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HISTÓRIAS COMPLETAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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1845 – Diálogos, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (1806-1863)

Dados básicos

Título original: Dialogos.

Autora: Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (1806-1863).

Nome da autora na obra: A. Eurydice Eufrosina da Barandas.

Gênero literário: Peça teatral de conversação.

Publicação: O Ramalhete ou Flores escolhidas no jardim da imaginação, Porto


Alegre (RS), 1845.

Importância histórica: O primeiro texto feminista de ficção escrito por uma


brasileira.

Atualização do texto: Sérgio Barcellos Ximenes.

Fonte da atualização: O Ramalhete, Hilda Agnes Hübner Flores, Editora Nova


Dimensão, EDIPUCRS, 1990.

As notas, inseridas no próprio texto, estão indicadas pelos colchetes: [...].

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Apresentação

Diálogos (1845), o primeiro texto feminista da ficção brasileira escrito por uma
mulher, tem por autora a gaúcha Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (1806-1863).
O Ramalhete, página 97, Hilda Agnes Hübner Flores, Editora Nova Dimensão,
EDIPUCRS, 1990.

A potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta, também autora de textos feministas, só


viria a publicar seu primeiro texto ficcional, Fany ou o Modelo das Donzelas em 1847,
disponível no OneDrive, subpasta Histórias Completas.

Eugênia ou a Filósofa Apaixonada (disponível na mesma subpasta) e Diálogos são


os dois mais importantes textos de Ana Eurídice, devido a seu pioneirismo nos
respectivos gêneros: o primeiro inaugurou a ficção brasileira escrita por mulheres, e o
segundo deu início à utilização, entre as mulheres, da obra de ficção para a defesa da
causa feminista.

Tomando-se como referência as duas obras de ficção em prosa disponíveis de Nísia


Floresta, o conto Fany ou o Modelo das Donzelas (1847) e o romance inacabado
Dedicação de uma Amiga (1850), é curioso perceber que Ana Eurídice, em Diálogos,
representa muito mais o feminismo moderno do que sua colega potiguar.
Isso porque Nísia Floresta advogava a participação da mulher na sociedade e
defendia a instrução das meninas, mas fincava suas propostas (revolucionárias para a
época, no Brasil) em um tripé que hoje seria repudiado pelas militantes: a religiosidade
católica, a absoluta ausência de vaidade na mulher e a mais estrita obediência aos pais.

Fany ou o Modelo das Donzelas (1847) e Dedicação de uma Amiga (1850) advogam
um modo de vida certamente opressivo aos olhos da mentalidade moderna.

Diálogos é um texto de explícita desobediência aos "mais velhos" da família e de


defesa da participação política da mulher nas questões nacionais, como se verá a seguir.
Nísia, por questões pessoais e talvez estratégicas, não ousou propostas tão avançadas
quanto as de Ana Eurídice, embora tenha sido, ao contrário da escritora gaúcha, uma
feminista teórica e prática, ao redigir tratados feministas e fundar escolas para a
educação feminina, entre outras iniciativas.

Uma observação a respeito da data registrada pela autora (8 de novembro de 1836).


Em termos acadêmicos, vale a data da publicação. Outros autores, como Ana Luísa de
Azevedo Castro e Joaquim Manuel de Macedo, alegaram ter escrito suas histórias bem
antes da publicação, o que implicaria alterações radicais na cronologia da ficção
brasileira caso fossem registrados esses anos, e não os do lançamento das obras.

Só é aceitável uma data anterior no caso de obra póstuma, como Noites na Taverna,
livro de contos de Álvares de Azevedo publicado em 1855, mas datado, para fins de
cronologia, de 1852, ano do falecimento do autor.

Vale lembrar que Diálogos não é o primeiro texto feminista da ficção nacional. Na
verdade, esta nasceu feminista: a primeira história do período relativo aos precursores
do romance brasileiro (1826-1843), Statira e Zoroastes (1826), escrita por Lucas José
de Alvarenga, é também a primeira utopia feminista da literatura nacional.

À semelhança de outro escritor do período 1826-1843, Ovídio Saraiva de Carvalho e


Silva, autor de Heroides de Olímpia e Herculano (1840), Ana Eurídice empregou o
diálogo (naquela obra, por meio de cartas) para criar um embate intelectual em que a
mulher sai vencedora. Há uma diferença de gênero literário, também: Heroides de
Olímpia e Herculano é uma novela epistolar; Diálogos é uma peça teatral de
conversação.

Outra observação importante. O texto inaugural da ficção escrita por mulheres, no


Brasil, ilustra bem uma das funções da literatura. Vivendo na época da Revolução
Farroupilha, em que os homens lutavam nos campos e as mulheres sofriam em seus
lares, Ana Eurídice encontrou feroz resistência ao tentar discutir sobre política com seus
familiares, tanto por sua posição política (a autora se opunha à Revolução e defendia as
forças do Império brasileiro), quanto por ser mulher.

"Principiaram os homens a gritar alta e poderosamente contra as pobres mulheres


(que não faziam mais que seguir o seu exemplo) que era muito malfeito o meterem-se
elas lá com suas políticas, e não sei o que mais."
Então...

"Era para ver o nosso embaraço! Foi quando escrevi os diálogos seguintes, para
desabafar."

Conseguir uma satisfação pessoal importante bloqueada na vida "real", por meio da
prática artística, foi, é e será fonte de obras meramente catárticas, mas também de obras
de alto valor cultural.

Um interessante trabalho de Ilze Zirbel intitulado As mulheres do Brasil ─ Tabela


ilustrativa de algumas de suas lutas e conquistas (1827-1970) traz o nome de Ana
Eurídice como a terceira feminista em nosso país. Reproduzindo:

1837

A gaúcha Ana Eurídice Eufrosina de Barandas escreve O ramalhete ou flores


escolhidas no jardim da imaginação, defendendo a participação das mulheres nos
debates políticos e passa a lutar pela igualdade entre os sexos, denunciando a opressão
masculina como causa dos defeitos femininos. (COS91, p.50; SOA80, p.127ss)

http://www.geocities.ws/izirbel/tabelamulheres.html

Por fim, uma comparação entre a visão de mundo de Ana Eurídice e a de Maria
Firmina dos Reis:

"[...] é o poder do mais forte, mas nunca levareis a palma de dominar as ações e
movimentos interiores de nossa alma" (Ana Eurídice em Diálogos, na voz da oprimida
Mariana).

"Oh! a mente! isso sim ninguém a pode escravizar!" (Maria Firmina dos Reis em
Úrsula, na voz do escravo Túlio).
DIÁLOGOS

DUAS PALAVRAS

Em 1837, depois da memorável reação de Porto Alegre [a retomada do controle da


cidade pelas tropas imperiais, após a expulsão dos farroupilhas], não se ouvia falar
senão em partidos, desordens, planos de ataques, de defesas, intrigas políticas etc. E de
tal maneira grassou a mania, que as mesmas senhoras e até as crianças já não sabiam
[conheciam] outro assunto para os seus entretenimentos.

Principiaram os homens a gritar alta e poderosamente contra as pobres mulheres (que


não faziam mais que seguir o seu exemplo) que era muito malfeito o meterem-se elas lá
com suas políticas, e não sei o que mais.

Todas nós demos o cavaco com isso [nos aborrecemos com a zombaria], pois que já
tínhamos perdido o tino [a atenção] às modas, aos arranjos domésticos: as línguas das
comadres já se haviam divergido [distanciado] um pouco da pele do próximo... Adeus
conversas. Era para ver o nosso embaraço! Foi quando escrevi os diálogos seguintes,
para desabafar.

Hoje que estou a sangue-frio, peço perdão aos senhores que ficarem com a testa
franzida quando os lerem, pois bem sabem que a razão se turva como a água, sendo
agitada pelas paixões (máxima do Marquês de Maricá [de número 934 no livro de
Máximas]).

O homem sábio e ilustrado não duvida [receia] abandonar suas opiniões, quando as
conhece [percebe como] defeituosas, e se lhe apresentam outras mais verídicas; porém,
o superficial insiste em não querer abandoná-las, porque as tem por infalíveis.

Mattos.

____________________

DIÁLOGOS

Huberto (pai), Mariana (filha) e Alfredo (primo).

Alfredo:

— Não gosto, minha prima, de ver-vos tão partidista: esses entusiasmos não são
próprios do vosso sexo. E se soubesses o quanto é ridículo em uma mulher o dissertar
em política, jamais ousaríeis abrir a boca para dizer uma só palavra a tal respeito.
Deixai-vos disso: uma senhora não deve adotar partido algum.

Huberto:

— Dizeis muito bem, Alfredo. Debalde [Inutilmente] tenho quebrado a cabeça com
esta rapariga, [para] que se não importe com estas coisas e que cuide de suas costuras e
no arranjo da casa, que só para isso foi feita a mulher... E o que é uma mulher? Eu
quisera que me dissessem o que é uma mulher nesta vida, para vir cá meter-se nos
nossos negócios...

Mariana:

— Muito satisfeito está meu pai em ter Alfredo da sua parte! E pode estar seguro que
não só terá Alfredo, como a maior parte dos homens. Todos sabem perguntar: O que é
uma mulher? Como se uma mulher fora uma coisa indefinida! É verdade que o vaidoso
orgulho dos homens não compreende como, arrogando tudo a si, não pode escapar ao
poderoso império que elas exercem sobre eles. Então vingam-se em mandar-nos para a
costura. Tenham paciência, meus senhores, também cansamos com tanto cozer, e
pedimos-lhes alguns momentos de folga.

Huberto:

― Que lhes parece?...

Alfredo:

― Tenham-nos embora, mas não os gastem só em política, que é agora mania de


todos! Será melhor que os aproveitassem nas suas obrigações, e...

Mariana:

— Muito bem, os homens igualmente têm obrigações a cuidar, e se cada um só


tratasse do que tinha a fazer, não veríamos hoje a nossa infeliz Pátria coberta de
assassinos, nem tantos horrores! As nossas lágrimas nunca foram poupadas!

Alfredo:

— Nada de choros! Ou então deixamos a conversa.

Huberto:

— Chorem elas à sua vontade, contanto que não se metam onde não as chamam.

Alfredo:

— É verdade. Não há maior disparate que ver uma senhora toda entusiasmada por
partido, a dar por paus e por pedras, como se a chave dos negócios estivesse nas suas
mãos! Ora, que um homem tome a peito essas coisas e que sacrifique tudo a bem da
Pátria, é louvável, mas uma senhora? Não sei para que fim!

Mariana:

— Sim, é muito louvável sacrificar interesses particulares ao bem comum: a Pátria


tem sagrados direitos ao nosso amor, e por isso merecerão sempre ser decantados e
apontados como os mais belos modelos de patriotismo um Catão [escritor e cônsul
romano], um Brutus [político e militar romano], um Aristides [estadista ateniense
cognominado o Justo] e outros muitos bem conhecidos na História. Mas dizei-me,
Alfredo: foi o bem da Pátria que acendeu o primeiro facho da discórdia nesta Província?
Não me é permitido entrar nesse conhecimento [tema], mas sempre direi que quando
esses senhores pensaram fazer esta desgraçada revolução, seus corações não estavam
cheios só desse sentimento: aí entrou mais alguma coisa, ou interesse ou vingança.

— Se o primeiro, foi muito mal entendido; se a segunda, foi ter uma alma danada. Se
eles quisessem falar a pura verdade, em lugar de dizerem lindas coisas para embalar o
povo incauto, diriam: Só por este meio posso subir a tal auge, adquirir tais riquezas;
sobretudo o meu amor-próprio se verá satisfeito, e o meu orgulho vingado de tais e tais,
que o têm atacado. Portanto, ajudai-me, vós outros levianos, nesta empresa. Vinde com
ferro e fogo, matai, destruí tudo, contanto que os meus desejos sejam preenchidos, não
importa o mais [o resto].

— Não são eles tolos para assim o dizerem, porque logo os mandariam para a casa
dos orates [loucos], mas douram a pílula e fazem-na ao paladar dos gulosos, que
sentindo o doce são capazes de engolir o maior veneno sem a menor reflexão, só porque
lhes sabe bem [agrada o paladar].

Alfredo:

— Ora, muito obrigado. Eu assento que quando um homem se dispõe a essas coisas,
é à força de um grande entusiasmo patriótico, ou bem ou mal entendido, e que talvez
nem de si se lembre.

Mariana:

— Bravo! Que desinteresse... Nada há de mais belo, seguramente, que um verdadeiro


patriotismo, mas é que quase sempre os maliciosos se servem desse lindo manto para
cobrirem seus malignos projetos, e como sabem que a política é a arma mais eficaz para
conseguir os seus fins, marcham por caminhos torcidos e ocultos para que os incautos,
vendo o abismo ao longe, não recuem a tempo de se salvarem, dando por terra com suas
aéreas esperanças.

Alfredo:

— Por desgraça, assim sucede muitas vezes! E temos presentemente o exemplo


debaixo dos nossos olhos. Mas que quereis? Os homens não são anjos; logo, estão
sujeitos a errar.

Mariana:

— Não, os homens nunca erram, isso neles tudo é virtude. Eles tiveram o cuidado de
fazer o seu Código bem ao seu paladar.

Huberto:
— Aqui está quando me falta a paciência! Rapariga, fala nos teus bordados, rendas,
costuras, e não te importes com essas coisas. Não vês como menoscabam as mulheres
que querem ser doutoras?

Mariana:

— Assim é, meu pai? Pois eu li não sei que autor que diz: Os homens são injustos, a
presença de uma mulher sábia ofende excessivamente o seu orgulho. E seguia-se: Tem
compaixão de sua fraqueza, e obra de sorte que, à força de modéstia, perdoem a tua
ciência. Que refinado egoísmo! Contudo, eu desejava sempre demonstrar a Alfredo que
nós, mulheres, não somos tão dignas de censura, como ele acaba de dizer, em seguirmos
este ou aquele partido, e que, assim como nos homens há motivos para adotar o que
melhor lhes parece, também em nós há razões bastantes que nos obrigam a fazer outro
tanto.

Alfredo:

— Não compreendo quais sejam essas razões. Há uma diferença imensa de uns a
outros.

Mariana:

— Estais enganado, meu primo: a diferença acha-se só na cor e na superfície (permiti


que assim me explique), o centro é todo o mesmo. Quando a um homem se apresentam
vários partidos, ele não os segue indiferentemente, mas, pesando-os lá no seu
entendimento, aquele que oferece maiores vantagens é o que ele abraça, embora
convenha ou não convenha à Pátria*.

Dos homens, bichos nas bulhas.

Ambição é sempre o tema:

Calculando-se o interesse,

Resolvido está o problema.

Luiz Raphael Soyé.

— Em vão a consciência lhe grita: Ah! homem inconsequente! Que cegueira é a tua?
Olhas só para o lado que mais favorece as tuas paixões e deslumbra-te o seu encanto!
... Não vês da outra parte o precipício tão perto? Treme, desgraçado, se te deixas
arrastar a ele!... Mas és surdo aos meus clamores... A ambição, o orgulho e a vingança
se apoderaram de teu coração! O sangue do teu próximo, injustamente derramado, a
inocência oprimida, as lágrimas do órfão, os lamentos da viúva, tudo para ti é nada! És
um monstro abominável! Teu coração está fechado a todo sentimento de humanidade.
Alfredo:

— Devagar, minha prima! A paixão também agora vos cega. Não faleis assim,
porque decerto os homens não te ficam muito afeiçoados.

Mariana:

— Embora [interjeição de indiferença]!... E não precisarão ouvir-me para estarem


convencidos das verdades: os remorsos com mais eloquência lhes falarão ao coração.

Huberto:

— Ora, deixem-se disso! Já muito me aborrece não ouvir falar senão em partidos, e
muito principalmente as senhoras mulheres, que estou vendo que hoje em dia nos
querem ditar leis!

Alfredo:

— Também sou do vosso parecer. E ainda estou no meu firme propósito, que é muito
grande disparate uma senhora mostrar predileção por partidos, seja ele qual for.

Mariana:

— Oh meu Deus!... Com razão falariam os homens se os incômodos, sustos,


desgostos, em uma palavra, tudo o que é desgraça fosse nesses casos só partilha deles, e
que nós, mulheres, tomando uma essência divina, ficássemos intactas a todos os males a
que é sujeita a humana natureza! Então poderíamos olhar indiferentemente para tudo e
dizer: Somos independentes: a nós nada nos pode incomodar, logo nada temos a temer;
lá se avenham [virem] os homens. Nesse caso, sim, e seria eu a primeira a arguí-las se
as visse tomar parte nessas coisas, e então seria bem-feito que eles, encrespando as
sobrancelhas, gritassem: Vão fiar, mulheres!

Alfredo (rindo-se):

— Decerto!...

Mariana:

— Riste, Alfredo? Pois só nessa suposição seria justo o dizer de meu pai, o vosso e
dos mais [demais]; fora disso, é a primeira injustiça, e sem razão que obrais para
conosco. Como se não tivéssemos uma vida a conservar, dores a sentir, angústias,
fomes, misérias, enfim, toda a casta de males a que os homens estão sujeitos! E demais
[além disso], a dependência em que eles muito cuidadosamente nos habituam, a nossa
natural fraqueza, a nossa mesma educação, tende muito para fazer-nos na alma maior
impressão os sentimentos morais, e por isso com mais facilidade amamos, [nos]
aborrecemos, desejamos, tememos etc.

Alfredo:
— Não há dúvida.

Mariana:

— Então para que condenais tão rigorosamente defeitos que procedem de causas
poderosíssimas? Basta, para justificar-nos, este prolóquio [esta máxima]: Todo vivente
se interessa pela sua própria conservação. Portanto, não se deve estranhar que uma
mulher abrace o que, no seu entendimento, se lhe figura [aparenta] mais vantajoso.

Alfredo:

— Parece-me que principiei por arguir-vos e acabei louvando-vos! Já me arrependo


de ter-vos lançado a luva! Estou quase dando razão às Senhoras... Que dizeis, meu tio?

Huberto:

— Homem! Nunca é bom dar razão às mulheres, digam elas lá o que disserem.

Alfredo:

— Isso não: deve-se dar razão a quem a tem, seja lá quem for. A minha prima tem-
me feito quase mudar de opinião, e se continua a dissertar sobre o mesmo assunto com
razões tão justas, serei obrigado, à força de persuasão, a confessar o meu erro e a gritar,
alto e em bom som: As mulheres têm razão!

Huberto:

— Oh! Oh! Oh! Pois sim! É pregar no deserto.

Mariana:

— É preciso, meu primo (visto que sois tão imparcial) que eu continue a justificar-
nos: quero ter o gosto de persuadir ao menos um homem! Trarei agora um exemplo
bastante forte para a justificação de algumas.

— Uma mulher que amasse Bento Gonçalves, por exemplo, e que este lhe retribuísse
igual afeto, ora, todos nós sabemos por experiência própria que nessas ocasiões a nossa
razão manqueja algum tanto, assim como também que costuma refletir do objeto amado
certo encanto, que embeleza a nossos olhos tudo que lhe diz respeito. Bento Gonçalves
adota o partido farroupilha lá pelos seus particulares interesses, e ela, que não tem uma
vontade própria, que o seu ídolo é o centro de todas as suas ações e que vê a sua
felicidade inerente ao bom êxito daquele partido, como poderá ser-lhe indiferente? Seu
coração adota-o por necessidade, sem mais nada ver nem examinar. Vítima de amor e
do receio, bem semelhante àquele que a força irresistível da tempestuosa borrasca fez
naufragar no meio do oceano, agita-se, braceja, ainda mesmo tendo a terrível convicção
que são impotentes todos os seus movimentos para salvar-lhe a vida: Ah: E quem não
lhe [a] perdoará? Ponha-se todo mundo no seu lugar, metam as mãos nas suas
consciências, e ninguém ousará incriminar essa mulher.
Alfredo:

— Que seja mil vezes absolvida! Quase desejei agora ser Bento Gonçalves! Ora, essa
mulher necessariamente há de ser uma farroupilha exaltada.

Mariana:

— Outro exemplo: sou casada, e meu marido defende a Legalidade; logo a mim se
apresenta a ideia que, se este partido for abaixo, ele será preso, desterrado ou morto,
talvez. Quantas coisas não tenho eu a temer? Desgostos, aflições, trabalhos, misérias,
vexames... Oh Deus! Que forças bastariam [seriam necessárias] para então não
sucumbir! Digam, digam ainda os homens injustos que não nos devemos importar com
coisa alguma! Mandem-nos para a costura com a impassibilidade no coração, quando
nas garras da miséria... ou vendo um esposo querido acabar às mãos de um verdugo!
Desgraçada, tendes razão de tremer! E mais razão ainda de desejar que o partido que
mais vos interessa, prevaleça! Não é por desejar que haja esta ou aquela instituição do
Governo, nem que as coisas políticas sejam desta ou da daquela forma, mas sim pelo
imediato interesse que tomamos nos homens que adotam esses partidos, e pelos quais
nos cabe uma boa dose de seus incômodos.

Alfredo:

— Basta, minha prima, basta! Os vossos argumentos são muito fortes: confesso-me
vencido e dou o dito por não dito. Porém, aí justificastes amantes e esposos: e como se
justificarão aquelas que não são nem uma nem outra coisa? Já agora, tirai-me todos os
escrúpulos.

Mariana:

— Sois muito escrupuloso. É impossível que não conheças que essas hão de acudir
por pais, filhos, irmãos, parentes etc., pois também a amizade tem seus sagrados direitos
em nossos corações.

Alfredo:

— Justamente, e essas hão de ser as moderadas. É preciso, meu tio, que digamos
juntos: Vitória ao belo sexo.

Huberto:

— Pois não... Essa é boa. Palavras não me convencem, e digo e ainda torno a dizer: é
ridículo e muito ridículo este costume de deixarem as mulheres meterem o seu bedelho
em tudo.

Alfredo:

— Pois eu já penso de outra maneira. Só o que ainda me custa a levar [persuadir] é


ver algumas dentre elas que, sem saberem o que nem para quê, metem-se muito asinhas
[depressa] a aprovar, a desaprovar, a falar, a dar por paus e por pedras, em uma palavra,
a dar a entender que elas são as guias de todos os negócios do Estado! Fazem-me
lembrar da importância que a si [mesma] dava a importuna mosca da careca, de uma
fábula de La Fontaine ["O Calvo e a Mosca"].

Huberto:

— Tal e qual.

Mariana:

— Meu primo, isso está muito exagerado! Eu também poderia mostrar-vos que uma
parte dos homens peca igualmente a esse respeito. Tenho falado com alguns que, cheios
de impavidez, a torto e a direito, sempre com a Pátria e a Liberdade na boca, se lhes
perguntarem o que eles entendem por Liberdade ou Patriotismo, pelo que tanta bulha
fazem, enchem-nos os ouvidos de uma infinidade de sofismas, deixando-nos
convencidas só de sua crassa ignorância.

Huberto:

— Todo farrapo [farroupilha] sabe muito bem distinguir a Liberdade: Liberdade é ir


à casa a tirar o seu a seu dono. Ah, cães! Com que ganas e furor não vinham eles,
quando no outro dia nos vieram acometer às trincheiras! Ah! que se eles entram, pobres
dos homens!

Mariana:

— E também pobres mulheres.

Huberto:

— Quais mulheres, nem meias mulheres! Que se importavam eles lá com as


mulheres? Que tinham as mulheres com isso?

Mariana:

— Ora, meu pai, na suposição que eles a nós não nos fizessem mal algum, teria lugar
o menor sossego? Quereríeis talvez que eu, a sangue-frio, visse entrar por esta casa
adentro homens malvados a saciarem seu furor de vingança, matarem, roubarem e
fazerem mil horrores, só porque meu pai servia o partido da Legalidade?!

Huberto (arregalando os olhos):

— Roubarem-me! A gente anda toda a vida a juntar uns vintenzinhos, para assim ser
roubado? Vão trabalhar, corja de vadios! Ladrões! Cada um poupa o seu vintém, não é
para metê-lo nas unhas de diabo nenhum... Isso não se podia sofrer! Tens razão, minha
filha, não se pode negar.

Alfredo (rindo-se):

— Até que por fim a minha prima Mariana venceu-nos ambos. Já lhe destes razão.
Huberto (correndo):

— Valha-me Deus! Não deixa de ter o seu fundamento... Só nisso, mas é que uma
mulher não... não sabe... não entende que o... a...

Mariana:

— Não entende senão da costura, não é assim, meu pai?

Huberto (assumindo o seu primeiro tom):

— Adivinha! Enquanto a mim, a mulher foi feita e formada só para servir os homens,
assim como Deus formou os brutos.

Alfredo:

— Oh! Que ataque, minha prima! Onde irás agora buscar razões para rebater o golpe
que tão desapiedadamente meu tio descarregou no vosso sexo? Por mim, não as
encontro.

Mariana:

— Ora que admiração! Sendo vós homem, necessariamente vos há de lisonjear tal
doutrina. Mas quisera saber a razão de não achardes razões que contradigam semelhante
absurdo.

Alfredo:

— Na verdade, não me soa mal ao ouvido. Demais [Além disso], Deus, formando-
nos à sua semelhança, disse-nos: Gozai e dominai sobre tudo. E eis o homem, a sua
obra principal, fazendo tudo ao pé da letra.

Mariana:

— Muito estimo que tomásseis um caminho tão elevado para demonstrar-me a vossa
superioridade. Tomando eu as vossas próprias armas, já vos mostro que a nós mulheres
é que compete esse pomposo título de Obra principal da Divindade. E pelos mesmos
princípios nos quais buscais vosso domínio, vou rebater-vos.

Alfredo:

— Quero ver isso...

Mariana:

— Tomai sentido: Deus, quando formou o Universo, não fez tudo num só instante,
mas sim gastando seis dias.
— No primeiro, criou a luz; no segundo, o céu; no terceiro, separou o céu da terra, e
dela fez nascer todas as árvores e plantas; no quarto, criou o sol, a lua, estrelas, planetas,
etc.

— Não falo nos satélites (se bem que já lá foi a Lua), porque, segundo o sistema do
nosso José Victorino [dos Santos e Sousa], na sua Nova Teoria do Universo [livro de
1827], eles foram feitos muito depois, pelo acaso e [pelas] revoluções dos planetas a que
pertencem. Mas como ia dizendo, no quinto [dia] criou Deus os peixes e os pássaros, e
no sexto fez sair da terra todos os animais, vindo o homem também nessa súcia [bando].
Aperfeiçoou este, dando-lhe a sua semelhança e animando-o com uma centelha de Sua
Divina Graça. Depois de o haver concluído, disse-lhe: Goza de tudo que vês, e domina
sobre tudo que existe. Mas notai bem que a mulher ainda então não existia, e que
portanto ficou excetuada desse fatal domínio.

Alfredo:

— Oh! Por essa agora não esperava eu. Vamos adiante.

Mariana:

— O Ente Supremo, maravilhado com tudo que acabara de fazer, lembrou-se de


criar, por excelência, uma outra criatura, e que esta, tendo uma origem mais nobre e
mais primorosa, servisse de realce e de requinte à sua inaudita glória... E criou a mulher.

Alfredo:

— Santa maravilha!

Mariana (continuando):

— Eu te associo [a] uma criatura digna de mim, disse o Onipotente ao homem. Ei-
la! Nada mais me resta a fazer. E Deus não fez mais nada.

Alfredo:

— Não há dúvida nenhuma...

Huberto:

— Ora! Ocupou-se Ele numa fresca coisa! Melhor que estivesse a dormir!

Alfredo:

— Meu tio, talvez que não falásseis assim há vinte anos passados? Que dizeis?

Huberto:

— Com muito pouca diferença. Nunca lhe dei améns... Sempre foi — arre [vá] para
ali! E acabou-se.
Alfredo:

— A isso é que se chama a razão do mais forte.

Mariana:

— E essa é a única base sobre que os homens têm fundado o seu império. Criando-
nos, Deus, destinadas só a gozarmos [levarmos uma vida de prazeres], achou que era
supérfluo em nós aquela força física que prodigalizou ao homem e a uma boa parte dos
brutos, porém, como da mesma flor que a abelha colhe o mel, tira a áspide o veneno,
assim esse mesmo homem prevaleceu-se da nossa fraqueza para sobre ela edificar o seu
intruso domínio. Enfim, eu não pretendia levar a questão a tão longe: a minha tenção
[intenção] era só mostrar-vos que o belo sexo não era tão digno das vossas censuras, e
nem tão ridículo como dizeis em mostrar-se interessado por qualquer partido. E demais,
Senhores, prescindindo das razões já expostas, concluo.

— Tendo nós os mesmos atributos, os mesmos sentidos (sim, não podeis negar-nos o
tato, olfato, vista, etc.), e igualmente uma alma espiritual, uma voz, por que autoridade
haveis de pensar, amar, aborrecer[-se], desejar, temer e seguir a vossa vontade como
bem vos parece, e não haveis de querer que nós outras façamos uso desse admirável
presente que recebemos da mão do Criador?!

— Não, também temos um alvedrio [arbítrio], bem apesar vosso [contra a vossa
vontade], pois que tendes querido fazer mais que o Onipotente: sujeitá-lo ao vosso
poder e às vossas fantasias! Porém, a vossa mesma injustiça nos sugere armas para
combater-vos. Insensatos! Em vão forcejais [lutais para] fascinar-nos, em vão pretendeis
despojar-nos desse dom!... Eis os nossos pulsos, agrilhoai-nos, arrastai-nos, matai-nos: é
o poder do mais forte, mas nunca levareis a palma [tereis a vitória] de dominar as ações
e movimentos interiores de nossa alma. Ela é independente de vosso orgulhoso império.
Vingai-vos em ridicularizar-nos, em menoscabar-nos, quando vos dá na vista o livre
exercício de nossa liberdade. Melhor fora que desistísseis dessa pretensão para não
dardes a conhecer vossa impotência, e não terdes tantas ocasiões de experimentar esta
verdade.

Huberto:

— Pegai-lhe lá com um trapo quente!... Nunca tal ouvi dizer! Porém, agora tudo se
diz. Ah, meu bom tempo!

Alfredo:

— Bravo, minha prima. O mesmo Cícero [filósofo e orador romano] não advogaria
melhor a causa do vosso sexo.

Mariana (cheia de entusiasmo):

— Sim, Alfredo, e vós outros, dignos heróis da Pátria, não sede injustos para
conosco. Aceitai de bom grado as flores que vos oferecemos. Ponde-as junto aos
verdejantes louros que tendes colhido: eles se tornarão mais belos e interessantes. E vós,
sobretudo, Magnânimos Defensores da Legalidade, que encarastes por tantas vezes a
morte quando nas trincheiras o inimigo furioso vos acometia, não leveis a mal
sentimentos que o reconhecimento soube inspirar-nos. O vosso incansável valor salvou-
nos dos horrores de uma invasão! Sofrei [Aceitai], pois, que a gratidão jamais se risque
dos nossos corações e que, cheias de admiração, possamos olhar com entusiasmo os
valorosos que nos arrancaram das feias bordas do abismo. Ah! Sofrei [Aceitai]
igualmente que convosco compartilhemos do inefável prazer de ver florescer tão justa e
louvável causa. E praza aos céus que exista sempre entre vós a mais perfeita união, para
poderdes levar ao fim o que tão de bom grado empreendestes, e que nunca desmintais o
caráter de Homem de Bem que até aqui tendes mostrado.

— Aceitai os nossos mais puros votos, como um tributo devido às vossas virtudes. E
novos Espartanos [guerreiros da cidade guerra de Esparta, famosos pela bravura] cheios
de heroísmo, continuai a defender com valor e constância a justa Causa da Integridade
do Império!

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