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Berlanza, Lucas

O histórico do pensamento liberal brasileiro

ISBN:

1. Economia 2. Liberalismo
CDD 330
__________________________________________

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SINOPSE
Como as ideias liberais chegaram ao Brasil e estiveram presentes no país ao
longo de sua história e diversos períodos políticos? Nesta aula, Lucas Berlanza
remonta dos tempos coloniais à contemporaneidade para fazermos cientes do
percurso percorrido pelas ideias liberais no solo brasileiro e como estas se
disseminaram atualmente na sociedade.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desse e-book, espera-se que você saiba como as ideias liberais
chegaram ao Brasil; quais as defesas de teor liberal feitas ao longo da história
brasileira; as figuras que defenderam o liberalismo no Brasil.

INTRODUÇÃO
Esta aula trata da aventura histórica do liberalismo no Brasil. Esse
relacionamento difícil, delicado, complicado, mas, ao mesmo tempo, longevo, entre
as ideias liberais e a brasilidade. Esse é o nosso tema.
Para abordar a inserção das ideias liberais no contexto brasileiro, é preciso
primeiro saber que conceito de liberalismo estamos utilizando aqui, pois existe uma
tremenda polissemia, não só em relação ao liberalismo, como em relação a quase
todo rótulo político que se preze. Existem acepções distintas. É legítimo que haja
acepções distintas, porque é um fenômeno natural que as palavras ganhem
significados diferentes em contextos e momentos diferentes e nas obras de autores
diferentes. A palavra é um fenômeno histórico que adquire acepções distintas ao
longo do tempo.

O que é liberalismo?
No entanto, é preciso, para que nós dialoguemos, estabelecer um conceito,
mais do que propriamente uma definição. O que nós queremos dizer quando falamos
em liberalismo e em liberais? A minha base para construir esse conceito, que não foi
escolhida por acaso, mas justamente por trabalhar com a minha premissa de que as
palavras vão ganhando esses contornos diferenciados nos contextos históricos e no
avanço do tempo, é a obra do José Guilherme Merquior, que é um dos personagens
que abordaremos hoje. Antecipo sua menção pelo fato de ele conceituar do que
estamos tratando quando falamos em liberalismo.
José Guilherme Merquior afirma que o liberalismo é dificilmente definível,
justamente por essa consciência que nós começamos a externar, mas que se pode
entender o conceito de liberalismo partindo-se da premissa de que ele se estrutura e
se enraíza em um movimento, que se manifesta em ideias, em obras, em instituições,
em iniciativas políticas, partidos, sistemas políticos estabelecidos em determinadas
nações, no sentido de retrair a dimensão do arbítrio do Estado, a dimensão da
autoridade do Estado, exercida sem nenhum condicionante, sem nenhuma
delimitação aparente, explícita, pelo menos, e favorecendo a expansão da dimensão
do indivíduo, das prerrogativas dos sujeitos que vivem naquela sociedade,
favorecendo então, também, uma certa dose de expansão da heterogeneidade dentro
daquela sociedade. Ou seja, não prevalece, em absoluto, algum modelo cultural,
ideológico, estabelecido pelo Estado. Existe a margem para que haja preferências
distintas no sentido estético, no sentido cultural, que não sejam impostas como um
molde absoluto de cima. Passa a haver uma margem maior para aquilo que o
sociólogo argentino Gino Germani vai chamar de ações eletivas. A palavra
autoexplicativa. O indivíduo elege, ele não se amolda a uma imposição de cima, uma
imposição histórica, uma imposição do Estado. Há uma margem maior, não quer dizer
que seja absoluta ou que tenha de ser absoluta, para que o indivíduo se manifeste e
se expresse. Grosso modo, essa expansão da dimensão individual e a retração e a
delimitação da autoridade do Estado, de alguma forma, é o que conceitua a ideia de
liberalismo historicamente compreendida e inserida.
A partir daí, sendo necessariamente redundante, a expressão ganha suas
diferentes acepções ao longo do tempo, e subtendências, encaminhamentos, que vão
em um sentido ou no outro. O próprio Merquior expõe a existência de diferentes
liberdades. Há o liberalismo clássico, por exemplo, que nasce por volta dos séculos
17 e 18. Há a liberdade britânica, a liberdade francesa - que enfatiza a participação
política mais do que a dimensão individual -, a liberdade alemã, que se materializa na
realização do ser. Esses são detalhes para introduzir a conceituação do Merquior.
Fato é que Merquior deriva este liberalismo clássico do que ele chama de whiggismo,
que seria o protoliberalismo. Dentro do partido Whig, na batalha política britânica,
desenvolve-se essa tradição de um liberalismo que era necessariamente, pelo
contexto, um liberalismo aristocrático, um liberalismo de representação restritiva, nós
não estamos tratando, ainda, de uma democracia de massa, mas se estabelece ali
essa consciência. Há uma herança histórica por trás disso, da Inglaterra
propriamente, mas essa consciência se desenvolve em uma sociedade que já tinha o
histórico da Carta Magna e de uma série de realizações que levam em direção a essa
restrição do poder absoluto do monarca. O liberalismo é o resultado de um
desenvolvimento de ideias, de posturas e de atitudes, que se enraízam na cultura
cristã-ocidental.
Merquior explica que há o movimento na direção do liberalismo social, o qual
concede um maior papel ao Estado, aproximando-se mais do que convencionamos
chamar de esquerda. Entre os brasileiros, Merquior e Miguel Reale se declaram
sociais-liberais. Merquior, em sua obra, inclusive faz uma distinção entre liberalismo
e liberismo. Para Merquior, liberalismo é a liberdade econômica, o liberalismo
econômico. Então, nem todos os liberais são liberalistas, pois há os liberais-sociais
que não são liberalistas.
Além dessas posições, existe o liberal conservador. Muitos afirmam que essa
expressão é um oxímoro, que não faz qualquer sentido, tal qual liberalismo social. O
liberal conservador é aquele que abraça a tradição Whig, a tradição de Edmund
Burke. Edmund Burke era considerado um liberal inclusive por Hayek, expoente da
Escola Austríaca, que se afirmava como um velho Whig Burkeano.
Com base em toda essa exposição, é possível perceber que há um panorama
extremamente plural dentro do que Merquior denominava liberalismo. O conceito é
esse: retração do Estado, expansão do indivíduo.

A chegada do liberalismo
No primeiro momento em que o liberalismo aparece historicamente, manifesta-
se através do constitucionalismo. São estabelecidas regras precisas para delimitar o
poder do Estado, as quais precisam ser respeitadas e obedecidas à revelia de quem
você seja dentro da sociedade. Esta ideia aparece, introduz-se na sociedade, dando
origem às constituições modernas. Liberalismo, na sua origem histórica, assimila-se
muito com a ideia do constitucionalismo. E é assim, também, em boa medida, que
será introduzido no Brasil.
Nossa história começa ainda em tempos de colônia, em que Brasil e Portugal
formavam uma única unidade, uma única nacionalidade, um único Estado. As ideias
liberais já começam a se introduzir aí. Temos, primeiro, como prólogo disso, o
movimento do Marquês de Pombal, na Universidade de Coimbra, em que ele absorve
as ideias científicas, sobretudo britânicas, mas não absorve ou se interessa pela parte
política, institucional, que vai se desenvolvendo entre os britânicos. Como a elite
brasileira e a portuguesa estudavam na Universidade de Coimbra, essa absorção de
ideias modernizantes, científicas, participa da formação de toda uma elite política e
intelectual brasileira, que foi decisiva no processo de emancipação, de
independência. Dentre estas ideias, está presente a noção de que é preciso
desenvolver a técnica econômica, de que é preciso absorver a ciência econômica. E
com esse ponto de vista, este tecido e essa preparação, que aparecem as ideias
liberais no Brasil.
O ingresso do liberalismo, no Brasil, é importante, mas difícil e delicado. Por
isso, antes de entrar propriamente no histórico, é interessante fazer um pequeno
inventário de quais são os desafios que o Brasil oferece às ideias liberais. Sociólogos
e cientistas sociais apontam um punhado de empecilhos. No Raimundo Faoro,
encontramos a ideia do Estamento Burocrático, do patrimonialismo, que também foi
desenvolvida por Schwartzman e Antonio Paim. Esses autores trazem a ideia do
Estamento Burocrático, que se desenvolve na sociedade e no Estado brasileiros, que
atrai e absorve as suas vantagens, os seus privilégios, que são sumamente
antiliberais tanto no sentido econômico quanto no sentido político. Há o que DaMatta
denomina sociedade relacional, uma sociedade que não consegue entronizar a
impessoalidade, a qual é muito importante no pensamento liberal. E as regras se
aplicam a todos indivíduos, independente de características específicas destes.
Temos uma certa dificuldade com isso. A velha história do jeitinho e do “você sabe
com quem você está falando?”. Isto é um substrato cultural que dificulta e é avesso
às ideias liberais no que tange à impessoalidade, fundamental para que estas se
firmem. Essa cultura relacional também atrapalha. Além disso, temos uma sociedade
que começou e se desenvolveu em uma circunstância de grande decantação, uma
sociedade alicerçada na escravidão, em que havia grandes porções de terra em que
os senhores eram autoridade. Havia aquela divisão profunda entre os indivíduos que
a escravidão necessariamente estabelece, muito embora, no Brasil, tenha sido bem
diferente dos Estados Unidos, pois havia uma miscigenação muito mais forte no
Brasil. De qualquer modo, a sociedade se constrói de uma maneira um tanto quanto
decantada. Há autores, como Oliveira Viana, que afirmam que isso favorece um certo
nível de insolidarismo no espírito público. Enfim, são uma série de desafios.
O que foi feito, de fato, a despeito desses desafios? Retornamos ao período
colonial, em que houve três nomes importantes, os quais estavam embebidos nessa
formação da elite coimbrana.

Hipólito José da Costa e o Liberalismo Britânico


Na entrada do século 19, há a figura de Hipólito José da Costa, que era
jornalista, publicava o Correio Braziliense, à época joanina. Vale frisar que D. João VI
é, em muitos aspectos, foi um fundador desta unidade do país, estabeleceu bases
para um Estado, no Brasil, mais sofisticado. Em torno de sua corte e do seu período,
essas ideias liberais ganharam certa importância. Com a publicação do Correio
Braziliense, diretamente de Londres, Hipólito José da Costa tinha por meta expor, aos
brasileiros, aquilo que Pombal não havia exposto, quando fez um recorte nas
conquistas britânicas, apropriando-se dos aspectos científico e técnico. Hipólito da
Costa aborda igualmente estes dois aspectos, defendendo, dentre outras medidas, a
importância do fomento à indústria e a melhoria da agricultura. A diferença é que
Hipólito da Costa também introduz a dimensão institucional e política. Ele defende
que os brasileiros precisam ter representação nas Cortes. Defende que haja
constituição, regras explícitas na sociedade brasileira. O liberalismo inglês era
difundido no Correio Braziliense. Existia uma relação ambígua com o governo
brasileiro, que era o governo português. O Correio Braziliense não era legal. Por isso,
Hipólito da Costa às vezes criticava veementemente às autoridades, às vezes fazia
textos elogiosos. Por outro lado, a visão britânica, de um liberalismo inglês, era
defendida ininterruptamente, e inspirava os rumos da política brasileira. Ao contrário
de Visconde de Cairu, do qual falaremos mais adiante, quando a Revolução do Porto
eclode em 1920, Hipólito José da Costa a defende, pois acredita que poderia resultar
na elaboração de uma Constituição afinada com seu posicionamento político.
Entretanto, ao perceber que os liberais portugueses, que eram muito liberais consigo
próprios, mas nem tanto com o Brasil, queriam impor medidas de esfacelamento da
unidade que o reino do Brasil já havia construído, impor novas sanções e retomar
algumas limitações que a Colônia tinha anteriormente, Hipólito da Costa retifica seu
posicionamento e passa a defender a independência do Brasil. Com a concretização
da Independência brasileira, o Correio Braziliense é encerrado. Hipólito da Costa
morre no ano seguinte.
Visconde de Cairu
Outro nome a ser citado, já mencionado, é o Visconde de Cairu, que era um
estadista ligado à Corte de D. João VI. Visconde de Cairu era um homem que tinha
os amálgamas do seu tempo, com as ideias complexificadas e mescladas. Um
exemplo disso é que ele chegou a ser simpático, em algum momento da sua trajetória,
às corporações de ofício da Idade Média, o que não é uma ideia muito liberal. Além
disso, chegou a ser simpático à censura governamental, tendo trabalhado nessa
atividade no período joanino. Posteriormente, Visconde de Cairu evoluiu em uma
direção britânica do seu pensamento em enaltecer a liberdade de imprensa no Reino
Unido.
Esse homem é fundamental para esse pensamento liberal conservador,
conforme denominação de Merquior, no contexto brasileiro, por ter trazido a obra de
Adam Smith e por ter atuado na defesa da implementação dessa visão científica e
técnica da economia, no Brasil, baseada nas teses deste teórico. Visconde de Cairu
também influenciou, embora exista uma discussão para determinar em que grau isso
ocorreu, a Abertura dos Portos às Nações Amigas implantada por D. João VI - uma
medida que os liberais devem comemorar como marco histórico. Ademais, Visconde
de Cairu também trouxe para o Brasil, e traduziu para o português, as obras de
Edmund Burke. Com isso, inoculou no Brasil as ideias do velho Whiggismo
defendidas por Burke, as quais são transcritas como liberalismo conservador por
Merquior.
Visconde de Cairu era contra a Revolução do Porto de 1920 justamente por
entender o risco de nesta se verificar algo semelhante ao terror de todos os estadistas
daquele tempo, a Revolução Francesa. As chacinas, as guilhotinas, a ideia de uma
política abstrata e revolucionária, que saqueia a cultura, e que só ficará satisfeita
quando o último rei e o último padre forem enforcados e mortos. Porque a Revolução
Francesa teve início com esse anseio pela constituição, ele teve medo que a
Revolução do Porto tomasse rumos similares.
Se a Revolução do Porto transplantou o liberalismo para Portugal, despertou,
no Brasil, posições indesejadas pelos portugueses. Estes tinham ficados
abandonados em meio a uma situação complicada após as invasões napoleônicas, e
sentiram inveja dos avanços conquistados pelo Brasil. Por isso, Visconde de Cairu
era contrário à Revolução do Porto, mas defendeu, no final, a Independência do
Brasil.
Silvestre Pinheiro Ferreira e a representação de interesses
O terceiro e último nome que precisamos citar deste período foi, na verdade,
mais importante no meio do século 19, no império propriamente dito. Neste momento,
no entanto, ele já compunha a equipe do governo de D. João VI. Essa figura é muito
recuperada e enaltecida pelo professor Antonio Paim, que o considera uma chave
para interpretar o período. Esse homem é Silvestre Pinheiro Ferreira, que naquele
tempo era tido como uma figura mais liberal e antenada com as ditas ideias novas,
ou seja, essas ideias de retração do Estado, o qual era delimitado em prol do
indivíduo. Em seu “Manual do Cidadão no Governo Representativo”, Silvestre
Pinheiro Ferreira defende exatamente um sistema representativo estabelecido em
torno de interesses. Em sua perspectiva, portanto, é preciso que haja interesses
distintos se representando. Essa é uma informação que vale guardar, pois exerce
peso na análise que Antonio Paim faz da República. Além disso, inspirado em
Benjamin Constant, defende que haja, na sociedade, o que denomina de poder
conservador. O poder conservador era um poder diluído nas instituições e nos outros
poderes, que realizaria e promoveria a fiscalização entre esses poderes, o controle
da ordem social. No Brasil, isso foi transformado em um poder exercido pelo monarca,
especificamente, que é o poder moderador. Para Antonio Paim, as ideias liberais de
representação do Silvestre Pinheiro Ferreira são decisivas para a elite política que
construiu a monarquia brasileira. Foi inspirando-se nessas ideias que a monarquia
construiu, em boa parte, sua solidez e perenidade, principalmente, do Segundo
Reinado, que durou cerca de cinco décadas.

Escravidão e Constituição: sim ou não?


Passado esse período, chegamos à independência propriamente dita. São dois
os personagens necessários para entender o cenário então estabelecido. O primeiro
deles é José Bonifácio, o qual dispensa apresentação. Embora este também
estivesse sob influências das ideias novas, das ideias modernas, tinha receio que a
elaboração de uma constituição de imediato despertasse despenhadeiros
demagógicos. José Bonifácio preocupava-se mais com a sociedade do que com as
instituições e com o sistema político. Do seu ponto de vista, erguer uma constituição
liberal, naquele exato momento, não produziria tantos efeitos com o quadro social
existente. Para ele, antes, era preciso acabar primeiro com a escravidão. Assim como
Hipólito da Costa, que considerava a escravidão ineficiente, um desastre para a
economia brasileira, e Cairu, o qual, ainda que mais contido em suas críticas, também
era contra a forma como a escravidão funcionava e a lógica econômica que se
enraizava em cima dela, para Bonifácio, a escravidão era uma mancha absurda no
Brasil. Suas concepções eram extremamente radicais quanto a essa questão. Ele as
defendeu à frente, diga-se de passagem, de muitos e dos pais fundadores dos
Estados Unidos, para os quais a escravidão não era uma preocupação tão grande,
até porque tinham seus escravos.
O segundo personagem, do outro lado, era Gonçalves Ledo, que representava
a maçonaria fluminense. Ao seu lado estavam Clemente Pereira e outros maçons
fluminenses. Eles também defenderam a independência. Contudo, almejavam uma
constituição imediata. Isso gerou disputas políticas de menor significados, em termos
de pensamento, gerou disputas temporais e uma tensão entre Bonifácio e Ledo, entre
Bonifácio e a maçonaria fluminense, durante o processo de emancipação do Brasil.
Bonifácio apresentava uma preocupação social e uma preocupação elevada
com a união nacional, com a manutenção da unidade nacional. Ledo e os maçons
fluminenses, pelo contrário, não se afligiam com a escravidão. Prova disso está
constante nos manifestos de agosto. Em 1822, foram escritos dois textos manifestos
da nossa independência, um do dia 1º e outro do dia 6 de agosto. Um deles foi
atribuído a Bonifácio. O outro, a Ledo. Ambos foram assinados por D. Pedro. Um
detalhezinho faz toda a diferença: em seu manifesto, Bonifácio aborda a importância
que o processo de independência brasileiro não conduzida o país ao caos, à anarquia,
tal como havia acontecido no Haiti. O manifesto de Ledo, por sua vez, elenca como
uma das razões para a indignação que os brasileiros sentiam em relação aos
portugueses, o fato de estes, naquele processo, em meio a todas as injustiças que
verdadeiramente estavam cometendo como o Reino do Brasil, questionarem a
propriedade dos brasileiros sobre seus escravos. Para Ledo, era um absurdo querer
interferir nesta propriedade. Conquanto fosse liberal, Ledo portava a contradição
brasileira de assentar o liberalismo sob a escravidão.

A Revolução Liberal de 7 de abril


Por último, há o próprio D. Pedro. D. Pedro era um imperador formado na
cultura portuguesa, na monarquia tradicional, que estava muito afastada de uma
monarquia liberal-constitucional. Além disso, como Otávio Tarquínio de Sousa
destaca, Pedro queria participar e estar envolvido nas questões, era um homem
voluntarioso, algo que, de certa forma, em algumas circunstâncias, colocava
obstáculos à limitação do seu poder. Ao mesmo tempo, porém, D. Pedro era
reconhecido no seu tempo como um campeão das ideias novas. Entre os imperadores
e os monarcas do mundo, ele era a referência do liberalismo, referência de alguém
que propõe um sistema liberal, para o próprio Benjamin Constant, um liberal francês.
Isso revela a importância de analisar todos os aspectos de acordo com a circunstância
da época. Entretanto, o imperador D. Pedro, em seu sistema liberal, firmado na
Constituição de 1824 com a participação do Marquês de Caravela, acrescentou o
poder moderador. A adição do poder moderador foi a principal diferença em relação
à Constituição elaborada pela constituinte de 1823, a qual foi dissolvida pelo
imperador. Embora, para compor o poder moderador, D. Pedro tenha se afastado
ligeiramente das propostas presentes no livro de Benjamin Constant, que não
concediam todo esse poder para o monarca, D. Pedro se inspirou nas ideias deste
para forjar o poder moderador. Tanto é que essa expressão está em sua obra. D.
Pedro era leitor de Constant e desse liberalismo moderado, que prezava a ordem e a
continuidade. Essas ideias influenciaram na formação das instituições monárquicas
brasileiras.
Após a independência, essa personalidade voluntariosa de D. Pedro gerou
embates com os políticos, com os estadistas, muitos deles já influenciados pelas
ideias liberais. Neste contexto, aparecem Bernardo Pereira de Vasconcelos e Evaristo
da Veiga, homens que estão lendo o liberalismo e estão sendo particularmente
influenciados pelo liberalismo inglês. Ambos querem implementar essas concepções
no Brasil. Por isso, enfrentam certos choques com D. Pedro, os quais foram
exacerbados pela hostilidade que se criou, no Brasil, em relação à nacionalidade
portuguesa de D. Pedro. Havia um sentimento nativista e uma rejeição aos
portugueses. A Corte permaneceu, assim como o estamento ao redor de D. Pedro.
Isso incomodava os brasileiros, que queriam que nacionais assumissem esses
postos. Isso gerou uma má vontade que, em alguns aspectos, o imperador colaborou
para provocar.
Essa tensão alcançou um extremo, um ponto limite, e eclodiu o que muitos
chamaram, naquele momento, de a Revolução Liberal de 7 de abril, quando D. Pedro
abdica em 1831. Tal abdicação não resultou de uma decisão tomada
espontaneamente por D. Pedro. Havia uma mobilização para sua abdicação, a qual
apresentava até mesmo um componente militar. Face a uma tensão de que haveria
ruptura, D. Pedro abdica em favor de seu filho. Na época, aqueles homens
consideraram esta uma revolução liberal. Como eu mencionei, aquela geração falava
da Revolução de 7 de abril de inspirações liberais contra o imperador absoluto que
quer mandar e passar por cima de tudo. Era esse, ao mesmo, o discurso deles. Com
isso, o liberalismo já está marcando presença forte no pensamento dessa elite política
brasileira.

Centralizar ou descentralizar?
Com a abdicação de D. Pedro I, estabelece-se a regência, uma vez que D.
Pedro II ainda não apresentava idade constitucional para ser coroado como
monarquia.
A regência foi um período extremamente conturbado, em que havia calorosas
discussões em torno da centralização ou descentralização administrativa e política.
Na época, esse debate se tornou ainda mais ardente devido à eclosão de revoltas
separatistas. Havia três grupos políticos que protagonizam essa contenda.
Em primeiro lugar, o liberalismo radical, que tinha em Frei Caneca um de seus
representantes. O liberalismo radical abarcava todo manual abstrato do liberalismo e
queria impô-lo a qualquer custa. Além disso, eventualmente, confundia-se com aquilo
a que o professor Paim chama de democratismo, de inspiração rousseauniana.
Portanto, não existia uma preocupação com a representação dos interesses. A
retórica adotada proclamava que seria o povo atuando, participando, da política. Os
interesses, as divisões, que desembocam mais modernamente nos partidos, os quais
propiciam solidez a esse sistema liberal democrático, não são tão mencionadas por
esses liberais radicais que queriam o federalismo imediato e a descentralização
absoluta. Os liberais radicais foram protagonistas de várias rebeliões que ocorreram
durante a regência.
O segundo grupo político eram os caramurus, que lutavam pela restauração
da Coroa de D. Pedro. Com a morte deste, os caramurus desaparecem, uma vez que
já não possuíam razão de ser.
O último grupo político é precisamente aquele que vence essa batalha e que
construiu o Segundo Reinado. São os intitulados liberais moderados. Novamente, o
papel do liberalismo é enfatizado, frisado e evidenciado como construtor das
instituições do Brasil do século 19. Os liberais moderados pleiteavam as mesmas
demandas que os liberais doutrinários da França1, como Benjamin Constant e
François Guizot. Estes estavam associados com a filosofia ecletista de Victor Cousin,
uma das ortodoxias filosóficas da França daquele tempo, a qual defendia a junção
entre a ordem e a liberdade. Ao mesmo tempo em que propugnavam o retorno da
França ao Antigo Regime, ao que existia antes do caos revolucionário, defendiam o
respeito à ideia liberal da constituição, da limitação dos poderes, e queriam
instituições sólidas e ordem, a fim de socorrer a França do caos absoluto em que se
encontrava. A Revolução havia levado a França a um caminho incerto e ninguém
encontrava uma maneira de reorganizar o país. Essa foi a história da França no século
19. Os liberais doutrinários estavam preocupados com essa questão, bem como
outras correntes políticas, caso dos positivistas. Essas ideias dos liberais doutrinários
influenciou os liberais moderados brasileiros a também tentarem conseguir, no Brasil,
a junção entre ordem - tudo que o Brasil queria, pois desejava findar as revoltas
separatistas - e constituição, representação, parlamento, tudo aquilo que o figurino
liberal significava. Esse grupo prevaleceu e, quando a regência chegou ao fim, com o
golpe da maioridade e a coroação de D. Pedro II como imperador, seus partícipes se
tornaram elementos-chave do governo.

O Segundo Reinado
Após a coroação de D. Pedro II, ao longo do tempo, criou-se uma divisão
política entre saquaremas e luzias que caracterizou o Segundo Reinado. Um detalhe
que precisa ficar claro é que tanto os saquaremas quanto os luzias, popularmente,
conservadores e liberais, eram liberais, porque eram originários do grupo regencial
do liberalismo moderado.
Dentre eles, inclusive, Bernardo Pereira de Vasconcelos que, como mencionei
anteriormente, confrontava diretamente D. Pedro I para construir um ambiente
parlamentar no Brasil, um ambiente em que a força da opinião prevalecesse sobre o
voluntarismo do imperador. Embora fosse escravocrata, lembremos que Bernardo era
campeão liberal da representação. A bem da verdade, Bernardo oscilou um pouco
seu pensamento acerca da escravidão, mas, na maioria das vezes, e na maior parte
do tempo, foi a favor desta. É esse mesmo Bernardo que participa da fundação dos

1
Os liberais doutrinários da França são muito estudados pelo professor Vélez Rodríguez.
saquaremas. Fundação entendendo-se o que isso significaria no século 19, porque
inexistiam as agremiações partidárias como as temos hoje.
Esses grupos eram blocos parlamentares que tinham os seus jornais, suas
lideranças, e que ganhavam identidade espontaneamente em cima dessas
particularidades. Uma identidade que, simultaneamente, convivia com uma grande
semelhança entre essas figuras, a ponto de existir o ditado que “Nada se assemelha
mais a um ‘saquarema’ do que um ‘luzia’ no poder”. Na prática, era uma elite muito
parecida em vários aspectos. Apesar de tal parecença, há motivos que justificam
entender que existia uma diferença entre os dois partidos. Observa-se, portanto, que,
na elite política, predominava os grupos que eram mais parecidos e mais moderados.
Conquanto houvesse outras diferenças, como estamos tratando do liberalismo
no Brasil, grosso modo, a distinção fundamental era que os saquaremas queriam e
depositavam mais relevância no Conselho de Estado, no poder moderador, na
importância do monarca. Eles perseguiam a centralização político-administrativa e
queriam que as forças armadas locais permanecessem sob comando central. Por sua
vez, os luzias, os liberais, aspiravam aos modelos americano e britânico. Eles
desejavam o federalismo.
Contudo, os saquaremas, os conservadores, justificavam a sua perspectiva, o
seu pensamento em defesa de um Estado maior, com mais poder central, embasados
em um argumento liberal, no sentido de visar à liberdade e à representação de
interesses, consonantes com Silvestre Pinheiro Ferreira. Paulino José Soares de
Sousa, um dos principais pensadores dentre os saquaremas, desenvolve o
argumento de que, na configuração social do Brasil naquela época, de uma sociedade
civil fraca, decantada pela escravidão, em que os juízes eram eletivos e respondiam
às oligarquias das províncias, despejar franquias descentralizadoras para as
províncias e colocar as armas nas mãos das elites oligárquicas, significaria criar
ditaduras dos oligarcas regionais e impedir a rotação do poder.
Os desafios eleitorais para haver uma eleição com lisura eram tremendos no
império, pois as eleições já eram fraudadas. Isso preocupava tanto o monarca quanto
os estadistas da monarquia. Prova disso é que foram realizadas várias reformas
eleitorais durante esse período. Assim, essa preocupação e o problema existiam. Era
muito fácil controlar o encaminhamento das eleições e se perpetuar no poder. Uma
vez alcançada a direção da província, o partido indicava os comandantes das
províncias e o conselho de gabinetes2. Deste modo, a máquina toda estava submetida
a ele. Os saquaremas entendiam que era preciso imperar, naquele momento de
construção nacional, um Estado central mais forte, capaz de impedir a perpetuação
dessa máquina das oligarquias no poder. Além disso, que fosse também capaz de
evitar que a rotatividade, a alternância do poder, se desse através das armas, o que
acontecerá durante a República Velha.
Os saquaremas acreditavam nessa necessidade e construíram o Estado
brasileiro e uma lógica de sociedade que funcionaram praticamente sem distúrbios
institucionais até 1889. Essa ordem social e essa constituição, o Segundo Reinado,
tiveram o período mais longevo da história do Brasil. Ambos estavam alicerçados na
teoria da representação do Silvestre Pinheiro Ferreira, de uma representação por
interesses que organizasse os núcleos de pensamentos, as ideias, as correntes,
dentro do parlamento imperial.

O Movimento Abolicionista
No final do Segundo Reinado, formou-se o movimento abolicionista, um
movimento liberal por excelência. A liberdade não veio antes, embora José Bonifácio
pugnasse para que viesse, porque o liberalismo brasileiro dessas elites políticas do
império, contraditoriamente, mantinha-se e se harmonizava com a escravidão, tal
como nos Estados Unidos. Não temos esse nefasto privilégio. Era uma questão da
época, o que não é desculpa, porque não faltou quem a contestasse. José Bonifácio
foi muito claro quando enviou à Assembleia Constituinte o seu manifesto pela
libertação dos escravos, declarando que a escravidão era absolutamente inaceitável,
anticristã e contra as bases da civilização a que o Brasil queria se integrar.
A verdade é que existia um trabalho de construção de uma elite política, de um
país jurídico, um país institucional, que, de certa forma, pairava sob uma realidade de
muitas limitações. Havia uma elite de iluminados, de esclarecidos, de juristas, de
fazendeiros, etc., sob um imenso torrão de terra com escravos. A realidade era essa.
Os obstáculos eram muito grandes.

2
Na década de 1840, constituiu-se, com participação e estímulo do imperador, o conselho de
gabinetes, que é outra evolução liberal. O imperador transferia algumas prerrogativas para
um Conselho de Ministros. Este figurino, do que seria equivalente ao Primeiro-Ministro
britânico, intencionalmente aumentava a parecença do modelo brasileiro com o inglês.
Contudo, José Bonifácio já falava sobre a escravidão. Essa questão vai ter
culminância e ganhar abrangência popular, vasta abrangência social, no processo
abolicionista, do qual participam os saquaremas e os luzias, todos esses herdeiros do
liberalismo moderado que venceu no período da regência. Portanto, é um movimento
suprapartidário. O abolicionismo não era exclusividade nem dos luzias nem dos
saquaremas. Joaquim Nabuco, grande luzia, grande liberal abolicionista, que tinha
tendências e aderências whigs, aderências inglesas, e que depois se insurgiu contra
o movimento republicano e a república, afirmava isso muito claramente. O presidente
do Conselho de Ministros que levou adiante a lei áurea, a qual deu fim a essa mácula
trevosa de nossa história, era João Alfredo Corrêa, um conservador, um saquarema,
rival eleitoral de Joaquim Nabuco em Pernambuco. Aliás, a maioria das leis
abolicionistas foram aprovadas em gabinetes saquaremas. A última, fatal, também.
Isso demonstra uma capacidade daquela elite política de superar as diferenças
eleitorais que tinham, de interesses eleitorais, para construir uma unidade em torno
de um propósito tão nobre quanto esse, que restaurava a dignidade dos homens
escravizados.
Há um passagem lindíssima de “Minha Formação”3, em que Joaquim Nabuco
diz: “Qualquer que seja a verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum
modo em conta a utilidade prática de nossa existência, e, enquanto o cativeiro
existisse, estou convencido de que eu não poderia dar melhor emprego à minha do
que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior,
mesmo quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em
nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a esfera de cada
um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um raio, quando
não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas como eram as dos
escravos [...]”.
A abolição, um grande feito liberal, foi questionada devido à ausência de
indenização para os senhores de escravos. De certo modo, esse também é um
argumento liberal, porque protesta que o direito de propriedade, disposto na
Constituição de 1824, não foi respeitado. A retirada súbita de uma propriedade,
declaravam, deveria ser indenizada. Em certos aspectos, isso também é um

3
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owed=y
argumento liberal, mas a favor da escravidão. É curioso como funcionavam as
contradições da época.
Aliás, voltemos no tempo para mencionar Diogo Feijó, regente uno durante o
período da regência. Feijó, defensor do liberalismo e da libertação dos escravos,
participou da revolução liberal de 1842 contra o governo. No entanto, não tinha
qualquer interesse no parlamento e no sistema representativo. Pelo contrário,
defendia um líder com mais poderes. Ele tinha um temperamento presidencialista em
pleno império. Bernardo Pereira de Vasconcelos, por outro lado, era o oposto. Ele
tinha a Inglaterra como modelo e defendia a existência de deputados, a
representação, a opinião forte. Ao mesmo tempo, apoiava a continuidade da
escravidão. São as contradições que existiam na época.

A Crise Monárquica e a questão militar


O regime entra em crise. Não nos alongaremos nos meandros da crise da
monarquia, mas é importante destacar a questão militar. Sobretudo a partir da guerra
do paraguai, surge uma insatisfação militar com o governo, que, em alguma medida,
talvez possa ser justificada. É possível que os militares merecessem ter tido uma
atenção maior do governo monárquico. Esse foi apenas um dos vários tiros nos
próprios pés que a monarquia deu para acabar.
Insatisfeitos, os militares começaram a querer militar e interferir na política,
uma característica que marcou a república, o século 20. Até porque, diante de
subsequentes ditaduras, estados de sítio e autoritarismos determinados pela própria
elite política, as instituições frágeis acabaram se apoiando e se sustentando nas
forças armadas. Sustentando, inclusive, as suas rotações e suas transições de regime
e de governo nas forças armadas. Isso, que veremos na República, tem início aí.
No final do Império, essa questão ganhou peso. A proclamação da República,
o feriado de 15 de novembro, foi um golpe militar. Foi um fenômeno antiliberal, um
dos caminhos errados que nossa nação tomou. Visconde de Ouro Preto, Presidente
do Conselho de Ministros, liberal, tinha montado um projeto para aumentar a
descentralização, pois a monarquia já havia entendido que essa era a via a ser
seguida a partir de então. O movimento neste sentido já existia, no entanto, a
atmosfera política e social não permitiu sua concretização.
Sobreveio o golpe militar, que depôs Visconde de Ouro Preto. Originalmente,
a ideia era somente mudar o gabinete. Contudo, os republicanos, que eram variados,
cujas diferenças abordaremos, acabaram conseguindo a destruição do regime e da
ordem constitucional como um todo, para fazer um novo país, um novo sistema, a
república tão sonhada. Até mesmo Assis Brasil, um importante liberal do Rio Grande
do Sul, participou desse momento militando pela república, afirmando que seria um
governo maravilhoso, que iria sanear os atrasos e levar o país até a grandeza com
que todos sonhavam. Para ele, era uma fatalidade histórica que a república existisse.
Essa mentalidade era um indício de uma certa influência, nos liberais, do positivismo,
em voga nessa época.
O positivismo, que ganhou peso na sociedade brasileira e na filosofia de
Augusto Comte, é marcado por uma ideia cientificista, por uma ideia de previsão muito
categórica do que são as etapas do desenvolvimento da sociedade. Além disso,
essencialmente, o positivismo tem desconfianças e receios em relação à opinião e ao
parlamento, porque ciência é ciência. Não há contrariedades. Por isso, opiniões e
interesses, no sentido de Silvestre Pinheiro Ferreira, não eram relevantes. Os
positivistas queriam saber dos fatos científicos. A sociedade poderia ser regida
também com base em programas científicos plenamente esquematizados, tornando
desnecessárias discussões sobre divergências e dissensões. De certa forma, esse é
um cacoete do pensamento positivista, que chega no Brasil e ganha fôlego sobretudo
entre os militares, muitos dos quais participam do golpe que depôs a monarquia.

Os diferentes grupos republicanos


Como mencionei, os republicanos também se diferenciavam entre si. Havia um
grupo, o qual nasce na Convenção de Itu, em 1870, que ganhou alguma importância
ainda no período monárquico e organizou o partido republicano em São Paulo. Eles
eram os republicanos mais liberais. Além de pleitearam uma constituição, defendiam
a implementação do liberalismo. Esses republicanos liberais desenvolvem uma
narrativa, presente em autores anteriores, de que a monarquia brasileira fora um
embuste criado no processo de independência, quando a vocação brasileira era
republicana. Deste modo, o Brasil deveria ter sido uma república desde 1822. Isso
somente não aconteceu porque os monarquistas impuseram a instituição monárquica.
Com isso, constroem a narrativa de que corrigiriam os rumos do país, colocando no
caminho que tinha que estar seguindo pela sua vocação natural. Ademais, afirmam
que os anseios republicanos foram suprimidos.
Isso é uma bobagem, porque mesmo no período de declínio da monarquia, a
sociedade em geral continuava respeitando o imperador D. Pedro II. D. Pedro II
apanhava muito da imprensa porque existia ampla liberdade para esta. Por isso, era
possível vilipendiar o imperador à vontade. Na República, a situação foi diferente.
Além disso, havia muito pouca adesão ao pensamento e ao partido republicano. A
descrença no regime, a descrença no sistema estabelecido, a descrença no poder
moderador, o fato de a monarquia já não mais poder existir naquela funcionalidade,
naquelas condições e caracteres que tinha, ganhou fôlego na reta final da monarquia.
Todas essas descrenças, no entanto, não significavam uma crença na república.
Diga-se de passagem, a maioria daqueles que tensionavam fazer mudanças nesses
aspectos, queriam esperar a morte do imperador para proclamar a república. O golpe,
de certa forma, foi uma precipitação. A adesão ao movimento republicano era muito
escassa, muito limitada, era uma defesa de alguns. Foram esses alguns que
impuseram ao país a República, o qual, conforme Aristídes Lobo, assistiu,
bestializado, àquela transição.
Este movimento mais liberal, mais federalista e mais constitucionalista,
enraíza-se em São Paulo. São esses republicanos que começam a desenvolver essa
narrativa e essa visão de um Brasil pujante, das riquezas locais, do qual São Paulo é
a grande locomotiva. Os positivistas puros, por outro lado, queriam a ditadura
republicana. A república sonhada por eles é esse governo científico, sem parlamento,
baseado na ciência da sociedade, em que o governante impõe o que é melhor a todos
independentemente do que pensem. Havia os jacobinos, expressão inspirada nos
feitores do terror jacobino da França revolucionária, que eram alas radicais, militares,
nacionalistas, populistas, daquele movimento republicano que exerceu peso na
sustentação de Floriano Peixoto, que criou o florianismo. O florianismo era um
movimento em torno da imagem de Floriano Peixoto, de sua personalidade como líder
nacional. Esses ingredientes personalistas são essencialmente antiliberais e são o
berço e a introdução de muitos aspectos que aparecem mais à frente, na república.
O golpe republicano mata a narrativa de representação dos interesses
construída por Silvestre Pinheiro Ferreira. Com isso, os republicanos extinguem a
preocupação com a representação de interesses, existente na monarquia, e adotam
uma retórica do povo. Como a república representa o povo, os partidos conservador
e liberal não são necessários. É o povo quem está ali decidindo. Nós, o governo,
somos o povo. Isso dificulta a organização da sociedade. O professor Antonio Paim,
afirma que, embora tecnicamente não seja exatamente isso, a República Velha é um
regime de partido único praticamente, porque há o partido republicano fluminense, o
partido republicano rio-grandense é o partido republicano.
Comentário de aluno: o João Camilo de Oliveira Torres diz que é um unipartidarismo
de base estadual.
Portanto, perde-se essa preocupação com os partidos e tem-se, praticamente,
um regime de partido único. Era simplesmente uma elite, uma oligarquia política, que
queria canais de expressão e os tinha nos partidos republicanos regionais e locais.
Não havia, essencialmente, substância de pensamento a entrar em choque, a
divergir, a discutir, no parlamento brasileiro. Este era muito mais uma oligarquia
procurando canais de se expressar.

A República da Espada
Esse sistema político tem início com um autoritarismo militar. A República da
Espada, de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, era um governo militar,
repressor, que perseguia a oposição, que praticava censura. A República nasce,
portanto, com contornos essencialmente antiliberais. No entanto, a Constituinte de
1891 apresentava um componente liberal constitucionalista, o qual ganhou força na
elaboração inicial da república, pelo simples fato de ter prevalecido a ideia de haver
uma constituição. Rui Barbosa participou dessa constituição, estabelecendo
delimitações constitucionais. Um dos exemplos que se destaca nesta constituinte é a
liberdade religiosa.
Um detalhe interessante é que o espiritismo chegou ao Brasil durante o período
do império e D. Pedro II era extremamente tolerante com as sociedades espíritas.
Entretanto, no início da década de 1890, na República, teoricamente um Estado laico,
em que a liberdade religiosa era garantida a todos, o espiritismo foi proibido via código
penal. Ou seja, a liberdade religiosa, nesta circunstância, era mais um discurso do
que uma realidade. Houve uma luta tremenda para legalização das práticas espíritas.
Essa contradição entre prática e discurso é inerente, não tem jeito.
Por isso, temos que entender, a despeito das contradições e das limitações
que são inevitáveis, a força que essas ideias liberais, presentes ao longo de todo esse
tempo, construindo-se e estimulando um imaginário, uma atitude política, um
pensamento na sociedade brasileira, tem. Temos que reconhecer que o liberalismo
tem presença e atravessou a nossa história muito mais do que, por exemplo, a da
Rússia. A influência do liberalismo no Brasil, construindo as nossas instituições e o
imaginário da nossa elite política, é muito maior do que a influência do liberalismo na
Rússia. Nesse ponto, nós temos vantagem. E precisamos conhecer essa vantagem,
conhecer esses nomes, conhecer esse processo, para apoiar, nessa experiência, no
que eles têm para oferecer para o nosso imaginário, para o nosso enriquecimento
intelectual. Além disso, também conhecer no que eles erraram, em que pecaram,
onde as limitações do tempo prevaleceram, para não repetirmos esses erros.
A implantação da República com o golpe militar de 15 de novembro de 1889
foi a ruptura institucional mais radical, inaugural de todas as outras radicais que o
Brasil viria a ter século 20 a dentro. Recapitulando brevemente: formou-se uma elite
republicana que combinava: estadistas egressos do império, os quais concedem
alguma substância liberal com fôlego a ponto de impor a existência de uma
constituição, que é a Constituição de 1891; liberais como Rui Barbosa e
constitucionalistas egressos do movimento republicano de Itu de 1870 e as alas mais
militaristas e centralizadoras em que havia uma presença muito forte do positivismo
que, sem converter os liberais à sua visão política ou às suas consequências políticas
integralmente, influenciou o pensamento de alguns desses liberais que participavam
dessa república, o que fez com que, por exemplo, a retórica dele seja essa do povo
em vez dos interesses. Isso justifica a existência desse regime de partido único da
república velha.
Do outro lado, havia os positivistas puros, os chamados jacobinos, que
construíram aquela visão nacionalistas, militarista, radical, que desembocou no culto
ao florianismo, culto à personalidade de Floriano Peixoto. Os governos de Deodoro
da Fonseca e de Floriano Peixoto são marcados por essa característica, por essa
consistência militar. Não à toa, foram batizados de República da Espada, devido à
repressão, à censura, à perseguição ao divergente, inclusive, por óbvio, aos
monarquistas.

A República Velha
Quando Prudente de Moraes ocupa o cargo da presidência, consegue-se que
um civil assuma o poder, ainda em um momento de conturbações e brigas entre esses
grupos. Apesar das tentativas de atentado e de subtraí-lo da presidência, Prudente
de Moraes sustentou sua posição presidencial e teve o mérito de manter e estabelecer
uma linhagem civil e constitucional, evitando o regresso à República da Espada.
Em sequência a Prudente de Moraes, Campos Sales assumiu a presidência,
sendo um dos elementos-chave para compreender esse período. Campos Sales é
importante porque consagrou o grande pacto que construiu o sistema político daquele
momento. Face à ausência do poder moderador e das intervenções do monarca para
equilibrar o sistema político, estabeleceu-se um pacto com as oligarquias locais,
assentado em um discurso federalista, que era o discurso republicano por excelência.
No regime republicano, as províncias passaram a se chamar estados e a usufruir de
maior autonomia. Tal autonomia era concedida às elites e às oligarquias dos estados
em troca de apoio ao presidente e ao poder central. Na prática, era uma autonomia
que colocava essas elites na dependência do presidente e vice-versa. Havia
estruturas de apoio, como a Comissão Verificadora dos Eleitos, a qual incumbia julgar
a validade ou invalidade das eleições. Essa comissão, obviamente, favorecia os
interesses da situação que, na prática, era uma situação única. Na República Velha,
era muito difícil conseguir uma rotação de poder. A Oligarquia definia qual seria seu
candidato e, basicamente, passava ritualmente o poder para o sucessor.
Não é verdade que essa estrutura permaneceu monolítica e perfeita durante
todo tempo. Há, eventualmente, um Pinheiro Machado na história. Pinheiro Machado
era um senador que tentou, de todas as formas, inclusive manipulando as oligarquias,
eleger seu candidato, Hermes da Fonseca, provocando o rompimento de uma
sequência de sucessões daqueles que eram indicados fielmente pelas elites mineira
e paulista. Hermes da Fonseca era um militar e trazia consigo essa dimensão
militarista de volta para a presidência. No entanto, grosso modo, o que se verifica
nesse período é uma rotação dos presidentes através de acordos entre as oligarquias
e as elites. A institucionalidade existente impunha que a rotação de poder se desse
pelas armas.
Há uma impressão muito errada de que este foi um período de calmaria, de
marasmo, em que os fazendeiros, sentados, decidiam quem assumiria o poder. Essa
não é uma percepção precisa, pois a República Velha foi marcada por guerras e
revoltas. Houve a guerra de canudos, a revolta do contestado, duas revoltas
federalistas no Rio Grande do Sul.
A revolta federalista de Gaspar Silveira Martins, um homem que, de início, era
simpático à monarquia, confrontou-se, assim como Assis Brasil, mais recentemente,
com o castilhismo na sua nascença. O castilhismo é um sistema de pensamento
político que surge com Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, sendo uma adaptação
do pensamento político positivista à atmosfera gaúcha. O castilhismo também
encampa as ideias do reforço à autoridade e da política dos grandes homens. Ao
mesmo tempo, apresenta uma desconfiança no liberalismo e no parlamentarismo
igualmente presentes no positivismo, mas elevadas à enésima potência. O
castilhismo nasce como cultura política, como tradição política, no Rio Grande do Sul.
É a proposta de autoritarismo mais coerente, mais bem formada, mais bem
estabelecida que surge na República Velha. O castilhismo foi decisivo para o que
aconteceu nas décadas seguintes, quando da Revolução de 1930 e da ascensão de
Getúlio Vargas ao poder.
Nesse período, ainda vigora o sistema de Campos Sales, a política dos
governadores, acompanhada de sucessões presidenciais estipuladas pelas
oligarquias, somente com algumas interrupções na base da maquinação, como foi o
caso do Hermes da Fonseca por Pinheiro Machado. A eleição de Hermes da Fonseca
redundou na política das salvações, que nada mais é do que o uso da violência, o uso
da intervenção militar, nos estados, para corrigir os desentendimentos entre Hermes
da Fonseca e as oligarquias e elites estaduais.
Há, também, uma sucessão de estados de sítio sendo declarados justamente
por aqueles que se diziam os liberais constitucionalistas, os liberais bacharéis, da
República Velha. Chama-se, inclusive, a política desse período de bacharelismo
liberal. Conquanto o nome, a prática política era de recursos constantes à censura e
ao estado de sítio, diante das revoltas que começam a aparecer no início da década
de 1920, principalmente as revoltas tenentistas, as quais tumultuam o governo de
Artur Bernardes. No mandato de Epitácio Pessoa, ocorre a Greve Geral de 1917, e
há a introdução do anarquismo e do comunismo no Brasil. É nesse período que as
ideias que reconhecemos como sendo as ideias da esquerda moderna, da ideia
contemporânea, ganham fôlego e penetram no Brasil. Alguns autores menciona que,
na época imperial, já havia registros de socialismo utópico. Nas revoluções de
Pernambuco, estavam presentes os pensamentos de Fourier, Saint-Simon, do
socialismo utópico pré-marxista. Mas, grosso modo, no Império, a esquerda mais
radical e transgressora era o democratismo rousseauniano, ou seja, as ideias de
Rousseau. Na República Velha, por outro lado, os comunistas e os anarquistas, que
conhecemos bem hoje e no século 20, começam a se organizar. Em um primeiro
momento, por incrível que pareça, os anarquistas apresentavam vantagem em
relação aos comunistas, pois usufruíam de maior presença entre o operariado. Nessa
época, cria-se o partido comunista, que se torna uma força política relevante. Na
minha modesta avaliação, nunca a ponto de justificar um golpe de Estado para evitar
um perigo comunista, como alegou Getúlio Vargas na década de 1930. Mas houve,
verdadeiramente, a Intentona Comunista em 1935, e o comunismo começava a
ganhar corpo e substância no Brasil.
O panorama era o seguinte: no sul, havia o castilhismo. O comunismo, de fonte
marxista, avolumava-se. Havia alternativas autoritárias conquistando espaço. No
poder, o liberalismo se contrazia e era incapaz de recuperar a força do sistema de
representação por interesses que a monarquia havia absorvido no século 20.
Portanto, era um liberalismo que se enfraquecia e se sabotava, mas estava ali.

Os contestadores
Havia quem questionasse a maneira como o liberalismo se conduzia. Um dos
principais dentre esses personagens era Rui Barbosa. Rui Barbosa era um dos
bacharéis, intelectuais, da política da época. Por sua maior preocupação ser com a
federação, ele aderiu à república. Rui Barbosa possuía discordância com Campos
Sales em relação ao presidencialismo. Enquanto Campos Sales acreditava que o
presidencialismo era necessário, inevitável, o único caminho compatível com a
federação, Rui Barbosa entendia que o parlamentarismo não era necessariamente
incompatível com o sistema político brasileiro. Em sua concepção, seu funcionamento
era uma possibilidade. Além disso, Rui Barbosa preconizava uma importância maior
para o poder judiciário. Como ministro do governo militar do Deodoro da Fonseca, um
liberal no governo militar - eram os arranjos da época - ele é encantado com a ideia
de industrialização, de levar o país a um caminho industrial. Para fazer isso, Rui
Barbosa emitiu moeda. Até hoje, discute-se até que ponto teve responsabilidade pelo
desastre do encilhamento ou se a crise decorreu de algo anterior, tendo em vista que,
no último mandato imperial, Visconde de Ouro Preto também estava gerenciando a
moeda.
De qualquer forma, politicamente, intelectualmente, institucionalmente, Rui
Barbosa se destaca por sua briga contra o regime vigente na República Velha. Ele
dizia, com todas as letras, que havia uma oligarquia comandando o país. Para
combatê-la, lançava-se como anticandidato, propondo reformas eleitorais, reformas
institucionais, jurídicas, as quais concretizariam um sistema liberal de fato e não
meramente na ficção, na aparência, sem recorrer ao estado de sítio e aos militares.
Em 1910, Rui Barbosa se sobressaia devido à campanha civilista, que defendia o
afastamento do grupo jacobino, militarista, da condução dos fatos, evitando que o
Brasil seguisse o caminho de nações militarizadas, e direcionando para o caminho do
Reino Unido, o caminho britânico. Rui Barbosa lutou usando as armas à disposição.
Isso significa que, para ser candidato e abater o sistema estabelecido, também se
juntou com alguns oligarcas, sem nunca vencer.
Simultaneamente, no sul, Assis Brasil, também um liberal, participa da Revolta
Federalista contra os castilhistas, desafiando essa proposta autoritária, teórica,
desenvolvida no Rio Grande do Sul. Assis Brasil era um presidencialista, uma vez que
dava importância ao presidente, mas, ao mesmo tempo, defendia a federação e a
descentralização.
Nenhum dos dois, segundo o professor Antonio Paim, com todas as qualidades
que têm, recupera a perdida representação por interesses, a organização de partidos.
Ressalta-se, no entanto, que o Rio Grande do Sul, com a atuação de figuras como
Assis Brasil, Gaspar Silveira Martins e companhia, é o único estado que realmente
criou, naquela época, partidos, ao contrário do resto do Brasil. De fato, havia uma
divisão no Rio Grande do Sul, que o castilhismo provoca e essa reação liberal
corporifica.
Fato é que nem Rui Barbosa nem Assis Brasil contribuem para recuperação
da representação por interesses e para que se organize a discussão em termos da
formação de partidos, de núcleos partidários, de mobilizações do eleitorado e da
sociedade civil.
Outro aspecto a ser mencionado é que Rui Barbosa fazia excursões pelo país,
em que falava diretamente ao povo, criando uma cultura do diálogo direto, uma cultura
do comício, praticamente inexistente antes dele. Rui Barbosa constrói essa atmosfera
crescente falando ao público, às pessoas, defendendo a sua campanha civilista.
Na reta final da República Velha, um terceiro nome, pouco conhecido, vem
compor essa lista: João Arruda. João Arruda é um liberal de São Paulo, da área do
direito, que usa a expressão ultraliberal para se definir. Ultraliberal não tem o mesmo
sentido que os libertários de hoje, que defendem anarquismo, abolição do Estado,
privatização de ruas, nada disso. João Arruda apoiava o sistema representativo e
todas as franquias liberais. Além disso, acreditava na diluição da figura do presidente
através da instituição de um Conselho de gestores, pois era contra a existência de
uma pessoa concentrando tanto poder. João Arruda foi responsável por introduzir, na
literatura liberal brasileira, uma sentença que, futuramente, foi encampada como lema
pela UDN, cuja autoria titubeia entre Thomas Jefferson e Patrick Henry: “o preço da
liberdade é a eterna vigilância”. Sentença mais liberal que essa não pode haver,
porque a atividade liberal, por excelência, é a oposição, é a fiscalização do poder. O
poder liberal, por excelência, é o legislativo, é ter força no legislativo, para fiscalizar,
para controlar, para acompanhar e para conter os extravasamentos e exageros do
poder executivo.
Essa sentença entrou no imaginário liberal brasileiro através de João Arruda e
foi absorvida na primeira tentativa de se organizar um partido, a União Democrática
Brasileira, com base nessas ideias de Rui Barbosa, de rompimento com o sistema
oligárquico, de uma reforma eleitoral e de acabar com a Comissão Verificadora.
Armando de Sales Oliveira fez uma experiência de governo em São Paulo baseada
nessas ideias, que são ideias economicamente as mais liberais do momento no país,
mas que enfatizavam a presença do Estado em muitas atividades. A consciência da
necessidade de haver uma institucionalidade liberal contendo o autoritarismo
castilhista, o qual dispensava tudo isso, tinha ali ainda o seu fôlego. Esse fôlego foi
totalmente eclipsado com a revolução de 1930 e com o Estado Novo. Isso é
interessante porque, ao mesmo tempo, o movimento tenentista, formado de baixas
patentes militares, era um movimento que se insurgia contra essas oligarquias
dominantes da República Velha. Esse movimento trazia, no bojo, pregações e ideias
que, de alguma sorte, ecoavam a pregação do Rui Barbosa. O voto secreto a fim de
acabar com o voto de cabresto e a luta por encerrar a comissão dos eleitos são
exemplos de bandeiras que se vão no sentido de dar mais transparência ao sistema,
de densificar, enraizar o sistema transparente do ponto de vista liberal, político, da
democracia liberal. Claro, dependendo da acepção de democracia que se utilize. No
berço aristotélico, a democracia, uma forma de governo, degenera-se na demagogia,
nessa crença absoluta na vontade da maioria, na vontade do povo. Contudo, no final
do século 19 e no século 20, um esforço para casar o aumento da participação popular
no processo decisório, a criação da democracia de massa, com a manutenção de
pesos e contrapesos, de regras e de instituições que colocassem e mantivessem isso
nos eixos. Ou seja, a fim de que se mantivesse uma continuidade institucional sem
incorrer naquilo que Aristóteles chamava de demagogia. Na verdade, a pólis, a
república, era o sistema que tentava combinar características de participação, de
autoridade, de legalidade, de maneira virtuosa. Era o que esses liberais tentavam
fazer, desconfiando da demagogia, da tirania que, no caso brasileiro, segundo os
liberais da UDN, os quais apareceram posteriormente, sequestrou essa penetração
da massa no processo para fins autoritários, populistas, porque identificou-se essa
massa com o pai dos pobres, o salvador, o grande líder.
Nesse momento, portanto, o tenentismo apresenta essas bandeiras rui
barbosianas, de moralização do sistema. Ao mesmo tempo, contudo, existia uma
vagueza em suas propostas que abria margem para soluções consideradas
centralizadoras e de força para remexer esse sistema.

A vitória da Revolução de 1930


A Revolução de 1930 levou os tenentistas ao poder e, em um primeiro
momento, também essas bandeiras. Foram estas que concorreram nas eleições com
o rótulo de Aliança Liberal, através de Getúlio Vargas, contra Júlio Prestes, o indicado
de Washington Luís, este o último presidente da República Velha. A Aliança Liberal
se apresentava como a personificação desse anseio por acabar com essa oligarquia.
Entretanto, na verdade, era um movimento capitaneado por oligarquias descontentes,
que queriam eleger Getúlio em um voto de protesto contra a situação estabelecida.
Eles não conseguem e Júlio Prestes é eleito. Partem, então, para a reação armada,
para a Revolução de 1930, com apoio da sociedade. Houve manifestações e um
público que comemorou o feito, porque as pessoas queriam abolir aquele sistema
fictício, aquela ficção jurídica que era a República Velha.
O componente centralizador, para o qual havia margem, rapidamente passa a
prevalecer sobre as bandeiras genuínas, que eram realmente desejadas. Prevalece,
vale dizer, em um momento em que o liberalismo sofre os seus períodos mais
dramáticos. O liberalismo leva as suas maiores surras no mundo, não só no Brasil,
com a ascensão de forças totalitárias na Europa, como o fascismo, o nazismo e, na
União Soviética, o stalinismo. A onda do momento eram essas ideologias autoritárias
que apostavam no Estado, neste trazendo para si a massa, personificando-a no líder,
que devia ser cultuado. A retórica de Hitler, de Mussolini, de Getúlio Vargas, era de
que o parlamento, as discussões, só enfraquecem o regime, o sistema, e dividem a
sociedade. Vargas chegou a declarar que os partidos políticos eram um problema
porque dividiam a sociedade, o contrário do que pensava a elite imperial na questão
da representação por interesses. A independência e a autonomia dos estados, para
Getúlio, eram forças dispersivas. Por isso, um de seus primeiros atos foi mandar
queimar as bandeiras estaduais. Passou a vigorar somente uma bandeira, a do Brasil,
a bandeira do ordem e progresso. Fabricar-se-ia uma unidade baseada na força, na
autoridade de Vargas, e no regime por ele estabelecido. Os líderes autoritários e
totalitários daquela época, quaisquer que fossem as cores ideológicas de que
revestissem sua retórica, adotavam uma retórica por excelência antiliberal.
Na Constituinte de 1934, existia um certo tradicionalismo antiliberal, com uma
representação católica relevante. Na constituinte, o deputado Luiz Sucupira afirmou
que o Brasil deveria evoluir em direção ao estado corporativo, ao estado totalitário.
Ele usava expressa a palavra totalitário. Temos portanto um parlamentar falando, no
parlamento, que o caminho certo é o totalitarismo. Sucupira também afirma que o
parlamento é temporário, que o mundo já provou que o caminho não é o liberalismo,
que é preciso dar mais um passo e ir para o totalitarismo, para o estado corporativo.
Obviamente, houve críticas. Isso prova que o trabalho realizado por João Arruda e de
Armando Sales Oliveira produziu resultados, pois havia grupos baseados em suas
pregações insurgindo-se contra a defesa do autoritarismo no parlamento. No entanto,
o trabalho de cooptação das massas, do operariado, do povo, toda a máquina que
Vargas construiu prevaleceu sobre as tentativas de manter as coisas nos seus
devidos lugares.
A Revolução de 1930 ficou dois anos sem nenhuma constituição. É comum
afirmar que a ditadura do Vargas começa em 1937, com a implementação do Estado
Novo. Contudo, esse momento inicial é pior, porque na ditadura do Estado Novo, há
a constituição de 1937, do Francisco de Campos. Ainda que estabeleça o presidente
como grande mandatário, há um texto, uma regra, uma limitação, em tese,
estabelecida por escrito, de como será o funcionamento daquele regime. Em 1930,
não havia sequer isso. Houve o rompimento com a República Velha, com o sistema
antecessor, que foi substituído pelo governo provisório. “Provisório”, pois Vargas se
manteve durante 15 anos no poder, sob a justificativa de preparar a nação.

A Revolução Constitucionalista de 1932


A constituição foi feita muito em função de uma reação liberal. Muitas pessoas
falam que a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, foi simplesmente
um movimento dos descontentes da República Velha, dos oligarcas, contra a ditadura
da Revolução de 1930, a ditadura do Vargas, do governo provisório. Encaram a
Revolução de 1932 como uma reação da parcela da população que queria que tudo
ficasse como estava. No entanto, a Revolução Constitucionalista contou com a
participação dos membros do Partido Paulista, que inicialmente haviam apoiado a
revolução de 1930. Assim, não eram indivíduos que queriam manter as coisas como
estavam. Na realidade, a Revolução de 1932 foi realizada por uma amálgama de
forças paulistas contra a perpetuação daquele governo provisório. Eles exigiam uma
constituição e afirmavam que não haviam pleiteado para substituir a República Velha,
uma república de oligarcas que manipulavam a constituição, por uma ditadura de
oligarcas sem nenhuma constituição. Apesar de ser derrotada, a Revolução de 1932,
a meu ver, é um marco da luta pela liberdade, pela constituição, pela legalidade, no
Brasil, que deve ser reconhecida nessa sua substância, nessa sua natureza, a
despeito das prevenções e dos preconceitos que se lançam contra ela.
Constrói-se, com certo apoio de Assis Brasil, uma conciliação em torno da
perspectiva de uma constituição em 1934. Vargas conseguiu manipulá-la, colocando
seus pelegos para votar, o que lhe garantiu a continuidade como primeiro presidente
após a promulgação e o prolongamento do governo provisório.
No período próximo às eleições, era perceptível a ascensão do pensamento
centralizador e autoritário no universo político brasileiro. A ideologia da revolução de
1930 que prevaleceu com Vargas, inspirada no castilhismo, que transportou este para
âmbito nacional, era centralizadora. O comunismo já estava presente no país,
manifestando-se. Por fim, neste contexto, houve a emergência do integralismo. Os
candidatos da eleição de 1937, que não ocorreu, eram: Plínio Salgado, integralista;
José Américo, representando o governo, ou seja, representando a situação existente,
centralizadora, ainda que fosse mais liberal que Vargas e; Armando Sales de Oliveira,
pela UDN, solitário, com uma bandeira de democracia liberal, com a meta de colocar
as coisas nos eixos e não desembocar apaixonadamente para o Estado totalitário.

O golpe do Estado Novo


Essa disputa não foi posta à prova pois Vargas surgiu com o Plano Cohen,
declarando que havia uma grande armação comunista para tomar o poder. Existissem
ou não tais planos, Vargas daria um jeito de permanecer no poder, pois era sua índole,
sua personalidade, como enfatizamos, pelos discursos que desenvolveu. Em sua
concepção, o Brasil precisava da unidade absoluta, com a destruição da rica
diversidade das regiões dando lugar à construção de uma cultura nacional
estabelecida. A meu ver, isso é um absurdo, uma contradição em si mesmo, porque
a nossa riqueza vem justamente das diferenças que temos, das riquezas que temos
regionalmente, das pluralidades. Isso engrandece a nossa pátria. Mas Getúlio não
pensava assim. Ele dá o golpe do Estado Novo e implantando um regime com o
mesmo nome do regime português do Salazar. Um regime que tem essa vocação por
fechar o congresso e estabelecer, de fato, o antiliberalismo completo. Esse é o
momento mais trevoso e de mais absoluta supressão do liberalismo no Brasil. O
liberalismo está calado, morto, banido, sufocado. Friso que esta não foi a única
ditadura que o Brasil teve, mas foi a mais completa, a que mais merece que esse
rótulo seja estampado em letras garrafais, a ditadura do Vargas, alicerçada em sua
autoridade pessoal. Vargas governava muito pela acomodação e ócio das forças
políticas, que permitiram que ele perpetuasse seu regime opressor, violento, que
apresentava um departamento de imprensa e propaganda e que construiu uma
máquina de propaganda sofisticadíssima, uma réplica do que vinha sendo feito na
Europa. Houve trocas de informações, de experiência, e até uma afinidade notória
com a Alemanha nazista e com o fascismo. A CLT buscou inspiração na Carta del
Lavoro. Dutra, um dos militares que participaram do golpe, era um germanófolo,
admirava o regime nacional-socialista alemão. Havia uma aproximação desses
líderes e homens de mentalidade antiliberal e parecia que esse era o caminho.
Mussolini, na doutrina do fascismo, afirma justamente que este é o caminho, o futuro,
que o liberalismo acabou e que o totalitarismo é a resposta que o mundo precisa. O
século 20 será o século do totalitarismo.
Essa era a substância da ditadura varguista. Uma ditadura anticomunista, que
perseguiu os comunistas, os quais, posteriormente, em 1950, aliaram-se a Vargas,
por uma orientação do Comintern. O Comintern ordenava que, onde os comunistas
não tivessem condições de estabelecer a revolução para impor a ditadura do
proletariado, apoiassem os governos nacional-populistas, que promoveriam, no
linguajar marxista, revoluções burguesas contra as oligarquias liberais,
encaminhando os países em uma direção que, depois, cavalgando esses regimes
nacionais-populistas, os comunistas poderiam tomar a frente, assumindo o
protagonismo. É exatamente isso que os comunistas vão pensar em 1964, com João
Goulart e Brizola. Os comunistas eram e continuam sendo os mestres em estratégia.
Embora, agora, estejam levemente perdidos.
A ditadura de Vargas foi um momento de total eclipse do liberalismo. É preciso
enaltecer que a sociedade brasileira não tinha o pensamento do Eixo, ao contrário de
seus líderes. Houve manifestações, sobretudo quando a Alemanha atacou o navio
brasileiro. Existia características do espírito ocidental incompatíveis com esse delírio
totalitário, tanto que nossos pracinhas vão à Itália lutar pela liberdade de homens que
nunca viram, que nunca conheceram, uma outra realidade da qual nunca
participaram, arriscando dar suas vidas por essa liberdade. É uma luta brasileira pela
liberdade, embora não se insira no contexto de um liberalismo teórico, do pensamento
doutrinário liberal, esse sacrifício dos pracinhas é uma demonstração do anseio do
brasileiro, de identificação do brasileiro, com as liberdades, algo que merece ser
enaltecido. Os pracinhas arriscaram suas vidas pela liberdade de quem nem
conheciam, de outra nação que não a sua própria, de um continente que não o seu
próprio.
Quando esses pracinhas regressam, o liberalismo volta a ter algum vigor e a
se insurgir contra o estado de coisas estabelecido. Naquele cenário, começa a fazer
pouco sentido nosso exército lutar em uma guerra contra os fascistas, contra a
ditadura, pelos aliados, pelo Ocidente, e ser uma ditadura. Essa falta de sentido
desperta algumas vozes, como a dos mineiros, em 1943. Os mineiros assinaram um
manifesto, um texto histórico importante do liberalismo brasileiro, no qual expressam
que o desenvolvimento econômico e social brasileiros não depende da ditadura do
Getúlio Vargas. Os mineiros publicaram: nós não precisamos do totalitarismo. Nós
não precisamos do autoritarismo. Nós não precisamos do corporativismo e do
justicialismo4.
Esse caráter ditatorial de Vargas, sem substância ideológica doutrinária
estabelecida, muito embora houvesse influência do castilhismo, ia na direção do
antiamericanismo e decorria de sua própria natureza a ideia de um Estado forte,
interventor, de uma industrialização forçada pelo Estado. Neste ponto, estabelece-se
um debate, marcante no liberalismo brasileiro, entre o professor Eugênio Gudin com
o Roberto Simonsen, defendendo o liberalismo econômico. O professor Eugênio
Gudin, embora tenha apoiado o ato institucional n.º 2, era o grande campeão do

4
O justicialismo é a expressão técnica usada para se referir ao regime peronista, que
apresentava semelhanças com o regime de Vargas. Eram os regimes populistas latino-
americanos impostos por ditadores que tentaram cooptar as bases operárias e da elite,
simultaneamente, com um discurso quimérico. A lei do país sai da cabeça do ditador.
liberalismo econômico naquele momento, e permaneceu neste posto durante quase
todo o século 20, sendo mais liberal economicamente do que o Roberto Campos.
Muitos descredenciam o liberalismo de Roberto Campos devido a iniciativas que
adotou quando estava no Ministério do Planejamento do Castelo Branco. Contudo, se
consideradas as limitações da época, Roberto Campos era um dos mais liberais do
Brasil. Ele já falava, por exemplo, em voucher para ensino. Por isso, descredenciar
seu liberalismo por limitações que tinha, como todos tinham, parece-me uma grande
injustiça.

O fim do Estado Novo


Com a volta dos pracinhas e o manifesto dos mineiros, estabelece-se uma
pressão para que Getúlio Vargas abra o regime, que acaba acontecendo. No entanto,
às vésperas da transição do regime, Vargas começa a arquitetar certos movimentos
a fim de favorecer a sua máquina. Isso faz com que seja necessário, e é preciso
entender isso sobre o período, a existência de um golpe militar na ditadura, uma ação
armada para depor o Vargas, em outubro de 1945, a fim de realizar as eleições. Isso
é muito interessante. Contudo, a reforma eleitoral que havia sido feita foi comandada
por Agamenon Magalhães, ministro do Vargas, um apoiador da ditadura de longa
data. Vargas, o ditador, foi passar férias em São Borja, para voltar, cinco anos depois,
com a bênção de toda máquina autoritária que havia montado. Então, é uma
reintrodução democrática que também tem profundas deficiências.
Neste momento, cabe enfatizar o que foi a UDN. A UDN se organiza, em um
primeiro momento, para representar o anteparo antivarguista no sistema político que
se estabelece, porque dois dos três grandes partidos são egressos da máquina
varguista. Diz-se que o PSD é o partido conservador, o PTB é o partido trabalhista e
a UDN é o partido liberal. Mas, conservador do quê? O PSD era o partido conservador
do Estado Novo, era um partido que não se preocupava com a substância histórica
brasileira, com o legado histórico brasileiro, e com a construção dessa unidade
histórico-conceitual que diz respeito à maioria dos partidos conservadores no mundo.
Nada disso. Era um partido que abrigava os egressos da máquina de poder da
ditadura, os interventores, aqueles que mandaram nos estados sem constituição, sem
lei, e que passaram a ser políticos. A máquina do PSD era a base elitista de apoio do
governo do Vargas. O PTB, por outro lado, era a base trabalhista, a base dos pelegos.
Vargas introduziu, nos dois partidos, homens de sua confiança. Nesse momento,
Amaral Peixoto é presidente do PSD, e o Lutero Vargas presidente do PTB, partido
através do qual Getúlio Vargas se candidata. Ele se candidata em vários estados
simultaneamente, para puxar voto com o objetivo de fazer com que pessoas de sua
confiança ocupassem o poder. Nada é feito quanto a isso. Vargas se elege como
senador do Rio Grande do Sul pelo PTB.
Com a revolução de 1930, instaurou-se erroneamente, no Brasil, esse sistema
eleitoral deturpado, proporcional, de puxar votos, que não é na lista fechada do
partido. Isso estimula alianças que não tinham consistência em princípios. Há estados
em que o PTB e a UDN se coligam. Não há coerência ou coesão. Esses partidos
deveriam ser grandes adversários, coligando-se para puxar votos. Lacerda fica
horrorizado com isso. Nessa senda de puxar votos, com a máquina da ditadura toda
montada e intocada, com a legislação eleitoral decorrendo do regime varguista, o
varguismo, nas suas vertentes psedista e petebista, sempre prevalece, com a única
exceção do Jânio Quadros.
A UDN começa com uma frente de organização de todas as forças políticas
que reagiam a essa máquina, indivíduos que queriam enfrentar o legado do Vargas,
inclusive socialistas. Com o tempo, os socialistas desfiliam-se para criar o Partido
Socialista Brasileiro, do Miguel Arraes. Com isso, a UDN se torna o reduto, ao mesmo
tempo, de diferentes espectros. Havia uma substância liberal conduzindo a UDN, que
abrigava liberais históricos, figuras como Milton Campos, Afonso Arinos de Melo
Franco, Carlos Lacerda, o qual preferia enfatizar a sua simpatia pela democracia
cristã, mas realçava sua inspiração na economia social de mercado, do
ordoliberalismo alemão. Havia, igualmente, uma ala udenista à bossa nova, mais
populista e pró-Estado. Havia, também, uma ala oligárquica, no nordeste, que não
diferia muito das antigas oligarquias. A UDN era um partido que também estava
poluído pelo sistema, inclusive, pelo sistema de puxar votos. Havia, no entanto, um
liberalismo consistente dentro da UDN, real, que desafiava o legado varguista. Porém,
muito ligado também aos grupos militares, o que levava a UDN a apoiar intervenções
militares, em determinadas ocasiões.
No final desse período, há uma polarização incensada da sociedade brasileira,
pelas iniciativas do presidente João Goulart de colocar as instituições em uma posição
de serem achacadas pelos sindicatos, que eram tomados de comunistas, os quais
dominavam as diretorias dos sindicatos, com o apoio de seu governo. As Forças
Armadas já estão penetradas pela ideologias de esquerda, prontas inclusive para sair
na briga com a polícia. Houve um caso desses na sede de um sindicato, em que os
militares, comandados pelo Almirante Aragão, brigaram com a polícia. Um cenário em
que a sociedade está horrorizada com as perspectivas de o Brasil caminhar na
direção de um regime mais parecido com os regimes de esquerda, no sentido
antidemocrático, antiparlamentar, antiliberal do termo, independentemente se esse
regime seria ou não comunista. É interessante enfatizar isso, porque João Goulart era
filhote do petebismo, do varguismo e acompanhou o processo de prevalência das
forças varguistas durante todo aquele tempo. Ele não era comunista, mas poderia
haver, com a prevalência das forças que o cercavam, entre elas, a do radical cunhado,
Leonel Brizola, um gaúcho que foi exportado para o Rio de Janeiro, a implantação
de um Estado Novo, uma vez que era varguista, ou a implantação do comunismo, à
sua revelia e de suas opiniões e interesses, amoldado ao regime cubano.

O golpe parlamentar
Os liberais, as forças liberais, neste momento, estão contra o Vargas, o país
está incensado, e desta circunstância surge um movimento militar que resulta na
decretação da vacância da presidência, com João Goulart. Uma decretação que do
ponto de vista técnico é ilegal, então houve um golpe parlamentar do Auro de Moura
Andrade, porque João Goulart não estava fora do país. A constituição previa que a
presidência da república é declarada vaga uma vez que o presidente se retire do país
sem dar satisfações ao parlamento, sem dar satisfações a ninguém. João Goulart não
saiu do país. Ele estava no sul. Portanto, tecnicamente, foi um golpe parlamentar.
Mas foi uma institucionalização, por parte do Auro de Moura Andrade, de um
processo, podemos chamar assim, revolucionário, que já tinha acontecido, porque o
Mourão Filho há havia enviado as tropas para rua. Quando ele viu o que estava
acontecendo na Guanabara, o Almirante Aragão, os militares, o presidente
sancionando rebelião de baixas patentes, quebrando a hierarquia das Forças
Armadas, ele soltou os militares na rua e as Forças Armadas nacionalmente
acabaram se harmonizando com essa perspectiva, entendendo que o risco era
absoluto e que não havia como prosseguir. Ou deixavam as tropas do Mourão serem
esmagadas, dando a João Goulart o pretexto para implantar uma ditadura, ou
apoiavam o movimento iniciado por Mourão. Com isso, os militares estabelecem uma
situação em que paira, sobre a institucionalidade e sobre, teoricamente, ainda a
constituição de 1946, um poder revolucionário constituinte, dos quais os militares se
arrogam, comandados por Costa e Silva. Neste momento, a evolução desse quadro
vai levar ao regime militar, ao AI-5, à supressão total do liberalismo, supressão do
habeas corpus. Mas, no primeiro governo, do Castelo Branco, há a equipe do Roberto
Campos junto com Otávio Gouveia de Bulhões gerenciando o Ministério do
Planejamento, uma equipe mais liberal, de orientação mais privatista, de orientação
menos emissionista de moeda, do ponto de vista econômico. Posteriormente,
desidrata-se essa força de inspiração udenista do movimento de 1964, e as hostes
militares mais autoritárias e mais centralizadoras, a chamada Linha Dura, acaba
tomando o controle do processo.

A reabertura do regime e a Nova República


Quando vai acontecer a abertura, a distensão, paradoxalmente ou não, o
presidente que vai comandar essa distensão, iniciar a abertura lenta, segura e
gradual, é o Geisel, que é um castelista, no sentido de ser contra a linha dura, mas
que tinha uma mentalidade de esquerda, econômica, política. Isso e as teorias de
Golbery do Couto e Silva, um intelectual, uma eminência parda do regime, favorecem
a emergência do PT, de partidos baseados no sindicalismo, como forma de
contrabalançar o que eles consideravam o perigo maior que seria o Brizola. Como a
história registra, não deu muito certo.
O regime se abre. Embora haja uma legenda chamada PFL (Partido da Frente
Liberal), esse abarca figuras como ACM, da Bahia. Existe, no entanto, um esforço
para o liberalismo teoricamente se enraizar no partido. Existem paper escritos na
época, mas muito fugazmente, muito fragilmente. O partido mudou de nome para
Democratas, inspirando-se na esquerda americana. Ou seja, não era sólido suficiente
para vingar. A nova República começa com a Constituição Cidadã de 1988,
totalmente dirigista, inspirada na Revolução dos Cravos. Uma constituição que
decorre da crença de que se foi decretado, se foi escrito, o direito está garantido, tem-
se, materializou-se. Essa era a base do pensamento. As principais forças que
emergem do regime militar como condutoras dessa nova república são: fisiologistas,
os oligarcas, mais uma vez, sempre presentes; a esquerda radical, ancorada no
sindicalismo, na teologia da libertação, no gramscismo, e; um nacional-populismo, um
nacional-desenvolvimentismo que prevalece no MDB.
O liberalismo estava presente teoricamente. Há o Roberto Campos, como
parlamentar, lutando quase sozinho, com algumas ajudas, para contestar aquele
estado de coisas, contestar a Constituição de 1988. Inclusive, Roberto Campos
considerava que havia uma doença no Brasil chamada Constitucionalite. Ele
questionava por que não, em vez de fazer uma nova constituição, podar os aspectos
autoritários da constituição de 1967? Por que sempre é preciso fazer novas
constituições, revolver tudo? O pensamento liberal do Roberto Campos enfatizava
muito isso, inclusive porque ele via méritos, por mais incrível que pareça, na
constituição militar, uma vez que esta estabelecia limites no manuseio do orçamento.
Era uma constituição mais anti-inflacionária. O problema é que os militares não
seguiram a própria constituição e a economia afundou, com a hiperinflação. Então
Roberto Campos se destaca nesse período como uma voz quase solitária bradando
pela razoabilidade, pelo liberalismo econômico, pela privatização. Roberto Campos
adota, diante da chamada revolução conservadora, da Thatcher e do Reagan, um
discurso triunfalista, de que estava certo e que o caminho, a partir daquele momento,
seria de liberalismo. Sorte do Roberto Campos ter morrido em 2001, pois acho que
não aguentaria o que viria depois.
Além do Roberto Campos, havia o José Guilherme Merquior, que se definia
como um social-liberal, mas frequentavam, todos eles, Roberto Campos, Merquior,
professor Ubiratan Borges de Macedo, o Og Leme, o Instituto Liberal. O Donald
Stewart Jr., como empresário, inaugura o que seria uma característica dessa fase
contemporânea do liberalismo, que essa organização em colóquios, em think tanks,
em grupos, que tentam criar uma coesão. Isso vem muito da iniciativa do Hayek e dos
liberais europeus com a Sociedade Mont Pèlerin.
Pergunta: como podemos explicar o sucesso do milagre econômico durante o
governo Médici?
O que aconteceu no milagre econômico foi a mesma coisa que aconteceu com
o Juscelino, a mesma coisa que aconteceu nos primeiros anos do PT, uma ilusão,
criada. O tamanho da economia aumenta. No governo do Juscelino, o tamanho da
economia aumentou. Mas e o preço disso? Todas elas são medidas emissionistas de
moeda, medidas keynesianas, medidas intervencionistas. A intenção do Juscelino,
por exemplo, era ser candidato depois. Quando ele termina o governo, queria ser
candidato em 1965, porque ele sabia que havia feito um estrago inflacionário tão
grande, criando uma ilusão, e deixou um legado tão terrível, que ele queria que outra
pessoa assumisse o barco, resolve para ele, para que posteriormente ele voltasse
como homem da era de ouro, quando tudo estava bem. É mais ou menos o que faz
o PT pegando a ideia da era do Lula, maravilhosa, e acusando o Temer de destruir e
afundar o país, como se o Temer tivesse criado a recessão econômica. Então, batem
no Temer, deixam-no sofrendo, para depois voltar como salvadores. É a mesma coisa
que o Juscelino pretendia fazer. Só que no caso contemporâneo, do PT, não foi
voluntário, pois eles não queriam sofrer um impeachment.
Então, nesse período, em 1983, antes mesmo da abertura terminar, do
Figueiredo entregar o governo a um civil, o Donald Stewart Jr., que é um empresário
de origem canadense, funda o Instituto Liberal, no Rio de Janeiro, que é essa primeira
iniciativa de organizar institucionalmente essa defesa do liberalismo. No caso dele, já
muito influenciado pela Escola Austríaca e pelo Hayek. Ele inclusive simpatizava com
o sistema da demarquia, que o Hayek desenvolvia e defendia. Isso inspirado na
sociedade Mont Pèlerin do Hayek, que foi uma iniciativa pioneira, internacional, no
sentido de organizar a defesa das ideias da liberdade, sobretudo no campo
econômico, porque eram economistas, mas abrangendo a dimensão política. O
pensamento de Hayek era extremamente amplo, um dos intelectuais mais completos
do século 20, que abarcava desde psicologia até o direito. Essa sociedade surgiu em
reação à revolução keynesiana dos anos 1930, que era essa aposta na emissão de
moeda e no intervencionismo. Sobretudo, no caso do Keynes, em períodos
considerados de crise do capitalismo, mas que os keynesianos levaram mais adiante
do que o Keynes e passaram a transformar em uma rotina, esse tipo de intervenção.
Em decorrência disso, o liberalismo passou a ter os seus teóricos organizados,
escrevendo colóquios e panfletos, municiando projetos governamentais. Isso, de
certa forma, deita raízes na época do plano real, e há alguns economistas de
mentalidade mais liberal no governo que conseguem acabar com a trágica
convivência do brasileiro com aquela nível sobrenatural de inflação que existia. Dizem
que o cotidiano mudou bastante em decorrência disso, porque anteriormente não se
sabia qual preço um produto teria no dia seguinte. Essa conquista do plano real foi
substancial nesse sentido. Nesse quadro, podemos destacar o trabalho de alguns,
como Gustavo Franco, que declara a sua afinidade com as ideias de Roberto
Campos. Isso dentro do PSDB, o partido da social-democracia brasileira, que, no
entanto, dirigiu-se, pela força das circunstâncias, a um caminho mais à terceira via.
Foi uma social-democracia mais liberal, mais responsável fiscalmente, menos
obcecada com a empresa estatal, o que permitiu que essas conquistas fossem
alcançadas, a despeito da índole, da natureza, do Fernando Henrique Cardoso,
presidente em questão. É interessante salientar que apesar das privatizações,
naquele modelo de agência reguladora, apesar do plano real, a carga tributária
aumenta, até para custear os programas sociais que já começam aí, que os petistas
dizem que inventaram.

O espraiamento liberal no Brasil


Contudo, o caldo cultural está tomado e vai desembocar na vitória do Lula, com
ampla margem, com amplo apoio popular. Ou seja, não é um momento muito feliz
para o liberalismo essa emergência do PT. Mas em consequência mesma dos
desatinos que o PT comete, das atrocidades que o PT comete, e do declínio em que
ele mergulha o país e do processo recessivo que ele inaugura, ao mesmo tempo, vai
se formalizando, já em 2006, a formação do Instituto Millenium e, depois, do Instituto
Mises Brasil, voltado para a Escola Austríaca, para o pensamento do Mises, para o
pensamento de Hayek. Inicia-se uma maior interação entre esses grupos, entre esses
think tanks, esses institutos, no sentido de organizar uma resposta ou de apresentar
algo de positivo para colocar no lugar daquilo que estava fracassando.
Simultaneamente, há o trabalho de pensadores conservadores que também indicam
literatura liberal, seguramente o mais influente deles é o Olavo de Carvalho, que indica
Mises como a sua referência em economia, que vão provocando alguma coisa que aí
está, que eu, não sozinho, mas didaticamente, chamei de “nova direita”, uma
expressão retirada do uso que as próprias pessoas faziam, como Paulo Eduardo
Martins. De maneira alguma com significado pejorativo, a expressão simplesmente
demonstra que existe um movimento novo, não as ideias, que ganha uma
consistência através das redes sociais, através da interação desses think tanks,
desses institutos e desses grupos de estudo, que tem, predominantemente, uma
plataforma liberal na política e na economia. Na política, no sentido do respeito à
institucionalidade, ao Estado de Direito, ao sistema de divisão de poderes, etc.. Na
economia, porque adota a Escola de Chicago, a Escola Austríaca. Há, portanto, um
reavivar do pensamento liberal, liberal-conservador e conservador que toma
proporções na quadra histórica que vivemos agora.
Este reavivar dá uma base de organização, de pensamento, mas, ao mesmo
tempo, convive com uma tremenda crise de segurança, que se agigantou ao longo do
regime lulo-petista. Isso vai amalgamar forças em torno daquilo que hoje nós vemos:
a eleição de uma pessoa que, em um passado não muito distante, e em algumas
oportunidades, no presente, enaltece em bloco o regime militar, declarando que a
ditadura não existiu. A ditadura existiu, pois não há como chamar o que começa com
O AI-5 se não como ditadura. Não existe um regime democrático em que haja a
suspensão do habeas corpus e em que o presidente pode fechar o congresso quando
quiser. Não há como chamar isso de democracia. O nosso presidente eleito, com
todos os méritos, desculpe, está errado. Houve ditadura de 1968, principalmente, em
diante. Nos outros, de 1964 a 1968 e de 1979 até o 1985, quando há a distensão e o
AI-5 é suspenso, há um hibridismo entre características autoritárias e características
democrático-representativas como acontece em quase toda história do Brasil. Um
período de oligarcas, também mandando, há um grupo pequeno que define os rumos,
mas não há uma ditadura militar única e exclusivamente implantada. No AI-5, já se
pode, com todas as letras, dizer que aquilo era uma ditadura. Contraditoriamente ou
não, pode-se dizer que o nosso presidente, Jair Bolsonaro, que foi eleito
recentemente, representa um capítulo interessante dessa história porque
amalgamou, em torno dele, Paulo Guedes, que defende todas essas pautas e está
pregando abertamente que a social-democracia tem que ser caçada e que nós temos
que acabar com a era social-democrata no Brasil. Então, o nosso presidente absorveu
isso, passou a encampar bandeiras inclusive históricas da UDN, como a federação,
ter mais Brasil menos Brasília, a questão da lisura eleitoral, porque a UDN
questionava a questão das cédulas. É uma questão de se ver o que vai sair desse
amálgama, dessas tendências, se essa pressão por mais liberalismo irá prevalecer,
irá triunfar, ou se teremos retrocesso nesse esforço. De qualquer maneira, existem
coisas que podem ser feitas, existem esforços que podem e devem ser feitos.

PERGUNTAS
1) Com relação ao regime militar, até que ponto se pode atribuir a um certo
liberalismo político da parte do Castelo Branco, o fato do regime militar ter
mantido determinados aspectos, como a questão de ter se mantido um partido
de situação e um partido de oposição, em outros aspectos semelhantes. Até
que ponto o Castelo Branco pode ou não ser considerado politicamente liberal?
Castelo Branco era lacerdista durante a década de 1950-1960. Portanto,
estava identificado com as pregações tradicionais da UDN, as mais liberais que o
Brasil tinha, nas proporções da época. Além disso, ele tinha uma preocupação
enorme em que aquela interrupção institucional que houve no movimento de 1964,
que, para ele, também se impôs como inevitável, pois não queria que aquilo
acontecesse, queria evitar de toda forma, mas acabou aceitando que deveria ser,
passasse o mais depressa possível. O fato é que Castelo Branco se esforçou para
manter o regime dentro desses limites e a proposta de constituição de 1967, vem
disso. Castelo Branco sugere a elaboração de uma constituição para que haja regras
que o regime possa respeitar e ter que respeitar enquanto tiver que durar, uma vez
que ele, Castelo Branco, não conseguia impedir que a linha dura exercesse influência
no andamento das coisas. A ideia era oferecer a eles alguns limites para tentar mantê-
los restritos a estes. Apesar da tentativa, os atos institucionais continuaram
acontecendo e veio depois o AI-5, que rompeu completamente os limites. Mas Castelo
Branco tentou e essa tentativa tem o seu peso e tem o seu impacto na
institucionalidade do regime.
2) Há sites que colocam democracia e liberalismo como sendo conflitantes.
Dizem que a primeira está preocupada com quem deve ocupar os poderes
coercitivos, os quais devem ser representantes eleitos pelo povo, enquanto o
segundo está preocupado em reduzir os poderes do Estado. Não seria uma
visão simplista e distorcida do liberalismo? A democracia não seria fortalecida
diante de um liberalismo com estado minimalista?
Era uma questão que o Hayek coloca com muita clareza nos textos dele, essa
disputa que existe entre esses conceitos, democracia e liberalismo. De fato, quando
a democracia volta a ser empregada como rótulo político positivo, na Europa, os
democratas, na verdade, eram esquerdistas, baderneiros, em geral, que queria
suplantar as instituições e falavam na democracia direta, na democracia do povo sem
instituições intermediárias, sem representação. O liberalismo desenvolve, ao longo
desses últimos séculos, uma experiência, que ele chama de democracia liberal, de
casamento entre essas esferas, a esfera da participação, que seria propriamente
democrática, e a esfera do liberalismo que seria da imposição desses contrapesos e
desses limites institucionais, ecoando a visão aristotélica da questão da pólis, da
república, mesclando o que há de melhor de todos os sistemas. Então, o que existe
é a democracia, isoladamente, significando democracia direta ou significando
pensamento rousseauniano, significando a exaltação da massa, como sendo algo
isolado, algo separado, e existe a experiência liberal democrática. Esta foi
desenvolvida e defendida por liberais que como tal entendiam que ambos poderiam
caminhar juntos, desde que compreendida a importância dessa limitação institucional,
da existência de regras de jogo, da existência de instituições que se contrapusessem
à tirania da maioria. Até que ponto quem está certo e quem está errado? Eu tendo a
simpatizar com o esforço liberal-democrático. No entanto, há correntes que divergem,
como, por exemplo, Hoppe, no seu “Democracia - o Deus que falhou”. Eu acho que a
democracia falhou porque ela não deveria ser um Deus, deveria ser, no máximo, uma
ferramenta. Compactou com o Churchill que afirma que a democracia é o pior regime
que existe, mas ainda é o melhor para funcionar na nossa realidade.
Então, eu acho que deve se fazer um esforço para tentar esse casamento. O
Hoppe, por outro lado, dizia que democracia, representação, não funcionam. Ele dizia
até que a monarquia absoluta era melhor do que a democracia, porque havia uma
corte reduzida. Isso é um fato. Parece-me que isso é inquestionável: a democracia
existindo, em alguma instância, aumenta o Estado, porque é preciso criar uma
máquina, um parlamento, para representar a sociedade. Deste modo, há um aumento
do Estado na democracia liberal. Eu concordo com esse raciocínio, que isso
realmente acontece. A questão é saber qual é a dose que se aguenta. Eu
particularmente acho, como o Lacerda, que a democracia, na sua manifestação mais
saudável, a democracia liberal, deve se ancorar na convicção da relatividade das
soluções. O Hoppe quer uma solução absoluta, pois a democracia é um mal que deve
ser extinto. Eu acho que a democracia liberal tem qualidade porque reconhece que
as soluções são relativas. Essa tende a ser a minha opinião. Esse esforço vale a pena
de ser tentado, fortalecendo-se as instituições.
3) Vivemos, na República brasileira, o que a França viveu no pós-revolução, no
sentido de buscar diferentes formas de governo?
Obviamente, o golpe republicano não é a Revolução Francesa, guardadas as
proporções, mas a uma ruptura institucional que descarrega uma anomia na
sociedade, uma falta de senso de representação, do que nós significamos, do que
nós somos, e este caos que se provoca em uma sociedade que ainda era muito pouco
diferente do que tinha antes, aquela sociedade que os saquaremas criticavam, aquela
sociedade sem o espírito público, aquela sociedade agrária, que acabou de libertar
os escravos, isso, esse caos, essa anomia, de fato, gera uma dificuldade de se
encaixar, de se encontrar, o elemento que vai trazer a ordem, que vai ordenar esse
regime. Com isso, investe-se em intervenções militares e mudanças de regime
sistematicamente. Então sim, essa analogia entre os brasileiros e os franceses é
possível.
4) Houve alguma figura em particular que liderou os protestos dos brasileiros em
favor da inserção da guerra junto aos aliados?
Não porque naquela época ainda era o Estado Novo, então os líderes estavam
sendo destruídos, dilacerados. Esse é o legado que ficou do Estado Novo para a
República de 1946. Com a dilaceração dos líderes, acaba-se tendo a prevalência dos
militares. Por que, em 1945, os candidatos eram todos militares? Era o Brigadeiro
Eduardo Gomes, que era uma referência do tenentismo, mas que estava no UDN, era
o Dutra, que ganhou. Por que militares? Porque as lideranças foram esmagadas pela
ditadura, como o regime militar também o fez com lideranças civis de qualidade. Cria-
se um vácuo em que as lideranças são digeridas, são dilaceradas, e tem-se que
começar do zero depois. Começa-se sempre mal-feito e acaba terminando na mesma
coisa, no final. Outra interrupção.
5) Na visão do professor, quais são as estratégias para divulgação das ideias
liberais em toda sociedade conforme os fatos da história?
Esse é um momento em que temos um período propício a realizações neste
sentido, em que temos forças políticas propícias a realizações neste sentido. Eu
acredito na ordem espontânea, na organização da sociedade civil e isso aconteceu
como nunca antes. Há movimentos populares, há empresas que divulgam conteúdo
alternativo, como o Brasil Paralelo. Há, então, uma organização da sociedade civil no
sentido de cristalizar essas ideias no imaginário. Já temos lideranças políticas sendo
eleitas em consequência desse processo todo que está em curso, mas essas
lideranças precisam se organizar entre elas, formar uma bancada e precisam levar
sempre em consideração, como mandato sagrado do seu pensamento, da sua
bandeira, a valorização dessa questão da representação por interesses, da
organização das ideias. É preciso que esse movimento se consolide e que haja um
partido liberal, que haja partidos liberais e conservadores no Brasil. Não é possível
apostar todas as fichas em um único governo, porque não vamos ficar no poder para
sempre. Não existe essa possibilidade. No momento em que nós estivermos fora do
poder, eu espero que a esquerda que vamos enfrentar mais para frente seja mais
madura, mais social-liberal. Mas o mesmo grupo não vai ficar no poder para sempre.
Algum movimento em direção à esquerda vai haver em algum momento da história,
por mais que demore. No entanto, quando isso acontecer, que exista na sociedade
uma presença marcada do pensamento liberal e conservador. Que haja organicidade
nessa presença, que ela seja essencial, que ela esteja enraizada. É preciso trabalhar
para isso. Isso se conquista com organização, com esforço institucional, mas,
também, sobretudo,trabalhando com o imaginário, trabalhando pela difusão das
ideias, por modificar o quadro hegemônico na esfera de expressão da cultura e de
imaginário de um povo. Acho que o caminho tem que ser esse, e se não for sólido e
enraizado nesta direção, a tendência é o fracasso, como nas outras tentativas que
nós tivemos, onde essa questão se manteve deficiente, até porque a sociedade civil
era fraca na maior parte desses períodos históricos. Quando ela vai ganhar força,
quando começa essa democracia de massa, ela é cooptada pelo autoritarismo
populista do Vargas e esse processo de hegemonia do varguismo só vai resultar em
uma ruptura nova com o regime militar em que novamente as lideranças civis são
desmobilizadas porque os militares não querem saber nem de liberalismo nem de
comunismo, eles querem o estado tecnocrático. Essa rota precisa ser diferente dessa
vez. Dessa vez precisamos trabalhar para assentar o liberalismo e o
conservadorismo. Não vamos ter poder para sempre, mas temos que existir como
parte constituinte, inalterável e impossível de se remover do tecido da sociedade
brasileira. Acho que esse é o caminho para que a sociedade consiga consolidar a rota
liberal, e consiga consolidar mudanças institucionais e estruturais que o governo atual
precisa começar, porque senão as começarmos agora, o ranger de dentes será
tenebroso lá na frente.

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