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HISTÓRIAS COMPLETAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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1845 – Eugênia ou a Filósofa Apaixonada, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas


(1806-1863)

Dados básicos

Título original: Eugenia ou a Philosopha Apaixonada.

Autora: Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (1806-1863).

Nome da autora na obra: A. Eurydice Eufrozina de Barandas.

Gênero da obra: Conto romântico.

Publicação: O Ramalhete ou Flores Escolhidas na Jardim da Imaginação, Porto


Alegre, Tipografia de I. J. Lopes, 1845.

Importância histórica: A primeira história de ficção de escritora brasileira.

Fonte da atualização: O Ramalhete, Hilda Agnes Hübner Flores, Editora Nova


Dimensão, EDIPUCRS, 1990.

Atualização do texto: Sérgio Barcellos Ximenes.

As notas, inseridas no próprio texto, estão indicadas pelos colchetes: [...].


______________________

Apresentação

Eugênia ou a Filósofa Apaixonada é a primeira história de ficção criada por uma


escritora brasileira. O conto romântico de Ana Eurídice Eufrosina de Barandas saiu no
livro O Ramalhete ou Flores Escolhidas no Jardim da Imaginação (1845), lançado em
Porto Alegre, a cidade natal da autora.

Para saber mais sobre Ana Eurídice e sua obra, leia o artigo Ana Eurídice Eufrosina
de Barandas, a desconhecida pioneira da ficção brasileira, disponível no OneDrive,
subpasta Escritoras.

Para conhecer a segunda história pioneira de Ana Eurídice, a primeira ficção


feminista criada por escritora brasileira, leia Diálogos, disponível na subpasta Histórias
Completas.
O conto pioneiro de Ana Eurídice

Eugênia ou a Filósofa Apaixonada é um conto romântico que apresenta motivos


típicos desse gênero, como era praticado em meados do século XIX, em especial a
pessoa amada assumida como o centro da vida pessoal, os obstáculos intransponíveis à
felicidade do par amoroso, a loucura e a morte. Os exageros afetivos, refletidos
graficamente nas reticências e nos pontos de exclamação, encontram-se presentes do
início ao fim.

Embora O Ramalhete seja um livro breve (78 páginas), Ana Eurídice conseguiu
transmitir à posteridade quatro lados fortes de sua personalidade, cada um deles
representado por um texto ficcional:

. O lado romântico, no conto Eugênia ou a Filósofa Apaixonada.

. O lado politizado, na peça de conversação Diálogos.

. O lado saudoso, na crônica Uma Lembrança Saudosa.

. O lado mitológico, na alegoria A Queda de Safo ou o Cinco de Maio.

Em seus poemas, esses quatro lados também estiveram representados.

O lado romântico da autora encontrou satisfação na vida real ao se casar, por vontade
própria, segundo informa Hilda Agnes Hübner Flores em O Ramalhete (1990), com o
advogado português José Joaquim Pena Penalta. Ana Eurídice estava com 16 anos de
idade.

Da união resultaram um filho e quatro filhas, dos quais apenas o primeiro foi causa
de infelicidade ao falecer ainda no primeiro ano de idade.

O casamento de Ana Eurídice e Pena Penalta durou 21 anos. Após o divórcio em


1843, Ana Eurídice aparentemente viveu sozinha, acompanhada da filha Eurídice
Eufrosina, até seu falecimento 20 anos depois, em 1863.

Assim como no conto, o motivo da separação do casal envolveu uma segunda mulher
(ou várias, conforme relata Hilda Hübner em seu livro).

Teria Ana Eurídice tomado a própria vida como inspiração para redigir o conto,
expressando nele a tristeza pelo fim de um amor inicialmente perfeito, inviabilizado
com a interferência de outra mulher?
EUGÊNIA ou A FILÓSOFA APAIXONADA

"Amor!... Nome por si tão insignificante! Contudo, faz tanta bulha no mundo e é
assunto de tantas novelas que me faz vacilar um pouco: ou o amor é o sentimento mais
nobre, mais sublime e mais próprio a nos fazer venturosos, ou é a loucura mais
remarcada... Mas dizem que é um tributo que cedo ou tarde se paga à natureza, e o que a
natureza aprova não deve ser condenado. ― Querer que um coração absolutamente não
ame (diz um autor) é querer que o fogo não queime, que a chama não suba ou que a
pedra não busque o seu centro. ― Tudo isso é muito bem dito, porém como
encontraremos nós um objeto inteiramente digno de nosso coração? Eis aí o enigma
para mim tão dificultoso!... Sendo a natureza humana tão frágil e defeituosa, como será
possível encontrar-se a suprema ventura do amor?... Enquanto a mim, parece-me que só
um amante com essência de anjo seria capaz de cativar-me.

Mas que digo? Dolival... Dolival não é nenhum anjo e, contudo, ocupa horrivelmente
a minha imaginação!... Cuidado, Eugênia, tens muito que sofrer se amares: és tão difícil
na escolha! ... Na verdade, este Dolival muito me incomoda o espírito! Se estou longe,
sua imagem me persegue e seu nome soa em meus ouvidos como a música mais
melodiosa! Meu coração estremece de prazer e susto, apenas [mal] o vejo... Acaso será
amor?... Não pode ser. Há quatro anos que eu o conheço e que ele diz me amar, sem de
mim ter o menor vislumbre de esperança.. . Ah! Quão respeitosas são as suas ações!
Quão terno é o seu olhar! Quão penetrantes são as suas palavras!... Se eu tiver de amar
algum mortal, seguramente é a Dolival... Porém, é preciso fugir-lhe. E mesmo quando
eu o amasse, como, sem morrer de vergonha, haveria de fazer-lhe essa confissão? Eu,
que tantas vezes tenho escarnecido da sua fraqueza! Não, jamais lhe darei a saber que o
amor me domina. E demais [além disso], eu não acho que seja amor o que sinto por ele:
talvez amizade, costume de vê-lo ... ou mais depressa chamarei a tudo isto, como Clara
Arlouw [Clara Harlowe, personagem que dá título a romance de Samuel Richardson],
um gosto condicional."

Assim discorria Eugênia, querendo fazer como uma anatomia nos seus sentimentos;
e, sentindo fortemente os efeitos, procurava iludir a causa.

Eis que chega Dolival. A sua presença a fez logo desenganar [conhecer a verdade]
que não era só esse gosto condicional o que sentia por ele. Como lhe pareceu
interessante aquele ar de melancolia que assombrava tão graciosamente a sua fisionomia
tão doce e tão nobre! Seus grandes olhos pretos nunca lhe pareceram tão expressivos.
Ela estava enleada: longe de acolhê-lo com aquele ar franco que tanto indica a
impossibilidade do coração, corou ao seu primeiro encontro. Um frio estranho a tomou
repentinamente; empalideceu. Trêmula, apenas [mal] o saudou e foi-se sentar em um
lugar distante, temendo que a sua perturbação fosse percebida.

— Senhora, — disse-lhe Dolival, aproximando-se —, permiti-me saber se estais


doente! Acho-vos hoje muito mudada: vossos olhos e vossa palidez me fazem acreditar
que vos afeta algum incômodo.
— Senhor Dolival, fico-vos muito obrigada pelo quanto vos interessa a minha saúde.
O que sinto é um leve incômodo físico, que não vale a pena de [se ter] cuidado.

— Mas, meu Deus, como tremeis!... A vossa palidez se aumenta...

— Sois um impertinente, — atalhou-o Eugênia, enfadada, sem saber como havia de


se sair daquele embaraço. — Deixai-me! É a vossa presença que me incomoda. Livrai-
me dela o mais depressa possível.

— Eu já vou obedecer-vos. (Em ação de partir) Ah! Senhora, quando cessará a vossa
crueldade? Há tantos anos que vos tributo o mais puro amor e que não tenho tido o
menor predicado para agradar-vos!... Mas, enfim, exigis que eu vos livre de minha
presença... Não há remédio senão obedecer-vos!...Adeus!...

— Esperai... Oh! Como é certo que me incomodais!... Eu... Sim ... Sabeis que vos
amo?

— Será possível?

Seguiu-se um curto espaço de silêncio. Eugênia, com os olhos baixos, de pálida


passando a rubicunda [corada], e Dolival imóvel, com os olhos fitos em Eugênia.

Oh, linguagem persuasiva!... Que expressões equivalerão ao olhar terno de um


amante adorável? Com que facilidade nos soa nos sentidos aquela ilusão de inefáveis
gozos, que nos acompanha ainda mesmo fora da sua presença! Ah! Ele nos faz
experimentar um quase arremedo das bem-aventuranças celestes!

— Eugênia! É possível! Tu me amas? Da tua boca ouço tão doces palavras! Palavras
que tanto têm custado ao meu coração! Ah! Dize-me ainda uma vez, repete-me, para
que eu não possa me enganar ou iludir-me com algum fantasma da minha imaginação: é
verdade que me amas?

— Sim, adoro-te Dolival! Venceste-me pela tua constância. Sou tua, podes dispor de
mim, de meu coração, de meu alvedrio [arbítrio]: de tudo te faço senhor.

Dolival, quase sem sentidos, prostra-se aos pés de Eugénia e cobre de beijos ardentes
a mão que ela lhe abandona.

— Mulher incomparável! — clama. — Tudo farei para obedecer-te! Tudo


empreenderei para agradar-te!... Não, não podes ser uma mortal! Eu creio seres algum
anjo baixado dos céus para a felicidade dos humanos! Acredita-me, que o amor que te
consagro já está fora dos limites da natureza. E até digo-te mais: que esse Ser Supremo,
que diz tudo poder, está fora de seu alcance aniquilá-lo. E se esse impossível for
possível, sim, Eugênia, e se eu algum dia deixar de amar-te, vomite o inferno sobre mim
os tormentos mais horrorosos. E esse mesmo Deus, que tomo por testemunha do que
acabo de pronunciar, me faça o alvo da sua mais terrível justiça se eu algum dia deixar
de dizer: Ou Eugênia, ou morte.
Esta linguagem terrível fez arrepiar os cabelos de Eugênia, e vagos pressentimentos
lhe enegreceram aquele momento, que como um relâmpago se havia mostrado tão
delicioso na vida!

Dez meses se passaram tão suaves como um suspiro de prazer. Eugênia, que antes
tanto gostava de frequentar as luzidas sociedades da corte, onde ela brilhava pela sua
figura, galhardia e mérito, assim como brilha a mais bela estrela do firmamento, [agora]
todas lhe pareciam insípidas e insuportáveis quando nelas não encontrava o escolhido
do seu coração. E se ele aí lhe aparecia, como por uma espécie de fascinação, não tinha
uma só potência da alma livre para que pudesse sentir outro prazer que não fosse aquele
de estar junto dele.

Contudo, ambos eram propensos ao ciúme: frequentes vezes essas sociedades


sugeriam-lhes momentos desagradáveis, por ninharia que não vale a pena de serem
relatadas, mas de que os amantes são tão hábeis em aproveitar para o seu mútuo
desassossego, como por uma compensação aos seus inauditos gozos.

E por isso Eugênia, querendo cortar pela raiz todos esses motivos de contratempo,
mudou-se para S. Domingos de Niterói, onde então residia Dolival, e lá até o seu menor
pensamento lhe era dedicado.

Quão lindas são as madrugadas no Rio de Janeiro!... Ah! E quem não suspirará,
lembrando-se, como nós, da satisfação que já um dia experimentamos, respirando os
doces eflúvios dessas manhãs encantadoras! Eugênia jamais se esquecia de aproveitá-las
em seus frequentes passeios.

Quantas vezes, recostada levemente ao braço de Dolival, deixava-se levar como a


esmo até a praia da Boa Viagem, e aí, como acordada de um agradável sonho, reassumia
toda a sua energia. Umas vezes, o mar liso como um espelho, refletindo por toda a parte
um céu do mais puro azul, fazia-lhes acreditar que eles se achavam sós no meio do
espaço, e, semelhantes aos planetas, tinham só a seguir as leis imutáveis da natureza.

Quanto não eram, então, sublimes seus pensamentos!

Outras, vendo sem causa esse mesmo oceano revolto enrolar suas vagas tintas de
negro e raivoso correr para eles, como para engoli-los, parecia-lhes distinguir em seus
horríveis roncos o grito do gênio do mar, que os ameaçava de uma pronta destruição!
Então, cheios de melancolia, suspiravam e, apertando-se nos braços, pareciam dizer-se
mutuamente:

— Tudo será impotente para separar-nos!

Quão fácil é a existência quando duas almas em pleno contato marcham por todos os
pontos da vida! Fortes pelo amor, não receiam se perderem no turbilhão do mundo, nem
temem esses abismos de solidão, tão frequentes a quem o desconhece!
Eugênia assim o sentia, e confiada nos puros sentimentos de Dolival, entregava-se
sem reserva às suas mais doces emoções. Bem longe estava ela de pensar que um dia
lhe custariam lágrimas de sangue!

Em uma noite a que precedera o dia mais sossegado de sua vida, foi perturbada por
um sonho aterrador. Acorda espavorida. Apenas [Mal] pode respirar: senta-se e, vendo
que tudo foi um mero sonho, despreza-o e até chega a rir-se dos seus pavores noturnos.
Tornou-se a deitar, mas fugiu-lhe o sono: seu sangue estava agitado, e ela suspira mais
de uma vez pelo dia, para com a presença do seu amante esquecer-se do terrível
fantasma criado pela sua imaginação.

Eis o sonho: na companhia de Dolival, desfrutava ela a branda viração de uma tarde
deliciosa, no meio de um vasto jardim, tão abundante de flores que a faziam pasmar
pelas suas esquisitas formas e aromas, quando viu chegar-se a eles uma mulher de feia
catadura [aparência], toda envolta num manto negro. Seus olhos deitavam chamas,
fixando-os, e depois de estender um braço descarnado, precipitou a ambos num
horrendo abismo que de repente se abrira a seus pés.

Apenas [Mal] a aurora espargia aljofares [orvalhos] e púrpura pela imensidade dos
céus, quando Eugênia passeava sossegada por uma alameda das formosas árvores, de
que tanto abunda o Rio de Janeiro, e com grande admiração sua avistou Dolival sentado
debaixo de um cajueiro, com a cabeça reclinada sobre uma das suas mãos. Parecia triste.
Eugênia voou para ele, mas bem depressa recuou assustada, vendo a palidez de seu
rosto, e inquieta lhe perguntava:

— Que tens, Dolival?... Que vieste fazer aqui a esta hora?

— Vim tomar [ar] fresco. Não pude dormir toda a noite!... Não te esperava agora
encontrar.

— Teu coração não o pressentiu ao menos?

— Ah, cara Eugénia! Eu não sou feliz!...

— Não és feliz? Tu, que dizias não trocar tua sorte pela do mais poderoso monarca,
uma vez que possuísses meu coração!... Uma vez que possuísses o amor, a ternura de
Eugênia!... Acaso terei eu [me] rebaixado da tua estima? Fala, Dolival, abre-me o teu
coração, sê franco comigo. Não temas que eu ponha a menor objeção à tua vontade:
estou pronta a tudo fazer para o complemento da tua felicidade... Mas dize-me de onde
procede a tua tristeza?

— Não tenho valor [coragem] para dizer-te!... Oh! Como te vais afligir!

— Dize, dize, seja o que for.

— Tu me prometes amar-me sempre?

— Que pergunta!... Pois que dúvida tens disso?


— Então vou te contar tudo o que me sucedeu ontem. Depois que nos separamos,
encontrei meu pai, que passeava no parque. Assustou-me a sua agitação: taciturno,
correu para mim logo que me viu, e fazendo-me sentar a seu lado falou-me desta
maneira:

— Meu filho, tudo está perdido se não te prestares a socorrer-me! Ouve-me com
atenção. Ainda há poucos dias que eu esperava ter a meu favor a conclusão daquele
litígio, que tu sabes que há quatorze anos existe com Luciano Alvares, mas hoje eu sei
com evidência que vou perder, e com ele toda a minha fortuna. Em pouco seremos
reduzidos à miséria!... E sofrerei eu nos meus últimos dias este golpe? Aqui tolheu-se a
sua fala, e seus olhos se encheram de lágrimas.

— Meu pai — clamei aflito —, em que posso vos servir? Falai, estou pronto a fazer
tudo o que quiserdes...

— Nem eu devia esperar outra coisa de ti, meu filho — tornou ele, abraçando-me. —
O que vou te exigir não é grande sacrifício. Escuta-me: a filha de Luciano Alvares tem-
te afeição, ou mais depressa [com mais precisão], ama-te apaixonadamente. Fez disso
uma inteira confissão a seu pai, e como ele lhe quer mais que a [própria] vida, não lhe
pode negar coisa alguma. Portanto, anuiu às suas súplicas, e hoje falou-me a esse
respeito, propondo-me o teu casamento com condições vantajosíssimas para mim e para
ti, cedendo de todo esse litígio que há tantos anos nos incomoda. Ora, Melinda é uma
pessoa amável e bela em extremo, e tendo eu a certeza que não te negarias a isso, decidi
mesmo antes de te consultar e dei a minha palavra que, dentro de poucos dias, se
concluiria esse tão feliz consórcio.

Ele acabou de falar, e eu estremeci e continuei a guardar o mais profundo silêncio.


Percebendo a minha repugnância, levantou-se precipitado, e pondo as mãos na cabeça
exclama fora de si:

— Acabou-se tudo!... O meu remédio é morrer! Pois sim, filho, pois sim... morrerei!
Ficarás sem pai, sem fortuna e... aguarda os remorsos!

E nisto quis deixar-me. Fui naquele instante subjugado inteiramente pelo amor
paterno, e a nada mais atendi que a fazer a felicidade de um pai.

— Esperai, Senhor — bradei-lhe —, ainda não sabeis a minha resolução qual é:


aceito o partido que me propondes. Que mais quereis?

Efusões de ternura paternal cobriram seu rosto: abraçou-me [uma] segunda vez e,
tornando-me a expor suas críticas circunstâncias, deixou-me entregue às minhas
reflexões.

Depois de passado esse primeiro momento de entusiasmo, vi com horror a minha


infalível desgraça!... Unir-me a uma outra que não sejas tu! Perder a minha Eugênia!
Estas são coisas que eu não posso compreender. Entretanto, há de se consumar essa
tirania... Oh, fatalidade! Ajuda-me, Eugênia, dá-me forças para me sacrificar a mim e a
ti mesma... ou torna-me bárbaro, para que eu possa cravar o punhal da ingratidão no
seio do melhor dos pais!... Para que possa encarar a sangue-frio sua dor e miséria!

Dolival acabou [de falar], derramando um rio de lágrimas. Que fazia Eugênia?
Estupefata, imóvel o ouvia, suprimindo até a respiração, com receio de perder uma só
palavra.

Seus olhos estavam secos, seu semblante só mudava sucessivamente de cor. Sua
alma sensível sabia-se enlevar à grandeza de um sacrifício: ela, conhecendo
[percebendo] que o fim deste era a futura felicidade de seu amante, desde logo fez firme
propósito de consumá-lo. Um grito de Dolival a fez sair daquele estado:

— Que! — disse ele, arrebatado —, não me falas? Basta: quem sabe te perder sabe
também morrer. — E remeteu-se a um silêncio opiniático [presunçoso].

Eugênia fez todos os esforços para tirá-lo do triste estado em que o via: empregou
carícias, enfados, e revestindo-se de dignidade, recolheu a si todos os sinais externos de
comoção.

— Queres que me sacrifique? Pois bem, me sacrificarei... Mas olha que sobre ti
recairá toda a responsabilidade da minha futura conduta. Mas Eugênia! — continuou,
mudando de tom ― tu me amarás sempre?

— Sempre, meu terno amigo, sim, sempre.

— Teu coração não se mortificará, vendo-me unido a uma outra mulher?

— O prazer que recebo, vendo-te feliz, é bastante para sufocar nele todo [e] qualquer
sentimento contrário. Ouve-me, Dolival. Meu amor é bem diferente dessas almas
apoucadas que, preferindo o seu próprio interesse à felicidade da pessoa que amam, não
vacilam em sacrificá-la, logo que tanto exija a sua vaidade. Não, eu prefiro ver-te feliz
nos braços de uma sensível e virtuosa esposa, gozando de uma esplêndida fortuna,
recebendo todos os dias [as] bênçãos paternais, sendo enfim amado e louvado por todos,
a ver-te amante extremoso [dedicado], calcando aos pés teus mais sagrados deveres,
causando a desgraça e ruína de teu próprio pai, só para te dedicares a mim, só para
fazeres a felicidade de meu coração!... Eu não te posso oferecer uma brilhante fortuna,
como Melinda... Não sei pelo quê, sua sorte já me interessa bastante: quero ser sua
advogada. Dizes que ela te ama: isso basta para sossegar as minhas inquietações. Uma
esposa linda e terna, uma fortuna brilhante, que mais queres? Não te deem cuidado os
meus desgostos, pois que nenhum me restará, sendo tu feliz.

— Mas Eugénia!... Não és tu!

— O capricho dos nossos destinos assim o exige!

— Oh! Não!... Não, minha querida! ...

— Ora, dize-me: não aprecias com entusiasmo tudo que recebes da minha mão?
— Sim, tudo que vem de ti me é aprazível.

— Então aceita Melinda e todos esses bens que te oferecem, como dádivas minhas.

— Ah! Cruel!... Melinda, dádiva tua?... Pois bem, aceito.

Depois de um curto espaço silêncio, continuou, mostrando-se resignado:

— Ora, Eugênia, tens operado em mim quase um milagre! Essa lembrança começa a
ser-me menos triste... e até... Ah! De quanto não te é devedora Melinda!

Eugênia estremeceu interiormente, ouvindo Dolival proferir esse nome com uma
espécie de ênfase. Ele, por compaixão, devia evitá-lo na sua presença. O ciúme a feriu
tão rápido como o raio, conhecendo [percebendo] que Dolival já se havia entendido com
Melinda. Empalideceu, tornou-se mais grave. Já não é só a força de uma terníssima
paixão que a sustém no seu sacrifício: nele também entra uma boa dose de
ressentimento.

— Que tens? — perguntou-lhe Dolival, vendo-a repentinamente mudada. — Teu


coração padece?... Ah! Bem vejo que disfarças a tua dor! Eugênia, não me desanimes!...
Ou se faz ou não se faz o sacrifício! Uma palavra tua é bastante para determinar-me.

— Não penses — tornou-lhe Eugênia, esforçando-se para mostrar-se tranquila —


que mudo de parecer. Eram outras considerações que me distraíam agora... Eu seria bem
feliz se tivesse a certeza que Melinda te ama como Eugênia!

— Oh, sim, não duvides.

— Sim! Mas... como tens essa certeza?

— Porque tenho disso mui claras provas.

— Quais são?

— Minha Eugênia, tu me perdoarás, não é assim?

— E o que meu coração não te perdoará?

— Pois então eu as mostrarei na primeira ocasião que falarmos.

— Isso será mais uma fineza da tua parte, a qual muito saberei te agradecer.

— A quanto chega a tua bondade!... Eu e Melinda te olharemos como para uma


divindade benfazeja!... Serás tudo em nossos corações!

Homem desumano, essas palavras tão cheias de doçura assemelham-se a um cálice


de mel impregnado do mais mortífero veneno! Eugênia o tragou de um sorvo! Eugênia
de repente achou-se só no mundo!
Sim, oh mortais, não há instante mais triste nesta vida que esse em que se quebra o
prisma das nossas mais caras ilusões! Quando o amor, com todo o seu peso enorme,
ainda nos esmaga! Quando amamos ainda com todas as potências da alma, e sem
estarmos preparados vimos desaparecer o objeto querido! Ficamos... como ficará a alma
do ateu no primeiro instante de sua morte: assombrada, aterrada, desenganada perante a
eternidade, perante os eternos tormentos que lhe são aparelhados!

Dolival desparecera a seus olhos: ela só via ante si um desses homens ordinários de
que o mundo tanto abunda, e arrependia-se amargamente de ter-se deixado levar à
eminência de uma paixão tão forte, ela que sempre fugira do amor!

— Sonho fatal! — exclama, entrando no seu aposento. — Quando pensaria eu que


tão depressa havias [de] te realizar! Porém, quem sabe se isto mesmo, agora, é um
sonho?... Cruel realidade! Dolival! Dolival!

Seu peito cerrou-se, suas palavras expiraram. Deixou-se cair sobre uma cadeira, e
com os braços cruzados ali ficou por muito tempo, embebida em profundas meditações.

— Quê! — continuou, levantando-se com precipitação. — Já não serei Eugênia de


Alencaster? Que fragilidade é esta? Acaso o amor me mudaria a natureza? Eu que,
semelhante a Demócrito [pensador pré-socrático, conhecido como "o filósofo que ri"],
zombava de tudo!' Deixar-me agora sucumbir por uma paixão de amor! Por uma
quimera! Perverso! Como me tem trazido iludida! O que sente por mim é somente uma
mera compaixão! Com que facilidade anuiu a deixar-me, logo que a isso mostrei-me
indiferente!... Ou Eugênia, ou a morte! Oh, como as coisas no mundo são mutáveis e
irrisórias! Quem ouvisse Dolival todos os dias jurar-me um amor eterno... Amor eterno!
Essa mesma exageração mostra a futilidade do juramento. Só Deus pode responder pelo
futuro, só Deus é eterno. Da mesma maneira que o sangue faz o seu giro [sua
circulação] independente da nossa vontade, assim os sentimentos da alma são
independentes da nossa razão.

— Dolival namorou-se de Melinda sem o saber, sem o querer e sem mesmo o pensar.
Melinda é rica com opulência, formosa com graça, sensível e apaixonada amante: que
forças seriam bastante para resistir-lhe? Pobre Dolival, tu próprio ignoras a que ponto
estás preso dos seus encantos!... Eu sou a primeira em desculpar-te: o coração humano é
tão frágil!

Depois de algum tempo de pausa, continuou:

— Bem, Dolival já não me ama: debalde [inutilmente] ele se esforça para iludir a si
próprio. A poderosa mão da natureza arrancou-me de seu coração, colocando nele
Melinda. Case, sim, case com ela; seja, embora, venturoso... A música, a pintura e as
musas, minhas antigas companheiras, me consolarão de sua falta. Sejam elas de hoje em
diante os meus únicos amores, e esqueçamos Dolival... Basta para o seu castigo ver o
sangue-frio com que encaro a sua perda... O amor-próprio não perdoa nada.
Assim dizendo, corre à sua harpa, intenta tocar, faz um prelúdio e logo a repele de si,
involuntariamente. Toma um livro, quer ler, nenhuma palavra percebe; atira com ele.
Tudo lhe parece estar em brasa! Tudo a queima! Pobre Eugênia, em vão queres fugir à
mão de ferro que te aperta o coração: ela te persegue em toda a parte! Teus raciocínios
são bons, mas são impotentes: tua filosofia baqueou nos escolhos de amor.

Quanto não lhe pareceu longo aquele dia! Quanto não lhe tardara a hora de ver
Dolival! Ela o queria ver, pensava com sua presença minorar seu mal.

Agitada, de sala em sala, de janela em janela, passeava: ora ria, ora cantava, ora
suspirava. Quem a visse, diria que uma grande festa esperava. Assim procurava aturdir-
se e, fugindo de si mesma, evitava soltar um grito de dor: sabia que esse grito ia romper
os diques de sua aflição, e essa aflição era o que ela mui cuidadosa queria disfarçar.

Chega enfim Dolival: sua presença a tirou um momento daquele estado aflitivo. Ele
vinha um tanto melancólico, porém, um fino observador logo descobriria em seus olhos
o prazer que procurava ocultar. Oh, como é bem apropriado denominarem os olhos —
língua da alma! As palavras podem dizer tudo, o semblante pode arremedar a contração
da tristeza ou a expansão da alegria, mas a íntima expressão dos olhos é fiel, é uma
daquelas coisas que não se pode fingir.

Passados os primeiros cumprimentos, tira Dolival pacificamente do seio uma mui


linda caixinha, e entregando-a a Eugênia, disse-lhe:

— Eis aí, minha cara Eugênia, as provas que eu te disse ter do amor de Melinda:
examina-as e dize-me com franqueza qual é o teu parecer.

Eugênia riu-se e respondeu-lhe em tom brincador:

— Melinda não ficaria muito contente de ti, se fosse sabedora dessa tua pequena
infidelidade.

— Oh! Decerto, porém, a ti nada devo ocultar.

— Pois bem, haja um exame rigoroso, já que se trata da presente e futura felicidade
da pessoa que me é mais cara no mundo.

— Tu brincas?... Nunca pensei que visses essas coisas a sangue-frio!

— Muitas coisas se pensam, que não são exatas... Mas vejamos — prosseguiu com
muito sossego, tirando coisa por coisa e examinando-as miudamente. — Quão parecido
está este retrato com o seu formoso original!... Como é rico e de bom gosto este anel! ...
Que lindos são estes cabelos!...

Aqui tolheu-se a sua fala: com ar risonho examinava tudo sem proferir nem mais
uma palavra. No fundo da caixinha estavam alguns papéis. Tomou um e leu o seguinte:

"Sim, Dolival, aceito os vossos votos e não me envergonho confessar que também
senti por vós igual simpatia, desde a nossa entrevista [conversa] em casa de D.
Matildes. Muito sinto a malquerença que existe entre nossos pais, pois eu daria uma
parte dos meus dias para ver findar estas desavenças, e ficai certo que da minha parte
procurarei os meios para que tudo acabe conforme os nossos mútuos desejos.
Entretanto, esperai e não desanimeis; a empresa é um tanto difícil, na verdade, mas
tudo vencerá o amor constante que vos tributa a vossa

Melinda".

Eugênia, acabando de ler, deu uma tão forte risada que fez subir o sangue às faces de
Dolival:

— Pois que achaste ali de irrisório? — perguntou ele com despeito.

Ela não lhe respondeu, pegou noutro papel e continuou:

"Eu te amo. Estas simples palavras na tua boca têm para mim um encanto indizível.
Ontem, quando me roubaste um beijo, pouco faltou para que não me visses desmaiar.
Ah, não! Dolival, não me faças cometer imprudências, jamais, estando eu em numerosa
companhia. Sim, ontem olhavas-me tão cheio de ternura, que o fogo desses olhos
calavam-me até o âmago do coração e faziam-me perder o equilíbrio perante todo o
mundo..."

Eugénia não pôde acabar: um momento passado, retrato, anel, cabelos, caixinha,
papéis, tudo rolava com estrépito pelo chão. Ela, ao ver três testemunhas de perfídia, foi
repentinamente tomada por um acesso de cólera, ou mais depressa, uma terrível aflição
a fez romper involuntariamente naquele excesso. Olha com desprezo para Dolival:

— Foge, monstro — lhe diz sufocada —, foge da minha presença! Eu te desprezo de


tal maneira, que nem te julgo capaz de seres objeto de meu ódio! — E rapidamente quis
evitá-lo.

Dolival a vê com espanto e, não podendo embaraçar-lhe a fuga, lança mão de um


punhal e, pondo-o em ação de ferir-se, grita furioso:

— Volta ou mato-me!

Estas palavras, e sobretudo o tom com que foram ditas, a fizeram estremecer: volta a
cabeça, vê Dolival pronto a ferir-se, para, reflete no que fez, envergonha-se e tenciona
remediar o mal. Ajunta com sossego tudo o que havia espalhado, beija e entrega a
Dolival, do qual a palidez e ar desvairado a fizeram tremer. Ele toma arrebatado em
tudo, rasga, quebra e atira para longe de si.

— Que fazes, Dolival? — pergunta-lhe Eugênia comovida.

— Nada.

— Meu amigo, eu tenho que te pedir perdão: sem querer, cometi urna grosseria que
nunca julguei praticar. Tu sabes, Dolival, que te amo... Pois julgas que tua perda me é
indiferente? Não... Mas a tua felicidade me consolará, e é mui natural que o tempo cure
as chagas de meu coração. Sim, meu amado, esta mudança me é bastante dolorosa
presentemente... Talvez que...

Não pôde continuar, e ambos por muito tempo guardaram silêncio.

— Grande Deus! — exclamou por fim Dolival, batendo com o punho fechado na
testa. — Eugénia, eu só amo a ti!... Ah! Meu pai!

― Dolival, é preciso que nos esqueçamos um de outro — tornou-lhe Eugênia com


dignidade, percebendo a sua hesitação. ― É preciso que sejamos superiores às nossas
paixões. Ceda-se à razão e triunfe a realidade de uma ilusão passageira. Melinda te
espera, talvez já próxima ao altar, para receber teus votos. Já é impossível retroceder, e
mesmo quando o fizesses, jamais poderíamos encontrar no amor a menor ventura...
Porém, escuta-me: se um rigoroso dever nos quebra essas cadeias, outro fortificará os
laços da amizade, do qual os suaves atrativos são preferíveis ao mesmo amor.

— E tu serás sempre minha amiga?... Eu não posso encarar uma existência em que tu
não tomes parte!

— Juro-te que sempre serei a tua mais sincera e verdadeira amiga! Os céus, o mesmo
Supremo, tomo por testemunha. Vai, Dolival, cumpre o teu dever: sê bom filho, bom
esposo e... bom amigo. Adeus!

— Adeus, Eugênia!... Adeus! Adeus pela última vez!

— Como, última vez?

― Sim, eu morro! Não tenho forças para tanto. Confesso-te que os sentidos me
iludiram a respeito de Melinda: pensei que, a pesar meu [contra a minha vontade], eu a
amava... mas se tu soubesses quanto me têm castigado os remorsos de te haver traído,
não terias mais outra vingança a desejar! Sim, Eugênia, agora vejo que me coração só a
ti pertence! O que eu tenho sentido por Melinda é só um simples reconhecimento de
gratidão. Não a amo; não, minha Eugênia! Perdoa-me, perdoa-me!

Assim dizendo, ajoelhava e, juntando as mãos, implorava a indulgência de sua


amante [Pobre Dolival! Se fosse por mim, lhe perdoava... bem tarde]. Mas Eugênia, que
pensava como eu, tirando as consequências pelas antecedências, viu a nulidade daquele
retorno, e que ele já se havia avançado demasiado no outro caminho para retroceder; e,
por isso, deixando-o ficar na mesma postura, disse-lhe friamente:

― A razão e o dever exigem que penses de outra maneira: trata de vencer-te e deixa-
me! ― e quis retirar-se.

― Aonde vais? Espera! Uma só palavra!

― Que queres?

― Eu morro, Eugênia! Eu não posso me separar de ti!


― Nunca te julguei tão inconsequente! Eu me envergonho de te haver amado...

― Basta ― interrompeu Dolival, furioso. E, levantando-se ―: o tempo te mostrará


que não sou este homem inconsequente... Talvez ainda tuas lágrimas corram por mim...
mas será tarde! Sim, amanhã, se possível for, serei o esposo de Melinda, amanhã te
acharás livre! Podes amar a quem não te envergonhe... mas treme!

E, fazendo um gesto ameaçador, saiu precipitado. Eugênia ainda correu na janela


para vê-lo: ele desapareceu, e ela caiu desmaiada.

Que dolorosa situação é a de expulsar o [aquele] que se ama! Desejar com ansiedade
um bem e lançá-lo longe de si! Estar morrendo de amor e mostrar-se indiferente! Ser a
presa das mais flagelantes angústias e mostrar-se satisfeita! Nada disto compreende o
indiferente, nem aquele que toma uma mera e passageira ilusão dos sentidos por uma
paixão de amor. Oh! Vós que verdadeiramente amais e sois desgraçados, a vós dirijo
estas poucas linhas, como os únicos que podem avaliar o quanto se padece nesses
transes da vida!

Isabel, a sua aia favorita, presta-lhe todos os socorros necessários; contudo, Eugênia
foi obrigada a ficar no leito cinco dias, com uma febre delirante.

A sua agitação interior tornava-lhe insuportável a inação. Ela desejava sair a respirar
um ar mais livre: aquele que a cercava parecia-lhe estar impregnado de partículas
destruidoras, [e] ela sentia-se morrer.

Apenas [Tão logo] pôde levantar-se, dirigiu-se maquinalmente para o lado da Boa
Viagem. Que atração a puxa àquele lugar? Ela o ignora, mas seu coração lhe diz não sei
o quê: este não sei o quê que todos sabem, é o fenômeno mais interessante e o mais
inexplicável do amor. Por que razão quando, ainda mesmo sem sabermos, nos
aproximamos do objeto amado, sentimos emoções indefiníveis? Nosso coração dilata-
se, e experimentamos um como que estremecimento por toda [a] nossa alma. Será que
dois entes que se amam têm em si força atraente [atrativa] e que, à sua aproximação, se
faça aquele choque surdo que causa em nosso corpo o efeito da eletricidade? Ah! Como
renasce o afeto quando, em tais momentos inspirados, avistamos a causa daquelas vagas
comoções que tanto nos abalam!

Ao passar pela fonte do Ingá, Eugênia sentiu uma opressão terrível de coração: ali foi
tantas vezes descansar com Dolival, nas voltas de seus agradáveis passeios! As lágrimas
de borbotão lhe assomaram aos olhos, mas não puderam correr. A sua posição no
mundo a espantava, parecia-lhe ter-se despenhado das nuvens e rolar por um abismo
insondável.

— Oh, meu Deus! — clamou, deixando-se cair por terra. — Oh, meu Deus, tirai-me
desta agonia com uma pronta morte, ou dai-me forças para resignar-me à sorte que me
preparaste! Dolival! Aqui ninguém é testemunha da minha dor! Aqui virei todos os dias
chorar a tua perda. Oh, meu amado Dolival, vem ver a que estado reduziste a tua tão
adorada Eugênia! Vem, vem, Dolival! Eu morro! Vem receber o meu último suspiro!...
Um pequeno estrépito se ouve: Eugênia acha-se, como por encanto, nos braços de
Dolival.

Será isto uma ilusão sugerida pela sua esquentada fantasia? Não: era o próprio
Dolival que, tendo notícias que ela estava doente, vinha... O que vinha ele fazer, se já o
altar estava preparado à sua espera! Vinha de novo cravar o punhal da desesperação no
peito da infeliz amante? A sua vista desoladora, os seus gritos, os seus soluços o
alucinaram; ele a toma nos braços com transporte [arrebatamento]... cobre-a de beijos e
de carícias:

— Oh, minha adorada amante! Minha Eugênia! Minha vida, eis o teu Dolival!
Cessem as nossas lágrimas, renasçam para nós esses dias venturosos que julgamos para
sempre perdidos! Sim! Sim, nenhuma ponderação mais me fará deixar-te!... Ah! Fala,
ídolo de minha alma! Consente que Dolival seja de Eugênia, e juremos pelo céu, pelo
mesmo Deus, de vivermos um só para o outro!

De tudo se esqueceu Eugênia: sua dita era muito grande para dar lugar a outro
sentimento que não fosse o prazer de pertencer a Dolival. Ela o tinha nos braços! Ele de
novo jurava ser seu! [Ah, minha filósofa! Este momento te compensou um oceano de
lágrimas]. E tu, Fonte, ainda uma vez foste testemunha da sua mútua felicidade, e este
umbroso arvoredo, cuja sombra te presta uma contínua frescura, também será objeto de
uma viva saudade!

Quinze dias se passaram como um relance de ventura.

Eugênia havia experimentado um choque terrível com a ameaça de perda daquele


que tanto amava. Sua alma estremecida ainda não se achava com bastante vigor para
encarar novas desgraças. Contudo, uma inquietação vaga, um desses pressentimentos
precursores de um grande acontecimento, a perseguia.

— Minha amada — disse um dia Dolival —, é preciso que o himeneu [casamento]


santifique os laços do amor. Tudo já tenho preparado. Amanhã às nove horas te virei
buscar e te conduzirei junto ao altar, para ali receber teus votos. Acaso te negarás aos
meus mais ardentes desejos? Não me quererás por teu esposo, teu amante e teu protetor?

Todos esses títulos eram para Eugénia outros tantos títulos de ventura: o único pelo
qual seu coração anelava. Contudo, fez algumas objeções à proposição de Dolival,
lembrando-lhe as promessas que fizera a seu pai, ao que ele destramente tirou-se desse
embaraço, dando-lhe razões, se não de todo justas, muito cheias de amor, e essas são as
que mais depressa nos convencem.

Antes de raiar a aurora, oh! muito antes! estava ela recostada a uma janela voltada
para o oriente. Um riso suave aparecia em seus lábios, seu peito palpitava de prazer, seu
rosto era radiante! O céu principiava a esclarecer-se, começava o horizonte a bordar-se
de ouro e púrpura, até que por fim apareceu o rei dos astros, precedido pelos nímios
raios de sua glória.
― E este o dia venturoso ― clama ―, que laços indissolúveis ligarão para sempre os
nossos destinos! Oh, rainhas! Oh, heroínas! Oh, portentos de formosura, eu vos desafio!
Igualai-me, se podeis, em ventura e prazer! Parece toda a natureza anunciar-me que se
aproxima a hora de chamar-me esposa de Dolival!

E ficou no ar em êxtase, com os olhos fitos no céu: agradecia ao Supremo haver-lhe


tanto concedido... Mas que indistinto trovão é este que ressoa ao longe? Volta-se e
descobre uma medonha tempestade que se arma para o lado do poente. Eugênia tremeu,
sentiu arrepiarem-se os seus cabelos.

― Ah! ― diz ela, cobrindo o seu rosto com as mãos ―, que presságio!

Era Leandro, pai de Dolival, um desses homens que só apreciam certas comodidades
da vida e olham para todo o resto com indiferença, duvidando mesmo que haja outros
sentimentos que valham a pena do menor sacrifício.

Incomodado e ofendido com a renitência de seu filho, que até então lhe havia
tributado uma cega obediência, tratou de examinar de mais perto quais os motivos que o
impeliam a retardar o casamento tão vantajoso que lhe propusera.

Sabendo que o motor desse transtorno era o amor que concebera pelos encantos de
Eugênia, desde logo fez firme tenção de cortar o mal pela raiz, indo ele mesmo suplicar-
lhe que o protegesse naquele negócio.

Eram dez horas. A chuva, o vento, os trovões tinham cessado, e ainda Eugênia
conservava-se em desalento. Secou-se a sua esperança, ela não podia dar uma razão
pelo quê, e ficou como fulminada quando lhe apareceu Leandro.

― Bons dias, Sra. Eugênia ― disse ele, apresentando-lhe amigavelmente a mão. ―


Como é notória a vossa bondade, não escrupulizei [tive escrúpulos de] vir hoje vos
incomodar, e portanto vos rogo [que] tenhais paciência em sofrer-me por alguns
momentos. — E, fazendo uma pausa, continuou. — Venho vos implorar o favor de uma
família desgraçada... Mas, sossegai, Sra., vejo-vos tão alterada que suponho muito vos
incomodar com a minha presença!

— A vossa presença, Sr. Leandro, só pode me motivar prazer. Mas...

— Mas o quê? Talvez não fosse a minha pessoa que agora esperáveis ver. Não é
assim?

— Meu coração sempre estará disposto a vos receber com todo o afeto.

— Bem! Tendes excelente coração! Pois seja ele hoje o meu protetor, o meu
advogado e o meu juiz: nele deposito toda a esperança do meu futuro bem-estar e...

— Mas o que quereis dizer com isso, Sr.? Abreviai-vos: em que vos posso valer?

— Em muito, Sra. Eugênia, em muito... Eu não venho vos interessar por mim. Só
pretendo reclamar a vossa comiseração a favor de um pai de família, um homem
honrado que sempre vivera no seio da abundância e gozando de um crédito ilibado,
junto a uma posição brilhante na sociedade, mas que agora, por incidentes terríveis,
perdeu tudo! Ah, Sra., quando ouvimos de passagem falar em algum destes
acontecimentos, apenas lhe prestamos atenção, sendo contudo o bocado mais árduo
desta vida! E é tanto que ninguém o compreende sem tê-lo experimentado.

E aqui puxou pelo lenço, assoou-se e limpou uma lágrima que lhe corria pela face, e
depois continuou pausadamente:

— Ora, dizei-me, não vos julgaríeis feliz se estivesse no vosso poder restituir este
homem à sociedade, seu crédito sua fortuna e... a própria vida?

— Eu me daria por muito venturosa se, sacrificando uma mesma parte da minha
existência, lhe restituísse todos esses bens que julga perdidos.

— Então vos direi que esse homem sou eu — continuou Leandro, levantando-se. —
Sim, vós podeis tirar-me das bordas do abismo, da miséria e da desonra, onde mil fatais
circunstâncias querem me lançar, e verei renascer para mim dias felizes que para sempre
julguei perdidos! Vós podeis...

— Basta, Sr., basta! — interrompeu-o Eugênia, aflita. — Abreviai-vos, dizei-me que


vos posso ser útil: estou pronta a fazer tudo para vos servir.

— Oh! Como sois boa! Não posso me perdoar a mim mesmo o ver afligir-vos; mas
enfim, o passo está dado. Eu, Sra. Eugênia, venho vos pedir que me restituas o meu
filho.

— O vosso filho, Sr., não está aqui!

— Bem o sei: eu o deixei lá em casa, mas é o seu coração que tendes aqui. Não
precisa por isso ficar tão vermelha!

― Sr., o vosso filho... Eu não sei o que possa vos fazer a seu respeito: sois seu pai,
tendes mais direito sobre ele do que eu... E estou certa que Dolival não irá nunca contra
a vossa vontade.

— Assim sempre o julguei, mas o rapazinho tem tomado agora o freio nos dentes e
não é possível fazê-lo voltar à razão. Ora, escutai-me e vede se não devo afligir-me. Há
quinze dias, pouco mais ou menos, que se achava tudo pronto para o seu recebimento
[matrimônio] com a filha de Luciano Álvares: em duas horas mais estava tudo
concluído. Que fez ele? Some-se. Em vão o procuramos. Já quando muito bem quis,
apareceu-nos e tem lançado mão de mil pretextos frívolos para retardar a conclusão
daquilo mesmo que ele, de muito bom grado, principiou. Ficamos todos de boca aberta
e envergonhados. A pobre moça está doida de amores por ele e tem sofrido bastante
com esta desagradável coincidência. Tratando eu de examinar isto por miúdo, disseram-
me que éreis vós a causa da sua repugnância, mas que tínheis tanta preponderância
sobre ele que bastaria uma só razão para o levardes ao fim do mundo; e mais, que sois
tão boa e generosa que jamais duvidastes favorecer os desgraçados que vos imploram,
uma vez que isto esteja em vossas mãos. Esta é a razão por que vim hoje me valer de
vós, pois eu sei que, se quiserdes, podeis nos facilitar, fazendo com que se conclua este
casamento, do qual depende todo o meu bem-estar e do mesmo Dolival. Sim, talvez já
sejais sabedora que este enlace com a família dos Álvares é a nossa única tábua de
salvação.

― Sr. Leandro, tendes certeza que vosso filho será feliz com esse casamento?

— Por que não! A rapariga é formosa, amável e, sobretudo, ama-o perdidamente. Ele
mesmo já lhe mostrou muita afeição. Não posso compreender agora este enigma!
Cabeças de rapazes! Querem tudo e nem sabem o que querem!

— Mas... dizeis vós que Dolival parecia amar Melinda?

— Estava até persuadido disso.

— Viste vós mesmo, nele, decidida inclinação por ela?

— Mostrava-se seu apaixonadíssimo!

Eugênia levanta-se resoluta, chega-se à sua mesa e escreve:

Dolival, nunca mais me verá se desobedecer a seu pai; anua à sua vontade, e se fizer
o contrário, nem uma amiga mais encontrará em

Eugênia d'Alencaster.

— Tomai, Sr. — disse ela, entregando-lhe o papel. — Aí tendes o coração que me


pedis. Agora deixai-me, por piedade.

— Não, ainda não é só isto que exijo de vós — replicou Leandro. — Eu quero que
vos mostreis indiferente neste negócio, pacífica e até amiga de Melinda. E, sobretudo,
que guardeis rigoroso silêncio a respeito deste meu passo. Sra. Eugênia, acabai a vossa
obra, portai-vos de maneira que meu filho não chegue a conhecer que fizestes esforços
ao vosso coração. Conheço que é um bocadinho árduo, mas eu confio na vossa
generosidade e fico certo que nada poupareis para satisfazerdes o meu pedido.

— Bem, Sr., conheço neste caso o que devo fazer. Asseguro-vos, da minha parte, que
nunca tereis motivos de arrepender-vos do passo que acabais de dar.

Muito agradecido se mostrou Leandro, e exaltando-a até o infinito lhe pretextou uma
amizade inalterável, e que ela seria olhada pela sua família como o anjo da felicidade. E
assim se despediu.

Oito dias depois desta entrevista, via-se lá perto de Santa Cruz, sentada debaixo de
uma frondosa mangueira que ficava em frente a uma pequena casa, uma moça pálida,
com os olhos inflamados pelas lágrimas que derramava, semelhante a uma estátua
imóvel. Tinha a vista fita no chão, e assim se conservava por horas sucessivas.
Que pensaria ela? Nada. Suas ideias estavam confusas, seu coração era um
verdadeiro labirinto, suas faculdades estavam como suspensas. Ela não distinguia coisa
alguma, nem podia fazer nos seus sentimentos a mera abstração. Parecia-lhe que nem
um choque a abalava e que se tinha tornado indiferente a todos os sentimentos da vida.

Era Eugênia, que fugira para aquele sítio para ali ocultar aos olhos de todos a mágoa
que a pungia. O menor vislumbre de esperança não penetrava no seu futuro. Triste
estado é o de um coração quando cessa de esperar!

Passaram-se três meses e mais cinco dias sem ter de Dolival a mais pequena notícia.

― Como tão depressa se esqueceu de mim ― dizia ela. ― Ingrato! Talvez nem se
lembre mais que existo, e que por ele me vejo num pélago [abismo] de amarguras! E
para que lembrar-se de mim? Ah! Que se esqueça totalmente e que nunca venha a saber
quão caro me tem custado a sua felicidade! Que viva em paz com sua esposa...
Venturosa Melinda! Talvez que agora estejas reclinada em seus braços, e bem longe de
pensar que no mundo haja momentos tão cheios de agonias como os que me retalham a
alma! Goza! Goza em paz e faz a felicidade desse homem, único que amei. Como sou
fraca! O que é feito dessa filosofia de que tanto me jactava? Que é feito por todos esses
sonhos de ventura? Tudo são quimeras?

E aqui se calava, e uma grossa lágrima deslizava-se pelas suas faces.

A 26 de março, pouco antes de raiar o dia, foi Eugênia despertada pela bulha de uma
carruagem que parava à sua porta e por algumas vozes que a demandavam. Momentos
depois entrou Melinda no seu aposento, tão aflita que a fez exclamar, fora de si:

― Oh, Deus! Deus eterno! Que é feito de Dolival? Onde deixaste Dolival? Dolival
morreu?

― Não, não morreu ― acudiu Melinda em copioso pranto ―, mas seu estado é pior:
perdeu o juízo.

― Perdeu o juízo? Eu também, Melinda, eu também não tenho ileso o meu! Para que
me vens procurar? Foge: eu sou a causa fatal das tuas desgraças. Não me queiras ver.
Ah! ― acrescentou ela, mudando de tom. ― Que vens aqui fazer? Eu não te posso valer
em nada!

― Quero que venhas comigo, quero que me restituas o meu esposo, o meu querido
Dolival.

― O meu querido Dolival! ― Esta última frase de Melinda foi repetida por Eugênia,
como o eco das montanhas. ― Não sabes que... mas não! Eu irei, sim, vamos, estou
pronta para te acompanhar. Tu me dirás o que devo fazer.

― É preciso que com tua presença e razões resolvas Dolival a ir para casa. Há seis
dias que dela saiu, sem que coisa alguma possa fazê-lo voltar. Não dá palavra a
ninguém, e a mim principalmente, foge-me como a uma condenada. Temos consultado
os melhores médicos. Eles, reconhecendo a espécie de mal, dizem que é preciso evitar
tudo que possa exacerbá-lo, assim como procurar-lhe toda e qualquer consolação, e
como eu sei que nada tanto possa satisfazê-lo como a tua presença, venho te buscar...
não: venho te pedir, venho te implorar que me não desampares. Sim, vem me restituir
Dolival.

― Estranho pedido! Terrível tarefa ― clama Eugênia, passeando a longos passos


pela casa. E, voltando-se para Melinda, disse-lhe com desesperação:

― E tu não sabes o quanto foi ele amado por mim! Ah, Melinda! O chão que piso é
brasa, o ar que respiro é chama: tudo me queima! Sinto que este coração o ama mais que
nunca! E como poderei dizer-lhe com frieza: "Dolival, eu já não te amo: arranca-me de
uma vez de teu peito. Despedacem-se para sempre essas cadeias fatais, conformemo-nos
com os nossos destinos! Ah! não, Dolival ― continuou ela, delirante ―, não te separes
de mim! Vem a meus braços: unamo-nos apesar dos destinos, desprezemos o mundo,
calquemos aos pés suas vãs honrarias... encaremos a sangue-frio a desesperação desses
entes desumanos que a sangue-frio viram a nossa... escarneçamos de sua impotente
raiva! Padeçam como nos viram padecer!" ― e caiu sem sentidos.

Melinda, sufocada pelos soluços, não a desamparou um instante e prestou-lhe todos


os socorros necessários para fazê-la tornar a si.

― Tu choras, Melinda? — disse Eugênia, comovida, tornando a recuperar o


sentimento. — Tu, a rica, a bela, a brilhante esposa de Dolival!... E choras? Ah, que me
lembro agora que não és feliz! E eu ainda a agravar teus males! Perdoa-me. Eu farei
todos os esforços para minorá-los. Vamos, essas lágrimas que derramas fazem-me ver
que não sou eu só [a] desgraçada.

— Pensavas, cara Eugênia, que eu ignorava os vossos mútuos afetos? Bem longe
disso! Eu estava muito ciente deles, mas um amor repentino tomou-me pelo teu amante,
e então procurei todos os meios de roubá-lo a ti. Estás vingada. Abusei da minha
fortuna, roubei-te Dolival, é verdade, mas o seu coração ficou ileso. O ciúme me tem
devorado em silêncio, sem contudo ter de quem me queixar. Tu fugiste, e ele jamais se
apartou de seus deveres: somente em alguns momentos ressumbrava-lhe [transparecia-
lhe] no semblante a mais negra tristeza, a qual tratava logo de se retrair. Porém, estes
últimos quinze dias saía de casa muito cedo e só voltava à noite, em um estado tal de
desordem que já lhe era impossível ocultar, até que por fim desapareceu até hoje.
Sabemos que há seis dias anda errante pelas vizinhanças de vosso antigo domicílio.
Temos feito todos os possíveis para desviá-lo dali. Tudo é baldado [inútil]! Ele foge, e
quando nos vê, nem ao menos lhe podemos falar...

Melinda não pôde acabar, tão copioso era seu pranto, e Eugênia, abraçando-a,
prometeu-lhe fazer tudo que estivesse a seu alcance para melhorar sua situação.

Seguramente um fenômeno incompreensível [unia] os corações destas duas


mulheres! Como podem elas se amar, sendo ambas o mútuo instrumento da sua
[própria] desgraça? Não sei qual delas é a mais desgraçada, se Eugénia amando e sendo
amada, e ser-lhe forçoso ceder a uma outra o seu amante, se Melinda, amando
igualmente e sendo odiada pelo objeto do seu amor, que é o próprio esposo! A situação
desta é dolorosíssima! Além do amor conjugal, o amor-próprio fez o seu completo
martírio, e todos sabemos o quanto este sentimento é irascível! Contudo, não se pode
negar também que Eugênia fazia mais violência ao seu coração, pois para expulsar o
que se ama é preciso uma força sobrenatural. O que bem poucos podem fazer é tocar a
meta [dar fim] a todas as aflições da vida!

Ambas partiram para São Domingos de Niterói.

Ao aproximar-se daqueles sítios, onde havia passado dias venturosos junto a Dolival,
Eugênia respirava com custo, sentia terríveis pulsações; apenas [mal] podia se conter.
Tudo lhe recordava seu amante, e semelhante ao microscópio lhe aumentavam na
imaginação a sua desgraça, fazendo-a sentir redobradas penas. Mas não sei que
pressentimento também lhe fazia acreditar que seus males estavam próximos a
finalizarem: ela ia em busca de Dolival, para ainda uma vez arrancá-lo de seu coração,
mas esse coração tinha uma convicção íntima que ia se unir a ele para sempre.

Ficou Melinda em casa, não querendo com sua presença exacerbar seu esposo, e a
infeliz amiga tomou sobre si a tarefa de trazê-lo à razão.

Parte só, visita todos os sítios que amor lhe indica, baldados [inúteis] são seus
passos: Dolival não aparece! Já tornava desacoroçoada [desanimada] quando, ao voltar
por uma alameda, avistou por entre a rama um homem que parecia imóvel junto a um
tronco que lhe servia de apoio.

— Dolival! Oh Deus!... Em que estado o encontro! — clamou ela, volvendo os olhos


cheios de lágrimas ao céu. — Pálido, descarnado, barba crescida! Seus belos olhos,
encovados! Como o seu ar é duro e carrancudo! Mais parece um espectro que aquele
Dolival tão esbelto, tão meigo e tão cheio de graças!

Seus joelhos trêmulos, não podendo sustentar o peso de seu corpo, a deixaram cair
em terra.

Aquela queda faz estremecer o filho de Leandro, que, procurando com os olhos a
causa do rumor que ouvira, descobre essa mulher causadora dos martírios, e como
assombrado por um raio, ficou estático.

Um aceno de Eugênia o exasperou:

— Mulher terrível — gritou, cheio de furor. — Monstro de perfídia! Vens ver a tua
obra? Oh, como te aborreço! Onde deixaste o teu querido Adolfo? Esse infame! Que ele
não tenha mil vidas para todas perder às minhas mãos! E tu, Eugênia... Eugênia! Nome
que produz em meu coração o efeito do raio. É preciso que morras!

E corre sobre ela com um punhal, para feri-la.


A esse tempo, Eugênia já não ouvia: um profundo delíquio [desmaio] a tinha privado
de todos os sentidos, e ele, vendo-a sem movimento, ficou estupefato.

— Eu a matei? Sim, ela está morta! Não importa. Eu também morrerei.

Sentou-se ao pé, tomou uma das suas frias mãos, e em silêncio a contemplava
quando um movimento inesperado da desgraçada amante, que tornava a si, arrebatou-o
numa alegria frenética. De tudo se esqueceu! Ele gozava a dita de estar junto dela.

— Dolival — disse Eugênia, com voz fraca —, já minha presença pode te causar
horror? Tu, que gostavas tanto de me ver!...

— E para que me abandonaste?

— Para a tua felicidade...

— Felicidade, Eugênia? Ah! Já não há mais felicidade para mim!

E depois de derramar uma torrente de lágrimas, levanta-se e conduz Eugênia pela


mão.

— Vem — continuou —, vem ver todos os lugares onde tenho me ocultado ao resto
do mundo... Não vês esta cascata? Não te fala ela a mesma linguagem daqueles tempos
venturosos? Vem... Olha esse templo de roseiras, consagrado... Minha Eugênia!
Lembras-te a quem ele foi consagrado? Minha mão colheu tantas vezes flores, aqui,
para com elas ornar teu lindo seio! Entremos, já não se pode, o tempo o derrubou...
Agora reparo como estão secas as suas folhas! Já nem se vê a entrada! Assim está meu
coração... É verdade, Eugênia: este templo dedicado por ti ao amor é o emblema do meu
coração. Já se fechou a toda esperança, já se secou nele tudo o que é felicidade, sinto-
lhe só os espinhos e... Mas tu me abandonaste! Tu fugiste de mim! Mulher sem piedade!

Calou-se, e repentinamente seus olhos faiscaram de raiva, seus lábios contraíram-se,


rangem-lhe os dentes, e toda a sua fisionomia era espantosa. Agarra com ânsia no braço
de Eugênia, que só com soluços lhe respondia, e continuou com voz abafada:

— Oh! Não poderás mais me escapar! Para que me traíste? Dize, para que me foste
falsa? Para que te uniste a esse Adolfo que tanto aborreço [detesto]? Para que me
obrigaste a casar, mandando pelo meu próprio pai aquela bárbara ordem? Eu não te
havia jurado viver só para ti? Fala, mulher inconsequente! Falsa! Traidora... Não previas
a minha desgraça? Fugiste para Inglaterra com o teu infame Adolfo, para retrair-te ao
meu furor e vingança? Já vês que foi escusado: eu te segui... eu te persegui por toda a
parte, até que por fim te encontro! Treme! Estás agora ao alcance do meu braço! Este
ferro que já foi ensopado no sangue do teu aborrecido Adolfo... desse Adolfo que me
preferiste, te fará suave o golpe ... Vês?

E embebeu-lhe o punhal no coração. Eugênia cai e morre...

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No outro dia, via-se na Rua dos Pescadores uma casa com a porta principal, da
entrada, guarnecida de luto. O grande sino de S. Francisco de Paula dobrava de tempos
em tempos. No meio de uma espaçosa sala, toda forrada de negro, estavam levantadas
duas essas [estrados para caixões], sobre as quais haviam depositado dois ataúdes onde
se encerravam os restos mortais de Eugênia e Dolival. Sim, Dolival, que num lapso de
razão vira o seu horroroso crime, voltando o ferro para si próprio, suicidou-se.

Todo o concurso [grande número de pessoas] reunido para as exéquias lamenta o


triste fim de dois amantes. Melinda, desgrenhada, faz ressoar tudo com seus gemidos, e
em perfeito delírio corta os seus preciosos cabelos sobre o corpo inanimado do seu
esposo, e parece querer acompanhá-lo ao túmulo.

— Meu filho! Meu único filho! Foste vítima de minhas intrigas e de meu vil
interesse! — Eram os gritos do velho Leandro.

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