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ESCRAVIDÃO

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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O artigo abertamente racista da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida em
1884
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“Entre o lixo e as moscas, estão à vontade” — Júlia Lopes de Almeida, sobre os
escravos de seu tempo.
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Tema: o artigo Os Criados, de Júlia Lopes de Almeida (1862, RJ — 1934, RJ), no
qual a contista, novelista e romancista, famosa em sua época, explicitava e justificava o
seu preconceito contra os escravos negros.
Publicação: A Província do Espírito Santo (Vitória, ES), 2 de setembro de 1884.
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Em 2 de setembro de 1884, o jornal A Província do Espírito Santo (Vitória, ES)
reproduziu um artigo da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida (1862, RJ — 1934,
RJ) intitulado Os Criados.
Menos de 4 anos separavam aquela data do dia da abolição da escravatura (13 de
maio de 1888). Ainda assim, embora a sociedade brasileira houvesse, afinal, se
conscientizado da brutalidade do instituto da escravidão, as noções de Júlia sobre os
escravos, expressas sem nenhum pudor no artigo, refletiam o pensamento de boa parte
da elite brasileira da época.
O artigo serviu de base a um capítulo do Livro das Noivas (1896), obra de Júlia
destinada a ensinar normas do bom comportamento às futuras esposas e
mães. Entretanto, o texto revisado para a obra eliminou boa parte das ideias
preconceituosas da escritora, presentes no artigo original, substituindo-as por uma visão
compassiva dos (agora) ex-escravos e das criadas.
Abaixo, um link para baixar a quarta edição da obra (1926). O artigo editado inicia-
se à página 127:
https://www.europeana.eu/pt/item/10501/bib_rnod_213036
Júlia Lopes de Almeida foi talvez a mais prolífica escritora brasileira do final do
século XIX e início do século XX, autora de 15 romances, além de novelas, contos,
peças teatrais, crônicas, livros didáticos e infantis, entre outras produções literárias.
É conhecida a relação infeliz da autora com a Academia Brasileira de Letras,
resultado que alguns poderiam atribuir, com sorriso irônico, a alguma forma de “carma”
ou retribuição do destino: a clássica situação de uma pessoa preconceituosa sendo alvo
de preconceito.
O nome de Júlia chegou a ser considerado pelos fundadores da ABL, todos homens,
para integrar o grupo inicial da Academia, mas o veto à participação de mulheres, então
vigente, foi contornado de modo constrangedor pela indicação do marido da autora, o
também escritor (bem menos talentoso) e português de nascimento Filinto de Almeida
(1857–1945) para ocupar a sua vaga.
A obra ficcional de Júlia Lopes mereceu reavaliação favorável na primeira década
deste século a partir da reedição dos romances A Família Medeiros (1891) e Pássaro
Tonto (publicação póstuma, em 1934), entre outras obras, pela Editora Mulheres.
Também na área acadêmica, estudos recentes ressaltaram aspectos positivos da obra da
escritora.
Para ler uma apresentação analítica da obra de Júlia, recomendo a série de artigos do
escritor Luiz Ruffato no jornal Rascunho, publicada em 2012. Ruffato é o principal
responsável pela divulgação da obra literária da autora, nos últimos anos.
http://rascunho.com.br/julia-1/
http://rascunho.com.br/julia-2/
http://rascunho.com.br/julia-3/
http://rascunho.com.br/julia-final/
Segue o texto do artigo publicado em 1884. Dispensa comentários.
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Os criados
Eu devia antes ter escrito “os servos”. “Criado” é uma denominação limitada,
particular, e “servo” não; mas “criado” é uma palavra mais alegre, mais simpática, foi a
primeira que se me escorregou da pena, e não vou riscá-la.
Infelizmente no Brasil eles, os criados, são raros: temos em seu lugar o escravo, essa
vergonha, e a casa brasileira não pode ser feliz enquanto ele existir, porque sejam quais
forem os meios, modos e maneiras por que o tratem, ele é sempre o que é — a mais
degradante, a mais baixa, a mais vil, a mais indigna coisa para viver no íntimo da
família.
A principal queixa de uma dona de casa baseia-se na serva. É a negra que não vê
senão o que se lhe põe diante dos olhos, que não ouve senão o que se lhe grita aos
ouvidos, que não pega senão no que se lhe deita nas mãos. É a negra que cumpre o seu
dever unicamente quando a branca anda a ditar-lhe o serviço e a esgoelar-se horas
inteiras, repetindo o que todos os dias diz.
A dona de casa confessa, queixosa, ter um trabalho duplo, e a escrava move-se
vagarosa, trombuda, diante desse aguilhão moral que a instiga a fazer o que não deseja,
o que não quer.
Quanto melhor se trata, pior servida si é; quando a negra não tem medo, estamos
mal! dizem as donas de casa.
Dolorosa coisa! De modo que, para se ser bem servida, é necessário ser-se
profundamente odiada!… porque não pode ser senão ódio o sentimento inspirado por
quem, para se fazer respeitada, faz-se temer avivando constantemente, no fundo do
espírito da serva, de modo claro, patente, distinto, palpável, essa coisa medonha — o
chicote, para que ela, ligeira, bem encarada, alegre, arrume, trate, zele, cuide de tudo
que conforta e aninha a dona.
Nem se aprofunda e avalia a imoralidade disto!
É raro o escravo que por si lave, escove, envernize. Demais [Além disso], eles
gostam da imundície, vivem bem nela, é como que o seu elemento. Entre o lixo e as
moscas, estão à vontade.
Uma vez vi duas negras, que enquanto os filhos, ranhosos e envoltos em baetas sujas,
berravam com toda a força a um canto, estavam sentadas de pernas estendidas ao sol a
descascar batatas, atirando as cascas para o chão!
Eis o supremo ideal da escrava, disse-me alguém.
Pergunto: não será esse amor à lama um sentimento correlativo à sua condição?
A pessoa que disser que o escravo é o melhor dos servos confessa ter o mais brutal
dos egoísmos. Sob o ponto de vista moral, eles não o podem, nem devem ser. Não
podem porque não têm asseio, nem por instinto, nem por educação, e todo o serviço
deve ter o asseio por base. Eu já não digo, porque isso seria uma utopia absurda, que se
deva desejar aqui o que nos descreve Ramalho Ortigão nas suas esplêndidas Notas,
falando do ménage [serviço doméstico] holandês; leem-se essas belas descrições e
entristece-se a gente, ao comparar ao interior das casas da Holanda o das nossas. Se
houvesse ao menos uma possibilidade de imitação… mas não, enquanto houver
escravos, não há.
O cativo não pode ser bom servo. Sem ambições e sem lutas pela vida, imersos numa
ignorância parva, céticos ou estúpidos, arrastam a existência como um pesado fardo na
mais estéril das indiferenças.
Vive-se para um fim. Quando o homem não tem uma aspiração que o reja, não anela
o futuro nem deseja doida e ardentemente fazer caminhar a todo o vapor para chegar ao
seu desejado termo, essa abençoada locomotiva: o trabalho.
O escravo não tem interesse em servir bem, senão pelo temor, mais nada.
O que não nos compete, com certeza, é o direito de nos queixarmos tanto deles; não
só porque a queixa recai muito sobre nós, como porque isso equivale a estranhar a gente
que de um torrão inculto, bruto, não nasça uma rosa, como a Pride of Walter, ou
admirar-nos que um terreno árido não nos dê água como a cristalina, fina, destilada gota
a gota da velha pedra de um rochedo antigo.
***
A criada… nova vida!
Deus meu, como é bom ter a gente uma criada boa!
Estamos muito mal-educadas para lidar com elas; ou impomos-lhe, ou pedimos-lhe.
Nem uma nem outra coisa serve.
O que é preciso é conservar sempre no mesmo nivel a nossa independência e a nossa
força moral.
Conheço senhores que têm feito experiencias de reformar os serventes domésticos;
dessa tentativa saem-se sempre mal. Quem se habituou a lidar com escravos tem muita
dificuldade em mandar criados; mas não é só isso, o caso é quererem ambos a um
tempo, coisa impossível.
Aqui, onde se dá a cada servo uma atribuição, o serviço é penoso; na Europa, onde
uma criada tem quase todas as obrigações de uma casa, ele é muito mais suave! Tudo é
do modo de fazer as coisas. O método, a ordem, o ensino, tudo deve ser regular,
perfeito.
Entre ama e criada é preciso haver uma ligação de muita simpatia, não há nada mais
grotesco e bárbaro do que pensar a gente em fazer-se bem servir pela inspiração do
medo.
O medo, necessariamente, acarreta o horror, e o horror a aversão. Eu por mim
confesso que antes queria passar por todos os trabalhos do que ser servida por tal preço.
***
Leitoras, estás em vésperas de casamento e és rica? Não ponhas escravas na tua casa.
Começa nova vida com gente nova.
Uma criada, sim; arranja uma criada sadia, robusta, e verás que diferença em tudo!
Ela, ela só, fará o que três negras de tua mãe não fazem; depois basta a consolação de
veres uma criatura muito mais asseada e alegre movendo-se expeditamente no
teu ménage [ambiente doméstico] com o cuidado carinhoso para tudo, dispensando-te
de muita, muita coisa. Com ela verás como o trabalho é presto, como ela escova bem o
teu fato [a tua roupa] e lava nitidamente os vidros das janelas e as bandeiras das portas;
como o assoalho é esfregado e limpo e como esmeradamente enxuga a fina porcelana
cor-de-rosa do teu bonito aparelho de jantar.
E além disso, sobretudo, verás diante de ti, em vez de uma criatura a quem a mais
iníqua e bárbara das leis fez [palavra ausente do texto] e que ao menos uma ou outra vez
ensombraria a doce claridade da tua lua de mel como uma nuvem triste de remorso,
verás em seu lugar uma mulher livre, a quem só a pobreza e a honestidade apontaram o
trabalho, não como uma imposição servil, mas como um dever ou como um meio
regenerador.
JÚLIA LOPES.
A Província do Espírito Santo (Vitória, ES), 2/9/1884, número 596, páginas 2
(última coluna) e 3 (primeira coluna).
http://memoria.bn.br/DocReader/301582/2378

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