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TAPUIAS DO NORDESTE TH. POMPEU SOBRINHO: Verificar a que grupo étnico-linguistico perten- ce cada uma das numerosas tribus tapuias que cam- peavam no territério do nordeste brasileiro & em- presa por demais d4rdua; problema cuja solugado pa- rece estar muito distante. Ainda por muito tempo os resultados de todas as pesquisas empenhadas nes- te sentido seréo mais ou menos grosseiramente in- completos. Os dados da questéo que atualmente chegam as nossas mfos se mostram desanimadoramente defici- entes e de tal forma confusos e suspeitos que exi- gem imediatamente um penoso trabalho de selegao, expurgo e critério muito rigoroso de interpretagdo. Constam ordinariamente de relatérios, cartas e eré- nicas mal apanhadas e viciosamente registradas em vista do esp{rito apaixonadamente politico e religio- so do tempo. Sem nenhum interesse de ordem cien- titica, estes documentos que se vao desenterrando dos velhos arquivos revelam quando muito trechos de verdades que cumpre surpreender com pacién- cia e perspicacia de entre um acervo enorme de cousas inuteis ou de somenos interesse para 0 caso. O material etnografico e etnolégico que se vem colhendo cada dia e enriquece as colegdes folcléri- cas e, especialmente, os museus de histéria e etno- logia, merece particular referéncia. Conhecemos in- teressantes objetos indigenas do nordeste do Brasil no Museu Nacional, no Museu de Ipiranga (S.-Pau- lo), ho valioso museu do Dr. Simées da Silva (Rio-de- -dJaneiro). As colegdes dos Institutos Histéricos e Geo- gralicos da Baia, de Pernambuco e da Paraiba en- cerram escasso material tapuia. No Ceardé, consultam- -se com relativo proveito as colegdes do Museu Ro- cha, ag colegdes do Autor, do Dr. Baltar e do Arqui- 222 REVISTA _DO INSTITUTO DO CEARA vo Publico. Estas colegées constam de objetos de pedra, machados, raspadores, pongées, pildes, més, amuletos, tembetds, contas, pontas de flechas e de Jancas, etc. Mais instrutivos sfio os objetos de ce- ramica, vasos de varios tipos, cachimbos, trinchos de fusos, pesos para rede de pesca, etc. Igualmente interessantes sio pecas de esqueletos e restos de tecidos de palha (esteiras) e raros objetos de osso trabalhado. Ha ainda que considerar os recursos proporcio- nados pela vasta toponimia tapuia que os sertées fixa- ram. A exploragéo de uma tal fonte de informagées, porem, oferece dificuidudes muito sérias e pode dar lugar a erros grosseiros. Em 1584, 0 jesuita Fernféo Cardim escreveu os “Tratados da Terra e Gente do Brasil”, depois de perlustrar trechos do litoral nordestino, onde se lhe deparou oportunidade de observar e praticar com os indios tupis. Mas, quanto aos tapuias, as suas refe- réncias sio escassas e confusas e se apoiam nas in- formagées dos tupis. Todavia, registra o nome de 76 nagdes de tapuias, onde figuram algumas do Nordes- te. Ora, em geral, aqueles selvagens nio estimavam os tapuias, que designavam, néo pelo préprio nome da tribu, mas por uma palavra da sualingua, de sig- nifieagaéo deprimente. Deste modo a contribuigio de cardim para c conhecimento destes indios 6 quase nula. As primeiras nogdes sobre os costumes dos ta- puias leem-se na “Relagiio do Maranhéo”, escrita em 1608 pelo padre Luiz Figueira, que esteve em con- tacto. com estes amerindios na sua célebre excursdo a serra da Ibiapaba, no ano de 1607,a mandado do padre Fernéo Cardim. Martim Soares Moreno faz li- geiras referéncias aos tapuias cearenses na “Rela- eio do Ceara’, escrita em 1618. Tambem breves re- Yeréncias a este povo dos sertées nordestinos vamos encontrar nos “Didlogos das Grandezas do Brasil”, re- digidos nesse mesmo ano, por autor anénaimo. Antes de Figueira, o inteligente colono portu- gués Gabriel Soares, na Bafa, onde residia, escreveu uma verdadeira histéria natural do Brasil de seu tempo; mas, ao tratar dos tapuias, sobretudo nordes- REVISTA _DO INSTITUTO_DO CEARA 223 tinos, 0 faz por informacées dos tupinumbas, de modo assaz deficiente, confuso e fantéstico. O seu interes- santissimo trabalho, intitulado “Tratado Descritivo do Brasil”, 6 de 1587. Qs cronistas franceses, padres Ivo D’Evreux e Claude D’Abeville pouco adiantam no que diz respeito aos tapuias; os seus escritos séo da segunda década do XVII século. O mesmo h& que se dizer quanto aos do padre Bertendof. Fontes de informagdes mais proveitosas temos nos escritores e pintores neerlandeses de Nassau e nos documentos escritos que varios pesquisadores nacionais e estrangeiros vaéo descobrir 10 Arquivo Real de Haia e outros dos Paises-Baixos e trazer a luz da publicidade. Compreendem o perfodo do do- minio holandés no Brasil, 1630 a 1654. Os arquives portugueses nestes Ultimos anos s0- bretudo vem fornecendo um avultado nimero de interessantes documentos relativos A histéria colonial do Brasil, onde, aqui e ali, podemos deparar material util ao assunto em aprego. Finalmente, as datas de sesmarias concedidas na Baia, Pernambuco, Cearé e Paraiba revelam curinsas surpresas. Sebre varios aspectos, elas nos ministram valiosos informes a respeito dos tapuias desta regio. Antes da guerra holandesa, 0 conhecimento dos tapuias dos sertées do Nordeste era muito escasso. Geralmente, 0 que se sabia a seu respeito era atra- vés de suspeitas informagées dos indios tupis, toda- via, depreende-se da narrativa do padre Figueira que os portugueses, j4 nos Ultimos anos do primeiro sé- culo do descobrimento e nos primeiros do XVII sé- culo, tinham um certo comércio com os tapuias do baixo Jaguaribe, com quem se confederavam para escravizar petiguaras. Os holandeses procuraram os tapuias e os atrai- ram com agrados e concessées especiais; fizeram- -nos seus aliados nas lutas contra os portugueses e indios tupis. O exemplo foi em parte seguido pelos contrarios. 224 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Apés a expulsdo dos batavos, a necessidade de prover os engenhos de escravos e o interesse pela catequese dos selvagens deram lugar as primeiras entradas nos sertées, que foram devassados por gente que se internava partindo do litoral pernambucano, e por bandeirantes paulistas, que chegavam pelo rio Sao-Francisco. Isto ocorreu sobretudo na segunda metade do século XVII. A procura de novas pasta- gens, alem do litoral, foi outro incentive para a pe. netracdo do hinterland. Segundo Hervas (1), os KARIRIS que inquieta- vam a capitania da Baia foram pacificados pelo pa- dre Joio de Barros, que, em 1650, os aldeou nas missdes de Canabrava, Saco, Natuba e Juri; as trés primeiras constituiram os primérdios de Pombal (do Itapicurt), Soure e Mirandela, respectivamente. Padres tranceses, em 1656, fundaram aldeamen- tos de tapuias Kariri no Rio Sao-Francisco, de modo que, em 1687, ja existiam ali seis missées destes in- dios, Em 1670 ou pouco depois, 0 padre Teodoro de Lucé instala as primeiras missdes de tapuias na Pa- raiba, a cerca de 30 leguas da capital, nos lugares Boqueiréo e Campina-Grande, sobre a serra da Bor- borema. Nao tardou que duas bandeiras se organi- zassem e por ai penetrassem sertio a dentro, atin- gindo a bacia do alto Piranhas, onde recentemente havia estado o paulista Jorge Velho preando indios. Jorge Velho e Domingos Mafrense, tambem paulista do Sio-Francisco, por aquele tempo, ja tinham pene- trado pelo Piaui, e 14, em grandes latifindios. situa- ram muitas fazendas de gado. Os sertées do Rio-Grande do Norte e do Ceara s6 wais tarde foram devassados; e iste mesmo de- pois de tremendas lutas com os tapuias Tarairius e Kariris, lutas que exigiram a cooperacao dos paulis- tas, ja afeitos a arte de destruir indios ou escravi- z4-los. O baixo Jaguaribe teve as suas primeiras si- tuagées (fazendas de criar) nas duas tltimas déca- das do XVII século. No comego do seguinte, os co- (1) — «Catdlago de las Lenguas». REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA lonos avangaram pelas ribeiras do préprio Jaguari- be e dos seus principais afluentes, Palhano (entdo chamado Bonht), Banabuit e Figueiredo, levando uma vanguarda de homens destemerosos que insta- lavam casas fortes com que eficazmente se defen. diam da natural reagéo provocada nos tapuias es- poliados. Em 1705, sio concedidas as primeiras sesmarias no rio Salgado, dominio dos tapuias icés, Pelo meado deste mesmo século, entretanto, ja quase todos os recantos do Rio-Grande e do Ceara estavam colonizados e mais ou menos habitados por gente brance, oriunda de S.-Paulo e Bafa através do rio §.-Francisco, de Cergipe, Alagoas ou Pernambu- co e Paraiba. Poucos negros e muitos mamelucos iam rapidamente substituindo a populacdo tapuia dos sertdes. A cultura tapuia, de carater continental, distin- guia-se nitidamente da cultura tup{, essencialmente litoranea no nordeste do Brasil, ao tempo das pri- Ineiras tentativas de dominio europeu. Em muitos pon- tos, a civilizagao tapuia se mostrava superior e mais humana do que a tupi; em outros, porem, principal- mente no que se relacionava com a arte da guerra, se revelava sensivelmente inferior. O tapuia, tanto Tarairiu como Kariri, ainda manejava o propulsor de dardos que os tupis litoréneos ja nao usavam. Entretanto, os tupis consideravam os tapuias como gente inferior, espécie de bdrbaros america- nos. Para nés, tapuia € o indio nao tupi, o amerin- cola que n&o se expressa na lingua geral ou qual- quer dos seus dialetos, mas fala uma lingua travada, conforme a pitoresca designagdo dos cronistas co- loniais. Na vasta regido nordestina do Brasil, entre os rios §.-Francisco e Parnaiba, era possivel definir ainda no perfodo protocolonial trés dreas culturais. A titordnea, dos tupis que dominavam a costa, donde, em vastos tratos, se presume tinham expe- Jido os tapuias. Esta area projetava para o interior tentaculos de relativa pouca importancia, como nos nagdes—-Canindé e Jenipapo. Posteriormente, ainda este aldeaumento foi transferido para o pé da serra de Baturité, onde esta hoje edificada a cidade deste nome. Os indics Jenipapoagi foram aldeados pelo padre Anténio Caldas Lobato no lugar S.-Joao do Ja- guaribe, perto da foz do rio Figueiredo. No lugar Araré, perto da barra do rio BonhG, hoje Palhano, foram aldeados em 1697, pelo padre Jodo da Costa, os indios Paiacis. Os Jenipapoagis viviam na ribeira do Jagua- ribe e se nio haviam ainda aldeado em 1699, embo- ra fossem eles paiakus, pois, conforme o testemu- nho de José Barbosa Leal (carta de 20 12-699 a D. Joao de Lancaster, in Rev. do Instituto do Ceara), tanto estes tapuias, como os do rancho de Matias Peca, que o padre Joao da Costa missionava, «tem o nome de Paiact», Portanto, os tapuias que formavam o rancho do Jenipabugi, como os que constituiam o rancho de Matias Peca,eram Paiakus, entéo aldeados, uns no Jaguaribe, no lugar Araré, e outros no Podf (Rio-Grande do Norte), Algum tem- po depois, outros indios, provavelmente desgarrados do rancho do Jenipabuci, pois tinham este nome, eram aldeados no lugar S.-Jod0, 4 margem do rio Jaguaribe. Temos aqui, consequentemente, 3 aldeias de Paiakus. Os tapuias Jandoins eram muilo chegados 20s Paiakus, com quem, de ordindrio, se confederavam para atacar os colonos que os maltratavam. Existe um curioso documento que informa ser a gente do Jenipabugt da nagéo Paiaku. Eis o trecho que dele nos interessa: «a dita nagéo Payacu, tanto de Mathias Seixas (rancho de) como do Cardoso (8) e do Geni- pabussu e da aldeia do Apody e a do Capitdo mér Joan de Barros...» (Ver «Bando que Mandou Lansar o Capitio mér Prazido de Azevedo Falcfo, sobre as (8) — Este Cardoso talvez seja o indio jenipapo Miguel da Silva Uardoso, que, em 1739, fors pelo Capitio-General de Per- nambuco, Henrique Pereira Freire, nomeado capitéo da aldeia do Banabuiu. 204 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA ra para o seu seringal, para 14 morrer, como o ma. rido. José Gabriel de Melo, pai do Comendador, nas- ceu a 15 de Janeiro de 1797, casou a 15 de Janeiro de 1816 © veio a tulecer em 1877, no Purtis. Con- tava, pois, 80 anos de idade. Rosa Maria da Conceig&io, a mai, nasceu em 1799 ¢ faleceu,no Mundat, @ 31 de Outubro de 1887, com 87 anos, sendo sepultada em Sao-Francisco da Uruburetama. Estes tiveram 15 filhos, dos quais sobreviveram 12, que deixaram grande prole. Os pais de Mariana Paz foram Antonio Paz de Avila, nascido a 28 de Fevereiro de 1784 ¢ falecido em Agosto de 1858, e Jacinta Maria de Jestis, nas- cida a 2 de Outubro de 1791 e talecida a 11 de Ja- neiro de 1857, casados a 10 de Janetro de 1808; cle, filho de Lourengo Paz de Avila e de Josefa Maria da Paixdo, casados a 26 de Outubro de 1772; ela, fi- Jha de Jodo Vidal de Carvaiho, falecido a 21 de Se- tembro de 1825, e de sua mulher Barbara Maria da Gonceicho, falecida em 1883, casados a 7 de Janeiro fe 1790. José Gabriel de Melo era filho de Aleixo Celso de Moura, nascido a 4 de Dezembro de 1772, e Fran- cisca Antonia da Palma, nascida a 28 de Maio de 1773, casados em 1796; aquele, filho de Francisco de Mou- ra Sousa e de Maria da Concei¢do e Melo; esta, filha de Manuel Francisco de Melo e Ana Maria Genove- va, casados a 26 de Janeiro de 1768, na capela da Almofala. Rosa Maria de Jesus era filha daquele Joao Vi- dal de Carvalho e de Barbara Maria.. da Conceigio; aquele, filho de Germano Fernandes de Sousa, fale- cido a 17 de Novembro de 1781, e Francisca Ferrei- ra da Silva; esta, fiiha de Felix Pereira Coelho, nas- cido 4 29de Fevereiro de 1728,e de Maria da Assun- cao de Moraiz, Ainda tenho elementos para remontar-me as ori- gens de toda essa gente, mas ja me vou tornando enfadenho com a enumeragdo de tantos nomes, de que j4 nem existe memoria. Para dar apenas uma REVISTA DO INSTITUTO DO GEARA 205 idéia da proliteracio de tantas familias, basta dizer que os pais de Joao Gabriel tiveram 15 filhos, os de Mariana Paz, sua mulher, 11; 0s avés, Aleixo Celso de Moura, 8, Jodo Vidal de Carvalho, 12. e Lourengo Paz de Avila, 8, dos dois matriménios. Todos com muita geragio, especialmente na zona de Urubure- tama. Nem se pense que essas origens sfio tao humil- des, que néio meregam um estudo; nado tem, certa- mente, como outras do Ceara, qui¢d do Brasil, presun- gées de fidalguia ou nobreza, mas nao desdoiram aos que hoje se orgulham de ser parentes do comen- dador Jodo Gabriel de Carvalho e Melo. (“Almanaque do Ceara", ano corrente.)

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