Você está na página 1de 12

Fórum Estadual de Relações Internacionais de São Paulo 2018

Uma análise do feminismo crítico sobre o discurso de Francis Fukuyama


An analysis of critical feminism on Francis Fukuyama’s discourse

MORON, J. G.1
RESUMO

Com o fim da Guerra Fria e o crescimento das abordagens pós-positivistas nas Relações
Internacionais, o feminismo adentrou nos debates da agenda internacional e a análise crítica
passou a ser feita com uma perspectiva de gênero, onde antigos conceitos passaram a ser
questionados. Com isso, o texto de Fukuyama, “Women in the world politics”, foi duramente
criticado por relativizar a construção social da mulher e do homem e traçar um paralelo entre
humanos e chimpanzés através da biologia. A compreensão das concepções e interesses por
trás do discurso do autor implica, então, na desconstrução do olhar patriarcal tão presente na
disciplina. O que se pretende, portanto, é contribuir para a literatura feminista da área através
da análise crítica do discurso de um dos mais famosos autores dos estudos internacionais.

Palavras-chave: FERISP; Relações Internacionais; Feminismo; Democracia; Discurso

ABSTRACT

With the end of the Cold War and the growth of the post positivist approaches in
International Relations, the feminism entered the debates on the international agenda and the
critical analysis started being done within a gender perspective, where old concepts began to
be questioned. Thereby, Fukuyama’s text, “Women in the world politics”, was strongly
criticized for relativizing the social construction of both women and men and drawing a
parallel between human and chimpanzees through biology. The comprehension of concepts
and interests behind the author’s discourse implies, then, on the deconstruction of the
patriarchal view so present on the discipline. What is intendend, therefore, is to contribute to
the feminist literature of the field through the critical analysis of the discourse of one of the
most famous authors in the international studies.

Key-words: FERISP; International Relations; Feminism; Democracy; Discourse

1
INPG – Instituto Nacional de Pós-Graduação/Relações Internacionais – juddygarcez@hotmail.com
INTRODUÇÃO

Com o Terceiro Debate das Relações Internacionais e o surgimento de novas


abordagens epistemológicas e ontológicas nesse campo, o Feminismo vem buscando abrir
espaço entre as teorias mainstream e masculinistas que tomam conta dos estudos
internacionais. Conforme apontado por J. Ann Tickner (2001), a abordagem de gênero nos
estudos internacionais é recente, tendo sido iniciadas as incursões do feminismo liberal na
área somente nos anos 1960 e 1970.
No entanto, ainda que paulatinamente, outras abordagens feministas surgiram na
área, especialmente após o término da Guerra Fria e a decadência do paradigma realista
enquanto norteador da matéria. Em um universo pós-positivista e sofrendo grandes
influências marxistas, nasceram as abordagens interseccionais, a exemplo do feminismo
crítico, do feminismo pós-moderno e do pós-colonialista, que possuem diferentes técnicas
metodológicas.
Em um contexto multidisciplinar e multiparadigmático, o sistema internacional
assiste a uma reinterpretação de antigos conhecimentos e do modelo societal. Como afirmou
Zygmunt Bauman (1998), após o fim da Guerra Fria e a intensificação do processo de
globalização, a construção ideológica do Estado moderno e da democracia são postos em
xeque, haja vista que em um mundo marcado pelas interações supranacionais e cosmopolitas
o escopo dos atores internacionais aumenta e traz à tona agentes antes marginalizados que
passam a desafiar a ordem mundial e a hegemonia dos sujeitos dominantes.
Nesse mundo pós-moderno e afetado por mudanças constantes, muitos conceitos
prévios são postos a prova. Discursos são desconstruídos e, nesse processo, os interesses por
trás deles são revelados. O debate sobre a democracia e o papel da mulher nas instituições e
no sistema internacional cresce cada vez mais. Um grande exemplo da inserção do tema nos
centros de Relações Internacionais é o artigo de Fukuyama, “Women and the evolution of the
world politics”, publicado pela revista Foreign Affairs em setembro de 1999.
Contudo, atuando sob as palavras desse texto, estão presentes diversas ideologias e
pré-conceitos do autor. Almejando, então, contribuir com a literatura desse crescente campo,
o objetivo desse artigo é o de desconstruir o texto supramencionado através da perspectiva
crítica do feminismo e oferecer mais uma visão acerca da discussão sobre democracia e a
presença ativa de mulheres tanto na sociedade quanto como protagonistas das Relações
Internacionais.
MATERIAIS E MÉTODOS

As abordagens feministas pós-positivistas, de um modo geral, utilizam diferentes


técnicas de estudos que podem variar de acordo com o viés adotado. O empiricismo feminista,
o construtivismo, a teoria do ponto de vista feminista e o feminismo crítico figuram entre os
principais métodos de estudo.
Nesse trabalho optou-se pelo uso da teoria crítica, onde, através da análise do artigo
“Women and the evolution of world politics”, escrito por Francis Fukuyama em setembro de
1998 e publicado pela revista Foreign Affairs, buscou-se entender os interesses por trás do
discurso do filósofo.
Esse texto conta, também, com o respaldo das réplicas feitas ao texto de Fukuyama,
também publicadas pela Foreign Affairs. Os textos base são “Men hate war too”, escrito por
Barbara Ehrenreich, “Father Knows Best”, de Katha Pollitt, “Perilous Positions”, assinado por
R. Brian Ferguson e “States Make War”, de Jane S. Jaquette, todos lançados em 1999.
Por fim, o criticismo desse artigo também foi pautado no texto de J. Ann Tickner,
“Why woman can’t run the world: International Politics according to Francis Fukuyama”,
publicado em 1999 no jornal International Studies Review, e no artigo de Youba Raj Luintel,
“Do males always like war?”, lançado em 2005 pelo jornal Occasinal Papers in Sociology and
Anthropology.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Francis Fukuyama, filósofo e economista nipo-estadounidense, escreveu, em


setembro de 1998, um artigo chamado “Women and the evolution of world politics”
(Mulheres e a evolução da política mundial) que foi originalmente publicado na revista
Foreign Affairs. Em seu texto o autor trouxe à tona um tema polêmico e fez diversas
afirmações acerca da democracia e do feminismo nas Relações Internacionais. O texto foi
escrito em oito partes contínuas e o autor buscou ligá-las entre si pautando-se na tese de que
homens são biologicamente propensos à violência enquanto mulheres são naturalmente
inclinadas a paz.
Buscando endossar essa ideia, ele comparou um grupo especifico de chimpanzés
com homens. Desconsiderando o fato de que esse grupo de animais interagia com humanos já
há diversos anos e que vinha sofrendo experimentos feitos pelos pesquisadores da área,
conforme apontado por Fergunson (1999), Fukuyama seguiu buscando estabelecer, através
desse exemplo do reino animal, uma relação fraca e errônea entre as tendências violentas
masculinas e as propensões femininas para a paz.
Na primeira seção do texto, “Chimpanzee politics” (Política dos chimpanzés)
Fukuyama, depois de analisar uma afirmação feita por de Waal, de que chimpanzés fêmeas
criam vínculos com quem elas sentem alguma forma de ligação e que os machos são mais
propensos a fazerem alianças por razões puramente instrumentais e calculadas, afirma que “in
other words, female chimps have relationships; male chimps practice realpolitik.”2
(Fukuyama, 1998, p. 24) Tirando da equação as características que nos tornam diferentes dos
chimpanzés (especialmente no que tange a nossa organização social), Fukuyama segue
estabelecendo paralelos entre homens e chimpanzés como se os dois grupos, amplamente
distintos, fossem similares.
Na segunda parte, “The not-so-noble savage” (O selvagem não tão nobre),
Fukuyama reconhece a facilidade de se estabelecer comparações entre o reino animal e a
humanidade. Aproveitando-se disso para fazer uma crítica ao socialismo, que comparou a
coletividade das abelhas e das formigas, o autor seguiu sua escrita esquecendo-se de sua
própria comparação pífia. Ainda no ritmo crítico, Fukuyama refutou a hipótese de Friedrich
Engels, que pressupôs a existência de uma sociedade matriarcal que foi substituída por um
patriarcado violento e agressivo, ao afirmar que, com base nos estudos de Lawrence Keeley,
as sociedades caçadoras-coletoras faziam mais guerras e possuíam uma taxa maior de
mortalidade.
Segundo Fukuyama (1998, p. 27), “The problem with the feminist view is that it sees
these attitudes toward violence, power, and status as wholly the products of a patriarchal
culture, whereas in fact it appears they are rooted in biology”3 Nesse ponto do texto,
Fukuyama menciona um estudo e traz alguns dados, porém cita pouca ou nenhuma referência,
dificultando a confirmação da veracidade de suas afirmações. Ainda sem grandes nomes para
apoiá-lo, o autor continua a afirmar que
It is clear that this violence was largely perpetrated by men. While a small minority
of human societies have been matrilineal, evidence of a primordial matriarchy in
which women dominated men, or were even relatively equal to men, has been hard

2
Em outras palavras, chimpanzés fêmeas possuem relacionamentos, chimpanzés machos praticam a realpolitik
3
O problema com a visão feminista é que ela vê essas atitudes em direção a violência, poder e status como sendo
produtos completamente derivados de uma cultura patriarcal, enquanto que, na verdade, eles parecem estar
enraizados na biologia.
to find. There was no age of innocence. The line from chimp to modern man is
continuous4 (FUKUYAMA, 1998, p. 27).
No terceiro segmento do texto, intitulado “The return of biology” (O retorno da
biologia), Fukuyama busca reafirmar a biologia em detrimento das teses construtivistas. Para
o autor, o construtivismo social, forte tendência nos estudos sociais da época e amplamente
usado como ferramenta pelas feministas, não consegue explicar, por si só, porque acredita-se
que homens fazem guerra e mulheres preferem a paz. Apesar de afirmar depois que alguns
papéis de gênero são construções sociais, Fukuyama (1998, p. 29) segue dizendo que
“virtually all reputable evolutionary biologists today think there are profound differences
between the sexes that are genetically rather than culturally rooted, and that these differences
extende beyonde the body into the realm of the mind.” 5
Contudo, apesar de buscar argumentos em diversos campos como a biologia, a
psicologia e antropologia, e de fazer uma escrita clara e objetiva, Fukuyama peca ao não sair
da superficialidade de sua própria tese. Segundo Barbara,
If Fukuyama had read just a bit further in the anthropology of war, even in the works
of some scholars he cites approvingly, he would have discovered that there is little
basis for locating the wellspring of war in aggressive male instincts -- or in any
instincts, for that matter.6 (EHRENREICH, 1999)

Outro ponto falho, ainda que talvez não seja grave, é a falta de referências aos seus
críticos. Para Katha,
Fukuyama tends to name the people he agrees with while referring only vaguely and
condescendingly to opponents ("radical feminists," "many feminists,"
"postmodernists"). But Stephen Jay Gould, Richard Lewontin, Steven Rose, and
many other scientists make formidable arguments, grounded not in ideology but in
biology, against genetic determinism. It is not encouraging that Fukuyama seems
unfamiliar with their work.(POLLIT, 1999)7

Ainda absorto em seu embasamento biológico, mas buscando escapar um pouco da


inevitabilidade do erro que uma afirmação puramente determinista e generalizada pode
oferecer, Fukuyama (1998, p. 31) diz que “Biology is not destiny, as tough-minded female
4
Está claro que toda essa violência foi perpetuada por homens. Enquanto uma pequena minoria das sociedades
humanas foi matrilinear, evidências de uma sociedade matriarcal primordial onde mulheres dominavam homens,
ou até mesmo eram relativamente iguais aos homens, são difíceis de serem encontradas. Nunca houve uma era
de inocência. A linha entre os chimpanzés e o homem moderno é contínua.
5
Quase todos os biólogos respeitáveis hoje pensam que que há profundas diferenças entre os sexos que são
geneticamente enraizadas e não culturamente criadas, e que essas diferenças vão além do corpo até a realidade
da mente.
6
Se Fukuyama tivesse lido apenas um pouco mais sobre antropologia da guerra, ainda que os trabalhos de
alguns intelectuais que ele cita aprovadamente, ele teria descoberto que há pouca base para situar a origem da
guerra em instintos masculinos agressivos – ou em qualquer instinto, para esse assunto.
7
Fukuyama tende a nomear as pessoas com as quais ele concorda enquanto refere-se somente de maneira vaga e
condescente aos seus oponentes (“feministas radicais”, “muitas feministas”, “pós modernos”). Mas Stephen Jay
Gould, Richard Lewontin, Steven Rose, e muitos outros cientistas trazem argumentos formidáveis contra o
determinismo genético, embasados não em ideologia, mas na biologia. Não é encorajador que Fukuyama pareça
não ser familiar com o trabalho deles.
leaders like Margaret Thatcher, Indira Gandhi, and Golda Meir have proven. (It is worth
pointing out, however, that in male-dominated societies, it is these kinds of unusual women
who will rise to the top”).8
Já na quarta parte do artigo, “Feminists and power politics” (Feministas e a política
de poder), Fukuyama faz uma breve apresentação da litetura feminista das Relações
Internacionais, colocando em pauta a crítica feminista sobre a dicotomia entre homens
guerreiros e mulheres dóceis, mas ainda corroborando com essa ideia, afirmando que
“statistically speaking it is primarily men who enjoy the experience of aggression and the
camaraderie it brings and who revel in the ritualization of war that is, as the anthropologist
Robin Fox puts it, another way of understanding diplomacy”(FUKUYAMA, 1998, p. 32)9.

No entanto, apesar de mencionar que, segundo a estatística, os homens gostam da


experiência da violência, Fukuyama não mostra nenhum dado ou estudo concreto que
assegure essa afirmação. Ele segue, então, declarando que “A truly matriarchal world, then,
would be less prone to conflict and more conciliatory and cooperative than the one we inhabit
now.” (FUKUYAMA, 1998, p. 32)10 Contudo, não há evidência alguma de que uma
sociedade matriarcal, estruturada nos moldes utópicos de Fukuyama, iria ser uma sociedade
mais cooperativa e norteada pela paz.
De acordo com Katha Pollit,
Historically, cultures organized around war and displays of cruelty have had
women's full cooperation: Spartan and Roman women were famed for their "manly"
valor. Did Viking women stand on Scandinavian beaches begging their husbands
not to pillage France? Did premodern European women shun public executions and
witch burnings? As these examples suggest, even defining violence raises questions:
The same act can be regarded as wrong, psychopathic, glorious, or routine,
depending on its social context.11 (POLLIT, 1999)

Mais adiante, na quinta seção, “The democratic and feminine peace” (A paz
democrática e feminina), Fukuyama discorre acerca da dificuldade que as sociedades

8
Biologia não é destino, a exemplo de líderes femininas obstinadas como Margaret Thatcher, Indira Gandhi e
Golda Meir provaram. (É válido apontar, no entanto, que em sociedades dominadas por homens, é esse tipo de
mulheres não usuais que irão subir ao topo).
9
Estatisticamente falando, é primeiramente o homem quem aprecia a experiência da agressão e da camaradagem
que ela traz e quem alegra-se com a ritualização da guerra que é, como o antropólogo Robin Fox coloca, outra
forma de compreender a diplomacia.
10
Um mundo verdadeiramente matriarcal seria, então, seria menos propenso ao conflito e mais conciliatório e
cooperativo do que esse onde habitamos agora.
11
Historicamente, culturas organizadas em torno de guerras e exibições de crueldade tiveram plena cooperação
das mulheres: mulheres espartanas e romanas eram famosas pelos seus valores “masculinos”. As mulheres
vikings ficavam nas praias escandinavas implorando para seus maridos não pilharem a França? As mulheres
europeias pré modernas evitavam comparecer a execuções públicas e a queima das bruxas? Como esses
exemplos sugerem, até mesmo definir violência levanta questões: O mesmo ato pode ser considerado como
errado, psicopata, glorioso ou rotineiro, dependendo do contexto social no qual ele está inserido.
encontram em controlar as tendências agressivas de seus homens jovens, que normalmente
são ritualizados e direcionados para a agressividade por homens mais velhos na comunidade.
Nesse ponto, o autor afirma concordar com a relevância da temática central da agenda
feminista, onde “the violent and aggressive tendencies of men have to be controlled, not
simply by redirecting them to external aggression but by constraining those impulses through
a web of norms, laws, agreements, contracts, and the like.” (FUKUYAMA, 1998, p. 34)12
Com isso, Fukuyama apresenta alguns dados acerca da oposição feminina as práticas
de guerra estadunidense, mas, não se preocupando em transformar simples números em uma
análise real, ele continua seu texto, ignorando que “War and its atrocities are organized
politically, from the top, by leaders who are -- yes -- usually men. But they are generally old
men who are not necessarily personally violent.”(POLLIT, 1999).13
Na sexta parte, “The reality of agressive fantasies” (A realidade das fantasias
agressivas), o autor volta a sua hostilidade inicial e, através da crença na inexoralibilidade da
política internacional, ele diz que “if gender roles are not simply socially constructed but
rooted in genetics, there will be limits to how much international politics can change. In
anything but a totally feminized world, feminized policies could be a liability.”
(FUKUYAMA, 1998, p. 35)14.
Fukuyama prossegue, então, apresentando papéis de gênero estereotipados e
limitados, onde presume que as feministas buscam superar as desigualdades entre homens e
mulheres oferecendo alternativas rasas, sem perceber que ele é o único em questão que destoa
dos projetos emancipacionistas.
Some feminists talk as if gender identities can be discarded like an old sweater,
perhaps by putting young men through mandatory gender studies courses when they
are college freshmen. Male attitudes on a host of issues, from child-rearing and
housework to "getting in touch with your feelings," have changed dramatically in
the past couple of generations due to social pressure. But socialization can
accomplish only so much, and efforts to fully feminize young men will probably be
no more successful than the Soviet Union's efforts to persuade its people to work on
Saturdays on behalf of the heroic Cuban and Vietnamese people. Male tendencies to
band together for competitive purposes, seek to dominate status hierarchies, and act

12
As tendências violentas e agressivas dos homens devem ser controladas, não simplesmente através do
redirecionamento delas para a agressão externa, mas através da restrição desses impulsos através de uma rede de
normas, leis, acordos, contratos e afins.
13
As guerras e suas atrocidades são organizadas politicamente, do topo, por líderes que são – sim – normalmente
homens. Mas geralmente homens velhos que não são necessariamente violentos.
14
Se papéis de gênero não são simplesmente construídos mas enraizados na genética, haverá limites no quanto a
política internacional pode mudar. Em nada menos do que um mundo totalmente feminizado, políticas
feminizadas seriam de responsabilidade internacional.
out aggressive fantasies toward one another can be rechanneled but never
eliminated.(FUKUYAMA, 1998, p. 36)15

Após desvalorizar a visão feminista de que as identidades de gênero são socialmente


construídas e, como tal, são passíveis de serem alteradas e ressignificadas, Fukuyama implica
que, apesar de não haver evidências de que mulheres não performem tão bem quanto homens
em um campo de batalha, não é viável que as unidades de combate contem com a presença
mista de homens e mulheres. Afinal, para ele, “Unit cohesion, which is the bedrock on which
the performance of armies rests, has been traditionally built around male bonding, which can
only be jeopardized when men start competing for the attention of women” (FUKUYAMA,
1998, p. 36)16.
No entanto, nesse contexto, é necessário observar-se que, se o principal problema
para a coesão de uma unidade provém da competição masculina pela atenção feminina, o que
deve ser alterada não é a presença feminina, mas sim o comportamento competitivo de
homens, haja vista que em uma guerra pode haver a presença de civis mulheres e, se esse
“instinto” masculino for realmente incontrolável, então a performance de uma unidade poderá
ser afetada da mesma maneira. Aliás, diferentemente do que sugere Fukuyama, onde “Unlike
racial segregation, gender segregation in certain parts of the military seems not just
appropriate but necessary” (FUKUYAMA, 1998, p. 37)17, a existência de unidades mistas
favoreceria o preparo do exército para situações em que a competição masculina existisse,
dentro e fora do exército.
Para J. Ann Tickner,
Given the difficulties of changing genetically programmed behavior and presuming
that this new world would have to include socially constructed feminized men, this
hypothetical picture seems like a considerable leap from reality. Even though
Fukuyama's portrait of this feminized world is seemingly sympathetic, I believe that
his message is, in fact, deeply conservative - offering one more iteration of the well-
established argument tat a "realistic" view of international politics demands that
"real" men remain in charge. Accepting its premises actually silences, rather than
promotes, feminist agendas and women's equality. Although many of his claims can
15
Algumas feministas falam como se identidades de gênero pudessem ser descartadas como um velho suéter,
talvez ao colocas homens jovens sob cursos mandatórios de estudos de gênero quando eles forem calouros na
faculdade. Atitudes masculinas em uma gama de problemas, desde a criação de filhos e ao serviço de casa a
“entrar em contato com os seus sentimentos”, mudaram dramaticamente nas duas gerações passadas devido à
pressão social. Mas a socialização só podem realizar tudo isso, e esforços para feminizar completamente jovens
homens provavelmente não serão mais bem sucedidas do que os esforços da União Soviética em persuadirem
seu povo a trabalhar aos sábados em nome do heroico povo cubano ou vietnamita. As tendências masculinas de
unirem-se para propósitos competitivos, buscarem a dominação de hierarquias sociais e encenarem fantasias
agressivas entre si podem ser remodeladas mas nunca extintas.
16
A coesão da Unidade, que é o fundamento no qual a performance do exército se baseia, foi tradicionalmente
construída em torno da ligação masculina, e só pode ser prejudicada quando os homens começarem a competir
pela atenção das mulheres.
17
Diferentemente da segregação racial, a segregação de gênero em certas partes militares parece não apenas
apropriada, mas necessária.
be successfully challenged on empirical grounds, as his critics demonstrated by their
rebuttals in Foreign Affairs, his view feed into a conservative agenda that serves not
to put women in control, but to keep them out of positions of power.18 (TICKNER,
1999, p. 6)

Continuando com a tendência que apresenta em sua segunda parte do texto, na


sétima seção, “The Margaret Thatchers of the future”, (As Margaret Thatchers do futuro),
Fukuyama discorre acerca do envelhecimento da população europeia e de como as mulheres
idosas poderão transformar o universo político em um mundo feminizado, com mulheres à
frente, e mais propenso a paz. Youba Raj Luintel resume bem essa seção ao dizer que
Fukuyama projects some interesting demographic trends in the seventh part of the
article. Given that the trend of population ageing continues in the West, it is highly
likely that elderly women will form "one of the most important voting blocs." They
will "help elect more women leaders" less inclined toward military intervention.
(LUINTEL, 2005, p. 282)19

Para Katha Pollit, contudo,


American women have had the vote for nearly 80 years. So far, they have not even
won paid maternity leave or affordable daycare, things taken for granted in other
industrialized countries. In light of these failures, the assertion that women will be
transforming American foreign policy anytime soon, against the will of those now in
control, strikes me as a fantasy second only to the notion that genetics will bring it
about. (POLLIT, 1999)20

Na última seção, Fukuyama traz um questionamento já em seu título. Em “Living


like animals?” (Vivendo como animais?), ele finaliza seu artigo enaltecendo a democracia
liberal e o capitalismo, ao afirmar que, apesar desse sistema não eliminar as características e
propensões biológicas, ele abre mais canais para a instauração da paz. Para ele, a violência e a
agressividade eram formas de se buscar o prestígio social no passado. Logo, como na
sociedade capitalista há outras maneiras de reconhecimento e ascensão hierárquica, o
contexto atual é mais do que ideal para a contenção desses “desejos” masculinos.

18
Devido a dificuldade de mudar comportamentos geneticamente programados e presumindo que esse novo
mundo deveria incluir homens feminizados socialmente construídos, essa imagem hipotética parece com um
salto considerável da realidade. Embora o retrado do mundo feminizado de Fukuyama pareca simpático, eu
acredito que a mensagem dele é, na verdade, bem conservadora – oferecendo mais iteração do bem estabelecido
argumento de que uma visão “realista” da política internacional demanda que homens “reais” permaneçam no
comando. Aceitar sua sua premissa na verdade silencia, ao invés de promover, agendas feministas e a igualdade
das mulheres. Embora muitas de suas afirmações possam ser desafiadas com sucesso no campo empírico, como
seus críticos demonstraram em suas réplicas na Foreign Affairs, suas visões alimentam a agenda conservadora
que serve não para colocar mulheres no controle, mas para mantê-las fora de posições de poder.
19
Fukuyama projeta algumas tendências demográficas interessantes na sétima parte do artigo. Dado que a
tendêcia do envelhecimento populacional continua no Ocidente, é altamente provável que mulheres idosas
formarão “um dos mais importantes bloco de voto”. Elas irão “ajudar na eleição de mais mulheres líderes”
menos inclinadas a intervenção militar.
20
Mulheres americanas possuem a capacidade de votar há quase 80 anos. Até agora, ela ainda nem conseguiram
o direito a licença maternidade paga ou creche acessível, coisas tidas como certas em países industrializads. Sob
a luz desses fracassos, a asserção de que mulheres irão transformar política exterior americana a qualquer
momento, contra a vontade daqueles que estão no controle agora, parece, para mim, uma fantasia secundária
somente a noção de que a genética irá trazer isso.
Fukuyama termina o seu texto com uma crítica aos seus diferentes, acusando-os de
se engajarem em projetos impossíveis e utópicos. Com uma frase de efeito comum, ele tenta
esconder o fato de que a sua própria crença é utópica, haja vista que o tal mundo democrático,
ocidental, capitalista e liberal que ele tanto venera, é um mundo profundamente desigual e
marcada por preconceitos, que ficam evidentes ao longo de seu texto.

Liberal democracy and market economies work well because, unlike socialism,
radical feminism, and other utopian schemes, they do not try to change human
nature. Rather, they accept biologically grounded nature as a given and seek to
constrain it through institutions, laws, and norms. It does not always work, but it is
better than living like animals. (FUKUYAMA, 1998, p. 39)21

Finalizando, conforme observado ao longo desse artigo, o texto de Fukuyama contém


diversas concepções que já não fazem mais sentido nesse mundo pós moderno, especialmente
em um universo multiparadigmático e profundamente marcado pela presença das mulheres e
das análises de gênero no ambiente internacional.
Para Katha Pollit,
Fukuyama's article is so confused and contradictory, so lacking in real evidence and
logic, that one wonders what it is really all about. Despite his professed sympathy
for women's claims to fuller citizenship, he suggests no means by which to move
them along. He does not, for example, urge political parties to put forward gender-
balanced lists of candidates, as happens in some European countries. Indeed, the
only concrete proposal Fukuyama makes is to restrict women's citizenship by
limiting their military role. Women make up only 12 percent of Congress and hold
only three governorships, the first two female Supreme Court justices are still on the
bench, but Fukuyama is worried that the girls are about to seize power and turn the
United States into an international wimp (POLLIT, 1999).22

Outro problema com o texto, conforme apontado por Jane Jaquette, é o de que

Fukuyama gives insufficient weight to the dynamics of the nation-state system in


explaining both war and peace. Wars start not in biology -- instinctual male
aggression -- but in realpolitik -- a state's need to defend itself from outside threats.
War does not come naturally to humans. Men must be trained to fight and kill

21
A democracia liberal e a economia de mercado funcionam bem porque, diferentemente do socialismo, do
feminismo radical e outros esquemas utópicos, eles não tentam mudar a natureza humana. Antes, eles aceitam a
natureza biologicamente fundamentada como ela é e procuram restringi-la através de instituições, leis, e normas.
Isso nem sempre funciona, mas é sempre melhor do que viver como animais.
22
O artigo de Fukuyama é tão confuso e contraditório, tão precário de evidência real e lógica, que alguém pode
se perguntar sobre qual é realmente a temática dele. Apesar de sua simpatia declarada pelas reivindicações das
mulheres por uma cidadania mais completa, ele não oferece nenhum meio para seguir adiante com elas. Por
exemplo, ele não estimula partidos políticos a apresentarem lista de candidatos balanceadas em gênero, como
acontece em alguns países europeus. De fato, a única proposta concreta que Fukuyama faz é para restrição da
cidadania das mulheres com a limitação de seu papel militar. Mulheres são apenas 12 por centro do Congresso e
tem apenas três cargos de governador, as duas primeiras juízas da Suprema Corte ainda estão no banco, mas
Fukuyama está preocupado que meninas estão a ponto de capturar o poder e tornar os Estados Unidos em um
covarde internacional.
others, and all people must be taught patriotism. States go to great lengths to
demonize their enemies.23 (JAQUETTE, 1999)

Finalizando, para J. Ann Tickner, “Intentionally or not, Fukuyama's musings about


women running the world deflect attention away from this more pressing agenda of working
toward a world with increased gender equality. (TICKNER, 1999, p. 11)”24.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assumindo que todos os discursos possuem um interesse e buscando compreender as


reais motivações do artigo “Women and the Evolution of World Politics” (Mulheres e a
evolução da política mundial), conclui-se que Francis Fukyama, autor nipo-estadounidense e
entusiasta do capitalismo liberal, escreveu o texto almejando corroborar com a sua crença de
que o advento da economia de mercado proporcionaria um mundo mais igualitário e
democrático, ao menos para os países do Norte (potências ocidentais dominantes) e já
inseridos em um contexto de progressista.
Todavia, ao relativizar a construção social dos papéis de gênero, ao tratar dos países
do Sul como sendo Estados de quase selvageria, ao fugir do propósito emancipacionista do
feminismo nas Relações Internacionais e ao reafirmar padrões estereotipados de homem vs.
mulher, oferecendo somente saídas superficiais e, no mínimo, ambíguas, ele contribuiu mais
para o endosso do patriarcalismo do que para o projeto de inclusão das mulheres na política
mundial.
Com uma visão reducionista da natureza do homem e da mulher, desatrelando a
construção social dos gêneros e compreendo os papéis sociais somente de acordo com a
biologia, Fukuyama não foi capaz de sair do senso comum no debate concernente ao lugar da
mulher na democracia e na sociedade. Ainda que ele tenha buscado fugir do patriarcalismo, o
autor não foi capaz de abandonar seus prejulgamentos e, com isso, não foi capaz de oferecer,
além uma visão distópica e mitigada por falsos ideias femininos, uma saída para a maior
participação democrática da mulher.

23
Fukuyama dá um peso insuficiente para as dinâmicas do sistema de Estado-nação ao explicar ambos a guerra e
a paz. Guerras não começam na biologia – agressão masculina institiva – mas na realpolitik – a necessidade de
defesa de um Estado contra ameaças exteriores. A guerra não vem naturalmente aos humanos. Homens devem
ser treinados para lutar e matar outros homens, e todas as pessoas devem ser ensinadas sobre o patriotismo.
Estados percorrem grandes distâncias para demonizar seus inimigos.
24
Intencionalmente ou não, as reflexões de Fukuyama sobre as mulheres governando o mundo desviam a
atenção da agenda mais urgente sobre trabalhar em direção a um mundo com maior igualdade de gênero.
REFERÊNCIAS BIBILOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt; tradução PENCHEL, Marcus Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1999

EHRENREICH, Barbara Fukuyama's Follies: So What if Women Ruled the World?: Men Hate War Too
Foreign Affairs, 78(1): p. 118- 122, January/February Issue, 1999

FERGUNSON, R. Brian Fukuyama's Follies: So What if Women Ruled the World?: Perilous Position Foreign
Affairs, 8(1): p. 125- 127, January/February Issue, 1999

FUKUYAMA, Francis Women and the Evolution of World Politics Foreign Affairs,77(5): p. 25-40,
September/October Issue, 1999

JAQUETTE, Jane S. Fukuyama's Follies: So What if Women Ruled the World?: States Make War Foreign
Affairs, 78( I): p. 128-129, January/February Issue, 1999

LUINTEL, Youba Raj Do Males Always Like War? A Critique on Francis Fukuyama and his Hyper Masculine
Assertions on “Feminization of World Politics” Occasional Papers in Sociology and Anthropology Vol.9 2005
p. 278-290

POLLIT, Katha Fukuyama's Follies: So What if Women Ruled the World?: Father Knows Best Foreign
Affairs, 78( I): p. 122-125, January/February Issue, 1999

TICKNER, J. Ann Gendering World Politics: Issues and Approaches in he Post-Cold War Era. New York:
Columbia University Press, 2001

TICKER, J. Ann Why Women Can't Run the World: International Politics According to Francis
Fukuyama. International Studies Review 1, nº. 3 (1999): p. 3-11

Você também pode gostar