicitemo-nos por querer conceder-lho.
A maior parte dos fiéis de nossas paróquias se contenta em cum-
prir seus deveres de cristãos, sem manifestar-lhe uma devoção espe-
cial. Desejosos de obedecer aos mandamentos de Deus e da Igreja,
vigiam para evitar o pecado mortal, ou, pelo menos, para recorrer
ao sacramento da Penitência. Oram de tempos em tempos à Santa
Virgem, principalmente nos domingos e nos dias de festas, assistindo
aos Ofícios. Reconhecem-na e honram-na como a Mãe de Deus; mas
nenhum testemunho particular e pessoal brota da alma, nenhuma
chama de devoção vem iluminar seu caminho ao longo dos dias, para
indicar um contato de gratidão com Aquela que detém todas as gra-
ças e que só espera comunicá-las a nós, segundo nossas necessidades
e nossas preces. É dar-lhe pouco, e isto por falta de esclarecimento.
Outros fiéis são mais atentos a recorrer com maior frequência
à Santíssima Virgem. Oram a ela pela manhã e à noite, gostam de
recitar seu terço e até mesmo, em determinados dias, seu Rosário,
assim como seu pequeno Ofício. Veem com prazer chegar cada uma
de suas festas, inclusive as que não são solenizadas. Os meses de maio
e de outubro são-lhes meses de fervor amoroso. Suas almas se com-
prazem na leitura de um livro que trata das grandezas de Maria, assim
como na audição de um sermão que celebra um ou outro de seus
mistérios. Gostam também de manifestar um cuidado particular por
seus altares, suas estátuas e capelas. Frequentam suas peregrinações,
seus Congressos, se possível, como testemunho dos sentimentos de
estima, de amor, de confiança e de veneração que têm por ela.
Essa devoção é a de nossas elites cristãs, e, com maior razão, das
almas religiosas e sacerdotais. Ela é boa, santa e louvável; concede a

168 J. M. Dayet
Maria um grande lugar na piedade. É possível contentar-se com essa
devoção, e muitos o fazem.
Há, entretanto, os que desejam ir mais além, pois, por mais louvá-
vel que seja essa maneira de honrar Maria, é preciso reconhecer que
não lhe concede senão uma parte do tempo, uma parte das preces
e das boas obras. Não se pode dizer que essas práticas exteriores e
transitórias se harmonizam com o lugar dado à Virgem no plano
divino.
É por isso que, se desejamos imitar a conduta das três Pessoas
divinas em relação a Maria, devemos chegar até a DOAÇÃO TOTAL
de nós mesmos e até uma VIDA DE UNIÃO em todos os instantes,
que dela decorre. É preciso – e meditaremos sobre isso nos dias que
seguem – escolher Maria como a Mãe e a Senhora de toda a nossa
vida sobrenatural, como o Verbo encarnado a escolheu como sua
Mãe e sua Cooperadora na obra de nossa salvação. É preciso entre-
gar às suas mãos tudo o que nos é possível dar-lhe, sem nenhuma
restrição nem reserva; assim como Deus Pai comunicou-lhe todas as
suas graças, Deus Filho todos os seus méritos, Deus Espírito Santo
todos os seus dons inefáveis; bem convencidos de que o que damos
é pouco em relação ao que eles lhe deram.
Essa é a CONSAGRAÇÃO a Maria, tão recomendada pelo Papa
Pio XII, e que ele mesmo definiu como “uma doação total de si por toda
a vida e pela eternidade; não uma doação de pura forma ou de puro sentimento,
mas um dom efetivo, realizado na intensidade da vida mariana e cristã”.57 “Essa
definição, escrevia Mons. Théas, bispo de Lourdes, harmoniza-se
perfeitamente com a doutrina de São Luís Maria de Montfort, e não
poderíamos responder melhor ao desejo de Sua Santidade do que
adotando, para nos consagrar a Maria, a fórmula de São Luís Maria
de Montfort.”58
Doação total, que entrega a Maria nossa pessoa e todos os nos-
sos bens, bens de natureza e bens de graça; que lhe deixa inteiro e
pleno direito de dispor deles segundo sua vontade, para maior glória

57 Discurso aos Congreganistas da Santa Virgem, em 21 de janeiro de 1943,


e em 23 de novembro de 1946, aos peregrinos do Grande Retorno.
58 Carta pastoral na ocasião de nosso Ano Mariano, janeiro 1949.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


169
de Deus, neste mundo e na eternidade. Não podemos ir além disso,
como vimos (6º dia, primeira Semana). Não é mais uma parte do
tempo, uma parte das boas obras que consagramos à Santa Virgem.
Não é somente uma prece, um Lembrai-vos, um terço recitado todas as
noites; nem um sacrifício, uma esmola, uma oferta, dados em certos
dias; nem uma peregrinação a tal santuário, nem as festas de Maria
santamente celebradas; depois do que dispomos livremente de nos-
sas horas e de nossas ações.
Doravante, não haverá mais uma prece, um trabalho, uma fadiga,
um sacrifício, um sofrimento do espírito ou dos membros, um ato de
virtude, uma ocasião de mérito que, previamente, não lhe seja dado,
entregue, confiado, com a generosidade de um amor sem limite.
Doação total que culmina na vida de união de todos os instantes.
Tendo escolhido Maria como nossa Mãe e Senhora, entregamos-lhe
a condução de nossa vida espiritual, oferecendo-lhe nossa obediên-
cia, uma dependência amada, jamais interrompida. Como ela formou
Jesus Cristo, nossa Cabeça, formar-nos-á como seus membros muito
vivos e semelhantes. Desse modo, damos-lhe verdadeiramente o lugar
central que lhe pertence, em conformidade com o plano divino inte-
gral de nossa redenção e de nossa santificação.
Essa Consagração é oferecida à livre escolha de cada um. Não
é imposta; mas se impõe por si mesma, quando a luz brilha sobre
uma alma reta e generosa, que compreendeu que jamais incluirá em
demasia a Santa Virgem em sua vida interior. Por isso, tanto em todas
as famílias religiosas quanto em todas as dioceses do mundo, almas
acolhem-na com gratidão e alegria. É uma questão de santificação
pessoal. Nenhum limite pode ser estabelecido nesse domínio.
Avancemos com confiança em nossa Preparação.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 1, 1-25: O anjo Gabriel vem


anunciar o nascimento do Precursor.
TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 1-13: O Reino de Jesus por inter-
médio de Maria.

170 J. M. Dayet
SEGUNDO DIA
MÃE DO CRISTO TOTAL

São Luís Maria de Montfort já nos deixou entrever a grandeza


dessa Maternidade única da Santíssima Virgem, quando nos mostrou
Deus Pai e Deus Espírito Santo dando a Maria o poder de gerar Jesus
Cristo, Verbo encarnado, e todos os membros de seu Corpo místico.
(n. 17 e 20.)
Este é o momento de dedicar nossa meditação a esse mistério de
graça, tão pouco conhecido por um grande número de almas, mesmo
devotadas a Maria.
Peçamos suas luzes ao Espírito Santo, para bem compreender
que não há em Maria senão uma só Maternidade. Temos o costume, e
com razão, de distinguir sua Maternidade divina e sua Maternidade
espiritual; mas na realidade, essa dupla Maternidade se resume a uma
só: Maria é a Mãe do Cristo total, o que quer dizer que ela é ao mesmo
tempo a Mãe de Jesus Redentor e de seus resgatados, contidos nele espiri-
tualmente.
Essa maternidade completa de Maria se desdobrou em três fases:
No dia da Anunciação, a Virgem nos CONCEBEU no Cristo para a
vida sobrenatural. Durante os trinta e três anos da existência terrena
do Salvador, ela nos CARREGOU em seu Coração doloroso. Sobre
o Calvário, perto da Cruz de seu divino Filho que expirava, ela nos
GEROU com o preço de seus sofrimentos corredentores.
Que amor ilimitado devemos-lhe em gratidão ao que ela quis
suportar para nos dar a vida! Ave, Maria.

O que importa compreender bem, em primeiro lugar, é que a


Santíssima Virgem concebeu de modo muito perfeito o Cristo, no dia da
Anunciação. Em virtude das luzes que inundavam sua alma, ela o con-
cebeu, não somente de maneira corporal em seu ventre, mas antes de
tudo de maneira espiritual em sua inteligência e em seu coração. Ela

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


171
o concebia enquanto Redentor unido aos seus resgatados e comunicando-
lhes a vida sobrenatural.
No momento de consentir com tal Maternidade, Maria não podia
ignorar que a obra redentora seria dolorosa. Ela já gozava então de
sua ciência infusa de Imaculada. Durante sua permanência no Tem-
plo de Jerusalém, uma ciência adquirida dos Livros santos fizera-lhe
conhecer todos os detalhes concernentes ao Messias anunciado pelos
Profetas: não um Messias glorioso, conquistador de um reino terres-
tre, mas um Homem de dores, vindo resgatar por meio de seu sangue
a humanidade culpada.
As palavras tão significativas do anjo repetiam-no ainda: “Eis que
conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, a quem porás o nome
de Jesus” (Lc 1, 31), que significa Salvador... Acrescentemos a incursão
do Espírito Santo que sobreveio nela nesse minuto inesquecível, para
operar o prodígio de sua Maternidade virginal. Tudo contribuía, então,
para inundar sua alma de luzes intensas sobre o destino Daquele que
seria seu Filho. Ela sabia que dava ao mundo uma Vítima. Sabia que
ela mesma se tornava Mãe de dores. Prévia e generosamente, ela acei-
tava todos os sofrimentos de Jesus e unia a eles os seus.
Com pleno conhecimento de causa, ela concebia, então, Jesus,
enquanto Redentor, isto é, com todos os que crerem nele e se beneficia-
rem das graças de sua Redenção. Foi assim que em Nazaré a Virgem
concebeu de modo muito perfeito o Cristo, com toda a sua alma,
inteligência e vontade, antes mesmo de dar-lhe corpo em sua carne e
em seu sangue. Prius mente quam corpore, disseram os Pais da Igreja.
É por isso que não seria exato dizer que ela concebia Jesus cor-
poralmente, e nós, espiritualmente. É preciso dizer que ela concebia
Jesus em sua plenitude, ao mesmo tempo corporalmente e espiritualmente:
corporalmente, enquanto homem, o Homem-Deus com seu corpo
natural ou físico; espiritualmente, enquanto Salvador dos homens,
com seu corpo espiritual ou místico. E essa concepção espiritual, que
abrangia a todos nós, precedeu a outra, Maria sendo então, nas mãos
de Deus, não um instrumento cego, mas um instrumento livre, que
dá seu consentimento com a clara intelecção do mistério.
Maternidade única, Maternidade transcendente; nenhuma outra
pode ser comparada a ela. E eis a primeira fase da Maternidade ao

172 J. M. Dayet
mesmo tempo divina e espiritual de Maria. A Virgem da Anunciação
começou a se tornar nossa Mãe desde o instante em que se tornava
a Mãe de Jesus Redentor. Estávamos presentes no seu pensamento e
no seu amor. Importa-nos refletir sobre isso.

II

Na noite de Natal, no estábulo de Belém, Maria dá à luz Jesus;


mas não dará à luz seus resgatados senão sobre o Calvário. Assim
ordenou o Pai. Pois a morte dolorosa do Salvador era necessária para
que recebêssemos a vida. A divina Vítima não reconciliou os homens
com o Pai e não os tornou participantes de sua filiação senão por
meio de seu sacrifício sangrento.
Nada nos faz compreender melhor como a Maternidade da Santa
Virgem é uma Maternidade corredentora, como somos verdadeira-
mente os filhos de suas dores. Durante trinta e três anos, ela vai se afligir
e sofrer por nós. Todas as suas ações, unidas às do seu divino Filho,
contribuirão para a salvação de nossas almas.
Quando ela apresenta ao Templo de Jerusalém seu recém-nascido
de quarenta dias, não ignora que essa oferta é o prelúdio da oferta da
Cruz. Simeão diz-lho, pois entrevia desde então o gládio que traspas-
saria seu coração materno.
Quando ela precisou partir do Egito à noite, para escapar da fúria
de Herodes, seus olhos descobriram, no pequeno ser que repousava
em seus braços, a Vítima destinada a uma morte violenta.
Mais tarde, quando Jesus foi encontrado no Templo, os três dias
de busca angustiada foram para sua alma uma providencial prepara-
ção para os três dias de grande solidão da Paixão.
Mais tarde ainda, quando Jesus trabalhava a madeira e o ferro
na oficina de Nazaré, como ela podia deixar de pensar na cruz e nos
pregos do Gólgota? Os Profetas não anunciaram as mãos e os pés
traspassados do Salvador? (Sl 21, 17.)
Durante os anos da vida pública, quanto não deve ter sofrido
diante do desdém, do desprezo que tinham por Jesus seus próprios
compatriotas de Nazaré, que chegaram um dia a bani-lo, a expulsá-lo
da cidade deles (Lc 4); diante da ingratidão dos ribeirinhos do lago

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


173
de Genesaré, testemunhas de tantos milagres; diante da deserção de
um grande número de seus discípulos, no dia seguinte ao milagre
da primeira multiplicação dos pães, perto de Betsaida (Jo 6); diante
da inveja odiosa e tenaz dos fariseus; diante da vontade resoluta dos
chefes religiosos da nação, decididos a matá-lo? Como não pressentir
o encaminhamento rápido à Páscoa sangrenta?
Assim, em cada dia e em cada hora, a Virgem podia dizer: sofro
e imolo-me com meu Jesus pelos filhos que carrego em meu espírito
e em meu coração. Por eles, colaboro com a obra redentora. Ela é a
Mulher forte que atravessa com um coração magnânimo esses longos
anos da gestação de nossas almas.
É-nos agradável pensar que a Virgem tinha, então, presentes
tanto ao seu pensamento quanto ao seu amor, os fiéis da Igreja de seu
divino Filho. Em Belém, seu olhar descobria nos pastores as almas
simples e retas que virão ao Cristo sem pensar e sem se desviar. Os
magos representavam-lhe a multidão das almas longínquas, desejosas
de verdade e de felicidade eterna. No Egito, os adoradores dos ídolos
faziam-na refletir sobre a imensa massa de pagãos que, mesmo vinte
séculos após a vinda de seu Filho, não conhecem o Evangelho.
Na tranquilidade de Nazaré, Maria pensava nos futuros habitan-
tes dos claustros, nos contempladores, nos místicos, nos virgens, em
todos esses corações amorosos que viriam beber nessa mesma fonte
de vida onde ela sacia a sede do seu coração.
Nas bodas de Caná, ela entrevia o cortejo das almas eucarísticas
que saberão se elevar acima dos laços da carne e do sangue; assim
como na pessoa dos Apóstolos, na noite da Quinta-Feira Santa, ela
via se desenrolar a magnífica sucessão dos sacerdotes e dos pontífi-
ces, continuadores das obras de seu Filho.
Mas sempre, e principalmente no tempo da Paixão, a Virgem não
podia desviar seus olhares dos pecadores, daqueles que, depois da
Cruz e das graças dos sacramentos, continuarão a cometer a ini-
quidade. Como esses tornavam, então, sua gestação infinitamente
dolorosa! Conseguiria ela arrancá-los do inferno? Gerá-los-ia para
a vida eterna? Para quantos o sangue de seu Filho seria inutilmente
derramado?... Sim, os pecadores, todos os pobres pecadores, os
ladrões penitentes, as Madalenas arrependidas, os pródigos de

174 J. M. Dayet
todos os séculos, que retornarão à casa do Pai, e aqueles - ai de mim!
- que nunca desejarão voltar, tornavam cada vez mais pesado para o
seu coração o peso de sua Maternidade.
Diante do fracasso aparente das pregações e dos milagres do Salva-
dor, ela compreendia o que era preciso, então, de preces, de privações,
de aflições, de trabalhos, de fadigas; o que custaria de sangue e de lágri-
mas para o resgate de uma só alma mergulhada no pecado. A traição de
Judas, o julgamento de Caifás, o escárnio de Herodes, os tormentos da
flagelação e da coroação de espinhos, a condenação à morte na cruz, a
subida do caminho doloroso diziam-no cruelmente.

III

Eis-nos precisamente no parto do Calvário. O de Belém só conhe-


cera a alegria do êxtase. Não poderia ser de outro modo. Como a
estrela projeta sua luz, assim a Virgem produzira ao mundo seu
Primogênito. Esse Primogênito era sem pecado. Ele era o Homem-
Deus, o Verbo feito carne, a fonte de toda graça, o princípio de toda
santificação e santidade. Ele era a causa meritória da Imaculada Con-
ceição de sua Mãe. Agora, ele a agraciava ainda mais, fazendo-a entrar
na família de Deus pelos laços de uma verdadeira consanguinidade.
Sem abandonar sua humildade, incorporando-a até mais, Maria
não podia senão estremecer com um júbilo que jamais conhecerão os
corações reunidos dos maiores extáticos.
Que contraste, agora, entre a radiosa noite de Natal e o dia tenebroso
do Calvário! Nessas trevas que se acumulam acima da Cruz e sobre a terra
inteira, Maria pode ver outra coisa além da imagem do pecado? Não é o
inferno a noite eterna? Tudo, aliás, sobre o monte do Gólgota, não lhe
apresenta o espectro do pecado? Os judeus que caçoam e blasfemam,
os soldados que cumprem friamente seu cínico serviço, e sobretudo a
divina Vítima, seu Filho que se tornara irreconhecível, coberto, dos pés
à cabeça, da imunda lepra de nossos pecados. Ei-lo feito “pecado”, a fim
de expiar sobre sua carne inocente nossos crimes incontáveis, nossas
ofensas à Majestade e à Santidade de Deus.
Das chagas de Jesus crucificado, de sua alma sofredora e orante,
sobe ao Céu uma virtude redentora, elevada ao seu grau supremo.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


175
Ela vai diretamente ao coração do Pai, para recair em seguida sobre a
terra em graças incontáveis de reconciliação e de perdão.
Maria acolhe todas essas graças em sua alma consternada e dis-
tribui-as à humanidade inteira. Ela oferece por nós sua própria vida
e seus sofrimentos, ao mesmo tempo em que oferece a vida e os
sofrimentos de Jesus. Ela nos gera para a vida divina de seu Filho que
expira. Eram necessários os sofrimentos e a morte do Filho para nos
comunicar essa vida. Eram necessários as dores e o martírio da Mãe,
a transfixação de sua alma, para o nosso nascimento sobrenatural.
Todos os membros do Corpo místico nasceram verdadeiramente ao
pé da Cruz. Maria coloca-nos no mundo em conformidade com a
grande lei formulada por Deus na noite da queda de nossos primei-
ros pais: in dolore paries. Darás à luz com dor. (Gên 3, 16.)
Por isso, Jesus crucificado esperou o momento em que sua obra
redentora se consuma, para proclamar a Maternidade total de Maria.
Essa Maternidade, que permanecera até então no segredo do mistério
da Encarnação, encontra no Calvário seu cumprimento perfeito. Jesus
a consagra solenemente. Ele quer, assim, dar à sua palavra e à realidade
que ela designa uma gravidade tamanha que será impossível a nós, seus
resgatados, refletir seriamente sobre isso sem apreciar imediatamente,
como convém, o insigne benefício de nossa regeneração.
“Mulher”, diz a Maria o Salvador agonizante, Mulier, isto é, Mãe
Corredentora, minha associada, minha colaboradora, a companheira de
minha vida e de minha morte, a Mulher predita no paraíso terrestre
para esmagar comigo a cabeça da serpente infernal; Mulher, nova
Eva, verdadeira Mãe dos vivos, sim, todos os homens, na pessoa do
meu discípulo, são vossos filhos, todos os puros e os purificados,
lavados em meu sangue, banhados de vossas lágrimas. Inocentes ou
penitentes, reconheço-os como meus irmãos amados, porque, por
meio de meu Espírito Santo, comunicais e comunicareis a eles, até o
fim dos tempos, essa vida que recebo de meu Pai.
– João, meu discípulo, e meus sacerdotes, e meus apóstolos, e todos
os fiéis de minha Igreja, eis Maria vossa Mãe. Ao me conceber em Nazaré,
ela concebia o Corpo espiritual do qual sou a Cabeça. Foi por isso que
ela vos carregou em seu Coração doloroso durante os anos de minha

176 J. M. Dayet
vida terrena. Agora que vou morrer, ela vos gera para esta vida de graça
que minha Paixão e sua Compaixão conquistam para vós.
_______________

Assim, a Santíssima Virgem é verdadeiramente Mãe da Igreja,


Corpo místico de Jesus Cristo. Ela é a Mãe de todos os homens,
sem exceção. Mãe até mesmo dos pagãos, ainda que de maneira muito
imperfeita, no sentido de que ela e somente ela é chamada a gerá-los
um dia para a vida sobrenatural. Do alto do Céu, onde ela reina hoje,
Maria obtém-lhes, por sua intercessão, as graças atuais, as graças de
aproximação, que os dispõem à luz da fé e à justificação.
Ela é a Mãe dos cristãos que vivem em estado de pecado mortal, porque
os gerou para a vida da graça santificadora no dia do seu batismo, e
porque procura sempre obter para eles as graças que desenvolvem a
fé e a esperança, e os prepara, assim, para a conversão. Eles não têm
mais a caridade, porque não têm mais a graça santificadora; mas a fé
e a esperança podem subsistir ainda, e é isto que torna possível a sua
conversão.
Quanto aos batizados que permanecem na graça e na caridade, Maria é
sua Mãe de modo muito perfeito, atenta ao seu contínuo e progres-
sivo crescimento na prática de suas virtudes. Em seu Tratado da Ver-
dadeira Devoção, o Padre de Montfort quis considerar somente estes,
os predestinados. Como veremos na meditação que segue, ele examina a
Maternidade espiritual de Maria em relação aos eleitos, isto é, àqueles
que a Virgem gerará para a vida da glória. E isto é muito adequado;
pois, na realidade, somente esses contam.
Portanto, somente dos pecadores, saídos deste mundo na impenitência
final, ela não é Mãe. Ela foi, mas não é mais. Como Raquel, e mais do
que Raquel chorando seus filhos mortos, Maria permanece inconso-
lável: Renuit consolari, quia non sunt. (Mt 2, 18.) Eles não existem mais
para ela, estão eternamente mortos. Quanto a fizeram sofrer sobre
o Calvário!
Quanto a nós, que desejamos viver eternamente, não esqueça-
mos jamais que somos o fruto de suas dores, nós, seus verdadeiros
filhos, os irmãos de seu Primogênito.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


177
LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 1, 26-38: Anunciação a Maria.


Encarnação do Verbo.
TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 120-133: A Perfeita Consagra-
ção a Jesus por intermédio de Maria.

178 J. M. Dayet
TERCEIRO DIA
MÃE DOS PREDESTINADOS

Sem perder de vista a Maternidade divina de Maria, estritamente


ligada à sua Maternidade espiritual, consideremos mais especialmente
esta última em relação à formação dos predestinados, isto é, dos membros
do Cristo que a Virgem deve um dia gerar para a glória, o que é a
firme esperança de todos nós.
Esse ponto de vista é muito caro ao Padre de Montfort. Se, na
parte central de sua Consagração, ele nos faz escolher Maria “como
nossa Mãe e Senhora”, MATER e DOMINA, é precisamente para que
lhe deixemos toda liberdade para conduzir sua Maternidade de graça
até seu bem-aventurado termo. Mãe, ela não deixa de nos transmitir a
vida divina; Senhora, ela nos possui e nos molda à semelhança de seu
Filho primogênito.
Consideremo-la primeiramente no exercício de sua Maternidade
em relação a nós, em colaboração com as três Pessoas divinas. Apre-
ciaremos melhor, na meditação do Quarto Dia, a realidade de sua
Dominação no mais íntimo de nossas almas.
Comentando um texto do Eclesiástico (24, 8), Montfort explica
como a Santíssima Virgem recebeu a missão de dar ao Pai verdadei-
ros FILHOS, ao Filho, MEMBROS muito vivos, ao Espírito Santo,
TEMPLOS de santidade ornados com suas virtudes sublimes.
Peçamos a Maria que nos ajude a penetrar nesse mistério de nossa
formação sobrenatural. Ave, Maria.

“DEUS PAI deseja gerar filhos para si, por intermédio de Maria, até a
consumação dos séculos, e diz-lhe esta palavra: In Jacob inhabita, isto
é, fazei vossa morada em meus filhos e predestinados, simbolizados
por Jacó, e não nos filhos do diabo e nos reprovados, simbolizados
por Esaú.” (V. D., n. 29.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


179
Permanecei de maneira permanente em seu interior, para continuar
a comunicar-lhes minha vida divina, a graça santificante recebida no
batismo. Eu quis que eles fossem vossos filhos, ao mesmo tempo
que meus, associando-vos à minha fecundidade de amor, como vos
associei à minha fecundidade natural.
Haverá, pois, na geração espiritual, assim como na geração cor-
poral, um pai e uma mãe, um Pai que é Deus e uma Mãe que é Maria.
O Pai dos Céus não comunicará de outro modo sua vida divina.
Nenhuma exceção se fará a essa disposição misericordiosa, admirável
condescendência às inclinações do coração humano. Somente Maria,
e até o fim dos séculos, poderá dar ao Pai seus verdadeiros filhos; e
será sempre verdade que aquele “que não tem Maria como Mãe não tem
Deus como Pai”.
Reconheceremos os reprovados pelo sinal de que eles mesmos rejei-
taram Maria, tal como os hereges, os homens de má doutrina, que
têm ódio, desprezo ou indiferença pela Santíssima Virgem. Eles não
desejam se conformar ao plano divino de nossa regeneração sobre-
natural. “Ai de mim! – geme Montfort, Deus Pai não disse a Maria
que fizesse sua morada neles, porque são Esaús.” (n. 30.)

II

“DEUS FILHO quer se formar, e, por assim dizer, se encarnar


todos os dias, por intermédio de sua cara Mãe, em seus membros, e diz-
lhe: In Israel haereditare. Tende Israel por herança...”, isto é, os predes-
tinados, que são os herdeiros de meu Reino celestial. Eu vos atribuo
esta parte de escolha, reservando-me – segundo a vontade de meu
Pai – ser o Juiz de todos, dos bons e dos maus.
Nossa Senhora tem, pois, em sua propriedade pessoal, todos os
que partirão deste mundo em estado de graça. A ela cabe moldá-los
como membros do Cristo Jesus, seus membros sãos, robustos, vigo-
rosos. “E como sua boa Mãe, vós os gerareis, alimentareis, criareis;
e como sua Soberana, vós os conduzireis, governareis e defendereis.”
(n. 31.) Assim é assegurada sua chegada, um dia, ao Céu, sua partici-
pação na glória eterna.

180 J. M. Dayet
Porque “Jesus Cristo, Cabeça dos homens, nasceu em Maria, os
predestinados – que são os membros dessa Cabeça – devem também
nascer nela por uma consequência necessária. Pois tanto na ordem da graça
quanto na ordem da natureza, uma mesma mãe não põe no mundo a
cabeça sem os membros, nem os membros sem a cabeça”.
Maria, como vimos, é Mãe do Cristo total, de modo que “pode-
mos aplicar a ela, com mais verdade do que São Paulo as aplica a si
mesmo, estas palavras: Quos iterum parturio, donec formetur Christus in
vobis (Gál 4, 19): gero todos os dias os filhos de Deus, até que Jesus
Cristo, meu Filho, seja formado neles na plenitude de sua idade”
sobre a terra, tendo cada um atingido sua medida de graça, seu grau
de semelhança.
E é aqui que Montfort relata o notável testemunho do Bispo de
Hipona em seu Tratado sobre o Símbolo, dirigido aos catecúmenos (Liv.
IV, cap. I): “Santo Agostinho, superando-se a si mesmo, e a tudo o
que acabo de dizer, ensina que todos os predestinados, para se con-
formarem à imagem do Filho de Deus, estão neste mundo escondidos
no seio da Santíssima Virgem, onde são guardados, alimentados, criados
e desenvolvidos por essa boa Mãe, até que ela os gere para a glória, após a
morte, que é propriamente o dia de seu nascimento, como a Igreja denomina
a morte dos justos.” (n. 33.)
Na noite de Natal, Maria se separou do corpo físico de Jesus, mas
não de seu Corpo místico; e não se separará dele enquanto viver um
predestinado sobre a terra. Nossa vida inteira de graça santificante
é, assim, se a compreendemos bem, uma morada contínua em Maria,
no seio de Maria, in sinu Mariae: infância, crescimento, maturidade
espiritual. Extraímos nossa vida divina do belo interior de onde Jesus
extraiu sua vida humana, do ventre que ele santificou e onde deixou
para nós graças inesgotáveis.
Não é esse o mistério da Encarnação vivido pelos eleitos? Infe-
lizmente, esse mistério de nossa sobrenatural formação em Maria
continua pouco conhecido até mesmo pelos predestinados. A insis-
tência de Montfort em relembrá-lo mostra a que ponto desejava nos
ver tomar consciência dele. Apreciemos dedicar-lhe nossa medita-
ção, e façamos as almas que buscam a luz conhecerem esse segredo

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


181
de santidade. Como fez observar Mons. Suenens,59 há uma enorme
diferença entre a devoção mariana ordinária e corrente e essa vida de
união contínua respirada no seio de Maria.60

III

“DEUS ESPÍRITO SANTO quer formar para si, em Maria e por


intermédio de Maria, eleitos, e diz-lhe: In electis meis mitte radices. Lançai,
minha Amada e minha Esposa, as raízes de todas as vossas virtudes
em meus eleitos, a fim de que eles cresçam de virtude em virtude e de
graça em graça.” (n. 34.)
Doce hóspede das almas interiores, o Espírito Santo vigia e asse-
gura sua santificação progressiva, seu crescimento místico. Para essa
obra de amor, ele recorre tanto mais a Maria porque Ela mesma
sempre foi “sua Amada e sua Esposa”. Na manhã da Anunciação, não
sobreveio nela para tornar fecunda sua virgindade de Imaculada e
permitir-lhe realizar a maravilha da Encarnação do Verbo em seu
casto ventre?
Com que dileção ornara sua alma com todas as florescências da
graça santificante! E que prazer tinha, depois, em contemplar seu
prodigioso progresso em todas as virtudes, sob o influxo de seus
dons! Por isso, ele agora deseja vê-la se reproduzir misticamente no
coração dos eleitos, pela alegria de encontrá-la ainda neste mundo.
“Tanto me agradastes, quando vivíeis sobre a terra, na prática das mais
sublimes virtudes, que desejo ainda vos encontrar sobre a terra, sem deixar de
estar no Céu. Reproduzi-vos, para isto, em meus eleitos: que eu veja neles, com
alegria, as raízes de vossa fé invencível, de vossa humildade profunda, de vossa
mortificação universal, de vossa oração sublime, de vossa caridade ardente, de
vossa esperança firme e de todas as vossas virtudes.” (n. 34.)
A alma, de posse da graça santificante e desejosa de seu avanço
espiritual, oferece a Maria o rico terreno onde ela pode lançar as

59 Teologia do apostolado, p. 82.


60 O Papa São Pio X ressaltou essa doutrina do Tratado da Verdadeira De-
voção em sua Carta Encíclica “Ad diem illum” de 2 de fevereiro de 1904,
para o cinquentenário da definição dogmática da Imaculada Conceição.

182 J. M. Dayet
raízes de suas virtudes. Segundo a cultura desse terreno, as virtudes
vão crescer e desabrochar como flores, cada uma lembrando ao Espí-
rito Santo alguma coisa da beleza interior de sua fiel Esposa.
O essencial será, pois, ser uma alma muito viva, muito unida ao
Cristo Jesus, dócil para se deixar cultivar pela divina Mãe. O pro-
gresso espiritual se acentuará sempre, até produzir uma santidade
semelhante. “Que vossa fé, diz ainda a Maria o Espírito Santo, me dê fiéis;
que vossa pureza me dê virgens; que vossa fecundidade me dê eleitos e templos”
com interiores esplêndidos (n. 34). A graça santificante das virtudes e
dos dons, tendo-se tornado maternal em Maria, chega a nós impreg-
nada de todas as suavidades de sua alma santíssima.
Felizes as almas assim santificadas! “Quando Maria lança suas raízes
numa alma, produz maravilhas de graça que só ela pode produzir... Ela pro-
duz, com o Espírito Santo, a maior coisa que já existiu e que existirá,
que é um Homem-Deus; e produzirá, consequentemente, as maiores
coisas que existirão nos últimos tempos. A formação e a educação
dos grandes santos que surgirão no fim do mundo estão-lhe reserva-
das...” (n. 35.)
Pois então sobrevirão inesperados Pentecostes íntimos: “Quando
o Espírito Santo encontra Maria em uma alma, voa até ela, entra plenamente
nela, comunica-se a essa alma abundantemente e tanto quanto ela dá lugar à sua
Esposa indissociável...” (n. 36). Os eleitos deste mundo, santificados por
essas admiráveis visitas do Espírito de amor, não são o triunfo da
Maternidade de graça de Maria?

_______________

São Luís Maria de Montfort considera assim essa Maternidade, tal


como desejaram as três Pessoas divinas: obra de geração, sem dúvida,
mas também e mais profundamente longo trabalho de gestação, no
curso do qual os predestinados são progressivamente incorporados
ao Cristo-Cabeça e santificados até se tornarem semelhantes à sua Mãe,
como era o Filho primogênito. Desse modo, tornam-se semelhantes
ao próprio Jesus Cristo; por isso, o Pai os reconhece como seus ver-
dadeiros filhos e os acolherá no último dia.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


183
Doutrina penetrante e saborosa, como testemunhava o Pe. Garri-
gou-Lagrange, O. P.:61 ela nos faz descobrir nossa filiação mariana
mergulhando suas ascendências no mistério do Verbo encarnado,
até nas profundezas da Trindade. Montfort banhou longamente
nessa doutrina seu espírito e seu coração; é por isso que, avan-
çando sempre de luz em luz, ele não pode deixar de concluir ime-
diatamente pela evidente e plena Dominação da Virgem nas almas
dos predestinados.
Antes de segui-lo na exposição dessa Soberania maternal, não
omitamos a Maria nossa felicidade por saber que vivemos nela, que
crescemos nela, para sermos gerados, depois, para a alegria beatí-
fica. Apreciemos descansar no pensamento de que, carregados em
seu ventre virginal, somos os verdadeiros viventes esperando por seu
nascimento definitivo. Em momento algum, e qualquer que seja o
grau de santidade adquirida, podemos viver sem Maria. Ter consci-
ência disso é nossa beatitude neste mundo.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 1, 39-56: Maria visita Isabel.


TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 135-143: Duas grandes vanta-
gens da Perfeita Consagração.

61 Ver sua obra: A Mãe do Salvador e nossa Vida espiritual, p. 194, primeira
edição.

184 J. M. Dayet
QUARTO DIA
SENHORA DOS PREDESTINADOS

A Soberania de Maria no mais íntimo de nossas almas decorre de


sua Maternidade de graça, compreendida em colaboração com as três
Pessoas divinas, tal como Montfort acaba de expor.
Tudo se concatena suavemente nesse delicioso mistério. Dedique-
mo-nos a prosseguir nessa meditação: reconhecendo a Maria essa ben-
fazeja DOMINAÇÃO materna; PRIVILÉGIO insigne concedido por
Deus; e que faz de nossas almas seu domínio de ESCOLHA.
Veni, sancte Spiritus! Ave, Maria.

A DOMINAÇÃO MATERNA DE MARIA. Depois de ter


exposto sua luminosa maneira de conceber a Maternidade de graça
da Santíssima Virgem, Montfort logo acrescenta: “Devemos concluir
evidentemente do que acabo de dizer que Maria recebeu de Deus uma grande
dominação nas almas dos eleitos...” (n. 37.)
Como poderia ela, com efeito, dar ao Pai celeste verdadeiros filhos,
permanecer no santuário de sua alma para comunicar-lhes incessan-
temente a vida divina recebida no batismo, se não tivesse poder e
autoridade sobre eles?
Como poderia ela dar ao Cristo-Cabeça membros vivos, tendo cada um
uma fisionomia particular e uma função especial no Corpo místico,
e para isso formá-los, alimentá-los, criá-los, conduzi-los, defendê-los,
e finalmente gerá-los para a vida eterna, se não possuísse sobre eles
direitos incontestáveis?
Como poderia ela, também, dar ao Espírito Santo eleitos e templos,
maravilhas de santidade, e implantar-se, enraizar-se neles, reprodu-
zir-se neles no esplendor de suas virtudes, se não tivesse uma domi-
nação real até em suas profundezas mais secretas, lá onde se esconde
a ação misteriosa do divino Paracleto?
Em verdade, “Maria não pode fazer todas essas coisas, se não tiver direito
e dominação em suas almas”. (n. 37.) É preciso, pois, afirmar – visto que

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


185
é evidente – que a Santíssima Virgem, Geradora, Formadora e Santifica-
dora dos predestinados, recebeu de Deus esse elevado poder espiri-
tual. A Mãe das almas, viventes da vida de Jesus, deve ser também sua
Senhora ou Soberana. Deve ter em suas mãos o poder de governá-las
interiormente, ao longo de sua caminhada de graça neste mundo.

II

São Luís Maria de Montfort chama essa Dominação interior


“uma GRAÇA SINGULAR do Altíssimo”. (n. 37.)
Deus, com efeito, reservou para si o domínio das almas. Somente
ele pode reivindicar os direitos de Criador e de Santificador. Dotou-as
do dom incomparável da liberdade e oferece-lhes, além disso, uma
participação real em sua própria vida divina. Sem violência nenhuma,
ele entra como Senhor em nosso interior; passeia, por assim dizer,
no recinto de nossa inteligência e de nossa vontade. Aprecia per-
manecer naqueles que sabem acolhê-lo, encontra-se em nós como
em sua casa, e sempre para o nosso maior bem. Pois, na medida em
que nossa vontade se deixa conduzir pela sua, saboreamos as alegrias
espirituais da ordem e da paz. O triunfo da liberdade humana é a
completa obediência ao Mestre interior e divino. A santidade não é
outra coisa senão o pleno acordo entre nossos pensamentos e nossos
desejos e os pensamentos e os desejos de Deus. Então, Deus reina
dentro de nós.
E eis que Deus – sempre soberanamente independente e bastando
a si mesmo – quis fazer Maria participar de seu Poder de dominação
no interior das almas. A Virgem possui, a título de privilégio, todos os
direitos de penetrar, ela também, em nosso íntimo, lá onde ninguém
entra sem nosso consentimento. Ela entra à vontade e exerce sua
ação benfazeja nesse santuário estritamente pessoal, onde se elabo-
ram os atos de nossa inteligência e de nossa vontade, onde reside
nossa liberdade, onde repousam o que chamamos de “segredos do
coração”, nossos pensamentos e nossas afeições mais caros.
Maria, não há dúvida, conhece esses segredos e essas atividades
de nossa alma; e, no entanto, nossa morada não é violada, nem nossa

186 J. M. Dayet
liberdade é violentada. Bem ao contrário, pois a Virgem está de tal
modo unida a Deus e a nós, que tudo se passa ainda entre Deus e
nossa alma.
“Graça singular do Altíssimo”, diz nosso santo. “Singular”, não
somente porque é magnífica, mas porque é única. A Virgem é a única
que possui esse domínio de nossas almas. Nem os santos do Céu e da
terra, nem mesmo os bons anjos, nem, com maior razão, os demô-
nios, têm o direito de penetrar em nosso interior, e ainda menos o de
residir em nós como senhores. Somente Maria, depois de Deus, tem
livre acesso a nós, como uma rainha em seu próprio palácio.
_______________

Por que a Santíssima Virgem possui esse domínio especial? Mon-


tfort resume em duas linhas a razão profunda desse favor singular:
“Deus, diz ele, tendo dado a Maria poder sobre seu Filho único e natural, deu-
lho também sobre seus filhos adotivos.” (n. 37.)
Novamente, tocamos aqui as sublimidades da Maternidade divina.
Essa Maternidade é o fundamento da Soberania de Maria, como é
o fundamento de todas as suas grandezas. Por consequência dessa
elevação, devida à generosidade divina, a Virgem recebeu poder, em
primeiro lugar, sobre o próprio Filho de Deus, que se tornou seu
próprio Filho por sua natureza, sem deixar de ser Deus.
Ela recebeu do Altíssimo a virtude de formar seu corpo e de
colocá-lo no mundo. Ela guardou, protegeu e defendeu sua infância.
Em Nazaré, ela governou sua adolescência e sua idade madura. No
Calvário, ofereceu sua vida em sacrifício; imolou seu Filho pela sal-
vação do mundo.
Jesus reconheceu esse poder; honrou-o e glorificou-o, submeten-
do-se voluntariamente a Maria. Obedeceu-lhe amorosamente, incli-
nou-se zelosamente diante de sua autoridade. Quis depender ainda
de sua santa Mãe durante os anos da vida pública, como prova o
primeiro milagre, realizado em Caná, na Galileia. Sempre escutou e
atendeu seus pedidos e seus menores desejos. E na glória do Paraíso,
conserva ainda, como veremos em breve em nossa terceira Semana, a
submissão do mais perfeito de todos os filhos em relação à melhor de

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


187
todas as mães. Maria distribui como lhe apraz os tesouros da Reden-
ção. Ela permanece sendo a Medianeira de todas as graças, o que
implica a perenidade de “seu poder sobre o Filho único e natural de Deus”.
Segue, diz Montfort, que Maria tem, semelhantemente, “poder
sobre os filhos adotivos de Deus”. A generosidade do Altíssimo não quis
separar sua Maternidade humana de sua Maternidade divina: os pri-
vilégios de uma acarretam os privilégios da outra.
Essa dedução é tanto mais rigorosa porque os numerosos filhos
de Deus segundo a graça devem ser todos formados à imagem e
semelhança do Filho único e natural. Sua predestinação não pode se
cumprir senão pela conformidade de suas almas à alma santíssima
de Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada. Maria deve, pois, dar-lhes
a semelhança ao ideal divino, a fim de fazer deles outros Cristos nos
quais o Pai dos Céus encontrará e reconhecerá o retrato de seu Filho
primogênito.
Assim, o poder de Maria, Mãe de Deus, se estende e se exerce
sobre o Cristo total, a Cabeça e os membros; e compreendemos
melhor a primeira afirmação de Montfort, que a Virgem não pode dar a
Cristo-Cabeça membros vivos, criá-los em perfeita saúde sobrenatural,
curá-los, se estão doentes, devolvê-los à graça santificante, se vêm a
cometer faltas graves, protegê-los e defendê-los contra inimigos sem-
pre próximos; dar a cada um a estatura de santidade que lhe convém,
sua idade de perfeição, sua função especial a exercer no corpo místico
que é a Igreja, a fisionomia particular que lembrará um dos traços do
semblante de Jesus: “Maria, diz ele, não pode fazer todas essas coisas se
não tiver direito e dominação sobre suas almas.” (n. 37.)

III

SEU DOMÍNIO DE ESCOLHA. Montfort insiste sobre a


Soberania de Maria nas almas de seus filhos predestinados. Sem dúvida, ele
reconhece, semelhantemente, seu poder também sobre seus corpos,
visto que toda criação material é seu império; mas não se detém nesse
poder, considerando-o “pouca coisa” (n. 37) em comparação ao seu
poder sobre as almas.

188 J. M. Dayet
Se ele acrescenta que “Maria é a Rainha do Céu e da terra por graça,
como Jesus é seu Rei por natureza e por conquista” (n. 38), é para chegar a
uma conclusão que confirma a precedente, a saber, o Reino de Maria
nos corações.
A Realeza de Maria, assim como a do Cristo, é universal, se esten-
dendo sobre o mundo dos corpos e sobre o mundo dos espíritos; mas
diferente é sua origem. Jesus é rei “por natureza”, isto é, por direito de
nascimento, enquanto Verbo encarnado, e “por conquista”, enquanto
Redentor. Maria é Rainha “por graça”, pela graça totalmente gratuita
de sua Maternidade divina e pela graça muito meritória de sua cola-
boração na obra redentora.
“Ora, como o Reino de Jesus Cristo consiste principalmente no coração ou no
interior do homem, segundo esta palavra: o Reino de Deus está dentro de vós
(Lc 17, 21); assim também, o Reino da Santíssima Virgem está principalmente
no interior do homem, isto é, em sua alma; e é principalmente nas almas que ela é
mais glorificada com seu Filho do que em todas as criaturas visíveis...” (n. 38.)
Nossas almas são, pois, o elemento primeiro de sua Soberania.
Elas formam seu domínio de escolha; Maria reina em plenitude lá
onde se exerce e desabrocha sua Maternidade de graça.
Por isso, Montfort nos pede para escolhê-la, não somente como
nossa Mãe, mas também como nossa Senhora: MATER e DOMINA.
Essa escolha repousa sobre realidades sobrenaturais misericordiosa-
mente desejadas por Deus em nós. De modo tão verdadeiro quanto
Maria é nossa Mãe, ela é, também, nossa Senhora: ela forma e faz crescer
Jesus Cristo em nós, até que cheguemos à plenitude de sua idade
sobre a terra, isto é, ao grau de santidade determinado para cada um
de nós. Para esse fim, ela nos possui e nos governa interiormente. Sua
ação se exerce até nas mais misteriosas profundezas de nosso ser. Sua
dominação irradia no centro de nosso coração.
Eis por que “podemos chamá-la, com os santos, a RAINHA DOS
CORAÇÕES”. (n. 38.) Esse vocábulo é o equivalente e o sinônimo
de Senhora das almas; apresenta a vantagem de ser mais bem com-
preendido e mais amado. É por isso que foi mantido para designar a
associação dos escravos de amor de Maria. Ao título já tão amado de
Mãe, somamos assim o título muito agradável de Rainha dos corações,
isto é, de Soberana incontestável das almas que lhe são inteiramente

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


189
entregues. Elas compreenderam que essa Soberania de Maria, sendo
uma Soberania de amor, convoca e exige de nossa parte um serviço de
amor, uma doação total na submissão filial mais amorosa, como vere-
mos na meditação seguinte.
Nosso Santo se mostra, até o fim, lógico consigo mesmo. Sua
vontade deseja se doar na medida magnífica em que sua inteligência
penetrou o mistério da Maternidade espiritual de Maria. Essa Mater-
nidade ultrapassa infinitamente toda maternidade terrena. Nossas
mães nos transmitem a vida de natureza, mas não são senhoras de
nossas almas. Maria gera nossas almas para a vida sobrenatural, e
detém-nas em sua posse para imprimir-lhes sua fisionomia de eterni-
dade. O coração dos eleitos é seu domínio escolhido.
_______________

É seguramente uma graça muito especial que a Santa Virgem


outorgou a esse filho privilegiado. Inspirou-o a considerar sua Mater-
nidade de graça, não somente sob o aspecto da transmissão de vida,
mas também e, sobretudo, quanto à dominação íntima que é sua con-
sequência e seu desabrochar nos predestinados.
Muitos autores se contentam em considerar Maria na sua qua-
lidade de Mãe de todos os cristãos. Poucos a contemplam também
sob o aspecto profundo de Senhora e Formadora dos eleitos. Esse
conceito projeta, entretanto, uma luz singularmente penetrante sobre
as belezas escondidas da Maternidade de Nossa Senhora. Revela-nos
essa Maternidade se exercendo livremente no interior das almas san-
tas, lá onde repousa e age esse Hóspede tão doce que é o divino
Consolador. Faz-nos apreciar melhor o segredo da incessante cola-
boração da Virgem na ação santificadora do Espírito Santo. Em
companhia desse Senhor íntimo, Maria se torna a Senhora absoluta
dos predestinados. Mergulha em suas almas, como vimos, as raízes de
suas sublimes virtudes, e faz-lhes produzir as maiores maravilhas de
santidade. Estabelece dentro de nós seu Reino. Reina dentro de nós
como Soberana onipotente e faz reinar seu divino Filho.
Dediquemo-nos a reconhecer que a Mãe de nossas almas é, ao
mesmo tempo, a Rainha de nossos corações.

190 J. M. Dayet
LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 1, 57-80: Nascimento de João


Batista.
TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 152-167: A Perfeita Consagra-
ção conduz à união com Jesus Cristo.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


191
QUINTO DIA
ESCRAVO DE AMOR DE MARIA

A evidente Soberania de Maria nas almas dos eleitos revestia aos


olhos de Montfort tamanha importância que comandou e especifi-
cou sua Consagração. Se esse filho privilegiado da Virgem deseja se
entregar a ela como seu escravo de amor, é porque a escolheu, muito
sabiamente, como sua Mãe e Senhora. Uma relação implica a outra.
Por que encontramos tantas almas, sinceras em sua devoção,
que, no entanto, detêm-se diante dessa denominação de escravo de
Maria? A resposta é simples: elas não compreenderam ainda até que
ponto a Santíssima Virgem é verdadeiramente a Mãe e a Senhora de
toda a sua vida sobrenatural, desde o instante do batismo. No dia em
que compreendemos, na humildade da fé, o valor destas duas palavras:
Mater e Domina, a segunda sendo o complemento da primeira, não há
mais dificuldade em colocar nas mãos de Maria a doação total de nós
mesmos, sem condição nem reserva. A realidade de sua Dominação
íntima clama por nossa inteira doação de amor, a qual quer se exprimir
pela palavra mais forte, a mais expressiva que possamos encontrar.
É por isso que começamos por aprofundar, seguindo Montfort,
a Maternidade de graça de Maria e a Soberania que decorre dela, nas
almas dos predestinados, dos quais ela faz seu domínio escolhido.
Prossigamos ainda hoje com esse luminoso trabalho, primeira-
mente reconhecendo nosso inteiro PERTENCIMENTO à Santíssima
Virgem; depois, constatando com alegria que o escravo de amor de
Maria quer ser seu FILHO sempre submisso e dependente.
Agradeçamos a São Luís Maria de Montfort pelas abundantes
luzes que ele projetou, assim, sobre nossa filiação mariana.
Ave, Maria.

PERTENCEMOS A MARIA NA QUALIDADE DE ESCRA-


VOS. Lembremo-nos da meditação do segundo Dia de nossa pri-
meira Semana, sobre nosso total pertencimento a Jesus Cristo. Esse

192 J. M. Dayet
pertencimento decorre dos direitos de sua Redenção. Ele pagou por
nossas almas um alto preço, o preço de todo o seu sangue. Ele der-
ramou por nós um resgate infinito, como compensação da ofensa
infinita do pecado.
Estamos, pois, como dizíamos, divinamente marcados com o
selo de sua posse. Somos seu bem, sua propriedade, sua conquista, em
estrito rigor de justiça. Tornamo-nos “seus verdadeiros escravos”,
que não devem viver, trabalhar e frutificar senão para ele. Ele é nosso
Senhor e Mestre: Dominus noster; um Mestre de coração infinitamente
bom, que nos arrancou da servidão tirânica do demônio, e que se
apresenta a nós como soberanamente respeitoso de nossa liberdade.
Ele não se impõe à força. Mesmo possuindo sobre nós todos os
direitos, solicita que nos coloquemos livremente a seu serviço.
É por isso que nós mesmos devemos nos alegrar por reconhe-
cer esse total pertencimento, e desejar, em retorno, servir esse bom
Senhor, não somente como servos mercenários (o desejo da recom-
pensa celestial não deve ser excluído de nossas intenções), mas,
também, como escravos de amor, que, por uma escolha refletida,
se doam e se entregam sem nenhum motivo de interesse pessoal,
somente pela honra de pertencer-lhe. (V. D., n. 68, 73.)
Nessa passagem de seu Tratado, Montfort acrescentava: “O que
digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o relativamente da Santíssima Virgem.”
(n. 74.) O que significa que Maria, ela também, tem direito à home-
nagem de nossa amorosa e inteira dependência, mas por um motivo
diferente. Jesus tem direito a ela a título pessoal: ele é nosso Redentor
por conquista, somente ele podia igualar a reparação à ofensa. Maria
tem direito pelo motivo puramente gratuito de união ao seu Filho: ela
é nossa Corredentora por graça, pela graça da vontade divina que a
associou à Encarnação.
Como já dissemos,62 o Salvador podia dispensar qualquer auxiliar
na obra de nossa reparação; agradou-lhe – e era o plano eterno – que
a Virgem lhe fosse associada em todas as coisas. “Tendo Jesus Cristo
escolhido-a como a companheira indissolúvel de sua vida, de sua morte, de sua
glória e de seu poder no Céu e sobre a terra, deu-lhe por graça, relativamente à

62 Segunda Semana, meditação do primeiro Dia, p. 214.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


193
sua Majestade, todos os mesmos direitos e privilégios que ele possui por natureza”,
enquanto Filho de Deus, Redentor dos homens. (V. D., n. 74.)
Esses direitos e privilégios são não somente semelhantes, mas
idênticos, numericamente os mesmos. Mas convêm a Jesus por causa
de si mesmo, e a Maria por causa de seu Filho. “De modo que, acres-
centa Montfort, tendo os dois a mesma vontade e o mesmo poder, têm os mesmos
súditos, servos e escravos.” (n. 74.) Maria é, pois, a Senhora de todos os
resgatados: “Domina nostra”, como Jesus Cristo é seu Senhor: “Domi-
nus noster”. Somos, na verdade, seus escravos, como somos os escra-
vos de Jesus Cristo. Depende somente de nós reconhecer esse inteiro
pertencimento e escolher Maria como nossa Senhora, consagrando-
nos ao seu serviço como seus escravos de amor. Seremos, então, de
modo mais perfeito, os escravos de amor de Jesus Cristo.
Retomamos aqui nossa meditação precedente, na qual havíamos
considerado a Dominação de Maria nas almas predestinadas. Se a Santa
Virgem tem em sua inteira posse todos os resgatados, com maior
razão alegra-lhe exercer sua Dominação materna sobre aqueles de
seus filhos que não querem tornar inútil o sangue de Jesus Reden-
tor nem ignorar seus sofrimentos de Corredentora. Daqueles, como
vimos, ela é plenamente Senhora e Rainha. É, pois, uma felicidade
confiar-lhe a condução de nossa alma e entregar às suas mãos toda a
nossa riqueza espiritual. Assim corresponderemos ao seu belo título
de “Rainha dos corações”; e nossa denominação de “escravos de amor”
não faz senão acentuar a denominação tão amada de filhos da Santa
Virgem, como veremos na segunda parte desta meditação.

II

O ESCRAVO DE AMOR DE MARIA DESEJA SER SEU


FILHO SEMPRE SUBMISSO E DEPENDENTE. Consagrando-
nos como escravos de amor à Santíssima Virgem, não deixamos de
ser seus filhos. Desejamos, na verdade, nos tornar seus filhos de
maneira mais perfeita do que nunca. Contudo, por mais justo e mais
belo que seja em si mesmo, o termo “filho”, sozinho, não nos basta
aqui. É necessária outra coisa que venha do mais profundo de nossa

194 J. M. Dayet
alma livre e amorosa, e que corresponda adequadamente à Domina-
ção que Maria exerce dentro de nós mesmos.
Essa outra coisa, essa espontaneidade de um amor, emanando
da luz e que conduz à doação total, só se exprime em nossas línguas
humanas pela palavra “escravo”, tão comumente empregada na Bíblia
e nas orações da Igreja.
O escravo é, por definição, aquele que se encontra inteiramente,
pessoa e bens, sob a posse e a dependência de um senhor. No caso
concreto que nos ocupa, sendo o Senhor o próprio Deus, revelan-
do-se por intermédio de Maria, não podemos experimentar senão
uma alegria intensa ao nos proclamar escravos da Virgem, exata-
mente como ela mesma se proclamou escrava do Senhor. Esse termo
não é mais desusado hoje do que no tempo da Anunciação, visto que
implica sempre a mesma viva realidade.
Se Montfort se contentasse em se entregar na qualidade de filho,
no sentido de dependência limitada que esse termo comporta na lingua-
gem usual, seu amor não conseguiria corresponder, tanto quanto lhe
é possível, à plenitude de dominação que ele descobre em Maria.
Por outro lado, ao se entregar na qualidade de escravo por vontade,
ele atinge adequadamente seu duplo título de “Mãe” e de “Senhora” das
almas. Glorifica sua Maternidade, apresentando-se com toda a força de
seu querer à formação do Corpo místico do qual é membro.
Da mesma forma, a palavra escravo está longe de se opor a filho.
Existe entre esses dois termos exatamente a mesma conexão que
descobrimos entre os termos correlativos de Senhora e de Mãe, apli-
cados a Maria.
Em Maria, a denominação de Senhora inclui o conceito de Mãe e
o intensifica: a Virgem estende seu domínio de amor para dentro de
nós, na medida em que desabrocha sua Maternidade de graça.
Em nós, semelhantemente, a denominação de escravo de Maria
supõe a de filho e a intensifica; supera-a, acrescentando-lhe a ideia de
uma dependência sem limite e sem fim. Consagramo-nos escravos de
Maria, porque – sendo já seus filhos desde nosso batismo – deseja-
mos viver nossa filiação mariana da maneira mais perfeita, por meio
de uma inteira submissão de nossa vontade, que jamais conhecerá
emancipação ou independência.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


195
O filho pode se libertar da autoridade dos seus. Chega mesmo
um dia em que ele escolhe para si um estado de vida independente.
Permanece, no entanto, filho daquela que o pôs no mundo, mas não
lhe é mais submisso.
O escravo de amor da Virgem é seu filho incansavelmente sub-
misso e dependente. Mesmo tendo chegado à idade de homem, e
sobretudo então, ele deseja conservar sempre sua dependência e sua
submissão da infância. A Virgem, sua Mãe, se torna cada vez mais
sua Senhora, em companhia do Senhor interior, o Espírito Santo de
Jesus. Ela o governa, rege, dirige, protege, santifica dia após dia. Ela
conduz nele sua Maternidade espiritual a um bom termo.
É por isso que o filho da Virgem, que compreendeu essa signifi-
cação da palavra “Senhora”, unida à de “Mãe”, alegra-se por se entre-
gar a ela na qualidade de escravo que o amor conduz à doação total.
“Ó minha divina Mãe, exclamará ele, numa súbita iluminação
de graça, sede também, de maneira perfeita, minha Senhora. Vós
que me gerastes filho do Pai, membro do Filho, templo do Espírito
Santo, estendei agora em mim vossa dominação materna tão cheia
de doçura. Sede a pacífica Soberana das faculdades de minha alma.
Imprimi em mim a semelhança do Filho primogênito, o filho de
Nazaré, cujo Evangelho nos diz que ele quis permanecer amorosa-
mente submisso a vós. Então, tornar-me-ei vosso perfeito filho, deixan-
do-me conduzir em tudo e sempre por esse espírito de submissão de
Jesus, até o tempo determinado pelo Pai dos Céus. Esse tempo será
precisamente aquele em que me gerareis para a glória eterna.”
_______________

Essa lógica do amor é tanto mais rigorosa porque, para muitos


cristãos, a Santíssima Virgem é sua Mãe sem ser, no mesmo grau,
sua Senhora. O exercício de sua dominação está entravado. São, ai de
mim!, muito numerosos os filhos de Nossa Senhora que se subtraem
de sua influência formadora. Maria, contudo, não deixa de ser sua
Mãe: ela permanece sendo a Mãe de todos os pobres pecadores, pois
os gerou no batismo e os considera ainda como seus. Há sempre,
também neles, um resto de vida e esperanças de ressurreição total.

196 J. M. Dayet
Mas sua dominação maternal encontra uma resistência mais ou
menos obstinada. Ela os governa ainda, de certa forma, por incen-
tivos de graças atuais, por chamados de misericórdia que preparam
os caminhos para sua conversão. Ela os governará melhor no dia em
que, retornando enfim à Casa do Pai de família, esses filhos pródigos
se prestarem docilmente à sua ação santificante.
Revertere ad Dominam tuam; et humiliare sub manu illius.63 Volta, pobre
filho desviado, para tua Senhora, que é também tua verdadeira Mãe, e
humilha-te sob o cetro de amor que te apresenta sua mão onipotente.
Essa consideração faz compreender melhor o quanto a Virgem é
plenamente Senhora daqueles entre seus filhos que vivem fielmente
sua Consagração de escravos de amor. Longe de se subtraírem no que
quer que seja à dominação materna de Maria, esforçam-se por acen-
tuar a cada dia sua dependência e submissão filial. Dedicam-se a se
tornar como criancinhas que não têm outra vontade senão a vontade
de sua mãe, nem outro refúgio senão seus braços e seu coração.
Sua total dependência e submissão deve conduzi-los infalivel-
mente ao desabrochamento do espírito de infância. Os fiéis escra-
vos de amor de Maria são as almas santas, na força e no vigor de
sua maturidade espiritual, que permanecem ou se tornam semelhan-
tes às criancinhas. Obedecem em todas as coisas à sua divina Mãe
e Senhora, e se deixam conduzir docilmente “por seu espírito, que é o
Espírito Santo de Deus”. (V. D., n. 258.) São, então, os perfeitos filhos de
Deus e de Maria.
“Aqueles que são conduzidos pelo espírito de Deus, são filhos
de Deus: Qui spiritu Dei aguntur, ii sunt filii Dei (Rom 8, 14). Aqueles
que são conduzidos pelo espírito de Maria, são filhos de Maria, e,
consequentemente, filhos de Deus.” (n. 258.) São os filhos de Deus
e de Maria em perfeição, porque, “possuídos e governados” pelo Espírito
Santo e pela Esposa do Espírito Santo, oferecem-lhe em toda cir-
cunstância obediência e submissão de amor. Nossa consagração não
suprime nada, pois, do título de filho que o batismo imprime sobre

63 Gênesis, 16, 9. São Bernardino de Siena aplica a Maria essa palavra do


anjo a Agar no deserto de Berseba. (Serm. 3 de Nomine Virginis.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


197
nossas frontes; bem ao contrário, ela faz resplandecer esse título com
um brilho novo.
_______________

Orgulhemo-nos humildemente por nos consagrar escravos de


amor da Rainha dos corações. Repitamo-lo, essa doação continua
sendo inteiramente livre. Montfort apresenta-a à nossa escolha entre
diversas outras maneiras de testemunhar a Maria uma devoção ver-
dadeira.64 Mas ele confessa não ter encontrado outra “que seja mais
gloriosa a Deus, santificante para a alma e útil ao próximo” (118).
Foi para fazê-la conhecida que ele escreveu seu Tratado mariano,
o qual ele desejaria ter redigido com seu sangue, no lugar de tinta, na
esperança, diz ele, de que “cedo ou tarde a Santíssima Virgem tenha
mais filhos, servos e escravos de amor do que nunca; e que, por meio
disso, Jesus Cristo, seu querido Mestre, reine nos corações mais do
que nunca”. (n. 112, 113.)
Estimemo-la, pois, como uma graça enorme do Espírito Santo,
que devemos merecer por meio de uma profunda humildade; pois
são os humildes e os pequenos que apreciam e provam melhor esse
“divino segredo dos eleitos”.65 Ó nosso Pai dos Céus! Ó Maria, Mãe e
Senhora das almas! Rendemos graças por terdes escondido essas coi-
sas aos sábios e prudentes do século, e porque as revelais aos vossos
humildes filhos e escravos.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 2, 1-21: Nascimento de Jesus


Cristo. Adoração dos pastores.
TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 213-217: Os frutos maravilhosos
da Perfeita Consagração.

64 Ver Tratado da Verdadeira Devoção, n. 115-119.


65 No Refrão do Cântico da Consagração.

198 J. M. Dayet
SEXTO DIA
MÃE SEMPRE PRESENTE

Seguimos nosso guia espiritual fazendo decorrer da Maternidade


de graça de Maria sua Soberania no íntimo das almas. É evidente,
dizia ele, que a Virgem, indissoluvelmente associada às três Pessoas
divinas na obra cotidiana de nossa santificação, “recebeu de Deus uma
grande dominação na alma dos eleitos”. (n. 37.)
Mãe dos predestinados, ela deve ser também sua Senhora ou
Soberana. “Por uma graça singular do Altíssimo”, ela tem o poder
de conduzi-los e governá-los, desde o momento de sua concepção
na graça até o de sua geração para a glória, isto é, de formá-los mem-
bros perfeitos do Cristo, e de introduzi-los na vida eterna, onde ela
continuará sendo, mais do que nunca, sua Rainha.
Esse poder implica não somente o direito de simples entrada em
nosso interior, mas, sobretudo, o de uma posse permanente e operante;
logo, de presença contínua. É a PRESENÇA DE AÇÃO de Maria no
mais íntimo de nossas faculdades. Sua ação materna acompanha a ação
divina do Espírito Santo, levada que é por esta última.66
São Luís Maria de Montfort explica-nos de maneira figurada
essa presença materna, descrevendo os BONS OFÍCIOS que Maria
presta aos seus fiéis escravos, segundo a história bíblica de Rebeca
tendo um cuidado particular por seu filho Jacó, símbolo dos predesti-
nados. Ele relembra, primeiro, essa história e sua interpretação nos
números 183 a 200 de seu Tratado, insistindo sobre o amor de Jacó
por Rebeca, imagem do amor dos predestinados por Maria. Depois,
ele se estende com prazer sobre os bons Ofícios que a Santa Virgem,
como a melhor de todas as mães, obtém para seus escravos de amor
no tempo de sua Consagração e depois dela. (n. 201-212.)

66 Não se deve pensar, aqui, em assimilar a presença de Maria em nós à ina-


bitação das três Pessoas divinas. Essa inabitação é substancial, enquanto a
presença de Maria procede somente de sua operação.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


199
Com ele, vamos considerar esses diferentes bons Ofícios, recomen-
dando, contudo, a leitura e a meditação dos números que precedem,
sobretudo os que explicam a conduta de piedade filial que conservam
todos os dias os predestinados para com Maria. (n. 196-200.)
Invoquemos o Espírito Santo e sua Esposa imaculada. Veni, sancte
Spiritus! Ave, maris Stella.

NO TEMPO DA PREPARAÇÃO E DA PROFISSÃO DE SUA


CONSAGRAÇÃO, MARIA NÃO DEIXA DE CERCAR COM
SEU AMOR SEUS ESCRAVOS FIÉIS.
Ela os ama “porque é sua Mãe verdadeira”, tendo-os gerado para a
vida da graça no batismo.
Ela os ama ainda mais porque eles mesmos a escolheram como
sua Mãe e Senhora, e desejam se consagrar inteiramente a ela, reco-
nhecendo, assim, não somente sua filiação mariana, mas também seu
estado de total pertencimento. Maria é-lhes agradecida, e testemunha-
lhes mais afeição. Vê neles seus filhos sempre submissos e dependen-
tes, os predestinados que Deus ama: Jacob dilexi. (Rom 9, 13.)
“Ela os ama ternamente, e mais ternamente do que todas as mães
juntas. Colocai, se puderdes, todo o amor natural que as mães do
mundo inteiro têm por seus filhos no coração de uma mãe por um
filho único; certamente, essa mãe amará muito esse filho. Entretanto,
é verdade que Maria ama ainda mais ternamente seus filhos do que
essa mãe amaria o seu.” (n. 202.)
Reflitamos sobre a maravilhosa delicadeza, a ternura incompará-
vel de seu Coração de imaculada, a sua força de alma de Mãe corre-
dentora. Custamos-lhe tantos sofrimentos...
“Ela os ama, não somente com afeição, mas de maneira eficaz. Seu
amor por eles é ativo e efetivo, como o de Rebeca, e muito mais que
o de Rebeca por Jacó”, tanto ela deseja obter-lhes a bênção do Pai
celestial que Jesus conquistou para eles. (n. 202.) Para atrair sobre eles
esse supremo benefício:
1º “Ela procura, como Rebeca, as ocasiões favoráveis para fazer-lhes o
bem.” Como ela vê tudo em Deus na luz da visão beatífica, seu amor

200 J. M. Dayet
dispõe de longe as coisas para isentar seus servos de toda sorte de
males e cobri-los de toda sorte de bens. Ela mesma administra seus
interesses (n. 203.)
2º “Ela lhes dá bons conselhos”, como Rebeca a Jacó: Fili mi, acquiesce
consiliis meis: Meu filho, segue os meus conselhos. (Gen 27, 8.) E, entre
outros conselhos, o de trazer-lhe dois cabritos, isto é, seu corpo e sua
alma, e de consagrá-los para torná-los agradáveis a Deus; também
o de fazer tudo o que Jesus Cristo, seu Filho, ensinou por meio de
suas palavras e de seus exemplos. Se não é sempre por ela mesma,
por suas inspirações, que ela lhes dá esses conselhos por meio das
graças atuais das quais dispõe, é pelo ministério dos anjos, que não
conhecem maior felicidade do que obedecer aos seus mandamentos.
Quantas vezes nos acontece sentir muito visivelmente as iluminações
dos bons anjos. (n. 204.)
3º “Quando lhe trouxemos e consagramos nosso corpo e nossa alma com
tudo o que deles depende, sem nada omitir, o que faz essa boa Mãe?
O que fez outrora Rebeca com os dois cabritos que lhe entregou Jacó:
ela os mata, fazendo-os morrer para a vida do velho Adão; esfola-os e despoja-os
de sua pele natural, de suas inclinações naturais, de seu amor-próprio
e própria vontade, e de todo apego à criatura; purifica-os de suas man-
chas, sujeitas e pecados; prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior
glória. Como somente ela conhece perfeitamente esse gosto divino e
essa maior glória, somente ela pode, sem se enganar, acomodar e pre-
parar nosso corpo e nossa alma a esse gosto infinitamente sublime
e a essa glória infinitamente secreta.” (n. 205.) Ela conduz, assim, ao
aperfeiçoamento o trabalho de nossa primeira Semana.
4º Depois, para torná-los ainda mais dignos de se apresentarem
diante do Pai celestial, Maria não se contenta em despojar seus fiéis
escravos de seus velhos hábitos, os trapos do pecado, e em lavá-los
das máculas contraídas; mas “ela os reveste com as roupas próprias, novas,
preciosas e perfumadas de Jesus Cristo, que ela guarda em sua casa, isto é,
que ela tem em seu poder, sendo a tesoureira e a dispensadora uni-
versal e eterna dos méritos e das virtudes de seu Filho, que ela dá e
comunica a quem deseja, quando deseja, como e quanto deseja” (n.
206), como vimos em nossa meditação do terceiro Dia.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


201
“Ela envolve o dorso e as mãos de seus escravos com as peles dos cabritos sacrifi-
cados e esfolados; isto é, orna-os com os méritos e o valor de suas próprias
ações. Ela mata e mortifica, na verdade, tudo o que há de impuro e de
imperfeito em suas pessoas; mas não perde e não dissipa todo o bem
que a graça nelas realizou; conserva-o e aumenta-o para fazer dele o
ornamento e a força de seu dorso e de suas mãos, isto é, para fortificá-
los para suportar o jugo do Senhor, que se carrega sobre o dorso, e
para operar grandes coisas para a glória de Deus e a salvação de seus
pobres irmãos.” (n. 206.) Não se pode dizer que tudo seja mau neles.
Suas boas obras são excelentes, pelo menos depois de terem sido puri-
ficadas por Maria; e essa boa Mãe se prevalece disso para obter-lhes
mais facilmente a bênção divina. Ela mostra a Deus o dorso de seus
escravos habituados a carregar o jugo do Senhor, e suas mãos endure-
cidas pelos penosos trabalhos que a vontade divina impunha.67
Depois disso, Maria “dá um novo perfume e uma nova graça a essas vestes
e ornamentos, comunicando-lhes suas próprias vestes, isto é, seus méri-
tos e suas virtudes”: seus méritos, visto que ela conquistou para nós,
por conveniência, tudo o que seu Filho mereceu por estrita justiça;
suas virtudes, segundo o mandato que ela recebeu do Espírito Santo
(ver nosso terceiro Dia.) “De modo que todos os seus criados (isto
é, todas as pessoas de sua casa), todos os seus fiéis servos e escravos
estão duplamente revestidos com as vestes de seu Filho e também
das suas: Omnes domestici ejus vestiti sunt duplicibus. (Prov 31, 21.) É por
isso que eles nada têm a temer do frio de Jesus Cristo, branco como
a neve, que os reprovados, nus e despojados dos méritos de Jesus
Cristo e da Santa Virgem, não poderão suportar.” (n. 206.)
No julgamento geral, Jesus Cristo, resplandecente de brancura, e
buscando o brilho dessa brancura nas almas, não as verá com frieza,
como olhará com frieza os reprovados. Estes últimos, nus e despoja-
dos, não poderão suportar o rigor desse olhar glacial do Juiz supremo;
enquanto os predestinados, revestidos com a dupla veste que Maria
lhes preparou, oferecerão aos olhos do divino Mestre a imagem de
sua própria santidade e da santidade de sua Mãe.

67 Ver Tratado da Verdadeira Devoção, edição com Notas, pelo Pe. Plessis,
montfortino: nota 37 do n. 206.

202 J. M. Dayet
5º “Ela os faz, por fim, obter a bênção do Pai celestial”, à qual somente
Nosso Senhor tem direito, sendo seu Filho por natureza, enquanto
somos seus filhos apenas por graça. “Com essas vestes novas, tão
preciosas e tão perfumadas; com seu corpo e sua alma bem prepa-
rados e prontos, eles se aproximam com toda confiança do leito de
repouso de seu Pai celestial. Este ouve e distingue sua voz, que é a
de Jacó; toca suas mãos cobertas de peles, sente o perfume de suas
roupas; come com alegria do que Maria, sua Mãe, lhe preparou; e,
reconhecendo neles os méritos e o perfume de seu Filho e de sua
santa Mãe:
“1) Dá-lhes sua dupla bênção: benção do orvalho do Céu, isto é, a
graça divina que é a semente da glória; bênção da gordura da terra,
isto é, da segurança do pão cotidiano e uma abundância suficiente
dos bens deste mundo.
“2) Torna-os senhores de seus irmãos, os reprovados: primazia ver-
dadeira, ainda que não se manifeste sempre neste mundo, onde os
reprovados dominam amiúde; mas que se manifestará plenamente no
outro mundo e por toda a eternidade...
“3) Não contente em abençoá-los, em suas pessoas e em seus
bens, abençoa também todos os que os bendizerem, e amaldiçoa todos os que
os maldisserem e perseguirem.” (n. 207.)
Tal é o amor eficaz de Maria para com seus escravos fiéis. É uma
presença maternal sempre desperta e sempre em ação: ela toma a
dianteira e solicita nossa obediência. Por isso, nossa maior alegria
deve ser obedecer a essa Mãe amorosa e permanecer em sua com-
panhia, trabalhando sob seu olhar e convivendo com ela. Pois, como
Montfort nos dirá, continuamos sendo o objeto de sua predileção e
de seus obséquios.

II

APÓS SUA CONSAGRAÇÃO, A SANTÍSSIMA VIRGEM


NÃO DEIXA DE PRODIGALIZAR SEUS BONS OFÍCIOS
AOS SEUS ESCRAVOS DE AMOR.
1º Ela lhes provê tudo para o corpo e para a alma. Para o corpo, asse-
gura a eles, com o pão cotidiano, uma abundância suficiente dos bens

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


203
deste mundo, como acabamos de ver. Para a alma, dá-lhes de comer o
Pão eucarístico, esse Pão da vida que é seu Pão, aquele que ela formou
e preparou para nós; dá-lhes a beber o vinho que ela misturou para
eles com o leite de suas mamas. “Vinde, diz-lhes, comei meu pão, e
bebei o vinho que vos preparei”: Venite, comedite panem meum et bibite
vinum quod miscui vobis. (Prov 9, 5.) Maria alimenta, assim, seus filhos,
com sua própria substância, que ela comunicou ao Filho de Deus. A
Eucaristia nos oferece essa carne e esse sangue que Jesus recebe uni-
camente de sua Mãe. Que sabor virginal contém nossa Hóstia! Santa
Teresa de Lisieux impregnava sua alma com ele: “Minha branca Hóstia
é o leite virginal”, dizia em um de seus pequenos poemas. O Filho de
Deus, entre os braços da Virgem, alimentando-se nos seios da Vir-
gem, é um leite, inteiramente.
Além disso, como Maria é a Tesoureira e a Dispensadora dos
dons e das graças do Altíssimo, reserva deles uma boa porção, e a
melhor, para cuidar de seus filhos e escravos. Estes “são verdadeira-
mente levados aos seus peitos”, segundo a palavra do profeta Isaías:
Ad ubera portabimini (66, 12). Têm tanta facilidade em carregar o jugo
do Senhor, que quase não sentem seu peso, por causa da unção de
suavidade com a qual ela o envolve para torná-lo manso e leve. (n.
208.) Presença de predileção muito evidente.
2º Maria conduz e dirige seus escravos de amor. Mesmo avançando em
idade, estes querem sempre se assemelhar ao pequeno Jacó, que recor-
ria às luzes de sua mãe Rebeca. Essa confiança filial provoca e facilita a
intervenção de Maria nos momentos oportunos. Por isso, assim como
Rebeca dava, de tempos em tempos, bons conselhos a Jacó, seja para
atrair sobre ele a bênção de seu pai, seja para evitar o ódio e a persegui-
ção de seu irmão, assim também a Santíssima Virgem ilumina e dirige,
para o seu maior bem, os que reclamam seus bons conselhos.
Estrela do mar, ela conduz todos eles ao porto seguro, mostran-
do-lhes o caminho a seguir e fazendo-os evitar os lugares perigo-
sos. Ela os conduz pela mão nos caminhos da justiça; sustenta-os
quando estão prestes a cair; reergue-os quando caem; repreende-os
como mãe caridosa, quando falham; e às vezes até mesmo os castiga
amorosamente.

204 J. M. Dayet
Um filho obediente a Maria, sua diretora esclarecida, pode se per-
der nos caminhos da eternidade? “Seguindo-a, diz São Bernardo,68
não vos desviais.” Ipsam sequens, non devias. Ele não pode se deixar
tomar nem pelas ilusões do espírito maligno, nem pelas sutilezas
enganosas dos hereges: Ipsa tenente, non corruis. “Se Maria vos sustenta,
não caireis.” (n. 209.)
Precedentemente, no n. 167, Montfort havia reconhecido que
poderia suceder a esse filho obediente “errar materialmente, embora
mais dificilmente do que os outros; mas, acrescentava ele, cedo ou
tarde, ele reconhecerá seu erro material; e quando o reconhecer, não
se obstinará de maneira alguma em crer e sustentar o que havia pen-
sado ser verdade”. Quantas vezes teremos constatado a veracidade
dessa asserção, a propósito de condenações apresentadas pela Igreja.
Ó bem-aventurada segurança que nos vale essa presença iluminada!
3º Maria defende e protege seus escravos de amor contra seus inimigos.
“Rebeca, por meio de seus cuidados e habilidades, livrou Jacó de
todos os perigos em que se encontrou, e particularmente da morte
que seu irmão Esaú lhe teria aparentemente causado pelo ódio e pela
inveja que lhe tinha, como outrora Caim ao seu irmão Abel.” Ela
separou os dois irmãos, enviando Jacó à Caldeia, para a casa de seu
tio Labão, enquanto durasse a cólera de Esaú.
Assim, Maria, a boa Mãe dos predestinados, protege seus fiéis
filhos e escravos que amiúde estão, neste mundo, expostos ao ódio
e à perseguição dos reprovados. “Ela os esconde sob as asas de sua
proteção, como uma galinha seus pintinhos; ela fala, se inclina a eles,
condescende com todas as suas fraquezas. Para protegê-los do gavião
e do abutre, ela se coloca em volta deles, e os acompanha como um
exército em ordem de batalha: ut castrorum acies ordinata (Cânt 6, 3).
Que poderia um homem temer de seus inimigos, se estivesse cer-
cado por um exército bem ordenado de cem mil soldados? Um fiel
servo de Maria, cercado de sua proteção e de seu poder imperial,
tem ainda menos a temer. Se fosse preciso, essa boa Mãe e Princesa
poderosa despacharia imediatamente batalhões de milhões de anjos
para socorrer um de seus servos; pois jamais se ouviu dizer que um

68 Homilia II super “Missus est”, n. 17.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


205
fiel servo de Maria, que se confiou a ela, tenha sucumbido à malícia,
ao número e à força de seus inimigos.” (n. 210.)
Para citar apenas um exemplo muito próximo, quantos missio-
nários na China, legionários e escravos de Maria, depois de terem
sofrido, durante meses e até anos, da parte dos comunistas, trata-
mentos atrozes, puderam, como por milagre, retomar sua pátria e
se mostrar as heroicas testemunhas do Cristo! Presença afetuosa e
poderosamente defensiva.
4º Por fim, Maria intercede por seus fiéis escravos junto ao seu Filho.
“Depois de tê-los enchido de seus favores e de ter-lhes obtido a bên-
ção do Pai celestial, ela os une a Jesus Cristo com um laço muito
íntimo e os conserva nessa união. Ela os guarda e vigia sempre, para
que não percam a graça de Deus e não caiam nas armadilhas de seus
inimigos”, como vimos no quinto Dia de nossa primeira Semana.
Assim, Maria os faz perseverar até o fim. (n. 212.) Essa graça da perseve-
rança final na união a Jesus Cristo é “o maior bem que Maria obtém
aos seus fiéis escravos”. (n. 211.)
_______________

Tal é a eficácia de sua intercessão onipotente: ela supõe, evidente-


mente, assim como os outros bons Ofícios mencionados, uma contí-
nua imitação das virtudes de Maria, o que Montfort chama de guardar
os caminhos da Santíssima Virgem, apoiando-se sobre uma palavra da
Sabedoria no livro dos Provérbios (8, 32): Beati qui custodiunt vias meas.
É nisto, diz ele, que os escravos de amor de Maria “são verdadeira-
mente felizes e carregam a marca infalível de sua predestinação.
“Eles são felizes neste mundo, durante sua vida, pela abundância das
graças e das doçuras que ela lhes comunica de sua plenitude, e mais
abundantemente do que aos outros que não a imitam de tão perto.
“Eles são felizes em sua morte, que é doce e tranquila, e à qual Maria
assiste ordinariamente, para conduzi-los pessoalmente às alegrias do
Paraíso.
“Por fim, eles serão felizes na eternidade, porque nunca qualquer
dos seus servos, que imitou suas virtudes durante a vida, se perdeu.”
(n. 200.)

206 J. M. Dayet
A Santíssima Virgem continua sendo para eles essa “ajuda muito
presente”: ADJUTRIX PRAESENTISSIMA, que invocamos na
Pequena Coroa (12ª Estrela). Repitamos-lhe, pois, com Montfort: “Ó
Santa Virgem, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles, repito-o
com os êxtases de meu coração, quão felizes são aqueles e aquelas
que guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas
ordens!” (n. 200.)

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Lucas, cap. 2, 29-39: Apresentação de


Jesus no Templo.
TRATADO da Verdadeira Devoção, n. 218-225: Os frutos maravilhosos
da Perfeita Consagração (continuação).

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


207
A TERCEIRA SEMANA
CONHECIMENTO DE JESUS CRISTO

PRIMEIRO DIA
Ó SABEDORIA ETERNA!

A terceira Semana de nossa Preparação deve ser empregada para


conhecer Jesus Cristo, a Sabedoria Eterna e Encarnada.
Como indica a exclamação de amor do início de sua fórmula de
Consagração, sabemos que sob essa denominação de “Sabedoria” o
Padre de Montfort quer designar antes de tudo a segunda Pessoa da
Santa Trindade, o Filho de Deus gerado pelo Pai desde toda a eterni-
dade, que se fez homem no ventre da Virgem Maria.
Jesus Cristo, Verbo encarnado, é a Sabedoria substancial e eterna,
que encerra em si todos os tesouros de graça e de ciência da Divin-
dade, sob os atrativos incomparáveis de sua Humanidade santa. Ele
possui ao infinito os bens que nosso espírito e nosso coração podem
desejar. Ele sacia os que têm fome e sede de sua Verdade, de sua
Bondade, de sua Beleza, de sua Beatitude perfeita.
Desde sua juventude clerical, Montfort se apaixonou por ela.
Compôs uma primeira obra, que intitulou propositadamente “O
Amor da Sabedoria Eterna”, desejando conquistar-nos, como ele, por
seus encantos. Segui-lo-emos nesse longo e amoroso olhar que ele
fixou sobre Ela antes de sua Encarnação e no tempo de sua Encarnação.
Essa contemplação nos fará compreender por que ele não indica
outro fim à sua Consagração senão a Posse da Sabedoria, isto é, da
própria Pessoa de Jesus Cristo com todos os Bens escondidos sob
esse nome delicioso de “Sabedoria”.
Neste primeiro Dia, sigamo-lo contemplando a Sabedoria Eterna:
1º em sua ORIGEM no seio de Deus; 2º na CRIAÇÃO do universo;
3º em seu veemente DESEJO de se doar aos homens após a queda
de Adão.

208 J. M. Dayet
Como nas Semanas precedentes, recitaremos as ladainhas do
Espírito Santo e a Ave, Maris Stella, acrescentando-lhes todos os dias
a ladainha do Santo Nome de Jesus ou do Sagrado Coração. Podere-
mos também dizer a oração de Santo Agostinho (V. D., n. 67). Não
temamos rezar demais durante esta última Semana, que deve ser a
mais rica e a mais fecunda.

A ORIGEM DA SABEDORIA ETERNA. “Ó profundidade e


imensidão, ó incompreensibilidade da Sabedoria de Deus!” – exclama
Montfort, com São Paulo: O altitudo... Sapientiae... Dei! (Rom 11, 33.)
E com o profeta Isaías: Generationem ejus quis enarrabit? (53, 8.) “Qual
é o Anjo esclarecido o bastante e o homem temerário o bastante para
tentar nos explicar, como se deve, sua origem? É aqui que todos os
olhos devem se fechar, para não serem cegados por tão viva e brilhante
luz. É aqui que toda língua deve se calar, para não embaciar uma beleza
tão perfeita, querendo descobri-la. É aqui que todo espírito deve se
aniquilar e adorar, para não ser oprimido pelo peso imenso da glória da
divina Sabedoria, querendo sondá-la.” (A. S. E., n. 15.)
Somente os textos inspirados poderão nos dar uma ideia disso;
os textos dos Livros sapienciais prepararam a completa Revelação
do Novo Testamento.69 Há, de início, os dois versículos do Livro da
Sabedoria (7, 25, 26), que descrevem a Sabedoria divina com uma
vivacidade de expressões notável:

Ela é uma exalação do poder divino,


e uma como pura emanação da claridade do Todo-Poderoso,
e por isso não se pode encontrar nela a menor impureza.
Porque ela é o clarão da luz eterna,
e o espelho sem mácula da majestade de Deus,
e a imagem da sua bondade.

69 Não nos parece que, vivendo na fé do Antigo Testamento, seus autores


tenham considerado a Sabedoria como uma pessoa; mas descrevem-na
com traços que convêm perfeitamente a uma pessoa. (Ver E. Osty, P. S.
S., O Livro da Sabedoria. Introdução, p. 18 e 19.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


209
Temos aí muitas comparações que tentam descrever suas origens
misteriosas. Proveniente de Deus, consubstancial a Deus, essa Sabe-
doria só pode ser imaterial como ele, infinitamente pura, simples e
soberanamente eficaz.
É ainda da Sabedoria que é dito, no Livro dos Provérbios (8,
22-27), que ela foi criada, isto é, produzida desde o começo, antes de
todas as coisas e antes de todos os séculos. Ela diz de Si mesma:

O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos,
desde o princípio, antes que criasse coisa alguma.
Desde a eternidade fui constituída,
e desde o princípio, antes que a terra fosse criada.
Ainda não havia os abismos, e eu estava já concebida;
ainda as fontes das águas não tinham brotado;
ainda se não tinham assentado os montes sobre sua pesada massa;
antes de haver outeiros, eu já tinha nascido.
Ainda ele não tinha criado a terra nem os rios, nem os eixos do mundo.
Quando ele preparava os céus, eu estava presente...

Como descrever melhor, em linguagem poética, a preexistência


eterna da Sabedoria? Ao nos dizer que ela existia “antes da origem da
terra, antes do abismo” que, no começo, cobria tudo, o autor inspirado
faz uma alusão evidente ao versículo do Gênesis (1, 2): “No princípio...
as trevas cobriam a face do abismo”, e ao Salmo 103, que é um hino ao
Criador: “A terra... o abismo cinge-a como um vestido” (versículo 6). A
Sabedoria é, pois, anterior a toda criação.
O autor dos Provérbios precisa mesmo que “Ela foi concebida”
antes da existência do mundo, o que evoca a ideia da geração. Ela
recebeu, pois, de Deus o seu ser, e isto desde sempre.
Assim, a Sabedoria nos entrega o segredo de sua origem; sem atin-
gir o relevo de uma personalidade viva, ela nos é mostrada como pro-
cedendo de Deus, fundada em Deus, distinta dele, eterna como ele.
_______________

O apóstolo São Paulo, de posse da clara Revelação do mistério


da Santa Trindade, não hesitou em entender diretamente da Pessoa

210 J. M. Dayet
de Jesus Cristo o que esses belos textos e outros ainda dos Livros
sapienciais dizem da Sabedoria divina.70
São João, o Vidente de Patmos, completou então São Paulo,
chamando pelo nome de “Verbo” essa Sabedoria “saída da boca do
Altíssimo”,71 preexistindo a tudo, e enchendo com sua presença a
Revelação ainda velada do Antigo Testamento.
In principio erat Verbum... (Jo 1, 1): “No princípio existia o Verbo...”,
ou o Filho de Deus ou a Sabedoria Eterna. Pelo nome de “Verbo”,
São João nos revelava que sublime geração de inteligência, geração
toda espiritual, toda imaculada, seu olhar descobria no seio da Trin-
dade. O Pai, sendo por si mesmo objeto infinito de conhecimento
e de contemplação, produz, gera um Filho que é seu Pensamento
subsistente, sua Palavra interiormente proferida, sua Imagem per-
feita, idêntica em natureza, igual em perfeição, seu Verbo íntimo e
inseparável, outro Dele mesmo, por meio do qual ele exprime para si
mesmo sua inesgotável riqueza.
“No princípio era o Verbo”; isto é, quando começaram as coisas que
tiveram um começo, o Verbo já existia. Ele é, pois, eterno, pois para
além do tempo, antes da criação das coisas contingentes, há somente
a eternidade.
Nessa imóvel eternidade, “o Verbo habitava junto de Deus”, como
Ideia da divina Beleza contemplando a si mesma, como Pessoa dis-
tinta levando com Deus uma mesma vida em comum.
“E o Verbo era Deus”, consubstancial a Deus, possuindo a mesma
natureza que Deus.
Nada de mais profundo poderia ser dito. Assim, tudo se con-
cilia nos Livros santos, para nos mostrar a Sabedoria mergulhando
sua origem até as profundezas da eternidade: ela vem de Deus e é
Deus. Adoremo-la, louvemo-la, glorifiquemo-la com São Luís Maria
de Montfort.

70 Ver Col 1, 15-16; Heb 1, 3. Quanto aos Livros sapienciais, as passagens mais
importantes são: Provérvios (8, 19); Eclesiástico (1, 24); Sabedoria (6, 9). “É
preciso entendê-las, diz o Pe. Saint-Jure, segundo a interpretação comum
dos Padres, de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada.” (Do Co-
nhecimento e do Amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tomo I, cap. IV.)
71 Ego ex ore Altissimi providi (Eclo 24, 5).

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


211
II

A SABEDORIA ETERNA NA CRIAÇÃO. “A Sabedoria come-


çou a brilhar fora do seio de Deus... quando fez a luz, o Céu e a terra.
São João diz que tudo foi feito pelo Verbo, isto é, pela Sabedoria
Eterna: Omnia per ipsum facta sunt (1, 3). Ela é a mãe e a artífice de
todas as coisas: Horum omnium mater est. Omnium artifex Sapientia... (Sab
7, 12 e 21.)
Essa Beleza soberanamente reta, depois de ter criado o mundo,
pôs nele a bela ordem que admiramos. Separou, compôs, acrescen-
tou, contou tudo o que existe. Ela estendeu os céus; colocou o sol, a
lua, as estrelas e os planetas em ordem. Ela assentou os fundamentos
da terra; deu limites e leis ao mar e às ondas que vêm das alturas. Formou
as montanhas; tudo pesou e balanceou até às fontes. Por fim, diz ela, eu
estava com Deus, e regulava todas as coisas com uma justeza tão perfeita
que era como uma espécie de jogo que eu jogava para me divertir e diver-
tir meu Pai: Cum eo eram cuncta componens; et delectabar per singulos dies, ludens
coram eo omni tempore, ludens in orbe terrarum. (Prov 8, 30, 31.)
Esse jogo inefável da divina Sabedoria se vê, com efeito, nas dife-
rentes criaturas do universo. Pois, sem falar das diferentes espécies
de anjos, que são, por assim dizer, infinitos em número; sem falar das
diferentes grandezas das estrelas, nem dos diferentes temperamentos
dos homens, que admirável mudança vemos nas estações e nos tem-
pos, que variedade de instintos nos animais, que diferentes espécies
nas plantas, que diferentes belezas nas flores, que diferentes sabores
nos frutos! Qui sapiens, et intelliget haec? (Sl 106, 43.) Quem é aquele
a quem a Sabedoria se comunicou? Somente ele terá a inteligência
desses mistérios da natureza.
A Sabedoria os revelou aos santos, como vemos em suas vidas,
e às vezes eles ficavam tão surpresos ao ver a beleza, a delicadeza e a
ordem da divina Sabedoria nas menores coisas, como uma abelha, uma
formiga, uma espiga de trigo, uma flor, um pequeno verme da terra,
que caíam no êxtase e no encantamento.” (A. S. E., n. 31-34.)
Admirar na natureza, no curso das estações e ao longo dos dias,
essas maravilhas da Eterna Sabedoria; aproveitar cada oportunidade

212 J. M. Dayet
para agradecer-lhe, bendizê-la com um ímpeto do coração, é carregar
em si uma alma de oração.
_______________

“Se o poder e a mansidão da Sabedoria Eterna tanto brilharam


na criação, na beleza e na ordem do universo, ela brilhou muito mais
na criação do homem, visto que ele é sua admirável obra-prima, a
imagem viva de sua beleza e de suas perfeições, o grande vaso de
suas graças, o tesouro admirável de suas riquezas, e seu representante
único sobre a terra: Sapientia tua fecisti hominem, ut dominaretur omni cre-
aturae quae a te facta est (Sab 9, 2).” (n. 35.)
São Luís Maria de Montfort escreve aqui, para a glória dessa
poderosa Artífice, uma página magnífica sobre a beleza e a excelência
original do homem: “Ela fez, por assim dizer, cópias e expressões bri-
lhantes de seu entendimento, de sua memória e de sua vontade, e deu-as
à alma do homem para ser o retrato vivo da Divindade. Ela acendeu
em seu coração um incêndio de puro amor por Deus; formou-lhe um
corpo todo luminoso, e encerrou nele, como num resumo, todas as
perfeições diferentes dos anjos e das outras criaturas.
“Tudo no homem era luminoso sem trevas, belo sem feiúra,
puro sem máculas, regrado sem desordem e sem nenhuma mancha
de imperfeição. Ele tinha como apanágio a luz da Sabedoria em seu
espírito, por meio da qual conhecia perfeitamente seu Criador e suas
criaturas; ele tinha a graça de Deus em sua alma, por meio da qual era
inocente e agradável aos olhos do Altíssimo. Tinha em seu corpo a
imortalidade. Tinha o puro amor de Deus em seu coração, sem temor
da morte, e com ele o amava continuamente, sem descanso, e pura-
mente pelo amor dele mesmo. Por fim, ele era tão divino, que estava
continuamente fora de si mesmo, extasiado em Deus, sem que tivesse
nenhuma paixão a vencer ou inimigo a combater. Ó generosidade
da Sabedoria Eterna para com o homem! Ó maravilhoso estado do
homem em sua inocência!” (n. 37-38.)
Mas eis que o homem peca e perde essa inocência, essa beleza, essa
imortalidade. Perde todos os bens que recebera. Vê-se condenado à
morte, expulso do paraíso terrestre e da presença de Deus. Vê a justiça

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


213
de Deus que o persegue com sua posteridade; vê o Céu fechado e o
inferno aberto, e ninguém para abrir-lhe um e fechar-lhe o outro.
Que fará a Sabedoria Eterna?

III

A SABEDORIA ETERNA APÓS A QUEDA DO HOMEM.


“Ela foi vivamente tocada pela desgraça do pobre Adão e de todos os
seus descendentes. Ela vê, com grande desprazer, seu vaso de honra
quebrado, seu retrato rasgado, sua obra-prima destruída, seu repre-
sentante sobre a terra derrubado. Ela inclina ternamente o ouvido à
sua voz gemente e aos seus gritos. Vê com compaixão os suores de
seu rosto, as lágrimas de seus olhos, os trabalhos de seus braços, a dor
de seu coração e a aflição de sua alma.
“Parece-me ver essa amável Soberana convocar e reunir uma
segunda vez, por assim dizer, a Santa Trindade, para reparar o homem,
como fizera para formá-lo. Parece-me que, nesse grande conselho,
acontece uma espécie de combate entre a Sabedoria Eterna e a Jus-
tiça de Deus.
“A Sabedoria diz que é verdade que o homem merece, por seu
pecado, a sorte dos anjos rebeldes, mas que é preciso ter piedade dele,
porque pecou mais por fraqueza e ignorância do que por malícia. Ela
defende, por um lado, que é um grande prejuízo que uma obra-prima
tão bem-acabada permaneça para sempre escrava de seu inimigo, e
que milhões de homens sejam perdidos para sempre pelo pecado de
um só. Mostra, por outro lado, os lugares do Céu vazios pela queda
dos anjos apóstatas, que se deve preencher, e a grande glória que
Deus receberá agora e na eternidade se o homem for salvo.
“A Justiça responde que o decreto de morte foi proferido contra
o homem e seus descendentes, e que ele deve ser executado sem
perdão e sem misericórdia...; que o homem é um ingrato pelos bene-
fícios que recebeu, que ele seguiu o demônio em sua obediência e
seu orgulho, e que deve segui-lo também em seus castigos, porque
importa necessariamente que o pecado seja punido.
“A Sabedoria Eterna, vendo que não havia nada no universo
que fosse capaz de expiar o pecado do homem, de pagar a Justiça e

214 J. M. Dayet
acalmar a cólera de Deus, e desejando, no entanto, salvar o homem
que ela amava por inclinação, encontra um meio admirável. Coisa
espantosa, amor incompreensível que chega ao excesso, essa amável
e soberana Princesa oferece a si mesma em sacrifício ao seu Pai para
pagar sua justiça, para acalmar sua cólera e para nos retirar da escravi-
dão do demônio e das chamas do inferno, e conquistar para nós uma
eternidade de bem-aventurança.
“Sua oferta é aceita. O conselho é confirmado e decretado: a
Sabedoria Eterna, ou o Filho de Deus, se fará homem no tempo
oportuno e nas circunstâncias determinadas.” (n. 41-46.)
_______________

Esperando esse tempo de sua Encarnação, ela testemunhará de


todas as maneiras, aos descendentes de Adão, a amizade que tem por
eles, o grande desejo que tem de comunicar-lhes seus favores e de
conviver com eles: “Minhas delícias, ela disse, são estar com os filhos
dos homens.” Deliciae meae esse cum filiis hominum. (Prov 8, 31.)
Desse modo, ela preservou da condenação todos os que tiveram
fé em sua vinda. Conservou Adão e o livrou de sua falta por meio do
arrependimento e da expiação. Quando o dilúvio inundou a terra por
causa de Caim e sua descendência perversa, ela salvou novamente o
mundo, governando o justo Noé, sempre obediente às suas ordens.
Antes de Noé e depois dele, foi ela quem formou todos os santos
Patriarcas, guardiões e transmissores da Revelação primitiva.
Quando as nações conspiraram para se entregar ao mal, ela pre-
parou para si, na pessoa de Abraão, um povo de crentes. Retirou-o
da Caldeia, seu meio de origem, para fixá-lo na terra cananeia, nesse
país que a veria encarnar.72
O autor do Eclesiástico (cap. 24) mostra-a estabelecendo sua
residência em Israel, junto ao povo eleito:

Em todos os povos, e entre todas as nações tive a primazia.


Entre todos estes povos busquei um lugar de repouso,

72 Ver todo o capítulo 10 do Livro da Sabedoria.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


215
e uma morada na herança do Senhor.
Então o Criador de tudo deu-me os seus preceitos, e falou-me;
e aquele que me criou descansou no meu tabernáculo.
E disse-me: Habita em Jacó,
e possui a tua herança em Israel.
Fui assim firmada em Sião,
e repousei na cidade santa
e em Jerusalém está o meu poder.

Estabelecida em Israel, a Sabedoria lançou vigorosamente suas


raízes:

Tomei raízes no meio de um povo glorioso,


e nesta porção do meu Deus, que é a sua herança.

Ali, ela cresceu magnificamente. Produziu frutos incomparáveis


de santidade. Para descrevê-los, o autor inspirado recorreu às compa-
rações mais poéticas, que continua a colocar na boca da Sabedoria:

Elevei-me como o cedro do Líbano,


e como o cipreste do monte Sião.
Cresci como a palmeira de Cades,
e como as plantas das rosas de Jericó.
Elevei-me como uma formosa oliveira dos campos,
e como o plátano nas praças junto da água.

Depois dessas comparações com as árvores mais bem-formadas,


ou cujos frutos são os mais apreciados, eis aqui outras com os perfu-
mes vegetais mais refinados:

Difundi um perfume como o cinamomo e o bálsamo aromático,


e como mirra escolhida exalei suave cheiro.
Perfumei a minha habitação, como de estoraque, gálbano, ônix e mirra,
e como gota de incenso caída por si própria.

216 J. M. Dayet
Por fim, duas últimas comparações declaram sua prodigiosa
fecundidade:

Estendi os meus ramos como o terebinto,


e os meus ramos são ramos de honra e de glória.
Como a vide lancei flores de um agradável cheiro;
e as minhas flores dão fruto de honra e de honestidade.

Por isso, vemos sair desse povo privilegiado ilustres e santos per-
sonagens como Moisés, Samuel, Elias, Eliseu; poetas de gênio que
nos deixaram os Salmos e os livros sapienciais; grandes Videntes
dos quais admiramos os escritos proféticos. A Igreja se serve deles
durante todo seu Ano litúrgico.
Entre os cinco Livros sapienciais, o da “Sabedoria”, composto
no primeiro século antes de Jesus Cristo, preparou imediatamente o
Evangelho. Ele transborda de elogios sobre as excelências, as belezas,
as amabilidades da Sabedoria Eterna, e sobre o desejo que ela tem
de ganhar o coração do homem. Esse Livro, diz-nos Montfort, foi
escrito exatamente para isso: devemos considerá-lo como uma carta
de uma amante ao seu amante, para ganhar sua afeição. Os desejos
que ela testemunha do coração do homem são tão calorosos, a busca
por sua amizade é tão terna, seus chamados e seus votos são tão amo-
rosos, que ao ouvi-la falar diríeis que ela não é a Soberana do Céu e
da terra, e que precisa do homem para ser feliz.
Ora, para ir ao encontro do homem, ela corre pelas grandes
estradas; ora sobe ao topo das mais altas montanhas; ora vem às
portas das cidades; ora entra até nas praças públicas, no meio das
assembleias, gritando o mais alto que pode: Ó homens! Ó filhos dos
homens, é a vós que minha voz clama há tanto tempo. O viri, ad vos
clamito, et vox mea ad filios hominum. (Prov 8, 4.) Sois vós que desejo, que
procuro, que reclamo. Escutai, vinde a mim: quero vos tornar feliz...
E como se os homens temessem ainda, devido ao seu brilho
maravilhoso e à sua majestade soberana, aproximar-se dela... faz-lhes
dizer que ela é de um acesso fácil; que se deixa facilmente ver por aqueles que a
amam; que protege os que a desejam; que se mostra a eles primeiro, e que aquele

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


217
que se levantar pela manhã para buscá-la não terá dificuldade, pois a encontrará
sentada à sua porta.73 (A. S. E., n. 65, 66, 69.)
_______________

Entretanto, se apesar desses desejos calorosos da Sabedoria


Eterna, milhares de anos transcorreram antes de sua Encarnação, é
porque a resposta dos homens não tinha ainda força o bastante para
atraí-la do seio de seu Pai.
Os santos da antiga Lei, é verdade, pediram o Messias com preces
insistentes. Gemiam, choravam, exclamavam: Ó nuvens, chovei o Justo!
Ó terra, germinai o Salvador! Ó Sabedoria, que saístes da boca do Altíssimo...
vinde livrar-nos.74 Mas suas invocações e seus sacrifícios não tinham o
preço suficiente para merecer essa graça das graças. Mesmo o povo
eleito, apesar das advertências, das admoestações de seus Profetas,
se mostrara tantas vezes prevaricador. E o mundo, no dizer de Santo
Agostinho, o imenso mundo pagão era indigno de receber o Filho de
Deus imediatamente das mãos do Pai.
Somente a humilde Maria mereceu, pela força de suas preces e
a elevação de suas virtudes, ver o Verbo eterno, a Sabedoria Eterna,
se fazer homem em seu ventre. O que nos mostra que Tesouro infi-
nito é essa divina Sabedoria, e que ardente desejo devemos ter de
possuí-la, a exemplo do Padre de Montfort, que cantava:

Digna Mãe de Deus, Virgem pura e fiel,


Comunicai-me vossa fé;
Com ela terei a Sabedoria,
E todos os bens virão a mim.
Sabedoria, vinde, pois, pela fé de Maria,
Não pudestes resistir-lhe;
Ela vos deu a vida,
Ela voz fez encarnar.
(Cânt. n. 74.)

73 ab 6, 12 et seq.
74 O sapientia, quae ex ore Altissimi prodiisti... veni ad liberandum nos. (Grande
Antífona do Advento.)

218 J. M. Dayet
LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 26, 1-16: Conspiração contra


Jesus. A refeição de Betânia. Traição de Judas.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. I e II: Da Santa Comunhão.
Sua preparação e sua ação de graças.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


219
SEGUNDO DIA
Ó SABEDORIA ENCARNADA!

“O tempo determinado para a redenção dos homens tendo, pois,


chegado, a Sabedoria Eterna começou por construir para si mesma uma
casa, uma morada digna dela: Sapientia aedificavit sibi domum. (Prov 9, 1.)
“Ela criou e formou a divina Maria no ventre de Santa Ana, com
mais prazer do que tivera ao criar o universo. É impossível, prossegue
Montfort, exprimir, por um lado, as inefáveis comunicações da San-
tíssima Trindade a essa bela criatura, e, por outro, a fidelidade com a
qual ela correspondeu às graças de seu Criador.
“A torrente impetuosa da bondade infinita de Deus, barrada vio-
lentamente pelos pecados dos homens desde o começo do mundo,
deságua plenamente no Coração de Maria... Ó obra-prima do Altís-
simo, ó milagre da Sabedoria Eterna, ó prodígio do Todo-Poder, ó
abismo da graça, não há, eu o declaro com todos os santos, não há
ninguém além daquele que vos criou que conheça a altura, a extensão
e a profundidade das graças que ele vos concedeu.
“A divina Maria teve, em quatorze anos de vida, tão grande cres-
cimento na graça e na sabedoria de Deus, e uma fidelidade tão per-
feita ao seu amor, que encheu de admiração não somente todos os
anjos, mas também o próprio Deus. Sua humildade profunda até o
aniquilamento o encantou; sua pureza toda divina o atraiu; sua fé viva
e suas preces fervorosas o forçaram. A Sabedoria foi vencida por
uma insistência tão amorosa...
“Essa Sabedoria, desejando descer do seio de seu Pai ao seio de
uma Virgem para ali se deitar entre os lírios de sua pureza, enviou
o arcanjo Gabriel saudá-la de sua parte, e dizer-lhe que desejava se
fazer homem nela, se ela mesma desejasse consentir com isso.
“No instante em que Maria concedeu esse consentimento inefá-
vel... o Espírito Santo formou do mais puro sangue de seu coração
um pequeno corpo, e organizou-o perfeitamente. Deus criou a alma
mais perfeita que jamais criara. A Sabedoria Eterna, ou o Filho de
Deus, uniu-se em unidade de Pessoa a esse corpo e a essa alma.

220 J. M. Dayet
“E eis a grande maravilha do Céu e da terra, o excesso prodi-
gioso do amor de Deus: VERBO CARO FACTUM EST; o Verbo se
fez carne,75 a Sabedoria Eterna encarnou. Deus se tornou Homem, sem
deixar de ser Deus; e esse Homem-Deus se chama Jesus Cristo, isto
é, Salvador.” (A. S. E., n. 105-108.)
_______________

Montfort percorre, então, sumariamente, as etapas da VIDA da


Sabedoria Encarnada, desde seu nascimento no estábulo de Belém
até sua Ascensão sobre o monte das Oliveiras (109-116). Mas como
essa divina Sabedoria não se fez homem senão para atrair os cora-
ções dos homens à sua amizade e à sua imitação, e porque, com
esse fim, agradou-lhe ornar-se com todas as amabilidades, iremos
primeiro contemplá-la com ele, nesse segundo Dia, no encanto de
seus ATRATIVOS humanos e na sublimidade de seus ORÁCULOS
evangélicos. Consideraremos sua dependência de Maria nas medita-
ções seguintes.
Peçamos à Santa Virgem a graça de bem aproveitarmos as gran-
des luzes dessa terceira Semana. Ave, Maria.

OS ATRATIVOS DA SABEDORIA ENCARNADA. Como


veremos, Montfort resume todos eles a essa constante DOÇURA
que irradiava de sua Humanidade santa.
1º A doçura de seu TEMPERAMENTO. “Ela nasceu da mais
doce, a mais terna e mais bela de todas as mães. Explicai-me a man-
sidão de Jesus. Explicai-me, antes, a mansidão de Maria, sua Mãe, a
quem ele se assemelha na mansidão do temperamento. Jesus é filho
de Maria e, consequentemente, não há nele nem altivez, nem rigor,
nem feiúra, e ainda infinitamente menos do que em sua Mãe, visto
que ele é a Sabedoria Eterna, a própria mansidão e beleza.
“Os Profetas a quem, previamente, essa Sabedoria Encarnada
foi mostrada, chamam-na de ovelha e cordeiro de mansidão: Agnus

75 Jo 1, 14.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


221
mansuetus. (Jer 11, 19.) Predizem que, devido à sua mansidão, não
quebrará a cana rachada, nem apagará a mecha que ainda fumega:
Calamum quassatum non conteret, et linum fumigans non extinguet. (Is 42, 3.)
Isto é, terá tanta mansidão que, quando um pobre pecador estiver
“rachado”, cego e perdido por seus pecados, ela não o perderá, a
menos que ele a obrigue a isso.
“São João Batista, que esteve por quase trinta anos nos desertos
para ali merecer, por suas austeridades, o conhecimento e o amor
dessa Sabedoria Encarnada, mal a vira e já exclamava, mostrando-a
com o dedo aos seus discípulos: Ecce Agnus Dei... Eis o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1, 29.) Ele não diz, como pare-
cia dever dizer: Eis o Altíssimo, eis o Rei da glória, eis o Todo-Pode-
roso; mas como o conhecia mais do que qualquer homem que tenha
existido e que existirá: Eis o Cordeiro de Deus, eis essa Sabedoria
Eterna que, para atrair os corações e perdoar nossos pecados, reuniu
em si toda a mansidão de Deus e do homem, do Céu e da terra.”
2º A doçura de seu NOME. “Jesus é o nome próprio da Sabe-
doria Encarnada. O que nos indica esse nome, senão uma caridade
ardente, um amor infinito e uma doçura encantadora? Jesus, Salva-
dor, aquele que salva o homem, cuja característica é amar e salvar o
homem!

Nil canitur suavius,


Nil auditur jucundius,
Nil cogitatur dulcius
Quam Jesus, Dei Filius.

“Nenhum canto é mais suave, nenhuma voz, mais agradável,


nenhum pensamento é mais doce do que Jesus, o Filho de Deus.
“Oh! Como esse nome de Jesus é agradável ao ouvido e ao cora-
ção de uma alma predestinada: é um mel dulcíssimo para a boca,
uma melodia agradável para o ouvido e uma jubilação perfeita para o
coração. Mel in ore, in aure melos, in corde jubilus. (São Bernardo.)”
3º A doçura de seu SEMBLANTE. “Esse amabilíssimo Salva-
dor tem um semblante tão doce e tão indulgente que encantava os
olhos e os corações dos que o viam. Os pastores, que foram vê-lo

222 J. M. Dayet
no estábulo, ficaram tão encantados com a doçura e a beleza de seu
semblante, que permaneciam dias inteiros, como fora de si mesmos,
olhando-os. Os reis, tendo sentido os traços amorosos desse belo
Menino, abandonaram imediatamente todo orgulho, e caíram sem
resistência ao pé da manjedoura. Quantas vezes disseram uns aos
outros: Amigos, como é bom estar aqui! Não encontramos, em nos-
sos palácios, prazeres semelhantes aos que provamos neste estábulo,
vendo esse amável Menino-Deus.
“Sendo ainda Jesus muito jovem, as pessoas aflitas e as crianças
vinham, de todos os lugares circunvizinhos, para vê-lo e se regozi-
jar, e diziam entre si: Vamos ver o pequeno Jesus, o belo Menino de
Maria. A beleza e a majestade de sua face, diz São João Crisóstomo,
eram tão doces e tão respeitáveis ao mesmo tempo, que os que o
conheciam não podiam deixar de amá-lo... Alguns autores afirmam
que, se os soldados romanos e os judeus velaram-lhe o rosto, foi para
esbofeteá-lo e maltratá-lo mais facilmente, porque saía de seus olhos
e de seu rosto um brilho de beleza tão doce e tão arrebatador que
desarmava os mais cruéis.”
4º A doçura de suas PALAVRAS. “Ninguém o ouviu gritar ou
discutir, como os Profetas haviam predito: Non contendet neque clamabit,
neque audiet aliquis in plateis vocem ejus. (Is 42, 2; Mt 12, 19.) Todos os
que o escutavam sem inveja ficavam tão encantados com as palavras
de vida que saíam de sua boca, que exclamavam: Nunquam sic locutus
est homo sicut hic homo (Jo 7, 46); e até os que o odiavam, surpresos com
a eloquência e com a sabedoria de suas palavras, perguntavam: Unde
huic sapientia haec? (Mt 13, 54.) Nunca homem algum falou com tanta
mansidão e graça. Donde lhe vem tal sabedoria em suas palavras?
“Muitos milhares de pobres deixavam suas casas e suas famílias
para ir escutá-lo até nos desertos, passando vários dias sem beber e
sem comer, saciados apenas com a doçura de sua palavra. Foi pela
doçura de suas palavras que ele atraiu, como com uma isca, seus
apóstolos após si, que curou os doentes mais incuráveis e consolou
os mais aflitos. Apenas disse a Maria Madalena, totalmente desolada,
esta palavra: Maria, e encheu-a de alegria e de doçura.”
5º A doçura de suas AÇÕES. “Jesus, por fim, é doce em suas
ações e em toda a conduta de sua vida: Bene omnia fecit (Mc 7, 37); ele

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


223
realizou bem todas as suas ações, isto é, tudo o que fez Jesus Cristo
foi feito com tanta justeza, sabedoria, santidade e doçura, que não se
pode encontrar em seus atos nenhum defeito ou deformidade...
“Os pobres e as criancinhas seguiam-no por toda parte, como
seu semelhante. Viam nesse querido Salvador tanta simplicidade,
benignidade, condescendência e caridade, que se espremiam para se
aproximar dele. Um dia em que estava a pregar, as crianças correram
para junto dele. Os apóstolos afastavam-nas. Jesus repreendeu seus
apóstolos e disse-lhes: Deixai vir a mim as crianças. (Mc 10, 14.) Depois,
abraçou-as e abençoou-as, impondo-lhes as mãos. Oh! Que doçura e
que benignidade.
“Os pobres, vendo-o vestido pobremente e simples em todas as
suas maneiras, sem fausto e sem altivez, só tinham prazer em sua
companhia, assumiam por toda parte sua defesa contra os ricos e os
orgulhosos que o caluniavam e perseguiam; e ele, por sua vez, dava-
lhes em todo encontro mil louvores e bênçãos.
“Mas quem poderia explicar a doçura de Jesus para com os pobres
pecadores! Com que doçura tratava Madalena, a pecadora! Com que
doce condescendência converteu a samaritana! Com que misericór-
dia perdoava a mulher adúltera! Com que caridade ia comer na casa
dos pecadores públicos, para ganhá-los! Seus inimigos não aprovei-
taram a ocasião dessa grande doçura para persegui-lo, dizendo que
ele fazia, com sua doçura, transgredir a lei de Moisés, e chamando-o
injuriosamente o amigo dos pecadores e dos publicanos? Com que
bondade e humildade se esforçou ele para ganhar o coração de Judas,
que queria traí-lo, lavando-lhe os pés e chamando-o de seu amigo!
Por fim, com que caridade pediu perdão a Deus, seu Pai, por seus
carrascos, desculpando-os devido à sua ignorância!...
“E que não sei imagine que Jesus, por ser agora triunfante e glo-
rioso, seja menos doce e condescendente. Ao contrário, sua glória
aperfeiçoa, de certa maneira, sua doçura: ele não tem tanto o desejo
de se mostrar a nós quanto o de perdoar, o de ostentar as riquezas de
sua glória quanto as de suas misericórdias.
“Quando essa Sabedoria encarnada e gloriosa se mostrou aos
seus amigos, apareceu-lhes não de maneira triunfal e fulminante, mas
doce e benigna; não assumiu uma majestade soberana e do Deus dos

224 J. M. Dayet
exércitos, mas a ternura de um esposo e a doçura de um amigo. Ela
se deixou ver, algumas vezes, na Eucaristia; mas não me recordo de
ter lido que tenha aparecido com outra forma senão a de um doce e
belo menino...
“Depois disto, não amaríamos essa Sabedoria Eterna que nos
amou mais e ainda nos ama mais do que sua vida, e cuja beleza e
doçura superam tudo o que há de mais belo e mais doce no Céu e
sobre a terra?” (A. S. E., n. 118-128, 131.)
_______________

Sabe-se que, durante a missão em que trabalhava em Saint-Lau-


rent-sur-Sèvre, em abril de 1716, o Padre de Montfort foi brusca-
mente arrasado pela enfermidade. Sentindo-se, desta vez, à beira
da morte, quis, contudo, subir ao púlpito, em razão da presença do
Mons. de Champflour, bispo de La Rochelle, que fora presidir uma
das cerimônias. Tremendo de febre, com o peito oprimido, arque-
jante, falou sobre a doçura de Jesus, e com tamanho amor, com termos
tão cheios de unção, que todo o auditório foi levado às lágrimas.
Esse foi seu último sermão. Temos todo o seu conteúdo nas
páginas que acabamos de meditar.

II

OS ORÁCULOS DA SABEDORIA ENCARNADA. Mais do


que por sua mansidão, Jesus se revela a Sabedora Encarnada em seus
Oráculos evangélicos. Por isso, Montfort recolheu e reuniu os mais ade-
quados para manter nossos espíritos em face do cerne desse ensi-
namento. Contenta-se em relatar as palavras do divino Mestre, sem
misturar a elas nenhum comentário; mas a escolha dos textos e sua
ordenação maravilhosa provam o quanto sua alma os pesou e medi-
tou antes de no-los entregar.
Ouviremos, pois, a Sabedoria Eterna nos falar, não mais pelos
Patriarcas e pelos Profetas da antiga Lei, nem nas imortais sentenças
dos Livros sapienciais; mas diretamente por si mesma, numa lingua-
gem que ressoa em nossos ouvidos. Em Jesus Cristo, foi o Verbo,
Sabedoria substancial e pessoal, que falou aos homens.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


225
1º Partindo do princípio fundamental enunciado por essa Sabe-
doria infinita, a saber, que, para ser seu discípulo, é preciso negar a
si mesmo até à cruz (Lc 9, 23), guardar seus mandamentos (Jo 14,
23), procurar a paz com nossos irmãos (Mt 5, 23-24), Montfort entra
imediatamente, com o Cristo, no detalhe das renúncias exigidas:

• renúncia às afeições carnais (Lc 14, 26);


• renúncia aos bens deste mundo (Mt 19, 21, 29);
• renúncia à vontade própria (Mt 7, 21, 24);
• renúncia a toda duplicidade: converter-se e tornar-se como
crianças (Mt 18, 3);
• renúncia ao espírito de violência e de orgulho: Aprendei de
mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as
vossas almas (Mt 11, 29).

2º Para realizar essas renúncias, sempre difíceis para a natureza:

• será preciso rezar da maneira recomendada pela Sabedoria


(Mt 6, 5, 7-8; Mc 11, 24-25);
• será preciso saber dominar seus sentidos por meio do jejum
(Mt 6, 16) e reparar o passado por meio da penitência (Lc 15,
7; 5, 32);
• será preciso encontrar sua felicidade nas perseguições do mundo
(Mt 5, 10; Lc 6, 22-23). Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro
do que a vós, me aborreceu a mim... (Jo 15, 18-19.)

Muitas vezes, seremos tentados a desistir. Mas a Sabedoria não


está ali para nos sustentar, nos consolar? Vinde a mim todos os que estais
fatigados e carregados, e eu vos aliviarei. (Mt 11, 28.)
Não é ela o Pão da vida, capaz de nos fortificar? (Jo 6, 51-52, 56-57.)
Não cuida ela de nós, quando os homens nos fazem sofrer?...
Não se perderá um cabelo da vossa cabeça. (Lc 21, 17-18.)
Nada temos, pois, a temer, contanto que ela seja a única Soberana
de nosso coração, pois ninguém pode servir a dois senhores... (Mt 6, 24); e
o homem vale o que vale seu coração. Se o coração é mau, nada de
bom sairá dele (Mt 15, 19-20; 12, 35.)

226 J. M. Dayet
3º Seguir alguns Conselhos, ditados semelhantemente pela Eterna
Sabedoria:
Nunca olhar para trás (Lc 9, 62) e confiar no Salvador (Lc 12, 7;
Jo 3, 17).
Amar viver na Luz (Jo 3, 20), pois Deus é Espírito... (Jo 4, 24), e... a
carne para nada aproveita... (Jo 6, 64), e todo o que comete o pecado, é escravo
do pecado... (Jo 8, 34-35); mas o que é fiel no pouco, também é fiel no muito
(Lc 16, 10), e faz obras de luz... (Mt 5, 16).
Buscar uma justiça abundante, maior que a dos escribas e fariseus
(Mt 5, 20); uma justiça pronta a todos os sacrifícios... quer se trate de
um membro, se esse membro nos escandaliza (Mt 5, 29; 11, 12); quer
de tesouros que a ferrugem pode corroer e os ladrões podem roubar
(Mt 6, 19-20); ou, sobretudo, de julgamento feito sobre o próximo, pois
o mesmo julgamento nos será aplicado (Mt 7, 1-2).
Mostrar-se sempre circunspecto, seja diante dos falsos profetas
cobertos de veste de ovelhas (Mt 7, 15-16); seja diante dos peque-
ninos: é preciso ter cuidado para não desprezar nenhum deles, pois
seus anjos no Céu veem incessantemente a face do Pai (Mt 18, 10).
Além disso, mostrar-se vigilante, pois não sabemos nem o dia, nem a
hora em que o Senhor virá (Mt 25, 13).
Não se inquietar senão pela salvação da alma e pelo julgamento de
Deus. Logo, não temer os que podem matar somente o corpo (Lc
12, 4-5), e não se atormentar quanto ao alimento e ao vestuário, pois
o Pai celestial sabe o que nos é necessário (Lc 12, 22, 30); mas ter a
firme convicção de que tudo o que está agora escondido e secreto
será um dia descoberto e revelado (Lc 8, 17).
Praticar, enfim, o bem para com todos, amigos e inimigos (Mt
20, 26-27; 5, 44), em um grande espírito de desinteresse, sobretudo
diante das riquezas (Mc 10, 23; Lc 18, 23). Ai de vós que tendes a vossa
consolação neste mundo. (Lc 6, 24.)
4º Essa é a Porta estreita, indicada pela Sabedoria (Mt 7, 13-14; 20,
16). Seu humilde discípulo sempre se lembrará de que deve dar (At
20, 35), perdoar (Mt 5, 39-40), orar sem nunca se cansar (Lc 18, 1; Mt
26, 41), dar esmola (Lc 6, 41), e amar humilhar-se (Lc 14, 11).
Ele terá, então, acesso às Beatitudes prometidas e esta será sua
recompensa, ainda neste mundo:

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


227
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus!
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!
Bem-aventurados os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados!
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus!
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!...
(Mt 5, 3-9.)

Tudo isto é a revelação de Deus aos humildes e aos pequenos:


Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos
sábios e aos prudentes e as revelaste aos pequeninos... (Mt 11, 25-26.)
_______________

“Eis, conclui Montfort, o resumo das grandes e importantes ver-


dades que a Sabedoria Eterna veio pessoalmente nos ensinar sobre a
terra, depois de tê-las praticado primeiro... Bem-aventurados os que
têm a inteligência dessas verdades eternas. Mais bem-aventurados
ainda os que creem nelas. Mas muito mais bem-aventurados os que
creem nelas, praticam-nas e ensinam-nas aos outros; pois brilharão
no Céu como estrelas pela eternidade.” (A. S. E., n. 133-153.)
Que enriquecimento, nessas páginas, em relação a tudo o que já
fora dito durante nossos doze Dias preliminares e durante nossa pri-
meira Semana! Será bom relê-las e meditar sobre elas com frequência.
A cada vez, sentiremos como uma graça de reflexão profunda invadir
nosso entendimento e subjugá-lo. Agradeçamos a Maria, a Mãe da
Sabedoria Encarnada, por tantas luzes derramadas em nossas almas.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São Mateus, cap. 27, 1-31: Jesus diante de


Pilatos. A sentença de morte.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. IV: Dos frutos da santa
Comunhão.

228 J. M. Dayet
TERCEIRO DIA
JESUS
SABEDORIA DEPENDENTE E SUBMISSA

Contemplaremos, desta vez, com maior detalhe a dependência


voluntária e amorosa que Jesus, a Sabedoria Eterna e Encarnada,
sempre testemunhou em relação à sua santa Mãe. Essa dependência
foi o que mais atraiu a reflexão do Padre de Montfort, a ponto de ele
nos propô-la como o EXEMPLAR divino de nossa inteira Doação
a Maria.
Contemplemos, hoje, Jesus dependente de Maria, primeiro nos
mistérios de sua primeira Infância; depois, durante sua vida anônima em
Nazaré e no começo de sua vida pública. Segui-lo-emos, depois, no tempo
de sua Paixão e nos mistérios de sua vida gloriosa.
Agradeçamos nova e vivamente São Luís Maria de Montfort por
ter colocado diante de nossos olhos esse Modelo de dependência
divina.
Ave, Maria.

JESUS DEPENDENTE DE MARIA NOS MISTÉRIOS DE


SUA PRIMEIRA INFÂNCIA. O Filho de Deus, nosso dulcíssimo
Redentor, poderia nos salvar sem se tornar o Filho da Virgem Maria.
Ele poderia surgir no mundo no estado de homem perfeito, como
surgiu Adão, vindo das mãos do Criador. Por misericordiosa condes-
cendência, ele preferiu vir como nós, no ventre de uma mãe, e ali per-
manecer oculto durante nove meses. Mas, em razão de sua Divindade
e também da ciência infusa que enchia sua inteligência humana desde
o primeiro instante de sua concepção, ele sempre esteve consciente
de si mesmo e de sua morada em Maria.
Nesse seio virginal, ele começa a render glória ao seu Pai: ado-
ra-o, agradece-o, oferece-lhe dileções, satisfações e suplicações de um
valor infinito. Oferece-lhe seu coração, seu coração de alguns dias, de

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


229
alguns meses, queimando já pelo desejo de ser imolado para expiar
nossas faltas.
Nesse seio virginal, ele se compraz como em um paraíso terrestre
animado. Contempla ali, com alegria, seus eleitos, seus predestinados,
todos aqueles que serão seus membros vivos. “Ele os escolhe para si,
diz Montfort, de concerto com Maria”, encerrando-os, por amor, com
ele, nela. E é ali “que ele opera todos os mistérios de sua vida que
seguirão, pela aceitação que faz deles”. (V. D., n. 248.) Jesus, ingrediens
mundum, dicit... Ecce venio, ut faciam, Deus, voluntatem tuam. (Hebr 10,
5-9.) O seio da Virgem é seu primeiro altar, sobre o qual ele se imola
às vontades de seu Pai, com vistas à nossa salvação. Tudo se passa na
dependência de Maria.
_______________

Tendo assim plena consciência de exercer sua missão redentora,


ele tem pressa de se doar efetivamente às almas. É por isso que, no
dia seguinte à Anunciação, seu divino Espírito inspira Maria ir ao país
das montanhas, a uma cidade da Judeia onde mora sua parenta Isabel,
para levar a João Precursor, também ainda no ventre de sua mãe, a
graça de um milagroso batismo antes do sacramento, e à própria
Isabel, a graça de um íntimo Pentecostes antes daquele – magnífico
– do Cenáculo.
Obediente e apressada, a jovem Mãe parte, carregando o Cristo,
pelos caminhos floridos da primavera palestina. Ei-la que entra na
casa de Isabel. Pronuncia a saudação usual: Que a paz seja convosco! Mal
tinha falado, e o filho de Isabel saltou de alegria, feliz por se saber
visitado e santificado pelo Verbo feito carne, oculto em Maria. Isabel
penetra também nesse mistério. Sob o impulso do Espírito que a
invadia, retomou a Ave no ponto onde a deixara o anjo, e completa-a
com a aclamação ao Salvador: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é
o fruto do teu ventre...” (Lc 1, 42.)
Maria aparece então, nesse mistério da Visitação, como o pri-
meiro sacramento do Cristo, seu sacramento vivo. Por intermédio
dela, na dependência de sua divina Maternidade, e pelo signo sensível
de sua voz, Jesus transmite a graça santificante que transforma João –

230 J. M. Dayet
até ali maculado pelo pecado original – em justo e em filho de Deus.
Por meio dela, semelhantemente, ele enche Isabel – já em estado de
justiça e de santidade – com tamanha abundância dos dons do Espí-
rito Santo, que sua alma exulta de júbilo na plena luz da Revelação:
“Donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo? Porque,
logo que a voz da tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de ale-
gria no meu ventre. Bem-aventurada a que acreditou, porque se hão de cumprir as
coisas que da parte do Senhor te foram ditas.” (Lc 1, 43-45.) Toda a Encar-
nação foi-lhe revelada. Ela dá graças por isso a Maria. A humilde
Maria responde com seu cântico do Magnificat.
_______________

No mistério do Natal, a mesma dependência do Salvador salta


aos nossos olhos. É Maria que, depois de tê-lo posto no mundo,
envolve-o em panos e o deita na manjedoura. Ela lhe dá todos os cui-
dados necessários a um recém-nascido. Jesus lhe confia inteiramente
sua divina Pessoa, assim reduzida a uma impotência exterior descon-
certante. Desde o momento em que ele desejou vir a este mundo
semelhante aos outros filhos, não pertence e não pode pertencer
senão à sua Mãe; e porque essa Mãe é virgem, ele pertence a Maria
como jamais outra criança pertencerá àquela que lhe deu a vida.
Por isso, é por meio dela que ele se mostra e se dá aos seus pri-
meiros adoradores, como protegido sob a pureza de seu olhar, ou
carregado em seus braços e segurado sobre seus joelhos. Os pastores,
acorrendo ao estábulo, encontraram o recém-nascido embrulhado
em tecidos e deitado em uma manjedoura, como o anjo lhes havia
dito. Mais tarde, os magos, guiados pela estrela, “entrando na casa, viram
o Menino com sua Mãe” (Mt 2, 11). Que fé esplêndida Jesus projetou
por meio dela em suas inteligências! Uma fé que nem os anos, nem
as distâncias poderão enfraquecer, e que se afirmará mesmo, se for
preciso, no testemunho do sangue.
_______________

No quadragésimo dia após seu nascimento, Jesus foi apresentado


no Templo de Jerusalém. Nesse dia, ele renovava ostensivamente a

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


231
oferta feita dele mesmo ao seu Pai no segredo do seio materno, desde
o primeiro minuto da Encarnação. Mas essa oferta, de caráter oficial,
ele não faz e não pode fazer senão na dependência de Maria. Ela o
leva ao Templo, ela o segura com suas mãos virginais como o sacer-
dote segura a Hóstia consagrada. Ela o imola em sua alma de mãe,
aquiescendo previamente com todos os desejos do Pai dos Céus. É
ela verdadeiramente quem oferece esse sacrifício da manhã, prelúdio
do que será, no Calvário, o sacrifício da noite.
Jesus se alegra por se oferecer assim, como se alegra por ser
entregue, durante alguns instantes, por sua Mãe a esse santo ancião
Simeão, que viveu desde sempre na esperança de ver com seus olhos
o Messias prometido e esperado. Ele faz mais do que vê-lo, carrega-o
em seus braços e o possui em seu coração. Sente-se completo. Que
graça! Não há nisto uma espécie de comunhão eucarística espiritual?
Simeão pode apertar contra seu peito o pequeno e amável corpo
de Jesus, e esse corpo lhe transmite as riquezas da alma santíssima
e da Divindade. Se seu cântico de ação de graças sobe até Deus,
que gratidão terá ele testemunhado Àquela que lhe deu esse presente
inestimável, e que ele proclama profeticamente a Mãe dolorosa, asso-
ciada ao Redentor de Israel. Ele sabe que ela não carrega consigo
seu recém-nascido senão para alimentá-lo, desenvolvê-lo, criá-lo e
guardá-lo com vistas à cruz.

_______________

O Evangelho assinala-nos ainda a dependência de Jesus no episó-


dio da Fuga para o Egito, que sobrevém precipitadamente após a par-
tida dos magos. “Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e lhe disse:
Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito... porque Herodes vai
procurar o Menino para lhe tirar a vida.” (Mt 2, 13.) A ordem era formal
e precisa. “E ele, levantando-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe,
e retirou-se para o Egito.” (2, 14.)
O anjo se dirige a José, o esposo virginal, o pai adotivo, o guar-
dião providencial, o chefe responsável pelos preciosos tesouros que
lhe são confiados: “Toma o Menino e sua Mãe.” O Menino, o único dire-

232 J. M. Dayet
tamente ameaçado; mas a Mãe com ele. Como Jesus, mal tendo com-
pletado dois meses,76 poderia se separar dela? É ela quem o carrega.
Imaginemos essa fuga perturbada, em várias etapas, por um per-
curso muito longo, através do deserto, rumo ao Delta do Nilo. De
dia, os fugitivos param longe do caminho, para ter o descanso neces-
sário; retomam sua rota no fim da tarde ou durante a noite. Uma vez
passada a Torrente do Egito, que marca a fronteira, José sentiu suas
forças renovadas. Tranquilizou a valente Mãe, que segurava sempre o
divino fardo em seus braços. O Menino estava salvo. Ó dependência
cada vez mais acentuada, que não deixa os seus em repouso! O Egito
após Belém...
Quanto tempo durou o exílio? Não se sabe ao certo. Provavel-
mente, cerca de dois anos, o tempo que dura o aleitamento. Que
alegria quando José, visitado novamente pelo anjo durante seu sono,
soube que podia voltar ao país de Israel: “Levanta-te, toma o Menino e
sua Mãe (Jesus era, pois, ainda pequenino...). Morreram os que procura-
vam tirar a vida do menino.” (Mt 2, 20.)
Os exilados retomaram a estrada, sem ruído, furtivamente, como
haviam chegado. Com uma diferença: Jesus era agora mais pesado,
mais difícil de carregar.77 Em pequenas etapas, chegaram à Palestina,
onde uma terceira intervenção do Céu advertiu José que fosse à Gali-
leia. Foi assim que, após mais alguns dias de caminhada pelo caminho
que ladeava o mar, evitando, desse modo, a Judeia, chegaram à sua
querida Nazaré. O Menino estava enfim em sua casa, nesse pacífico
lar de família, onde Maria sonhara trazê-lo ao mundo... Por meio dela,
na terra do exílio, ele deixara graças abundantes para aqueles que
viriam povoar o deserto da Tebaida e fazer dele o primeiro claustro
da vida religiosa.

76 Ver Buzy, São José, p. 75.


77 A. Bessières, S. J. Presença de São José, p. 130.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


233
II

JESUS DEPENDENTE DE MARIA DURANTE SUA VIDA


ANÔNIMA EM NAZARÉ, E NO COMEÇO DE SUA VIDA
PÚBLICA. São Lucas (2, 40) resumiu a vida de Jesus em Nazaré até
seu décimo segundo ano de vida com esta única frase: “O Menino
crescia e se fortificava cheio de sabedoria, e a graça – a benévola ternura – de
Deus era com ele.”
Aos doze anos, ele se tornava, como todos os adolescentes de seu
país, “filho da Lei”, o que significa que estava, a partir de então, pes-
soalmente comprometido com a observação de todos os preceitos. É
por isso que Jesus vai fazer com os seus, pela primeira vez, a grande
peregrinação anual da Páscoa. Não temos, no Evangelho, outro fato
concernente à longa vida anônima do Salvador, além dessa peregri-
nação a Jerusalém, narrada por São Lucas (2, 41-52). É o mistério de
Jesus perdido e encontrado.
Como explicar essa aparente emancipação do mais amoroso e
obediente de todos os filhos? Reconheçamos logo que, se ele per-
maneceu três dias na cidade de Jerusalém, contra a vontade de Maria
e José, foi unicamente para obedecer ao seu Pai dos Céus, como
ele mesmo o declara no momento do Reencontro. Maria, que tanto
sofreu com José, acabava de interrogá-lo: “Filho, por que procedeste assim
conosco? Eis que teu pai e eu te procurávamos cheios de aflição.” Não era uma
censura, mas uma questão: qual podia ser a causa dessa ausência?
“Para que me buscáveis? – respondeu Jesus. Não sabíeis que devo ocupar-me
nas coisas de meu Pai?”. Resposta adoravelmente filial, e, contudo, pro-
positadamente misteriosa, cujo alcance Maria só deveria compreen-
der mais tarde.
As coisas do Pai celestial concerniam à missão redentora de Jesus,
intimamente aceita – como vimos – desde o primeiro instante da
Encarnação, e renovada ostensivamente por Maria na oferta da Apre-
sentação no Templo. Mas, tendo-se tornado legalmente responsável
por seus atos, qual não foi o estremecimento de alma do divino
Adolescente, quando, vendo-se nessa cidade que seria a testemunha
de sua imolação, seus olhos se detiveram pela primeira vez sobre o
monte do Calvário, e se levantou diante de seu espírito a imagem

234 J. M. Dayet
viva e como que atual da cruz ensanguentada! Não estamos auto-
rizados, então, a pensar, como outros o fizeram,78 que, tomado por
esse conhecimento e pela impressão de espanto que ela provocou
em todo o seu ser humano, ainda tão jovem, Jesus tenha desejado
prolongar sua estadia em Jerusalém, a fim de ficar sozinho face a
face às coisas de seu Pai celestial? Lentamente, terá ele percorrido a
Via dolorosa e, tendo chegado ao topo do Calvário, deve ter orado
por muito tempo, os braços estendidos, como crucificado nos braços
desse Pai, oferecendo-lhe tudo o que devia suportar por nós vinte
anos mais tarde.
Assim, antecipava ele, de certo modo, sua santa Paixão, e com o
fato desse brusco desaparecimento, Maria sofria, ela também anteci-
padamente, as dores de sua Compaixão materna. Pois durante esses
três dias, ou – mais exatamente para ela – uma noite, um dia e outra
noite, como no tempo do grande abandono que irá da noite da Sexta-
Feira Santa até à manhã de Páscoa, a Virgem não podia distrair seu
espírito do pensamento de que Jesus fora sem dúvida, na Cidade
santa, reconhecido por herodianos, preso e talvez já morto.79
Desse modo, Jesus, a Sabedoria Encarnada, sempre para obede-
cer às vontades de seu Pai celestial, preparava de longe sua santa Mãe,
sua Associada na obra de nossa salvação, para suportar o peso imenso
das dores redentoras. Essas dores foram-lhe de tamanha intensidade
que, sem essa preparação, seu coração teria se rompido em seu peito,
como o Coração de seu Filho no jardim da agonia.
Em semelhante ocorrência, não se pode prevenir, guarda-se o
silêncio. A explicação desejada virá em seu tempo. Se Maria tivesse
compreendido todo o alcance da resposta de seu filho no momento
do Reencontro, seu sofrimento teria sido ainda maior.
Na manhã do terceiro dia, quando Maria e José80 encontraram
Jesus no Templo, no meio dos Doutores, o Evangelho nos diz que

78 Ver Grimal: Com Jesus formando em nós seu sacerdote, tomo I, 13ª meditação,
p. 132-133.
79 Mons. Gay, Mistério do Rosário. O Reencontro, p. 288, 289.
80 Sofrendo com Maria durante esses três dias, José – que não veria a Pai-
xão – participou dela, contudo, antes de entrar na glória.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


235
ele desceu com eles a Nazaré, onde permaneceu submisso a eles,
como antes. Et descendit cum eis, et venit Nazareth, et erat subditus illis.
Essa submissão se prolongará pela vida anônima durante dezoito
anos, muito além, pois, da adolescência. E eis a maravilha que exta-
siava São Luís Maria de Montfort; maravilha, dizia ele, que “o Espí-
rito Santo não pôde deixar em silêncio no Evangelho, ainda que nos
tenha ocultado quase todas as coisas admiráveis que essa Sabedoria
Encarnada fez em sua vida secreta”. (V. D., n. 18.) Ela poderia, a
partir daquele momento, desprender-se dos seus e começar sua pre-
gação, Ela que acabava de provocar o espanto e a admiração dos
Doutores do Templo.
Mas não. Ela não encontra nada melhor para glorificar seu Pai
e salvar os homens, do que se submeter inteiramente à Virgem, sua
Mãe, e ao representante visível de seu Pai dos Céus. E é coisa muito
notável que Ela tenha esperado a idade de doze anos para manifestar
sua vontade de permanecer na submissão que testemunhara até ali.
Depois do Reencontro, Jesus retorna a Nazaré, para continuar a obe-
decer até sua idade adulta, como se fosse ainda um menino.
Oh! Essa vida de silêncio, de anulação, de trabalho obscuro, vivida
em uma obscura aldeola! Essa existência simples que fazia Jesus pas-
sar, aos olhos de seus compatriotas, pelo filho do carpinteiro! Essa
vida de oração, de contemplação e de sofrimentos íntimos! Essa
longa preparação do Redentor para o seu apostolado e para o seu
martírio! E essas vigílias, essas reuniões de família, essas leituras das
páginas da Bíblia, esses momentos de descanso diante do monte –
tão próximo –do Carmelo! E esse ar agradável que se devia respirar
em volta de sua santa casa; e esse poder de irradiação que emanava
dela e que, secretamente, terá tocado tantas almas!...
De tudo isto nada saberemos, senão que tudo isto acontecia no
seio da mais voluntária e mais amorosa submissão do Verbo encar-
nado. Subditus, é a única palavra que nos deixou o Evangelho.
_______________

Não pensemos, no entanto, que essa dependência se tenha limi-


tado aos anos da vida anônima; ela se estende também – ainda que
menos aparente – sobre os anos da vida pública. O primeiro milagre

236 J. M. Dayet
do Salvador, logo no início de seu ministério, nos dá a prova disso.
“Jesus, diz Montfort, quis começar seus milagres por Maria.” (V. D., n. 19.)
Vemo-lo, com efeito, realizar nas bodas de Caná seu primeiro milagre
de natureza, como outrora, na casa de Isabel, realizara seu primeiro
milagre de graça. Por meio do mesmo sinal sensível da voz e do
pedido de sua Mãe, ele faz ser transmitida a graça que santifica João,
o Precursor, e que transforma a água em vinho.
Montfort denomina a santificação do Precursor “seu primeiro e
maior milagre de graça”. (n. 18.) O milagre de Caná será não menos pro-
digioso, se considerarmos que ele pressagiava uma outra transforma-
ção ainda mais surpreendente, a da última refeição familiar, na noite
da Quinta-Feira Santa, e que teve, imediatamente, a imensa repercus-
são sobrenatural de fortalecer a vocação, recém-desabrochada, dos
primeiros discípulos do Salvador, seus mais caros apóstolos e seus
sacerdotes de amanhã: Et crediderunt in eum discipuli ejus. (Jo 2, 11.)
Eles jamais esquecerão, sobretudo quando tiverem de renovar
o gesto consagrador do Cristo na última Ceia, que Maria, a Mãe de
Jesus, esteve no ponto de partida de sua vocação, isto é, de sua res-
posta iluminada e firme ao chamado do Mestre. Há, pois, em torno
desse milagre de Caná, a graça eucarística em perspectiva e a graça
sacerdotal em germe. Há mais do que isso: encontramos nele, de
fato, a graça conferida do sacramento do matrimônio, o sacramento
que assegura, neste mundo, a perpetuidade do Corpo místico, e que
deve povoar o Céu de eleitos.81 Todos brotam do Coração de Jesus
obediente a Maria.
Compreendemos, então, o pedido da Virgem. Vendo ao lado de
seu Filho, nos discípulos e nos novos casados, uma primeira manifes-
tação da Igreja, ela solicitou um milagre que fortaleceria a fé de uns
e a despertaria nos outros. “Meu Filho, eles não têm mais vinho”,
Vinum non habent. Jesus responde-lhe: “Mulher, que significava, em seu

81 Muitos entre os mais doutos Pais da Igreja (Cirilo de Alexandria, Gre-


gório de Nazianzo, Epifânio, João Damasceno...) pensaram que Jesus
Cristo elevava o casamento humano à dignidade de um sacramento da
nova Lei quando assistia às bodas de Caná. Ver Durand, S. J., Evangelho
de São João (Verbum salutis), p. 64.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


237
pensamento, minha Associada, minha Colaboradora, que nos importa
a mim e a ti isso? Ainda não chegou a minha hora.” Sua hora... seria a de
sua santa Paixão, fixada pelo Pai para o milagre por excelência que
ele sonha realizar? Ele mesmo declararia então, ainda que em termos
velados, o que fará mais tarde.
Maria compreende que há, então, lugar para um milagre anuncia-
dor; é por isso que, tranquila e confiante, ela diz aos que serviam nas
bodas: “Fazei tudo o que meu Filho vos disser.” (Jo 2, 2-5.) Muitos autores
viram, com efeito, nesse milagre de Caná, uma preparação para o
milagre eucarístico, pois é bastante sugestiva a aproximação entre a
transformação da água em vinho e a do vinho no sangue de Jesus.82
Nosso Senhor, reconhecia São Pedro Crisólogo, quis nos dar, assim,
uma garantia e um prelúdio da santa Eucaristia. “Ó vinho admirável
e cheio de mistérios...”, disse Bossuet.
Tendo citado em exemplos o milagre da santificação do Pre-
cursor e o das bodas de Caná, Montfort conclui, com razão, que
se “Jesus começou e continuou seus milagres por intermédio de
Maria, por meio dela sempre os continuará, até o fim dos séculos”.
(n. 18.) Pois esses dois que menciona o Evangelho são exórdios, e,
consequentemente, sinais que indicam a conduta que manterá o Sal-
vador. O princípio se estende, pois, imediatamente aos três anos da
vida pública. Jesus curava, convertia, perdoava, ressuscitava, derra-

82 Ver cônego Parcot, La Foi em la Sainte Eucharistie, capítulo das Bodas de


Caná, p. 17-19, que assinala também a aproximação dos dois milagres
(multiplicação dos pães e transformação da água em vinho) comumente
representados sobre os sarcófagos dos primeiros séculos. Ver ainda sua
outra obra: La Sainte Eucharistie dans son pays d’origine, p. 60-61. (Editions
Alsatia, Paris.)
M. Olier, Vie intérieure de la Sainte Vierge, no capítulo das Bodas de Caná:
“Por meio da frase: Vinum non habent, Maria exprimia o desejo da insti-
tuição da Santa Eucaristia.”
Mons. Pichenot, arcebispo de Chambéry, O Evangelho da Eucaristia, p. 77-
79, sobre o milagre de Caná e o da multiplicação dos pães.
Cônego Rolland, La Reine du Paradis, I, p. 338: “O vinho de Caná é o
símbolo de uma outra bebida. Afastemos o véu e vejamos surgir o mis-
tério dos mistérios, a Eucaristia.”

238 J. M. Dayet
mava abundantemente seus favores na irradiação da prece e, às vezes,
da discreta presença de Maria. Ele não tardara, aliás, em abandonar
definitivamente Nazaré para ir morar em Cafarnaum: Et relicta civitate
Nazareth, venit et habitavit in Capharnaum maritima. (Mt 4, 13.) São João
especifica que ele foi com sua Mãe: Post hoc descendit Capharnaum, ipse
et mater ejus... (Jo 2, 12.) Essa estadia não durou senão certo tempo,
mas é significativa.83
São Lucas (8, 2,3) nomeia algumas das santas mulheres que
seguiam habitualmente o Salvador e seus apóstolos e assistiam-nos
com suas posses. Como não admitir que a Santa Virgem estivesse às
vezes entre elas, visto que entre elas estava nos dias da Paixão? Da
mesma forma, não podemos deixar de acreditar que ela havia prece-
dido seu Filho na morada tão hospitaleira de Betânia.
_______________

Ó Sabedoria Encarnada, quantas luzes benéficas derramais sobre


nossas inteligências! Como é bom vos ver permanecer na dependên-
cia de vossa santa Mãe, ao mesmo tempo que na obediência às von-
tades de vosso Pai dos Céus. Como tudo se ilumina e se unifica sob
esse ângulo de visão! Como estamos longe daqueles que descobrem
censuras, reprimendas, até dureza, em vossas respostas a Maria!
Por duas vezes, durante vosso ministério na Galileia, vos foi dada
ocasião de falar com ela, e sempre a louvastes e exaltastes. Quando
uma mulher, não se contendo mais de admiração ao vos ouvir pregar,
exclamou no meio da multidão (Lc 11, 28): “Bem-aventurado o ventre
que te trouxe e os peitos a que foste amamentado”, sua exclamação era,
pois, um louvor direto à vossa Mãe. E fostes mais longe ainda, sempre
segundo vossa profunda maneira habitual, que significava, aqui: Sim,
minha Mãe é bem-aventurada por ter-me trazido ao mundo, mas é
muito mais bem-aventurada por ter ouvido minha palavra e por tê-la
posto em prática. Pois não se pode duvidar de que, entre todos os

83 “Jesus, em Cafarnaum, sai da pequena morada onde vive sua Mãe; pas-
seia sobre as margens do lago de Genesaré, ou mar da Galileia...” Dom
Delatte, L´Evangile de Notre-Seigneur Jésus-Christ, p. 153.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


239
fiéis e fervorosos ouvintes de vossas palavras, ela tenha sido a mais
atenta a conservá-las e meditar sobre elas em seu coração, como
vosso Evangelho nos testemunha. (Lc 2, 19 e 51.)
Num outro dia, em que a multidão vos molestava em uma casa,
sem vos deixar descanso, alguém conseguiu se aproximar e avisar-vos
que vossa Mãe e vossos irmãos, do lado de fora, procuravam ver-vos
e falar-vos. “Minha Mãe e meus irmãos, respondestes-lhes, são aqueles
que ouvem a palavra de Deus, e a praticam” (Lc 8, 19-21); ou, como São
Mateus (12, 50) e São Marcos (3, 35) vos fazem dizer: “Os que fizerem a
vontade de Deus.” Vossa santa Mãe certamente estava entre eles, e mais
do que todos. Por isso ela não devia, de modo algum, surpreender-se
com vossas respostas.
“No fundo, confessa de modo muito simples Dom Delatte, essas
palavras são o elogio e a exaltação da Santa Virgem.”84 No século
VIII, São Beda, o Venerável (Ϯ 731) já o dissera, eloquentemente. “O
Salvador aprova de forma eminente o que dissera essa mulher (lou-
vando Maria), quando afirma que não somente Aquela que mereceu
gerar corporalmente o Verbo de Deus é verdadeiramente bem-aventu-
rada, mas que o são também todos os que se esforçam para conceber
espiritualmente o mesmo Verbo pelo ouvir da fé... Certamente, a Mãe
de Deus é bem-aventurada por ter servido neste mundo e ter contribu-
ído com a encarnação do Verbo; mas é ainda mais bem-aventurada por
ter merecido, amando-o sempre, conservá-lo em si eternamente...” Inde
quidem beata, quia Verbi incarnandi ministra facta est temporalis; sed inde multo
beatior, quia ejusdem semper amandi custos manebat aeterna.85
Eis quem nos assegura contra as interpretações deficientes das
palavras do Salvador à sua Mãe. Jamais houve filho mais amoroso e
mais perseverantemente dependente, como a sequência dos Misté-
rios continuará a nos mostrar.

84 L´Evangile de Notre-Seigneur Jésus-Christ, p. 307. Ver também La Sainte


Vierge, pelo Pe. de La Broise, S. J., p. 159-163; e Le Mystère de Marie, pelo
Pe. Bernard, O. P., p. 52.
85 Ver o Ofício do Comum das festas da Santa Virgem, Nona Lição do
Breviário.

240 J. M. Dayet
LEITURAS

EVANGELHO segundo São João, cap. 13, 1-38: A Ceia e o lava-pés.


O novo Mandamento.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. V: Da excelência da Eucaristia.

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241
QUARTO DIA
JESUS
SABEDORIA SOFREDORA E CRUCIFICADA

Eis que chegamos aos Mistérios da Paixão. A dependência de


Jesus em relação à sua santa Mãe não se revela à primeira vista nos três
primeiros. Entretanto, como encontramos Maria no carregamento da
Cruz e na crucificação, onde vai se consumar a obra redentora, esse é
um convite para descobrirmos sua participação nos sofrimentos que
precederam.
Perguntar-nos-emos, pois, como Jesus depende de Maria nos três
Mistérios de sua Agonia, da Flagelação e da Coroação de espinhos. Logo em
seguida, contemplá-lo-emos ao longo da Via dolorosa e sobre o monte do
Calvário, tendo sua Mãe ao seu lado. Quantas graças foram então der-
ramadas sobre as almas que seguiram ou mesmo que simplesmente
se aproximaram da Santíssima Virgem!
Essa meditação deverá nos fazer apreciar cada vez mais o valor
sobrenatural dos sofrimentos em nossas curtas vidas terrenas.
“Vamos à Pátria pelo caminho das cruzes”, cantava Montfort. Jesus e
Maria caminham diante de nós. Peçamos-lhes luz e força para segui-
los corajosamente.
Ave, Maria.

OS TRÊS PRIMEIROS MISTÉRIOS DOLOROSOS. Esses


Mistérios podem ser vistos como contendo, em suas dores especiais,
a expiação oferecida por Jesus ao seu Pai pelos incontáveis peca-
dos provenientes de cada uma das três grandes cobiças: o amor do
dinheiro, o dos prazeres da carne e a soberba do espírito. No jardim
da Agonia, Jesus sofre em sua alma mais particularmente à vista dos
crimes que gera o amor do dinheiro e que condenam tantos homens.
Na Flagelação, sofre em seu corpo como expiação pelos pecados
da carne. Na Coroação de espinhos, sofre em sua cabeça adorável e

242 J. M. Dayet
expia os pecados do espírito. Expiação dominante em cada um dos
três Mistérios, mas não exclusiva.
No Mistério da Agonia, justamente chamado de Paixão do Coração
de Jesus, nosso dulcíssimo Salvador viu passar diante de seu espírito
todos os pecados do mundo e, de maneira mais intensa, os crimes
que gera a miserável avareza. Não foi, aliás, no tempo mesmo em que
ele entrou em sua voluntária e terrível Agonia, que Judas, “um dos
Doze”, o vendeu por trinta moedas de prata; e não foi nesse jardim
das Oliveiras que o traidor chegou logo depois, liderando um bando
armado, para consumar o crime de sua traição?
Assim, Judas cometeu seu grave crime e se afundou, em seguida,
no desespero, como consequência da torpe paixão que devorava sua
alma. Ele preferiu o dinheiro ao sangue do seu divino Mestre. Quan-
tos outros se perdem como ele, os olhares obstinadamente cravados
na terra! Devemos pensar que um grande número de condenados
– talvez a maioria deles – o são por amor do dinheiro e de tudo o
que se pode obter por meio do dinheiro, visto que cada vez que o
Evangelho fala de condenados é sempre por seu apego calculado às
riquezas deste mundo e à dureza de coração que dele decorre.86
Não podemos imaginar que universo de iniquidades sai dessa
miserável paixão pelo dinheiro: as cobiças, as idolatrias, os roubos, as
mentiras, os perjúrios, os suicídios, as divisões de famílias, as simonias,
as traições, as hipocrisias, os ódios tenazes, as crueldades, os assas-
sínios, as guerras injustas, as guerras com seu cortejo de crimes e de
violências de toda sorte...
Jesus teve a visão de tudo isso, e sentiu uma dor indescritível em
seu coração. Quae utilitas in sanguine meo? (Sl 29, 10.) Por que meu san-
gue será derramado por tantos e tantos infelizes que não tirarão pro-
veito dele, que se perderão sem volta e me odiarão eternamente? Essa
ideia da inutilidade dos sofrimentos redentores para muitos homens
provoca em sua alma tamanho pavor, tamanho abatimento que ele
suplica ao seu Pai, por três vezes, que afaste, se possível, esse cálice
de amargura; e, não encontrando ao redor de si nenhuma consolação

86 Ver a Parábola do negociante avarento (Lc 12, 15-21) e a do mau rico


(Lc 16, 19-31). “Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Lc 16, 13.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


243
humana: Torcular calcavi solus,87 seu Coração é moído, sufocado sob a
pressão da angústia. Um suor de sangue inunda todo o seu corpo e
banha a terra sobre a qual está prostrado.
Mas esse Coração, que a dor comprime tão violentamente, onde,
pois, foi formado, se não no ventre da Virgem Maria? Cor Jesu, in sinu
Virginis a Spiritu Sancto formatum, dizemos nas Ladainhas do Sagrado
Coração. “Coração de Jesus, formando no ventre da Virgem pela
virtude do Espírito Santo”, isto é, milagrosamente formado da subs-
tância de Maria. E esse sangue, que escapa por todos os poros e se
derrama sobre a terra do jardim das Oliveiras, onde buscou ele sua
fonte senão no coração puríssimo dessa Mãe imaculada, que com
razão chamamos “Nossa Senhora do Precioso Sangue”?
Maria preparou o Coração de Jesus para suportar esse formidá-
vel reflexo da imensa tristeza de sua alma, cooperando, assim, com a
expiação que ele oferecia à Justiça de Deus. Ela está presente, pois,
nesse Mistério da Agonia. Está nele profundamente, ainda que de
maneira mais oculta. Cabe a nós descobri-la nele. Jesus depende dela
e somente dela nesse desassossego de todo seu ser humano, nessa
perturbação de sua sensibilidade, aberta como a nossa e mais do que
a nossa ao medo, ao pavor, à opressão diante do sofrimento e da
morte. As altas regiões de sua alma permaneciam-lhe seguramente
muito unidas, ao mesmo tempo que submissas, incondicionalmente,
à vontade do Pai dos Céus.
“Levantai-vos, vamos, disse ele aos seus, após a vitória conquistada
sobre si mesmo, eis que se aproxima o que me há de entregar.” (Mt 26, 46;
Mc 14, 42.)
_______________

A mesma dependência se estende sobre os Mistérios da Flagela-


ção e da Coroação de espinhos. O da Flagelação se apresenta, como
dissemos, como sendo mais especialmente a expiação redentora dos
pecados da carne. Se um grande número de almas se perde por cri-
mes de avareza, quantas outras fecham para sempre o Céu para si
mesmas, surpreendidas pela morte em seus habituais e vergonhosos

87 “Eu pisei sozinho no lagar.” (Is 63, 3.)

244 J. M. Dayet
excessos! Quantos pecados graves são cometidos no arrebatamento
da paixão sensual! Quantas orgias, abominações e requintes, quantas
impurezas e impudicícias! Pecados de luxúria que gritam vingança,
a ponto de terem provocado o dilúvio, a destruição de Sodoma e
Gomorra, e tantos outros castigos.
Jesus vai sofrer pavorosamente como expiação dessas faltas
incontáveis. No pretório de Pilatos, seu sangue divino se derramará
novamente, mas desta vez por consequência das feridas infligidas à
sua carne inocente. Para começar, eis seu corpo, “esse corpo sagrado,
tão belo, tão casto e mais que virginal; esse corpo que nenhum olho
humano vira desde os dias de sua primeira infância, ei-lo desnudado,
ei-lo exposto a olhos cheios de ódio, curiosos, impudentes, cínicos.”88
Que humilhação e que tortura para o mais belo, o mais puro dos
homens; para o mais sublime dos mestres da santidade e da grandeza
moral! Ele se queixa disso nos Salmos: “Por tua causa, meu Deus, sofri
afronta...” (Sl 68, 8.) “Eles mesmos me estiveram considerando e olhando...”
(Sl 21, 18), “e alargaram contra mim a sua boca, e disseram: Bem, bem, nossos
olhos viram!” (Sl 34, 21.)
Logo depois, sua carne é mutilada sob os golpes de correias guar-
necidas de ossos ou bolas de chumbo. Os soldados da guarnição
batem com violência, sucedendo-se sem descanso nem intervalo,
excitando-se entre si por meio de zombarias, grosserias, blasfêmias.
Quanto tempo durou o suplício? Quantos golpes recebeu a
Vítima? O limite ordinário foi, sem dúvida, ultrapassado. “Sobre o
meu dorso trabalharam os pecadores; prolongaram a sua iniquidade.” (Sl 128,
3.) Seu objetivo não era, conforme a ordem dada pelo procurador,
oprimir o paciente a ponto de causar piedade ao povo?
Na verdade, Deus encontrava ali uma compensação suficiente
para todas as abominações carnais. A santidade, a caridade, a pureza
dessa hóstia viva e gemente, às voltas com incomensuráveis dores,
cobriam e absorviam o mal; sem contar que ela arrancava do coração
do Pai dos Céus graças de misericórdia, com vistas ao retorno à casa
de família dos filhos pródigos de todos os séculos, que se deixarem
tocar pelo arrependimento.

88 Mons. Gay, Mistérios do Rosário, I, p. 394.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


245
Durante essa longa Flagelação de seu pobre corpo, quão amiúde
o pensamento de Jesus deve ter se voltado também à sua Mãe! Foi
somente dela que ele recebeu essa carne, hoje tão pavorosamente
torturada. Caro Christi, caro Mariae, pôde-se dizer sobre o sacramento
da Eucaristia, chamada desde o século IV, por Santo Gregório de
Nissa, o sacramento da Virgem. É por isso que a Igreja não deixa de
cantar, em um de seus hinos ao Santo Sacramento: Ave, verum Corpus
natum de Maria Virgine. “Salve, ó verdadeiro Corpo nascido da Vir-
gem Maria!”. Como ela lhe deu esse Corpo para ser nosso alimento
na Eucaristia, deu-lho semelhantemente para ser matéria à expiação
redentora em sua Paixão. Jesus continua, assim, a depender de sua
santa Mãe. Se ele sofre indizivelmente em todo seu Corpo dilacerado,
é como Filho de Maria, como Verbo feito carne em Maria: Verbum
caro factum. No mais íntimo de sua alma, ele guardava a clara visão
disso, sabendo que ela comungava de seus tormentos e adorava com
ele as vontades do Pai.

_______________

Na Coroação de espinhos, que sucedeu à Flagelação, Jesus aparece


para nós como Vítima de redenção para expiar mais especialmente
os pecados do espírito, os pecados de soberba, dos quais a cabeça é a
fonte e o instrumento. A soberba, em seu apogeu, rejeita o Cristo, sua
mensagem e seus milagres, fecha os olhos para a evidência, se obstina
na mentira e no ódio, não recua nem diante de alguma grave acusa-
ção, nem diante de alguma injusta condenação. Adora a si mesma e
deseja se colocar no lugar de Deus.
Os líderes religiosos da nação judia, Caifás adiante deles, são, com
os fariseus, a viva manifestação disso. Para eles, Jesus, que se diz o
Filho de Deus, é um blasfemador. Merece a morte. Levam-no, pois,
diante do tribunal de Pilatos. Acusam-no de incitar o povo à revolta,
de proibir o pagamento do tributo a César, e, acima de tudo, de se
anunciar o Rei dos Judeus. Sua Realeza não passa de impostura. Não
queremos que ele reine sobre nós. Tirai-o. Fazei-o desaparecer. Que morra
crucificado! É a nós que se devem voltar as honras da nação.

246 J. M. Dayet
Pecado gravíssimo, o mais grave que pode existir. Soberba auda-
ciosa que faz levantar a cabeça acima dos homens, para dominá-los,
e contra Deus, para afrontá-lo. Como expiação desse ultraje à Majes-
tade divina, Jesus vai sofrer em sua Cabeça adorável, que a Flagela-
ção parece ter poupado. A cabeça, essa parte mais nobre do corpo
humano, onde é sediada a inteligência, onde brilha, sobre a fronte e
nos olhos, um reflexo da luz do Alto. A cabeça, sobre a qual, como
sinal de Soberania reconhecida, são postas a coroa dos reis e a tiara
dos pontífices.
Por isso, os soldados de Pilatos, que ouviram a principal acusa-
ção lançada pelos judeus, dedicar-se-ão a ridicularizar essa pretensa
Realeza. Reúnem o cortejo. Uma coroa de espinhos é rapidamente
trançada e enfiada brutalmente sobre a cabeça do Salvador. E para
que nada falte a essa paródia sacrílega, jogam sobre seus ombros um
andrajo escarlate, colocam entre suas mãos, à guisa de cetro, um des-
ses caniços ocos mas sólidos, que chamamos de bambu, e que crescem
em abundância na Judeia.89 Fazem-no sentar sobre algum pedaço de
coluna; depois, um após o outro, esses pagãos desfilam diante dele,
dobrando o joelho, zombando e dizendo: “Salve, rei dos judeus!”. Uns
dão-lhe bofetadas, outros sujam de cuspidelas o augusto Semblante.
Há os que, tirando o caniço de suas mãos, desferem com ele golpes
sobre a cabeça, somando o sarcasmo à raiva de fazer sofrer.
Os espinhos, longos e agudos, traspassam a fronte e as têmporas.
Os cabelos são arrancados, os olhos se enchem de sangue, os ouvi-
dos zumbem de dor. Jesus reaparece assim diante dos judeus, carre-
gando sempre a coroa e a púrpura, quase não tendo mais aparência
humana. Ecce Homo! “Eis o homem!”, diz-lhes Pilatos, aquele que se
disse vosso Rei; vede no que se transformou. Que temor pode vos
inspirar doravante?
Sim, eis o Homem-Deus, o Filho amado, em quem o Pai declarou
solenemente, por duas vezes, ter depositado suas graças; o Filho da
Virgem, a quem o anjo da Anunciação havia prometido como um
Rei, e um Rei cujo Reino não teria fim: Et Regni ejus non erit finis (Lc
1, 32-33). Rei, hoje coroado de espinhos, escarnecido, “sem beleza

89 Mons. Gay, Mistérios do Rosário, 2, p. 10.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


247
nem formosura”,90 sofrendo intoleráveis dores lancinantes naquilo
que toda mãe – mas sobretudo Maria Imaculada – mais adora em
seu filho, como sendo mais particularmente seu bem e sua proprie-
dade: o rosto que carrega a semelhança do seu, o cabelo, a fronte, os
olhos, nos quais ela se reconhece. Cabeça outrora acariciada e beijada
em testemunho de amor e de afeição para com a divina Pessoa de
seu Filho. Cabeça real, sacerdotal, sagrada, inocente! Cabeça dolo-
rosa, excessivamente dolorosa! Cabeça humilhada, excessivamente
humilhada! Rosto sujo, ultrajado, profanado, tornado irreconhecível!
Cabeça e rosto de Jesus, Filho de Maria; aparentemente o que há mais
dela n’Ele; pois, vendo o jovem nazareno, todos os seus compatriotas
podiam dizer, e muitos diziam: “Vede, é sua Mãe!”.
O Jesu, Fili Mariae! Ó Jesus da Virgem Maria, como é bom para
nós reencontrar assim vossa dependência filial, mesmo nesses Misté-
rios nos quais vossa santa Mãe está corporalmente ausente! Se nossa
fé se apraz em descobrir, sob os véus eucarísticos, o que recebeis dela,
quanto mais quando nossos olhos podem contemplar vossa Huma-
nidade dolorosa. Assim, não deixais de aparecer para nós como o
fruto bendito de suas castas entranhas.
Visão reconfortante que não deve nos deixar, quando meditamos
sobre esses Mistérios de nosso Rosário. Mas eis que se manifesta a pre-
sença corporal da Virgem desde a saída de Jesus do pretório de Pilatos.

II

O CARREGAMENTO DA CRUZ E A CRUCIFICAÇÃO.


Contemplemos nosso divino Salvador carregando a Cruz. Ela é
pesada devido aos pecados provenientes das três grandes cobiças,
pelas quais ele já sofreu tanto. Os suplícios da Flagelação e da
Coroação de espinhos, levados ao extremo, esgotaram suas forças.
Ele caminha com dificuldade, tropeçando, por assim dizer, a cada
passo. Desfalece, cai, reergue-se sob os golpes para cair novamente.
Seus carrascos, temendo que ele não consiga chegar ao Calvário
(pois é preciso agir rápido), obrigam um passante, um estrangeiro

90 Is 53, 2.

248 J. M. Dayet
que retornava dos campos, a carregar a Cruz após ele. Foi então, ou
um pouco antes, que aconteceu esse encontro de Jesus e de sua santa
Mãe, cuja tradição de Jerusalém conservou-nos a memória?91 Do que
nossos corações não podem duvidar é que Maria, acompanhada de
João e das habituais seguidoras de Jesus, se apresentou ao seu Filho
logo que pôde se juntar a ele, através da multidão e da sombria escolta
dos soldados e dos ladrões.
Pobre e corajosa Maria, vendo seu Jesus nesse estado irreconhecí-
vel ao qual o reduziram, em algumas horas, os cruéis tratamentos dos
homens! Ela não o deixará mais, até o sepulcro. Juntos, eles galgam o
Calvário, semeando graças em sua passagem. Uma dessas graças foi,
sem dúvida, a transformação que deve ter começado a se operar na
alma de Simão, o Cireneu, no contato com a Cruz e a proximidade
de Maria implorante. Se os Evangelistas conservaram seu nome, o de
sua pátria de origem,92 e os nomes de seus dois filhos, Alexandre e
Rufo, é porque se tratava, então, de personagens bem conhecidos da
primeira comunidade cristã.93
Graça como a advertência dada às mulheres de Jerusalém, a essas
desconhecidas que seguiam o cortejo ou estiveram em sua passagem,
fazendo ouvir lamentações segundo o hábito oriental. Elas choram
simplesmente movidas de piedade natural por aquele que ia morrer.
“Filhas de Jerusalém, disse-lhes Jesus, não choreis sobre mim, mas chorai
sobre vós mesmas e sobre vossos filhos.” Pois pertenceis a essa nação ingrata
que a mim renuncia e me assassina. Chorai sobre os males que vos
esperam: a ruína de vossa cidade, a destruição de vossa pátria, a dis-
persão de vosso povo. Nesses dias que se aproximam, dir-se-á: “Dito-
sas as estéreis, e os seios que não geraram e os peitos que não amamentaram!”.
Ver-se-ão mães, enlouquecidas pela fome, devorarem seus próprios
filhos. Os homens desejarão, então, ser engolidos pelas montanhas e
pelas colinas. E esses desejos do impossível serão apenas o anúncio
do que sucederá no grande Dia do Julgamento. É a necessidade da
Justiça; se me tratam como o fazem, a mim, o lenho verde, o Santo

91 Pe. de la Broise, A Santa Virgem, p. 181.


92 Cirene da Líbia, na África.
93 Rufo é nominalmente designado na Epístola aos Romanos, 16, 13.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


249
e a fonte de toda santidade, qual será a sorte reservada aos culpa-
dos impenitentes e obstinados, rebeldes à Realeza de Deus e de seu
Cristo, lenho seco, bom para o fogo eterno?94
Sim, que graça essa última advertência do Salvador; luz suprema
projetada sobre sua vida, sua doutrina, seus sofrimentos, seu sacri-
fício, sua morte. Maria ouviu essas palavras; terá rezado por essas
mulheres, jovens ainda, e entre as quais muitas viveram o bastante
para ver a ruína de Jerusalém.
_______________

Mas, entre todas as graças da subida dolorosa, é preciso desta-


car a fidelidade do apóstolo João. Quando todos os outros fugiram,
quando Simão Pedro não reagiu senão para entrar no pátio do palá-
cio de Caifás e ali negar seu Mestre, João pôde acompanhar, sem se
inquietar, as diferentes fases do processo. Se ele era particularmente
amado por Jesus, era-o igualmente por Maria. É ela quem o atrai
e o sustém nessas horas trágicas. É ela que lhe vale essa presença
ao seu lado ao longo da subida e sobre o Calvário, para ser a teste-
munha oficial dos últimos momentos da vida terrena do Salvador e
dos acontecimentos que marcaram sua morte. Que graça de escolha,
que favor inestimável essa participação nos últimos sofrimentos do
Redentor na companhia de Maria Corredentora! Ele, que, na véspera,
descansou a cabeça sobre o peito de Jesus, ouvirá agora suas últimas
palavras, e verá com seus próprios olhos o lado aberto pela lança do
soldado romano.
A essa fidelidade de João soma-se a das santas mulheres, as pro-
vedoras do colégio apostólico, que haviam seguido o Salvador desde
a Galileia em sua recente viagem a Jerusalém para a Páscoa. Eram
numerosas, e se agruparam, no Gólgota, a alguma distância do lugar
do suplício. Algumas, no entanto, puderam se aproximar com a Santa
Virgem e São João, Maria Salomé, Maria de Cléofas, parentes de
Jesus, e Maria Madalena.95 Todas essas mulheres, podemos crer, ama-
vam com uma grande e respeitosa afeição a Mãe de Jesus. Vendo-se,

94 Lc 23, 27-31. Ver Mons. Gay, Rosário, II, p. 92-95.


95 Jo 19, 25. Ver Dom Delatte, p. 826.

250 J. M. Dayet
de repente, diante dessa Páscoa ensanguentada, como não teriam tes-
temunhado, prontamente, sua profunda simpatia àquela que viam tão
cruelmente golpeada em seu amor materno? E porque não podiam
mais servir o Salvador e seus apóstolos, foi-lhes uma consolação
acompanhar Maria, que acorria adiante de seu Filho, e formar assim
o grupo das amigas fiéis que subiam ao Calvário.
Com Maria e João, elas foram as consoladoras do Coração de
Jesus agonizante. Quantas graças terão valido a elas essas horas de
fervorosa assistência ao seu sacrifício! Entre elas, e as mais próximas,
havia duas mães de apóstolos, sacerdotes consagrados da véspera:
Salomé, a mãe de João e de Tiago Maior; Maria de Cléofas, mãe de
Tiago Menor e de Judas Tadeu. Ei-las intimamente unidas à santa
Mãe do Soberano Sacerdote, que oferecia ao Pai dos Céus sua imo-
lação redentora!
Havia Maria Madalena, a perdoada, que se mantinha bem perto
de Maria Imaculada, e banhava sua alma no sangue da divina Vítima.
Favor inaudito, prodígio de infinita misericórdia! Suas lágrimas do
Calvário, unidas às lágrimas, às dores, às preces da Virgem, terão con-
tribuído, sem dúvida, para obter a conversão de um dos ladrões cru-
cificados ao lado de Jesus. Como seu companheiro, ele começara por
insultar o Salvador. Mas logo depois, vendo sua paciência nas tor-
mentas, a compaixão de sua santa Mãe, a fidelidade dos amigos silen-
ciosos, em contraste com os judeus blasfemadores e a multidão que
uivava, muda seu proceder, abre sua alma à fé na Divindade e na Rea-
leza supraterrestre Daquele que acabara de perdoar seus carrascos.
Confessa a inocência total de Jesus, e, virando-se para ele, implora
humildemente uma lembrança em seu favor: “Senhor, lembra-te de mim,
quando entrares no teu Reino. – Hoje, responde Jesus, estarás comigo no para-
íso.” (Lc 23, 42-43.) Foi a única vez, como já observamos, que Nosso
Senhor fez essa promessa; foi a primeira vez que falou do paraíso, e
foi a um pecador que ele falou assim.96
_______________

96 Louis Rouzic, As Sete Palavras e o Silêncio de Jesus na Cruz, p. 24.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


251
Que florescimento de graças sobre esse monte do Calvário, ver-
dadeiro monte da mirra e do incenso, onde o sofrimento e a prece se
mantêm abraçadas em todos esses corações fiéis ao divino crucificado
e sinceramente unidos à sua Mãe dolorosa! Esse é o momento em que
Jesus Redentor oferece seu sacrifício supremo. Como, nessa hora em
que tudo se consuma, não dependeria ele, filialmente, Daquela que,
outrora, deu seu consentimento à sua vinda a este mundo, ofereceu-o
ao Templo no quadragésimo dia após seu nascimento, e não o criou,
não o viu crescer senão em vista de sua imolação sangrenta? Essa
longa preparação encontra, aqui, seu desfecho total. É por isso que
Jesus quis a presença de sua Mãe nas dores de seus últimos instantes
e participante da oblação de sua vida.
Ela acompanhou, pois, os preparativos do suplício; ela viu o
despojamento brutal, a crucificação sem piedade que vai deslocar,
deformar os membros, causando-lhes sofrimentos indizíveis. Ela
considera, agora, o corpo elevado da terra, imobilizado nas torturas
de uma agonia lenta, exposto aos olhares de uma multidão que se
alimenta do “espetáculo”, como escreverá São Lucas.97 Ela ouve os
sarcasmos, os desafios, os insultos dos inimigos triunfantes. Vê os
soldados que lançam seus dados para dividir as vestes de seu Filho,
essa túnica sem costura tecida por suas mãos.
Em pé diante da Cruz, um gládio traspassando sua alma, ela sofre
e reza com o divino Paciente. Oferece-o e imola-o como ele mesmo
se oferece e se imola. Sacrifica-o por nós. Esse Corpo ensanguentado
e ofegante é, com toda verdade, sua Hóstia. A união do Filho e da
Mãe nunca foi tão grande. Por isso, depois do perdão pedido por
seus carrascos e a segurança do paraíso dada ao ladrão penitente, é a
Maria que Jesus se dirige: “Mulier, ecce filius tuus”. (Jo 19, 26.) “Mulher,
eis aí o teu filho”, diz-lhe, designando o apóstolo João.
“Mulher”, na plena e mais bela acepção dessa palavra; isto é,
minha companheira, minha associada, a ajuda semelhante sempre ao
meu lado, porque me aprouve não caminhar sozinho sobre a terra;
minha fiel cooperadora na mesma obra, que foi como a minha metade
em todas as coisas. Mulher, nova Eva, verdadeira Mãe dos viventes de

97 Omnis turba eorum qui simul aderant ad spectaculum istud (23, 48).

252 J. M. Dayet
minha vida divina, de todos os homens resgatados em meu sangue,
que representa aqui meu discípulo mais querido. Eu vou morrer, eu
concluo nossa obra redentora, e quero que façais que eles sejam bene-
ficiados por ela até o fim dos tempos, pelo ministério de meus sacer-
dotes, de meus apóstolos, de todos aqueles que crerem em mim. Eles
não ficarão órfãos. Sereis sua Mãe, sua Mãe segundo a graça, como sou
vosso Filho segundo a natureza. Ecce filius tuus. Ecce Mater tua.
Palavra testamentária muito amorosa, que se junta ao doce anún-
cio de Nazaré, e projeta sobre as dores da Virgem uma luz plena-
mente reveladora. Assim como foram necessários os sofrimentos e
a morte de Jesus para que tenhamos direito à herança celestial, eram
necessários também os sofrimentos de Maria, sua comunhão de alma
na morte na cruz de seu Filho, para que ela pudesse nos gerar para a
vida sobrenatural. Nascemos de Deus e de Maria na noite dolorosa
do Calvário.
Jesus se recolhe, agora, no longo silêncio de várias horas que
precedeu sua morte. É a grande Elevação de sua Missa sangrenta.
Ele ora, murmura ao seu Pai os versículos dos Salmos que detalha-
ram, antecipadamente, os sofrimentos de sua Paixão e nos descreve-
ram seu desespero: Deus, Deus meus, quare me dereliquisti?” “Ó Deus,
Deus meu, por que me desamparaste?”. Esse é primeiro versículo do
Salmo 21, que recitamos na Sexta-Feira Santa, no despojamento dos
altares. Essa prece intensa e prolongada é o que dá o peso às torturas
de seu pobre corpo martirizado. A alma está mais viva e mais reli-
giosa do que nunca, toda impregnada de paciência, de abandono, de
submissão total. Ela domina e controla a lenta agonia, a ponto de se
ouvir Jesus, no momento de expirar, pronunciar com uma voz forte
– que não é a de um moribundo – o sexto versículo do Salmo 30,
fazendo-o preceder da palavra “Pai”: In manus tuas commendo spiritum
meum. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” Ele oferece sua
vida por espontânea vontade. Ninguém a tira dele (Jo 10, 18). Ele
mesmo a depõe livremente sob os olhos de sua santa Mãe, silenciosa,
orante e consentindo como ele.
Consummatum est. Agora, tudo está cumprido; sua obediência,
sua dependência está consumada. Ele prosseguiu com ela tão longe
quanto possível, até à morte, e morte de cruz. Et inclinato capite, emisit

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


253
spiritum. “E, inclinando a cabeça – acrescenta São João (19, 30) –, ren-
deu o espírito.” Isto quer dizer que a havia levantado, para assumir,
tanto quanto lhe era possível em relação a seu suplício, a atitude de
senhor de sua vida e do sacrifício de sua vida.
Esse gesto, assim como o som da voz, as palavras ouvidas, a
expressão do rosto de Jesus agonizante, tomaram de tamanho espanto
o centurião de serviço, que ele não hesitou em reconhecer que “verda-
deiramente este homem (cuja Mãe ele via) era Filho de Deus”. Seus soldados
de guarda, também comovidos, confessaram, como ele, a divindade
do condenado.98 A Maternidade corredentora de Maria exercia sua
ação benfazeja.
_______________

Assim, desde sua Agonia do jardim das Oliveiras até sua Agonia
da Cruz, Jesus não deixou de oferecer seus sofrimentos e de pro-
digalizar suas graças, na dependência de sua santa Mãe. Sabedoria
dolorosa, Sabedoria crucificada e expirante, ele conserva a mesma
amorosa conduta que foi a de toda a sua vida terrena. Que encora-
jamento para santificar nossos sofrimentos, nossas provações, nos-
sas humilhações; para carregar todas as nossas cruzes, pequenas ou
grandes, em união com Maria! Não somente carregá-las, mas amá-
las, desejá-las, abraçá-las com alegria quando chegam a nós, a fim de
aumentar nossa sobrenatural semelhança, nossa configuração ao seu
divino Filho.
É por isso que a Santíssima Virgem, longe de poupar as cruzes
aos seus fiéis servos e escravos, envia-lhes cruzes mais numerosas,
mais pesadas, mais persistentes do que a outros que não lhe são total-
mente devotados. É a marca, neles, de suas predileções; assim como
a facilidade com a qual vemo-los carregar essas cruzes é o sinal da
doçura e da unção que ela derrama então em suas almas.99
Regozijemo-nos, pois, com São Luís Maria de Montfort, esse
amante apaixonado da Cruz, e ouçamo-lo nos dizer: “Como foi preciso

98 Mt 27, 54; Mc 15, 39; Lc 23, 47.


99 Ver Tratado V. D., n. 153-154.

254 J. M. Dayet
que a Sabedoria Encarnada entrasse no Céu por meio da cruz, é necessário entrar
nele, após ela, pelo mesmo caminho... A verdadeira Sabedoria habita de tal modo
na cruz que, fora dela, não a encontrareis neste mundo; e ela se incorporou e uniu
de tal como com a cruz, que se pode dizer, em verdade, que a Sabedoria é a Cruz
e que a Cruz é a Sabedoria.” (A. S. E., n. 180.)
Palavra profunda. Montfort não teme identificar Jesus com a
Cruz ou a Cruz com Jesus. Amar o sofrimento é, pois, amar Jesus;
como amar Jesus, o Jesus de Maria, é amar o sofrimento.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São João, cap. 14, 1-31: Discurso de Jesus após
a Ceia.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. VIII: Da Oblação de Jesus
Cristo sobre a Cruz.

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255
QUINTO DIA
JESUS
SABEDORIA GLORIOSA E TRIUNFANTE

Contemplamos Jesus dependente de Maria até à morte, e morte


de cruz. Glorioso vencedor dessa morte e tendo subido novamente ao
Pai, ele permanece, mais do que nunca, seu Filho amoroso e grato, a
ponto de chamá-la, no fim de sua vida terrena, para juntar-se a ele em
corpo e em alma, para partilhar de seu triunfo na beatitude celeste.
Todavia, acompanhemo-lo primeiro no tempo de sua Ressurrei-
ção, de sua Ascensão e do Pentecostes. Quantas graças foram der-
ramadas, nesses dias privilegiados, sobre os membros da Igreja nas-
cente! Graças de FÉ, de ESPERANÇA e de CARIDADE, fortes
alicerces da vida cristã para os séculos vindouros.
As santas mulheres, que vimos junto da Cruz e que reencontrare-
mos no Sepulcro do jardim de José de Arimateia, tinham-se retirado
com a Santa Virgem e São João em uma casa de família, em Jerusa-
lém. Simão Pedro, às voltas com sua dor, não tardará em juntar-se
a eles. Os outros apóstolos, segundo toda verossimilhança, devem
ter fugido para a Betânia, na noite da prisão de seu Mestre. Não
vendo mais nem João, nem Pedro, deviam pensar que eles também
haviam sido presos, e isto decuplicara seu terror e pânico.100 Quando
souberam dos acontecimentos do dia da Sexta-Feira Santa, sua pri-
meira ideia foi se reagruparem no Cenáculo. Ali estavam no domingo
de Páscoa, pensando que tudo acabara. E eis que tudo recomeça,
segundo havia predito o Salvador.
Peçamos a Maria para entrar, com toda sua fé, que permaneceu
intacta, nesse recomeço tão calmo, tão secreto, tão reservado, poder-
se-ia dizer, que seguiu o sucesso incontestável das altas autoridades
da nação judia. Abordaremos os três grandes Mistérios que renova-
ram a face do mundo.
Ave, Maria.

100 Cristiani, Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, III, p. 308-309.

256 J. M. Dayet
I

AS GRAÇAS DOS TRÊS PRIMEIROS MISTÉRIOS GLO-


RIOSOS. Se há uma coisa surpreendente à primeira vista, é a estranha
dificuldade que tiveram os apóstolos para acreditar na Ressurreição de
seu divino mestre. As santas mulheres, intimamente envolvidas nesse
Mistério, superaram-nos incomparavelmente. Na noite da Sexta-Feira
Santa, depois de ter acompanhado os rituais do enterro, e examinado
como o corpo fora colocado, elas não podiam se resignar a deixar o
sepulcro. São Mateus (27, 61) mostra-nos Madalena e Maria Cléofas
sentadas diante da pesada pedra que fechava sua entrada. Elas ter-
minaram, contudo, por se afastar, mas decididas a voltar assim que
possível, para completar o embalsamamento que devia ter sido feito
às pressas, antes da hora inicial do Shabat.
Tendo observado religiosamente o Shabat, o mais solene do ano,
vemo-las acorrerem, muito cedo na manhã da Páscoa, ao Sepulcro,
com aromas e perfumes. Salomé, mãe de João, estava com elas. Ainda
atravessando as ruas da cidade, inquietavam-se para saber quem revol-
veria a pedra do sepulcro para permitir-lhes a entrada. Ignoravam que
os judeus, na véspera, haviam posicionado guardas ali; e, aliás, os guar-
das já haviam fugido, espantados. Tudo estava calmo no jardim quando
elas chegaram (Lc 24, 1). Madalena avança primeiro. Tendo chegado à
proximidade do sepulcro, viu que a pedra havia sido revolvida e que
o corpo não estava mais lá. “Levaram o Senhor do sepulcro!”, exclamou
ela; e, sem demora, correu ao encontro de Pedro e João, gritando-lhes:
“Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram!”.
Durante esse tempo, as duas outras mulheres se haviam aproxi-
mado do sepulcro aberto. Entraram nele e confirmaram que estava
realmente vazio. De repente, dois anjos resplandecentes apareceram.
“Por que, disseram eles, buscais entre os mortos o que está vivo? Ele não está
aqui, ressuscitou. Eis o lugar onde o depositaram. Mas ide, dizei a seus discípu-
los e a Pedro que ele vai adiante de vós para a Galileia; lá o vereis, como ele vos
disse. Lembrai-vos do que ele vos disse, quando estava na Galileia: Importa que
o Filho do homem seja entregue nas mãos dos homens pecadores, seja crucificado,
ressuscite ao terceiro dia.”

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


257
Tremendo de medo, fugiram e nada puderam dizer de imediato
aos apóstolos, tamanho era seu pavor (Mc 16, 8.) Entretanto, preve-
nidos por Madalena, Pedro e João correram para o Sepulcro. João
chega primeiro, mas não entra. Simão Pedro, que o seguia, entra no
Sepulcro, vê as bandagens caídas por terra, e o lençol cuidadosamente
dobrado e arrumado. João entra, por sua vez: vê com seus olhos, e crê.
Foi o primeiro dos apóstolos a receber essa imensa graça. (Jo 20, 8.)
Depois de ter alertado Pedro e João, Madalena não tardou em
voltar ao jardim do Sepulcro. Inconsolável e chorando copiosamente,
conservava-se do lado de fora. E eis que uma claridade saiu do sepul-
cro: dois anjos vestidos de branco estavam ali, sentados, um à cabe-
ceira, outro aos pés, onde o corpo havia sido depositado. Os anjos
disseram-lhe: “Mulher, por que choras? – Porque levaram o meu Senhor e não
sei onde o puseram.” Virando-se, viu um homem que lhe disse, como os
anjos: “Mulher, por que choras? A quem procuras?”. Madalena, julgando
ser o hortelão: “Se tu o levaste, dize-me onde o puseste; eu irei buscá-lo!”.
Jesus se revela, então, chamando-a por seu nome, “Maria”. “Mes-
tre!, exclamou ela, precipitando-se aos seus pés, como para segurá-lo
e não perdê-lo novamente. – Não me toques, disse-lhe Jesus, porque
ainda não subi para meu Pai.” Não é o momento para comoção; o mais
urgente é ir aos meus irmãos e anunciar-lhes minha Ressurreição,
assim como meu retorno próximo ao meu Pai. Madalena o compre-
endeu e se apressou em anunciar aos apóstolos, e até aos discípulos
que se reagrupavam na cidade, “que ela vira o Senhor”. Essa é a primeira
Aparição mencionada pelo Evangelho. (Jo 20, 14-17.) Os apóstolos e
os discípulos não deram crédito a essa mensagem.
Por sua vez, Maria Cléofas e Salomé voltam ao Sepulcro, acom-
panhadas, desta vez, das outras santas mulheres do Calvário, aquelas
que se conservavam um pouco afastadas. Jesus ressuscitado se apre-
senta ao seu encontro. Com um ímpeto espontâneo, elas se prostram
diante dele e beijam seus pés. “Não temais, disse-lhes; ide, avisai meus
irmãos, para que vão à Galileia, lá me verão.” Essa nova mensagem não
encontrou mais crédito junto aos apóstolos. (Lc 24, 11.) Será preciso
que Jesus se manifeste a eles em pessoa, e ainda assim duvidarão.
As respostas dos dois discípulos de Emaús ao Forasteiro desco-
nhecido, que os aborda na noite da Páscoa, explicam-nos esse estado

258 J. M. Dayet
de espírito dos amigos do Salvador. Estes haviam posto nele todas
as suas esperanças, pensando “que ele resgataria Israel” e devolver-
lhe-ia seu antigo esplendor. Mas eis, dizia Cléofas, que nossos sumos
sacerdotes e nossos magistrados o entregaram para ser condenado à
morte, e o crucificaram; e estamos no terceiro dia depois que essas
coisas sucederam. “É bem verdade, acrescentava ele, que algumas
mulheres, das que estavam entre nós, tendo ido ao Sepulcro ao ama-
nhecer, não encontraram o corpo. Voltaram dizendo que tinham tido
uma aparição de anjos, os quais disseram que ele está vivo. Alguns
dos nossos foram ao Sepulcro e acharam como as mulheres tinham
dito; mas não o encontraram!”.
Esses espíritos retos, inteiramente conquistados pelo Cristo,
esperavam ao menos uma Ressurreição estrondosa, que teria sido
a revanche imediata sobre os que o haviam condenado e também o
restabelecimento do antigo reino de Israel, seu sonho nacional de
sempre. Mas nada mudou, os líderes do momento são os mesmos,
tudo está, pois, terminado.
O Forasteiro que os escuta censura-lhes o fato de serem tardos
para crer no que haviam anunciado os profetas com respeito ao Mes-
sias: “Não era necessário que o Cristo sofresse tais coisas, e que assim entrasse na
sua glória?”. E ao longo do caminho, ele retoma e comenta tudo o que
fora dito a seu respeito nas Escrituras. Conhecemos a continuação
da narrativa de São Lucas. O que importa, sobretudo, reter, é o argu-
mento do qual se serve Jesus para reanimar a fé no coração desses
discípulos desencorajados, e assegurar-lhes seu verdadeiro e sólido
fundamento: a autoridade da palavra divina. Devemos crer no que Deus
teve o cuidado de nos revelar por intermédio de seus Profetas e de
seu Filho. Bem-aventurados os que aceitam essa revelação e lhe con-
cedem toda sua confiança, não importa o que aconteça!
Nesse mistério que nos ocupa, a Santa Virgem continua sendo o
modelo único. Somente ela creu sem hesitação, e as almas que cre-
ram primeiro são precisamente aquelas que a acompanharam até a
Cruz e até o Sepulcro: primeiro o apóstolo João, depois Madalena;
e depois de Madalena, Maria Cléofas e Salomé, com as outras segui-
doras de Jesus no tempo de suas pregações. Todas essas mulheres
tiveram o insigne privilégio de ver brevemente Jesus ressuscitado,

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


259
e creram imediatamente. João viu apenas o sepulcro vazio, mas isto
bastou-lhe para crer.
Os outros apóstolos, apesar das mensagens das santas mulheres e
do relato ofegante dos discípulos de Emaús, persistiam em sua incre-
dulidade. Estes últimos, após a revelação da partição do pão e apesar
da hora avançada, haviam retomado em seguida o caminho de Jerusa-
lém e voltado ao Cenáculo para comunicar a todos sua alegria por ter
ouvido e visto o Cristo ressuscitado. Os apóstolos estavam ali, com
exceção de Tomé. São Marcos observa que eles não creram ainda na
maravilhosa Aparição que lhes era relatada (16, 13.). E eis que, de
repente, o próprio Jesus surgiu no meio deles, nessa sala cujas portas
estavam cuidadosamente fechadas, por medo dos judeus. “A paz seja
convosco, disse-lhes, sou eu, não temais.” Mas eles, perturbados, apavo-
rados, pensavam ver um fantasma. “Por que estais turbados, continuou
Jesus, e que pensamentos são esses que vos sobem aos corações? Olhai para as
minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo; apalpai, e vede, porque um espírito não
tem carne, nem ossos, como vós vedes que eu tenho.” E, mostrando-lhes suas
mãos e seus pés traspassados, censurava-lhes sua incredulidade, sua
dureza de coração, porque não haviam crido naqueles que o viram
ressuscitado.
Antes dessa Aparição do Cenáculo e da de Emaús, Jesus se havia
mostrado a Simão Pedro. São Lucas no-lo atesta (24, 34), e também
São Paulo, em sua primeira Epístola aos Coríntios (15, 5); mas não
temos nenhum detalhe dessa Aparição. Por humildade, o apóstolo
que havia negado seu divino Mestre quis guardar silêncio sobre essa
condescendente solicitude a seu respeito. Desde a manhã da Páscoa,
ele se sabia perdoado, visto que o vemos acorrer ao Sepulcro com
João, depois de ter ouvido o que lhes relatava Madalena. Voltara ao
Sepulcro sozinho, pouco tempo depois, e é provável que nesse tra-
jeto o Salvador lhe tenha aparecido. Podemos imaginar o apóstolo
banhado em lágrimas ao ver o divino Ressuscitado, e lançando-se
aos seus pés, sem ousar, contudo, tocá-los e beijá-los. E Jesus não lhe
dirigiu nenhuma repreensão, mas testemunhou-lhe um amor ainda
maior do que antes.
Depois da noite de sua negação, Pedro deve ter encontrado João,
testemunha de sua queda, “e também, sem dúvida, a Santa Virgem,

260 J. M. Dayet
a quem ele sentia uma necessidade irresistível de confessar sua falta
e pedir perdão. Estava ávido por saber o que havia sucedido desde a
condenação na casa de Caifás.”101 Que torrente de lágrimas terá derra-
mado então! Maria lhe tinha devolvido a confiança, orara, obtivera para
ele essa Aparição privilegiada da manhã de Páscoa. Pedro foi, pois, o
primeiro entre os apóstolos a ver com seus olhos Jesus ressuscitado;
Pedro, permanecendo como Cabeça do Colégio apostólico, e tornan-
do-se, assim, a primeira testemunha nomeada da Ressurreição do Sal-
vador. Sim, Aparição privilegiada, como a concedida a Madalena.
Como duvidar, depois disto, de que Jesus tenha começado por
se manifestar à sua santa Mãe? O Evangelho não fala disso. E não
precisava falar: ele relata as Aparições cujo fim era provar a vitória do
Cristo sobre as tormentas e a morte, e, com isso, obter uma fé a toda
prova no sucesso da obra redentora, apesar das aparências contrá-
rias. Maria, como dissemos, não deixara de crer na Ressurreição; por
isso, não a vemos tomar uma parte qualquer nas preocupações das
santas mulheres com relação ao embalsamamento do Corpo enter-
rado. Essa atitude deve ter tocado o espírito observador e intuitivo
do apóstolo João; foi por isso que, diante do Sepulcro vazio, aceitara
imediatamente a evidência do grande milagre.
Qual foi a beatitude de Maria ao contemplar o Corpo, doravante
glorioso, de seu Jesus? Faltam-nos as palavras para exprimi-la. Era
esse mesmo Corpo vindo dela, e que vira crescer, sofrer, morrer
sobre a Cruz e ser carregado ao sepulcro de José de Arimateia. Os
estigmas acrescentavam a ele sua prova impressionante. Essa Apari-
ção em nada se assemelhava às que se seguiriam, tanto superava, por
seu esplendor, sua doce e santa intimidade, por sua efusão celestial,
seus abraços, suas trocas de carinho, por suas ações de graças tam-
bém, após tantos sofrimentos juntamente suportados e superados.
Era uma alegria sublime, intraduzível; uma felicidade sobre-humana
que ultrapassa nossas concepções, ao mesmo tempo que uma justa e
majestosa recompensa de sua fé. Que divina lição para nos encorajar
a implorar de Maria essa FÉ inabalável, que se apoia, antes de tudo,

101 Mons. Gay, Mistérios do Rosário, II, p. 201.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


261
sobre a certeza da palavra revelada, esperando a visão da glória! Resur-
rexit sicut dixit. (Antífona do Regina coeli laetare.)
_______________

Jesus ressuscitado havia pedido aos seus apóstolos que fossem


para a Galileia, longe do temor dos judeus. Nessa tranquila região,
que foi o berço de sua vocação, ele vai prepará-los para sua partida
e confiar a eles o cuidado de sua Igreja, onde todas as almas cristãs
beberão a ESPERANÇA de se juntarem a ele um dia.
Já na noite da Páscoa, no Cenáculo de Jerusalém, Jesus lhes havia
transmitido o poder de perdoar ou reter os pecados, estabelecen-
do-os, assim, como juízes de consciências. E agora, sobre as mar-
gens do lago de Tiberíades, acontece a investidura solene de Simão
Pedro como Chefe de toda a Igreja. “Simão, filho de João, tu me amas?”,
perguntou-lhe Jesus por três vezes, compensando a tripla negação.
“Seja o Pastor de meus Cordeiros... Seja o Pastor de minhas Ovelhas.” Sejas o
Pastor supremo do rebanho inteiro, dos fiéis e sacerdotes em todos
os graus de hierarquia.
Depois dessa consagração definitiva da primazia de Pedro, Jesus
convocou seus apóstolos sobre um monte da Galileia, cujo nome
não é mencionado, e que talvez seja o Tabor. Os “Onze” estavam lá,
e ouviram estas palavras: “Foi-me dado todo o poder no Céu e na terra. Ide,
pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do pai, do Filho e do Espí-
rito Santo. Ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei. Eu estarei
convosco todos os dias, até ao fim do mundo.”
Sublime missão apostólica! Antes de tomar posse do Céu, ele
deseja, por intermédio de seus enviados, tomar posse da terra: levai
a todos os povos o meu Evangelho, a “Boa Nova” do Reino dos
Céus. Depois, àqueles que crerem em vossa palavra, comunicai a vida
sobrenatural por meio do Batismo, e os outros sacramentos des-
tinados a mantê-la e desenvolvê-la. Por fim, ensinai-os a observar
todos os meus mandamentos, pois é preciso produzir, com o preço
de esforços perseverantes, obras de renúncia, de caridade, de sacri-
fício. O Céu é uma recompensa que se deve pessoalmente merecer.
A Igreja se torna, então, para as almas crentes e praticantes, como a
antessala do Paraíso, a verdadeira casa da Esperança cristã.

262 J. M. Dayet
Entretanto, não era na Galileia que Jesus desejava dar aos seus
apóstolos seu adeus terrestre. Impõe-lhes, pois, voltar a Jerusalém,
e determina como lugar do último encontro esse Cenáculo onde os
consagrou seus sacerdotes e dispensadores de sua Eucaristia. Ali os
encontramos, exatamente dez dias antes do Pentecostes, dispostos
a receber suas recomendações supremas. Sua pregação deverá, pri-
meiro, se apoiar sobre a autoridade das Escrituras. Era preciso que se
cumprisse tudo o que fora dito a seu respeito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos: seus sofrimentos, sua morte na cruz, sua res-
surreição no terceiro dia. Depois, eles deverão proclamar ao mundo
os fatos dos quais foram testemunhas, e os homens crerão com base em
suas afirmações. Dentro em breve, aliás, o Espírito Santo os revestirá
de sua força. Jesus faz-lhes esse anúncio.
E leva-os ao monte das Oliveiras. Ali, estendendo as mãos sobre
eles, abençoa-os e sobe ao Céu. Todos o viram subir majestosamente
nos ares: os apóstolos, muitos discípulos, e Maria com as santas
mulheres que vieram com eles ao Cenáculo.
Era meio-dia. O sol inundava o firmamento. Num triunfo tran-
quilo, a pouca distância do pretório de Pilatos, Jesus retornava ao
seu Pai no Reino do eterno encontro. “Vou preparar o lugar para vós”,
dissera ele aos seus em seu discurso após a Ceia. (Jo 14, 2.) Que doce
e luminoso convite! Como melhor nos fazer entender que a Igreja lá
do alto não é senão uma continuação da Igreja terrestre?
Apóstolos e discípulos retornaram a Jerusalém com grande júbilo,
observa São Lucas (24, 52.) Todo medo desaparecera. Suas ilusões
judias, apesar de tenazes, acabavam de desvanecer. Não esperavam
mais pelo restabelecimento temporal do antigo reino, e compreen-
diam, enfim, que Jesus não viera para isso. Uma outra esperança, de
outro modo grande e bela, enchia seus corações. Dois anjos acaba-
vam de dizer-lhes que esse Jesus, que subira ao céu, voltaria um dia,
tal como o viram subir. Então, surgirá sobre as nuvens em toda a sua
glória, para julgar o mundo e inaugurar um Reino sem fim. E depois,
tendo Jesus partido, Maria permanecia com eles. Tanto já intercedera
diante de sua lentidão para crer. Ela se regozijara com as santas mulhe-
res pelas Aparições maravilhosas que se sucediam, totalmente à revelia
das autoridades da nação. Não ignorava seu incalculável alcance, apesar

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


263
da discrição que as envolvia no momento. Não deixara de admirar,
de louvar, de bendizer essa misteriosa Presença prolongada, ora visí-
vel, ora oculta, do Salvador no meio dos seus. Se sua felicidade fora
grande ao ver com seus olhos seu Filho ressuscitado, maior ainda foi
a de vê-lo subir ao Céu com esse corpo que ela lhe havia dado para
sofrer, e que a Glória revestia agora com seu esplendor.
Ó Sabedoria vitoriosa e triunfante! – podia ela exclamar, descendo o
monte das Oliveiras. Que contraste com sua descida do Calvário, na
noite da Sexta-Feira Santa! Sua esperança estava já alimentada na Pes-
soa do glorioso Ressuscitado, esperando sê-lo em sua própria pessoa.
Que encorajamento para nós esperarmos o Céu, depois de todas as
provações deste mundo, suportadas de modo cristão, como o preço
da beatitude eterna!
_______________

No Cenáculo de Jerusalém, onde os apóstolos, na companhia da


Santa Virgem, das santas mulheres e dos discípulos, começam seu
Retiro de dez dias, a CARIDADE será a alma dessa fraterna reunião.
Que união, que fervor constante, que perseverança na oração, entre
essas paredes perfumadas pela lembrança eucarística! Que unidade
dos espíritos, que fusão dos corações em torno da Mãe de Jesus! É ela
quem concilia e pacifica. É ela que se venera e se escuta.
Quando Simão Pedro propõe aos seus colegas dar um sucessor a
Judas, a eleição se dá em perfeita concordância, sem sombra de opo-
sição ou divergência. Matias é assim designado e reconhecido pelos
“Onze”. Todos os apóstolos consideram Maria como tendo, no meio
deles, o lugar do Salvador que subiu ao Céu. Não é ela também a
Mãe deles? Sua Maternidade não foi proclamada do alto da Cruz?
Mãe dos pastores e dos fiéis, Mãe até mesmo do Pastor supremo,
Mãe desses filhos privilegiados, os escolhidos, os íntimos de Jesus, os
primeiros membros de seu Corpo místico!
Como ela os ama e deseja vê-los sempre amar uns aos outros,
segundo o novo mandamento, como eles se amam nesse momento,
sob seu olhar! É por eles que ela ora; é sobre eles que ela convida a
descida do Espírito consolador. Sua pura e bela dileção aviva em cada

264 J. M. Dayet
um deles o desejo de receber esse divino Paracleto, tantas vezes pro-
metido por seu Filho e do qual ela permanece como Esposa muito
fiel e muito amorosa.
Eis que há muitos anos Ela mesma recebeu sua vinda e sua esta-
dia; mas importa que o receba novamente, ostensivamente, desta vez,
para comunicá-lo à Igreja nascente. Importa que ela seja reconhecida
no pleno exercício de suas funções maternas. É por isso que o Livro
dos Atos assinalou expressamente sua presença entre os apóstolos
e os discípulos em oração. Ainda alguns dias, e o Amor pessoal do
Pai e do Filho derramará, por intermédio deles, sua caridade sobre
o mundo. Maria os prepara, infundindo-lhes seu próprio amor. Na
manhã do Pentecostes, antes que se abrissem as portas do Cenáculo,
é sobre ela, em primeiro lugar, que descerá o Espírito Santo, e, por
meio dela, se espalhará, na plenitude de seus dons, sobre cada uma
das pessoas presentes.
Então, sob o impulso do grande sopro vindo do alto, ocorrerá o
abrasamento dos corações e o desatamento das línguas. Doravante,
nada mais deterá os apóstolos. Na Jerusalém surpresa, espantada,
ouçamo-los – Simão Pedro à frente deles – pregar ousadamente o
Cristo ressuscitado dentre os mortos. E esses milhares de peregrinos,
vindos das províncias mais distantes para a Festa das colheitas, uma
das três grandes festas do ano, escutam-nos e compreendem-nos,
apesar da diversidade de seus idiomas particulares. “Somos as testemu-
nhas de sua Ressurreição”, dizem eles; e essa Ressurreição foi anunciada
por Davi, seu Profeta, assim como sua condenação e sua Paixão.
Impossível repreendê-los por terem crido levianamente ou por
influência de uns sobre os outros. Eles foram, ao contrário, os mais
rebeldes a crer; Jesus precisou ganhá-los e convencê-los um a um,
por assim dizer. Sua afirmação não teme ser desmentida. Foi ela que
converteu em massa esses primeiros ouvintes: creem em sua palavra,
como o divino Mestre lhes havia predito; têm a prova da Divindade
do Cristo e da verdade de seu Evangelho. É ela também que fechará
a boca dos inimigos, prontos a ressurgir: “Não podemos calar sobre o que
vimos e ouvimos.”
Esse poder de convicção, emanando do Espírito que os inflama,
fá-los-á afrontar as ameaças, os tribunais, a prisão, até a morte violenta.

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265
Todos terminarão com o martírio, felizes por derramar seu sangue
pelas almas resgatadas no sangue de Jesus. “Não há maior amor do
que dar a própria vida pelos seus amigos.” (Jo 15, 13.) Sublime exem-
plo de amor por Deus e pelo próximo. Assim, o mistério do Pente-
costes nos traz essa graça de perfeita caridade, dando continuidade às
graças de fé e de esperança dos dois mistérios precedentes.

II

JESUS GLORIFICADO DESEJA GLORIFICAR SUA MÃE.


Quantos anos, depois de sua partida e da descida do Espírito Santo,
Jesus deixou Maria sobre a terra? Nenhum texto sagrado no-lo revela.
O nome da Virgem desaparece das Escrituras. Em retiro junto do
apóstolo João, esta última fase de sua vida foi predominantemente
contemplativa, como deixa entender o silêncio das páginas inspira-
das. A vigilância do discípulo amado a livrava de toda preocupação
temporal. Sua missa lhe trazia o reconforto do Pão eucarístico e apre-
sentava novamente aos seus olhos, a cada vez, a lembrança da divina
instituição, intimamente ligada à imolação sangrenta do Calvário.
Quem, mais do que Maria, podia penetrar nesse mistério de dor e
de amor? Quem podia descobrir mais profundamente a identidade
absoluta do sacrifício do altar com o da cruz? Ela revivia, então, as
horas da Sexta-Feira Santa, mas era em uma ação de graças de êxtase;
pois seu Filho não tinha mais de sofrer, e os tesouros de sua Reden-
ção se derramavam sobre o mundo. Ela mesma aumentava, cada vez
mais, seus méritos, por intermédio desse sacramento da Eucaristia,
o único que convinha à sua alma, ainda forasteira neste mundo. Que
maravilha de graça! Receber o Verbo feito pão, Ela, a Mãe do Verbo
feito carne! Receber sacramentalmente Aquele que ela concebeu
espiritual e corporalmente!
Sem dúvida, Maria amava rememorar, ao longo dos dias, os anos
de intimidade em Nazaré, esse longo tempo que Jesus lhe havia
consagrado antes de entregar-se aos outros. Todas essas lembran-
ças permaneciam vivas em seu coração; mas o fato de sua presença
em Jerusalém trazia seus pensamentos de volta, irresistivelmente,
aos Mistérios da Ressurreição, da Ascensão e de Pentecostes, que

266 J. M. Dayet
celebravam o triunfo de seu Filho e sustentavam, nesse momento, a
marcha da Igreja.
Maria, aliás, não podia senão estar maternalmente atenta a essa
cristandade da capital, já às voltas com as autoridades judias e tão feliz
por sua assistência. Por meio de João, ela conhecia e acompanhava o
avanço da pregação apostólica na Judeia, na Samaria, e além. Quanto
deve ter admirado e louvado a força de alma do santo diácono Estê-
vão, o primeiro mártir! Com que fervor implorava pela conversão de
Saulo de Tarso, o mais obstinado dos perseguidores! Agradecia ao
Senhor por tomar conhecimento do regozijo dos apóstolos, depois
de terem sido presos e surrados com varas, por amor de seu Mestre.
Mais tarde, quando findar a perseguição, ela estará lá para conso-
lar e sustentar os amigos de seu Filho. Após a fundação da Igreja de
Antioquia, ela entregará aos Evangelistas, a Lucas, em particular, o
fiel companheiro de Paulo, os mais íntimos segredos de seu coração,
o relato da Anunciação, seu cântico do Magnificat, com tantos deta-
lhes que somente ela conhecia.
Tudo isto não impedia sua contemplação, mas a elevava ainda
mais, e a estendia sobre todas as almas que virão beber, no curso do
tempo, na fonte evangélica. Jesus, no entanto, não podia tardar mais
em chamá-la a si. Amamos, segundo a Tradição mais antiga, vê-la par-
tir deste mundo na cidade de Jerusalém, para sempre santificada pela
morte e pela Ressurreição de seu Filho. Os apóstolos, em sua maio-
ria, se haviam dispersado através das nações; São João, seu sacerdote
e confidente, permanecia fielmente junto dela, na casa de Getsêmani,
certamente com alguns parentes e cristãos devotados. É ele quem
poderia nos descrever esses dias de espera pacífica que precederam
sua Dormição; ou bem nos dizer em termos claros que a vira, assim
como outras pessoas presentes, partir corporalmente, viva, imortal,
e não ressuscitada. Ele preferiu o silêncio, contentando-se, em seu
Apocalipse, em levantar um canto do véu, como veremos, e deixando
à Igreja o cuidado de definir, em seu tempo, essa misteriosa partida.
Séculos foram necessários.
Nossa geração foi a bem-aventurada beneficiária da Definição
dogmática, feita por S. S. Pio XII, na manhã de 1º de novembro de
1950, na praça São Pedro, em Roma. Ela pôde ouvir, diretamente ou

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


267
pelo rádio, essas solenes e infalíveis palavras: “... Pronunciamos, declara-
mos e definimos como dogma divinamente revelado que Maria, Mãe Imaculada
de Deus e Virgem perpétua, no termo de sua vida terrestre, foi elevada com seu
corpo e sua alma para a glória do Céu.”
É intencional que não haja, nessa Definição, qualquer menção à
morte ou à ressurreição da Santíssima Virgem. Da mesma forma, na
nova missa da Assunção, o Soberano Pontífice fez suprimir a alusão
à morte de Maria que líamos na Secreta. E o Introito dessa missa não é
mais o Gaudeamus omnes in Domino, comum a várias outras missas do
Missal, mas o Signum magnum apparuit in coelo, do capítulo 12 do Apo-
calipse, que nos coloca, em seguida, na presença da grandiosa visão
de São João, exilado em Patmos.102 O apóstolo revê e contempla, na
Jerusalém celeste, Maria em corpo e alma, ornada com tudo o que há
de luminoso em nosso firmamento.
O sol a reveste com um manto; a lua está sob seus pés; doze
estrelas formam uma coroa ao redor de sua cabeça. O SINAL mara-
vilhoso não é a descrição simbolizada de sua Assunção de criatura
imaculada e imortal? Semelhante esplendor não nos permite compre-
ender que ela foi a mais gloriosa que lhe pudesse convir? A Divindade
de seu Filho é sua vestimenta de glória. Todos os eleitos, seus filhos,
revesti-la-ão para sempre com sua viva coroa. Representado pela lua,
que recebe sua claridade do sol, nosso mundo inferior aparece sob seus
pés, para nos dizer que ela o atravessou em pureza e beleza, na luz de
seu Filho, sem ter conhecido nossas misérias e nosso fim carnal. Se se
pode, aliás, falar de morte no que diz respeito à Virgem, deve-se dizer
que no Calvário ela a experimentou, na Pessoa de Jesus Redentor. O
gládio da Paixão traspassava, então, sua alma de Mãe Corredentora.
Doravante, estando a Redenção inteiramente cumprida, a entrada de
Maria na graça sem a sombra do pecado convocava sua entrada na
glória sem o alcance da morte. A Definição dogmática de Pio XII,
tendo como objeto unicamente sua glorificação em corpo e alma no
fim de sua vida terrestre, deixa o caminho aberto a essa interpretação

102 Essa visão da “Mulher” no Apocalipse parece ser, ao Pe. Jugie, A. A.,
a grande prova escriturária do Dogma definido. Ver seu artigo no Ano
teológico, 1951, p. 97-116.

268 J. M. Dayet
pacífica. Assim, o plano de revanche sobre o demônio surge total e
sem restrição, ao menos em um membro da humanidade resgatada.103
_______________

Que dizer agora da acolhida feita por Jesus à sua Mãe, quando os
anjos a viram elevada acima de suas hierarquias mais altas no Céu da
Trindade? É ele, esse Filho amado, quem a apresenta, a entrega ao
seu Pai para que entre na posse eterna da beatitude das três Pessoas,
na visão face a face. É ele quem a faz sentar-se ao seu lado sobre o
mesmo trono: Adstitit Regina a dextris tuis (Sl 44, 10), para sua Coroa-
ção de glória.
Houve um rito sensível dessa Entronização e dessa Coroação,
visto que Jesus coroava aqui, como homem, a cabeça glorificada de sua
Mãe? Sem dúvida, uma bênção, uma consagração, uma imposição de
suas mãos adoráveis, como pensa Mons. Gay. “Quanto a dizer, acres-
centa esse autor místico, a amplitude, a graça, a incomparável beleza
desse gesto do Cristo, a expressão que assumiu então o seu rosto, toda
a sua atitude, enfim, no momento em que serviu de instrumento às
três Pessoas divinas para coroar sua Mãe, nem o mais sublime gênio
da arte o sonhou, nem a mais alta contemplação dos maiores santos
pôde entrevê-lo. Foi, no Céu inteiro, a causa de um verdadeiro êxtase,
mas isto resta para nós indescritível e inefável; e o mesmo se deve dizer
da atitude e da fisionomia da Santa Virgem.”104 Que exaltação de sua
humildade de escravo do Senhor na manhã do Anúncio angélico, e
como seu cântico do Magnificat é admiravelmente colocado sobre nos-
sos lábios no Evangelho da nova missa de Assunção!
Ei-la Soberana bem-aventurada da Corte celeste e “Onipotente
Suplicante” junto ao seu Filho, em favor de seus filhos da terra.

103 O Pe. Roschini, diretor do Marianum, pensa que, doravante, o número de


teólogos que se declaram favoráveis à imortalidade de Maria aumentará.
Ver o Amigo do Clero, n. 38, 20 set. 1951; e n. 32, 12 out. 1954. No n. 38,
página 562, o Amigo relata o pequeno fato sugestivo da fotografia de
uma prece a Maria em sua Assunção, com uma correção autógrafa de
Pio XII, suprimindo palavras relativas à morte da Virgem.
104 Mistérios do Rosário, II, p. 431.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


269
Constantemente ocupada de nós, ela prepara, assim, nosso lugar,
o lugar de nossas almas no momento de nossa morte ou de nossa
saída do Purgatório, e até o lugar de nossos corpos no dia da ressur-
reição geral. Participaremos então, inteiramente, de sua beatitude,
segundo o grau de nossos méritos.
Confiemos nessa intercessão onipotente, sobretudo nós, que, por
nossa Consagração, permitimos a Maria exercer sobre nossas almas e
sobre nossos corpos toda sua ação de Mãe e de Senhora. Deixemo-las
nos formar, nos transformar, nos chamar, nos atrair, oferecendo-lhe
somente – repitamo-lo ainda – dependência amorosa e perseverante
obediência. Agradeçamos-lhe por ter-nos conduzido ao longo desses
Mistérios sobre os quais acabamos de meditar. Foi ela quem os come-
çou, é ela quem os encerra; mas sua missão só terminará quando vir
todos os seus filhos reunidos ao seu redor no Céu do Cordeiro, como
uma coroa de alegria somada à sua coroa de glória. Jesus, Sabedoria
eternamente gloriosa e triunfante em sua Humanidade e em sua Mãe,
sê-lo-á também em seus eleitos; e esse será o Reino que não conhecerá
mais nenhuma das sombras e das vicissitudes deste mundo.
Deixemo-nos reerguer pela esperança rumo a essa recompensa
de uma felicidade sem fim.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São João, cap. 15, 1-27: Discurso pronunciado


no caminho do Getsêmani.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. XIII: Dos desejos ardentes da
alma pela Comunhão.

270 J. M. Dayet
SEXTO DIA
JESUS
SABEDORIA AMADA E IMITADA

No fim desta terceira Semana e às vésperas de professar nossa


Consagração, não podemos fazer nada melhor do que fixar nossos
olhares sobre a fórmula de doação que brotou do espírito e do cora-
ção de Montfort, e que ele intitula: Consagração de si mesmo a Jesus Cristo,
a Sabedoria encarnada, pelas mãos de Maria.
É à amável Pessoa de Jesus que ele a dirige, e é Jesus dependente
de Maria que ele deseja imitar e possuir.
Conservemos em nossas almas a riqueza de doutrina e a inten-
sidade de amor que ela contém em seu Prelúdio, sua Parte central, sua
Prece final.
Ave, Maria.

O PRELÚDIO começa com esta invocação de luz, sobre a qual


meditamos longamente: “Ó Sabedoria eterna e encarnada, ó amável e ado-
rável Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Filho único do Pai eterno e de
Maria sempre virgem”; em seguida, Montfort percorre em sua ordem as
quatro grandes finalidades do sacrifício da missa, que ele relaciona ao
sacrifício que deseja fazer de si mesmo entre as mãos de Maria.
“EU VOS ADORO profundamente no seio e nos esplendores de vosso
Pai durante a eternidade, e no seio virginal de Maria, vossa digníssima Mãe, no
tempo de vossa Encarnação.” São as duas moradas de vossas graças, onde
eu me comprazo em vos buscar e vos encontrar.
“EU VOS DOU GRAÇAS por vos terdes aniquilado a vós mesmo,
assumindo a forma de escravo,105 para tirar-me da cruel escravidão do demônio;
EU VOS LOUVO E GLORIFICO por terdes desejado vos submeter a
Maria, vossa santa Mãe, em todas as coisas, a fim de fazer de mim, por intermé-
dio dela, vosso fiel escravo.”

105 Semetipsum exinanivit, formam servi accipiens. (Flp 2, 7.)

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


271
Em outros termos, recebei, ó Jesus, minha mais ardente grati-
dão por vossa dependência de natureza e por vossa dependência de
vontade. A primeira decorre de vossa Encarnação. Assumindo nossa
natureza humana, nossa natureza criada, vos fizestes dependente de
vosso Pai celeste. Assim, pudestes operar nossa Redenção, arrancar-
nos da tirania de Satanás e colocar-nos sob vossa doce e agradável
dominação. A segunda é vossa filial submissão a Maria. Submissão
que se manifestou, como vimos, em vossa vida anônima e em vossa
vida pública, em vossa paixão e em vossa morte na cruz, em vosso
triunfo e em vossa glória. Por meio dessa submissão de amor, jamais
interrompida, vós me ensinastes a me submeter aos vossos direitos de
Redentor. Visto que sou vosso escravo, resgatado pelo preço de vosso
sangue, é justo que eu reconheça meu inteiro pertencimento e que per-
maneça incansavelmente fiel a vós. Esse será o benefício de minha
inteira Doação, benefício pelo qual jamais vos agradecerei o bastante.
Depois da Adoração e da Gratidão, eis a REPARAÇÃO e a
PETIÇÃO: “Mas, ai de mim! Ingrato e infiel que sou, não guardei os votos e
as promessas que vos fiz solenemente em meu batismo. Não cumpri minhas obri-
gações. Não mereço ser chamado vosso filho nem vosso escravo. E como não há
nada em mim que de vós não mereça vossa aversão e vossa cólera, não ouso mais,
por mim mesmo, aproximar-me de vossa santa e augusta Majestade.”
Admiráveis sentimentos de um coração contrito, humilhado, arre-
pendido por suas faltas, que procura descobrir por qual meio poderá
reparar o passado, e se apresentar novamente diante da Santidade
divina ofendida. Esse meio é Maria, misericordiosamente colocada
entre essa Santidade e sua miséria. Por isso, apressa-se em expor a
Jesus esta humilde petição:
“É por isso que recorro à intercessão e à misericórdia de vossa santíssima
Mãe, que me destes como Medianeiro junto de vós; e é por meio dela que espero
obter de vós uma dupla graça: primeiro, a contrição e o perdão de meus peca-
dos, graça que purificará e curará minha alma; depois, a aquisição e a
conservação da Sabedoria, graça que me transformará progressivamente,
e que não é outra senão a posse do Tesouro de vossa amável Pessoa,
ó Sabedoria encarnada, tal como vos contemplamos em todos os
vossos mistérios.

272 J. M. Dayet
Dirigindo-se então Àquela que “Jesus lhe deu como Media-
neira”, Montfort saúda com entusiasmo a grandeza de sua Materni-
dade divina. “Eu vos saúdo, pois, ó Maria imaculada, Tabernáculo vivo da
Divindade, onde a eterna Sabedoria, oculta, quer ser adorada pelos anjos e pelos
homens.”
O Filho de Deus se agradou em se esconder em seio virginal,
desejando receber ali as adorações dos anjos desde o primeiro ins-
tante de sua Encarnação, e também as adorações dos homens que,
no decorrer dos séculos, descobrirão os esplendores desse mistério
de humildade.
Devido a essa Presença do Verbo feito carne em Maria Imaculada,
o Pai comunicou-lhe a universalidade de seu Poder, e o Espírito Santo,
a atração de sua misericordiosa Bondade. Montfort saúda, semelhante-
mente, esses privilégios: “Eu vos saúdo, ó Rainha do Céu e da terra, ao impé-
rio de quem tudo está submetido, tudo o que está abaixo de Deus. Eu vos saúdo, ó
Refúgio seguro dos pecadores, cuja misericórdia nunca faltou a ninguém.”

II

Tendo prestado essas homenagens, Montfort aborda a PARTE


CENTRAL de sua fórmula de Consagração, exprimindo depois, a
Maria, a petição precedentemente feita a Jesus: obter a divina Sabedoria,
possuir para todo sempre esse Tesouro dos tesouros que é a amável e
adorável Pessoa de Jesus. É o FIM ardentemente desejado. Ele não se
consagrará como escravo de Maria senão para chegar, neste mundo,
a essa beatificante Posse:
“Atendei, ó Maria, os desejos que tenho da divina Sabedoria, e recebei
PARA ISSO os votos e as ofertas que minha humilde condição vos apresenta.”
Os VOTOS, isto é, as promessas renovadas de seu batismo, sua
inteira Doação a Jesus Cristo.
As OFERTAS, isto é, sua Doação total a Maria, a fim de ser mais
fiel a Jesus Cristo.
Nossa Consagração comporta essas duas coisas. Ela é, no pri-
meiro plano, uma PERFEITA RENOVAÇÃO das promessas do
santo batismo. Aperfeiçoa-as, primeiro fazendo-nos ratificá-las,
não por meio de procuradores ou fiadores, mas por nós mesmos, com

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


273
conhecimento de causa depois de uma séria preparação; em seguida, fazendo-
nos ratificá-las expressamente entre as mãos de Maria, tomando a Mãe de
Jesus como testemunha e guardiã desses solenes compromissos.
O objetivo visado por nosso santo missionário era remediar o
mais eficazmente possível o desregramento de infidelidades no qual
vivem tantos cristãos, esquecidos de seu pertencimento a Jesus Cristo
e da importância de suas promessas batismais. Pobres almas, que per-
manecem inconscientes como no primeiro dia, tristemente ignoran-
tes da imensa graça recebida e aceita.
Sua Consagração vem despertar as consciências que necessitam,
e reapresentar-lhes realidades sobrenaturais de maneira forte e agra-
dável ao mesmo tempo, visto que obriga cada um a ratificar seus
próprios compromissos na luz de uma longa preparação apropriada,
e entre as mãos da doce Mediadora, saudada com tanto amor.
“Eu, N..., pecador infiel, renovo e ratifico hoje, entre vossas mãos, os votos de
meu batismo. Renuncio para sempre a Satanás, às suas pompas (as seduções
dos maus prazeres) e às suas obras (de pecado); e entrego-me inteiramente a
Jesus Cristo, a Sabedoria encarnada, para carregar minha cruz após ele todos os
dias de minha vida; e a fim de que eu lhe seja mais fiel do que fui até aqui...”
Montfort oferece, então, a Maria, tudo o que compreende sua
DOAÇÃO DE ESCRAVO:
“Eu vos escolho, hoje, na presença de toda a Corte celestial, como minha
Mãe e Senhora. Eu vos entrego e consagro, na qualidade de escravo, meu corpo e
minha alma, meus bens interiores e exteriores, e o valor mesmo de minhas boas
ações passadas, presentes e futuras, deixando-vos o inteiro e pleno direito de dispor
de mim e de tudo o que me pertence, sem exceção, segundo vossa vontade, para a
maior glória de Deus, nesta vida e na eternidade.”
Essas linhas, no texto original, estão sublinhadas pela mão do
Padre de Montfort, para bem indicar que exprimem o que especi-
fica e caracteriza sua Consagração, cuja característica é se manifestar
absolutamente total, em resposta aos direitos da Maternidade espiri-
tual de Maria adequadamente compreendida.
Eu vos escolho, ó Maria, como minha Mãe e Senhora, MATER
ET DOMINA (como isto foi explicado); e é por isso que me entrego
e consagro a vós na qualidade de escravo. Vossa dominação materna,
que se estende sobre meu ser de graça e até mesmo sobre meu ser

274 J. M. Dayet
de natureza, convoca, reclama minha dependência mais completa.
Eu vos entrego, pois, e consagro meu corpo e minha alma; meus bens
exteriores que afetam mais especialmente meu corpo e são ordenados
à minha vida presente; meus bens interiores, que são a riqueza de minha
alma e preparam minha eternidade bem-aventurada.
Sendo estes nossa mais preciosa oferta, Montfort especifica que
entregamos a Maria estes bens em si mesmos: graças, virtudes, méri-
tos; e, além disso, o valor que encerram nossas boas ações passadas, pre-
sentes e futuras. Seu valor de mérito – título de justiça para a glória eterna
– é confiado, lembremo-lo, à guarda da Santíssima Virgem, pois essa
riqueza é inalienável; mas, entre suas mãos, sabemos que está mais
segura do que entre as nossas. O valor de oração e de sacrifício (obten-
ção de graças e força de reparação) é deixado à sua livre disposição,
no maior desinteresse de nós mesmos. Quer seja em nosso favor ou
em favor de outrem, isto cabe a ela decidir. Que ela se sirva de nossos
rendimentos para exercer sua caridade em nosso nome para com o
próximo da Igreja militante ou da Igreja sofredora, isto é seu assunto.
Ela conhece melhor do que nós o que mais pode nos santificar e
aumentar nossos méritos. Ela conhece as intenções pelas quais mais
prezamos, o que não nos impede, aliás, de recomendar-lhas. Mas o
melhor será sempre perdê-las em suas grandes intenções, afastando,
assim, todo sentimento de amor-próprio, todo pensamento de ego-
ísmo ou de interesse pessoal, que viria macular a pureza, a generosi-
dade de nossa oferta.
Esse abandono do valor de todas as nossas boas ações enriquece
nossa Consagração com um aperfeiçoamento que não encontramos em
outra parte. Nem as promessas do batismo, nem os votos religiosos
exigem semelhante desapego. É por isso que, de todos os grupos
religiosos (Ordens antigas ou Congregações recentes), almas se dire-
cionam à Fórmula montfortina, felizes por acrescentar sua Doação
total aos sacrifícios já consentidos. Todas podem se beneficiar dela,
sem nada mudar no teor ou no espírito de suas Constituições. Não é
questão, aqui, senão de um enriquecimento da vida interior de cada
uma delas, enriquecimento este que não pode ser limitado.
Continuemos, pois, a dizer, com Montfort, pesando bem cada
uma de suas palavras: Deixando-vos, ó Maria, inteiro e pleno direito de

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


275
dispor de mim, de minha pessoa, corpo e alma, e de tudo o que me pertence,
bens temporais e espirituais estritamente ligados à minha pessoa; sem
exceção, sem nenhuma reserva, sem delimitação de qualquer espécie:
tudo o que já adquiri no passado, desde o momento em que comecei
a corresponder à graça de meu batismo; tudo o que poderei adquirir
ainda no futuro, tendo em conta, naturalmente, minhas obrigações
de justiça e os deveres de minha posição.
Desse capital sempre crescente, usai conforme a vossa vontade,
segundo vosso querer, segundo o que mais contentar o vosso coração de
Mãe de incontáveis filhos. Estou certo – e com isto me regozijo – de
que tudo será oferecido por vós para a maior glória de Deus, e que esse
fim, o mais elevado que existe, será sempre plenamente atingido nesta
vida e na eternidade, pois nossa Consagração nos acompanha no outro
mundo, onde nos valerá um Céu mais rápido e mais belo.

III

Em sua ORAÇÃO FINAL, Montfort expõe a Maria, em pri-


meiro lugar, as razões que comandaram sua Consagração de escravo.
A principal e mais marcante foi seu grande desejo de honrar a depen-
dência filial de Jesus e de se unir a ela o mais estreitamente possível.
“Recebei, ó Virgem benigna, esta pequena oferta de minha escravidão,
em honra e união à submissão que a Sabedoria eterna desejou ter de vossa
Maternidade.”
Antes, ele dissera: “Eu vos louvo e glorifico, ó amável e adorável
Jesus, por terdes desejado vos submeter a Maria, vossa santa Mãe, em todas as
coisas, a fim de fazer de mim, por intermédio dela, vosso fiel escravo.” As duas
passagens confluem.
Essa inefável submissão voluntária, amorosamente contemplada,
lançava-o – segundo sua própria confissão – como fora de si mesmo.
Submissão de uma Pessoa divina à pessoa humana de Maria! “Deus
Filho... encontrou sua liberdade ao se ver aprisionado em seu seio virginal; fez bri-
lhar sua força ao se deixar carregar por essa jovem..., glorificou sua independência
e sua majestade ao depender dessa amável Virgem...
“Ó admirável e incompreensível dependência de um Deus, que o Espírito
Santo não pôde omitir no Evangelho... Oh! Que glorificamos a Deus em alta voz

276 J. M. Dayet
quando nos submetemos, para agradar-lhe, a Maria, a exemplo de Jesus Cristo,
nosso único Modelo!” (V. D., n. 18.)
“É aqui, repito-o, que o espírito humano se perde, quando faz uma séria
reflexão sobre essa conduta da Sabedoria encarnada... Essa Sabedoria infinita,
que tinha um desejo imenso de glorificar a Deus, seu Pai, e de salvar os homens,
não encontrou meio mais perfeito e mais curto para fazê-lo do que se submeter em
todas as coisas à Santíssima Virgem...” (V. D., n. 139.)
Nem mesmo agora, que a Redenção se cumpriu e que Jesus subiu
novamente ao Pai, sua dependência filial de Maria cessou. Ela con-
tinua a se manifestar nas atividades da vida gloriosa. “Como a graça
aperfeiçoa a natureza e a glória aperfeiçoa a graça, é certo, afirma Montfort,
que Nosso Senhor é ainda no Céu tão Filho de Maria quanto era sobre a terra,
e que, consequentemente, conservou a submissão e a obediência do mais perfeito de
todos os filhos em relação à melhor de todas as mães.” (n. 27.) O que significa
que Jesus, no Céu, não derrama sobre nossas almas os benefícios de
sua Redenção senão numa dependência desejada de sua santa Mãe.
Essa dependência filial nunca terá, pois, fim. Ela começou nesta
vida, e se prolonga na eternidade. Sim, mesmo quando o número
dos eleitos estiver completo, quando todos os lugares do Céu estive-
rem ocupados, quando as portas da Sala do Banquete das Bodas do
Cordeiro forem fechadas definitivamente, Jesus permanecerá sempre
na mesma disposição de amor, visto que, sendo a glória o desabro-
char da graça, ele nos dará eternamente essa glória, como agora nos
dá seu germe, por meio de sua Humanidade triunfante que sempre
procederá de sua Mãe, e por essa divina Mãe ela mesma, para sempre
associada, num nível à parte, ao seu triunfo.
Eis o EXEMPLAR vivo e permanente que Montfort contem-
plou e que deseja honrar por meio de sua Doação total: “Recebei, ó
Virgem benigna, esta pequena oferta de minha escravidão em honra e união à
submissão que a Sabedoria eterna desejou ter de vossa Maternidade.” É como
se ele dissesse: Ah! Bem sei que não há, que não pode haver propor-
ção entre minha maneira e sua maneira de vos honrar; entre o que eu
vos dou e o que Ele vos deu. Jamais chegarei a vos amar como seu
Coração de Homem-Deus vos amou. Mas, enfim, quis fazer como
ele fez primeiro, e perder minha conduta na sua.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


277
Assim, a “pequena oferta de minha escravidão” será minha humilde
réplica da eterna dependência d’Ele. Ele é a Sabedoria eterna, a Sabe-
doria não criada, emanada do seio do Pai. Ele é, pois, a evidente justi-
ficação de meu amor por vós. É por isso que, à sua dependência filial
e amorosa, somo minha dependência filial e amorosa. Desejo que ela
seja sua fiel imitação, reprodução, continuação, prolongamento, ao
mesmo tempo que sua glorificação.
_______________

A esta primeira razão, tão nobre e tão desinteressada, Montfort


acrescenta duas outras igualmente glorificantes: “Recebei, ó Virgem
benigna, a pequena oferta de minha escravidão... em homenagem ao Poder que
tendes ambos (vosso Filho e vós) sobre este pequeno verme e este miserável
pecador; e em ação de graças pelos privilégios com os quais a santa Trindade vos
favoreceu.”
Não esqueçamos, com efeito, que, anteriormente a toda atitude
de nossa parte, Jesus e Maria têm Poder sobre nós, sobre nosso ser
de natureza e sobre nosso ser de graça.
Na ordem da natureza, Jesus, enquanto Deus, é nosso Criador
e Soberano Senhor; enquanto Homem, é nosso Rei por direito de
nascimento. Por essa dupla razão, todas as criaturas lhe pertencem de
maneira absoluta. Todas são seus súditos e seus escravos.
Nessa mesma ordem, Maria é nossa Senhora e Soberana, visto
que o que Jesus possui por direito, Maria possui por graça de doa-
ção. Ela tem, pois, o mesmo Poder de seu divino Filho; ela também
possui tantos súditos e escravos quanto há criaturas saídas das mãos
de Deus (V. D., n. 76.) Em consequência de sua divina Maternidade,
todas foram-lhe oferecidas devido à sua realeza, de sorte que seu
império se estende sobre o universo inteiro, do qual cada um de nós
forma uma parcela.
Eis por que, vendo-se como um “pequeno verme” no seio da imensa
criação, domínio comum de Jesus e de Maria, Montfort roga-lhes
que aceitem sua Doação de escravo “em homenagem ao Poder” que têm
sobre ele, sobre sua vida, sobre seus bens, desde o primeiro instante
de sua existência.

278 J. M. Dayet
Na ordem da graça, seu Poder se afirma mais ainda: Jesus é nosso
Redentor por justiça, Maria, nossa Corredentora por misericórdia,
como explicamos. Ambos, ainda que por razões diferentes, têm
direito e dominação sobre nossas almas e sobre todas as nossas obras
de escravos resgatados. É esse direito que Montfort quer glorificar,
quando roga a eles que aceitem sua “pequena oferta” em homenagem
ao Poder que ambos têm “sobre esse miserável pecador”; pecador resgatado,
regenerado, perdoado, santificado; pecador que lhes deve tudo e que
não é nada, que não pode nada sem seu influxo sobrenatural.
Reconheçamos o fundamento dessa homenagem do “miserável
pecador”, somando-se à do “pequeno verme”. Um e outro nos fazem
compreender que, pertencendo a Jesus e a Maria como seus escra-
vos, e dependendo, pois, de seu Poder, nossa Consagração nos con-
cilia com o que existe de fato e por direito. Que segurança saber-nos
assim na verdade! Quantas pessoas, diante da Doação montfortina,
começam por se indignar e colocar oposição a ela, não desejando
se entregar “na qualidade de escravas”! Quantas outras, ao contrário,
alegram-se por poder realizar esse ato de elementar submissão e de
grata justiça! Elas vivem na luz; sua humildade agrada Àquela que se
proclamou a escrava do Senhor, e no momento mesmo em que ela
se tornava sua Mãe.
Por fim, Montfort roga a Maria que acolha sua pequena oferta “em
ação de graças pelos privilégios com os quais a Santa Trindade a favoreceu”. Deus
Pai a escolheu como sua Filha amada; Deus Filho, como sua Mãe dignís-
sima e sua Associada na obra da salvação de nossas almas; Deus Espírito
Santo, como sua fiel Esposa na obra da santificação dos eleitos.
É, pois, sempre a mesma humildade, o mesmo esquecimento de
si que outrora, o mesmo sentimento de não ter senão pouca coisa a
oferecer diante das munificências divinas. Ele tem a confiança, con-
tudo, de que Nossa Senhora aceitará sua Doação. É por isso que
roga a ela sob o vocábulo de VIRGEM BENIGNA, isto é, indul-
gente, condescendente, de acolhida sempre benévola. Sua bondade
maternal saberá levar em conta que ele quis sobretudo glorificá-la,
imitando seu divino Filho e toda a Trindade.
Esse querer é tão intenso à sua alma, que, antes de prosseguir
com sua prece, ele deseja declarar abertamente a Maria a firme

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


279
resolução que o anima a viver com o maior devotamento seu título
de escravo: “Declaro que desejo, doravante, como vosso verdadeiro escravo,
buscar vossa honra e obedecer-vos em todas as coisas.” Buscar vossa honra,
trabalhando para estender vosso Reino por todos os meios em meu
poder. Obedecer-vos em todas as coisas, a exemplo de vosso divino
Filho, que vos foi submisso em todas as coisas, tanto nos humildes
trabalhos de Nazaré quanto na realização de seus milagres. Logo,
zelo de puro amor e obediência sem hesitação.
_______________

Seguem três invocações fervorosas, desejosas de graças, que atin-


gem também Jesus através de Maria:
“Ó MÃE ADMIRÁVEL, apresentai-me ao vosso caro Filho na quali-
dade de escravo eterno; a fim de que, tendo-me resgatado por vosso intermédio,
por vosso intermédio me receba.” Montfort tem consciência de que seu
pertencimento a Maria – pertencimento reconhecido, amado, abra-
çado com entusiasmo – nunca terá fim. Ele é mais forte do que todos
os laços da carne e do sangue. Nem a morte poderá rompê-lo. Pelo
contrário, sua morte de predestinado não fará senão desabrochá-lo
no seio de uma felicidade sem sombras e sem obstáculos.
É por isso que ele suplica a Maria que o apresente desde hoje a
Jesus sob este belo título de “escravo eterno”... Escravo neste mundo, na
graça; escravo no Céu, na glória. Neste mundo, é o começo; no Céu,
será a consumação.
Maria não foi designada para nos apresentar, assim, ao seu divino
Filho? Ela estava em nossa redenção, estará também em nossa glo-
rificação. Que alegria para o seu Coração materno acolher em seu
Reino seus filhos de predileção, marcados com o sinal de seu per-
tencimento eterno, e apresentá-los como tal ao seu divino Filho!
Montfort espera com uma esperança firme esse momento maravi-
lhoso. Compreende-se que ele se dirija à “Mãe admirável”, ao mesmo
tempo Mãe e Associada de Jesus, Mãe da Cabeça e dos membros,
Mãe e Senhora dos predestinados, Soberana do coração dos elei-
tos, sua santificadora, sua introdutora na pátria onde a dependência
é infinita; Mãe que carrega a solicitude de seus incontáveis filhos

280 J. M. Dayet
desde o instante de sua regeneração de graça até o de sua apresen-
tação de glória. Que outra mulher carregou o peso de uma Materni-
dade como essa?
Tendo, assim, assegurado entre as mãos de Maria a perenidade
de seu título de escravo, Montfort volta à petição que domina toda a
sua fórmula de Consagração: a obtenção da divina Sabedoria: “Ó Mãe
de misericórdia, dai-me a graça de obter a verdadeira Sabedoria de Deus.” Ele
não se entregou senão para esse fim: “Atendei, dizia, os desejos que tenho
da divina Sabedoria e recebei, para isto, os votos e as ofertas que minha humilde
condição vos apresenta.” E se dirigia, então, Àquela “cuja misericórdia nunca
faltou a ninguém”.
Dirige-se novamente a ela com uma insistência crescente: “Ó
MÃE DE MISERICÓRDIA, agora, que me consagrei vosso escravo,
e pela eternidade, “dai-me a graça de obter a verdadeira Sabedoria de Deus”,
que Jesus, sendo a Sabedoria eterna e encarnada, não deixou de mani-
festar a nós em seus ensinamentos e em sua conduta. E, para que eu
obtenha essa graça, contai-me entre vossos predestinados mais ama-
dos, em quem exerceis livremente vossas funções de Mãe e de Senhora
das almas, e que vedes, devido à sua amorosa e incansável obediência,
como “vossos filhos e vossos escravos. Vós os amais, os ensinais, os conduzis, os
alimentais, os protegeis”, como Mãe sempre presente e ativa.106
Para terminar, a invocação à VIRGEM FIEL solicita uma última
graça, coroamento das outras: a de atingir, por meio de perseverantes
e sempre crescentes progressos em nossa Santa Escravidão, o grau
de santidade determinado por Deus, desde toda a eternidade, para
cada um de nós.
“Ó Virgem fiel”, vós que sempre respondestes aos chamados do
Senhor, “fazei de mim em todas as coisas”, tanto nas circunstâncias mais
importantes de minha vida quanto nas ações ordinárias que preen-
chem meus dias, “um discípulo tão perfeito, imitador e escravo da Sabedoria
encarnada, Jesus Cristo, vosso Filho”; discípulo atento aos seus ensinamen-
tos, imitador de sua filial e permanente dependência, escravo de suas
vontades como ele foi das vontades de seu Pai, “que eu chegue, por vossa
intercessão” de Mediadora, à qual me apressei a recorrer, e “conforme

106 Rever o sexto Dia de nossa segunda Semana.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


281
vosso exemplo” de Virgem sempre fiel, “à plenitude de sua idade sobre a
terra e de sua glória nos Céus”, isto é, a esse grau de semelhança que será
a idade perfeita de minha vida de glória no Paraíso.
_______________

Assim se encerra nossa fórmula de Consagração a Jesus Cristo, a


Sabedoria encarnada, pelas mãos de Maria. Ela justifica plenamente
seu título. Desde sua primeira linha à última, não deixamos o amável
e adorável Jesus, visto que, entregando-nos à sua santa Mãe como
Montfort nos pede, nossa intenção primeira é nos entregar mais per-
feitamente a Cristo, chegar a possuí-lo na marca distintiva de sua
santidade de Verbo encarnado, eternamente dependente de Maria.
Jesus, Sabedoria amada, imitada e possuída, essa é a beatitude
que nossa Consagração nos oferece. Saboreemo-la com um coração
confiante, sem medo.

LEITURAS

EVANGELHO segundo São João, cap. 17, 1-26: Oração sacerdotal de


Jesus.
IMITAÇÃO de Jesus Cristo, livro IV, cap. XIV: A doçura da Eucaristia.

282 J. M. Dayet
Dia de Fechamento
CONSAGRAÇÃO E VIDA DE UNIÃO

“No fim dessas três Semanas (aqueles e aquelas que tiverem


seguido os Exercícios de preparação) se confessarão e comungarão
na intenção de se entregarem a Jesus Cristo, na qualidade de escra-
vos de amor, pelas mãos de Maria. E, após a comunhão, recitarão a
fórmula de sua Consagração. Devem escrevê-la ou fazê-la escrever,
se não estiver impressa, e assiná-la no mesmo dia em que a fizerem.
Convirá que, nesse dia, paguem algum tributo a Jesus Cristo e à sua
santa Mãe, seja para penitência de sua infidelidade passada às pro-
messas de seu batismo, seja para declarar sua dependência do domí-
nio de Jesus e de Maria...” (V. D., n. 231-232.)

CONSAGRAÇÃOD E SI MESMO
A JESUS CRISTO, A SABEDORIA ENCARNADA
PELAS MÃOS DE MARIA

A homenagem a Jesus
Ó Sabedoria eterna e encarnada! Ó amável e adorável Jesus, ver-
dadeiro Deus e verdadeiro homem, Filho único do Pai eterno e de
Maria sempre Virgem!

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


283
Adoro-vos profundamente no seio e nos esplendores de vosso
Pai durante a eternidade, e no seio virginal de Maria, vossa digníssima
Mãe, no tempo de vossa encarnação.
Graças vos dou por vos terdes aniquilado, assumindo a forma de
escravo, para tirar-me da cruel escravidão do demônio. Eu vos louvo
e glorifico por terdes desejado vos submeter a Maria, vossa santa
Mãe, em todas as coisas, a fim de fazer de mim, por intermédio dela,
vosso fiel escravo.
Mas, ai de mim! Ingrato e infiel que sou, não guardei os votos e as
promessas que vos fiz tão solenemente em meu batismo; não cumpri
minhas obrigações; não mereço ser chamado vosso filho ou vosso
escravo; e, como não há nada em mim que não mereça vossa aversão
e vossa cólera, não ouso mais, por mim mesmo, aproximar-me de
vossa santa e augusta Majestade.
É por isso que recorro à intercessão e à misericórdia de vossa
santíssima Mãe, que me destes como Mediadora junto a vós; e é por
meio dela que espero obter de vós a contrição e o perdão de meus
pecados, a aquisição e a conservação da Sabedoria.

A homenagem a Maria
Eu vos saúdo, ó Maria imaculada, tabernáculo vivo da Divindade,
onde a Sabedoria eterna, oculta, quer ser adorada pelos anjos e pelos
homens.
Eu vos saúdo, ó Rainha do Céu e da terra, a cujo império tudo
está submetido, tudo o que existe abaixo de Deus.
Eu vos saúdo, ó Refúgio seguro dos pecadores, cuja misericórdia
nunca faltou a ninguém; atendei os desejos que tenho da divina Sabe-
doria, e recebei, para isto, os votos e as ofertas que minha humilde
condição vos apresenta.

284 J. M. Dayet
Renovação dos votos do batismo
Eu, N..., pecador infiel, renovo e ratifico hoje, entre vossas mãos,
os votos de meu batismo; renuncio para sempre a Satanás, às suas
seduções e às suas obras, e entrego-me inteiramente a Jesus Cristo, a
Sabedoria encarnada, para carregar minha cruz após ele todos os dias
de minha vida; e a fim de que eu lhe seja mais fiel do que fui até aqui:
Doação a Maria
Eu vos escolho hoje, ó Maria, na presença de toda a corte celes-
tial, como minha Mãe e Senhora. Eu vos entrego e consagro, na qua-
lidade de escravo, meu corpo e minha alma, meus bens interiores e
exteriores, e o valor mesmo de minhas boas ações passadas, presen-
tes e futuras, deixando-vos o inteiro e pleno direito de dispor de mim
e de tudo o que me pertence, sem exceção, segundo vossa vontade,
para a maior glória de Deus, nesta vida e na eternidade.

Oração final
Recebei, ó Virgem benigna, esta pequena oferta de minha escravi-
dão, em honra e união à submissão que a Sabedoria eterna desejou
ter de vossa maternidade; em homenagem ao poder que vós e vosso
Filho tendes sobre este pequeno verme e este miserável pecador; e
em ação de graças pelos privilégios com os quais a Santa Trindade
vos favoreceu. Declaro que desejo, doravante, como vosso verdadeiro
escravo, buscar vossa honra e obedecer-vos em todas as coisas.
Ó Mãe admirável! Apresentai-me ao vosso querido Filho na quali-
dade de escravo eterno, a fim de que, tendo-me resgatado por vosso
intermédio, por vosso intermédio me receba.
Ó Mãe de misericórdia! Dai-me a graça de obter a verdadeira Sabe-
doria de Deus, e de ser contado, por isto, entre aqueles que amais, que
ensinais, que conduzis, que alimentais e protegeis como vossos filhos
e vossos escravos.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


285
Ó Virgem fiel! Tornai-me em todas as coisas um discípulo tão per-
feito, imitador e escravo da Sabedoria encarnada, Jesus Cristo, vosso
Filho, que eu possa chegar, por vossa intercessão, e conforme o vosso
exemplo, à plenitude de sua idade sobre a terra e de sua glória nos
Céus. Assim seja.
_______________

O essencial será, agora, viver essa Consagração numa constante


dependência de Maria. Nossas meditações das três Semanas nos per-
mitiram entrever que intensa VIDA DE UNIÃO podia resultar dela.
Para favorecer seu desenvolvimento progressivo, São Luís Maria de
Montfort nos pede que realizemos todas as nossas ações POR Maria,
COM Maria, EM Maria e PARA Maria. O que significa:

Obedecer-lhe docilmente, visto que a escolhemos como nossa Mãe e Senhora.


Vê-la como nosso Modelo acessível.
Viver no seio dela, cada vez mais unidos a Jesus.
Alegrar-nos por servi-la em vista de seu Reino.

Caminho muito simples, acolhedor para todas as almas que dese-


jam percorrê-lo.
Como filhos e escravos de Maria, nosso primeiro cuidado deve
ser nos mostrar obedientes para seguir as inspirações, as graças atuais
que ela transmite à nossa alma como sopros do Alto. Não percebe-
mos esses sopros, desde o instante em que nos levantamos até o de
nos deitar? É a Virgem quem toma a dianteira em nossa vida espiri-
tual; quem nos solicita, conforme as circunstâncias do momento, que
a sigamos, obedeçamos, que nos deixemos conduzir, levar pelo movi-
mento que ela nos imprime; que não resistamos à sua influência de
graça, e que produzamos, assim, atos sobrenaturais, verdadeiramente
meritórios, dignos da recompensa eterna.
Montfort chama isto de se deixar conduzir pelo espírito de Maria,
que é – acrescenta ele – o Espírito Santo de Deus; porque a Virgem
nunca se deixou conduzir por seu próprio espírito, mas sempre pelo
Espírito de Deus; de modo que esse Espírito divino foi de tal modo

286 J. M. Dayet
Senhor em sua alma e nas faculdades de sua alma, que se tornou seu
próprio espírito. (V. D., n. 258.)
Doutrina tão bela, tão consoladora, visto que, obedecendo a
Maria, estamos certos de obedecer ao Espírito Santo. Seguindo as
inspirações de Maria, seguimos as inspirações do Espírito Santo.
Caminhamos na santidade, uma santidade que se torna mais doce
pela suavidade das influências da Virgem, como se a ação do Espírito
Santo se fizesse maternal ao passar por Maria, e, assim, mais prepa-
rada para nos comover e provocar nossa docilidade.
Obedecer às inspirações da graça sempre foi a marca da verda-
deira santidade, a marca dos verdadeiros filhos de Deus, segundo o
grande ensinamento do apóstolo São Paulo (Rom 8, 14), a que Mon-
tfort remete nesta passagem de seu Tratado: Qui Spiritu Dei aguntur, ii
sunt filii Dei. “Os que agem, os que são conduzidos pelo Espírito de
Deus, são filhos de Deus.” Da mesma forma, obedecer a Maria será
sempre nossa marca de verdadeiros filhos e escravos de Maria, que a
escolhemos como nossa Mãe e Senhora; logo, que estamos sob seu
influxo de graça, em sua dependência, sob sua direção; a fim de que
ela nos conduza no sentido de nossa doação total; a fim de nos deixar
conduzir POR ELA no sentido dessa doação total.
Para nos levar a essa obediência perfeita, Montfort indica dois meios,
sobre os quais nossa Preparação projetou grandemente sua luz: renunciar
a nós mesmos e nos abandonar. Renúncia a si, abandono a Maria.
Renúncia a si, no momento de começar uma ação. Renúncia ao
que percebemos vir de nossa natureza, buscando uma satisfação
oposta à graça. Quase sempre, com efeito, nesse momento, uma
voz em nós se faz ouvir, muito diferente da voz da Santa Virgem. Por
exemplo, na hora de nosso despertar matinal, a natureza encontrará
pretextos para prolongar o repouso da noite. Se renunciamos a escu-
tá-la, essa será nossa primeira vitória, nossa primeira obediência, nosso
primeiro mérito do dia. Se a seguimos, será a primeira derrota, seguida,
ai de mim!, por muitas outras. Não é essa renúncia a si que Nosso
Senhor exige, em primeiro lugar, de toda alma decidida a segui-lo no
caminho de seus preceitos ou de seus conselhos, e, com maior razão,
de sua dependência mariana? Caminhamos com o Evangelho, de pleno
acordo com as meditações de nossa primeira Semana.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


287
A essa renúncia, é preciso unir o abandono, que, aliás, facilita-a. Pois
não renunciamos a nós por nos renunciar, mas para nos entregar e nos
abandonar entre as mãos de Maria, iluminadora e condutora. Então, há
a alegria de uma alma vitoriosa, liberada de si mesma, aberta à graça,
em bela marcha rumo à vida de união.
“Importa, diz Montfort, nos colocarmos e nos deixarmos entre as mãos
virginais de Maria, como um instrumento entre as mãos do artesão”, com a
diferença de que somos instrumentos vivos, inteligentes, conscientes,
amorosamente dóceis a nos deixar manusear como ela desejar.
Para nos entregar assim, basta “uma olhadela do espírito, um
pequeno movimento da vontade”, ou uma palavra murmurada em
voz baixa: “Mãe, entrego-me a vós...”. E pouco importa que sinta-
mos ou não um prazer sensível nesse ato de união. A vontade ali se
encontra, isto é o essencial.
E que não temamos renovar, tão frequentemente quanto possível
durante o dia, a mesma completa oferta, o mesmo filial abandono;
pois não se deve interromper a corrente de graça. “Quanto mais o fizer-
mos, mais cedo nos santificaremos, mais cedo chegaremos à união a Jesus Cristo,
que segue sempre, necessariamente, a união a Maria.” (V. D., n. 259.)
_______________

A fórmula COM MARIA nos convida a ver a Virgem em cada


uma de nossas ações, para nos dedicar a imitá-la segundo nossa fra-
queza. Visto que nos colocamos entre suas mãos como instrumentos
dóceis, fixemos sobre ela o amoroso olhar de nossa alma. Não é ela
o Modelo completo de toda virtude e perfeição que o Espírito Santo
formou em uma pura criatura, isto é, em uma simples pessoa humana
como nós? Ela permanece, pois, ao mesmo tempo o Modelo ideal e
acessível, feito para os nossos olhos, sem perigo de cegá-los.
Que felicidade poder vê-la em nossas preces, trabalhos, sofri-
mentos! É preciso que, em cada ação, observemos como Maria a
realizou quando vivia sobre a terra, ou como a faria se estivesse agora
em nosso lugar. Sua vida, em suas diferentes etapas, decorreu no seio
de ocupações que são as nossas ou das quais somos diariamente tes-
temunhas. Basta, pois, colocá-la diante de nossos olhos, para segui-la
em seu crescimento espiritual jamais interrompido.

288 J. M. Dayet
Como na fórmula precedente, Montfort nos indica dois meios
muito eficazes: examinar e meditar sobre as grandes virtudes que Nossa
Senhora praticou durante sua vida. Examinar corresponde ao olhar
atual de nossa alma, o do momento presente. Meditar corresponderá
ao olhar habitual, o de nosso chamado interior em todo tempo.
O olhar atual tem como objeto a ação do momento em que esta-
mos. Retomemos o exemplo de nosso despertar. Ele se assemelha ao
de Maria? Lembra algo do de Maria? Observemo-la no Templo ou
em Nazaré nesse instante de seu despertar. Que impulso imediato
de sua alma no coração de seu Amado! A ele a oferta desse primeiro
instante de graça. A ele as primícias do novo dia. A ele o fervor de
amor desses minutos que marcam o tempo do mérito. “Ó minha
divina Mãe, ajudai-me a colocar em meu despertar algo do fervor do
vosso...”. Há algo melhor, pois, do que o despertar viril, o despertar
ao primeiro sinal. Há o despertar de uma alma que olhou, logo em
seguida, para Maria, e que se esforça por imitá-la. E isto é um pro-
gresso. Esse único exemplo nos faz compreender o movimento de
progresso da fórmula “Com Maria”. Erguemo-nos na luz.
Observemos também Maria em nossas outras ações: em nossa
oração, nossa missa, nossa comunhão; em nossas conversações e
relações com o próximo. Observemo-la e examinemo-la. Se formos
sinceros, ganharemos cada vez mais em humildade, por nos perce-
bermos muito distantes desse Modelo ideal. Ganharemos também
em emulação santa, em desejos de fazer melhor, visto que esse
Modelo permanece-nos acessível. Desejaremos nos aproximar do
recolhimento de Maria, de seu espírito de oração, de sua penetra-
ção no Santo Sacrifício, sua fome eucarística, sua atividade silenciosa
e ordenada, sua caridade fraterna, seu sentimento da presença de
Deus... Nossas ações se elevam, assim, progressivamente, e tendem
a se revestir da pureza, da beleza, da santidade das ações de Maria.
Estabelecemo-nos na virtude sólida.
Esse progresso se acentuará sempre, se somarmos ao olhar de
exame que visa a ação presente o olhar de meditação que terá como
objeto precisamente as “grandes virtudes” do Coração de Maria.
Montfort atribui-lhes esse qualificativo, “grandes”, porque a Virgem

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


289
as possui coroadas pelos dons do Espírito Santo, sempre em radiante
atividade em sua alma.
O melhor, aqui, será seguir os mistérios do Rosário, conciliando-os
com as festas que se sucedem ao longo do ano litúrgico. É fácil des-
cobrirmos em cada um deles a virtude que Nossa Senhora praticou de
maneira eminente. A grande vantagem dessa meditação será nos colo-
car em face, não da virtude abstrata ou petrificada em um livro, mas da
virtude viva e atraente, desabrochada na criatura mais amada de Deus.
Uma meditação como essa, transformada em hábito, não pode senão
convidar e estimular nossa alma a contínuos progressos; e esse movi-
mento progressivo é coisa capital, pois o que importa, espiritualmente,
não é a virtude considerada em conjunto, mas a virtude considerada
em detalhe e vivida em nossas ações de todos os dias.
Meditar e imitar cada uma das virtudes de Maria é o que Montfort
chama de “guardar os caminhos da Santa Virgem”, seguir suas pisadas,
avançar sobre seu caminho sempre ascendente. Ele afirma, servindo-se
de um texto dos Livros sapienciais (Prov 8, 32), que esse progresso com
Maria é a marca infalível de nossa predestinação: Beati qui custodiunt vias
meas. Bem-aventurados os que praticam as minhas virtudes e caminham
sobre as pisadas de minha vida com o auxílio da divina graça. (V. D.,
n. 200.) Mais fortemente ainda, como vimos no terceiro Dia de nossa
segunda Semana, ele faz o Espírito Santo dizer, desejando formar para si
eleitos, em colaboração com Maria: in electis meis mitte radices. (Eclo 24, 13.)
“Lançai, minha Amada e minha Esposa, as raízes de todas as vossas vir-
tudes em meus eleitos, a fim de que cresçam de virtude em virtude e de
graça em graça. Tanto me agradei em vós, quando vivíeis sobre a terra na
prática das mais sublimes virtudes, que desejo ainda vos encontrar sobre
a terra, sem deixar de estar no Céu. Reproduzi-vos, para isto, em meus
eleitos: que eu veja neles, com prazer, as raízes de vossa fé invencível,
de vossa humildade profunda, de vossa mortificação universal, de vossa
oração sublime, de vossa caridade ardente, de vossa esperança firme e de
todas as vossas virtudes.” (n. 34.)
A alma virtuosa se torna, então, como uma “cópia viva” da San-
tíssima Virgem. A expressão é ainda de nosso Santo. (n. 217.) A imi-
tação perseverante das virtudes de Maria imprime infalivelmente em

290 J. M. Dayet
nós sua imagem e semelhança. Nossa prática interior “com Maria”
produz plenamente seu efeito.
_______________

EM MARIA nos reserva as delícias da vida de união a Jesus. Por


mais misteriosa que possa parecer, à primeira vista, essa fórmula, ela
não nos pede senão uma coisa: tomar consciência de um fato exis-
tente, de uma realidade sobrenatural não suspeitada pela maioria, a
saber, que todos tiramos nossa vida divina do seio espiritual de Maria,
onde estamos cada vez mais unidos a Jesus.
Admirável mistério de graça! O Verbo, segunda Pessoa da Santa
Trindade, entrou em Maria na manhã da Anunciação, e, desde esse
dia, não deixa de viver nela como em seu paraíso terrestre. Vive nela,
não mais por seu corpo natural e físico, mas por seu Corpo espiritual
e místico. Pois Jesus, enquanto homem, saiu do seio de Maria depois
de nove meses de estadia. É o Mistério da Maternidade divina. Mas
Jesus, enquanto Salvador dos homens, Chefe ou Cabeça dos predes-
tinados, não saiu e não sairá do seio espiritual de Maria, enquanto
restar um predestinado sobre a terra. É o Mistério da Maternidade
espiritual, prolongamento da Encarnação. Ó Jesus, vivendo sempre
em Maria, para nos comunicar, nela, vossa vida divina; visto que
desejastes misericordiosamente que recebêssemos a vida de nossas
almas, como recebemos a de nosso corpo, no seio de uma mãe, no
seio de vossa Mãe, que se torna, assim, a nossa.
Montfort nos pede simplesmente que tomemos consciência dessa
realidade sobrenatural e que saboreemos esse mistério de união. Que
felicidade, diz ele, poder entrar e permanecer em Maria! (n. 262.)
Entrar seguindo Jesus, e nela permanecer unidos a Jesus. ENTRAR
primeiro em Maria de maneira consciente. Esta é uma graça particu-
lar a obter do Espírito Santo. Obtemo-la por meio de uma grande
fidelidade em fazer todas as nossas ações por Maria e com Maria, isto
é, em obediência às inspirações de Maria e imitando suas virtudes.
A alma fiel em realizar todas as suas ações “por Maria” torna-se,
entre suas mãos, inteiramente dependente, dócil e flexível. A Virgem
a possui, governa, conduz, move conforme sua vontade. Ela é sua

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


291
Mãe em plenitude, porque sua Soberana com toda liberdade de ação.
Além disso, a alma fiel em realizar todas as suas ações “com Maria”
se dedicou a reproduzir o Modelo virginal, apropriado à sua fraqueza.
Ei-la rica de virtudes sólidas, ativadas pelos dons do Espírito Santo.
Essa alma chegou, pois, à semelhança desejada. Consequentemente,
recebe “em Maria”, bebe em Maria a graça em maior abundância; a
graça, isto é, a própria vida de Jesus e de Jesus vivendo em Maria. Ela
percebe essa graça. Descobre que é em Maria que a recebe. Entra,
assim, de maneira consciente e amorosa, lá onde se encontra Jesus,
lá onde se compraz Jesus; e isso lhe traz alegria. Oh! Que felicidade
poder entrar em Maria, como consequência de nossa fidelidade em
depender dela e imitar suas virtudes!
A cada manhã, desde o instante do despertar, vemo-nos estar
imediatamente em Maria. Nosso primeiro pensamento nos leva a ela,
nosso coração a ela nos arrasta, todo nosso ser sobrenatural aspira
à sua graça. E assim também, oramos em Maria, comungamos em
Maria, trabalhamos em Maria; dirigimo-nos às nossas diferentes ocu-
pações, sem deixar esse interior encantado. São graças de união a
Jesus vivendo em Maria.
Montfort acrescenta: “Depois de termos, por nossa fidelidade, obtido essa
insigne graça (a entrada amorosa em Maria), é preciso HABITAR no belo
interior de Maria com prazer.” (n. 264.) Permanecer, habitar, estabele-
cer-se de maneira fixa e permanente, residir nela verdadeiramente; e
saborear a felicidade de estar ali, cada vez mais estreitamente unidos a
Jesus. Jesus ali se agradou, e ainda se agrada. Nenhuma outra morada
criada o atrai e cativa tanto. Ali, encontramo-lo, gozamos de sua inti-
midade, entregamo-nos às delícias da vida de união. É o verdadeiro
amor gracioso, é a alegria espiritual em seus níveis superiores. Esse
desabrochar de nosso ser é o sinal característico, a marca incontestá-
vel do contato vital e consciente com o Amado.
As expressões que Montfort acumula nessa parte de seu Tratado
são sua descrição mística. O seio virginal de Maria, diz ele, ser-nos-á
uma morada de repouso... uma morada de confiança... uma morada
de segurança contra nossos inimigos, o demônio, o mundo, o pecado;
enfim, será a morada de nossa transformação no Cristo Jesus, de
nossa adaptação a Jesus como seu membro semelhante, bem unido
e formando apenas um com ele. (n. 264.) Tal é a graça preciosa da

292 J. M. Dayet
união vital transformadora. A alma chega ao seu estado de perfeição
no Corpo místico. Atinge, ou fica a ponto de atingir sua idade per-
feita, a idade perfeita de sua vida de graça. Resta-lhe somente esperar
o dia de seu nascimento para a beatitude eterna.
_______________

Quanto à fórmula POR MARIA, ela coroa as três outras, assim


como, na doxologia do Cânone da missa, as palavras omnis honor et
gloria são o fechamento supremo para o per Ipsum, cum Ipso et in Ipso;
“por Cristo, com Cristo e em Cristo, que toda honra e toda glória vos
sejam dadas para sempre, ó Trindade santa”! Assim, desejamos dar
à Virgem, como em nosso fim próximo, toda honra e toda glória, na
felicidade de servi-la, com vistas a avançar seu Reino. Servir nossa
amada Soberana, estimar que é uma grande honra nos devotar por
ela, buscar seus interesses, procurar sua glória, promover seu Reino,
com a nobre ambição de nos aproximarmos o máximo possível des-
ses espíritos bem-aventurados que, no Céu, formam sua Corte.
No capítulo preliminar de seu Tratado, Montfort mostra-nos,
seguindo São Boaventura, todos os coros angélicos clamando inces-
santemente à sua Rainha: Sancta, Sancta, Sancta Maria... e oferecendo-lhe
milhões de vezes por dia a saudação Ave, Maria, prostrando-se diante
dela, e pedindo-lhe a graça de serem honrados com alguns de seus
mandamentos. Até São Miguel, acrescenta Montfort, com Santo Agos-
tinho, que, mesmo sendo o Príncipe de toda a Corte celestial, se mostra
o mais zeloso em dar-lhe e fazer dar-lhe toda sorte de honras. (n. 8.)
Desejando, assim, servir Maria como a servem os anjos, cuidare-
mos para aplicar, a cada um de nossos passos, a maior pureza de inten-
ção. Que não haja nenhum pensamento de interesse pessoal, nenhum
amor-próprio. Que tudo o que acontece, e tudo o que fazemos, e
tudo o que suportamos, seja para honra de Maria. A ela, o mérito
de nosso despertar fervoroso. A ela, nosso recolhimento da manhã.
A ela, a riqueza de nossa missa e de nossa comunhão. A ela, esse
trabalho que recomeça com sua alegria, ou sua dificuldade, ou sua
monotonia, e que constitui o dever cotidiano. A ela, para que ela seja
mais conhecida, mais amada, mais honrada, mais glorificada.

EXERCÍCIOS PREPARATÓRIOS PARA A CONSAGRAÇÃO DE SÃO LUÍS MARIA DE MONTFORT


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A essa pureza de intenção, acrescentaremos um grande espírito de
zelo, esforçando-nos por irradiar Maria o máximo possível ao nosso
redor. Seremos seus apóstolos pela prece, pelo sofrimento, pela
palavra ou pela pluma, pela ação missionária. “Devemos, recomenda
Montfort, começar e fazer grandes coisas por essa augusta Soberana.” (n.
265.) Ele falava por experiência. Quem foi, mais do que ele, o após-
tolo de Maria, seu sacerdote fervoroso? Quem mais lutou contra os
inimigos da Virgem, contra os abusos introduzidos em sua Devoção?
Quem estigmatizou, como ele, os falsos devotos de Maria? Quem,
sobretudo, ganhou mais escravos de amor para a Rainha dos cora-
ções? Sigamos seu exemplo. Por mais restrito que seja nosso campo
de apostolado, todos nós podemos colaborar com essa grande obra:
assegurar, apressar o triunfo universal do Cristo, propagando ao
nosso redor o Reino precursor de Maria. O tempo desse Reino bem
parece ser o nosso. “Quando virá, interrogava Montfort, esse maravilhoso
tempo em que a divina Maria será estabelecida como Senhora e Soberana nos
corações, para submetê-los plenamente ao império de seu grande e único Jesus?”. E
ele mesmo respondia: “Esse tempo só virá quando conhecermos e praticarmos
a devoção que ensino.” (n. 217.) Esse tempo chegou. Hoje, sua Consa-
gração é conhecida, praticada, vivida, amada por almas fervorosas no
mundo inteiro.
Saboreemos, pois, sempre mais, a felicidade de nosso pertenci-
mento à divina Mãe e Senhora, essa graça inestimável de nos saber-
mos, neste mundo, seu vivo domínio, e na maravilhosa obrigação de
frutificar para o seu interesse, para o seu Reino, pela honra de servi-la
e de glorificá-la.

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