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Partindo-se do livro Tem  e Tem  (1847) do filósofo dinamarquês Søren


Kierkegaard (1813-1855), cuja autoria do livro é assinada por seu pseudonímo Johhanes
de Silentio - personagem com características psicológicas próprias que devem ser
lavadas em consideração permanentemente na leitura do livro, que é narrativo em
primeira pessoa -, o objetivo a ser comprido aqui será a compreensão do que é o
indíviduo para o autor, única instância por quem a fé é efetivamente possível, tal que o
próprio Kierkegaard traça severas críticas à Igreja Estatal Dinamarquesa de seu tempo,
em diversas ocasiões ao longo da história de seu pensamento, como distanciada do
verdadeiro cristianismo, causa pela qual Kierkegaard muito trabalhou em esclarecer. A
fé, que para Johhanes é a concretização do indíviduo no encontro de si em Deus, e seu
posterior regresso à finitude terrena, aparece portanto como um absurdo, um paradoxo
incompreensível e por isto de fé, que sobrepujaria portanto até mesmo a ética e seus
valores universais.

3.

A história de que Johannes de Silentio faz uso para ilustrar seu pensamento a
cerca do que é a fé, e quais suas possibilidades, é a história de Abraão (Gênesis 22).
Comecemos por descrevê-la. Abraão tinha uma relação direta com a divindade, pode-se
dizer que com Deus conversava em linguagem ³privada´. Ele tinha como mulher Sara,
com a qual fizessem o que fosse, nunca conseguia prover herdeiro à Abraão. Deus tinha
em Abraão o símbolo da fé, onde se essa fosse possível, se amar a Deus fosse possível
acima de tudo, seria Abraão quem iria, por testemunho, demonstrar. Era seu destino ser
para sempre e além de sua existência considerado daquela forma o pai da fé. Seria,
como nos diz Johhanes, um cavaleiro da fé! Assim, Abraão e Sara passaram a vida em
testemunho de Deus. Muito a eles foi prometido, como fruto de suas crenças, por
exemplo gerações inteiras como descendência, além de riquezas em vida na terra.
Entretanto, tais promessas nunca se realizavam, mas não por isso deixavam,
principalmente como nos ressalta a história, Abraão, de ter fé sequer por um instante. O
que mais queriam era um filho, e talvez o maior milagre seja justamente esse, a
conservação da mocidade de quem quer ser pai, e mãe, já em adiantada idade. Somente
a paixão mantêm jovem uma alma. Acontece um dia que Sara engravida, e nasce o
pequeno Isaac. Era o milagre. Deve ser ressaltado que esse dia Sara já tardava seus
setenta anos, mas de almas jovens conservadas pela fé, amariam-o como fossem recém
namorados. Filho feito, cultivaram uma vida na terrinha que lhes havia sido concedida
por Deus e, em família, nada parecia mais agradável e gratificante.

Mas se a desgraça (para nós sem fé) da espera pela vida toda já nos atormenta,
tal tornar-se-ia maior. O filho de que tanto amavam era requisitado em holocausto por
Deus à Abraão; um sacrifício, como prova da fé deste homem. Ô indivíduo desgraçado,
esse tipo de pacto mais parece demoníaco! Deveria pois levar Isaac às terras de Morijá,
onde lá, Deus indicaria um monte, em que no seu topo, após construir um púlpito,
sacaria uma faca e assassínaria o próprio sucessor consanguínio, para então queimá-lo
em holocausto. Acontece que Abraão jamais duvidou de Deus e, sem hesitar, acorda
cedo pela manhã seguinte à ordem divína, sela seu jumento e levando Isaac consigo,
além de dois serventes, percorre olhos no chão por três dias o caminho até o monte,
tendo levantado-os apenas ao fim do terceiro dia, quando enfim avistou de longe a
chegada dos montes malditos. Porém, sem dizer palavra, mantinha segredo sobre o fim
secreto à espera do rapaz consigo, e somente veio a falar alguma coisa quando Isaac lhe
perguntára onde estaria o ovídeo para o sacrifício que fariam, já que com eles tinham a
lenha e o fogo, mas não o que queimar, no qual Abraão responderia, sem dizer com isso
nada, como que numa irônia socráctica, que ³Deus trataria de providenciar´. Pobre
menino, para ter um pai abençoado, era ele quem pagaria a cabra (pra não dizer o pato).
Abraão, em verdade, nada sabia sobre providência nenhuma, em verdade, levava apenas
o saber da responsabilidade da morte do filho pelas mãos de seu próprio pai. Que aflição
e angústia não sofreu esse homem! Ou será que talvez desimporta-se, tal que mais vale
seu amor à Deus, e a consequênte loucura na terra, do que, até mesmo, seu filho amado.
Mas Abraão nunca duvidou de Deus, embora também nunca tenha tido porque acreditar.
Afinal, setenta anos tiveram de passar, para enfim conhecer um pouco do que se
chamava alegria, e desta não colheria mais nada além das lágrimas pelas lembranças.
Colheria, talvez também, a alegria por estar junto ao Senhor, pois como disse Johhanes,
de todos os homens que foram grandes, nenhum é mais que aquele que amou a Deus.
Entre heróis e poetas, aquém de seus feitos líricos e virtuosos, não houve nenhum que
pudesse ser da grandeza de Abraão. Ele o sabia, e por isso, Abraão nunca duvidou de
Deus, tinha fé absoluta no absoluto, carregava seu espírito com fé na existência, nessa a
que vivia, e sabia que cedo ou tarde vingariam-se os votos prometidos. Abandonou-se
com fé nessa existência no manto celestial, bom e misericordioso, mas também esperava
o retorno para essa existência. O salto para a fé era o passo a passo de Abraão. Vivia o
salto. Aquilo, era apenas uma prova, uma tentação, da qual tinha que comprir sem
hesitar, apenas mais um passo, o qual deveria fortemente pretender realizá-lo, ainda que
não se comprisse como predestinado, por qualquer razão divina que fosse. Tinha fé no
Absurdo. Acompanhavam-os no caminho, como dito, dois de seus serventes, com os
quais Abraão também não trocou palavras, exceto à hora de deixá-los à base do morro,
informando-os que de lá em diante subiria com seu filho, para logo retornarem. Como
dizer tal coisa, que logo retornariam, sem acreditar piamente no abusrudo! Sabia que
subia o monte como um assassino, então, estaria a mentir? Não, apenas tinha fé no
abrsurdo. É preciso dizer que sequer Sara sabia do destino de seu bem amado
desmamado. Abraão silenciou-se, não para salvar alguém, como o prescreveria uma
atitude estética, mas para salvar sua própria relação com Deus, da qual não tinha
palavras para explicar-se. Se tão pouco foi esteta, menos o foi ético, tal que a ética
prescrever-lhe-ia manifestar-se sempre, tendo como acalento a própria ética e seus
princípios universais, pois somente é ético aquele que fala sempre, que não se oculta,
aquele que se manifesta. Abraão guarda a fé com o silêncio, e somente isso trouxe a fé
como possibilidade para o indíviduo moderno, tal que foi seu silêncio que o tornou o pai
da fé. Abraão tornou-se referência do que é ser um homem de fé, pois viveu o absurdo
de frente, não para mostrar a ninguém, não para ser visto como um herói, mas poruqe a
ele foi destinado tal infortúnio, que carregava sem lástimas. Abraão nunca praguejou,
nunca esperou que Deus mudasse de idéia, de súbito que fosse, ou pelos pedidos que
poderia ter feito para que o todo poderoso poupasse-os de tal caminho. Nunca Abraão
desejou uma bifurcação adiante, manteve reto como deve um coodeiro em seu rebanho.
Como poderia um homem hoje guardar silêncio a respeito do absurdo? Se tiver fé. O
silêncio de Abraão pode ser contemplado, quiça compreendido, se olharmos-o como um
paradoxo, mas jamais será igualado. É por isso que a fé é esse paradoxo, do qual o
homem moderno não atinje além do primeiro estágio, o da resignação, pois permanece
valorando supramente a ética e a sociedade. Bem, ao chegar no monte, prontamente
edificou um altar para o sacrifício, construido com as toras de madeira que levára
cortadas em seu jumento. Amarrou seu filho, sacou a faca e, quando Isaac já tremia...
veio um anjo enviado por Deus para intervir. Falou-lhe que sua fé já estava provada, tal
que esteve a um ato de encerrar a cena. É a chamada providência divína. Abraão pode
mesmo ver-se o inquisitor ordenado por Deus, já projetava o que dizer a Sara, quando
enfim surgia um carneiro, como oferenda válida, e tendo-o sacrificado, desceram de
volta para casa, tendo Isaac presenciado tudo, e tendo Abraão morrido em sua angústia.
Aquele que vê a própria morte deixa de ser humano, e Abraão morreu de angústia.
Nunca mais palavra seria dita sobre o ocorrido, apesar que nunca mais palavras
deixaram de ocorrer. Mentes corroidas pela fé de Abraão. O que dizer sobre tal
absurdo? Que nele reina o paradoxo da fé!



Abraão era antes de tudo, como todos, um homem. Que ele era um homem de fé,
parece não haver dúvidas, mas o que é isso a que se chama fé? Johhanes de Silentio nos
ajuda a compreender tal inclaustro a partir de sua primeira e fundamental característica,
ser individual. A fé é portanto uma relação direta para com Deus, sem que no entanto,
hajam razões em sentido lato para tal. Essa relação direta é o que chamamos de
indivíduo pleno, aquele que encontra a totalidade no instante eterno do tempo, e que
nela se deleita retornando à sua finitude, mas agora enquanto homem de fé. Em síntese,
a fé é uma paixão, na qual se entrega à verdade eterna do instante. Para o autor, o
indivíduo, ser psíquico, imediato e sensível, é aquele para o qual a fé é possível, não
como abnegação de si, mas como encontro a si mesmo com Deus. Está em erro quem
compreende que é preciso esquecer de si para se ter fé, tal que os movimentos para tal
são outros, a saber, a resignação infinita, ou desapego à realidade finita beneficiando o
infinito, e o posterior retorno ao finito, onde esse retorno ao finito é justamente a
religiosidade (entendida como B). A individualidade é assim entendida como o oculto
que deve ser manifestado, que em seus vários estágios possíveis, encerra a existência de
cada pessoa em uma fase própria, seja ela a estética, a ética ou a religiosa. Em verdade,
Johannes não explana muito sobre tais estágios em Tem  e Tem , mas podemos
sobre tais disocorer, para melhor compreendermos o estágio existêncial em que se
encontrava Abraão.
O indivíduo estético vive em prol dos prazeres sensíveis, da aparência em sua
imediatez. Abraão portanto poderia parecer-nos um esteta, tal que conservou o silêncio,
permanecendo assim oculto em seus temores. Mas não haviam prazeres sensíveis, pois
se houvessem, seu não dizer deveria trazer um bem àqueles que ama, ou mesmo que
fosse a si, mas nem um nem outro concretizar-se-ia nesse silêncio. Ele calou, pois era o
único homem da terra em relação com Deus. Não havia à época, como hoje e nos
tempos de Johhanes, uma igreja estatal ou um sacerdote a quem buscar apoio em seus
afazeres sagrados. Se houvesse uma igreja, poderia declarar que fazia em nome da
instituição. Haveria respaldo social, pois todos que pertencem a tal coligação acreditam
serem homens de fé e, portanto, o compreenderiam, agiria pela fé compartilhada por
todos. Mas sequer bíblia havia, nenhum texto a que se reportar, nada! Se Abraão, o
signo da fé, para obter suas riquezas em terra e seus filhos no mundo, deveria manter-se
fiel a Deus, então quando recebeu a ordem de comprir a provação, havia de fazê-lo em
silêncio, e isso por diversas razões. A começar, Abraão não podia ter dúvidas de sua fé,
ao mesmo tempo que não tinha razões externas que levasse-o a ter certezas. É
justamente por não ter certeza que agia por fé, caso contrário, estaria em posse da razão.
A fé não tem justificativas, e por isso mesmo é a mais difícil das provações. Abraão já
era um homem de fé, já vivia em provação. Já quando Deus disse-lhe para abandonar
sua terra natal, onde tinha vínculos etc., Abraão não hesitou, e partiu deixando o
entendimento, levando consigo sua fé, sempre acima de tudo. Quando Deus ordenou
que levasse seu filho, o único, aquele a quem amava, para queimá-lo no monte, estava
testando sua fé, tal que a todo momento pode um homem recair em tentações adversas,
a todo momento pode-se perder a fé. A todo momento, Abraão poderia ter repensado
suas escolhas, e dessa forma voltado atrás; cada passo era mais uma chance de redimir-
se na esfera ética. E se fosse isso o que esperava Deus da parte dele? Mas se assim o
fizesse, ou qualquer ato que incorresse em dúvidas de sua parte, estaria em crise
religiosa, e não seria mais Abraão. Abraão sendo capaz de oferecer o sangue de seu
sangue, era definitivamente fiel a Deus. Mas quem poderia entendê-lo? Ningém na terra
tinha as mesmas experiências que ele, era o escolhido de Deus, e como tal era o único, e
sendo assim, suas palavras seriam incompreensíveis e demasiado absurdas a quem quer
que as pudesse ouvir. Não haviam mediações entre ele e Deus, sua ligação era direta.
Recebeu a graça, pois era de alma demasiado elevada, tinha a sabedoria do futuro e a fé
no destino. Como poder explicar que subiria ao monte para oferecer de suas mãos
aquele que Sara e ele tanto esperaram? Se por um lado poderia estar blasfemando a
vontade divina, muito pelo contrário, acatou-a como necessária. Bem em verdade, era
mesmo, pois se não o fizesse, se renuncia-se aos planos por Deus traçados, não seria
mais Abraão, o pai da fé. Era como se Deus zombasse da cara deles, fazendo-os esperar
tanto para tão rapidamente esvaziar-lhes tudo que tinham. Ainda assim creu e creu nessa
existência. Agiu em virtude do absurdo, entenda-se, pela força deste!

Johannes, alterando a história um pocuo, como de costume, a fim de explicitar


melhor as hipóteses, a fim de compreender a verdadeira derradeira, propõe uma saída a
Abraão. Poderia, por exemplo, ao chegar no monte, virár a Deus e gritar ³Perceba o que
faço, e garanta que Isaac não se recorde de meu feito!´, para em seguida, ao invés de
sequer cogitar o sacrifício do jovem mancebo, apunhalar-se como prova de seu valor
ético, como prova de ser um bom pai, e de que nunca desdenharia da graça divína que
propiciou tal feito. A humanidade poderia lembrar-se de Abraão como o símbolo da
paternindade, de quem sabe o valor de genes jovens face aos de um homem senil como
si. Teria sido um ético, mas e Isaac? Talvez nunca mais tivesse fé. Teria em Deus o
símbolo do Diabo, e fugiria dele como o oposto da cruz. Mas não era essa a meta de
Abraão, pois não era essa e meta de Deus, tal que Deus é amor. Assim, estava
compenetrado em trabalhar para aquele que lhe trouxe à vida, tal como deve fazer um
homem de fé. Isaac, por sua vez, talvez não se interessa-se em ser o ovídeo. A ética não
pede que um filho dê-se pelo genitor, mas sim o contrário. E ele não tinha ainda a fé,
necessária para compreender o ato do pai, portanto, sua melhor conduta era a ética.

Para compreender a fé de Abraão, é preciso justificar uma suspenção teleológica


da moralidade. Caso contrário, Abraão quis matar seu filho, e não sacrificá-lo. Todo
indivíduo que tenha na moralidade um estado superior, a se inclinar como servidor,
sendo assim um indivíduo ético, não compreenderia o desejo de Abraão, tal que foi
movido por amor a si mesmo e amor a Deus. Sua relação era direta, não sustentavase
em nenhuma instituição religiosa ou coisas do tipo, e isso ultrapassava o dever para com
o geral. Não foi preciso mediação entre Abraão e Deus, e a ética, se entendida como a
divindade, requer que faça-se uma escala na moralidade para atingir a Deus. O
indíviduo que age moralmente, entregando-se ao geral (os valores sociais),
compreendendo que o geral é a própria divindade, jamais entenderia que a divindade
está acima da moralidade, mas de tal forma, que não a recusa, apenas a torna
indiferente, no sentido do valor do ato de Abraão. A moral está no geral, e de certa
forma, todo individuo deveria entregar-se ao geral, manifestar-se éticamente, sendo que
em veradade, o ético segue preceitos universais, e ai daquele que lutar contra a ética,
pois possui respostas primeiras! Mas as respostas ulteriores são dadas pela fé. As
respostas verdadeiras, não elocubrativas como as do filósofo, mas a verdade divina e
única. A Filosofia é, aliás, vista por Johannes como tal elocubração, e por tanto, este
não considera-se um filósofo. Não quer ser um pensador de sistemas totalizantes, como
o do tão criticado ao longo do livro Tem eTem Hegel. A verdade tão pouco está na
ética, tal que seus princípios identificam-se com suas respostas, como por exemplo, o de
que todo pai deve amar a seu filho acima de tudo. Como poderia Abraão ser um ético,
se firmemente subiu o morijá com finalidades aniquilatórias! Entretanto, Abraão não
deixou jamais de amar Isaac, tinha nele tudo que importava, e ainda assim entregou-se à
vontade contraditória. Era portanto, em alguma medida, ainda um homem ético. Mas
pode a ética ser sobrepujada por algo? pois se não, Abraão e sua contuda terão sido
desprovidas de sentido: sua personalidade, suas escolhas e seu silêncio.

Mas não era a ética que estava em jogo naquela cena, e sim a fé. A existência
estava em outro patamar, o religioso. Creu no absurdo nesta existência, deixando de
lado tanto estética quanto ética, pois acima de tudo deve vir a fé, que elevou sua
existência acima de qualquer dúvida. Fez, pois assim era para ser, tal que não era ele
qualquer homem, a quem cabe o julgo de livremente escolher, a quem as
responsabilidades tornam a vida interessante ou não. Haviam determinações outras,
imperativas, tratava-se do escolhido do dedo de Deus. Não era como Sócrates, que de
todos, de acordo com Johannes, foi o que teve a vida mais interessante. Abraão era o
símbolo de uma existência transcendente. Se conversasse-mos a respeito do mundo
exterior, a terra em que pisamos, onde reina a imperfeição, onde aquele que pouco
trabalha ganha além dos limites da imaginação de um esforçado e compenetrado
obreiro, então talvez Abraão pudesse ter dito para Deus aquela frase que nos propõe
Johannes, poupando-se da missão e agindo livremente em direção à sua vontade, e
assim, a aparência de justiça imperaria em sua mente. Entretanto, no mundo do espírito,
a lei maior é a justiça e ordem eterna, aquela em que se Deus lhe tenta, devés responder
à altura da ordem, pois setenta anos foram pouco para testar o homem; deveria perder
Isaac recém ganhado, para então recebê-lo de novo. Precisava dar para receber. Isaac
ressurgira à Abraão como prova de sua fé. Se a fé de Abraão não santifica seu ato, esse
torna-se um assassino. Pela fé, faria um sacrifício, e não um assassinato, como o seria
pela interpretação ética. Mas para fazer tal martírio, deveria enclausurar-se nele, em
silêncio. Deveria padecer da angústia, como prova da fé. Atenta-se, não se trata de
irracionalismo, tal que a fé não é um oposto da razão, mas sim outra esfera existencial.
Ela inicia onde a razão termina. Mantem-se a consciência da impossibilidade de que
Deus volte a trás, mas ainda assim crê no amor divino. Selava o jumento, já acreditando
que retornaria com Isaac, mesmo sabendo ser tal crença um absurdo. É importante que
entendamos que o absurdo é Deus voltar a trás, e não a crença. A crença é crível, por ser
de um homem de fé. Esse é o paradoxo que torna o indivíduo Abraão é um cavaleiro da
fé, e não um herói trágico.

Um cavaleiro da fé está permanentemente integrado ao finito na infinitude. Vive


esta existência, mas como infinitude dentro de si. É a renúncia à autonomia do
individuo, frente à heteronomia divina. O mais interessante é que nada que se veja nele
pode induzir a crença de ser tal como é, pois aparenta uma firme monada finita, mas em
verdade, seu interior é a pura luz do infinito, que por nenhuma brecha escapa deste
homem. Sua existência é para o finito, mas sempre imersa na infinitude da resignação,
que é temporalmente um instante eterno. Por si só, a resignação infinita não tráz a fé,
mas é o que a permite. Deve ser entendida como um movimento, rumo à fé, mas que em
si mesmo não garante nada além disso, e que portanto, pode parar antes dela. Da mesma
forma, a fé é um segundo movimento, sendo que tal passagem de um para o outro é o
que constitui o salto existêncial. Ser um homem amante a Deus, não é o mesmo de ter fé
em Deus. Pode-se amar a Deus sem ter fé, pois para tê-la, é preciso muito, é preciso
temer a Deus sem tremer diante dele, pois nele é preciso ter confiança. A dialética da fé
é seu aburdo, uma dialética qualitativa, da impossibilidade como pólo determinante.
Pode-se passar a vida inteira amando a Deus sem nele ter fé, no sentido de entender que
só a fé fez com que Abraão intencioná-se sacrificar Isaac. O cavaleiro da fé, como o foi
Abraão, é aquele que realiza o salto para a existência religiosa. Mas não pense que é
assim tão simples. Este tem de ser natural. Toda sua ação é em função do absurdo.
Johannes mesmo considera-se anterior à fé, repetindo diversas vezes ser um homem
sem coragem suficiente para isso. Considera-se, no máximo, um herói trágico. A
coragem deve ser entendida como a entrega de si à uma vida em que o paradoxo do
absurdo seja aceito e inteiramente vivido, de forma a não duvidar jamais, tal que
incorreria em crise, tendo de retomar o movimento perdido; é a renúncia à tudo, e com
isso esquecimento ou abandono da razão. Filiação com o próprio Deus, de forma a não
deixar de saber ser impossível o que se espera, mas por outro lado, ter de forma
imânente ciência da onipotência de Deus. É ter com Deus uma lingua comum. Poucos a
tem, em gêral, o homem não dialóga com Deus, são de linguas distintas. Não há provas
de Deus. Exceto ao cavaleiro da fé, ele sim tem provas, mas carrega-as consigo em
silêncio aboluto. Diferente dos homens comuns, Abraão com Deus tinha amizade.
Mesmo sabendo ser impossível que ele Abraão retornasse do monte com Isaac,
permanecia crente nessa possibilidade. É na possibilidade que tudo está em jogo. É na
crença de que Deus não lhe exigiria Isaac, que quando absurdo corroborado,
reencontraria Abraão alegira enternecida. O Absurdo era acreditar que Deus desdaria
sua vontade. Não há cálculo racional que o acreditasse, por isso é absurdo tal crença. A
razão só alcansa até certo limite, e para além deste, está o paradoxo. Iludi-se aquele que
espera dela todas as resoluções, e em contraposição, a melhor desfruta quem do
compreende tais entraves. Pois o cavaleiro da fé vive assim. Mesmo que o amor de
Abraão por Isaac, que é frisado por nosso autor como o mais alto e aprazivel amor já
ouvido falar pelo homem, de forma que tanto amor assustaria os que sobre ele
ouvissem, tal que não entenderiam que Abraão só foi capaz de intencionar-se a
sacrificar Isaac devido o amar acima de tudo, tal amor reside nos entraves da razão. Só
de ouvirem e tiverem de pensar em sacrificar seus filhos, homens comuns tremeriam
diante da ordem divina, e prefeririam uma conduta ética, desviante da fé, dever maior e
sagrado, mas facilmente abandonado. Se Deus lhe quizesse mesmo tirar Isaac, Abraão
ainda assim creria no amor de Deus, e no absurdo de que pudesse ainda assim reinterar-
se de seu primogenito. Deus poderia reviver o menino morto, se assim o quizesse. Pois
pela fé se alcansa a existência nesse mundo.

Tudo que seja desejado para além da consciência eterna, fruto da resignação
infinita, só é possível tendo-se fé. Ela portanto é o que me trará tudo quanto for finito
pelo olhar do absurdo. É por esses motivos pincelados que ser de fé constitui paradoxo.
Pela fé, a coisa alguma renuncio, ao contrário, tudo recebo. A princesa com a espada
sobre a cabeça não me apavorará, tal que tenho fé no absurdo a todo instante, pois sou
um cavaleiro da fé. Esse é nosso herói superior ao herói trágico! Pensar que tem tanta fé
para ser feliz com ela, para nunca desprender-se do fio em ligação com Deus, e nessa
corda bambíssima com uma princesa poder passear, sempre com uma espada sobre sua
cabeça. Se perco a fé, a espada corta-lhe, mas não há espaço para tal em meus instantes.
A fé é esse movimento ao absurdo. Não pode perder-se do mundo finito, ao contrário,
deve ganhá-lo sempre. Se a resignação infinita tirou-me tudo, agora que tenho fé tudo
receberei. Já sofri as provações, já sacrifiquei a mim, Isaac e o ovídeo, devo agora ter
paz e riquezas, sabedoria divina e nações ao meu mandar. Irrompe em Abraão um novo
mundo após tudo ocorrido, e tudo graças a sua fé. Mas que custas não!

 





KIERKEGAARD, Sören. Tem eTem  Tradução Torrieri Guimarães. São


Paulo:Editora Hemus, 2008.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. R  el R uma introdução à


Kierkegaard. São Paulo: Novo Século, 2000.




PAULA, Marcio Gimenes de. O Silêncio de Abraão: os desafios para a ética;


Em Tem eTem de Kierkegaard. 2008

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