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Cinco livros do

Modernismo brasileiro
José Paulo Paes

O presente texto foi especialmente escrito para uma história das literaturas
latino-americanas, planejada pela profª Ana Pizzarro sob os auspícios da Associação
Internacional de Literatura Comparada. A coordenação da parte brasileira da referida
história está a cargo dos profs. Alfredo Bosi, Antônio Candido e Roberto Schwarz.
Limitações de espaço, próprias de uma obra panorâmica dessa natureza, ajudam a explicar
o caráter esquemático do presente texto e a sua destinação a um público não estritamente
brasileiro, o predomínio nele do aspecto informativo sobre o interpretativo.

Na perspectiva de uma história da ilusões do grupo modernista de São


invenção de formas literárias, as Paulo é particularmente significativo
chamadas grandes obras do por vir de um dos seus primeiros e
Modernismo brasileiro, por meritórias mais bem dotados seguidores.
que possam ser, necessariamente Todavia, à luz de um projeto de
aparecem como algo tardias e/ou cultura brasileira que começa a se
epigonais em relação às do seu esboçar já no século XVI, a
epicentro francês, aquele "umbigo do atualidade e a pertinência das
mundo", a que se referia Paulo Prado principais obras do movimento de 22
no prefácio do Pau-brasil. Os treze passam a primeiro plano, fazendo
anos que separam a realização da recuar para os fundos de quadro, por
Semana de Arte Moderna de 1922 do secundária, a questão de sua dívida
lançamento do manifesto futurista de para com modelos ou antecedentes
1909, ponto de partida da longa série europeus. Talvez se possa ver, como
de proclamações vanguardeiras das teorização pioneira desse até então
três primeiras décadas do século, informulado projeto de cultura
mostram não ter sido assim tão brasileira, a "lei da obnubilação"
instantânea quanto pretendia Antônio formulada por Araripe Júnior num dos
de Alcântara Machado a repercussão, aditamentos à sua biografía de
no Brasil, do "movimento reacionário Gregorio de Matos (1893). Lei que
europeu". Por outro lado, uma vista consistiria em o colono arribado à
de olhos ao índice de nomes citados América portuguesa ter de alijar a sua
por Mário de Andrade na sua súmula "bagagem de homem civilizado" e se
da poética de 22, A Escrava que não é animalizar, "descendo a escala do
Isaura, dá logo a perceber tampouco progresso psicológico" — isto é,
terem sido "independentes entre si" revertendo ao estado de barbárie,—a
os movimentos desencadeados pela fim de poder "concorrer com os
"mesma ânsia de renovação" artística, primitivos íncolas"2, mais bem
tanto "na Europa quanto nas duas adaptados do que ele ao habitat
Américas". As frases entre aspas são selvagem. Outra instância do mesmo
ainda de Alcântara Machado, cujo esforço de teorização aflora na
testemunho acerca das idéias e das barbarização empática que, através de

1
MACHADO, A.A. Cavaquinho e saxofone (solos), 1926-1935. Rio de Janeiro, José
Olympic, 1940. p. 306.
2
COUTINHO, A. ed. Obra crítica de Araripe Júnior. Rio de Janeiro, Casa de Rui
Barbosa, 1960. v. II, p. 479.
uma citação de Taine, se propõe voga: em 1918 Paris ouvia a execução
Euclides da Cunha logo à entrada de de dois poemas tupis musicados para
Os Sertões. Na noção tainiana do vozes femininas e batidas de mãos por
"narrador sincero" empenhado em Darius Milhaud, o mesmo Milhaud
"sentir como bárbaro, entre os responsável pela partitura de
bárbaros" (para pôr em vernáculo o L'Homme et son désir, texto teatral de
que Euclides deixou em francês, sem Paul Claudel ambientado na floresta
se dar muita conta da incongruência amazônica e encenado em 1921 pelo
desse respeito tão pouco bárbaro pela Balé Sueco4. Convém ainda não
letra do texto alheio), encontrava ele o esquecer as estreitas ligações dos
paradigma do seu próprio esforço de, modernistas de São Paulo com Blaise
para além das deformações da sua Cendrars, cuja Anthologie Nègre de
ideologia positivista, discernir a 1918 foi um dos marcos do
verdadeira semântica social de neoprimitivismo literário, a que ele
Canudos. não deixou de incorporar o exótico
Obnubilação, barbarização — outros brasileiro através de poemas e textos
tantos nomes para aquele processo de em prosa sobre as experiências de
mestiçagem ou sincretismo que, num suas viagens ao País.
vislumbre de rara lucidez, Sílvio Entretanto, ao aderir de corpo e alma
Romero enxergou como básico na à voga do primitivo, os vanguardistas
formação não só da gente mas de 22 não estavam apenas copiando
principalmente da cultura brasileira. mais uma moda européia. Estavam era
Com os modernistas de 22, o conceito tentando descobrir a identidade
de mestiçagem cultural chegaria ao brasileira por um processo de
grau máximo de lucidez, retomada cultural, que Oswald de
transformando-se inclusive em Andrade explicitou no Manifesto
bandeira de luta, isso desde o antropófago: "Sem nós a Europa não
Manifesto da poesia pau-brasil de teria sequer a sua pobre declaração
1924, com a sua ênfase no "bárbaro e dos direitos do homem". Referia-se
nosso", até o Manifesto antropófago ele obviamente ao mito do bom
de 1928, onde o "bárbaro tecnizado selvagem inspirado pelo índio
de Keyserling"3 é dado como ponto americano a Montaigne e Rousseau e
de chegada da Revolução Caraiba. que o neoprimitivismo se encarregou
Nessa promoção culta da barbárie, foi de pôr outra vez em circulação.
decisivo o impulso aqui recebido da Antônio Cândido acentuou a
moda primitivista que assolou a legitimidade dessa retomada ao
Europa a partir do começo do século e observar que "no Brasil, as culturas
que se veiculou nos seus movimentos primitivas se misturam à vida
Entretanto, ao aderir artísticos de vanguarda. Na gênese do cotidiana ou são reminiscências ainda
de corpo e alma à voga cubismo, a escultura da África negra vivas de um passado recente", pelo
do primitivo, os teve, como se sabe, importância que as "terríveis ousadias" sugeridas
vanguardistas de 22 comparável à da lição geometrizante a artistas plásticos como Picasso e
não estavam apenas de Cézanne. A poesia primitiva Brancusi ou a poetas como Max Jacob
copiando mais uma africana, por sua vez, transitou dos e Tristan Tzara pelas deformações
moda européia.
Estavam era tentando expressionistas alemães para os e/ou simplificações expressivas da
descobrir a identidade dadaístas de Zurique que, nas noitadas arte primitiva são "mais coerentes
brasileira por um do Cabaré Voltaire, se compraziam com a nossa herança cultural do que
processo de retomada em declamá-la ao som de tambores. O com a deles"5. Primitivo era então um
cultural... Brasil não ficou esquecido nessa rótulo muito amplo. Abrangia não

3
ANDRADE, O. Manifesto da poesia pau-brasil. Manifesto antropófago. In: — .Do
pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio, Civilização Brasileira/MEC, 1972.
(manifestos, teses de concurso e ensaios). A "Falação" de Pau-brasil é uma versão
resumida e modificada do Manifesto da poesia pau-brasil; nas citações que se seguem,
ambas as versões são utilizadas.
4
Apud Serge Fauchereau, La revolution cubiste. Paris, Denoel, 1982. p. 91.
5
CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo,
Nacional, 1965. p. 145.
apenas culturas tradicionais já extintas inverso ao dos seus modelos
como a etrusca, a egípcia e a da estrangeiros. Por ter como motivação
Grécia pré-clássica, ou ainda vivas, o fastio, quando não a desistência dos
como as da África negra, da Oceania valores da civilização ocidental, o
e das Américas, mas também a cultura primitivismo das vanguardas
popular contemporânea, especialmente européias punha à mostra o seu
as expressões de arte naive tão caras caráter de fuga ao familiar rumo do
aos cubistas, fossem os quadros do exótico. O dos modernistas brasileiros
Douanier Rousseau ou os espetáculos de 22 significava, ao contrário, a
de circo, a música de café-concerto ou busca das raízes remotas, e
o romance-folhetim, a cuja leitura supostamente mais autênticas, de sua
Apollinaire, aficcionado de Fantomas, própria cultura. Daí que a regressão
reputava "uma ocupação poética do que eles gostosamente empreendiam
mais alto interesse"6. O primitivo, em verso e prosa fosse menos a uma
outrossim, se aproximava da criança infância individual do que a uma
na medida em que com ela partilhava infância nacional. Antes de evocar no
da mesma mentalidade pré-lógica, Primeiro Caderno do Aluno de
categoria de base da antropologia de Poesias, de 1927, a sua meninice
Lévy-Brühl bem conhecida de Mário e paulistana, Oswald de Andrade
de Oswald de Andrade. A revisitara antes, em Pau-brasil, de
infantilidade é, reconhecidamente, um 1925, a infância histórica de sua
dos traços da arte moderna. No pátria com a "alegria da ignorância
dadaísmo, por exemplo, Renato que descobre"8. Também a pletora de
Poggioli discerniu uma "intransigente adivinhas, frases-feitas, parlendas e
puerilidade, um extremo trava-línguas do folclore infantil
infantilismo"7; a seu ver, a exaltação usada por Mário de Andrade em
da espontaneidade infantil, Macunaíma para narrar as andanças
característica de boa parte da arte de do seu herói-síntese ecoa-lhe,
vanguarda, aponta para uma regressão isomorficamente, a matreirice de
psicológica ligada de perto à relação moleque, primeiro das trilhas do mato,
conflituosa entre filhos e pais. depois das ruas de São Paulo.
Relação que o choque de gerações O remonte às origens históricas da
próprio da dinâmica da história nacionalidade, ao momento mítico do
literária vai constituir em dialética, ao encontro do índio com o europeu,
passadismo dos pais ou antecessores eqüivalia a um banho lustral para a
opondo-se ao vanguardismo dos filhos recuperação daquele "estado de
ou sucessores. Dessa síndrome inocência" do primitivo e da criança
regressiva da vanguarda são que um dos incisos do Manifesto da
componentes essenciais o gosto pela poesia pau-brasil de 1924 aproximava
arte como jogo ou brincadeira, donde do estado de graça. Como toda
contestá-la pela sátira e a paródia à inocência a posteriori, a do
seriedade da arte acadêmica, tanto primitivismo modernista tinha o
quanto a nostalgia da inocência ou sentido crítico de uma redução
pureza da infância, a que busca fenomenológica. Sentido aliás
remontar pela recusa da discernível desde o indianismo
má-consciência que considera neoclássico, onde a ingenuidade do
inseparável da lógica e da moral iroquês de Voltaire pode ser vista
burguesas. como uma espécie de estratagema
eidético para desmascaramento de
Curioso observar que, no Modernismo embustes ideológicos, tanto quanto o
brasileiro, a volta ao primitivo e ao era, no indianismo romântico, a
infantil configurava um itinerário contraposição da nobreza moral do

6
FAUCHEREAU, op. cit., p. 107.
7
POGGIOLI, R. The theory of the avant-garde. Trad. G. Fitzgerald. Cambridge, Mass.,
Harvard University Press, 1968. p. 62. Ver também p. 35 e 107.
8
ANDRADE, O. Falação. In: CAMPOS, H. org. e introd. Poesias reunidas O. Andrade.
São Paulo, Difel, 1966. p.68.
selvagem à amoralidade utilitária de exploradas pelo cubismo europeu, os
seus colonizadores. Assim também, primitivistas brasileiros deram o
chegados ao presente depois de sua melhor de si ao renovar radicalmente
viagem de ida e volta ao Cabralismo, o código literário. Voltando as costas
puderam os modernistas de São Paulo, à erudição e à gramática, foram buscar
com a "alegria da ignorância que no melting pot da cultura popular do
descobre", iniciar a crítica da herança campo e da cidade a língua "sem
colonial que ainda lhes embargava o erudição", a língua "natural e
passo à altura de 1922. Então, nas neológica" que, forjada pela
comemorações do primeiro centenário "contribuição milionária de todos os
da independência política do Brasil, a erros", veio enfim amalgamar sem
retórica cívica, pela sua própria fissuras o "como falamos" ao "como
vacuidade, pôs bem à mostra o atraso somos" e dar voz própria ao homem
material e cultural em que vegetava o brasileiro. No domínio da língua, foi
País. Voltado, porém, mais para o sem dúvida com o Modernismo que a
estético do que para o político ou o literatura brasileira conquistou em
social (e o esquematismo da definitivo a sua autonomia.
hermenêutica histórico-sociológica do Para concluir a dialética das
Retrato do Brasil, de Paulo Prado, vanguardas, que pedem sempre ao
antes parece confirmar do que passado remoto o aval das inovações
desmentir pela exceção um pendor com que contestam o passado
generalizado), o grupo de 22 só se imediato, alcança explicar
ocupou das mazelas culturais satisfatoriamente o paradoxo de os
decorrentes dessa incômoda herança. primitivistas de 22, tão nostálgicos
Empenhou-se em denunciar-lhe a dos tempos cabralinos, terem não
bacharelice, o "lado doutor" da obstante os olhos voltados para o
pedagogia jesuíta continuado pelas futuro. Tanto assim que, fazendo
faculdades de Direito, e o verbalismo tabula rasa do que ficou a meio
que lhe é congênito, o "falar difícil" caminho desses dois extremos-.Doo
da língua culta submissa à norma meio caminho do período colonial e
gramatical lusitana. Foi neste ponto do período que, embora se
que, espicaçados pelas naturais pretendesse já nacional, guardava
afinidades do primitivo com o popular tantos resquícios daquele —
propuseram-se eles a conjugar sem influência do unanimismo de
contradição a inocência da barbárie Verhaeren e Jules Remains,
reconquistada à sabedoria pragmática perceptível também em Há uma Gota
da tecnologia da modernidade para de Sangue em cada Poema... (1917),
poderem ser com isso os "brasileiros o livro de estréia do autor. No caso de
da nossa época"9. Paulicéia Desvairada, a influência
É de se esperar que esta brevíssima deles sofre uma refração que se faz
incursão pelos pressupostos do que se sentir, quando mais não seja, na
poderia chamar uma teoria do intromissão constante do Eu lírico
Modernismo de 22 tenha bastado para num tipo de discurso que, por aspirar
pôr em relevo quão grande foi a à expressão daqueles "sentimentos
refração sofrida pelas influências das unânimes"10 citados por Romains no
vanguardas européias, ao passarem título do seu artigo-manifesto de
pelo prisma de um projeto 1905, refugia do pessoal. Sendo
obnubilador ou antropofagia) de Verhaeren e Remains poetas da fase
cultura brasileira que, ao menos intervalar entre o fim do Simbolismo e
virtualmente, era anterior à revolução o advento das vanguardas, não
modernista. Cumpre ter sempre em estranha que, ao escolher um verso do
mente o grau dessa refração para se primeiro para epigrafar o "Prefácio
poder estimar no seu justo valor o interessantíssimo" de Paulicéia
contributo das principais obras Desvairada, Mário de Andrade se
geradas pelo movimento. Ao limitar a desculpasse ali de "estar tão atrasado
cinco o número das que irão ser aqui dos movimentos artísticos atuais". De
discutidas, atentou-se sobretudo no fato, em comparação com o atualizado
seu caráter de abridoras de caminhos elenco de autores modernisticamente
novos, caminhos que obras posteriores canônicos citados em A Escrava que
dos mesmos ou de outros autores, não é Isaura, os trazidos à colação no
ainda que de mérito comparável, só prefácio de Paulicéia Desvairada,
fizeram alargar. onde Marinetti e Cocteau ainda se
acotovelam ecleticamente com Victor
II Hugo e Bilac, mostram que a
Em Paulicéia Desvairada (1922), de modernice dele estava em processo de
Mário de Andrade, cronologicamente formação.
o primeiro livro modernista publicado Escrito em parágrafos curtos, de
no Brasil, a refração naturalizadora se linguagem incisiva, como convém à
confina ainda ao domínio do dos manifestos, o "Prefácio
personalismo, sem chegar a apontar interessantíssimo" era uma espécie de
para um projeto comum. A propósito ata de fundação do Desvairismo,
desse livro, costuma-se falar da escola ou movimento cujo âmbito de

9
As expressões entre aspas, ao longo de todo este parágrafo, são do "Manifesto da
poesia pau-brasil" (Oswald de Andrade, op. cit., nota 3). A última delas pertence ao
seguinte trecho: "Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem compreensão de apoio. Sem
pesquisa etimológica. Sem ontologia". Estas idéias, que serão retomadas por Oswald de
Andrade no Manifesto antropófago sob a fórmula do "bárbaro tecnizado de
Keyserling" e desenvolvidas amplamente em "A crise da filosofia messiânica" (Do
pau-brasil à antropofagia e às utopias, op. cit., nota 3), têm a ver com o conflito filhos x
pai subjacente à psicologia das vanguardas. No Modernismo brasileiro de 22, o conflito
assume conotação própria: a superação da polaridade bacharel x patriarca apontada por
Luís Martins na geração abolicionista-republicana pela polaridade engenheiro x
bacharel característica da geração que assistiu à (e participou da) industrialização do
País. "Engenheiros em vez de jurisconsultos" é o que significativamente reclama o
Manifesto da poesia pau-brasil.
10
No "Prefácio interessantíssimo" de Paulicéia desvairada (in: ANDRADE, M. Poesias
completas. São Paulo, Martins, 1955. p. 21), o poeta fala expressamente em "alma
coletiva".
atuação se esgotou ali. Para justificar O desvario da linguagem inovadora
o título do livro e o nome da escola a do poeta paralelizava o desvario da
que servia de ilustração prática, vida trepidante da metrópole por ele
explicava o poeta: "Quando sinto a celebrada. Mediante o uso sistemático
impulsão lírica escrevo sem pensar do que, no "Prefácio
tudo o que o meu inconsciente me interessantíssimo", ele chamava de
grita". Não é difícil perceber nisto o "verso harmônico" e "polifonia
magistério do automatismo psíquico poética"—um verso formado de
iniciado pelos dadaístas e palavras futuristicamente em
sistematizado depois pelos liberdade, sem ligação gramatical
surrealistas, assim como o culto entre si, a vibrarem no seu
literário do desvario—alegorizada por insulamento como a harmonia de um
uma maiúscula simbolista, "minha acorde irresoluto; uma polifonia
Loucura" será a musa do poeta ao verbal conseguida pela superposição
longo do livro — tem possivelmente de frases soltas, as mais das vezes
algo a ver com as sete "chansons de elípticas por escamoteamento do
fou" da primeira parte de Les Villes verbo — tentava ele suscitar o mesmo
tentaculaires de Verhaeren, efeito de simultaneidade do "tumulto
confessadamente o autor de cabeceira desordenado das muitas idéias" a se
de Mário de Andrade no ano em que atropelarem no cérebro num momento
compôs Paulicéia Desvairadas11. Ao de especial comoção. Para dar conta
apresentar-se "como louco" no de tal comoção e do tumulto interior
"Prefácio interessantíssimo", o poeta por ela engendrado, abusava o poeta
aceitava por antecipação o rótulo inclusive de notações gráficas como
depreciativo que lhe seria pespegado as reticências e o ponto de
pelos filisteus. A eles haveria por exclamação, de uso extensivo já entre
certo de parecer adoidada e os simbolistas. Só que, em Paulicéia
incompreensível a "ordem imprevista Desvairada, as reticências visavam a
das comoções, das associações de dar força de ressonância à palavra em
imagens, de contactos exteriores" si, liberta das sujeições sintáticas,
que, para poder cantar o "seu enquanto o ponto de exclamação era a
inconsciente", Mário de Andrade imagem icônica de uma subjetividade
registrava nos seus versos, tão teatral a admirar-se de suas próprias
discrepantes de tudo quanto havia visões e introvisões.
sido feito até ali na poesia brasileira, A simetria, desde o nível de uma
ainda que parecessem tímidos em teoria da composição, entre a
comparação com os primeiros poemas tumultuosa interioridade do poeta e a
dadaístas. Tivera ele um antegosto da não menos tumultuosa exterioridade
reação filistina quando do escândalo da sua Paulicéia anuncia-se no verso
provocado pelo aparecimento, em de abertura do primeiro poema do
1921, do artigo de Oswald de livro:
Andrade "O meu poeta futurista", no
qual era reproduzido um dos poemas São Paulo! comoção da minha vida...
de Paulicéia Desvairada. O "Prefácio Trata-se, contudo, de uma simetria
interessantíssimo" faz referência aos dialética, inscrita mais na ordem da
inconvenientes pessoais trazidos a polaridade de contrários que do
Mário de Andrade por esse escândalo, alinhamento de semelhanças. Se, pelo
e a virulência com que, em peças que dão a entender poemas de efusão
como "Ode ao burguês", "A caçada", lírica como "Inspiração", "Paisagem
O desvario da "Colloque sentimental" e "As nºl ou "Tristura", é de amor a
linguagem inovadora enfibraturas do Ipiranga" é versada a relação entre o poeta e a cidade,
do poeta paralelizava o oposição entre artista e burguês,
desvario da vida outros poemas como "Os cortejos",
trepidante da revela tratar-se menos da exploração "A escalada" ou "Ode ao burguês"
metrópole por ele de um topos da arte de vanguarda que mostram a dose de rancor subjacente a
celebrada. de um desabafo de ordem íntima. tal efusão. O tema da metrópole

11 Cf. M. Bandeira, org. e pref. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio,
Simões, 1958. p. 293.
moderna aparece em Paulicéia admonitório, incita-se a escalar após
Desvairada com o mesmo sentido que ter-se livrado dos "fardos" de seus
tem na poesia de Baudelaire e escrúpulos idealistas ("Estes mil
Reverdy, onde, segundo Mortimer quilos de crença") para,
Guiney, é "símbolo da matéria fria, Hermes-Pança, poder chegar ele
estática e indiferente, criada pelo também ao "sol sonante" dos
homem na sua tentativa de estabelecer plutócratas. Em "Tietê", o rio da
uma ponte entre si e o mundo exterior outrora aventura bandeirante aparece
(...) do insucesso da humanidade ante degradado em mero local de
o problema da incompatibilidade entre competições de natação: o advérbio
espírito e matéria"12. Essa relação "esperiamente", no segundo verso,
problemática é marcada, na estilística deriva do nome de um clube esportivo
de inovação de Paulicéia Desvairada, então freqüentado por imigrantes
pela freqüência com que advérbios e enricados ou descendentes deles, a
infinitivos são substantivados pela julgar pelos dois versos em italiano na
anteposição de artigo: "os sempres", última estrofe.
"os aplaudirás", "os tambéns", "os A imagem da Paulicéia, como espaço
muito-ao-longes", "nos jamais" etc. de opulencia financeira e refinamento
Aponta semelhante recurso para uma mundano, iterativa em "Rua de São
espécie de reificação da circunstância, Bento", "O domador", "A caçada",
indicativa de um malogro do Eu em "Paisagem nº 2", condensa-se no
avir-se com ela, de um desencontro refrão "— Futilidade, civilização" que
entre a magnitude do desejo e a escala fecha cada uma das quatro estrofes de
do possível. Outrossim, o fato de a "Domingo", com o seu staccato de
substantivação se fazer sempre no notações coloquiais compondo um
plural envolve a idéia de fatal e quadro sarcasticamente descritivo. O
desalentadora repetitividade, além de mesmo registro sarcástico, que chega
evidentemente contrastar com a à virulência política em "O rebanho"
singularidade do Eu: na gramática e "Ode ao burguês", pervaga de
poética do livro, a primeira pessoa do começo a fim "As enfibraturas do
singular e suas marcas, pronomes e Ipiranga", o texto mais ambicioso do
flexões verbais, corporificam a livro. Nesse "oratório profano", os
inferioridade do poeta, ao passo que a vários estratos da sociedade paulistana
terceira do plural é a máscara da — escritores e artistas acadêmicos,
cidade e de seus mandatários: milionários e burgueses, operariado e
Paulicéia - a grande boca de ml dentes. gente pobre — alternam coralmente
suas vozes com as das Juvenilidades
A essa pessoa múltipla, ou "alma Auriverdes, ou seja, o grupo
coletiva", diz respeito a pluralização modernista, e da Minha Loucura,
constante de substantivos quase figuração simbólica da
sempre abstratos por via dos quais, ao individualidade do poeta. Lançando
mesmo tempo em que mapeia os seus mão de recursos como a monotonia
dilemas interiores, vai o poeta das rimas repetitivas ou o contraste
desenhando o perfil moral da sua entre fórmulas prosaicas e metáforas
desvairada Paulicéia. Perfil de cunho alambicadas, "As enfibraturas do
fortemente crítico nos poemas que Ipiranga" compilam um catálogo de
tematizam o conflito entre os valores chavões do senso comum, da
antagônicos do Eu e do Eles. É o caso patriotada e do academismo, de par
de "A escalada", cuja metáfora de com certos cacoetes do próprio
base, a cidade como um "morro de idioleto modernista, para fazer ouvir
ambições", se prolonga na do calvário em plenitude o registro paródico que
("crucificações da honra") que o será a marca de fábrica do
poeta, falando consigo mesmo numa Modernismo brasileiro em sua fase
segunda pessoa de tom ironicamente heróica.

12
GUINEY, M. Cubisme et littérature. Genebra, Georg & Cie S.A., 1972. p. 81.
O caráter coral do último poema de mansões de Higienópolis. O que
Paulicéia Desvairada, discrepante do importa, acima de tudo, é a
personalismo da maior parte dos que o diversidade dos resultados literários
antecedem, aponta já para um projeto das ditas equações e o alargamento
transpessoal, de grupo. Em pólo assim trazido ao espectro da expressão
oposto, "Colloque sentimental" nos modernista.
dá a expressão mais reveladora da
dialética do amor: rancor próprio do III
subjetivo de Paulicéia Desvairada,
assim como a de amorihumor o será Conquanto o famoso epigrama
do visual de Pau-brasil. Na mesma "amor: humor" só vá aparecer no
linha do "Noturno" do Cambuci, cuja Primeiro Caderno do Aluno de
condição de bairro popular é conotada Poesias Oswald de Andrade (1927) —
pelo grito do vendedor de batata o qual, não obstante o título, é na
assada e pelo violão do "mulato cor realidade o segundo livro de poemas
de oiro", a condição aristocrática de do autor—ele já preside
Higienópolis nos anos 20 ressalta dos implicitamente a poética de Pau-brasil
flagrantes ora descritivos ora alusivos (1925). Não tanto a teorizada nos
com que "Colloque sentimental" lhe versículos de "Falação", variante
fixa, em meio à noite paulistana, o condensada do Manifesto pau-brasil,
brilho das mansões com, lá dentro, as como a dedutível dos poemas que a
casacas de seus condes e os ombros ela se seguem. A extremada concisão
nus, o rouge pecaminoso e adulterino desses poemas levou Paulo Prado, no
de suas grandes damas. Há uma prefácio do livro, a chamar-lhes
ostensiva nota de crítica social nesses "comprimidos, minutos de poesia",
flagrantes—como o "rio de lágrimas" glosando assim, talvez sem o saber,
proletárias escorrendo de sob as um dito de Tristan Tzara, que falou
portas das mansões —, mas ela não em "comprimido de linguagem"13 ao
obsta a que o elocutor do poema, referir-se ao lugar comum usado pelos
identificado pelo "eu" elíptico do poetas cubistas com propósito
primeiro verso, confesse no mesmo semelhante ao das colagens da
tom expiatório de "Religião", poema segunda fase, a fase sintética, da
que se segue imediatamente a pintura cubista. O magistério do
"Colloque sentimental", sua cubismo literário e pictórico é de resto
invencível atração por aquelas perceptível em Pau-brasil, não mais,
"Babilônias dos [seus] desejos mais porém, do que o alto grau de
baixos" que, embora sentindo-se inventividade demonstrado pelo seu
excluído, ele culposamente percorre autor no aproveitar-lhe as instigações
com os "pés chagados nos espinhos para fundar uma "poética da
das calçadas". Não vem ao caso radicalidade"14 com justeza ali
apontar eventuais nexos de simetria apontada por Haroldo de Campos.
das equações amonrancor e Para se ter a medida dessa
amor: humor com as diferenças do radicalidade, é ilustrativo cotejar os
status social dos autores de Paulicéia poemas brasileiros de Feuilles de
Desvairada e Pau-brasil à altura em route, de Blaise Cendrars15, com
que escreviam esses livros inaugurais. peças de temas semelhantes de
Nem explicar por aí eventuais atitudes Pau-brasil. Nestas, muito mais que
de estranhamento ou à-vontade em naqueles, a redução ao mínimo dos
relação ao apoio recebido pelo grupo nexos gramaticais, a constante elipse
de 22 do patriciado paulista, que do verbo, os deslocamentos
tantas vezes o acolheu em suas qualificativos e os jogos

13
FAUCHEREAU, op. cit., p. 138.
14
CAMPOS, H. org. Poesias reunidas ... op. cit., (ver introdução).
15
Cotejo ainda mais ilustrativo se feito com base na tradução desses poemas para o
português realizada por Teresa Thiériot que consta em: Blaise Cendrars, Etc... etc...
(um livro 100% brasileiro). São Paulo, Perspectiva, 1976.
paronomásicos e alusivos não só vem de nova ) quer em verso (o
dinamizam a elocução como a fazem poético é o contrário do prosaico).
distanciar-se do lógico rumo ao Daí que, ao privilegiar o lugar comum
analógico. e ao tematizar o cotidiano, a poesia de
Além de estimular-lhe a capacidade de Pau-brasil se colocasse
fixar em linhas rápidas de caricatura o deliberadamente no campo da
essencial do que pretendia antiliteratura. Poder-se-ia inclusive
representar, a síntese cubista abriu os considerá-la, historicamente, o avesso
olhos do poeta de Pau-brasil para o da dicção parnasiano-simbolista, onde
espetáculo do cotidiano. linguagem e tema elevados eram de
"Escapulário", a peça de abertura do praxe e de rigor. Mas por sob a
livro, vale como uma espécie de sua negatividade paródica de Pau-brasil
divisa ou programa: corre um permanente fio de
positividade: humor é amor. Ao
No Pão de Açúcar voltar-se para o cenário cotidiano, o
De Cada Dia poeta não quer vê-lo com os olhos da
Dai-nos Senhor rotina. Propõe-se antes vê-lo com os
A Poesia olhos novos da "ignorância que
De Cada dia descobre", mesmo porque "a poesia é
a descoberta/das coisas que eu nunca
Aí estão in nuce alguns dos principais vi", lição por ele aprendida do seu
artigos de fé da arte poética filho de dez anos, conforme está dito
oswaldiana. A paródia do texto num dos poemas do livro, 3 de maio.
litúrgico é visualmente sublinhada Ver o já-visto como nunca-visto
pelo uso de maiúsculas de reverência, equivale a inverter radicalmente as
sendo que, em nível semântico, o jogo regras do jogo, fazendo do cotidiano o
alusivo convida a ler o virtual por sob espaço da novidade e do literário o
o literal: a poesia de cada dia é espaço da rotina ou convenção.
também o pão de cada dia. Não o pão
tout court que mata a fome, mas o pão O enternecimento irônico
de massa mais fina que, além de (amor: humor) com que o poeta se
matá-la, lisonjeia o paladar: mais bem compraz em rever o dia-a-dia para
se percebe a ironia desta revitalizar-lhe os estereótipos é típico
complementação do utilitário pelo da ignorância ou inocência assumida a
hedonístico ou estético quando se posteriori. Nela, à surpresa infantil
pensa na virtude da frugal idade tão com o nunca-visto, subjaz a
encarecida nos textos de edificação má-consciência adulta do já-visto,
religiosa. Todavia, o fundamental é a donde a sua ironia ou duplicidade de
paródia ser acionada pelo visão. Ela dá sinal de si em "História
aproveitamento de um lugar comum
da geografia turística nacional que,
em outro poema do mesmo livro,
"Noite no rio", assume também
caráter litúrgico pela sua homologia
de contornos com o manto triangular
da Virgem tal como representada na
iconografia: "O Pão de Açúcar/É
Nossa Senhora da Aparecida/Coroada
de luzes".

O lugar comum é a pedra de toque do


cotidiano por cristalizar-lhe, numa
fórmula ready-made, a consubstancial
mesmice ou falta de novidade: a vida
de todos os dias como repetição,
rotina. Situa-se ela, portanto, nos
antípodas da literatura, a qual tem
antes a ver com a novidade da matéria
ou expressão, quer em prosa (novela
do Brasil", a primeira das nove da fidelidade com que é registrada em
secções temáticas em que se divide "Carnaval" e "O ginásio", por
Pau-brasil. Ali, trechos de prosa de exemplo, a linguagem a um só tempo
cronistas coloniais, Caminha, empolada e canhestra das
Gandavo, d'Abeville e outros, são proclamações dos ranchos cariocas e
dispostos em forma de versos a fim de dos volantes de propaganda de
melhor ressaltar o pitoresco do espetáculos populares como o do
deslumbramento pueril deles ante às "tenor boxeur Romão Gonçalves". É
singularidades e maravilhas do Novo ela ainda que explica a atração, do
Mundo. Esta utilização da técnica de mesmo poeta cosmopolita que em
colagem é sui generis por utilizar contrabando dirá trazer no coração
material historiográfico em vez de "Uma saudade feliz/de Paris", pela
material contemporâneo, os recortes simplicidade da vida nas cidadezinhas
de jornal, fragmentos de conversação, do interior de São Paulo e Minas
letras de canções etc., a que os poetas Gerais celebradas em "RP l" e
cubistas costumavam recorrer. Digna "Roteiro das Minas". Uma delas lhe
de nota, ainda, a recorrência de vai inspirar o admirável "ditirambo"
técnica semelhante em "Secretário dos ("Meu amor me ensinou a ser
amantes". O título dessa sexta secção simples/Como um largo de igreja") e
de Pau-brasil foi tirado das brochuras nos letreiros das modestas casas de
populares de modelos de cartas de comércio de outra "nova iguaçu",
amor, e os seis breves poemas que a enxergará ele alvíssaras do país sem
compõem podem ser vistos como uma pecados sonhado pela nostalgia dos
espécie de paródia das cantigas tempos idílicos do Cabralismo, assim
d'amigo: a elocução é de igual modo reverentemente grafado com
assumida pela mulher, mas a mistura maiúscula inicial na abertura de
coloquial de expressões de carinho "Falação". Na linguagem, nas festas e
com observações práticas ironiza em nos costumes da vida popular do seu
certa medida a sentimentalidade tempo o poeta reencontra o mesmo
costumeira do gênero. Neste caso, bárbaro nosso das origens cabralinas.
também, limitou-se Oswald de Pois este é o próprio genius loci a que
Andrade a dar forma de versos a devemos a originalidade nativa capaz
trechos de cartas que lhe foram de redimir-nos do pecado da adesão
escritas pela pintora Tarsila do acadêmica do Brasil doutor para que
Amaral, então sua mulher 16. possamos ser enfim os brasileiros de
Usada com freqüência ao longo do nossa época.
livro, a colagem, notadamente de É bem de ver que, em Pau-brasil, o
textos de anúncios, serve a fins de pendor primitivista e popularesco
sátira por assim dizer documental, já convive, sem contradição, com o culto
que, por cortejar o favor do público, o modernista do progresso. Culto que
reclame acaba por lhe revelar ressalta em alguns dos poemas de
obliquamente a psicologia e os "Lóide brasileiro", a última secção do
valores. Entretanto, quando se a vêm livro: no "canto de regresso à pátria",
com textos naifs, a sátira oswaldiana parodiando Gonçalves Dias, diz-nos o
deixa entrever uma indisfarçável poeta que deseja voltar para "o
ponta de enternecimento com a progresso de São Paulo", e em
ingenuidade popular. Foi o que, não "Recife", tanto ou mais do que as
sem lhe opor alguns reparos, assinalou relíquias históricas, encantam-no os
Mário de Andrade em Pau-brasil: "O. guindastes e chaminés da cidade,
de A. se aternurou sem crítica por "Baluarte do progresso". É menos
tudo o que é do povo"17. Esse insólita do que pode parecer esta
enternecimento paródico está por trás simbiose da barbárie e do

16
Cf. AMARAL, A. Tarsila—sua obra e seu tempo. São Paulo, Perspectiva, 1975. v. I,
p. 75.
17
Apud Telé Porto Ancona Lopez, Mário de Andrade: ramais e caminho. São Paulo,
Duas Cidades, 1972. p. 170.
primitivismo com o progresso e a "apresentação dos materiais" em
tecnologia. Aos olhos dos defensores estado bruto, no que se contrapunha,
mais ferrenhos da cultura dita de caso pensado, à poesia sua
humanística, a idolatria moderna da antecessora "emaranhada na cultura"
técnica sempre se afigurou, no fundo, e nos "cipós das metrificações"19. Já
a emergência de uma nova barbárie. E a prosa de arte das Memórias
se se tiver em mente que o Manifesto Sentimentais de João Miramar (1924)
da poesia pau-brasil se volta prazerosamente se entrega às
sobretudo contra a erudição e a "violências maravilhosas da cor",
bacharelice "humanísticas" de nossa conforme lhe está dito no prefácio, de
formação histórica, não fica difícil modo a não deixar dúvidas quanto à
entender o apreço de Oswald de sua primazia de iniciadora da
Andrade, no Manifesto antropófago, expressão modernista em nossa ficção.
pelo "bárbaro tecnizado de A justificativa desta dualidade de
Keyserling". posturas estilísticas talvez esteja na
Um último aspecto de Pau-brasil que circunstância de, como poeta, Oswald
não pode passar sem registro é a sua de Andrade ter estreado já modernista,
visualidade e, correlatamente, a sua enquanto Os Condenados, seu
impessoalidade, já que ali nos fala o primeiro romance, publicado embora
poeta menos de si que do mundo à sua no mesmo ano da Semana de Arte
volta. Isso mau grado ele se ter Moderna, é visivelmente um livro
proposto, em "Falação", uma pré-modernista. O "gongorismo
"perspectiva de outra ordem que a verbal da escrita"20 nele denunciado
visual". Referia-se, no caso, ao visual por Antônio Candido o define desde
meramente fotográfico da "argúcia logo como um produto típico do art
naturalista", em troca da qual aspirava nouveau literário.
à nova visualidade da "síntese" À adjetivação frondosa de quem, por
cubista. Esta, ele a soube realizar, focalizar a vida sob as lentes de um
pioneiramente e melhor do que patetismo à D'Annunzio, se esmerava
ninguém entre nós, por via da feliz em realçar-lhe operisticamente as
conjunção da paródia, da colagem e tintas, sucede a preocupação do
do lugar comum revitalizado, "a "estilo telegráfico e a metáfora
poesia de cada dia", no quadro de lancinante" anunciados desde o
uma poética deamor:humor. E o prefácio das Memórias Sentimentais
contraste entre a impessoalidade dela de João Miramar como fruto da
e o personalismo subjetivo de "nova revolução" em prol de "uma
Paulicéia Desvairada dá fé não língua modernista". Língua que,
apenas da amplitude do projeto distinguindo-se pela novidade desses
modernista em sentido estrito como recursos da tradição arte-novista,
das futuras aporias da nossa desta herdara contudo o mesmo
modernidade em sentido lato. impulso ornamental. Quando se fala
em ornamento, está-se implicitamente
falando em excesso ou
IV transbordamento do significante sobre
Quando se passa da poesia para o o significado, como se aquele se
romance de Oswald de Andrade, tornasse em certa medida
está-se passando de arte que busca independente deste. No caso de
esconder a sua mestria por trás de uma Miramar, tal relativa independência é
estudada simplicidade para arte que confirmada pelo fato de, após uma
timbra em alardear-se o tempo todo viagem a Paris onde travou
como tal, apontando um dedo enfático conhecimento mais íntimo com as
para a sua própria máscara18. novas modas artísticas, ter o
Asceticamente, a poesia pau-brasil romancista modernizado radicalmente
almejava ser uma simples o estilo de uma primeira versão mais

18
Expressão usada por Roland Barthes algures em O grau zero da escritura.
19
Frases de "Falação" em Pau-brasil... op. cit.
20
CÂNDIDO, A. Brigada Ligeira. São Paulo, Martins, s.d. p. 16.
conservadora do livro, datada de recursos de expressão podem ser
191721. Era como se, invertendo o vistos como manifestações mais ou
exemplo clássico que Paulo Prado menos gratuitas de ludismo poético,
invocava no prefácio de Pau-brasil, estes dois últimos estão intimamente
para expressamente desmenti-lo com a ligados à semântica do livro. O
novidade tanto de fundo quanto de telegráfico ecoa isomorficamente o
forma da poesia ali enfeixada, o seu tema da viagem, nele central, e da
autor, agora doublé de romancista, correlata dialética entre o Lá e o Cá
passasse a fazer versos novos sobre emblematizada no nome do seu
pensamentos antigos. protagonista, um Miramar de olhos
Não é assim tão descabido falar em sempre postos no mar de embarques,
versos a propósito de Miramar. Na nunca de desembarques. O neológico,
medida em que se distanciava do ideal por sua vez, articula a fala de um
de uma "prosa pura" sonhado por desejo que, na exasperada
Antônio de Alcântara Machado, multiplicação dos signos da modernice
incorria ele no equívoco da "prosa cosmopolita de Lá, busca uma
lírica" que o mesmo Alcântara compensação simbólica para o
Machado verberara como prosa que provincianismo da atrasada vida de
"não é prosa"22. Salta à vista tender Cá. Lá é evidentemente a Europa, a
o estilo de Miramar mais à França em particular, de onde o Brasil
exuberância lírica do que à importava então quase todos os
objetividade prosaica. Nele se refinamentos modernos, entre eles a
multiplicam as metáforas de impacto ânsia de uma liberdade sexual que
("o vento batia a madrugada como um Oswald de Andrade iria exprimir mais
marido"), as rimas e aliterações de uma vez nas suas inacabadas
consecutivas ("sapos sapeiam sapas memórias Um Homem sem Profissão
sopas"), as metonimias violentas (1954): "Tudo isso vinha confirmar a
("sons lestos de campainhas idéia de liberdade sexual que doirava
ancoraram o navio"), os oxímoros o meu sonho de viagem, longe da
("escada subia quedas"), as pátria estreita e mesquinha, daquele
onomatopéias semantizadas ("o grilo / ambiente doméstico onde tudo era
Triste tris-tris-triste"), os lances pecado. (...) Na Europa, o amor nunca
trocadilhescos ("bandos de bondes foi pecado. Não era preciso matar
iam para as bandas da Avenida"), os para possuir uma mulher. Não havia lá
deslocamentos qualificativos ("as sanções terríveis como aqui pelo
barbas alemãs de um médico"), as crime de adultério ou sedução. Enfim
alterações de regência verbal ("malta o que existia era uma vida sexual
escabriavam salas brancas"), as satisfatória, consciente e livre"24.
nominações grotescas ("Miss Piss", Não é descabido trazer à colação este
"Pindobaville")23. Mas o que texto autobiográfico para iluminar
particularmente se faz notar é o gosto aspectos do texto ficcional: um e
futurista do telegráfico e do outro coincidem repetidas vezes,
neológico, um manifesto na como mostrará qualquer leitura
Lá é evidentemente a
Europa, a França em sistemática omissão de conectivos comparativa de Um Homem sem
particular, de onde o gramaticais, em especial artigos, e o Profissão e Miramar. Neste, após
Brasil importava outro na freqüente verbalização de narrar a infância e adolescência do
então quase todos os adjetivos ou substantivos seu herói, demora-se o romancista em
refinamentos (norte-americanava, descrever-lhe a viagem pela Europa,
modernos... guardanapavam). Se aqueles outros de volta da qual Miramar desposa uma

21
Cf. AMARAL, A. op. cit., p. 77 e 99.
22
Cf. MACHADO, A. Cavaquinho e saxofone ... op. cit., p. 341.
23
ANDRADE, O. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1971. (Obras completas, 3ª ed., v. II).______. Serafim Ponte Grande. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. (Obras completas, 2ª ed., v. II).
24
ANDRADE, O. Um homem sem profissão: memórias e confissões. Rio de Janeiro,
José Olympic, 1954. p. 122. (lº v., 1890-1919, sob as ordens de mamãe).
prima rica, herdeira de fazendas de Do que há de bifronte nesse rosto
café. O restante do livro é consagrado histórico dá testemunho imediato, no
a pormenorizar-lhe as aventuras plano das homologias, o transbordo da
extraconjugais e boêmias em São modernice mais que futurista do estilo
Paulo, Santos e Rio, culminadas no de Miramar por sobre a
seu divórcio, a que se seguem as convencionalidade da sua matéria
mortes sucessivas da sogra e da ficcional, que faz lembrar a do
esposa. Este anticlimax faz da filha romance cosmopolita e fútil de
única de Miramar herdeira dos bens Morand, Dekobra ou Guido de
maternos e garante a ele a vida sem Verona. Com duas ressalvas: a de o
preocupações materiais de que o seu trabalho de linguagem de Miramar ser
hedonismo não podia abrir mão. muito mais avançado do ponto de
Combinado à similitude de títulos, a vista estético, e a de ter sido livro
menção do hedonismo traz à mente do escrito num diapasão satírico que não
leitor das Memórias Sentimentais de teme ir até o bufo. Estas ressalvas
João Miramar a lembrança das apontam, por sua vez, para duas
Memórias Póstumas de Brás Cubas direções diversas, identificadas no
daquele Machado de Assis que, ao mea culpa que Oswald de Andrade
lado de Euclides da Cunha, era tudo antepôs ao Serafim Ponte Grande
quanto, na literatura brasileira, como prefácio. Penitencia-se ele de,
interessava ao autor de Um Homem nesse romance e no Miramar, ter feito
sem Profissão, segundo ali literatura de vanguarda na ilusão
confessa25. A despeito das burguesa de "colocar a literatura
extremadas diferenças de tempo nova-rica da semicolônia ao lado dos
histórico e projeto criativo, há custosos surrealismos imperialistas".
algumas semelhanças entre os dois Mas reconhece, porém, no seu
livros. Em Brás Cubas talvez vanguardismo, "uma fonte sadia, o
aprendesse, Oswald de Andrade, a sarcasmo", que lhe permitiu servir "à
técnica dos capítulos curtos com burguesia sem nela crer". Com isso,
títulos as mais das vezes irônicos podia aliviadamente concluir, no
utilizada em Miramar, depois em mesmo prefácio, terem sido seus dois
Serafim Ponte Grande (1933). E tanto romances modernistas não apenas um
o herói machadiano quanto o "índice cretino, sentimental e
oswaldiano parecem ter sido talhados poético" das veleidades cosmopolitas
no mesmo pano para, cada qual à sua da burguesia cafeeira de São Paulo,
maneira, figurar o tipo do gozador mas também o seu "necrológio". Um
elegante e cínico que, num texto necrológio em grande estilo, ainda
autobiográfico, se distrai a fixar os que feito de vers nouveaux sur des
ridículos, pecados e fraquezas alheios, pensers antiques.
por eles obliquamente justificando
uma moral de interesse próprio. Brás
Cubas se dá ao trabalho de explicitar VI
as justificativas nas pachorrentas No "Prefácio interessantíssimo", cuja
reflexões a que naturalmente o publicação antecedeu de dois anos a
convida o seu eterno ócio de defunto do Manifesto da poesia pau-brasil,
sem mais nada por viver; as tropelias Mário de Andrade já caracterizava os
boêmias de João Miramar não lhe modernistas como os "primitivos de
deixam tempo livre para refletir sobre uma nova era". Mas fazia questão de
elas, só para vivê-las; tire quem quiser ressaltar que, ao escrever os poemas
a moral da fábula. Tirando-a, de Paulicéia Desvairada, buscara
percebe-se que aponta menos para as fugir do "primitivismo vesgo e
feições intemporais de um caráter à insincero" para só reter, das hipóteses
Teofrasto do que para o rosto acerca dos "primitivos das eras
histórico de um patriciado agrícola, passadas", aquilo que o pudesse levar
cujo cosmopolitismo bem viajado mal a uma "expressão mais humana e livre
lhe escondia a condição semicolonial. de arte". Seis anos depois, com a

25
Ibid., p. 119.
publicação de Macunaíma, parece ele no sentido de fantasia livre e
ter deixado definitivamente de parte exuberante sobre motivos folclóricos.
quaisquer reservas anteriores para As duas acepções são pertinentes. A
mergulhar fundo na voga primitivista. primeira é ilustrada, na linguagem do
Era o que dava a entender a livro, pela freqüência de enumerações,
circunstância de a figura do herói do refrões, frases rimadas ou aliterativas;
livro e grande parte das peripécias ali pelo aproveitamento sistemático de
narradas terem sido tomadas de locuções tradicionais e parlendas
empréstimo à mitologia ameríndia, a infantis; pelo recurso iterativo ao
par de o registro coloquial em que foi provérbio e à hipérbole; pelo
escrito estilizar a fala popular. à-vontade com que o mágico e o real
Macunaíma apareceu no mesmo ano se entremesclam. Tudo isso dentro do
em que Oswald de Andrade divulgava espírito lúdico de quem se encantasse
(maio de 1928) o seu Manifesto mais com o fluxo da própria fala do
antropófago. Mário de Andrade que com a coerência da exposição,
sublinhou, na época, tratar-se de mera espírito no qual se faz reconhecível
coincidência, visto a primeira versão um pendor retórico herdado pelo
do livro datar de 1926; o certo, no homem do povo de seus antepassados
entanto, é que ele respondia ao mesmo índios. Ao dar cidadania literária à
clima de idéias do manifesto, afora o fala popular, tentava Mário de
qual, aliás, Oswald de Andrade não Andrade, como ele próprio diz na
produziu nada de reconhecivelmente "Carta pras icamiabas" (cap. IX),
antropófago. Em matéria de criação transpor o fosso que separava o
literária, portanto, a Antropofagia se "brasileiro falado" do "português
limitou praticamente a Macunaíma e escrito". Por isso não há em
Cobra Norato, poema de Raul Bopp, Macunaíma a diferença de registro
só em 1931 recolhido em livro. elocucionário que havia na ficção
A designação de "rapsódia", regionalista, sua antecessora, entre
introduzida a partir da segunda edição personagem e narrador: este assume,
de Macunaíma, para definir-lhe a sem mais diferença de estatuto social,
forma narrativa, pode ser entendida, a voz e a persona daquele.
literariamente, no sentido de imitação Tampouco se percebem aqui os
do estilo de compor dos rapsodos ou propósitos de registro localista que
cantadores populares e, musicalmente, animavam o regionalismo. A fantasia
rapsódica combina agora livremente
entre si, na mesma tapeçaria de
deliberado desenho transregional,
motivos folclóricos provindos das
diversas regiões do País. Desse
transregionalismo dão prova, no nível
da efabulação (onde, por repetitivas,
assumem categoria de procedimento
formal), as correrias do herói e seus
perseguidores e/ou perseguidos por
todos os quadrantes do País, numa
movimentação cuja rapidez fabulosa
oblitera as distâncias de ordem quer
geográfica quer cultural. A
exuberância da fantasia rapsódica
ultrapassa livremente os limites da
paráfrase para invadir os da invenção:
o rol de episódios míticos tradicionais
é enriquecido de episódios novos, mas
consubstanciais deles, como se a
inventiva do escritor se folclorizasse
por contaminação. É o que avulta nos
lances em que usos e artefatos da vida
moderna são explicados por via mítica
(por exemplo, o caso da onça virada herói consegue recuperar a muiraquitã
em automóvel no cap. XIV), à e volta para o mato de onde viera.
maneira dos contos etiológicos. Dada Mas a sua tribo havia sido
a anterioridade temporal do texto de entrementes liquidada por uma
Macunaíma, sería descabido querer epidemia e seus dois irmãos também
ver em lances tais ilustrações não tardam a morrer. Solitário e
fabulares de postulados do Manifesto abúlico, Macunaíma já não tem
antropófago. Mas não há como fugir à interesse pelas coisas. Nova perda do
evidência de terem sido inspirados talismã por culpa do engodo de uma
pela mesma preocupação de uiara que o atraíra para dentro d'água
estabelecer o nexo de tira-lhe o último meio de devolver
consubstancialidade entre primitivo e algum sentido à sua vida, pelo que
atual que, para os modernistas de 22, ele, despedindo-se do mundo, ascende
se fazia o penhor de serem eles os ao céu e se transforma numa
verdadeiros "brasileiros de nossa constelação.
época".
Deste prisma, a transposição das Ao escolher para protagonista de sua
aventuras de um herói folclórico da rapsódia um herói folclórico cujo
longínqua Amazônia para as ruas nome significava "o grande malvado"
metropolitanas de São Paulo ganha e em cuja personalidade a soma dos
outro sentido que não o de mera defeitos sobrepujava bastante a das
exploração das possibilidades cômicas qualidades, Mário de Andrade não
do anacronismo. Como se sabe, Mário escondia um propósito de crítica que o
de Andrade foi buscar, às lendas subtítulo de "o herói sem nenhum
ameríndias colhidas pelo etnógrafo caráter" dado a ela só fazia realçar.
alemão Koch-Grünberg no norte do De começo, alegando tratar-se de um
Brasil e na Venezuela, o material de "livro de pura brincadeira",
base da sua rapsódia, que negou-lhe a condição de símbolo do
posteriormente enriqueceria com homo brasilicus nele vista por Tristão
elementos de outras numerosas fontes de Ataíde, um dos seus primeiros
e com matéria de sua própria resenhadores. Isso porque, no
invenção. O enredo de Macunaíma entender do autor de Macunaíma,
gira em torno da viagem empreendida símbolo implicava uma "totalidade
pelo herói epônimo e seus irmãos psicológica" de todo ausente do seu
Jiguê e Maanape, desde a beira do herói ou anti-herói, de quem tirara
Uraricoera, onde ele havia nascido e "propositalmente o lado bom do
onde se tornara imperador da brasileiro" a fim de poder torná-lo
Mata-Virgem, depois do seu uma "sátira"26. Enquanto símbolo
casamento com Ci, rainha das negativo, o protagonista de
amazonas, até São Paulo. O motivo da Macunaíma compendia os traços
viagem é encontrar a muiraquitã ou psicológicos essenciais que Paulo
talismã da felicidade que ele perdera e Prado (a quem o livro está dedicado)
que lhe fora presenteado por Ci antes recenseou em Retrato do Brasil como
de ela, inconformada com a morte de resultantes dos percalços da formação
seu filho com Macunaíma, subir para histórica da nacionalidade: a ambição
o céu e converter-se numa estrela. O da riqueza fácil, a lascívia sem freio,
talismã extraviado estava agora em o individualismo anárquico, a carência
poder do mascate Venceslau Pietro de espírito de cooperação, a
Pietra, avatar do gigante Piaimã. hipertrofia da imaginação, a
Depois de numerosas aventuras loquacidade, a facilidade de decorar,
picarescas por São Paulo e Rio, onde as alternativas de entusiasmo e apatia,
se passa o principal da narrativa, o a indolência, a melancolia difusa.

26
As citações entre aspas, de declarações de Mário de Andrade, foram colhidas nos
escólios de ordem crítica incluídas por Telê Porto Ancona López na 2ª e 3ª partes de
sua edição crítica de Macunaíma. Rio, LCT, (Biblioteca Universitária de Literatura
Brasileira). p. 265 e 336.
Traços eles todos negativos, próprios integrá-la na ordem humana do mítico.
de uma visão crítica do caráter e da E da superioridade desta sobre aquela
realidade nacionais que timbrava em é sinal seguro a facilidade com que,
distanciar-se o quanto pudesse da logo em seguida a essas reflexões,
ufania a que desde sempre se apegara Macunaíma consegue transformar
certo patriotismo tanto mais inócuo mágicamente seu irmão Jiguê numa
quanto acrítico. Se bem semelhante máquina-telefone a fim de ligar "Prós
catálogo de traços esteja longe de dar cabarés encomendando lagosta e
conta da personalidade contraditória e francesa". Não só alcança, pois, um
múltipla de Macunaíma—seria preciso domínio demiúrgico da máquina como
acrescentar-lhe no mínimo os traços a põe a serviço da satisfação imediata
conexos de esperteza, prazer de dos seus desejos, em vez de ficar à
mistificar e dom da improvisação — mercê do capricho dela, como os
são o bastante para destacar, na civilizados.
criação individual, o débito para com À primeira vista, este passo, e outros
um ideário de grupo. O lado menino
semelhantes, parecem indicar a
ou moleque do herói mário-andradino
recorrência, sob a forma de realização
inculca-lhe de pronto uma figuração
fictiva, do ideal do selvagem
da irreverência infanto-juvenil com
tecnizado de Keyserling que o
que as vanguardas costumam reptar a Manifesto antropófago propunha sob a
respeitabilidade do Establishment. forma de postulado. A suposição teria
No artigo em que recenseou a respaldá-la a reconhecida influência
Macunaíma quando do seu das idéias de Keyserling acerca do
lançamento em 1928, lembrava homem novo das Américas sobre o
Tristão de Ataíde, a propósito da pensamento de Mário de Andrade.
"Carta pras icamiabas", as Cartas Delas, porém, as que mais de perto
p e r s a s 2 7 . Mas isso de passagem, lhe interessaram foram as relativas à
sem se demorar no paralelo. significatividade da indolência
Desenvolvido, ele levaria tropical (donde o moto famoso de
necessariamente a uma similitude de Macunaíma: "Ai que preguiça") e da
funções entre as proezas de necessidade de sintonia entre o
Macunaíma em São Paulo, clímax da "Konnen" e o "Sein", entre
narrativa, e o confronto iluminista desenvolvimento material e
civilização x primitividade de que desenvolvimento espiritual29. Elas o
L'ingénu de Voltaire é o paradigma levaram a uma crítica da noção de
no terreno da prosa de ficção. progresso, principalmente
Também a gesta paulistana do herói tecnológico, em função da
do Uraricoera serve para pôr em incompatibilidade de valores entre
relevo mais a presteza com que ele se civilização européia e civilizações
integra no mundo tecnológico do que tropicais. A falta de caráter do
sua estranheza ante os prodígios dele. brasileiro, personificada por
Mal chegado à Paulicéia, ei-lo que Macunaíma, adviria da sua insistência
decifra, à luz do pensamento mítico, em fugir dos valores telúricos do
um mistério que o pensamento lógico trópico onde vive e em tentar
A falta de caráter do não conseguira nunca decifrar: "A adaptar-se, com isso se
brasileiro, Máquina era que matava os homens descaracterizando, aos valores de uma
personificada por porém os homens é que mandavam na civilização não-tropical como a
Macunaím a, adviria Máquina". Isso acontecia
da sua insistência em européia. Essa traição ao genius loci
fugir dos valores simplesmente porque eles "não tinham está alegoricamente representada em
telúricos do trópico feito dela uma Iara explicável mas dois episódios do livro. No
onde vive e em tentar apenas uma realidade do mundo"28. capítulo VIII, o herói, conquanto se
adaptar-se, com isso se Vale dizer: tinham-na deixado ficar na houvesse comprometido em desposar
descaracterizando... ordem desumana do real em vez de uma das filhas de Vei, figuração

27
Ibid., p. 338.
28
Id. ibid., p. 38.
29
LOPEZ, T.P.A. Mário de Andrade: ramais ... op. cit., p. 111-16.
mitológica do Sol, acaba se VI
enrabichando por uma varina, isto é, Antônio Alcântara Machado fez
uma portuguesa vendedora de peixe. parte do grupo da Revista de
E no capítulo XVIII, último do livro, Antropofagia, mas o seu compromisso
ele vence o receio da água fria para com a moda primitivista, pelo que
atirar-se nos braços da Uiara da lagoa: dele dão notícia os contos de Brás,
quando volta à margem, está todo Bexiga e Barra Funda (1927), parece
desfigurado. O significado de ambos ter sido sui generis. Talvez nem
os episódios foi explicado mais tarde conviesse falar de primitivismo no seu
por Mário de Andrade. No primeiro, caso, não fosse a circunstância de o
ao recusar "uma das filhas da luz", rótulo também se poder aplicar às
Macunaíma (e com ele o Brasil) manifestações mais ingênuas da vida
renegava o exemplo "das grandes popular contemporânea: como já se
civilizações tropicais, China, Índia, disse, ela tinha tanto interesse para os
Peru, México, Egito, filhas do calor" cubistas franceses quanto a dos povos
para se amulherar equivocadamente "selvagens" propriamente ditos. Ao
com "o Portugal que nos herdou os enfileirar os nomes dos três bairros
princípios cristãos-europeus". No pobres de São Paulo, onde se fixaram
outro episódio, Vei ou "a região os imigrantes italianos que não foram
quente solar" se vinga da traição para a lavoura de café ou dela
contra ela cometida fazendo "aparecer conseguiram alforriar-se, o título do
a uiara que destroça Macunaíma". E primeiro livro de contos de Alcântara
este não consegue realizar-se, Machado já punha de manifesto suas
"adquirir um caráter", pelo que, intenções, de resto confirmadas na
frustrado, "vai pro céu, viver 'o brilho dedicatória dele ao "triunfo dos novos
inútil das estrelas' "30. mamalucos", entre os quais estavam
Já não se está mais, como se vê, no incluídos os modernistas Menotti del
clima de otimismo utópico do segundo Picchia, Anita Malfatti e Victor
manifesto de Oswald de Andrade, Brecheret. Explicava o prefácio do
com a sua Revolução Caraíba livro que os novos mamalucos ou
promovida pelo bárbaro tecnizado "intalianinhos" resultavam do ulterior
que antropofagicamente aproveitaria, ingresso, na obra de miscigenação das
do progresso europeu, só a "três raças tristes" formadoras da
maquinaria, deixando-lhe de parte as nacionalidade brasileira, da nova raça
idéias e as outras paralisias. Dir-se-ia "alegre" vinda da Itália no bojo dos
que o desfecho melancólico da fábula transatlânticos modernos.
de Macunaíma, com o seu anticlimax
de derrota e desistência, leva em Alegria e modernidade eram
direção oposta. Configura antes o ingredientes canônicos do movimento
epitafio do sonho antropófago, a sua de 22, mas, a julgar pela
autocrítica antecipada, essa fábula do representação desfavorável do
índio dominador das máquinas da urbe imigrante italiano na prosa de ficção
industrial que, por não se encontrar de Oswald e Mário de Andrade, não o
mais a gosto nela nem na selva natal a era a simpatia para com os novos
que baldadamente regressa, desiste de mamalucos e seus maiores. Em
viver. No que lembra madame Miramar, o "intalianinho" Chelinini
Bovary, menos, herói sem nenhum acaba por se revelar um escroque que
caráter que é, a grandeza moral dela. ascende socialmente através de
E como a Antropofagia assinala o fim casamento de interesse com a sogra do
do ciclo histórico do Modernismo de protagonista; mais adiante, italianos
22, Macunaíma vale implicitamente enriquecidos no comércio e na
por um balanço das suas consecuções, indústria vão aparecer mancomunados
de que é uma das mais altas, tanto a agiotas "turcos" para, com
quanto de suas ilusões, a que serve de financiar-lhe a estroinice dos filhos ou
esplêndido mausoléu. genros-famílias como o próprio

30
ANDRADE, M. Macunaíma, op. cit., p. 325.
Miramar, levarem o patriciado O gosto da caricatura era
cafeeiro à ruína. Em Macunaíma, por indissociável do espírito de 22 e
sua vez, o ogre ou vilão Piaimã Alcântara Machado o cultivou
assume o nome e a personalidade do regularmente nos seus contos, nas
italiano Venceslau Pietro Pietra, crônicas de viagem de Pathé-Baby
regatão ou mascate dos rios (1926) e nos artigos de jornal
amazonenses que vem roubar a um postumamente reunidos em
filho da terra seu bem mais precioso, a Cavaquinho e Saxofone (1940). Num
muiraquitã da felicidade. desses artigos, importantes pelo que
dão a conhecer de suas opiniões
Nos contos de Alcântara Machado, os acerca da literatura e da vida, ele se
italianos e os "intalianinhos" são debruça sobre a arte de Voltolino,
vistos por outra ótica. A minuciosa caricaturista ligado ao grupo
atenção posta pelo contista no modernista. Ao analisá-la parece estar
falando de sua própria arte de
registrar-lhes os torneios de
contista, como quando observa que
expressão, o modo de vestir e de
Voltolino, por ter o "lápis desgracioso
comportar-se, os ambientes onde
(...) caricaturava melhor os
viviam e conviviam, as metas e
ambições que lhes norteavam a humildes", em especial os da colônia
ítalo-paulista a que pertencia e onde
conduta, revela por si só, para além da
escrupulosidade do simples repórter se travava a "luta surda (...) entre os
sem "partido nem ideal", que, no que para cá vieram enriquecer
prefácio do Brás, Bexiga e Barra trazendo no fundo da trouxa, entre
roupas remendadas e caçarolas
Funda, ele diz ser uma indisfarçável
furadas, todo o peso das tradições de
empatia de visão. Esta se voltava
sua raça, e os filhos que deles
menos para imigrantes bem sucedidos
nasceram aqui, livres dos preconceitos
como o cav. uff. Salvatore Melli, o
ancestrais, crescendo e se afirmando
industrial do conto "A sociedade", do
que para gente humilde como o garoto brasileiros em absoluta identidade
de rua de "Gaetaninho", a com o solo e com o meio"31.
costureirínha de "Carmela", o O lápis de caricaturista de Alcântara
cobrador de ônibus de "Tiro de guerra Machado era também desgracioso na
nº 35", o barbeiro de "Amor e medida em que fugia de caso pensado
sangue", a menina pobre de da sedução arte-novista do ornamento,
"Lisetta", o órfão matreiro de "Notas a que pela sua própria exuberância,
biográficas do novo deputado" e folclórico-coloquial num caso,
assim por diante. Não é argumento mais-do-que-futurista noutro, nem
contra a autenticidade da empatia de Macunaíma nem Miramar souberam
visão tais "aspectos da vida esquivar-se. Diferentemente deles, o
trabalhadeira" dos ítalo-brasileiros (a narrador de Brás, Bexiga e Barra
frase aspeada é ainda do prefácio do Funda cultivava a virtude da "secura
livro) terem sido observados sob a telegráfica" e a punha a serviço da
lente da caricatura, do outro lado da "obra literária de movimento"32 que
qual se poderia discernir, igualmente ele via confundir-se vantajosamente
deformado pelo vidro de aumento, o com a reportagem. Daí não temer
olhar de superioridade entre apresentar os seus contos como "um
compassiva e curiosa do paulista jornal" que se contentava em apenas
bem-nascido. O mesmo traço noticiar a vida: "Não comenta. Não
caricatural está presente nos contos de discute. Não aprofunda"33. Num
Laranja da China (1928), cujos outro artigo de Cavaquinho e
personagens nada têm de Saxofone Alcântara Machado opõe o
ítalo-paulistas, mas ostentam romancista ao repórter para tomar
sobrenomes lidimamente portugueses. decididamente o partido deste último:

31
MACHADO, A.A. Cavaquinho e saxofone ... op. cit., p. 250-51.
32
Ibid., p. 379.
33
Id. Brás, Bexiga e Barra Funda/Laranja da China. São Paulo, Martins, s.d. p. 31.
"O romancista está espiando para enriquecidos. Num dos artigos de
dentro, bem no fundo. A vida que Cavaquinho e Saxofone, ao mesmo
vive na luz é o repórter o único a tempo que reconhece esse contributo,
fixar. Fixar por um minuto"34. O Alcântara Machado cuida de
minuto de vida é fixado nos contos de sublinhar, não fosse paulista de
Brás, Bexiga e Barra Funda por uma primeira hora: "A mão de obra em
técnica de síntese que parece haver parte é estrangeira. A iniciativa porém
recrutado seus recursos na caricatura, tem sido sempre paulista. (...) Os
no jornalismo e no cinema. Da cueras somos nós paulistas. Basta
primeira vem a economia de traços atentar no nosso poder formidável de
com que o caráter de cada personagem absorção"35. O "triunfo dos novos
é esboçado; do segundo, a fatualidade mamalucos" marcava, pois, uma
do enfoque e a direitura do modo de vitória do genius loci que vinha
narrar; do último, a montagem da coroar o processo histórico brasileiro
efabulação em curtos blocos ou inaugurando-lhe a fase propriamente
tomadas descontínuos. A técnica século XX, quando ao caldeamente
narrativa de Alcântara Machado das três raças tristes se veio juntar a
deixaria inclusive uma marca alegria italiana. Era a liquidação da
indelével no conto brasileiro, melancolia índia, do banzo africano e
rastreável desde Marques Rebelo até da saudade lusa, trindade colonial em
Dalton Trevisan. que o busilis parece estar no segundo
membro. Isso porque, mesmo
Mas o essencial a destacar na citação recalcado, o ideal do
há pouco feita do texto sobre embranquecimento crescente do
Voltolino é a luta surda travada entre brasileiro parece ter sempre estado
o imigrante italiano e os subjacente ao sonho modernista:
"intalianinhos" dele aqui nascidos. Macunaíma nasce preto, mas assim
Não só porque ilustra outra instância que pode se torna branco. Estaria aí
do conflito filhos x pai, típico da arte uma das razões inconfessas da
de vanguarda em geral e do empatia de Alcântara Machado pelos
Modernismo de 22 em particular, novos mamalucos... brancos? É
como porque traz outra vez à baila o pergunta que permanece em aberto e
tópico da obnubilação ou quem se disponha algum dia a
barbarização, da mestiçagem ou fechá-la não poderá dispensar-se de
antropofagia cultural, que é o ponto ler, em Cavaquinho e Saxofone, os
de fuga de todo o projeto modernista. três artigos em que o autor anotou
Desse tópico, o último conto de Brás, suas entusiasmadas impressões da
Bexiga e Barra Funda constitui uma Argentina. Num deles,
boa ilustração: o barbeiro Zampinetti significativamente intitulado "Onde o
vai abandonando o seu antigo homem o é", ocorre esta passagem
chauvinismo italiano à medida que não menos significativa: "O branco
enriquece em São Paulo; termina por não quer se tisnar de negro nem de
ser cabo eleitoral do PRP e por se amarelo e repele, com indisfarçável
naturalizar brasileiro tão logo seu repugnância, convencido da sua
filho Bruno se forma em Direito. superioridade, a parte negra e mulata
da população brasileira. (...) Com
A imigração italiana assinalou, no sangue europeu do sul, do norte,
campo, o fim do trabalho escravo e, inclusive judeu, aqui se está formando
na cidade, o crescimento da indústria, uma raça de ombros largos, estatura
a que forneceu primeiro mão-de-obra alta, saudável, sólida, igualmente feita
e mais tarde alguns dos seus capitães para o trabalho e os chamados
na figura de imigrantes aqui prazeres da vida".
34
MACHADO, A.A. loc. cit.
35
Op. cit., p. 74.

José Paulo Paes é ensaísta, poeta, tradutor e professor-visitante do IEA no segundo


semestre de 1988.

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