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O DIREITO, A IGREJA E A SOCIEDADE DA IDADE MÉDIA

(Antonio García y García)

Até que ponto o Direito afectou a teoria e a prática política é


um tópico importante e interessante. No início da Idade Média,
as nações ocidentais estavam prestes a recair na barbárie.
Competia, primeiro à Igreja e posteriormente ao império e aos
reinos, fazer que o direito prevalecesse sobre a força. Nesta
tarefa ambos tiveram o apoio da redescoberta e estudo do
Direito Romano, no século XII, e do nascimento do Direito
Canónico, quase ao mesmo tempo. Especialmente nos séculos XII
e XIII, a constituição e administração da Igreja e do Estado
medievais seguia um modelo concebido em grande parte pelos
juristas, que foram auxiliados pela redescoberta das obras
políticas de Aristóteles. Esse modelo é predominantemente
autoritário e foi extraído principalmente do Direito do Império
Romano, mas deve-se acrescentar que o Direito medieval contém
as sementes da democracia moderna. As corporações – cabidos
de cónegos e ordens religiosas, especialmente as ordens
mendicantes – que averiguavam da vontade da «maior et sanior
pars» (a parte maior e mais sã) através da votação funcionavam
de uma forma colegial e democrática, inseridas no macrocosmo
da Igreja. A Idade Média apropriou-se de algumas instituições ou
princípios romanos, fornecendo-lhes um conteúdo mais
democrático: no Direito Romano, por exemplo, a fórmula «Quod
omnibus tangit ab omnibus approbari debet («O que a todos
afecta por todos deve ser aprovado») pertencia ao Direito
Privado; no Direito Medieval (especialmente canónico) essa
máxima aplica-se mesmo ao Direito político e constitucional.

O conciliarismo de fins do século XIV e início do século XV, que


se seguiu ao Grande Cisma, enraizava-se profundamente no
pensamento canonístico do século XII e antecedente. O
conciliarismo estabelecia para a Igreja e, implicitamente, para o
Estado princípios (tais como o da monarquia limitada) que
vieram a ser adoptados pelos pensadores do século XVII e em
versões mais tardias ainda influenciam o pensamento moderno.
A Reforma protestante e católica do século XVI (baseada na
teoria medieval de tendência hierocrática) transformou-se no
apoio mais sólido da monarquia absoluta. A tradição legal
herdada de Roma, a tradição aristotélica da Grécia e o
pensamento cristão produziram, em conjunto, um modelo para a
sociedade ocidental que é diferente de, e irreconciliável com, o
de qualquer outra cultura do passado, quer fosse islâmica, inca,
asteca, chinesa ou japonesa. Por outro lado, e a um nível
diferente, as pretensões imperiais, que tiveram os seus apoiantes
ao longo da Idade Média, alegavam que sob algumas formas os
reinos se subordinavam ao império. Não só os reis como também
a maior parte dos juristas nunca aceitaram este facto e, na
prática, a Igreja apoiava a visão anti-imperialista. Portanto, e até
certo ponto, o Direito constituía-se como uma restrição ao poder
absoluto, quer este fosse civil ou eclesiástico, e procurava tornar
as relações entre a Igreja e o império, entre o pode espiritual e o
poder temporal, menos tensas1.

1
B. Tierney, Religion, Law and the Growth of Constitutional Thought, 1150-1650 (Cambridge, 1982), com
a bibliografia aí citada.
As mudanças ocorridas nos séculos XII e XIII na administração
da Igreja e do Estado também influenciaram profundamente a
eclesiologia, ou seja, o pensamento teleológico da Igreja. O
pensamento canonístico influenciou grandemente a eclesiologia
e a atitude da Igreja relativamente aos sacramentos e aos seus
deveres pastorais. Os sacramentos receberam pelo menos tanta
atenção dos canonistas como dos teólogos. O Direito Canónico
medieval é mais zeloso do que a própria Teologia na
regulamentação dos deveres pastorais da Igreja, isto é, na sua
orientação espiritual dos crentes2. Na eclesiologia, os canonistas
medievais, a partir principalmente do século XII, recusaram-se a
aceitar a pretensão de poder absoluto do Papa e tentaram
reconciliar o seu direito divino com os direitos da comunidade
cristã, sustentando que estes não eram menos divinos, tendo
sido, tal como os dele, instituídos por Cristo. Na época do
conciliarismo de fins do século XIV e início do século XV, estas
ideias tiveram um novo recrudescimento. Foram de tal forma
difundidas que algumas pessoas começaram a encarar o concílio
ecuménico como uma autoridade superior do Papa. Essas teorias
canonísticas, defendidas por alguns teólogos e rejeitadas por
outros, continuaram a influenciar profundamente mesmo a
moderna eclesiologia3.

Ao longo da história da cristandade existiram, de forma


notória, duas escolas de pensamento: uma que aceita e outra
que rejeita as Humanidades como fazendo parte do ensino
clerical. A aceitação é personificada por Santo Agostinho e a
2
P. Anciaux, La théologie du Sacrement de Pénitence au XII siècle (Lovaina, 1949) ; J. M. Soto Rábanos.
«Derecho canónico y praxis pastoral en la España bajo medieval», em Proceedings of the Sixth
International Congress of Medieval Canon Law, Berkeley, California, 28 July – 2 August 1980,
Monumenta iuris canonici, série C, Subsidia 7 (Cidade do Vaticano, 1985), pp. 595-617.
3
K. Pennington, Pope and Bishops. The Papal Monarchy in the Twelfth and Thirteenth Centuries
(Pensilvânia, 1984), com a bibliografia aí citada.
rejeição por São Jerónimo. Estas são, sem dúvida, simplificações
exageradas, mas os epígonos de ambos os campos citaram estes
dois padres da Igreja. Seria demasiado fácil e desnecessário
aumentar esta conhecida controvérsia. É aqui mencionada
apenas para explicar a razão por que em meados do século XII o
«Decretum» de Graciano reúne os textos mais autorizados do
primeiro milénio da Cristandade, alguns dos quais,
inevitavelmente, entram em contradição com outros no que se
refere a este assunto. Graciano justapõe esses textos para
reconciliar as contradições que lhes servem de base, dentro do
espírito do título original da sua obra, «Concordia discordantium
canonum». Os Padres da Igreja e outros escritores do primeiro
milénio forneceram-lhe os textos que aceitam ou rejeitam,
elogiam ou insultam as Humanidades da altura. A utilização da
Dialéctica por Graciano para reconciliar as contradições nestes
textos permitiu aos seus sucessores considerá-los com um
espírito comparativamente atencioso e responsável. Os
canonistas medievais olhavam para as Humanidades com maior
cuidado do que alguns dos seus contemporâneos, que, em vez de
verificarem se seria útil aos clérigos estudá-las, se decidiam antes
pela caça às bruxas entre os filósofos. Gautier de Saint Victor, por
exemplo, chama a Pedro Abelardo, a Peter Lombard, a Pedro de
Poitiers e a Gilbert de la Porrée «os quatro labirintos, ou
Minotauros da França», e S. Pedro Damião afirma que o primeiro
professor de Gramática foi o Diabo, quando ensinou Adão a
declinar o nome «Deus» no plural. Lanfranc, Santo Anselmo e
São Bernardo são igualmente críticos da razão humana. No
entanto, os canonistas, de uma maneira geral, não se
preocuparam com outras humanidades; nem os legalistas,
excepto alguns que as praticaram, tais como Cino da Pistóia,
célebre como poeta e como legalista, que usufruiu da amizade e
da admiração de Dante Alighieri, e Clemente Sánchez, um
escritor prolífico em Direito Canónico e autor do «Libro de los
exemplos»4, uma das grandes obras literárias do século XV em
Espanha. A ambivalência canonista relativamente às
Humanidades é, no entanto, perfeitamente demonstrada numa
introdução, de origem francesa, datada do século XIII, ao
«Decretum» de Graciano e conhecida pelas suas palavras iniciais
como «Vidit lacob».

Quanto à relação entre o Direito e a Literatura, nas sociedades


primitivas, o Direito, a Religião e a Literatura eram uma coisa só.
Só mais tarde é que vieram a tornar-se entidades separadas.
Mesmo em finais da Idade Média, o «Sachsenspiegel» ainda
afirma que Deus é a Lei5. Não é portanto de admirar que, mesmo
na poesia da Idade Média, seja exaltada a obediência a Deus, ao
imperador ou ao rei. O Direito, na sua globalidade, não era
apenas um Direito positivo, mas também natural; o Direito, o
Direito divino, «ratio», «ordo», «lex aeterna»; e é evidente que
todos estes aspectos se revelavam interessantes para os
teólogos, tal como se depreende de «De civitate Dei» de Santo
Agostinho e de «Summa theologica» de S. Tomás de Aquino. As
pessoas também encaravam o Direito como uma expressão da
vontade de Deus no que se referia aos assuntos humanos. Por
entre os advogados e homens de letras existiam muitos clérigos,
alguns dos quais peritos tanto em Literatura como em Direito,
como por exemplo o arcipreste de Hita (Juan Ruiz), autor de

4
A. García y García, Iglesia, Sociedad y Derecho, vol. I, Bibliotheca Salmanticensis Estudios, 74
(Salamanca, 1985), pp. 143-67.
5
G. Kisch, «Biblical Spirit in Medieval German Law», Spceculum, 14 (1939), pp. 38-55.
«Libro del buen amor»6. Outro exemplo deste duplo
conhecimento, e indubitavelmente ainda mais conhecido, é
Dante Alighieri7. Não surpreende, pois, que na Idade Média, e
mesmo mais tarde, algumas faculdades de Direito tenham
seguido de perto ou tenham mesmo tomado a primazia sobre a
faculdade de Teologia.

Paralelamente a esta visão da Literatura como serva do


Direito situa-se a visão complementar do Direito como servo da
Literatura; os homens de letras inspiraram-se nos códigos de
Direito, tomando emprestados alguns dos seus termos e
imitando as regras de construção legal; os métodos de
investigação e estudo dos textos literários inspiraram os métodos
de investigação e de estudo dos textos legais e vice-versa, quer
os textos fossem em latim ou em qualquer das línguas vernáculas
– o inglês antigo e médio, o alemão, o islandês, o francês e o
provençal, as línguas ibéricas (o castelhano, o catalão, o
português e o galego), o italiano e por aí adiante.

Eis, portanto, e de uma forma resumida, a organização, os


horizontes intelectuais das faculdades de Direito medievais e a
sua forte influência na sociedade do seu tempo.

6
H. A. Kelly, Canon Law and the Archpriest of Hita. Medieval and Renaissance Texts and Studies, 27
(Nova Iorque, 1984).
7
G. Zanetti, «Le dottrine giuspubblicistiche delle Questiones de iuris subtilitabus e il pensiero politico di
Dante», Proceedings of the Fourth International Congress of Medieval Canon Law. Toronto, 21-25,
August 1972, Monumenta iuris canonici, série C, Subsidia 5 (Cidade do Vaticano, 1976), pp. 351-82, com
a bibliografia aí citada.

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