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3.
A história de que Johannes de Silentio faz uso para ilustrar seu pensamento a
cerca do que é a fé, e quais suas possibilidades, é a história de Abraão (Gênesis 22).
Comecemos por descrevê-la. Abraão tinha uma relação direta com a divindade, pode-se
dizer que com Deus conversava em linguagem ³privada´. Ele tinha como mulher Sara,
com a qual fizessem o que fosse, nunca conseguia prover herdeiro à Abraão. Deus tinha
em Abraão o símbolo da fé, onde se essa fosse possível, se amar a Deus fosse possível
acima de tudo, seria Abraão quem iria, por testemunho, demonstrar. Era seu destino ser
para sempre e além de sua existência considerado daquela forma o pai da fé. Seria,
como nos diz Johhanes, um cavaleiro da fé! Assim, Abraão e Sara passaram a vida em
testemunho de Deus. Muito a eles foi prometido, como fruto de suas crenças, por
exemplo gerações inteiras como descendência, além de riquezas em vida na terra.
Entretanto, tais promessas nunca se realizavam, mas não por isso deixavam,
principalmente como nos ressalta a história, Abraão, de ter fé sequer por um instante. O
que mais queriam era um filho, e talvez o maior milagre seja justamente esse, a
conservação da mocidade de quem quer ser pai, e mãe, já em adiantada idade. Somente
a paixão mantêm jovem uma alma. Acontece um dia que Sara engravida, e nasce o
pequeno Isaac. Era o milagre. Deve ser ressaltado que esse dia Sara já tardava seus
setenta anos, mas de almas jovens conservadas pela fé, amariam-o como fossem recém
namorados. Filho feito, cultivaram uma vida na terrinha que lhes havia sido concedida
por Deus e, em família, nada parecia mais agradável e gratificante.
Mas se a desgraça (para nós sem fé) da espera pela vida toda já nos atormenta,
tal tornar-se-ia maior. O filho de que tanto amavam era requisitado em holocausto por
Deus à Abraão; um sacrifício, como prova da fé deste homem. Ô indivíduo desgraçado,
esse tipo de pacto mais parece demoníaco! Deveria pois levar Isaac às terras de Morijá,
onde lá, Deus indicaria um monte, em que no seu topo, após construir um púlpito,
sacaria uma faca e assassínaria o próprio sucessor consanguínio, para então queimá-lo
em holocausto. Acontece que Abraão jamais duvidou de Deus e, sem hesitar, acorda
cedo pela manhã seguinte à ordem divína, sela seu jumento e levando Isaac consigo,
além de dois serventes, percorre olhos no chão por três dias o caminho até o monte,
tendo levantado-os apenas ao fim do terceiro dia, quando enfim avistou de longe a
chegada dos montes malditos. Porém, sem dizer palavra, mantinha segredo sobre o fim
secreto à espera do rapaz consigo, e somente veio a falar alguma coisa quando Isaac lhe
perguntára onde estaria o ovídeo para o sacrifício que fariam, já que com eles tinham a
lenha e o fogo, mas não o que queimar, no qual Abraão responderia, sem dizer com isso
nada, como que numa irônia socráctica, que ³Deus trataria de providenciar´. Pobre
menino, para ter um pai abençoado, era ele quem pagaria a cabra (pra não dizer o pato).
Abraão, em verdade, nada sabia sobre providência nenhuma, em verdade, levava apenas
o saber da responsabilidade da morte do filho pelas mãos de seu próprio pai. Que aflição
e angústia não sofreu esse homem! Ou será que talvez desimporta-se, tal que mais vale
seu amor à Deus, e a consequênte loucura na terra, do que, até mesmo, seu filho amado.
Mas Abraão nunca duvidou de Deus, embora também nunca tenha tido porque acreditar.
Afinal, setenta anos tiveram de passar, para enfim conhecer um pouco do que se
chamava alegria, e desta não colheria mais nada além das lágrimas pelas lembranças.
Colheria, talvez também, a alegria por estar junto ao Senhor, pois como disse Johhanes,
de todos os homens que foram grandes, nenhum é mais que aquele que amou a Deus.
Entre heróis e poetas, aquém de seus feitos líricos e virtuosos, não houve nenhum que
pudesse ser da grandeza de Abraão. Ele o sabia, e por isso, Abraão nunca duvidou de
Deus, tinha fé absoluta no absoluto, carregava seu espírito com fé na existência, nessa a
que vivia, e sabia que cedo ou tarde vingariam-se os votos prometidos. Abandonou-se
com fé nessa existência no manto celestial, bom e misericordioso, mas também esperava
o retorno para essa existência. O salto para a fé era o passo a passo de Abraão. Vivia o
salto. Aquilo, era apenas uma prova, uma tentação, da qual tinha que comprir sem
hesitar, apenas mais um passo, o qual deveria fortemente pretender realizá-lo, ainda que
não se comprisse como predestinado, por qualquer razão divina que fosse. Tinha fé no
Absurdo. Acompanhavam-os no caminho, como dito, dois de seus serventes, com os
quais Abraão também não trocou palavras, exceto à hora de deixá-los à base do morro,
informando-os que de lá em diante subiria com seu filho, para logo retornarem. Como
dizer tal coisa, que logo retornariam, sem acreditar piamente no abusrudo! Sabia que
subia o monte como um assassino, então, estaria a mentir? Não, apenas tinha fé no
abrsurdo. É preciso dizer que sequer Sara sabia do destino de seu bem amado
desmamado. Abraão silenciou-se, não para salvar alguém, como o prescreveria uma
atitude estética, mas para salvar sua própria relação com Deus, da qual não tinha
palavras para explicar-se. Se tão pouco foi esteta, menos o foi ético, tal que a ética
prescrever-lhe-ia manifestar-se sempre, tendo como acalento a própria ética e seus
princípios universais, pois somente é ético aquele que fala sempre, que não se oculta,
aquele que se manifesta. Abraão guarda a fé com o silêncio, e somente isso trouxe a fé
como possibilidade para o indíviduo moderno, tal que foi seu silêncio que o tornou o pai
da fé. Abraão tornou-se referência do que é ser um homem de fé, pois viveu o absurdo
de frente, não para mostrar a ninguém, não para ser visto como um herói, mas poruqe a
ele foi destinado tal infortúnio, que carregava sem lástimas. Abraão nunca praguejou,
nunca esperou que Deus mudasse de idéia, de súbito que fosse, ou pelos pedidos que
poderia ter feito para que o todo poderoso poupasse-os de tal caminho. Nunca Abraão
desejou uma bifurcação adiante, manteve reto como deve um coodeiro em seu rebanho.
Como poderia um homem hoje guardar silêncio a respeito do absurdo? Se tiver fé. O
silêncio de Abraão pode ser contemplado, quiça compreendido, se olharmos-o como um
paradoxo, mas jamais será igualado. É por isso que a fé é esse paradoxo, do qual o
homem moderno não atinje além do primeiro estágio, o da resignação, pois permanece
valorando supramente a ética e a sociedade. Bem, ao chegar no monte, prontamente
edificou um altar para o sacrifício, construido com as toras de madeira que levára
cortadas em seu jumento. Amarrou seu filho, sacou a faca e, quando Isaac já tremia...
veio um anjo enviado por Deus para intervir. Falou-lhe que sua fé já estava provada, tal
que esteve a um ato de encerrar a cena. É a chamada providência divína. Abraão pode
mesmo ver-se o inquisitor ordenado por Deus, já projetava o que dizer a Sara, quando
enfim surgia um carneiro, como oferenda válida, e tendo-o sacrificado, desceram de
volta para casa, tendo Isaac presenciado tudo, e tendo Abraão morrido em sua angústia.
Aquele que vê a própria morte deixa de ser humano, e Abraão morreu de angústia.
Nunca mais palavra seria dita sobre o ocorrido, apesar que nunca mais palavras
deixaram de ocorrer. Mentes corroidas pela fé de Abraão. O que dizer sobre tal
absurdo? Que nele reina o paradoxo da fé!
Abraão era antes de tudo, como todos, um homem. Que ele era um homem de fé,
parece não haver dúvidas, mas o que é isso a que se chama fé? Johhanes de Silentio nos
ajuda a compreender tal inclaustro a partir de sua primeira e fundamental característica,
ser individual. A fé é portanto uma relação direta para com Deus, sem que no entanto,
hajam razões em sentido lato para tal. Essa relação direta é o que chamamos de
indivíduo pleno, aquele que encontra a totalidade no instante eterno do tempo, e que
nela se deleita retornando à sua finitude, mas agora enquanto homem de fé. Em síntese,
a fé é uma paixão, na qual se entrega à verdade eterna do instante. Para o autor, o
indivíduo, ser psíquico, imediato e sensível, é aquele para o qual a fé é possível, não
como abnegação de si, mas como encontro a si mesmo com Deus. Está em erro quem
compreende que é preciso esquecer de si para se ter fé, tal que os movimentos para tal
são outros, a saber, a resignação infinita, ou desapego à realidade finita beneficiando o
infinito, e o posterior retorno ao finito, onde esse retorno ao finito é justamente a
religiosidade (entendida como B). A individualidade é assim entendida como o oculto
que deve ser manifestado, que em seus vários estágios possíveis, encerra a existência de
cada pessoa em uma fase própria, seja ela a estética, a ética ou a religiosa. Em verdade,
Johannes não explana muito sobre tais estágios em Tem e Tem , mas podemos
sobre tais disocorer, para melhor compreendermos o estágio existêncial em que se
encontrava Abraão.
O indivíduo estético vive em prol dos prazeres sensíveis, da aparência em sua
imediatez. Abraão portanto poderia parecer-nos um esteta, tal que conservou o silêncio,
permanecendo assim oculto em seus temores. Mas não haviam prazeres sensíveis, pois
se houvessem, seu não dizer deveria trazer um bem àqueles que ama, ou mesmo que
fosse a si, mas nem um nem outro concretizar-se-ia nesse silêncio. Ele calou, pois era o
único homem da terra em relação com Deus. Não havia à época, como hoje e nos
tempos de Johhanes, uma igreja estatal ou um sacerdote a quem buscar apoio em seus
afazeres sagrados. Se houvesse uma igreja, poderia declarar que fazia em nome da
instituição. Haveria respaldo social, pois todos que pertencem a tal coligação acreditam
serem homens de fé e, portanto, o compreenderiam, agiria pela fé compartilhada por
todos. Mas sequer bíblia havia, nenhum texto a que se reportar, nada! Se Abraão, o
signo da fé, para obter suas riquezas em terra e seus filhos no mundo, deveria manter-se
fiel a Deus, então quando recebeu a ordem de comprir a provação, havia de fazê-lo em
silêncio, e isso por diversas razões. A começar, Abraão não podia ter dúvidas de sua fé,
ao mesmo tempo que não tinha razões externas que levasse-o a ter certezas. É
justamente por não ter certeza que agia por fé, caso contrário, estaria em posse da razão.
A fé não tem justificativas, e por isso mesmo é a mais difícil das provações. Abraão já
era um homem de fé, já vivia em provação. Já quando Deus disse-lhe para abandonar
sua terra natal, onde tinha vínculos etc., Abraão não hesitou, e partiu deixando o
entendimento, levando consigo sua fé, sempre acima de tudo. Quando Deus ordenou
que levasse seu filho, o único, aquele a quem amava, para queimá-lo no monte, estava
testando sua fé, tal que a todo momento pode um homem recair em tentações adversas,
a todo momento pode-se perder a fé. A todo momento, Abraão poderia ter repensado
suas escolhas, e dessa forma voltado atrás; cada passo era mais uma chance de redimir-
se na esfera ética. E se fosse isso o que esperava Deus da parte dele? Mas se assim o
fizesse, ou qualquer ato que incorresse em dúvidas de sua parte, estaria em crise
religiosa, e não seria mais Abraão. Abraão sendo capaz de oferecer o sangue de seu
sangue, era definitivamente fiel a Deus. Mas quem poderia entendê-lo? Ningém na terra
tinha as mesmas experiências que ele, era o escolhido de Deus, e como tal era o único, e
sendo assim, suas palavras seriam incompreensíveis e demasiado absurdas a quem quer
que as pudesse ouvir. Não haviam mediações entre ele e Deus, sua ligação era direta.
Recebeu a graça, pois era de alma demasiado elevada, tinha a sabedoria do futuro e a fé
no destino. Como poder explicar que subiria ao monte para oferecer de suas mãos
aquele que Sara e ele tanto esperaram? Se por um lado poderia estar blasfemando a
vontade divina, muito pelo contrário, acatou-a como necessária. Bem em verdade, era
mesmo, pois se não o fizesse, se renuncia-se aos planos por Deus traçados, não seria
mais Abraão, o pai da fé. Era como se Deus zombasse da cara deles, fazendo-os esperar
tanto para tão rapidamente esvaziar-lhes tudo que tinham. Ainda assim creu e creu nessa
existência. Agiu em virtude do absurdo, entenda-se, pela força deste!
Mas não era a ética que estava em jogo naquela cena, e sim a fé. A existência
estava em outro patamar, o religioso. Creu no absurdo nesta existência, deixando de
lado tanto estética quanto ética, pois acima de tudo deve vir a fé, que elevou sua
existência acima de qualquer dúvida. Fez, pois assim era para ser, tal que não era ele
qualquer homem, a quem cabe o julgo de livremente escolher, a quem as
responsabilidades tornam a vida interessante ou não. Haviam determinações outras,
imperativas, tratava-se do escolhido do dedo de Deus. Não era como Sócrates, que de
todos, de acordo com Johannes, foi o que teve a vida mais interessante. Abraão era o
símbolo de uma existência transcendente. Se conversasse-mos a respeito do mundo
exterior, a terra em que pisamos, onde reina a imperfeição, onde aquele que pouco
trabalha ganha além dos limites da imaginação de um esforçado e compenetrado
obreiro, então talvez Abraão pudesse ter dito para Deus aquela frase que nos propõe
Johannes, poupando-se da missão e agindo livremente em direção à sua vontade, e
assim, a aparência de justiça imperaria em sua mente. Entretanto, no mundo do espírito,
a lei maior é a justiça e ordem eterna, aquela em que se Deus lhe tenta, devés responder
à altura da ordem, pois setenta anos foram pouco para testar o homem; deveria perder
Isaac recém ganhado, para então recebê-lo de novo. Precisava dar para receber. Isaac
ressurgira à Abraão como prova de sua fé. Se a fé de Abraão não santifica seu ato, esse
torna-se um assassino. Pela fé, faria um sacrifício, e não um assassinato, como o seria
pela interpretação ética. Mas para fazer tal martírio, deveria enclausurar-se nele, em
silêncio. Deveria padecer da angústia, como prova da fé. Atenta-se, não se trata de
irracionalismo, tal que a fé não é um oposto da razão, mas sim outra esfera existencial.
Ela inicia onde a razão termina. Mantem-se a consciência da impossibilidade de que
Deus volte a trás, mas ainda assim crê no amor divino. Selava o jumento, já acreditando
que retornaria com Isaac, mesmo sabendo ser tal crença um absurdo. É importante que
entendamos que o absurdo é Deus voltar a trás, e não a crença. A crença é crível, por ser
de um homem de fé. Esse é o paradoxo que torna o indivíduo Abraão é um cavaleiro da
fé, e não um herói trágico.
Tudo que seja desejado para além da consciência eterna, fruto da resignação
infinita, só é possível tendo-se fé. Ela portanto é o que me trará tudo quanto for finito
pelo olhar do absurdo. É por esses motivos pincelados que ser de fé constitui paradoxo.
Pela fé, a coisa alguma renuncio, ao contrário, tudo recebo. A princesa com a espada
sobre a cabeça não me apavorará, tal que tenho fé no absurdo a todo instante, pois sou
um cavaleiro da fé. Esse é nosso herói superior ao herói trágico! Pensar que tem tanta fé
para ser feliz com ela, para nunca desprender-se do fio em ligação com Deus, e nessa
corda bambíssima com uma princesa poder passear, sempre com uma espada sobre sua
cabeça. Se perco a fé, a espada corta-lhe, mas não há espaço para tal em meus instantes.
A fé é esse movimento ao absurdo. Não pode perder-se do mundo finito, ao contrário,
deve ganhá-lo sempre. Se a resignação infinita tirou-me tudo, agora que tenho fé tudo
receberei. Já sofri as provações, já sacrifiquei a mim, Isaac e o ovídeo, devo agora ter
paz e riquezas, sabedoria divina e nações ao meu mandar. Irrompe em Abraão um novo
mundo após tudo ocorrido, e tudo graças a sua fé. Mas que custas não!