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1.

INTRODUÇÃO

Tratar da singularidade de um sujeito é saber ouvir, sem reservas, o seu mal-estar num
contexto ampliado, a saber, a partir de um pano de fundo denominado laço social, que
estruturado a partir de uma linguagem, influencia drasticamente no destino dos sujeitos. Falar de
histeria não é somente perscrutá-la sob a ótica edipiana e da castração, mas também enxerga-la
pertinente à contemporaneidade de um sofrimento que se manifesta de forma endêmica.

Quinet (2010, p.19) corrobora neste sentido afirmando que a escuta do sujeito deve ser
norteada através do discurso, inserido num laço social, definido por modalidades de tratamento
onde duas ou mais pessoas se unem, assumindo os seus papeis dentro de uma narrativa.
Especificamente no caso da histérica pós-moderna assinalada por Carmem Gallano em seu texto
“O ‘sem-tempo’ da histeria hipermoderna” percebe-se um mal-estar provindo do “discurso do
capitalista, que é nova modalidade do discurso do mestre”. Tal assertiva será desenvolvida mais
à frente neste mesmo texto.

A histeria, no seu modus operandi, é o laboratório do inconsciente que borbulha material


de trabalho que se torna via para compreensão do funcionamento do psiquismo e dos
mecanismos neuróticos, ideia esta que Lacan endossa em seu “Seminário XI - Os quatro
conceitos fundamentais da Psicanálise”: “o caminho do inconsciente propriamente freudiano,
foram as histéricas que o  ensinaram a Freud”. (LACAN, 1996,  p. 20).

 Porém, é importante atentarmos para o caráter multifacetado que a histeria desenvolveu


ao longo dos tempos, por isso, levar em consideração a sua historicidade e o ethos predominante
de cada época nos fará lançar um olhar mais atencioso para as representações sociais dos
sujeitos, assim como a força que a sexualidade represada tem em cada momento. É a força do
laço social operando, a seu próprio modo em cada época. No caso das histéricas, durante toda a
História apresentaram-se epidemiologicamente com uma habilidade ímpar de despertar a
curiosidade de estudiosos, deixando-os totalmente atordoados e desafiando os saberes através de
uma mobilização de todo o seu entorno, justamente por conta deste caráter indefinido e
misterioso. Seus dramas endêmicos sempre estiveram em voga. (ALONSO; FUKS, 2004, p. 17-
18).
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2. OLHANDO A HISTERIA MAIS DE PERTO

É nesse formato sedutor que a histérica funciona dentro do setting analítico, mostrando
através de sua narração ser vítima do desejo do Outro, mantendo o seu desejo insatisfeito
sustentado por um mecanismo repetitivo que outorga o trauma inicial e a imaturidade em pô-lo a
termo. (QUINET, 2013, p. 64-65)

A nível de sintoma, o que lhe transborda é resultado do enquadramento da pulsão que faz
parte do processo civilizatório do qual ninguém pode escapar, como afirma Freud em “O mal-
estar na civilização (1930[1929])”: “ ‘ Não podemos pular fora deste mundo’ . Isto equivale a
dizer que se trata do sentimentos de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo
como um todo.” ( p. 74)

A obra icônica "Estudos sobre a histeria (1893-1895) " tem muito a nos fornecer no que
diz respeito ao funcionamento do psiquismo, e a palavra " inconsciente" surge a primeira vez
para comprovar que o entendimento do sofrimento do sujeito ia pra além daquilo que se mostra:
o sintoma mascara a divisão subjetiva, porém é sinal de onde há fumaça, há fogo. O discurso do
neurótico nos orientando a observar um embate nítido entre ego e id:

“Normalmente, não nada de que possamos estar mais


certos do que do sentimento de nosso eu, do nosso
próprio ego. O ego nos aparece como algo autônomo e
unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser
essa aparência enganadora — apesar de que, pelo
contrário, o ego seja continuado para dentro, sem
qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental
inconsciente que designamos como id, à qual o ego
serve como uma espécie de fachada —, configurou uma
descoberta efetuada pela primeira vez através da
pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter
muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego
com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de
qualquer modo, parece manter linhas de demarcação
bem e claras e nítidas.”

Assim como a histérica hipermoderna executiva que abre mão de sua vida pessoal,
identidade e da satisfação de uma vida amorosa para galgar uma posição de destaque na empresa
– eis a imperatividade do discurso capitalista, que ocupa em termos psicanalíticos, o discurso do
mestre ou do senhor, onde a fórmula se apresenta assim:
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Sendo o S1 significante-mestre, acaba por direcionar por um saber, chamado S2 que


também leva a denominação de escravo. S1 tem uma função imperativa e que coloca o sujeito
em condição de consentimento em obedecer tal enunciado, como Lacan (1992, p.30) enuncia em
seu “ Seminário XVII – O avesso da Psicanálise” . O que está em voga na psicanálise, não é o
conhecimento ou representação, mas aquilo que é da ordem do saber, como o psicanalista
francês prossegue em seu texto clássico.

E essa sujeição é, para Lacan, trabalho feito em nível de saber inconsciente que “decanta
o que é efetivamente a verdade de tudo o que acreditou ser.” É neste saber que “se atesta no que
uma vida acredita, o que acreditou haver sido como destino, passo a passo, e mesmo,
eventualmente, como acreditou ter encerrado este destino.” (LACAN, 1992, p.30)

É a partir da noção que o senhor tem do escravo que depende de um determinado


discurso pra se colocar nessa condição de divisão e de sujeição, sai desta equação o objeto a, que
representa o mais-gozar, ou seja, o excesso de gozo que emerge por conta da busca da satisfação
pautada pelo significante mestre, o S1.

Independentemente do tipo de discurso em voga, o que entendemos é que a partir de uma


verdade criada pelo laço social, são orientados os papeis dos sujeitos envolvidos neste.

A verdade dos tempos hipermodernos é que a mulher deve ser empoderada,


autossuficiente, pró-ativas e agressivas como um homem se querem ser bem-sucedidas (vide o
significante “a que veste paletó”). Verdade que procura um saber, mantém escravo um sujeito e
lhe dá a experiência de algo perdido. Haveria algo de diferente em termos de discurso entre estas
histéricas e as de Freud?

As vienenses, maioria da clientela de Freud, viviam em uma época de total efervescência


em todas as instâncias da sociedade austríaca, onde a criatividade - fruto de uma nova revolução
que se instaurava - pôs abaixo os muros do conservadorismo e do arcaísmo. O Modernismo
estava se instalando durante a transição entre os séculos XIX e XX, e consistia em um
movimento inovador que atingiu em cheio o mundo ocidental, nas mais diversas áreas do
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conhecimento. O tradicionalismo dava lugar ao novo, e em Viena este movimento teve uma
manifestação mais expressiva devido à própria configuração - de cultura predominantemente
feudal - daquele lugar.  (MOLINA, 2011, p.156)

Forçosamente, a família vienense sofre transformação em sua constituição, não apenas


por conta do novo contexto cultural que se levantava, mas também porque os homens estavam
sendo arregimentados para estarem nas guerras. A mulher aos poucos foi ocupando outros
espaços: adentrou o mercado de trabalho, o que já provocava um choque com o tradicionalismo
que definia o papel da mulher como casadoira e parideira, dedicada única e exclusivamente ao
lar. Deveria aceitar esta realidade feliz e resignada. (MOLINA, 2011, p.157)

Diante da nova realidade que lhe invadia o espaço íntimo, já não queria mais estar sob a
tutela de um poder tirânico (o discurso do mestre) que pouco ou quase não a ouvia como ser
humano, consideradas como semelhante a animais que por sua “natureza” deveriam ser
domesticada e docilizada para que cumprisse o seu papel principal de gerar e “proteger a cria”
(ou seja, o saber , que é o gozo do Outro, atrelado pela imperatividade do agente e por
consequência gerando perda).

Concluindo, faço minhas as palavras de Jacques Lacan, que considera o discurso uma
estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra (...)é um discurso sem palavras”, que
subsistem com o instrumento da linguagem, com poder de alcance que vai pra além das
enunciações efetivas. (LACAN, 1992,p. 11)
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OBRAS CONSULTADAS
ALONSO, S.; FUKS, M.P. - Histeria/ Coleção Clínica Psicanalítica - São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004.
FERREIRA, N.P.; MOTTA, M.A. - Histeria: o caso Dora/ Coleção Psicanálise passo a -
Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
FREUD, S. - Estudos sobre a histeria/ volume II - Edição Standard Brasileira - Rio de
Janeiro: Imago, 1996a.
LACAN, J. - Seminário XI - Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise - Rio de
Janeiro: Zahar, 1996.
LAPLANCHE, J. - Vocabulário de Psicanálise - 4a. edição - São Paulo: Martins Fontes,
2001.
MOLINA, J.A. - O que Freud dizia sobre as mulheres - São Paulo: Cultura Acadêmica,
2011.
QUINET, A. – Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia – 2ª. edição -
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010
QUINET, A. – As 4+1 condições da análise – 2ª. edição - Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2013

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