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Foto: Eduardo Saraiva/A2IMG

Não há outras palavras para descrever. João Alberto Silveira Freitas, 40


anos, o Beto, na quinta-feira (19/11), foi espancado até morte pelos
seguranças da filial da zona norte de Porto Alegre do Carrefour por ser
negro e pobre. É o chamado racismo estrutural, uma das chagas do
Brasil. Essa história está sendo muito bem contada pelos noticiários
brasileiros dos jornais (site e papel), rádios, TVs e outras plataformas. A
imprensa ao redor do mundo está dando grandes espaços para a
notícia. Beto foi morto às vésperas do Dia Nacional da Consciência
Negra, uma data nacional criada em 2003 para lembrar Zumbi dos
Palmares, um herói na luta contra a escrivão no Brasil. Agora, ele faz
parte de uma longa lista de negros e pobres que foram mortos,
feridos, escorraçados e humilhados pelos seguranças das lojas de
varejo no Brasil, como o Carrefour, que tem currículo nesse assunto. E
sobre esse detalhe da cobertura que quero conversar.

A segurança privada no Brasil é povoada de empresas aventureiras e


clandestinas. É isso que tenho visto nos 40 anos que sou repórter e nas
centenas de matérias que fiz envolvendo problemas de seguranças
com clientes de lojas do varejo. Quem duvida, olhe os jornais. Vamos
aos fatos. No caso da filial do Carrrefour de Porto Alegre, os
seguranças envolvidos no espancamento, asfixia e morte de Beto são
Magno Braz Borges, 30 anos, e Giovane Gaspar da Silva, 24 anos,
soldado temporário da Brigada Militar (BM) — no Rio Grande do Sul,
policial militar é chamado de brigadiano. E a empresa contratada pelo
supermercado para “fiscalização e prevenção de perda” é a Vector,
com sede em São Paulo. O brigadiano temporário não poderia realizar
trabalhos de segurança privada, porque a BM proíbe. Mas o que
acontece na prática? As empresas de segurança, para vencer uma
concorrência pública ou privada, atribuem um preço abaixo do
mercado. E depois contratam free lancers para realizar os serviços de
vigilância — porque eles custam muito menos que o trabalhador
contratado regularmente. A operação não é ilegal. Mas o serviço
prestado é de baixa qualidade, porque os free lancers geralmente são
policiais civis e militares fazendo bico para engordar o salário. Ou seja:
estão trabalhando nas horas vagas.

A questão das empresas clandestinas é um capítulo à parte no setor de


segurança privada. Ninguém sabe exatamente quantas existem no
Brasil. Mas somam algumas centenas. E sempre que há crise no
mercado de trabalho, como nos dias atuais, o número cresce.
Geralmente, elas operam nas pequenas lojas de varejo, nas calçadas
onde existe um grande fluxo de compradores e nos bairros
residenciais. Claro, as grandes empresas do setor sempre reclamaram
contra a concorrência desleal das clandestinas. A maioria delas têm
como dono um policial da ativa que emprega aposentados — não
importa em que ramo tenha trabalhado — para atuar como vigilantes.
Há mais um problema. Até uma década atrás, o treinamento do policial
militar nas academias tinha um forte apelo ideológico dos tempos da
Guerra Fria — 1947 a 1991, travada entre os Estados Unidos,
capitalista, e a extinta União Soviética, comunista. E a linha mestra era
preparar o policial militar para a guerra. O suspeito de sempre é o
negro, o pobre e o favelado.

O que escrevi não é opinião. São fatos que podem ser comprovados
pelos colegas. Em linhas gerais é esse o caos da segurança privada no
Brasil. Esse problema vem sendo agravado pelas bravatas do
presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Perguntei para
um especialista em segurança privada o que aconteceria nos dias
seguintes à morte de Beto, em Porto Alegre. A resposta foi curta:
“Nada”. Insisti e pedi maiores explicações, e ele acrescentou: “O setor
da segurança privada é uma engrenagem dentro de máquina chamada
Brasil. Não é ele que determina que negro, pobre e favelado são os
suspeitos de sempre. Ele só cumpre ordens”. O que acontece no setor
de segurança privada precisa voltar a fazer parte da nossa pauta de
notícias diárias. O setor é complexo e saber como as coisas estão
funcionando é fundamental para o repórter envolvido na cobertura
diária. No caso da morte de Beto e outros acontecimentos envolvendo
seguranças do Carrefour. Muito pouco se publicou. Ou seja: aqueles
seguranças não estavam lá passeando. Eles foram colocados ali por
uma empresa. Eu pergunto o seguinte: as pessoas que contrataram os
dois seguranças que mataram Beto vão para a cadeia? Duvido. Por
quê? Ninguém sabe quem são. A nossa cobertura está focada na
questão política e no que aconteceu dentro do supermercado.
Precisamos acrescentar uma investigação sobre quem contratou os
seguranças. É por aí, colegas.

Texto publicado  originalmente  pelo blog Histórias Mal Contadas.

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