Você está na página 1de 111

REVISTA SOBRE ONTENS

WWW.REVISTASOBREONTENS.SITE

1
APRESENTAÇÃO

Car@s Leitor@s;
Nessa edição especial, apresentamos alguns textos selecionados sobre a
questão dos Estudos Orientais no Brasil. Os artigos aqui presentes nesta
coletânea foram apresentados no 2º Simpósio Eletrônico Internacional de
História Oriental [www.simporiente2018.blogspot.com], e reproduzidos
igualmente no livro ‘Extremos Orientes’ *2018, publicado pelo site de
nossa revista]

Os autor@s convidados para essa seleção trazem alguns estudos


interessantes sobre como estudar e ensinar temáticas relativas às
histórias orientais pelos mais diversos meios. Essa dimensão plural e
interdisciplinar que nos incentivou a construir um volume especial da
revista sobre o tema.

Agradecemos aos autor@s e leitor@s!


Saudações,

André Bueno
C. Dir. Sobre Ontens
Dezembro, 2018.

2
SUMÁRIO

IMPRESSÕES DE UM VIAJANTE OITOCENTISTA SOBRE O NILO E O AMAZONAS


Anna Carolina de Abreu Coelho, p.4

A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA: A HISTÓRIA E A CULTURA DA RELIGIÃO


Vitor Moises Nascimento Therezo, p.11

A CULTURA ÁRABE MUÇULMANA E O CINEMA: O RETRATO DO ÁRABE MUÇULMANO


GERADO PELO CINEMA HOLLYWOODIANO
Débora Dorneles Uchaski, p.21

A IMIGRAÇÃO JAPONESA VISTA PELO CINEMA BRASILEIRO: APONTAMENTOS SOBRE


“GAIJIN, CAMINHOS DA LIBERDADE”, DE TIZUKA YAMASAKI (1980)
Diogo Matheus de Souza, p.34

REMINISCÊNCIAS DE MILTON HATOUM: ORIENTE E AMAZÔNIA COMO VETORES DA


ARTE LITERÁRIA
Arcângelo da Silva Ferreira e Heraldo Márcio Galvão Júnior, p.43

NARRATIVAS ORAIS DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS 1980-2017


Raphaela Martins Pereira, p.53

LENDO O OCIDENTE A PARTIR DO ORIENTE: O NARRADOR MACHADIANO EM QUESTÃO


Nelson de Jesus Teixeira Júnior, p.62

"FAÇA-SE O QUE SE QUISER – OS CHINESES POVOARÃO O BRASIL”: A PRIMEIRA


MISSÃO BRASILEIRA NA CHINA
Kamila Rosa Czepula, p.69

A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DECOLONIAIS PARA O ORIENTALISMO DE EDWARD


SAID
Pepita Afiune, p.78

DE TRANSNACIONALISMO TIBETANO À UM LOCAL DE PEREGRINAÇÃO: O CASO DO


TEMPLO BUDISTA KHADRO LING DE TRÊS COROAS-RS
Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert, p.89

OS PROCESSOS MIGRATÓRIOS JAPONESES ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX


Ronaldo Sobreira de Lima Júnior, p.100

3
IMPRESSÕES DE UM VIAJANTE OITOCENTISTA SOBRE O NILO E O
AMAZONAS
Anna Carolina de Abreu Coelho

Resumo: José Coelho da Gama e Abreu, o Barão de Marajó, político e intelectual


amazônico, em suas inúmeras viagens refletiu sobre o espaço urbano durante o século
XIX. Comparando as cidades de diversas partes do mundo, ele percebia “diferentes
grandezas” relacionadas à natureza e à civilização. Neste artigo, pretendemos analisar
o olhar comparativo do viajante amazônico a respeito dos rios Amazonas e Nilo.
Palavras-chaves: Viagens; Amazonas; Nilo

Abstract: José Coelho da Gama e Abreu, the Baron of Marajó, an Amazonian politician
and intellectual in his many voyages thought about the urban space during the
nineteenth century, comparing the cities of different parts of the world, he perceived
"different magnitudes" related to nature and civilization. In this article, we intend to
analyze the comparative view of the Amazonian traveler regarding the Amazon and
Nile rivers.
Keywords: Travel; Amazon; Nile

 “*...+ confesso sinceramente que em mim produzia ele fraca


admiração, pois que, como filho da zona equatorial, estou
acostumado às pompas mais variadas da vegetação amazônica, às
arvores gigantescas cobertas de folhas de todas as formas e cores,
brilhantes ou sombrias, uniformes ou variadas, vivas como a
passiflora rubra, ou pálidas como angélicas” (ABREU, 1874, p. 204).

O trecho acima se refere a um comentário feito pelo viajante paraense


Barão de Marajó a respeito do jardim das Tulherias, na França, o qual não
lhe impressionara por considerá-lo com uma natureza pouco expressiva
por estar acostumado “às pompas mais variadas da vegetação
amazônica”. Essas impressões vamos encontrar nas publicações de
viagens de José Coelho da Gama e Abreu, o Barão de Marajó, em seu
primeiro livro intitulado 'Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bosphoro e Danúbio:
apontamentos de viagem' que foi publicado entre 1874 e 1876, na cidade
de Lisboa, pela editora Universal. O livro baseava-se em diários de viagens
escritos em diversas épocas, especialmente na década de 1860, feitas em
companhia de sua esposa, mas, às vezes, as anotações também eram
feitas num ambiente solitário.

Essa obra demonstra uma descrição atenta e comparativa de cidades

4
como Belém, Lisboa, Madri, Cairo, Alexandria, Constantinopla, Jerusalém,
Paris, Viena, Pesth, Buda, entre outras. Seguindo os padrões de livros de
viagem da época, possuía características próprias e duais com referências
do Romantismo (como o gosto à evasão no tempo/espaço, a valorização
do exotismo oriental ou da natureza amazônica intocada) e com uma
perspectiva prática de observação das cidades de diversas partes do
mundo. Esse olhar contribuiu para a atuação política de José Coelho da
Gama e Abreu em diversos cargos ocupados entre o período de 1855 a
1906 (SARGES & COELHO, 2014).

Sempre transitando entre o Brasil e a Europa, o Barão de Marajó se


formou em Filosofia na Universidade de Coimbra e teve a sua biografia
publicada na imprensa portuguesa, o que sugere uma profunda ligação
com os círculos intelectuais lisboetas, sobretudo no âmbito das
sociedades de letras e ciências, como a Academia Real das Ciências de
Lisboa, instituição a qual era correspondente. Seus livros foram todos
publicados em editoras portuguesas: ‘Do Amazonas, ao Sena, Nilo,
Bosphóro e Danúbio: Apontamentos de viagens’ (1874/76); ‘A Amazonia:
as províncias do Pará e Amazonas e o governo central do Brazil’ (1883);
‘Um Protesto: Respostas às pretensões da França a uma parte do
Amazonas manifestadas por Mr. Deloncle’ (1884); e ‘As Regiões
Amazonicas, estudos chorographicos dos estados do Gram Pará e
Amazonas’ (1896). (SARGES & COELHO, 2014).

Sendo um observador das cidades e um divulgador da região Amazônica


na Europa, o Barão de Marajó, desde a sua primeira obra, procurou
exercitar um olhar comparativo ou conectado com diferentes
espacialidades, como o norte da África e a Europa. Relatos de viagem,
como os dele, tornaram-se mais presentes durante o século XIX, pois a
melhoria das condições de transporte (nos caminhos de ferro e na
navegação a vapor) possibilitava a circulação de viajantes.

Ao mesmo tempo é possível inferir que a circulação de pessoas entre


diversos espaços distantes já desponta o caráter da globalização,
conforme registra Burke em relação ao século XIX, classificando este
período como um ponto crucial na história da globalização pelo intenso
aumento do mercado mundial, das comunicações globais e da circulação
de pessoas nas várias partes do globo devido às mudanças na forma de
percorrer o espaço (BURKE, 2012, p. 275-277).

5
Apesar de o termo globalização ter começado a ser utilizado em meados
da década de 1980, o processo em si é antigo, tendo se acelerado com as
“grandes navegações”. Conforme Georg Iggers, a globalização não foi
homogênea, porém trouxe mudanças nos comportamentos de consumo,
hábitos e concepções de vidas regionais ou locais (IGGERS, 2010, p.120-
121).

A tendência que se observa na escrita de uma história com maior


interação entre o local e o global, possivelmente está associada à
crescente intensidade de comunicação intercontinental em nossa época. A
questão das mundializações ou globalizações levou a proposições e
métodos de perspectiva “transnacional”, “global” ou “mundial”, tais como
Connected History, Shared History e histoires croisées, que se diferenciam
quanto aos seus pressupostos, porém compartilham de uma abordagem
sobre contatos e circulações (REVEL, 2015, p.21).

Para Serge Gruzinski pensar a relação do local com o global é importante,


porque oferece possibilidades de se elaborar discursos que não se
atenham nem ao etnocentrismo nem ao “nombrilismo” nacional, e essa
perspectiva pode contribuir para a historiografia da Amazônia ao
contrapor a imagem do exótico e do periférico a qual está atualmente
ligada, devolvendo-lhe a condição planetária percebida nas obras de
cronistas do século XVI (GRUZINSKI, 2007, p.11).

Nesse sentido, um relato de viagem com um olhar não europeu e


comparativo, como o realizado pelo Barão de Marajó ao pensar as cidades
durante o intenso processo de mundialização na segunda metade do
século XIX, pode ajudar a entender a Amazônia sob uma perspectiva mais
abrangente. Nosso enfoque neste artigo será primeiramente abordar a
perspectiva do Barão de Marajó a respeito do que seriam as “grandezas
naturais” de locais privilegiados por grandes rios como o Egito e o Brasil, e
as possibilidades do surgimento de grandes civilizações nessas
espacialidades.

Amazonas e Nilo – Passado e Presente


A natureza amazônica perpassa toda a obra do Barão de Marajó. O rio
Amazonas é um de seus temas favoritos, sobre o qual discorre fazendo a
descrição das grandezas fluviais relacionadas à extensão e ao volume de
águas, colocando a natureza do Amazonas em uma escala de

6
“superioridade natural” diante de outros rios. Assim registrava: “todos os
outros como o Prata, o Nilo, o Ganges lhe são inferiores”.

O Barão de Marajó em sua descrição da Amazônia usa uma linguagem


diferenciada em relação àquela empregada para se referir aos outros
locais, em vez de tecer críticas, ele descreve a paisagem, ressaltando a
beleza do raiar do sol nas águas e florestas da Amazônia:

 “Os habitantes, para se utilizarem da facilidade que lhes dão os rios


para os transportes, situam-se ordinariamente em suas margens, e
realmente nenhum sitio mais formoso poderiam escolher: que
quadro mais belo do que o do raiar do sol, ou o do seu ocaso,
quando, além da escura sombra que o alto arvoredo dá às águas das
margens, se vê a luz coada por entre o nevoeiro que de manhã se
eleva sobre os rios, esvaecendo-se pouco a pouco como um véu de
gaze que se rasga, dando lugar a torrentes de luz que fazem refletir
inúmeros brilhantes sobre as largas folhas das plantas cobertas de
orvalho? (ABREU, 1874, p.8)

As grandezas naturais dos rios interessavam principalmente pela


perspectiva utilitária, por isso a navegabilidade do rio Amazonas
possibilitaria que se tornasse um espaço de conexão global; ou pelo
menos, entre os países da América, este rio seria um elemento importante
para uma futura “fraternidade americana”. (ABREU, 1896 p.69). O rio
Amazonas, com os seus inúmeros afluentes, exemplifica uma natureza
que propiciaria o estreitamento de relações sociais, culturais e da
imigração. O entrave ocorria da não utilização dessa natureza grandiosa
pela inteligência humana. Um mundo “morto e inerte” da natureza
deveria ser conectado por pessoas de diversos locais (especialmente a
América), a partir dos rios da bacia amazônica.

Para além das possibilidades da navegação internacional pelo rio


Amazonas, a fertilidade das terras seria outro fator que poderia favorecer
o estabelecimento de uma grande civilização amazônica, tal como ocorreu
às margens do rio Nilo. Dessa forma, o lodo deste rio que propiciava a
uberdade das terras egípcias teria um equivalente no Amazonas, além de
favorecer o clima: “dá ainda ao Pará, refrescando as terras nas horas de
elevação das marés [...], uma uberdade que nada tem que invejar às
faladas terras que o Nilo banha” (ABREU, 1874, p.8).

7
Ao voltar seu olhar para o rio Nilo, não lhe faltaram observações sobre a
natureza e o tempo. O Barão de Marajó antes de sua viagem ao Egito via
esse local da África somente como um lugar cuja existência estava no
tempo passado (faraós e pirâmides). No entanto, o encontrar das ferrovias
com a própria velocidade lhe impunha outro olhar: “E na verdade, quem
tinha o Oriente em certa conta, custa-lhe a admitir o caminho de ferro na
terra de Ramsés e Tutmés; a máxima velocidade de parceria com o vagar,
o silêncio e a gravidade oriental” (ABREU, 1874, p.117).

O estereótipo do exotismo egípcio se desfez diante das novas formas de


percorrer os espaços representados na velocidade do caminho de ferro e
pelo conhecimento empírico das viagens. Os trajes e a natureza diferiam
muito do que era imaginado anteriormente pelo Barão, apenas o traje das
mulheres remete à diferença, outras formas do vestir espelham-se no
europeu com adaptações às formas locais, como a sobrecasaca usada com
um fez encarnado na cabeça:

 “Vão lá e encontram, em lugar de turco com as suas vestes, um


sujeito de sobrecasaca e calça preta apenas com o fez encarnado na
cabeça, que o faz parecer uma garrafa preta lacrada de encarnado,
ou uma mulher com a cara oculta por um pedaço de pano com dois
buracos para os olhos; em lugar de palmeiras elegantes, vê apenas
arbustos acanhados; e em lugar de camelos, um caminho de ferro.
Isto é para desesperar *...+”. (ABREU, 1874, p.117).

As representações idealizadas se desfaziam diante dos olhos do viajante, a


modernidade chegara ao Egito, e além do caminho de ferro, o projeto do
canal de Suez tornava-se um ícone dela, propiciando uma intensa
circulação de pessoas nas cidades de Alexandria e do Cairo. Os delegados
enviados para o evento, dentre eles o Barão de Marajó, previam o sucesso
comercial desse projeto:

 “a posição geográfica do canal com relação ao resto do globo faz


antever um tão brilhante futuro para a empresa que o levou a cabo,
*...+”. Os rios representavam uma grandeza natural, que possibilitou
um esplendoroso passado do Egito e cujos projetos de
navegabilidade do presente anteviam um “futuro brilhante”
(ABREU, 1874, p.135).

8
Assim como a grandeza natural favoreceu o Egito também faria da
Amazônia a grande civilização na América. As ações humanas é que se
tornavam o obstáculo para a civilização, no caso da Amazônia, este era
representado pelas formas de organização centralista do império
brasileiro, que não reconhecia as especificidades de cada estado, sendo
assim necessário o federalismo.

Considerações finais
O Barão de Marajó percebia o espaço da Amazônia como uma grandeza
natural, que tinha nos rios uma possibilidade incrível de trânsito, comércio
e comunicação entre pessoas de diferentes lugares, portanto, a civilização
dependeria do uso humano das possibilidades naturais. As cidades são
para o Barão outro espaço privilegiado de análise, e o seu olhar sobre
esses sítios próximos aos rios estabelece as diferenças entre a civilização e
a natureza, na segunda metade do século XIX.

O Barão de Marajó foi um viajante amazônico com intensa atuação


política e intelectual, seus escritos refletem a Amazônia em um contexto
abrangente e comparativo, considerando os aspectos da navegabilidade
dos rios e da remodelação das cidades de seu tempo. Ele olhava as
cidades como diferentes espaços, envolvidos em uma circulação de
repertórios de arquitetura e paisagem.

Percebia as conexões entre as cidades de diferentes locais, como


Alexandria e Belém, pensadas a partir das grandezas de natureza e
civilização. Os rios surgem no texto como um indicativo de grandeza
natural, podendo assim ser considerados o Nilo e o Amazonas. Apesar de
considerar os rios como indutores de grandes civilizações, tal
característica não era o suficiente, pois estas dependiam,
primordialmente, de vontade política e de projetos urbanos.

As obras escritas pelo Barão de Marajó, no século XIX, serviram para uma
reflexão sobre as cidades e as suas diferentes grandezas, levando a um
exercício comparativo com outras cidades, mesmo com as mais distantes
do caudaloso rio Amazonas. Embora tal século seja um período em que os
estudos em geral dão ênfase às questões da nacionalidade, a cidade pode
ser considerada o lócus do exercício de conexão entre o local e o global,
pois, como lembra Fraçois Sirinelli, esta aparece situada no cruzamento
das dimensões entre o nacionalismo e a cultura-mundo (SIRINELLI, 2014,

9
p.107-110).

Referências
Anna Carolina de Abreu Coelho é Doutora em História pela UFPA e
Professora de História da Amazônia da Unifesspa.
Email:annacarolcoelho@outlook.com

ABREU, José Coelho da Gama. As Regiões Amazonicas, estudos


chorographicos dos estados do Gram Pará e Amazonas. Lisboa: Imprensa
de L. da Silva, 1896.
ABREU, José Coelho da Gama e. Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bósphoro e
Danúbio: Apontamentos de Viagem. Tomo I. Lisboa: Typographia
Universal, 1874.
ABREU, José Coelho da Gama e. Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bósphoro e
Danúbio: Apontamentos de Viagem. Tomo II. Lisboa: Typographia
Universal, 1874.
ABREU. José Coelho da Gamae. Do Amazonas ao Sena, Nilo, Bósphoro e
Danúbio: Apontamentos de Viagem. Tomo III. Lisboa: Typographia
Universal, 1876.
BURKE, Peter. História e Teoria Social. 2ª edição. São Paulo: Unesp, 2012.
GRUZINSKI, Serge. Local, Global e Colonial nos mundos da Monarquia
Católica. Aportes sobre o caso amazônico. Revista de Estudos Amazônicos.
v. II, n.1. jul/dez. 2007.
IGGERS, Georg. Desafios do século XXI à historiografia. História da
historiografia, março, número 04, p. 105-124. 2010.
REVEL, Jaques. A história redescoberta? In: BOUCHERON, Patrick;
SARGES, Maria de Nazaré; COELHO, Anna Carolina de Abreu. Do Rio
Amazonas à Península Ibérica – viajando com o Barão de Marajó. Vária
História. vol 30, n 53, mai/ago. 2014.p. 487-505.
SIRINELLI, Jean-François. Abrir a História – Novos olhares sobre o século
XX francês. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

10
A IGREJA TENRIKYO AMAZÔNIA: A HISTÓRIA E A CULTURA DA RELIGIÃO
Vitor Moises Nascimento Therezo

Resumo: Este artigo destaca algumas características distintivas, da forma como a


religião é vivida na Igreja Tenrikyo Amazônia, localizada em Ananindeua, zona
metropolitana de Belém (Pará). As características percebidas na Tenrikyo na Amazônia
contrastam com os padrões estabelecidos no Ocidente, principalmente em
perspectivas de tempo e espaço, que acabam por unificar os conceitos de tradição e
cultura. Mesmo com uma estrutura e doutrina bem definida e uma carga de
ocidentalização muito forte, a religião não é uma categoria autônoma da cultura e da
história. Isso permite o estabelecimento e a percepção mais clara de fins sociais neste
contexto religioso nipo-amazônico, o que acaba por poder ser um fator útil para
qualquer pesquisa que se debruce sobre a religião e a cultura. Assim, pode-se haver
proveito dessas análises para construção de outras perspectivas de interpretação do
cenário religioso ocidental, que hoje é tão plural e heterogêneo.
Palavras Chave: Igreja Tenrikyo; Amazônia; Religiosidade no Brasil

Abstract: This article highlights some distinctive features of the way the religion is lived
in the Tenrikyo Amazonian Church, located in Ananindeua, metropolitan area of Belém
(Pará). The characteristics perceived in the Tenrikyo in the Amazon contrast with the
standards established in the West, mainly in perspectives of time and space, that end
up unifying the concepts of tradition and culture. Even with a well-defined structure
and doctrine and a very strong Westernization burden, religion is not an autonomous
category of culture and history. This allows the establishment and clearer perception
of social ends in this Japanese-Amazonian religious context, which can be a useful
factor for any research that deals with religion and culture. Thus, one can profit from
these analyzes to construct other perspectives of interpretation of the western
religious scene, which today is so plural and heterogeneous.
Keywords: Tenrikyo Church; Amazonia; Brazilian Religiosity

Este artigo traz aspectos gerais da história da Religião Tenrikyo e da Igreja


Tenrikyo Amazônia, uma das religiões que formam o cenário plural
brasileiro. O intuito é fornecer um breve histórico da religião de origem
nipônica presente de maneira considerável no Brasil, país com a maior
colônia japonesa do mundo. Fornecendo sugestões e percepções para
entender as complexas circunstâncias em que uma nova religião japonesa
está localizada na cultura japonesa.

Introdução ao Objeto
A pesquisa sobre a cultura japonesa na Amazônia me levou a um objeto
abstrato desta comunidade, tendo como ponto de partida os padrões
ocidentais. Tal objeto é a religião. Como historiador que tem
preocupações antropológicas, acho muito inviável que seja possível situar

11
a cultura, e neste caso a japonesa, em relação a todas as outras.
Especialmente a quem não nasceu ou viveu nela, sempre estando seus
aspectos mais profundos inacessíveis, pois a cultura de maneira geral é
imensurável. Existe saída para esta questão? Talvez com a mesma
preocupação pode-se dizer que sim, já que boa parte do trabalho do
antropólogo está centrado em mapear culturas das mais diversas, e
muitas fora dos padrões do observador, que deve interpretar com uma
metodologia que permita a aproximação dela.

Para começar, serei claro em meu ponto de partida para pensar a religião
para os nikkeis. É um aspecto cultural, que lhe dando profundidade
histórica irá mostrar continuidades e rupturas ao longo do tempo. Mas
fica a pergunta, não devemos pensar a sua especificidade? Antes de
qualquer resposta será muito importante o estudo cada vez mais
abrangente desta especificidade, entendendo origens, doutrinas, práticas
rituais e o que considero mais importante a relação homem/religião em
meio a determinados contextos.

Acredito que a construção deste saber, e do estudo do objeto religião,


possa ter arquétipos externos a de sua formação conceitual ocidental. Não
se trata de uma importação de outros padrões postos em supremacia, e
sim como uma percepção que pode contribuir para uma analise mais
próxima da especificidade, realidade e da percepção sobre a religião.

Estes arquétipos externos seriam os costumes japoneses em lidar com a


prática religiosa, que transcendem o campo da religião pensada e
conceituada no ocidente cristão. Partido desta questão é fundamental que
se tome conhecimento destas outras especificidades, uma delas é a Igreja
Tenrikyo. Ressaltando que o objetivo aqui não é pensar a originalidade,
origens, passados ou culturas enxergadas como estáticas, o que seria um
erro. Aqui simplesmente queremos descrever com o objetivo de informar
para se começar um processo de dialogo sem notórios estranhamentos e
desconhecimentos.

Na história religiosa do Japão, emergiram novas religiões durante períodos


de desintegração social, urbanização e guerra global (como o período
Tokugawa, as décadas de 1920 e 1930 e Segunda Guerra Mundial). Houve
um grande número de literatura americana, europeia e japonesa sobre
novos movimentos religiosos japoneses, e o assunto pode cair em duas

12
questões: Seu desenvolvimento doméstico e propagação mundial. A
primeiro envolve uma série de estruturas conceituais pertinentes ao
nascimento e ao desenvolvimento destes novos movimentos religiosos no
Japão, e a segunda diz respeito a sua relação com o mundo moderno e
suas transformações em outros espaços, distintos ao seu local de origem
(HUANG, 2017). Uma destas novas religiões japonesas é a Tenrikyo.

Histórico da Religião
No dia 18 de abril de 1798, em Sanmaiden, nasce Miki, condado de
Yamabe, na província de Yamato (atual prefeitura de Nara). Em 1810, ela
se casou com Zenbei Nakayama de uma aldeia próxima aos 13 anos e foi
encarregada de todo o trabalho doméstico da família Nakayama em 1813.
Ela deu à luz seu primeiro filho, Shuji, em 1821 e depois a cinco filhas.
(ELLWOOD, 1982).

Em 1837, Shuji estava doente com dor nas pernas, e a família Nakayama
tinha Nakano Ichibei, um shugenja, praticante de um ritual associado a
uma seita de montanha, que realizava rituais de oração para ele. No dia 23
de outubro, um encanamento (yosekaji) foi realizado para Shuji com Miki
atuando como meio espiritual, durante o qual Deus desceu no corpo de
Miki e afirmou usar Miki como o "Santuário de Deus". Após três dias de
diálogo tenso entre a entidade e os membros da família, Miki Nakayama
foi reconhecida como o santuário de Deus no dia 26 de outubro de 1838
após o consentimento de seu marido, marcando assim a fundação do
ensino (ELLWOOD, 1982).

Durante os próximos três anos, após o processo de incorporação, Miki


isolou-se em um armazém e depois começou a entregar seus pertences e
os bens da família até o final do processo de desmantelar a construção da
casa. As ações incomuns de Miki causaram desconfiança de seus parentes
e aldeões e levaram a família à pobreza. Ela ousou quebrar alguns
costumes estabelecidos e desencadeou conflitos. Como uma maneira de
evitar os confrontos, os seguidores de Miki procuraram obter autorização
oficial do Yoshida de Shinto (Yoshida jingi kanryo) em Kyoto para que
pudessem realizar encontros em sua residência privada. Esta autorização
oficial foi concedida em 1867, mas foi posteriormente anulada em 1870
(ELLWOOD, 1982).

13
Miki designou a construção do tsutome basho, lugar de realização do
serviço religioso, em 1864, e com a ajuda dos primeiros seguidores,
especialmente Iburi Izo, que era carpinteiro de profissão deu inicio as
obras (ELLWOOD, 1982). Em 1866, Miki começou a ensinar a forma de
serviço (tsutome) que deveria ser usado em seu movimento. O serviço
envolve músicas e gestos com a mão com dança que são realizados em
sintonia com as melodias de instrumentos musicais. Este ritual viria a ser
realizado em Jiba, um espaço que Miki identificou em 1875 nas instalações
da residência de Nakayama para marcar o lugar da concepção humana
original (ELLWOOD, 1982).

Além de fazer arranjos para o ritual, Miki começou a escrever o que mais
tarde se chamaria Ofudesaki. Escrito de 1869 a 1882, o texto contém um
total de 1.711 versos em dezessete partes escritas no estilo waka de
poesia (ELLWOOD, 1982). Enquanto isso, Miki começou a se mostrar como
o santuário de Deus vestindo um pano vermelho em 1874, e no mesmo
ano ela começou a conferir de várias formas a verdade do Sazuke
(concessão divina), orações de cura para aqueles que sofrem de doença
(ELLWOOD, 1982).

Após a Restauração Meiji (1868), Miki e seu movimento entraram em


vigilância e perseguição das autoridades políticas como um grupo religioso
não autorizado, e para completar Miki sempre se opôs a qualquer
mudança que fosse comprometer seu ensino. Nessas circunstâncias,
Shinnosuke Nakayama, o neto de Miki que se tornou o chefe da família
Nakayama, tentou estabelecer uma igreja independente (kyokai setsuritsu
undo) em 1882. Obteve permissão para estabelecer uma igreja sob a
supervisão direta do xintoísmo em 1885, mas a autorização oficial do
governo ainda não havia sido alcançada. Em 1887, após a realização de um
serviço, Miki faleceu aos noventa anos. Na Tenrikyo, acredita-se que Miki
se retirou da vida física e ainda está viva supervisionando o movimento e
trabalhando para a salvação dos seres humanos (ELLWOOD, 1982).

Após a morte de Miki, Iburi Izo tornou-se o Honseki (pessoa que concede
o Sazuke em nome de Miki), enquanto Shinnosuke desempenhou o papel
de Shinbashira (pilar central, ou seja, o líder espiritual e administrativo do
movimento). Em 1888, o movimento religioso obteve autorização oficial
como Shinto Tenri Kyokai sob a supervisão direta do Xintoísmo em 1888.

14
Também em 1888, a Tenri Kyokai publicou o Mikagura-uta (músicas do
serviço), que é a compilação das músicas ensinadas por Miki.

Como uma maneira de responder ao público e as críticas, a Tenri Kyokai


começou a fazer campanha pela independência sectária em 1899. Para
atender aos critérios do governo para uma organização religiosa legítima,
o grupo desenvolveu uma organização religiosa institucionalizada e uma
doutrina sistematizada conhecida como a “versão Meiji” da Tenrikyo
kyoten (a doutrina da Tenrikyo), que obedeceu ao regulamento do
governo que exigia que as doutrinas religiosas estivessem em consonância
com o Shinto do Estado. Em 1908, o grupo recebeu permissão para se
tornar uma organização religiosa independente como uma das religiões
reconhecidas nas treze seitas Shinto (ELLWOOD, 1982). Depois de ganhar
a independência sectária, o grupo religioso, agora com o nome de
Tenrikyo, desfrutou de um tempo relativamente pacífico com relação à
pressão política e social sob a liderança de Shinnosuke Nakayama. Com a
oficialidade, a Tenrikyo revitalizou seus esforços de propagação nos anos
subsequentes, particularmente organizando palestras públicas em lugares
por todo o país. Como resultado dos esforços de propagação, a Tenrikyo
experimentou um rápido crescimento nos anos que antecederam 1920,
especialmente em regiões urbanas com alto crescimento populacional
devido ao fluxo de pessoas de áreas rurais. Shozen Nakayama tornou-se o
Shinbashira da Tenrikyo em 1915 após a morte de Shinnosuke no ano
anterior (ELLWOOD, 1982).

Nos anos seguintes, a Tenrikyo se desenvolveu mais e estabeleceu várias


sub-organizações. Em 1925, a Escola Tenri de Línguas Estrangeiras (Tenri
Gaikokugo Gakko) foi estabelecida juntamente com o que mais tarde se
tornaria a Biblioteca Central de Tenri (Tenri toshokan). A escola de línguas
tinha como objetivo apoiar seguidores no exterior para o trabalho
missionário, que já havia começado no final de 1890 nos países e regiões
vizinhas do Japão, como Coréia e Taiwan, bem como em regiões com
imigrantes japoneses, incluindo Hawai e Estados Unidos. A Tenrikyo
também estabeleceu o Departamento de Doutrina e Materiais Históricos
(Kyogi oyobi shiryo shuseibu), bem como instalações educacionais.

O Osashizu (uma compilação de mensagens divinas entregues através de


Iburi Izō) e o Ofudesaki (o livro sagrado da religião) começaram a ser
publicados em 1927 e 1928, respectivamente. Em 1933 e 1934, a

15
construção do Santuário da Fundação (Kyosoden) e o Salão do Adágio Sul
do Santuário Principal (Shinden) foram concluídos, respectivamente. Esses
desenvolvimentos doutrinários e rituais, no entanto, passaram a ser
prejudicados pela iniciativa conhecida como “adequação” (kakushin) em
1939. Para cumprir a demanda do estado, a Tenrikyo fez várias mudanças,
incluindo a remoção de certos versos do Mikagura-Uta, além de retirar o
Ofudesaki e o Osashizu de circulação (ELLWOOD, 1982).

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 15 de agosto de 1945, Shozen


Nakayama anunciou a restauração dos ensinamentos de Tenrikyo
conforme ensinado pela fundadora. Ele restaurou o serviço Kagura no
mesmo ano e, nos anos seguintes, publicou as três escrituras, o Ofudesaki
(1948), o Mikagura-uta (1946) e o Osashizu (1949), todas proibidas pelo
governo durante a guerra. Em 1949, ele publicou a Tenrikyo kyoten com
base nas três escrituras para substituir a versão Meiji da doutrina. Como
biografia da fundadora, ele publicou a Kohon Tenrikyo kyosoden (edição
manuscrita da Vida de Oyasama, fundadora da Tenrikyo) em 1956. Em
1953, Shozen anunciou a construção do complexo de Oyasato-yakata
(Oyasato yakata) que rodearia o santuário em Jiba (ELLWOOD, 1982).

Com a morte do segundo Shinbashira em 1967, Zenye Nakayama, filho de


Shozen, tornou-se o terceiro Shinbashira. Sob sua liderança, a Tenrikyo
começou a por ênfase na educação religiosa dos membros da igreja. Ao
seguir os passos de seu antecessor que abriu um amplo caminho para o
desenvolvimento da tradição em vários campos, o terceiro Shinbashira
concentrou-se principalmente no aprimoramento da qualidade de cada
comunidade da igreja através de seminários sobre doutrina, bem como o
desempenho do serviço. Enquanto isso, a Tenrikyo deixou a união ao
Shinto definitivamente em 1970 e depois aboliu alguns dos materiais
relacionados ao Shinto, como o himorogi (ou mais precisamente o
masakaki, um par de ramos de árvores sagradas, as roupas de seda
coloridas, bem como uma espada ritual) e Shimenawa (uma corda que
marca o espaço sagrado) em 1976 e 1986, respectivamente. Além disso, a
construção dos salões de adoração do oriente e oeste do santuário
principal foi concluída em 1984.

Em 1998, Zenye Nakayama passou a liderança o filho, Zenji Nakayama,


que agora serve como o quarto Shinbashira. Durante esta troca de
liderança, a Tenrikyo realizou dois eventos de diálogo entre a Tenrikyo e o

16
Cristianismo entre a Universidade Tenri e a Pontifícia Universidade
Gregoriana, em Roma em 1998 pela primeira vez, e a segunda vez em
Tenri, em 2002. Os dois eventos envolveram um simpósio que reuniu
acadêmicos de ambas as universidades e alguns estudiosos externos para
trocar pontos de vista teológicos e doutrinários sobre temas comuns,
incluindo revelação, salvação, família e educação (FUSS, 2002). Em 2013,
Daisuke Nakayama, filho adotado de Zenji, tornou-se o sucessor designado
da posição da Shinbashira. Em 2014, Zenye Nakayama, o terceiro
Shinbashira, faleceu aos 80 anos.

A Tenrikyo na Amazônia
A Tenrikyo chegou ao Brasil oficialmente em 1929 com o envio de alguns
missionários, e é enquadrada dentro do grupo das novas religiões
japonesas. Dentre os primeiros missionários, estava o primeiro primaz da
Tenrikyo Brasil, o Sr. Chujiro Otake. Em 1935 foi autorizada a fundação da
primeira igreja no Brasil. Já em 1951 foi fundada a sede missionaria da
Tenrikyo do Brasil em Bauru (SP). O reconhecimento por parte do governo
brasileiro aconteceu em 1955. A partir de 1971 se iniciou a publicação do
Jornal Tenri, usado para veicular em português a instrução religiosa e fazer
divulgação as atividades realizadas pela igreja (PEREIRA, 1992).

A Igreja Tenrikyo Amazônia teve sua origem nas atividades de divulgação


da Igreja-Mor de Honshiba, e foi inaugurada no dia 20 de Agosto de 1972.
O senhor Tateo Maruoka, que era o condutor do Centro de Divulgação
Amazônia e empossado como o condutor da Igreja Tenrikyo Amazônia,
faleceu um pouco antes de sua inauguração, isso em julho de 1972. Após
sua morte, seu filho Yoshio Maruoka assumiu como o II Condutor.
Atualmente, a Igreja Tenrikyo Amazônia conta com dezoito casas de
divulgação e um centro de divulgação, situadas em diversos locais na
Região Norte e também em outras regiões do Brasil. Realiza diversas
atividades como: Divulgação de ensinamentos sócio-culturais e
educativos, implantação de escola de língua japonesa e outras atividades.
Atualmente, tem como condutor, Leonardo Maruoka, filho mais velho do
Sr. Yoshio Maruoka, que assumiu o cargo recentemente, em novembro de
2016.

Em pesquisa recentemente realizada sobre a sonoridade japonesa e os


sentidos da prática musical (THEREZO, 2016) pude constatar com algumas
integrantes do grupo de Koto (um instrumento em formato de prancha

17
que tem treze cordas que são afinadas através de cavaletes móveis) da
Associação Pan-Amazônica Nipo Brasileira a relação direta da prática
musical com a prática religiosa. O grupo de Koto em questão tem
basicamente a função de divulgação da cultura através da música, tendo
por via de um instrumento musical que remete as tradições sonoras do
Japão. Porém, a fundadora do grupo e líder do mesmo (Kuniko Maruoka)
tem relação direta com o instrumento musical em função de sua religião,
a Tenrikyo, pois o tradicional instrumento japonês faz parte das
cerimônias na Igreja. A partir do constatado comecei a pensar e investigar
mais a fundo a relação entre a prática musical e a religião.

O trabalho de campo na Tenrikyo se iniciou com a minha participação nas


tsukinamisai (cerimônias mensais da Tenrikyo), onde consegui manter
uma boa relação com os membros daquela instituição haja vista a minha
já inserção na comunidade japonesa há alguns anos, inclusive
acompanhando o grupo de koto tocando piano, e ainda o fato de a
religião ser aberta e ter um caráter proselitista institucionalizado.

O Mura Perpetuado
É interessante observar, que na Igreja Tenrikyo Amazônia, um grupo típico
da sociedade japonesa durante muito tempo, o mura (A tradução seria
vila ou vilarejos, porem pode ser utilizado com outros sentidos
semelhantes. Um grupo que é basicamente composto por membros
familiares entre si), é uma boa analogia para a organização familiar da
Igreja Tenrikyo Amazônia. Como define Kato (2012) a sociedade japonesa
tem uma tendência de viver o presente. Os acontecimentos ocorrem no
espaço de um determinado grupo. A fronteira entre o grupo e o que está
fora é latente, e a relação entre os membros do grupo e os de fora são
contrastantes. Isso não significa que exista diretamente uma tendência de
aversão a quem é de fora na igreja, ainda mais lembrando de seu discurso
proselitista institucional. Esse contraste é na verdade indireto e ofuscado,
demostrado na utilização da língua japonesa e instrumentos típicos
japoneses nas cerimônias, além de sua ampla maioria de adeptos ser
composta de nikkeis, ou seja, de japoneses e seus descendentes. Este
pode ser o caso de outras culturas também, não sendo exclusivo da
cultura japonesa ou do caso especifico da igreja Tenrikyo Amazônia,
porém, deriva de uma tradição que é atualizada de diversas formas, sendo
parte de uma modernidade que não perde raízes. Mesmo após a
industrialização que dissolve o mura tradicional, parte daquele senso

18
permanece. De toda maneira, ainda sim vemos transformações a todo
momento desta realidade, mas aqui esta questão só é lembrada para não
ser acusado de não considerar as possíveis hibridizações ou bricolagens,
ou mesmo considerar a cultura estática. Da mesma maneira a tradição
não necessariamente é um padrão inabalável, e é aí que as propostas
partidas de uma dualidade tendem a entrar em conflito interno.

Hoje ocorrem algumas transformações que são importantes a respeito da


essência desta organização da igreja, como por exemplo, a posse do novo
condutor, Leonardo Maruoka, que é filho do fundador e missionário
Yoshio Maruoka. Isso pode significar muitas transformações a médio e
longo prazo, porém, ainda seguem a dinâmica familiar e de favorecimento
do interior do grupo, sendo a lógica do mura a constituição da vida
cotidiana, com um forte senso de integração e de uma hierarquia social
conservada tanto pelos membros como pela instituição. Por tanto a
passagem de pai para filho é no mínimo paradoxal, levando em conta o
observado até aqui.

Ocorre então que o espaço constituído pela Tenrikyo ou um grupo dentro


da religião, como a Tenrikyo Amazônia, existe uma pressão para uma
adaptação a maioria. Isso é forte, apesar de as vezes indireto, e dificulta o
contato e o dialogo com o exterior da instituição. Assim a visão de mundo
difere segundo a cultura, logo a religião não ultrapassa as diferenças
culturais e com certeza segue um padrão próprio em cada cultura, por
mais que o discurso incorpore aspectos aparentemente distintos a essa
realidade.

O espaço da Igreja Tenrikyo Amazônia então é uma “versão” moderna e


amazônica do mura. As fronteiras do grupo são claras e delimitadas, de
acordo com a “necessidade” abre-se ou fecha-se. Os adeptos dentro da
Tenrikyo vivem de acordo com o senso do mura. Isso mostra uma
capacidade de por o grupo e o senso da tradição em primeiro lugar,
mesmo com as suas atualizações. Inibe suas liberdades, mas não tolhe
suas transformações. Em resumo o grupo é eficiente para atingir um
objetivo, mas ineficaz de mudar de objeto.

Assim a religião acaba por ser uma manifestação da cultura do sagrado, e


que difere segundo seus padrões próprios. Isto nos leva a questões como:
tradução religiosa; busca de significado e sentido nestas particularidades

19
de sagrado; contribuições para perspectivas em colapso no ocidente;
entre outras. O que pode ser considerado classicamente nas ciências
sociais como, ópio, ética normativa ou alienação pode ter outra face, ou
mesmo uma função social tão ativa e militante quanto a sociologia de
ação proposta por Bourdieu (2007). A religião (não aquela delimita pela
ortodoxia ocidental, e sim a baseada na comutação social e ortopraxia)
pode ser libertadora. Sem a compreensão de outras mentalidades, o
dialogo torna-se impossível. Compreender é uma expressão de respeito
ante uma cultura, e que pode vir a ser uma forma de assistir e responder a
seus próprios anseios.

Referências
Vitor Moises Nascimento Therezo. Graduado em História (FIBRA),
especialista em História Contemporânea (FIBRA) e mestrando em Ciências
da Religião (UEPA). Professor na Prefeitura Municipal de Belém, e
Professor Horista da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
vitortherezo@gmail.com.

BOURDIEU, Pierre. Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:


Perspectiva, 2007.
ELLWOOD, Robert. Tenrikyo: a pilgrimage faith. The structure and
meanings of a modern japanese religion, Tenri, Nara, Oyasato Research
Institute/Tenri University, 1982.
FUSS, Michael. Tenrikyo-Christian Dialogue II: Tenri International
Symposium 2002" Tenrikyo-Christian Dialogue Religion, Education, and
the Family". Tenri University Press, 2002.
HARDACRE, Helen. "Conflict between Shugendō and the New Religions of
Bakumatsu Japan." Japanese Journal of Religious Studies, 1994.
HUANG, Yueh-po. The methods of propagation of a Japanese new religion
in the UK - Tenrikyo. Cogent Social Sciences, 2017.
KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação
Liberdade, 2012.
PEREIRA, Ronan. Alves. Possessão por espírito e inovação cultural: a
experiência religiosa das japonesas Miki Nakayama e Nao Deguchi. São
Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão - Massao Ohno, 1992.
THEREZO, Vitor Moises Nascimento. A Sonoridade Japonesa em Belém.
Mudanças nos Sentidos da Prática Musical e Resistência Cultural no
Contexto Imigratório do Pós-Guerra. Trabalho de conclusão de
especialização (FIBRA), Belém, 2016.

20
A CULTURA ÁRABE MUÇULMANA E O CINEMA: O RETRATO DO ÁRABE
MUÇULMANO GERADO PELO CINEMA HOLLYWOODIANO
Débora Dorneles Uchaski

Resumo: Este artigo traz uma perspectiva sobre como o cinema hollywoodiano têm
representado a cultura árabe muçulmana e como o cinema tem sido utilizado como
uma ferramenta ideológica para a legitimação de projetos políticos e econômicos
norte-americanos. Baseados na teoria da Nova História Cultural e nos métodos de
Marc Ferro, analisaremos vinte e um (21) filmes criados entre a década de 1970 e os
dias atuais, partindo do contexto em que havia sido criada a Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) e o mundo estava sendo acometido com a crise do
petróleo, atingindo primariamente os Estados Unidos. Fundamentado em interesses
políticos e econômicos, os Estados Unidos tem utilizado do cinema hollywoodiano
como um instrumento para atingir o inconsciente coletivo das massas. Aumentando
consideravelmente a utilização da figura do árabe muçulmano em seus filmes, criando
um retrato de tal cultura sob uma ótica orientalista. Além disso, dedicamo-nos a
estudar a representatividade da cultura árabe muçulmana no cinema salientando a
forma como é estampada, os estereótipos arremetidos a tais sujeitos e analisar se
houve alterações e degradações de sua imagem com o decorrer da história.
Enfatizando a importância de trabalhar em sala de aula a desconstrução dessa ótica
eurocêntrica e orientalista a fim de despertar no educando um olhar crítico ao que lhe
é ofertado pela mídia de massas. Portanto, com o objetivo de trazer novas
perspectivas e visões a fim de romper com estereótipos e com o estranhamento a
culturas diferentes das quais este se insere, visando que alcance um pensamento mais
ambíguo e tolerante.
Palavras-chave: Cinema; Representação; Orientalismo; Estereótipos; Racismo.

Abstract: This article presents a perspective about how Hollywood’s Industry has
represented Arab Muslim’s culture and how the cinema has been used an ideological
tool for legitimizing American’s political and economic projects. Based on the New
Cultural History theory and the Marc Ferro’s methods, we will analyze the twenty-one
(21) movies since between 1970s to current days, starting from the context with the
creation of Organization of Petroleum Exporting Countries (OPEC) when happened the
oil caos in the world, reaching primarily the United States of America. By the way,
grounded on political and economic interests, the United States has used Hollywood’s
Industry as an instrument to reach the masses' collective unconscious that since It was
increasing considerably the use of the Muslim Arab figure in your movies, creating a
portrait of such a culture under an Orientalist view. Besides that, we have dedicated to
study the representativeness of Muslim Arab’s culture in the cinema lay emphasis on
the way It is stamped, the stereotypes referred to these people and to analyze if there
were any changes and degradations of their image with the course of history. Stressing
that the importance of working in the classroom the deconstruction of this Eurocentric
and Orientalist viewpoint in order to awaken in the students a critical eye to what is
offered to them by the mass media. In conclusion, we want to bring new perspectives
and visions in order to break with stereotypes and strangeness to different cultures

21
from which these students are inserted, aiming at more ambiguous and tolerant
thinking.
Keywords: Cinema; Representation; Orientalism; Stereotypes; Racism

Desde a década de 70 até os dias atuais, podemos perceber um imenso


esforço do cinema hollywoodiano de representar diversas culturas
periféricas, entre elas a cultura árabe-muçulmana. Porém, as imagens
organizadas por esses estúdios cinematográficos têm vindo a décadas
carregadas de estereótipos fundamentando ideologias das mais diversas a
respeito da visão ocidental sobre o “Outro”, O presente artigo dedica-se a
estudar a representação da cultura árabe-muçulmana no cinema e
analisar se houve alterações de sua imagem com o decorrer da história,
salientando a importância de trabalhar tais temáticas em sala de aula.
Para isso, foram analisados 21 filmes com representações árabes e
muçulmanas criados por Hollywood nas décadas de 70, 80, 90 e pós
atentado de 11/09 as torres gêmeas nos EUA.

Em relação a leitura histórica do filme, podemos partir da premissa que o


cinema é um testemunho da sociedade que o produziu, aderindo um
caráter de fonte documental para a História. Para utilização de tais
recursos é necessária cautela. Primeiro, porque a análise não será de uma
forma direta, o historiador deverá se distanciar da visão mecânica para
poder enxergar através das entrelinhas do filme, é necessário também
que o historiador se volte para a análise da estética do filme e a linguagem
cinematográfica que está ligada a sociedade que a produziu. Ou seja,
buscar os elementos da realidade através da ficção.

A análise de um filme possui infinitas possibilidades, algumas películas,


por exemplo, podem ser muito importantes para reconstrução dos gestos,
dos vestuários, do vocabulário, da arquitetura e dos costumes da época.

 “O filme, aqui, não é considerado do ponto de vista semiológico.


Não se trata também de estética ou história do cinema. O filme é
abordado não como uma obra de arte, porém como um produto,
uma imagem-objeto, cujas significações não são somente
cinematográficas. Ele vale por aquilo que testemunha. Também a
análise não trata necessariamente da obra em sua totalidade; pode
apoiar-se em resumos, pesquisar “séries”, compor conjuntos. A
crítica não se limita somente ao filme, integra-o no mundo que o

22
rodeia e com o qual se comunica necessariamente (...). Nessas
condições, empreender a análise de filmes, de fragmentos de filme,
de planos, de temas, levando em conta, segundo a necessidade, o
saber e o modo de abordagem das diferentes ciências humanas,
não poderia bastar. É necessário aplicar esses métodos a cada
substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens
sonorizadas), às relações entre os componentes dessas substâncias;
analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as
relações do filme com o que não é o filme; o autor, a produção o
público, a crítica, o regime. Pode-se assim esperar compreender não
somente a obra como também a realidade que representa (FERRO,
1989, p.203).”

Portanto, os filmes são como documentos: históricos, e contenedores de


elementos que lhe são inseridos de maneira consciente ou não. Mas que
retratam uma ideologia ligada a sociedade que o produziu. Por isto, Marc
Ferro defende que devemos fazer uma análise do filme em si, mas
também ligarmos a quem os produziu, que tipo de sociedade estão
inseridos.

Devemos partir da premissa de que o cinema é um agente na construção


das representações e do inconsciente coletivo, ou seja, deve ser analisado
pelas ciências sociais, por ser um instrumento de cooptação ideológica,
política e social.

Sandra Pesavento salientará como é importante entender que o sistema


de representação pode estar carregado de fatores ideológicos, políticos e
sociais. “Mostrando que as representações são carregadas de
simbolismos, dizendo muito mais do que aquilo que mostram ou
enunciam, carregadas de sentidos ocultos, a qual construídos em meio
social e historicamente, acabam por se internalizar no inconsciente
coletivo, se apresentando como naturais (PESAVENTO, 2003, p.41)”.
Dando legitimidade a representações muitas vezes trazidas por uma visão
eurocêntrica com intuito de inferiorização e degradação de culturas, para
fins políticos e de colonização.

E assim, vem ocorrendo com a representação da cultura árabe-


muçulmana, o Ocidente detentor desse poder simbólico, tem utilizado de
ferramentas como o cinema para conseguir penetrar no inconsciente

23
coletivo e normalizar a ideia preconceituosa de que árabes- muçulmanos
são culturalmente inferiores e representam um perigo iminente: “Existe,
afinal, uma profunda diferença entre o desejo de compreender por razões
de coexistência e de alargamento de horizontes, e o desejo de
conhecimento por razões de controle e dominação externa. ” (SAID, 2007,
p.15)

A criação de estereótipos pelo Ocidente representando o Oriente, tem a


tendência de generalizar e depreciar a cultura oriental, ou seja, “são
carregadas de julgamentos e pressupostos tácitos ou explícitos a respeito
de seu comportamento, sua visão de mundo ou sua história. (FREIRE,
2005, p.22)” Exemplos disso, é a criação de estereótipos do homem árabe-
muçulmano como violentos, terroristas, atrapalhados, fanáticos e até
mesmo irracionais, assim como o da mulher que aparece primeiramente
como a dançarina do ventre, e posteriormente como terrorista, submissa,
subjugada, oprimida.

 “Na demonização de um inimigo desconhecido, em relação ao qual


a etiqueta “terrorista” serve ao propósito geral de manter as
pessoas mobilizadas e enraivecidas, as imagens da mídia atraem
atenção excessiva e podem ser exploradas em épocas de crise e
insegurança do tipo produzido pelo período pós Onze de Setembro
(QUMSIYEH, 2014, p. 22 apud AGUIAR, et. al., s/d)

Logo, devemos ressaltar que a dominação cultural, não está relacionada


somente a forma e os atributos de expressão de uma sociedade, mas sim
que ela ultrapassa todas as esferas sociais possíveis atingindo a esfera
política e do poder, a dominação. Portanto, devemos perceber que a
criação de uma imagem com olhar orientalista sobre a cultura árabe,
sendo ela majoritariamente pejorativa e carregada de estereótipos, é na
verdade uma ferramenta de cunho político, para inferiorizar determinada
cultura e enaltecer outra. Criando um “terror” ao indivíduo árabe-
muçulmano e legitimando o avanço do imperialismo predatório nessas
regiões.

Podemos entender como ponto de partida deste processo de aumento da


estereotipificação a cultura árabe-muçulmana a partir da Crise do Petróleo
que se abate ao mundo na década de 1960, quando países ricos do bem
natural (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait e Venezuela) fundam a

24
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), reivindicando o
poder de estabelecer os preços do Petróleo, combatendo o monopólio
estabelecido pelo cartel das grandes empresas ocidentais (Royal Dutch
Shell, Standard Oil, Mobil, Standard Oil of California, Chevron, Gulf, BP).
Em seguida, outros países se juntaram a OPEP, entre eles temos Líbia,
Nigéria, Argélia, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Gabão, Indonésia e
Equador.

Tal fator, prejudica consideravelmente a economia ocidental, já que a


décadas dominavam as negociações do preço do petróleo através de seus
monopólios adquirindo o bem natural a preços baixos. Outro fator que
pode ter colaborado para esse desequilíbrio de oferta e procura do
petróleo, é que países pertencentes à OPEP passaram a sofrer processos
de nacionalizações e uma série de conflitos, entre eles podemos citar a
Guerra de Seis Dias (1967), Guerra do Yom Kipur (1973), Revolução
Islâmica no Irã e Guerra Irã-Iraque (1978-1981). Cabe salientar, que em
forma de retaliação a participação dos EUA e da Holanda na Guerra do
Yom Kipur, a OPEP embargará a exportação de petróleo para tais países. E
em apenas cinco meses o preço do barril de petróleo irá ter um reajuste
de 400% (17/10/1973 – 18/3/1974), com um novo aumento de 100% na
conferência de Teerã em 23 de dezembro. (SARKIS, 2006), desencadeando
a primeira fase da Crise do Petróleo.

Devemos lembrar que a criação da Agência Internacional de Energia,


criada pelo ocidente, ocasionou o bloqueio da OPEP, que além disso foi
vítima de atentados da extrema-esquerda árabe. Assim, o resultado foi
uma série de dificuldades sociais que geram um caldo de cultura para o
esquerdismo, e posteriormente, para o fundamentalismo islâmico.
(VISENTINI, 2014, p.40)

A Crise do Petróleo iniciada na década de 1960, conflitos armados entre


Israel e países muçulmanos, movimentos anti-imperialistas e antissemitas,
podem ter sido o ponto culminante, para que o cinema hollywoodiano
tenha intensificado a utilização de filmes como um instrumento ideológico
fomentando a representação pejorativa e estereotipada destes sujeitos.

Cultura Árabe e a representação das décadas de 1970 a 1990


O Ocidente neste período ainda estava emergido em outros conflitos,
como ideologias anticomunistas, a bipolaridade EUA contra URSS e

25
vivendo uma forte crise econômica. Portanto, os estereótipos pejorativos
e degradantes do árabe-muçulmano serão reforçados no cinema nas
décadas de 1970 e 1980, ainda que divida o espaço com outros
personagens estereotipados como chineses e russos.

Para trabalharmos os estereótipos degradantes do árabe-muçulmano


reforçados pelo cinema hollywoodiano nas décadas de 1970, 1980 e 1990,
partiremos da estereotipificação das terras orientais. O mito da
“Arabland”, representará o Grande Oriente Médio 6 como um local
“atrasado” e de clima quente demais. Onde teremos um deserto muito
perigoso cheio de armadilhas, saqueadores, tempestades de areia, areia
movediça (que engolem um ser humano inteiro 7), cheio de insetos como
gafanhotos e escorpiões, obtendo apenas pequenos oásis e algumas
palmeiras como refúgio, sendo esta a única representação dada ao local.
Veremos isto em filmes da década de 1980 e 1990 como em Indiana Jones
e os caçadores da Arca Perdida (1981), Sahara (1983) ou em Alladin
(1992), porém continuaremos a ver a utilização da estereotipificação das
terras áridas do Oriente em filmes como Três Reis (2000), Mar de Fogo
(2004) e Príncipe da Pérsia (2010).

As cidades serão representadas, como locais de pouco desenvolvimento


urbano e de falta de saneamento básico e segurança, onde as pessoas
dividem pequenos espaços de moradia. Local onde a desigualdade social e
a violência está fortemente presente. Alguns filmes trarão essa
representação claramente, como é o caso de Alladin (1992) e Indiana
Jones e os Caçadores da Arca Perdida (1981). Outros filmes ainda
poderiam ser citados para complementar a análise, entre eles temos:
Guerra ao Terror (2008), O Reino (2007), Castelo de Areia (2015), Sniper
Americano (2015), entre outros. Ou seja, teremos uma continuidade na
inferiorização dos países orientais, caracterizando-os como “atrasados”,
“incivilizados”, etc. Teremos filmes desde a década de 1970 até os dias
atuais retratando-os de tal maneira.

Porém, de forma contraditório, na década de 1970 e 1980 teremos o


surgimento da figura do “xeique” indivíduo rico, em função de seu poder
sobre o petróleo, mas, ao mesmo tempo, gastando seu dinheiro
tolamente e obcecado pelo ocidente e por mulheres americanas. Tal
estereótipo aparece nos filmes Rede de Intrigas (1976), Cannonball Run II

26
(1984), 007: Nunca Mais Outra vez (1983), Sahara (1983), Amor Impossível
(2012), entre outros.

A visão do árabe como um “bárbaro” e como um sujeito violento são


estereótipos muito utilizados pelo cinema hollywoodiano, apresentando-
os como incivilizados, montados em seus cavalos, com espadas e armas,
utilizando turbantes. Temos este estereótipo claramente em Sahara
(1983), um filme que mostrará a brutalidade do árabe do deserto em suas
lutas tribais, promovendo uma violência irracional. Outro filme que mais
tarde trará essa representação é o Gladiador (2000).

Outro fator interessante, é que mesmo em filmes onde o roteiro não tem
relação com árabes, muitas vezes são utilizados para representar um vilão,
ou um perigo iminente. Como é o caso do já citado Rede de Intrigas (1976)
e De volta para o futuro (1985): “Ao mesmo tempo, ao sustentar seus
privilégios tanto com sua glória quanto com o envilecimento do
colonizado, ele se obstinará em envilecê-lo. Utilizará para retratá-lo as
cores mais sombrias; agirá, se for preciso, para desvalorizá-lo, para
aniquilá-lo.” (MEMMI, 2007, p.92)

O estereótipo de árabe atrapalhado, violento, mas ineficaz, legítimos


bufões, vem se fortalecendo gradualmente ao longo do tempo. O
veremos, no já citado, De Volta Para o Futuro (1985), True Lies (1994),
Indiana Jones e os caçadores da Arca Perdida (1981) e Três Reis (2000).

Terrorismo e o atentado de 11/09


Até que em 11 de setembro de 2001, ocorre o atentado terrorista ao
World Trade Center nos EUA. Mudando essa representação do árabe-
muçulmano, que passa de violento e ineficaz, para a representação de um
terrorista antiocidental, com intuitos violentos e pretensões de
aniquilamento de massas. Teremos um grande marco divisor dos
estereótipos de árabes e muçulmanos. O atentado de 11 de setembro de
2001, onde aviões foram jogados contra ao World Trade Center em Nova
York e contra o Pentágono em Washington, nos EUA. Tal ato, traumatizará
a sociedade americana e o mundo por sua audácia, “atingindo pela
primeira vez o território metropolitano americano golpeando os maiores
símbolos do poder financeiro e militar dos EUA (e do Ocidente).”
(VISENTINI, 2014, P.99). Tramado por Osama Bin Laden, líder da
organização Al Qaeda e pelo regime talibã do Afeganistão. O atentado

27
desencadeará uma guerra contra o terrorismo, liderada por Bush
(presidente norte-americano), iniciando sua ação invadindo o Afeganistão.
Paulo Visentini nos dirá ainda que a “expressão “terrorismo” passou a
integrar a linguagem cotidiana em todo o mundo.” (VISENTINI, 2014, p.97)

E mais do que nunca, a figura do árabe-muçulmano ficará agregada ao


terrorismo e ao fanatismo religioso. A forma como o homem árabe-
muçulmano passa a ser retratado terá uma guinada bastante radical no
cinema hollywoodiano após o atentado ao World Trade Center em 2001.
Ele será estereotipado como terrorista, fanático, irracional, assassino de
americanos, e diferentemente do estereotipo das décadas de 70 a 90, ele
será considerado como um perigo iminente. Tal representação contribuirá
para o aumento da xenofobia e islamofobia, reproduzindo uma série de
filmes com alto nível ideológico, penetrando no inconsciente do
telespectador com ideias de endeusamento do soldado americano e
intensificando o racismo e a intolerância religiosa contra o árabe-
muçulmano. Alguns filmes que retratam essa realidade são: O homem
mais procurado (2014), Guerra ao Terror (2008), Sniper Americano (2015),
13 horas: Os soldados secretos de Benghazi (2016), etc.

 “Ele apelará, portanto, para as qualidades de sua pátria de origem,


celebrando-as, amplificando-as, insistindo em suas tradições
particulares, em sua originalidade cultural. Assim, no mesmo
movimento, ele terá afirmado sua própria pertença a esse universo
afortunado, sua ligação nativa, natural, à metrópole, e a
impossibilidade do colonizado de participar desses esplendores, sua
heterogeneidade radical, a um só tempo infeliz e desprezível.”
(MEMMI, 2007, p.96)

Mulher árabe-muçulmana
O retrato da mulher árabe-muçulmana no cinema hollywoodiano é
dividido em duas representações: primeiramente teremos a imagem da
odalisca, com roupas sensuais e na maioria das vezes em tabernas, como
veremos em filmes com Sherlock Holmes: O Enigma da Pirâmide (1985) e
Alladin (1992). Por mais que a imagem trazida pelo cinema não venha
representar a realidade, temos que compreender que o homem ocidental,
que vive em uma sociedade machista e patriarcal, deseja ver o corpo da
mulher árabe desnudo.

28
Porém podemos notar através da análise dos filmes, que após o atentado
de 11/09, teremos uma alteração na representação da mulher árabe-
muçulmana, aparecendo desta vez como uma mulher oprimida,
subjugada, sempre utilizando de suas burcas pretas, aparecendo quase
sempre em segundo plano ou então ligadas aos grupos terroristas através
de seus cônjuges.

 “As mulheres do mundo muçulmano constituem objetos de fascínio


para o Ocidente: ontem “fantasia orientalista”, a sensual criatura do
harém; hoje vítima de opressão, velada e genitalmente mutilada.
Ambas as imagens representam um Oriente estereotipado, tanto
voluptuoso quanto cruel, mas sempre e uma alteridade
aparentemente intransponível.” (DEMANT, 2008,p.148)

Veremos isto mais claramente, em filmes como O Reino (2007), Guerra ao


Terror (2008), Sniper Americano (2014) e 13 horas: Os Soldados Secretos
de Benghazi (2016). Outro ponto interessante é que as mulheres árabes-
muçulmanas aparecem quase sempre em segundo plano, nunca ganham
muita ênfase e quando aparecem normalmente são em cenas onde estão
sendo oprimidas ou cúmplices dos atos terroristas de seus maridos,
irmãos, pais. Para exemplificação do retrato da mulher árabe-muçulmana
em segundo plano, podemos citar o filme Syriana – A indústria do
Petróleo (2005) e o filme Três Reis (2000).

Ao longo da análise, podemos verificar que a alteração da representação


da mulher árabe-muçulmana, não se dá como uma denúncia ao
feminismo ocidental (para que este venha intervir pela mulher oriental). A
tese que sustento é que por mais que estejam surgindo grupos de debates
sobre a situação da mulher árabe-muçulmana, ainda é um debate muito
embrionário, nos levando a crer que os propósitos desta alteração, nada
tem a ver com a manifestação feminista, mas sim com a vilificação do
homem árabe-muçulmano, que aparece cada vez mais como um indivíduo
fanático, insano, radical, violento e opressor da sociedade em que vive e
até mesmo de sua própria família. O que desumaniza esse indivíduo
permitindo que seja combatido sem grandes repercussões, ou seja,
legitima sua morte por ser um homem “insano, intolerante, misógino,
machista, torturador, etc”.

29
A importância de trabalhar estes conteúdos em sala de aula
Trabalhar conceitos tão importantes como estereótipos, orientalismo e
racismo são de suma importância na formação de nossos estudantes. Em
nossa atualidade, estamos vivendo diversos acontecimentos ocorrendo
paralelamente, entre eles podemos citar a imigração em massa de
refugiados do Oriente Médio em busca de uma vida melhor e longe de
zonas de conflito e interesses petrolíferos. Porém com a disseminação
desta ideologia xenofóbica e islamofóbica, fomentada pelo cinema
americano e por outras mídias desde a década de 1970, temos de
imediato um choque cultural muito maior. Tanto, que se tornou comum o
ataque a estas pessoas em função da sua raça ou religião.

Portanto se faz fundamental o trabalho em sala de aula com o intuito de


desconstrução dessa ótica eurocêntrica e orientalista a fim de despertar
no educando um olhar crítico ao que lhes é ofertado pela mídia de
massas. Trazendo novas perspectivas e visões a fim de romper com
estereótipos e com o estranhamento a culturas diferentes da que estão
inseridos, visando que alcancem um pensamento mais ambíguo e
tolerante.

Minha proposta, é que utilizemos do próprio cinema para desconstruir


essa visão estereotipada e pejorativa de outras culturas, elencando
antagonismos nos filmes hollywoodianos, e contrastando com a História, a
fim de incentivar a formação de uma consciência crítica.

Considerações finais
Considera-se, portanto, que o cinema hollywoodiano tem sido utilizado
para fins políticos e imperialistas, estereotipando a cultura árabe e
muçulmana através de estereótipos degradantes objetivando a
inferiorização destas etnias e religião, para legitimação da intervenção
norte-americana em zonas de interesse petrolífero, utilizando como
desculpa a “guerra ao terror”. Para que o mundo aceite esta intervenção,
é necessária uma ideologia de massas, a qual utilizam de diversos
recursos, entre eles o cinema.

Cabe ainda dizermos que durante a análise das fontes cinematográficas foi
verificado a imposição do cinema hollywoodiano, ligando a violência ao
Islã, gerando no subconsciente coletivo uma ideia errada sobre tal religião.
Lembrando que o Islamismo é uma religião voltada a paz.

30
Uma das maiores dificuldades encontradas pela pesquisa foi delimitar e
utilizar apenas 21 filmes, pois durante o processo de pesquisa o número
de filmes do cinema hollywoodiano e europeu assistidos e que retratam a
cultura árabe-muçulmana alcançou o número de 80 filmes, espero poder
dar continuidade nesta pesquisa a fim de utilizar esta grande gama de
fontes cinematográficas para análise do retrato da cultura árabe
muçulmana criada pelo Ocidente.

Referências
Autora: Débora Dorneles Uchaski é Graduada em Licenciatura em História
pela Faculdade Porto-Alegrense.
E-mail: duchaski@gmail.com
Orientado pelo professor Mestre Walter Günther Rodrigues Lippold

Filmes:
007 – Never Sain, Never Again. Direção: Irvin Kershner. Produção de
TaliaFilm II Productions, Woodcote. 1983. Color. 134 min.
13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi. Diretor: Michael Bay.
Produção de Paramount Pictures. 2016. Color. 144Min.
ALLADIN. Direção: Ron Clements, John Musker. Produção de Walt Disney
Pictures.1992. Color. 90Min.
AMOR Impossível. Diretor: Lasse Hallström. Produção de UK Film Council,
BBC Films. 2011. Color. 107 min.
CANNONBALL Run II. Direção de Hal Needham. Produção de Golden
Harvest Company.1984. Color. 108 min.
CASTELO de Areia. Diretor: Fernando Coimbra. Produção de The Mark
Gordon Company. 2017. 113 min.
DE VOLTA para o Futuro. Direção de Robert Zemeckis. Produção de
Universal Pictures.1985. Color. 116 min.
GLADIADOR. Diretor: Ridley Scott. Produção de DreamWorks, Universal
Pictures. 2000. Color. 171 min (extended edition).
GUERRA ao terror. Diretor: Kathryn Bigelow. Produção de Voltage
Pictures. 2008. Color. 131 min.
INDIANA Jones e os Caçadores da Arca Perdida. Direção de Steven
Spielberg. Produção de Paramount Pictures, Lucasfilm. 1981. Color. 115
min.
MAR de Fogo. Diretor: Joe Johnston. Produção de Touchstone Pictures.
2004. Color. 136 min.
O ENIGMA da Pirâmide. Direção de Barry Levinson. Produção de Amblin

31
Entertainment, Industrial Light & Magic (ILM), Paramount Pictures. 1985.
Color. 109 min.
O HOMEM mais procurado. Direção de Anton Corbijn. Produção de
Lionsgate. 2014. Color. 122 min.
O REINO. Diretor: Peter Beng. Produção de Universal Pictures. 2007. Color.
110 min.
PRÍNCIPE da Pérsia: As Areias do Tempo. Diretor:Mike Newell. Produção
de Walt Disney Pictures. 2010. Color. 116 min.
Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People. Direção: Sut Jhally.
Produção: Media Education Foundation, 2006. 50 min, cor.
REDE de Intrigas. Direção de Sidney Lumet; Produção de United Artists;
Metro Goldwyn MGM, 1976. 120 min.
REGRAS do Jogo. Diretor: William Friedkin. Produção de Paramount
Pictures. 2000. Color. 128 min.
SAHARA. Direção de Andrew V. McLaglen. Produção de Cabal Film,
Cannon Group, Golan-Globus Productions. 1983. Color. 111 min.
SNIPER Americano. Diretor: Clint Eastwood. Produção de Warner Bros..
2014. Color. 114 min.
SYRIANA – A indústria do Petróleo. Diretor: Stephen Gaghan. Produção de
Warner Bros. 2005. Color. 128 min.
TRÊS Reis. Diretor: David O. Russell. Produção de Warner Bros. 2000.
Color. 114 min.
TRUE Lies. Direção de James Cameron. Produção de Twentieth Century
Fox. 1994. Color. 141 min.

Bibliografia:
AGUIAR, Flávia; COSTA Cristiane. Jasmine: a representação da mulher e do
Oriente sob a ótica da Disney. Intercom, s/d.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.
FERRO, Marc. O filme: uma contra análise da sociedade? LE GOFF,
Jacques; NORA, Pierre. História: Novos Objetos. RJ. F. Alves, 1989
FREIRE FILHO, João. Força de expressão: construção, consumo e
contestação das representações midiáticas das minorias. Revista
FAMECOS, Porto Alegre; número 28, dezembro de 2005. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/v
iew/3333/2590
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de Retrato do
Colonizador. Paz e Terra, 1967.
MEMMI, Albert. Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns

32
outros. Civilização Brasileira, 2007.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SARKIS, Nicolas. Cronologia da OPEP. Tradução: Leonardo Abreu. Le
Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: <http://diplo.org.br/2006-
05,a1304> Acessado em: 30
jul de 2017
VISENTINI, Paulo. O Grande Oriente Médio: Da Descolonização à
Primavera Árabe. Campus Elsevier, 2014.

33
A IMIGRAÇÃO JAPONESA VISTA PELO CINEMA BRASILEIRO:
APONTAMENTOS SOBRE “GAIJIN, CAMINHOS DA LIBERDADE”, DE
TIZUKA YAMASAKI (1980)
Diogo Matheus de Souza

Resumo: A Lei 13.006/2014 determina a exibição de duas horas mensais de filmes de


produção nacional em todas as escolas de educação básica do país. Buscando refletir
sobre possibilidades acerca do cinema brasileiro na escola, e mobilizando temáticas, o
presente artigo pretende analisar o filme “Gaijin, Caminhos da Liberdade” (1980), da
cineasta nipo-brasileira Tizuka Yamasaki. Por meio do filme, de notícias de jornal que
circularam no contexto de seu lançamento, de entrevista com a diretora e da
bibliografia existente, pretende-se compreender como “Gaijin” mobiliza e produz
memórias acerca da imigração japonesa, e quais os indícios que nos fornece sobre a
construção de uma identidade japonesa no Brasil.
Palavras Chave: Imigração Japonesa; Cinema; Educação

Abstract: Law 13.006/2014 determines the exhibition of two monthly hours of national
production films in all the basic education schools in the country. Seeking to reflect on
possibilities about Brazilian cinema in school, and mobilizing themes, this article
intends to analyze the film "Gaijin, Caminhos da Liberdade" (1980) by the japanese-
brazilian filmmaker Tizuka Yamasaki. Through the film, newspaper news circulated in
the context of its launch, interview with the director and the existing bibliography, it is
intended to understand how "Gaijin" mobilizes and produces memories about
japanese immigration, and what evidence provides about the construction of a
japanese identity in Brazil.
Keywords: Japanese Immigration; Cinema; Education.

Em 1980, a cineasta nipo-brasileira TizukaYamazaki dirige seu primeiro


longa-metragem, intitulado “Gaijin, Caminhos da Liberdade”. Produzido
pelo Centro de Produção e Comunicação (produtora constituída por
Yamasaki, Lael Rodrigues e Carlos Alberto Diniz) em parceria com a
Embrafilme, a Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa (Bunkyo) e a Igreja
Messiânica do Brasil, “Gaijin’foi um filme aclamado pela crítica da época,
recebendo o prêmio de melhor filme no Festival de Gramado e uma
menção especial do Prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes de 1980.

O presente trabalho foi escrito tendo como princípio duas motivações. A


primeira delas é a mobilização de temas possíveis para o uso de filmes
brasileiros nas aulas de história, algo que envolve o incentivo criado pela
Lei 13.006, que determina a exibição de duas horas mensais de filmes de
produção nacional nas escolas de educação básica do país (BRASIL, 2014).
Articulado com essa proposta, temos a importância em tratar sobre a

34
história da imigração japonesa no Brasil e a presença cultural japonesa
dentro da própria cultura brasileira.

Por meio do filme “Gaijin, Caminhos da Liberdade”, de notícias de jornal


que circularam no contexto de seu lançamento, de entrevista com a
diretora Tizuka Yamazaki e da bibliografia existente, pretende-se
compreender como o filme em análise mobiliza e produz memórias acerca
da imigração japonesa, e quais os indícios que nos fornece sobre a
construção de uma identidade japonesa no Brasil.

Fonte da Imagem:
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-44249/
Descrição: Cartaz de divulgação em francês de
“Gaijin, Caminhos da Liberdade”.

No dia 8 de junho de 1908, aporta em Santos o navio Kasato Maru,


trazendo 168 famílias do Japão, iniciando oficialmente a imigração
japonesa no Brasil (KISHIMOTO; HIKIJI, 2008, p. 145). No início da
imigração, na década de 1910, muitos japoneses foram enviados para o
interior do estado de São Paulo para substituir a mão de obra escrava nas
fazendas de café (MORALES, 2008, p. 17).

Sob o ponto de vista brasileiro, o interesse pela imigração japonesa era


suprir a lavoura cafeeira com trabalhadores, em um período em que os
países europeus estavam dificultando a vinda de mão de obra subsidiada

35
para a cafeicultura de São Paulo. Havia também a pretensão de abrir
diretamente o mercado japonês para o café brasileiro. “Portanto, da
perspectiva do Brasil, as relações do governo paulista com o Japão
iniciavam-se estreitamente atreladas aos interesses da cafeicultura”
(BASSANEZI; TRUZZI, 2008, p. 75).

Sob o ponto de vista japonês, as reformas da Era Meiji durante a segunda


metade do século XIX haviam impulsionado a abertura ao Ocidente,
acompanhada da emigração de japoneses aos Estados Unidos, sobretudo
à Califórnia e ao Havaí. Quando o volume crescente desse fluxo alertou as
autoridades estadunidenses, estas convenceram o governo japonês a
assinar um “acordo de cavalheiros” que impunha um regime de cotas à
emigração, no ano de 1907. Tendo acabado de sair da Guerra Russo-
Japonesa, o Japão passava por uma crise econômica que gerou tensões
sociais, tensões essas agravadas com o crescimento populacional nas
zonas rurais. O Brasil tornou-se, então, um destino de interesse para o
governo japonês (BASSANEZI; TRUZZI, 2008, p. 75-76).

Será nesse contexto da chegada dos imigrantes japoneses no Brasil que a


narrativa do filme “Gaijin, Caminhos da Liberdade” de Tizuka Yamasaki irá
se concentrar. O filme é narrado sob o ponto de vista da personagem
Titoe (interpretada por Kyoko Tsukamoto), e que espelha as lembranças
que a cineasta tem de uma de suas avós (homônima da personagem)
(KISHIMOTO; HIKIJI, 2008, p. 152). A memória, aliás, é elemento
constitutivo do filme, iniciando pela fala de Titoe na primeira cena, onde
descreve a partida do Japão:

 “Ano 41 da Era Meiji. Eu tinha 16 anos e meu irmão queria ir para o


Brasil. Como se aceitavam famílias, resolveram me casar com uma
pessoa que eu não conhecia. Eu chorei ao deixar a aldeia. Quantos
anos já se passaram! Muitas coisas aconteceram, mas agora esse
passado faz parte de minhas recordações” (GAIJIN, Caminhos da
Liberdade, 1980).

A fala de Titoe aparece duas vezes ao longo do filme, na abertura e em seu


fechamento, evidenciando a mediação da memória no processo de
construção da narrativa. “Além do recurso à memória familiar, a
elaboração do roteiro contou com um trabalho de pesquisa que incluiu a

36
realização de entrevistas com imigrantes japoneses” (KISHIMOTO; HIKIJI,
2008, p. 152).

Sendo neta de imigrantes japoneses, pode-se inferir que na construção de


sua narrativa, Yamasaki faz uso daquilo que Michael Pollack define como
“memória herdada”:

 “Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,


individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos
vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos
que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos
vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente
pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre
participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que,
no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos
vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam
dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, tão forte que podemos
falar numa memória quase que herdada” (POLLACK, 1992, p. 02).

Ainda sobre a herança da memória, Aleida Assmann e Linda Short (2012,


p. 04) nos lembram de que as memórias individuais não são facilmente
sobrescritas e as histórias familiares são muitas vezes preservadas através
das gerações por meio da transmissão oral.

No contexto do lançamento de “Gaijin” no Festival de Cannes de 1980, o


Jornal O Globo publicou uma matéria sobre o filme, intitulada “Gaijin,
Caminhos da Liberdade: A imigração japonesa vista pelo cinema
brasileiro” (ANDRIES, 1980, p. 32). No Caderno de Cultura do jornal, fala-
se que Tizuka Yamazaki traz para as telas uma “problemática até então
desconhecida pelo cinema brasileiro” (ANDRIES, 1980, p. 32). Tal
informação pode ser revista, de acordo com Alexandre Kishimoto e Rose
Satiko Gitirana Hikiji (2008), que em seu texto “Nikkeis no Brasil,
Dekasseguis no Japão: identidade e memória em filmes sobre migrações”,
apresentam uma série de produções cinematográfica nacionais que
tratavam sobre a imigração japonesa anterior ao filme de Yamazaki. O

37
Jornal O Globo entrevistou TizukaYamazaki, e em sua entrevista ela
afirma:

 “Minha ideia foi sempre a de falar do sentimento do homem no


instante em que ele chega a este país, de sua sensação de se sentir
estrangeiro. Tomei como referência o japonês, sem achar, em
nenhum momento, que ele estava em posição diferente de outros
trabalhadores imigrantes; tomei como referência a minha realidade
mais próxima” (YAMAZAKI apud.ANDRIES, 1980, p. 32).

De fato, é perceptível que a diretora do longa busca representar não


apenas os imigrantes japoneses e suas dificuldades para se estabelecerem
no Brasil, mas também as de imigrantes de outras nacionalidades e de
outras regiões do Brasil, como por meio do personagem italiano Enrico
(Gianfrancesco Guarnieri) e do alagoano Ceará (José Dumont). Nota-se o
preconceito que existe da elite cafeicultora com os imigrantes, havendo
situações de maus tratos semelhantes ao trabalho escravo. De acordo
com Yamazaki:

 “Mesmo nascida no Brasil, sou discriminada, passo a ser


estrangeira, destacada pela atenção que dão à minha pele, minhas
feições, meu jeito. Então, desenterrando minhas memórias,
retornei às histórias contadas por minha avó” (YAMAZAKI apud.
ANDRIES, 1980, p. 32).

Importante situar que o ideograma “Gaijin” pode ser traduzido como o


homem do lado de fora, sendo caracterizado no filme como uma marca de
todos os imigrantes que, por circunstâncias econômicas, políticas, sociais e
culturais, tiveram de abandonar seus países ou estados de origem para
tentar construir a vida em lugares desconhecidos e distantes (BARRETO,
2014).

A narrativa centra-se nos dois primeiros anos de trabalho de algumas


famílias japonesas na fazenda Santa Rosa, de propriedade de um dos
barões de café paulista. As gravações aconteceram durante um período de
nove semanas, em algumas cidades que compõem a rota dos cafezais –
Atibaia, Santos, Paranapiacaba, Campinas e São Paulo -, cidades com
grande concentração de imigrantes (BARRETO, 2014).

38
No decorrer da história da personagem Titoe, Yamazaki apresenta o difícil
processo de adaptação dos imigrantes japoneses, como a dificuldade de
comunicação, de alimentação, a exploração de seu trabalho como mão-
de-obra barata ou pelo endividamento das famílias e o sentimento de
frustração das expectativas iniciais de enriquecimento e retorno ao Japão
(KISHIMOTO; HIKIJI, 2008, p. 152).

Segundo Maria Silvia C. Beozzo Bassanezi e Oswaldo Mário Serra Truzzi


(2008, p. 76), a primeira tentativa de imigração japonesa para o Estado de
São Paulo frustrou as expectativas devido a uma série de fatores, vários
deles reconhecidos pelas próprias autoridades da época, como: grande
número de imigrantes não-agricultores, dificultando a adaptação;
unidades familiares que agregavam pessoas não aparentadas entre si;
impossibilidade de saldar a dívida relacionada às despesas de transporte
em curto espaço de tempo; chegada em um momento em que a colheita
já estava adiantada, o que tornou o trabalho pouco rentável.

 “Além desses, outros obstáculos contribuíram para o relativo


fracasso inicial do projeto de empregar japoneses na lavoura
cafeeira: as diferenças de usos e costumes, língua e religião; a
desinformação sobre a realidade brasileira (que provocou
decepções) e as más condições de alimentação e moradia
encontradas em muitas das fazendas” (BASSANEZI; TRUZZI, 2008, p.
77).

No filme, como destacam Alexandre Kishimoto e Rose Satiko Gitirana Hikiji


(2008, p. 153), dois elementos relacionados a aspectos políticos da
representação chamam a atenção. O primeiro é a centralidade da
personagem feminina, Titoe, que após a morte do marido, lidera a fuga
dos japoneses da fazenda e passa a criar sozinha sua filha em São Paulo,
agora como operária fabril. E isso levando-se em conta o patriarcalismo
japonês, presente na fala do marido após saber que teve uma filha e não
um filho: “mulher não serve para nada” (GAIJIN, Caminhos da Liberdade,
1980).

O segundo elemento é que o filme descreve as várias formas de


exploração do imigrante, enfatizando o controle e a repressão sobre as
reivindicações dos trabalhadores, culminando no episódio da deportação
da família do imigrante italiano Enrico.

39
“Os japoneses são representados como alheios à mobilização coletiva,
confirmando a imagem que deles tem o fazendeiro: em relação aos
italianos e espanhóis eles seriam mais disciplinados e trabalhadores”
(KISHIMOTO; HIKIJI, 2008, p. 153). Ao ser questionada pelo repórter do
Jornal O Globo se possui “complexo” em relação aos outros brasileiros,
“fisicamente tão diferentes de você”, a cineasta Tizuka Yamazaki
responde:

 “É claro que muitas vezes senti o problema de perto. A começar


pela minha carteira de identidade que diz que sou brasileira de cor
amarela. Na realidade, os outros é que produzem em nós um
sentimento de complexo pelo que somos. Os outros, quero dizer,
são certas pessoas que antes de nos ver como brasileiros e seres
humanos, nos qualificam pela cor e grupo social” *...+ “No Brasil, as
minorias formam a maioria e a partir da consciência disto
poderemos nos libertar desses falsos conceitos colonialistas”
(YAMAZAKI apud. ANDRIES, 1980, p. 32).

Tizuka conclui afirmando que não vê o cinema como um “instrumento útil


para traçar um tratado sociológico sobre o problema dos imigrantes no
Brasil” e “muito menos para apenas expor os meus problemas
existenciais”. Ela resume: “O que eu queria desde o início era prestar uma
homenagem ao povo imigrante. Era preciso fazer um filme que tivesse mil
caras, inclusive a sua. Acho que Gaijin conseguiu isso” (YAMAZAKI apud.
ANDRIES, 1980, p. 32).

Considerações Finais
“Gaijin, Caminhos da Liberdade” de Tizuka Yamazaki representa não só
uma homenagem ao povo imigrante por parte de sua diretora
descendente de imigrantes japoneses, mas também uma forma de
produzir, enquadrar e divulgar uma memória e uma identidade da
imigração japonesa no Brasil. Por meio dos relatos de Yamazaki,
percebemos que ela possui uma memória herdada de sua avó acerca da
vida de imigrante, o que lhe serve como referência para a construção da
narrativa fílmica.

A história da personagem Titoe ao longo do filme mostra uma série de


dificuldades que os imigrantes, não só japoneses, mas de outras
nacionalidades, enfrentaram na sua vinda para o Brasil. Entre essas

40
dificuldades podem-se elencar as más condições de estadia, o
endividamento, as precárias condições de trabalho, a exploração de sua
mão de obra, entre outras.

“Gaijin” serve como um exemplo de filmes brasileiros que podem ser


utilizados nas aulas de história para a discussão acerca da imigração
japonesa no Brasil. Com a sanção da Lei 13.006/2014, é importante que
existam trabalhos e reflexões que se voltem para o cinema brasileiro e
suas possibilidades de interseccionar diferentes temáticas em sala de aula,
inclusive sobre a presença da cultura japonesa no Brasil.

Referências
Diogo Matheus de Souza é graduado em História pela Universidade
Federal de Santa Catarina e Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Educação da mesma universidade, com bolsa CAPES. Integra o Grupo
de Pesquisa “Patrimônio, Memória e Educação” (PAMEDUC), vinculado ao
CNPq. E-mail: diogo.m.souza@posgrad.ufsc.br

Fontes:
ANDRIES, André. "Gaijin, Caminhos da Liberdade": A imigração japonesa
vista pelo cinema brasileiro. O Globo. Rio de Janeiro, 29 fev. 1980. p. 32-
32. Disponível em: <http://midiacidada.org/uma-nipo-brasileira-no-
cinema-um-olhar-sobre-a-imigracao-japonesa-no-brasil/>. Acesso em: 15
ago. 2018.
GAIJIN, Caminhos da Liberdade. Direção de Tizuka Yamazaki. São Paulo:
Embrafilme, 1980. (100 min.), son., color.

Bibliografia:
ASSMANN, Aleida. SHORTT, Linda. Memory and Political Change. USA:
Palgrave Macmillan, 2012.
BARRETO, Gustavo. Uma nipo-brasileira no cinema: um olhar sobre a
imigração japonesa no Brasil. 2014. Disponível em:
<http://midiacidada.org/uma-nipo-brasileira-no-cinema-um-olhar-sobre-
a-imigracao-japonesa-no-brasil/>. Acesso em: 12 jul. 2018.
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo; TRUZZI, Oswaldo Mário Serra.
Plantadores do futuro: japoneses em São Paulo na primeira metade do
Século XX. In: IBGE. Resistência e Integração: 100 anos de imigração
japonesa no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. p. 72-89.
BRASIL. Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8o ao art. 26

41
da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para obrigar a exibição de filmes de
produção nacional nas escolas de educação básica. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2014/lei-13006-26-junho-2014-
778954-publicacaooriginal-144445-pl.html>. Acesso em 09 ago. 2018.
KISHIMOTO, Alexandre; HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Nikkeis no Brasil,
Dekasseguis no Japão: identidade e memória em filmes sobre migrações.
Revista Usp, São Paulo, v. 79, n. 01, set-nov. 2008. p.144-164, Disponível
em:
<http://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/1080>. Acesso em: 08
ago. 2018.
MORALES, Leiko Matsubara. Cem anos de imigração japonesa no Brasil: o
japonês como língua estrangeira. Tese de Doutorado. São Paulo: USP,
2008.
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, v. 05, n. 10, 1992, p.200-212. Disponível em:
<http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20c
apraro%202.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2018.

42
REMINISCÊNCIAS DE MILTON HATOUM: ORIENTE E AMAZÔNIA COMO
VETORES DA ARTE LITERÁRIA
Arcângelo da Silva Ferreira
Heraldo Márcio Galvão Júnior

Resumo: Com o presente artigo buscamos esboçar sobre a trajetória intelectual do


escritor amazonense Milton Hatoum, elucidando, essencialmente, a Amazônia e o
Oriente, real e imaginário. Estes motes literários herdeiros das experiências vividas
pelo literato desde sua infância. As lembranças, as memórias e seus espaços se
tornaram vetores da arte literária de Hatoum.
Palavras Chave: Milton Hatoum; Literatura; Oriente.

Resumen: A partir del presente artículo buscamos esbozar sobre la trayectoria


intelectual del escritor amazonense Milton Hatoum, elucidando, esencialmente, la
Amazonía y el Oriente, real e imaginario. Estos, motes literarios herederos de las
experiencias vividas por el literato desde su infancia. Los recuerdos, las memorias y sus
espacios se convirtieron en vectores del arte literario de Hatoum.
Palavras-claves: Milton Hatoum; Literatura; Oriente.

 “A lembrança mais remota da presença do Oriente na minha


infância vivida em Manaus remete-se a um espaço e a um corpo. O
espaço chamava-se Pensão Fenícia; o corpo é o de um homem
idoso, um libanês cujo nome revelava uma forte ressonância
islâmica. [...]. Nesse espaço/tempo que é a casa da infância nasce o
sentimento que nós temos do diverso: gênese do mundo do
exterior, percepção do Outro, abertura para o infinito. Na pensão
Fenícia e na outra casa da infância o Oriente era algo ao mesmo
tempo muito próximo e muito distante de mim.” (HATOUM, 2008,
p. 7 e 9).

A propósito da epígrafe, o artigo busca tecer um esboço da trajetória


intelectual do escritor amazonense Milton Hatoum, elucidando,
essencialmente, a Amazônia e o Oriente, real e imaginário. Estes, motes
literários herdeiros das experiências vividas pelo literato desde sua
infância. O entrecho acima indica o valor das lembranças, memórias e
seus espaços. Esses que se tornaram vetores da arte literária de Hatoum.
Iniciemos o percurso, portanto.

De acordo com a página 30 do jornal A folha de São Paulo do dia 19 de


outubro de 1991, o tempo era estável naquela manhã de sábado na
cidade com maior número de habitantes da América do Sul. As pessoas

43
que se propuseram a ler o jornal paulistano vislumbraram registros de
acontecimentos relativos àquele primeiro ano, em que o Brasil respirava
os ares de País que, após longos anos sem ter ido às urnas, com o
propósito da escolha democrática, havia, em 1989, eleito o primeiro
presidente, sob a égide da Constituição de 1988, “a mais progressista e
avançada das constituições brasileiras”. (NETTO, 2013, p. 239) .

Anos depois, a sociedade viveria as agruras das políticas econômicas que


regeram as primeiras décadas dos anos 1990. O resultado das eleições de
1989 colocou em cena um devastador efeito ao processo democrático,
esse que fora herdeiro das lutas sociais e políticas gestadas desde os
tempos das Ligas Camponesas, dos tensionamentos forjados no bojo do
regime civil-militar. Os brasileiros ficariam sabendo num átimo: apoiando
as bandeiras políticas vitoriosas nas referidas eleições, estaria o grande
capital; corolários desse processo, as manobras eleitoreiras, daquele ano
fatídico, instalaram seu orgânico projeto de hegemonia. (Idem, p. 240).

Apesar disso, essa conjuntura também plantou a arte: nas páginas do


referido jornal, no Caderno de Cultura, estava o depoimento de um
escritor amazonense que há poucos anos chegara da Europa, com
passagens por Barcelona e Paris, e também, possuía em sua bagagem as
experiências vividas na cena literária daquela que outrora fora a “terra da
garoa” (posto que São Paulo é conhecida como terra da garoa porque as
chuvas com partículas mais finas de água, as garoas, costumavam ser dos
meses de março a junho. Contudo, é bem provável que nos anos de 1990,
as modificações causadas a partir das transformações do espaço urbano,
na referida cidade, terem provocado a escassez dessas águas que,
inclusive, foram inspiração para músicos, escritores.). Nesse testemunho
do dia 19 de outubro de 1991, fora revelada parte da trajetória de
Hatoum. Inclusive, revelando o processo de criação do livro ‘Relato de um
certo Oriente’, seu primeiro romance publicado no Brasil. Nesse registro,
Milton Hatoum, alude às idiossincrasias de seu processo criativo. “Mil e
uma noites em busca de um estilo”, texto assim intitulado pelo escritor à
publicação do jornal, é, portanto, pleno de indícios quanto a essa
averiguação.

Nessa fonte impressa, o escritor revela, diríamos, o seu ritual de


passagem, posto que, com a publicação de “Relatos...” ele se tornaria um
escritor legitimado pela crítica literária. Com efeito, para esse primeiro

44
livro, depois de pelo menos três projetos de romance, gestados desde sua
passagem por São Paulo, Hatoum afirma que partiu da ideia de urdir um
texto lírico, onde diversas vozes narrativas em primeira pessoa iriam se
alternar.

Por sinal, o leitor atento ao Relato... percebe sinais da ideia a qual o


escritor se reporta nas páginas finais do referido livro, quando Hatoum,
evidencia uma de suas peculiaridades literárias – o fato de no próprio
enredo de seus livros sugestionar acerca dos processos de criação e
elaboração de suas obras. Portanto, deixa lugar relativo à metalinguagem:

 “Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas


ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se
embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de
todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância.
Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou
encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o
esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a
sequência de ideias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez
imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso,
à deriva, modulado pelo acaso.” (HATOUM, 2008, p. 147).

Noutro lugar, Hatoum registra que um dos vetores da literatura é a


ambiguidade: “É isso que o livro insinua. É o mistério em torno desse
Oriente que está um pouco nebuloso, e ainda não se sabe qual é o Oriente
do romance.” (El GEBALY, 2017, p. 1) É sabido que o escritor levou um
longo período para estruturar esse coral de vozes que, a propósito, vaza
um entrelaçamento das falas de suas personagens, como o fragmento
acima desenha. Foi na Europa que Hatoum iniciou a escrituração do
romance que viria a se tornar seu livro de estreia na literatura brasileira,
Relato...: iniciado na Espanha e terminado no Brasil. Afirma ele: “eu quis
pular o muro e fui morar fora do Brasil, nos anos 80, percebi que a
distância me ajudou a pensar de outra forma meu passado, minha família,
o Brasil. [...+. Percebi que tinha matéria para um romance.” (Idem). As
experiências vividas na Europa são significativas:

 “Um ano na Espanha e três na França foram marcados pelo estudo


das literaturas hispano-americanas e francesas. (...). Hatoum
sempre mostrou mais interesse pela arquitetura textual de autores

45
como Carpentier, Juan Carlos Onetti, Mario Vargas Llosa, Lezama
Lima, Juan Rulfo, Julio Cortazar, Gabriel Garcia Marquez. Sua obra
não partilha o barroquismo da maior parte desses autores, mas tem
alguns pontos em comum com a descrição de uma vida em clã de
seus efeitos no tempo.” (PIZA, 2007, p. 16).

Vejam, as generosas pessoas que estão lendo, que nosso escritor saiu do
Brasil como incipiente poeta e aspirante a contista. Contudo, as
experiências vividas através de suas andanças contribuíram, de forma
significativa para fazer-se romancista. Por suas palavras: “*...+. Sou muito
lento, meu ritmo é muito amazônico. A minha maior herança, minha
amazonidade está na meditação, na lentidão e no absoluto desprezo pela
pressa”. (LEAL, 2007, p. 1). É fecundo esse depoimento. Por um lado,
tenciona com a permanente ideia de que as culturas inscritas na Amazônia
guardam, historicamente, a indolência, se comparadas ao peculiar ritmo
civilizatório. Mas, se tais atitudes podem revelar, aos olhos de outrem, o
signo do atraso, por ser lento, essencialmente, surge, através do oficio de
Milton Hatoum eficaz e inteligente: a invenção do cotidiano no processo
de sua criação literária para “capitalizar vantagens conquistadas,
preparando expansões futuras e obter assim para si uma independência
em relação à variabilidade das circunstâncias. [...] um domínio do tempo
pela fundação de um lugar autônomo”. (CERTEAU, 2008, p. 99).

Paralelo a isso ele concebe a memória como uma espécie de “deusa


tutelar da literatura”, pois é a memória que entretece a narrativa de
Relato... nessa outra declaração o que foi dito é confirmado:

 “*...+. Só comecei a escrever o Relato quando a estrutura da


narrativa estava armada. Escrevi à mão depois datilografava tudo,
corrigia... Isso parecia não ter fim. Comecei em Barcelona continuei
em Paris e terminei em Manaus, em 1987. Não tinha pressa para
publicar o manuscrito. O livro só saiu em 1989, depois de muitas
correções. Demorei muito tempo para construir o coral de vozes da
narrativa. Fui movido por incertezas e hesitações.” (CARPEGIANNI,
2014, p. 1)

Parece que esse depoimento de Hatoum remete ao registro deixado pela


personagem que amálgama o coro de vozes, através de uma missiva,
inscrito no Relato...: “a vida começa verdadeiramente com a memória...”.

46
(HATOUM, 2008, p.19.). De fato, foi recorrendo à memória de seus
ancestrais que ele atinge o reconhecimento no mundo das letras. Como
ele mesmo afirma: “é preciso deixar passar o tempo, esquecer o que
passou pra que a memória reconstrua pela linguagem o que poderia ter
ocorrido”. (HATOUM, 1991, p. 3.). Vejam as prezadas pessoas que
chegaram até aqui: os indícios da memória são cruciais à literatura de
Hatoum. Observem o entrecho abaixo extraído de outro livro:

 “A memória é o único desafio do passado, de prestar contas com


ele, seja através de uma imagem, de uma história oral e escrita. É
como se, diante de uma ruína a gente tentasse imaginar a casa
antes de sua demolição ou destruição: quem morava ali, como e
que tempo viveram aquelas pessoas, como eles se relacionavam
entre si, etc. O ponto de partida são as ruínas, e a ficção é uma
tentativa de imaginar sua história, reconstruindo o que não existe
mais. *grifos de quem escreve esse artigo+” (HATOUM, 2006, p. 25).

É como se o fragmento fizesse o leitor perceber que o passado é um


conjunto de ruínas guardadas nas camadas da memória. (BENJAMIN,
1987, p. 226.). A imagem, desnudada por meio da linguagem, parece se
reportar às reflexões de Walter Benjamin sobre outra imagem: o quadro
do pintor suíço Paul Klee, intitulado Angelus Novus. Equivalente a isso, as
reflexões do mencionado filósofo a propósito do conceito de história. Diz
esse, também crítico de artes, que as ruínas são análogas aos
acontecimentos com os quais a história é narrada. Alguns acontecimentos
são herdeiros de lembranças felizes, outros de reminiscências traumáticas.
Mas todos inscrevem memórias, algumas evidentes outras latentes, no
tempo. (MATE, 2011, p. 211). Ora, “a história é objeto de uma construção
cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um ‘tempo saturado de
agoras’”. (BENJAMIN, 1987, p. 229). Nesse aporte reside a missão de se
valer daquilo que foi esquecido no tempo pretérito. Cabe à História, e por
extensão, à ficção, salvar o passado, elaborando no presente a história dos
silenciados: deixados nos escombros, velados pelas ruínas da memória;
como assevera Hatoum ao lembrar-se do valor da ficção, o imaginar a casa
e a sociabilidade entre seus moradores muito antes de sua demolição. Em
suma, tanto em Benjamin como em Hatoum a imagem das ruínas
pressupõe a referida acepção de história.

Às pessoas que estão lendo, é pertinente relembrar que a decisão do

47
escritor amazonense, no que diz respeito a estrutura narrativa de seu
primeiro romance, a qual foi inspirada na reminiscência de seus
ancestrais, deveu-se à notícia trágica que chegou até ele quando residia
fora do Brasil: “(...) a morte de um familiar, velho contador de histórias
orientais durante minha infância”. (HATOUM, 1991, p. 3.). Episódio que
fez Hatoum redefinir as veredas por onde sua literatura, a partir de então,
iria trilhar: “Para alguns escritores, o desejo de mediar o mundo pela
linguagem escrita nasce de uma ausência, de um certo inconformismo
face a realidade”. (Idem, p. 3.). Na peculiaridade de seu ofício de escritor,
urdiu o livro, primeiramente, à mão “entre Barcelona, Madri, Paris e
Manaus. Depois datilografei e terminei em 1986 ou no começo de 1987”.
(SERRÃO, 2017, p. 1). Assim, ‘Relatos...’ foi se delineando em diversas
cidades europeias, para ser finalizado em Manaus, quando Milton Hatoum
fazia aulas na Universidade Federal do Amazonas. Decerto, foram motivos
financeiros que fizeram com que Hatoum retornasse à cidade de Manaus.
(LEAL, 2010). Assim, no início dos anos de 1980, torna-se professor da
Universidade Federal do Amazonas ministrando aulas na disciplina de
Língua e Literatura Francesa.

Apesar de “Relatos...” ter sido um livro premiado não atingiu muitos


leitores, ficou mais no plano das academias. Diz Hatoum: “É mais difícil de
ser lido; o leitor tem que descobrir a voz do personagem e quem está
falando”. (SERRÃO, 2017, p. 1). Depreende-se dessa perspectiva o valor
da narração oral na literatura de Hatoum: “(...), a cultura do Outro estava
delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o
da narração oral”. (HATOUM, 2017, p. 1). Ao lado dessas vozes em
conversação, o entrelaçamento cultural entre o Oriente e o Amazonas. Aí
o literato deixava vazar sua relação afetiva com a cultura árabe-
amazonense, marcada por sua ancestralidade, pois se consideradas suas
vivências desde a infância, na casa, no ambiente familiar “(...) o pequeno
Oriente que me cercava (e do qual emanavam códigos visíveis e invisíveis)
foi decisivo”. (Idem). Mas seu desafio mais intricado fora romper com os
limites das constantes representações hiperbólicas e exóticas sobre o
Oriente e a Amazônia. Para tanto, segundo ele, diversas leituras
posteriores lhes “permitiram aprofundar a compreensão de dois mundos
complexos e distintos”. (HATOUM, 1991, p. 3). Necessário se fazia romper
aquelas representações do Oriente como enigmático e misterioso, pujante
na literatura de viagem que determinados escritores como Gerard Nerval
reproduziam, por exemplo. Irromper com visões etnocêntricas

48
igualmente, onde “o projeto literário serve ao expansionismo colonial. Por
isso, alguns desses textos não estão isentos de distorções, de observações
negativas sobre o mundo em que transitam os narradores.” (Idem)
Hatoum, em face da diversidade literária sobre o Oriente, como afirma,
degustou aquilo que lhe dera prazer. Foi, portanto a leitura de Viagem ao
Oriente, de Nerval e As mil e uma Noites que lhe deu chaves importantes
para compreender o valor simbólico dos ecos de uma determinada voz de
um narrador, mesmo após a morte (o narrador real e os imaginários).
(Idem)

Dentre as leituras com as quais já havia entrado em contato, quando em


sua passagem pelas aulas do curso de Teoria Literária da USP, nos anos de
1970, Jorge Luiz Borges foi uma profícua fonte fecunda. O qual
influenciaria na elaboração, principalmente, do Relato.. Dizendo de outro
modo, o Oriente imaginário de Borges, contribuiu significativamente com
as imagens elaboradas por Hatoum. Isso é declarado no texto “Passagem
para um certo Oriente” – prefácio elaborado pelo escritor amazonense
para o livro Milton Hatoum: entre o Oriente e a Amazônia, de Albert von
Brunn publicado no Brasil em 2018, pela editora Humanitas, o escritor
amazonense afirma que a literatura hispano-americana lhe fez também
conhecer versões imaginárias do Oriente:

 “(...), foi exatamente a leitura de algumas obras de Borges que me


proporcionou um conhecimento do Oriente. Um Oriente simbólico,
presente tanto nos comentários das traduções como em alguns
contos do livro El Aleph e em certos textos “híbridos”, em que o
leitor não divisa a fronteira entre a ficção e o ensaio. Além disso, um
dos tantos prólogos de Borges me despertou o interesse pela prosa
narrativa de Marcel Schwob, um escritor francês importante, mas
pouco conhecido. Depois de ter traduzido um livro de contos de
Schwob ambientado no Oriente percebi que essa tradução fora uma
homenagem sincera, ainda que modesta, de um leitor anônimo ao
escritor argentino. Com essas pistas de leitura deixadas por Borges,
viajei como bolsista para Europa, onde tive a oportunidade de
conhecer alguns arabistas espanhóis e franceses, assim como a
tradução de várias obras da literatura árabe: os relatos de viagem
de Ilbn Batutta, a narrativa lírica e erótica de Ahmed Tifachi e
Nafzawi, a mística mulçumana de Ibn Al Farid e outros textos com

49
os quais alguns poetas e romancistas espanhóis vêm mantendo um
diálogo fecundo.” (HATOUM, 2018, p.p. 14 e15).

Matrizes intelectuais, raízes imagéticas germinadas no Brasil, afloradas


através de leituras de arabistas conhecidos no velho continente.
Depreende-se dessa preposição que ‘Relatos...’ inscreve peculiar relação
com a Amazônia: uma representação na qual a cultura e os personagens
são elucidados de forma pujante. Refutando, assim, uma tradição literária
em que o espaço é privilegiado. Hatoum se desliga da ideia de Amazônia
como inferno verde. Por suas palavras, o espaço “é antes objeto de
reflexão do que cenário a ser protagonizado”. (HATOUM, 1991, p. 3).
Outra marca de Hatoum gira em torno de sua acepção acerca do matiz
regionalista na literatura; o que já está posto desde aquele livro de
poemas, mencionado linhas acima: para Hatoum narrar sobre a Amazônia
não precisou usar o mesmo recurso de alguns escritores regionalistas:
“reproduzir a fala cabocla”. (Idem.).

Em suma, de tanto procurar um tema, uma fatalidade diretamente


relacionada à perda drástica de um exímio contador de história, figura
significativa na vida de Hatoum, fará com que o literato perceba que a
trajetória de seus ancestrais, da qual ele fazia parte, era um palimpsesto
do qual, através da latente reminiscência, ele deveria recorrer para
construir e reconstruir a sua obra literária. Nas curvas das metáforas
dessas mil e uma noites, afloradas das lembranças de seus ancestrais,
Hatoum encontrou seu estilo. Muitos anos depois ele deixaria registrado
em seu segundo romance que “cedo ou tarde, o tempo e o acaso acabam
por alcançar a todos”. (HATOUM, 2000, p. 259). Ficara claro, assim, como
o literato menciona em outro depoimento que “a literatura não é apenas
entretenimento, não é apenas diversão. É um dos modos de ver o mundo
de forma complexa, oblíqua, e não direta. [...]. Literatura exige reflexão
*...+.” (SERRÃO, 2017, p. 1).

Referências
Arcângelo da Silva Ferreira é Professor Assistente B na Universidade do
Estado do Amazonas. Graduado em História pela UFAM. Mestre em
Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM. Doutorando em História
pela UFPA.
e-mail: asf1969@outlook.com

50
Heraldo Márcio Galvão Júnior é Professor Assistente B na Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará. Graduado em História pela Unesp.
Mestre em História pela Unesp. Doutorando em História pela UFPA.
Bolsista Prodoutoral CAPES.
e-mail: heraldogalvaojr@gmail.com

Fontes
CARPEGGIANI, Schneider. “Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum,
completa 25 anos”. In.: Suplemento Cultural do Diário do Estado de
Pernambuco nº 14 – Outubro 2104. Disponível:
www.suplementoculturalpernambuco.com.br. Acesso: 24/09/2017 às
01:02h.
EL GEBALY, T. M. A. “Milton Hatoum: ‘não há tantos tradutores de língua
portuguesa’”. In. : Revista Crioula. Maio de 2010 – Nº 7. Disponível em
http: // www.revistas.usp.br/crioula. Acessado em 13/10/2017 às 23:29H.
HATOUM, Milton. “Escrever à margem da História” – texto da participação
do autor em 4 de novembro de 1993 no seminário de escritores brasileiros
e alemãs, realizado no Instituto Goethe, São Paulo, p. 1. Disponível em
http/revistas.pucsp.br/index.php/fornteiraz/article/viewFile/12593/9167.
Acesso em 14/10/2017 às 04:13H.
Jornal O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1991, nº 584, ano VIII, p.
3. Caderno Cultura; seção Depoimento.
LEAL, Cláudio. Hatoum: a literatura é a arte da paciência – entrevista.
Disponível em: terramagazine.terra.com.br. Publicado quarta-feira, 19 de
setembro de 2007, 13H51. Acessado em 21/09/2017 às 14:35h.
Ruan de Souza Gabriel. Milton Hatoum: arquiteto do tempo. Disponível
em: época.globo.com/cultura/notícia/2017/10/milton-hatoum-o-
arquiteto-do-tempo.html. Acesso em 21/10/2017, às 16:03h.
SERRÃO, Cláudia Maria. Milton Hatoum fala sobre o processo de
constituição do livro ‘Dois irmãos’ e suas relações editoriais. Disponível
em: https:livreopiniao.com. acessado em 15/10/2017 às 09:54h.

Bibliografia
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” In.: Magia e técnica,
arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras
Escolhidas, volume 1. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio: Jaenne
Marie Gagnebin, 3ª edição – São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano : 1. Artes de fazer; 15 ed.

51
tradução de Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2008.
HATOUM, Milton. “ Amazonas, capital Manaus”. In.: NUNES, Benedito &
Hatoum, Milton. Crônicas de duas cidades: Belém – Manaus. – Belém:
Secult, 2006.
HATOUM, Milton. “Amazônia: um ciclo de sono e violência ou Motocu, o
demônio, cumpriu sua missão”. In.: ______________ et al. Amazonas:
Palavras e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo : o Autor; coedição
Livraria Diadorim, 1979.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Passagem para um certo Oriente. In: BRUNN, Albert
von. Milton Hatoum : entre Oriente e Amazônia. Tradução : Rafael Rocca
dos Santos. -São Paulo : Humanistas, 2018.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. – 1ª ed. – São Paulo :
Companhia das Letras, 2008.
MATE, Rayes. “O anjo da história ou por que o que para nós é progresso
para o anjo é catástrofe”. In.:__________ Meia-noite na história:
comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de história”;
tradução Nélio Schneider. São Leopoldo, RS : Ed. UNISINOS, 2011.
NETTO, José Paulo. “Em busca da contemporaneidade perdida: a esquerda
brasileira pós-1964”. In. MOTA, Carlos Guilherme (organizador). Viagem
incompleta. A experiência brasileira (1500-2000): a grande transição. 3ª
ed. – São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2013.
PIZA, Daniel. “Perfil Milton Hatoum”. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro
de. (org.) Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois
irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte. – Manaus : Editora
da Universidade Federal do Amazonas/ Uninorte, 2007.

52
NARRATIVAS ORAIS DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS 1980-2017
Raphaela Martins Pereira

Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa de Iniciação Cientifica vinculada ao


Laboratório de História Oral e Audiovisual do Amazonas (LABHORA-AM) do
Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas e seu objetivo é
refletir sobre memórias de mulheres chinesas que migram/migraram para Manaus no
interstício de 1980-2017. Para isso nos utilizaremos fundamentalmente dos diálogos
estabelecidos com as fontes orais, obtidas através de entrevistas que realizamos com
três chinesas migrantes e que versaram sobre suas Histórias de vida, seu trabalho e o
processo de migração. Entendemos que o modo de migrar de homens e mulheres são
diferentes e que refletindo acerca das memórias e experiências desses sujeitos
históricos podemos ter dimensões da História da imigração chinesa para o Brasil.
Palavras - Chave: mulher chinesa; imigração; história oral.

Abstract: The article is the result of a scientific initiation research of the Laboratory of
Oral and Audiovisual History of Amazonas (LABHORA-AM) of the Department of
History of the Federal University of Amazonas and the theme is about memories of
chinese women migrated to Manaus in interstice 1980-2017. To do this, we
fundamentally use the dialogues as oral sources, selecting the interviews we carry out
with the chinese migrants and their stories about life, work and the migration process.
We understand that the way of migration of men and women are different and
reflecting on the memories and experiences of these historical subjects we can have
dimensions of the History of Chinese immigration to Brazil
Keywords: Chinese woman; immigration; oral history.

No presente ensaio refletiremos sobre memórias de mulheres chinesas


que migram/migraram para Manaus no interstício de 1980-2017. Para isso
nos utilizaremos fundamentalmente dos diálogos estabelecidos com as
fontes orais, obtidas através de entrevistas que realizamos com três
chinesas migrantes e que versaram sobre suas Histórias de vida, seu
trabalho e o processo de migração.

Entendemos que os discursos colocados nas entrevistas não são a verdade


absoluta, mas a oralidade nos possibilita a olhar novos horizontes com a
memória. Compreendemos que o modo de migrar de homens e mulheres
são diferentes e que refletindo acerca das memórias e experiências desses
sujeitos históricos, podemos ter dimensões da História da imigração
chinesa para o Brasil.

No primeiro momento discutiremos a condição da China e quais fatores


levaram os chineses a migrarem para outros países. No segundo ponto

53
refletiremos a cerca da concepção do ser mulher na China, como a mulher
chinesa é vista dentro da sociedade na qual ela está inserida, visando
apresentar a história que há por trás de séculos de tradição e costumes
que mantinham a margem a mulher chinesa. E em seguida debateremos
em cima das fontes orais, aproximando-se das vivencias das mulheres
chinesas que migraram para Manaus.

De fato, a China vem ocupando um espaço maior na economia mundial, se


tornando uma grande exportadora, vários países importam seus produtos
sejam eles eletrônicos ou artigos diversos. O crescimento da economia
chinesa se baseia em uma política adotada a partir 1976 onde se instituiu
as ``quatro modernizações”: agricultura, indústria, defesa e ciência e
tecnologia. Essas medidas impulsionaram o país tanto internamente
quanto externamente, promovendo um investimento internacional
intenso a partir da década de 1990.

 “O estoque de capitais constitui-se, podemos dizer, como o “pulo


do gato” para que a China chegasse a ser hoje não apenas a
segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos, mas também o maior exportador e importador mundial.
Ademais, fomentando a entrada de capitais globais, a China
estruturou uma indústria nacional que passou a fabricar desde
manufaturados simples, a produtos de alta tecnologia, como carros,
motos, computadores, celulares, com vistas a exportação. (BRITO &
MACIEL, 2016)”

Essa abertura econômica para o exterior impulsiona os chineses a


migrarem junto com essas empresas ou se vinculando ao comércio de
artigos diversos, o que importa é o fato de que com um olhar para fora do
país economicamente, ocasiona perspectivas e expectativas em relação à
mudança de um país com uma população superior a um bilhão de
habitantes, onde a procura de emprego é bem maior. O jornal Estado de
São Paulo (2011) veiculou uma interessante reportagem, que dizia que:“O
Brasil é visto como a “bola da vez” por chineses em busca de um novo
país”.

Os investimentos chineses e o fluxo migratório são maiores nas cidades do


Rio de Janeiro e em São Paulo, mas atualmente Manaus vem ganhando
um olhar diferenciado nos dois âmbitos. Em nossas pesquisas, embora não

54
tenhamos encontrado dados estatísticos específicos acerca da presença
dos chineses em Manaus foi possível observar sua presença marcante no
centro da cidade. Várias lojas que constituem o comércio do Centro
pertencem a chineses. Outro elemento importante a ser notado é a
presença de empresas chinesas que atraídas pela isenção fiscal praticada
em Manaus, via Zona Franca, tem impulsionado a vinda de muitos
chineses para ocupar cargos estratégicos. Segundo o “Portal da
Amazônia”, três empresas chinesas devem abrir filiais no Polo Industrial
de Manaus no ano de 2014, as empresas Welling E GMCC (Guandong
Midea Toshiba Compressor Corporation), integrantes do Grupo Midea
Carrier, e mais o Grupo Hisense International CO. Ltda visam investir cerca
de US$ 15 milhões, projetando cerca de 20 mil empregos na capital
amazonense.

No presente, o nosso olhar recai sobre as mulheres chinesas, pois


entendemos também que os sentidos de migrar são diferentes para
homens e mulheres e desde nossas primeiras observações pudemos
perceber a presença significativa de mulheres que chegaram e ainda
chegam, seja acompanhando irmãos, pais, tios ou maridos ou mesmos
sozinhas. E são justamente as vivências dessas mulheres que nos
impulsionou à pesquisa. Compreender como reconstroem suas vidas, suas
relações, como se adaptam a uma nova cultura, se elas impõem e como
impõe suas culturas. Através dessas mulheres chinesas na capital do
Amazonas podem-se acessar as suas memórias desde suas vidas na China
até a vinda para Manaus, observando-se as dificuldades de sobrevivência
até a adequação de novos costumes e a procura de espaço em uma
sociedade e neste sentido, podemos também compreender a própria
constituição das relações sociais em Manaus. Seguindo essa perspectiva
utilizamos da oralidade para dar maior visibilidade a essas experiências.
Entendemos que a memória possui várias dimensões. Assim, não é apenas
o que lembramos, mas o que lembramos, porque lembramos e como
lembramos. É preciso considerar também os silêncios, os esquecimentos,
e fundamentalmente pensar em sua dimensão coletiva, ou seja, a
memória é histórica e sofre oscilações em dados momentos. Como
Michael Pollak enfatiza “A memória deve ser entendida também, ou,
sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um
fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constantes.” (POLLAK, 1989)

55
A história oral nos abra um leque de informações que não estão descritas
nos documentos oficiais, mas que não nos impede de consultá-los e
analisá-los criticamente. Janaina Amado aponta que “O uso sistemático do
testemunho oral possibilita a história oral esclarecer trajetórias
individuais, eventos ou processos que as vezes não tem como entendidos
ou elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes,
mulheres, crianças, miseráveis, prisioneiros, loucos.” (AMADO, 1995:125)

Trazer a tona a histórias dessas mulheres que na sociedade chinesa foram


deixadas de lado, mostrar suas relações com o mundo. É resgatar a
memórias dessas mulheres no presente, para interpretar o passado.

Para compreendermos as relações que as mulheres chinesas compõem


em Manaus é necessário situar-se na história da mulher na China.
Entendemos que a sociedade chinesa tem tradições milenares
culturalmente e socialmente. A mulher chinesa, por tradição e por ser
uma sociedade também patriarcal, ocupou por séculos uma posição
marginalizada e submissa.

 “A mulher chinesa tem um lugar apagado na sociedade chinesa. Ela


é o elemento Yin, escuro, noctívago, recolhido. O seu brilho lunar a
exercer-se, deve ser discreto e confinar-se aos aposentos interiores
da casa. Ela é dominada por um poder patriarcal que abarca todas
as esferas do seu mundo.” (ALVES, 2002)

A filósofa Ana Cristina Alves coloca que a mulher chinesa exemplar nos
séculos anteriores era aquela que seguia fielmente os preceitos da
submissão, castidade e obediência ao ser masculino, a mulher que vivia
para o lar, sem grandes sonhos e sem virtudes. Porém a filosofa apresenta
as mulheres que desafiavam todo o sistema, as mulheres do mundo, as
quais deviam ser evitadas apenas por sentirem o mundo como ele é “As
mulheres do mundo, com ou sem marido, eram aquelas que estavam de
algum modo, em contato com a sociedade que as rodeava. Viviam
comprometidas com o mundo do trabalho, da arte e, até do estrangeiro”.
(ALVES, 2002)

Podemos observar que a mulher chinesa foi submetida a uma educação


rigorosa e conservadora em que não tinha nem o direito de se expressar
sexualmente, pois isso ia de encontro aos valores impostos por uma

56
sociedade machista que visava controlar ao máximo essas mulheres.
Situemos que a China nesse momento da década de 1980 está em um
profundo processo de reforma política e social, mas entendemos que
culturalmente as mudanças são muito mais lentas. A China em 1949 se
tornou o Estado Socialista da China e as implementações a nova
constituição era a igualdade de gênero entre homens e mulheres.

Observamos que desde final do século XX, muitas leis foram incorporadas
na Constituição para garantir direitos das mulheres chinesas, mas será que
realmente essas mulheres gozam de todos os direitos descritos na lei? A
socióloga Fátima Patrício coloca que “Na prática, muitas dessas leis e
regulamentações não são implementadas ou fiscalizadas adequadamente,
muitos fatores (econômico, político e cultural) contribuem para o
desfasamento.”

Contudo, isso não significa que essas mulheres não lutem no dia a dia por
seus direitos, por seu espaço. As mulheres chinesas vêm vencendo
barreiras milenares nos últimos 40 anos, têm colocado suas vozes em
evidencia e seguem lutando pelos seus interesses e se emancipando.
Como Dona Toka uma das nossas primeiras entrevistadas nos conta como
foi sua chegada a capital amazonense:

 “Queria ir para os Estados Unidos, mas vim para o Brasil, certo. Daí
eu vim, fiquei sete meses em São Paulo. Passei um ano e meio em
Montes das Cruzes. Então depois de lá vim para cá isso em 1970,
1974. Daí para cá nós veio para Manaus. Primeiro local que eu
fiquei foi o bairro de São Francisco. Daí gostamos daqui.
Enfrentamos no alto e no baixo, dificuldade, enfim até hoje.”

Dona Toka migrou para outro país em um momento de intensas


mudanças na China, culturalmente e socialmente. Apesar dos chineses
impulsionarem a China economicamente, essas transformações acabam
não abrangendo todos na população, visto que o índice populacional da
China é muito elevado. Dona Toka migrou para outro país em buscar de
melhores condições de vida. Ela nos conta que quando chegou em
Manaus fora logo trabalhar com seu irmão em uma loja de eletrônicos que
tinham no Centro da cidade.

57
Dona Toka é super ativa nas atividades econômica de Manaus, ela nos fala
com bastante afinco “O que eu puder fazer pelo Amazonas, tô aqui.” É
importante problematizar esse discurso, pois, visto que ela é uma mulher
migrante em um país totalmente diferente do seu, e o interesse é ser
aceita para poder lucrar com suas atividades comerciais. Em um momento
da entrevista deixa soltar que está trabalhando com outros chineses para
trazer novidades para Manaus: “Agora, nesse momento estamos trazendo
de outras cidades, novidades pra Zona Franca, porque parece que não
tem. É na área de confecção, enfim trazendo empresas de fora para
montar indústria.”

Dona Toka é uma mulher ativa, com seus sessenta e poucos anos (Ela não
me revelou sua idade), casada, dona de uma loja de artigos chineses na
Rua Guilherme Moreira, personalidade forte e como ela mesma diz “Meu
compromisso é social”, na entrevista ressalta sempre que o que puder
fazer pelo Amazonas ela faz, e através da igreja ajuda pessoas com
doenças em Manaus com a acupuntura.

A chinesa Annie Wang, 30 anos, veio para Manaus a cerca de 2 anos, pois
seu marido é manauara e se conheceram quando ele estava na China a
negócios. Annie é da província de Anhui na China, seus pais são
fazendeiros e tem um irmão mais novo. Ela nos conta um pouco da sua
infância na China de forma bem alegre.

 “Durante a minha infância eu tinha muita diversão e boas


memórias, como vivíamos em uma aldeia, tínhamos mais liberdades
comparadas a outras crianças que viviam em cidades. Como nossos
pais estão trabalhando na fazenda, não tinham muito tempo para
restringir a gente do que fazer. Também toda nossa comida éramos
nós mesmo que produziam, tudo era natural.”

Sobre direitos e liberdade, Annie relata:

 “As mulheres na China hoje em dia são muito diferentes de 10-20


anos atrás, a maioria delas está na indústria. Mas, em relação às
roupas, as mulheres de 25 anos ainda se vestem bem mais
conservador do que as mulheres no Brasil. Nos direito das
mulheres, sinto que o Brasil está bem melhor, soube que aqui o
homem não pode bater na mulher, e se acontecer elas podem

58
denunciar. Para nós mulheres chinesas não temos essa lei muito
clara, e aqui as mulheres tem mais liberdade.”

Becky Liu, 28 anos, chegou em Manaus em 2010 ressalta que o machismo


ainda é muito latente:

 “Realmente no passado a mulher era bem submissa, ela não podia


assumir algumas posições. Por exemplo, eu jamais poderia assumir
o cargo que tenho na fábrica, no passado. Então depois da
revolução, as coisas começarão a mudar e hoje o cenário é
diferente. E a gente consegue ver muitas mulheres em cargos altos
na sociedade chinesa. Mas até hoje consigo também ver casos de
pessoas que... homens dizendo “não mulher vai ficar em casa, vai
cozinhar, vai cuidar de criança”... Mas eu no caso acabo trabalhando
mais, porque eu vou cuidar de filho, da casa e tudo mais.”

Com relação a sua vida em Manaus, ela diz que aqui é mais difícil para ela
devido à mobilidade e comida, o cardápio não é muito variado e ela sofre
mais pressão no trabalho por causa da sua relação com a China, ou seja,
os chefes chineses cobram muito mais dela do que os trabalhadores
brasileiros:

 “Mais difícil em Manaus: a vida de Manaus não é tão adequada


quanto à China, hoje em dia tudo em China é cada vez mais
desenvolvido do que Manaus. Aqui não há algumas compras,
nenhum lugar para jogar, menos produto pode comprar... Mais
pressão e tarefa no trabalho, não para uma mulher, mas como
chinesa.”

A oralidade nos ajuda a trazer luz para essas questões, no caso das
mulheres chinesas, nos auxilia a entender os contrastes que há em ser
uma mulher chinesa na China e em outro país. Janaína Amado expõe:

 “O sujeito quando fala de suas experiências/vivências, está


apontando para a forma como lida com as questões postas no seu
cotidiano, como reelabora seu passado partindo de suas
experiências presentes, pois ao rememorar seu passado, este vem à
luz do seu presente, as narrativas, portanto, ainda que sejam
reflexões individuais, estão dentro de um conjunto de valores,

59
sentidos e costumes que é também de grupo. Sendo assim,
compreende-se que as fontes orais conferem às pesquisas aspectos
que muitas vezes foram negligenciados pelas fontes escritas,
possibilitando dessa forma, alargar o entendimento e captar
intenções, sentimentos, razões e motivações de pessoas que
participaram ou tiveram algum envolvimento com os fatos e/ou
eventos ou processos que se deseja conhecer.” (AMADO, 1995)

Percebemos que as mulheres chinesas migram de uma forma diferente do


homem chinês, há uma carga psicológica, cultural e tradicional muito
presente em seu meio. O modo de se expressar, de se vestir, de agir ainda
é complicado, fazem tudo de uma maneira discreta, que não chamem
atenção. Podem ser consideradas mulheres do mundo, de casa, da vida,
mas antes de tudo elas são as mulheres que elas quiserem ser, que
discretamente vão assumindo seus lugares na sociedade, lutando
diariamente pelo direito de serem elas mesmas.

Podemos observar que há dois aspectos nas entrevistas de Dona Toka,


Annie e Becky, o primeiro como estabelecem ligações com o lugar em que
vivem, e o segundo é a forma como elas concebem o mundo em que
vivem. Dona Toka no momento da entrevista tenta esconder como foi sua
vida na China, porém Annie ressalta que a vida para as mulheres chinesas
é ainda difícil. E Becky mostra que sim é difícil, mas as mulheres chinesas
estão cada vez mais mudando seus destinos, traçando planos e ocupando
espaços que antigamente eram relegados a elas. Estão sendo agentes de
suas próprias histórias.

Referências
Raphaela Martins Pereira, graduanda do curso de História da Universidade
Federal do Amazonas.
Email: raphaelamartinspereira@hotmail.com

ALVES, Ana Cristina. A mulher chinesa contemporânea. Administração,


Macau, n.57, vol. XV, 2002-2003, p. 1015-1028
AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação
em história oral. História, São Paulo, v. 14, 1995, p.125-136.
BRITO, Cleiton Ferreira Maciel. MACIEL, Jeanne Mariel Brito de Moura.
Transformações do rural – urbano na China e os gerentes chineses no
Amazonas: novas conexões do trabalho. Revista Askésis, vol. 5, janeiro de

60
2016.
CHANG, Sheng Shu. Chineses no Rio de Janeiro. Leituras da História,
ed.17. ano II, p. 44-53, 2009
HERMANN, Pedro Thomas Vilela. Indicadores da atividade econômica na
China. Mestrado em Economia no Departamento de Economia da
Universidade Federal de São Paulo.
PATRICIO, Fátima Cristina das Neves. Os direitos da mulher na China.
Mestrado em Estudos Chineses da Universidade de Aveiro, 2011.
POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p. 200-2012.

61
LENDO O OCIDENTE A PARTIR DO ORIENTE: O NARRADOR MACHADIANO
EM QUESTÃO
Nelson de Jesus Teixeira Júnior

Resumo: O ensaio visa, através de uma perspectiva ficcional e histórica, discutir como
o Ocidente era lido através dos acontecimentos no Oriente, isso, por meio de uma
crônica datada de “1 de julho de 1876”, assinada por Machado de Assis, que circulou
no espaço carioca do Oitocentos. Esse escritor brasileiro operacionalizava ideias
diversas em favor da formação informativa do seu leitor, apesar de não ter precisão
acerca da composição desse leitorado. Essa narrativa machadiana viabiliza ampliar,
para nós, a forma de compreensão sobre o cronista e seu processo de apreensão do
cotidiano.
Palavras-chave: Machado de Assis; Oriente; Literatura

Resumen: El ensayo tiene como objetivo, a través de una perspectiva ficcional y


histórica, discutir cómo Occidente era leído a través de los acontecimientos en
Oriente, eso, por medio de una crónica fechada en “1 de julio de 1876”, firmada por
Machado de Assis, que circuló en el espacio carioca del Ochocientos. Este escritor
brasileño operaba ideas diversas en favor de la formación informativa de su lector, a
pesar de no tener precisión acerca de la composición de ese lector. Esta narrativa
machadiana permite ampliar, para nosotros, la forma de comprensión sobre el
cronista y su proceso de aprehensión de lo cotidiano.
Palavras-clave: Machado de Assis; Literatura; Oriente

Questões iniciais
O presente ensaio visa discutir sobre a maneira como o narrador
machadiano, em uma passagem da crônica de “1 de julho de 1876”,
estabelece diálogo entre os cenários políticos do Oriente e do Brasil com
vistas à formulação da visão crítica do leitor brasileiro. Trata-se, na
verdade, de uma conexão intercultural em que Joaquim Maria Machado
de Assis, através de seu narrador, põe em questão culturas diferentes que,
sem prejuízo, poderiam estabelecer aproximação entre si no ato da
compreensão sobre o cotidiano social e político de 1876, seja ele (o
cotidiano) carioca ou brasileiro. Ao final, colocaremos em diálogo a
Literatura e a História, áreas necessárias à compreensão sobre a
construção do leitor em seu tempo.

Joaquim Maria Machado de Assis contribuiu, sob o pseudônimo de


Manassés, à “Revista Ilustração Brasileira”, escrevendo uma série de
crônicas com o título de "História de Quinze Dias" e, dentre essas
narrativas, o texto de “1 de julho de 1876” traz, na apresentação, uma
referência ao Oriente. Essa referência levará o leitor da Revista a assumir

62
uma postura dialógica ao organizar sua compreensão sobre os cenários
internacional e local, bem como oriental e ocidental.

Esse processo de apresentar a cultura do outro enquanto algo que, ao


invés de nos afastar, nos aproxima, termina criando a condição saudável,
ao leitor do século XIX brasileiro, à reformulação de novos sentidos acerca
da cultura. Stuart Hall apresenta esse processo de identidade através das
seguintes considerações:

 “As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre "a nação",


sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem
identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com
seu passado e imagens que delas são construídas”. (HALL, p. 51,
2005).

Essas conexões entre culturas diferentes contribuíam para a formação


crítica de um leitor que não se restringia ao cotidiano próprio e, nesse
sentido, o narrador Manassés tinha papel destacado na narrativa em
questão. Wolfgang Iser amplia esse alcance ao leitor, através do texto
ficcional, da seguinte maneira:

 “O folhetim impõe ao leitor uma determinada forma de leitura; as


interrupções das conexões são melhor calculadas do que aquelas
que, durante a leitura de um livro, são produzidas por motivos
muitas vezes externos. No folhetim, elas têm uma intenção
estratégica. Os intervalos impostos ao leitor o forçam a imaginar
algo mais do que seria o caso numa leitura contínua do mesmo
texto. (ISER, 1999, p. 140).

Além das especificidades composicionais, as estruturais da crônica


reforçam toda a recepção que poderia alcançar. Então, o Oriente, para
muitos autores, não se configura como um lugar estranho ou, mesmo,
alheio a tudo que acontece no ocidente e, já no século XIX brasileiro, essa
perspectiva ocular parece tomar o narrador machadiano em determinado
momento de sua narrativa. O que parece inovador é, na verdade,
necessário à condição do próprio gênero crônica, visto que esse tipo de
texto tem, em sua concepção, a ideia de “tragar” tudo que diz respeito ao

63
cotidiano, seja ele antigo ou novo, local ou regional, nacional ou
internacional, oriental ou ocidental.

Crônica de “1 de julho de 1876”


Tudo cabia (e cabe) na crônica, afinal, o leitor desse tipo de texto
fragmentado não se assustava ao seu caráter em formato de mosaico, o
que justifica, para o narrador, usar de suas diversas estratégias narrativas
na composição do diálogo. Todo esse esforço de recuperar o cotidiano
para a crônica termina impactando na identidade de quem lê, pois, como
assegura Clifford Geertz: “*...+ nós somos animais incompletos e
inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura *...+”.
(GEERTZ, p. 36, 1989). Essa completude se dá por meio do
reconhecimento, também, do “mesmo” e do “diferente” que possuímos
diante de nossa relação com o outro. E tal aspecto parece presente na
discussão proposta pelo narrador machadiano.

Manassés inicia o texto fazendo alusão à tensão existente entre russos e


otomanos que, posteriormente, seria consolidada oficialmente enquanto
guerra russo-turca de 1877–1878. Apesar desse informe, guardadas as
devidas proporções, o narrador não isola o fato oriental ao que os
ocidentais brasileiros viviam (conforme observaremos posteriormente).
Segue a apresentação:

 “Pobre Oriente! Mísera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo


árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império;
império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o
granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão”.
(ASSIS, p. 29, 2011).

Para além da referência à tensão descrita, Manassés traz ao leitor nacional


um pouco da cultura oriental. Isso, ao apresentar aspectos
governamentais, religiosos e políticos que, ainda que não fossem
familiarizados ao leitor, por meio das associações à poesia, ao povo e à
pedra de granito, o receptor do texto poderia formular sua interpretação.

O narrador machadiano não parece satisfeito à apresentação anterior e,


sem abrir mão de sua visão sobre os fatos orientais, faz uma “carga” de
referências episódicas típicas da tensão que tomava aquele momento do
Oriente. Nesse instante, o receptor dessa narrativa poderia firmar

64
conclusões (ou dúvidas) sobre o decurso que tomava o Oriente naquele
instante e que, guardadas as devidas proporções, ecoariam em outros
lugares. Segue a passagem:

 “Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história


faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se,
corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície
civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e ideias. Só a ideia
muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o
harém, a cimitarra e o resto”. (ASSIS, p. 30, 2011).

Manassés, neste instante inicial da citação, parece não somente tratar da


questão do Oriente, mas, sobretudo, à questão do Ocidente, em especial a
do Brasil, visto que as modificações históricas são típicas do cotidiano de
todos, onde quer que vivam. O leitor desse texto era convidado, nesse
instante, a se abrir às mudanças que são típicas da história de qualquer
lugar, inclusive, à sua própria história local.

Nesse sentido, Oriente e Ocidente são apresentadas, também, como


lugares que apresentam um dinamismo próprio às transformações, o que
afronta à ideia de lugar encerrado, definido e inflexível às mudanças.

A postura do narrador machadiano, sem colocar o Oriente em uma


condição inferior ao Ocidente, direciona-se ao que, posteriormente,
reconhecerá Edward Wadie Said:

 “De maneira bastante constante, o orientalismo depende, para a


sua estratégia, dessa superioridade posicional flexível, que põe o
ocidental em toda uma série de relações possíveis com o Oriente,
sem que se perca jamais a vantagem relativa”. (SAID, 2007, p.19).

Ao invés de uma ideia de sobre posição entre os lados, Manassés partilha


de um pensamento de complementação pela via da diferença e da
semelhança. Desta forma, colocar Oriente e Ocidente em um espaço curto
de escrita é, também, uma tentativa de “contaminar” o leitor sobre a ideia
de que nos complementamos pela via das relações.

Em passagem posterior, na mesma crônica, o narrador machadiano traz


uma figura que “tomba” durante todo esse momento de transformação

65
política no Oriente: “Abdul-Aziz”. Sílvia Maria Azevedo identifica essa
figura política como Abd-ul-Aziz, o qual foi obrigado, em maio de 1876, a
abdicar em favor de seu sobrinho Murad. Vejamos o trecho citado:

 “Pelas barbas do Profeta! Há nada menos maometano do que isto?


Abdul-Aziz, o último sultão ortodoxo, quis resistir ao 89 turco; mas
não tinha sequer o exército, e caiu; e, uma vez caído, deitou-se da
janela da vida à rua da eternidade”. (ASSIS, p. 30, 2011).

A morte de “Abdul-Aziz” parece ser a tônica desse trecho acima, mas o


leitor entendia, também, que a autoridade desse último sultão ortodoxo
não tinha valor algum sem o apoio militar, o que põe em dúvida qualquer
qualidade individual do falecido diante do seu governo. A morte e suas
recompensas, o pós-morte, bem como o encontro com Alá após seu
último suspiro é retratado da seguinte maneira na narrativa machadiana:

 “Abdul explicou-se, referiu o seu infortúnio; mas o profeta atalhou-


o, clamando: — Cala-te! És mais do que isso, és o destruidor da lei,
o inimigo do Islã. Tu fizeste possível o gérmen corruptor das minhas
grandes instituições, pior que a fé de Cristo, pior que a inveja dos
russos, pior que a neve dos tempos; tu fizeste o gérmen
constitucional. A Turquia vai ter uma câmara, um ministério
responsável, uma eleição, uma tribuna, interpelações, crises,
orçamentos, discussões, a lepra toda do parlamentarismo e do
constitucionalismo. Ah! Quem me dera Omar! Ah! Quem me dera
Omar! Naturalmente Abdul, se o profeta chorou naquele ponto,
ofereceu-Ihe o seu lenço de assoar, — o mesmo que na mitologia
do serralho substitui as setas de Cupido; ofereceu-lhe, mas é
provável que o profeta lhe desse em troco o mais divino dos
pontapés. Se assim foi, Abdul desceu de novo à terra, e há de estar
aí por algum canto... Talvez aqui na cidade”. (ASSIS, 2011, p.31).

As “contaminações do Ocidente” sobre o Oriente não são bem vistas por


Alá e, nesse instante, o leitor da crônica, através das associações entre o
contexto descrito por Alá e o que ocorria no Rio, sabia muito bem o
porquê.

Em outras passagens da narrativa, o olhar de Manassés passa por


situações e locais diversos – como o Chile, por exemplo – que mantém

66
uma linearidade que perpassa entre a política, o político, as pessoas, a
sociedade mundial, a sociedade carioca... Terminamos essa pequena
discussão com a convicção de que já no século XIX brasileiro,
aproveitando-se do desenvolvimento da imprensa e do Brasil, os autores
já pensavam o Brasil através, também, das relações entre o Oriente e o
Ocidente.

Questões finais...
Dentro dessas questões envolvendo antigo x novo, oriente x ocidente,
nacional x internacional... vale lembrar o que propõe Nestor Garcia
Canclini:

 “Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e


o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos
habituados a encontrá-los. É necessário demolir essa divisão *...+”.
(GARCIA CANCLINI, p. 19, 1989).

O narrador da crônica parece convicto de que as relações não podem ser


estabelecidas por meio de compartimentos e de afrontas, afinal, se dessa
maneira proceder, o leitor terá uma imagem distorcida acerca das práticas
culturais.

Manassés, enquanto pseudônimo de Machado de Assis, parece contribuir


para uma visão política de seu leitor ao relacionar situações “longínquas”
às que aconteciam no dia-a-dia do leitor brasileiro no século XIX. As
situações discutidas no decorrer das passagens em análise possibilitam
afirmar que o narrador machadiano visava, além de aproximar seu leitor
às questões do Oriente, levá-lo à condição de compreender o Ocidente
por meio do Oriente. Afinal, ao invés de pólos excludentes, havia muitos
aspectos em comum entre esses dois lados.

Referências
Nelson de Jesus Teixeira Júnior é doutorando (2015 – 2019) do Programa
de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP,
campus de São José do Rio Preto – SP. Bolsista do Programa de Apoio à
Capacitação de Docentes e Técnicos da UNEB, PAC-DT. Atua como
professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus IX em
Barreiras-BA, lecionando a disciplina “Estágio em Letras”. E-mail: j-
nelson2004@ig.com.br

67
ASSIS, Machado de. História de quinze dias, história de trinta dias:
crônicas de Machado de Assis, Manassés. Sílvia Maria Azevedo (org.). São
Paulo: Editora Unesp, 2011.
GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair
da Modernidade. 2. ed. — São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 1989.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz
Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro 10ª Ed. Rio de Janeiro: DP e A, 2005.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético – vol. 2.
São Paulo: Ed. 34, 1999.
SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente.
Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

68
"FAÇA-SE O QUE SE QUISER – OS CHINESES POVOARÃO O BRASIL”: A
PRIMEIRA MISSÃO BRASILEIRA NA CHINA
Kamila Rosa Czepula

Resumo: Nesse breve texto, analisaremos a primeira missão brasileira realizada na


China em 1881, que tinha por objetivo estabelecer acordos comerciais e viabilizar a
vinda de imigrantes chineses para o Brasil Império.
Palavras-chave: Imigração Chinesa; Brasil Império; China Imperial

Abstract: In this brief text, we will analyze the first Brazilian mission held in China in
1881, which aimed to establish trade agreements and enable the arrival of Chinese
immigrants to Brazil Empire.
Keywords: Chinese immigration; Brazil Empire; China Empire

 “Pois perdemos todo o nosso latim. Bons ou maus, ativos ou


malandros, fumadores de ópio ou fabricantes de chá, baratos ou
caros, são os chins (denominação de época, usada para se referir
aos chineses) que não nos querem nem de longe, disse um
diplomata chinês, que não tem papas na língua. De onde se concluiu
que quem tinha razão na polêmica eram os que achavam os chins
muito bons; tanto que são eles que nos acham maus. E quem tinha
intenção de ir à China tem de mudar de rumo” (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 21 dez. 1879, p.1).

A notícia de que a proposta realizada pela delegação brasileira em


Londres, que tinha como fim a contratação de trabalhadores chineses, foi
rejeitada pelo marquês Tseng Chi-ce (ministro plenipotenciário da China
em Londres), se espalhou em território nacional como rastilho de pólvora.
Para muitos contemporâneos, esse episódio colocaria de uma vez por
todas um ponto final na calorosa discussão que se fazia época em todas as
esferas públicas, sobre a viabilidade ou não de se realizar uma imigração
chinesa em massa para o Brasil. No entanto, esse debate estava longe de
ter um fim, pois quem tinha a intenção de ir à China não mudou de rumo!

João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, Presidente do Conselho de


ministros e ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas; um dos
principais agentes na conversão do tema da mão de obra chinesa em
questão nacional (LESSER, 2001, p. 51), depois do inesperado não, ao
invés de decretar o fim de todos os projetos do governo Imperial que
versavam sobre a contratação de chins, resolveu arriscar, e assim, por

69
meio de uma manobra política, o plano de enviar uma missão Especial
Brasileira para a China saiu do papel. Eduardo Callado e Artur Silveira da
Mota foram nomeados pelo Imperador os enviados extraordinários e
ministros plenipotenciários da missão.

Antes mesmo de a tripulação ser composta, no despacho de 6 de


dezembro de 1879, Antônio Moreira de Barros (ministro dos Negócios e
Estrangeiros), repassa a Callado e a Mota o projeto do Tratado que
deveriam discutir na China, dentre os 10 artigos que compõem o
documento, destaca o 8º e 9º que regia sobre a emigração, e manifesta o
desejo do Governo Imperial de que fosse feita toda a diligência para
aceitação destes dois artigos. Porém, já sabendo das possíveis dificuldades
que estes nobres cavalheiros poderiam encontrar, o referido Ministro
recomendou que os mesmos buscassem dos governos britânico e
americano o apoio diplomático de pudessem necessitar, assim como,
realizassem um estudo preliminar, absorvendo todas as informações que
lhes fossem úteis para se sobressaírem nessa negociação.

Tal conselho foi posto em prática; Mota e Callado conseguiram, por


exemplo, por meio do marquês Tseng, cartas de recomendações e dados
sobre o modo como a missão deveria proceder na negociação do Tratado,
ao chegar ao Celeste Império. Sim, esse marquês foi o mesmo que disse
NÃO a proposta brasileira para obtenção de trabalhadores chineses.
Segundo Dantas (2006, p.128), os líderes dessa missão, muito
provavelmente com intuito de obter a adesão total do marquês Tseng,
omitiram os artigos a respeito da emigração. Desse modo, para o
marquês, a negociação se restringiria as estipulações relativas à amizade,
comércio e navegação. Para além das importantes contribuições dadas
pelo marquês Tseng, Callado e Mota ressaltam a conquista dos votos de
apoio a está missão de B. F. Torreão de Barros, encarregado de negócios
interino em Washington, e C. de Freycinet, ministro dos Negócios
Estrangeiros da República Francesa, sendo que este último ainda
concedeu um intérprete, o senhor Arnold Vissiére.

A bordo da corveta Vital de Oliveira, os encarregados da missão partiram


em 14 de março de 1880, do porto de Toulon, e chegaram ao porto de
Shanghai, 26 de junho de 1880. Tão logo desembarcaram Eduardo Callado
e Artur Silveira da Mota enviaram alguns ofícios ao conselheiro Pedro Luís
Pereira de Sousa (ministro e Secretário de Estado dos Negócios

70
Estrangeiros do Brasil), o primeiro para informar que haviam chegado a
terras chinesas e que pretenderiam seguir viagem para Tianjin em 1 de
julho, os outros foram para levar ao conhecimento dessa autoridade
alguns fatos, no qual se destaca os embaraços postos pelas autoridades
chinesas à emigração para Cuba, e de como a influência inglesa não foi de
todo estranha a está resolução.

Em Tianjin, os enviados extraordinários da missão trataram de logo entrar


em contato com o vice-rei Li Huang Chang, um dos estadistas de maior
prestígio da China, e um dos responsáveis por discutir Tratados com
nações estrangeiras. A respeito da primeira entrevista com o vice-rei,
Callado e Mota descreveram em ofício enviado em 19 de julho 1880, que
Li Huang mostrou-se sobremodo admirado do Brasil contar apenas com 58
anos de existência como nação independente, sendo que a China, disse-o,
“com visíveis sinais de orgulho, já era um Estado soberano há quatro mil
anos!”. Dentre as outras passagens mencionadas nesse ofício, destacamos
duas estratégias usadas pelos representantes do Império brasileiro; a
primeira foi de não declarar abertamente que o principal objetivo dessa
missão era de facilitar a emigração de chineses para o Brasil, no entanto,
de modo a querer suscitar uma boa impressão aos olhos do vice-rei,
informaram que no Brasil já havia um crescido número de chins, e ao
serem questionados de onde tinham ido para lá, os enviados informaram
que, “na maior parte, procediam das colônias chinesas de São Francisco,
do Peru, de Demerara e de Cuba, e que para o Brasil haviam ido por sua
própria conta” (CHDD, 2012, p. 54).

Notemos que nessa resposta dada, Callado e Mota omitiram a informação


de que muitos desses emigrantes que estavam em terras brasileiras eram
indivíduos que vieram ainda em 1814, numa tentativa do rei Dom João VI,
de cultivar chá (LEITE, 1999, p. 97). As remessas de chineses que vieram
por iniciativa de particulares, como o caso do negociante Manoel de
Almeida Cardoso em 1855 (ELIAS, 1971, p. 698) também não se fizeram
presentes, visto que a intenção era demonstrar que ‘a grande parte’ dos
chineses que aqui estavam vieram de outras nações por sua conta própria.
O fato de eles afirmarem que esses emigrantes teriam chegado por sua
‘conta própria’, foi muito pertinente, posto que naquela ocasião, tanto no
cenário chinês, como mundial, as denúncias sobre as formas de
recrutamento dos chineses, assim como os maus-tratos sofridos pelos
mesmos em países como Peru e Cuba, estavam gerando repercussões e

71
debates intensos (SILVA, 2016, p. 107). Logo, se havia um interesse por
parte dos chineses em ir para o Brasil, era a prova que as formas de
trabalho aqui seriam bem melhores do que as vivenciadas por eles em
outras nações.

Seguindo com esse jogo de palavras bem pontuadas, Callado e Mota


tentavam tecer uma teia de argumentos que pudesse convencer o vice-rei
de assinar o Tratado conforme os 10 artigos previamente formulados pelo
império brasileiro. Todavia, os trâmites dessa negociação não saíram bem
como o planejado, a começar que todos ali pareciam pouco saber sobre o
Brasil. Não é à toa, que na segunda entrevista dos enviados
extraordinários dessa missão com o vice-rei Li Huan, o mesmo ficou duas
horas na casa da legação, na qual a conversação foi exclusivamente a
respeito do Brasil. O próprio Eduardo Callado ao observar o que ele
classificou como a: “ignorância crassa que se acham os chineses de tudo
quanto respeita ao Brasil”, julgou conveniente mandar publicar no jornal
de maior circulação de Shanghai, o Shen-Pao, trechos que dessem alguma
ideia do nosso país.

Nessa segunda entrevistas, outros percalços surgiram, pois o vice-rei -


alegando estar sobrecarregado de afazeres e receando não conseguir
participar das inúmeras entrevistas que uma negociação deste porte
exigiria - nomeou mandarins de primeira classe, os senhores Ma Kien
Tchong e Taotaï de Tien-Tsin para auxiliarem na discussão do acordo.
Acrescentou ainda de maneira incisiva que a base dessa discussão partiria
de um projeto formulado pelo império chinês. E quando os enviados do
império brasileiro proferiram “que não tinham a pretensão de pedir à
China nada mais do que ela havia concedido nos últimos tratados que tem
celebrado”, o vice-rei prontamente redarguiu que “os antigos tratados
continham cláusulas que originavam graves embaraços ao seu governo e a
que este, não obstante, teve de submeter-se por força de circunstâncias”,
o que não era o caso agora (CHDD, 2012, p. 57).

Nas demais entrevistas, Callado e Mota teriam que discutir um projeto


proposto pelos chineses, no qual a maior parte dos artigos versava a uma
convenção puramente comercial. Tal contexto fez com que os enviados
dessa missão mudassem suas estratégias, e o que antes era tratado nas
entrelinhas, passou a ser proposto na forma de emendas, mais ou menos
explícitas. Consequentemente, algumas divergências surgiram.

72
De um lado os comissários chineses afirmavam que tinham ordens
expressas do Tsung-Li Yamên (ministro dos estrangeiros) para não
admitirem uma só palavra no tratado a respeito de emigração, e que isso
não deveria ser nenhuma surpresa, posto que o império brasileiro já havia
sido informado em Londres, de que essa era a disposição do gabinete de
Pequim (Beijing). Do outro, Eduardo Callado e Artur Mota replicavam que
a insistência nesse assunto fundava-se justamente nos precedentes dessa
missão, pois segundo eles:

 “a exclusão, no tratado, de qualquer cláusula relativa à emigração,


indicava que, nas nossas negociações, haviam prevalecido as
prevenções desairosas para o nosso país, que procurou criar uma
sociedade particular inglesa (a Anti-slavery Society), na memória
dirigida ao marquês Tseng e publicada na imprensa européia;
memória em que se nos atribuía o desígnio de querermos
perpetuar, com coolies, a escravidão dos negros que tendia a
extinguir-se no Brasil” (CHDD, 2012, p. 70).

Acrescentaram que viam com pesar que o gabinete de Beijing tivesse se


deixado impressionar com aquela que classificaram como “torpe
denúncia”, e a partir de então, abundaram em considerações no sentido
de demonstrar que a acusação realizada pela Anti-slavery Society não
tinha fundamentos. Começaram colocando em relevo os generosos
intuitos da lei do ventre livre. E com a intenção clara de evidenciar as
ações que faziam o governo para assegurar o bem estar dos imigrantes
que procuravam o solo brasileiro, expuseram algumas notícias do Jornal
do Commercio que descreviam a excelente recepção que os imigrantes
recebiam ao chegar à Capital do Rio de Janeiro, destacaram inclusive uma
que mencionava a chegada de 40 chins. Quanto à alegação de que os
chins seriam tratados como ‘escravos amarelos’, Callado e Mota
retorquiram, afirmando que a partir do momento em “que a China tivesse
um agente diplomático e agentes consulares no Brasil, não devia recear de
que os seus súditos ali fossem tratados de modo diferente do que o são os
súditos de todas as outras nações”, e prosseguem dizendo:

 “que para os dois países era uma experiência a fazer-se e que, se


esta não provasse bem para os chins, o governo chinês podia
sempre obrar como tem obrado em relação à emigração para o

73
Peru e para Cuba, que de fato cessou há alguns anos, não obstante
achar-se regulamentada em convenções especiais”.

Cabe ressaltar como os argumentos e as considerações utilizadas por


Callado e Mota nessa discussão, divergem daquelas apresentadas e
debatidas no cenário nacional. Se durante toda a negociação da missão os
enviados extraordinários colocaram os chins em caráter de emigrantes, e
até em pé de igualdade com os outros súditos das outras nações. Nos
debates travados em território brasileiro essa igualdade não só não existia
como os trabalhadores chineses jamais foram visto como ‘imigrantes’,
tanto que era consenso que o chinês seria apenas uma machina de
trabalho, e não um imigrante com direitos a se radicar e criar raízes
(DEZEM, 2005, p. 101). Esse posicionamento pode ser verificado de
maneira explícita nas palavras do próprio Sinimbu ainda no Congresso
Agrícola (1878), quando afirmou que a mão de obra chinesa seria apenas
um

 “instrumento transitório da nossa riqueza, ela operará entre nós a


substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, desbravará o
terreno e abrirá os caminhos por onde a emigração da Europa
correrá mais tarde a disputar a posse do solo de nossa Pátria”
(CONGRESSO AGRÍCOLA, 1988, p.125).

Deste modo, esse deixar entender que os chins viriam para o Brasil em
condição de imigrantes, era mais um artifício de oratória empregado por
Callado e Mota, e já que a palavra emigração era expressamente proibida
nesse tratado, viram uma brecha, e propuseram a seguinte emenda no
artigo 1º:

 “Haverá paz perpétua e amizade constante entre S. M. o Imperador


do Brasil e S. M. o Imperador da China, seus herdeiros e sucessores,
bem como entre seus respectivos súditos. Estes poderão, d’ora em
diante, ir livremente de um para o outro país das altas partes
contratantes, quer para fins de comércio ou de trabalho, quer como
residentes permanentes, ou como simples viajantes; obterão, nos
estados respectivos das altas partes contratantes, uma plena e
inteira proteção para suas pessoas, suas famílias e suas
propriedades, e gozarão de todos os direitos, vantagens e

74
franquezas que houverem sido ou vierem a ser concedidas aos
súditos da nação mais favorecida”.

Depois de muito relutarem, e de algumas concessões, os enviados


extraordinários conseguiram manter uma cláusula no Tratado que
estabelecia a faculdade dos súditos chineses de irem livremente para o
Brasil. E por conta de alguns acontecimentos políticos que estavam
acontecendo na China e receosos de perder o que já haviam alcançado,
Callado e Mota, mesmo admitindo algumas lacunas e principalmente
defeitos de forma no Tratado, assinaram-no em 5 de setembro de 1880.

Com vista do tratado assinado, Arthur Mota recebe ordem do Governo


Imperial de retirar-se para o Brasil. Eduardo Callado permanece na China
até outubro de 1882. Nesse ínterim, Callado ficou responsável por pleitear
junto ao governo da China as alterações requeridas pelo governo
brasileiro, o que levou a formulação de um novo Tratado, que foi assinado
em 3 de outubro de 1881. Concomitantemente com essa atribuição oficial
foi designado que Eduardo Callado colhesse informações e produzisse um
plano que facilitasse ao Brasil a aquisição de mão de obra chinesa. O
mesmo fez um detalhado estudo, no qual concluiu que a melhor opção
seria contratar os serviços de uma companhia chinesa, a China Merchants
Steam Navigation, pois a mesma possuía trinta vapores de primeira classe,
com amplas acomodações e estava pronta para negociar o
estabelecimento de uma linha regular de vapores de três a quatro mil
toneladas, capazes de conduzir de 1.000 a 1.200 passageiros, propondo
fazer seis viagens redondas por ano, entre a China e o Brasil.

O estudo feito por Callado foi tão bem aceito pelo governo que no mês de
outubro do ano de 1883, um dos dirigentes da Companhia, o senhor Tong
Kingsing, veio até ao Brasil para conversar diretamente com o Imperado D.
Pedro II sobre a instauração dessa linha de vapores. O alvoroço causado
pela chegada desse dirigente foi tão grande quanto à certeza de que a
emigração de chineses estava a alguns passos de acontecer, tanto que em
um ensaio crítico publicado pelo Jornal do Commercio em 18 de outubro
de 1883, na primeira frase constava: “Faça-se o que se quiser – os
chineses povoarão o Brasil”.

75
Considerações Finais
O sucesso dessa empreitada aparentemente garantira que o Brasil
receberia braços chineses, mas não foi o que ocorreu. Um amplo
movimento intelectual, social e político se mobilizaria, na mesma época,
pressionando gradativamente o governo em relação a essa questão.
Devido ao espaço limitado desse texto, resta-nos deixar uma abertura: por
que a imigração chinesa não aconteceu em grandes proporções nesse
período no Brasil? É o que analisaremos em outros momentos, ao longo
do desenvolvimento de nossas pesquisas de doutorado.

Referência:
Kamila Czepula é doutoranda do programa de pós-graduação em História
da UFRRJ. E-mail: kamiczepula@gmail.com

Fontes:
CONGRESSO AGRÍCOLA. Edição fac-similar dos Anais do Congresso
Agrícola realizado no Rio de Janeiro em 1878. Rio de Janeiro: Fundação
Casa Rui Barbosa, 1988.
Documentação Diplomática da Missão à China (1879-1882). Cadernos do
CHDD, nº 20. Rio de janeiro: Centro de História e Documentação
Diplomática, 2012.
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1879. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Crônicas, reportagens, e colaborações
diversas.
Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1883. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Crônicas, reportagens, e colaborações
diversas

Bibliografia:
DANTAS, Fábio Lafaiete. Origem das relações entre o Brasil e a China: a
missão especial de 1879. Recife: Liber, 2006.
DEZEM, R. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os
orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas,
2005.
ELIAS, José Maria. Os Debates sobre o trabalho dos chins e o problema da
mão de obra no Brasil durante o século XIX. In: Anais do VI Simposio
Nacional dos Professores dos Professores de História. Goiania:ANPUH,
setembro de 1971.
LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e

76
sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 1999.
LESSER, J. A negociação da identidade nacional: minorias e a luta pela
etnicidade no Brasil. Editora Unesp, SP, 2001.
SILVA, João Ítalo de Oliveira e. A experiência Coolie na América Latina
(Cuba, Peru e México) e as possibilidades de uma história transnacional.
Temporalidades – Revista de História. Belo Horizonte, 2016, V. 8. N. 2.

77
A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DECOLONIAIS PARA O ORIENTALISMO
DE EDWARD SAID
Pepita Afiune

Resumo: O artigo propõe um debate teórico a respeito da importância dos estudos


orientalistas do palestino Edward Said e a contribuição que os estudos decoloniais
podem oferecer às suas discussões. Quando Said atribui às significações criadas sobre
o Oriente por parte do Ocidente como uma reminiscência da herança colonial,
atribuímos aos estudos decoloniais o protagonismo de uma crítica análise cujas raízes
estão na pós-colonialidade. A Decolonialidade emerge como um enriquecimento dos
estudos pós-coloniais, sem deixar de mostrar a importância que eles tiveram no
âmbito de seu contexto histórico. Autores que contribuem para este debate fazem
parte deste grupo de pensamento que propõe um desprendimento epistemológico,
como Alejandro Haber, Walter Mignolo, Santiago Castro-Gómez, Aníbal Quijano e
Boaventura Santos. A linha de pensamento dos referidos autores entende o
orientalismo de Said como uma perpetuação da academia norte-americana, o que fez
com que o Oriente continuasse sendo pesquisado a partir de matrizes de pensamento
imperialistas e metropolitanas.
Palavras-chave: Orientalismo; Decolonialidade; Pós-Colonialidade.

Abstract: The paper proposes a theoretical debate about the importance of the
orientalist studies of the Palestinian Edward Said and the contribution that the
decolonial studies can offer to their discussions. When Said ascribes to the meanings
created about East by the West as a reminiscence of the colonial heritage, we attribute
to the decolonial studies the leading role of a critical analysis whose roots are in
postcoloniality. Decoloniality emerges as an enrichment of post-colonial studies, while
showing the importance they have had within their historical context. Authors who
contribute to this debate are part of this group of thought that proposes an
epistemological detachment, such as Alejandro Haber, Walter Mignolo, Santiago
Castro-Gómez, Aníbal Quijano and Boaventura Santos. The line of thought of the said
authors understands the Orientalism of Said like a perpetuation of the North American
academy, what caused that the East continued being investigated from imperialist and
metropolitan arrays of thought.
Keywords: Orientalism; Decoloniality; Postcoloniality.

Introdução
Edward Said foi um palestino que viveu em sua terra e no Egito educado
dentro dos pressupostos ocidentais, e depois se mudou para os Estados
Unidos. Sofreu preconceito através do racismo e dos estereótipos
culturais que se tem aflorado neste país, mas se formou em Princeton e
Harvard, o que foi possibilitado pelas condições favorecidas de sua família.
Se interessou pelos estudos a respeito dessa fronteira excludente
estabelecida entre Ocidente e Oriente. Abolir esse antagonismo seria um

78
desaprendizado necessário para se estabelecer novos tipos de
relações.Said (1990) focou seus estudos na análise destes encontros
culturais como formas de sustentação de um olhar imperialista e
atribuição de uma imagem de exotismo a tudo aquilo conhecido como
oriental. Compreendendo essa atribuição de significações ao Oriente
como uma reminiscência da herança colonial,atribuímos aos estudos
decoloniais o protagonismo de uma análise do Pós-colonialismo,suas
próprias bases, propondo um desprendimento epistemológico.De tal
modo, a Decolonialidade emerge como um enriquecimento dos estudos
pós-coloniais, sem deixar de mostrar a importância que eles tiveram no
âmbito de seu contexto histórico.

O Orientalismo e os estudos decoloniais


O Orientalismo remonta às práticas ocidentais ao apreenderem os povos
do Leste associando-os ao exótico, ao mágico e ao mistério, ao mesmo
tempo que não enxerga a sua heterogeneidade.O Oriente é uma criação,
uma tradição de pensamento e representação. As duas entidades
geográficas (Ocidente e Oriente), desse modo, apóiam e, em certa
medida, refletem uma à outra (SAID, 1990, p. 16).

Essa tradição se fez presente desde a literatura de viagem e os romances,


dentro dos quais podemos destacar Shakespeare, Byron, Pope, entre
outros, que aplicaram o termo “oriental” para designar geograficamente
os povos da Ásia ou do Leste, determinando-os culturalmente e
moralmente. Toda essa produção no campo literário alocou o Oriente ao
campo simbólico, evocando a imaginação europeia. O Orientalismo se
expandiu no meio científico através de muitos periódicos e as
especializações na área.

O Oriente foi orientalizado, assim como Flaubert representou Kuchuk


Hanem, uma cortesã egípcia que o escritor conheceu, criando um modelo
de mulher oriental, mas sem deixar que ela falasse por si mesma. Ele
relatou sobre suas emoções e a sua história, cunhando um modelo típico
de mulher oriental. Esse exemplo citado por Said (1990) representa a
relação de poder estabelecida entre Ocidente e Oriente. A partir da
análise das estruturas de poder de Foucault, Said entende o Orientalismo
como uma teia de relações de poder, seja o poder político, intelectual,
cultural, econômico e moral.

79
Said não acredita em uma desfiguração do Oriente, mas em uma criação
de representações. Toda representação tem um propósito, conforme uma
tendência contemporânea. Quer dizer, o Orientalismo cria representações
do Oriente fornecendo imagens que são necessárias naquele específico
momento, ilustra uma concepção de um Oriente ideal para si, ou o que ele
acha que o Oriente deveria ser.

O Orientalismo desta forma é o reflexo de uma cisão mundial entre duas


regiões antagônicas. Essa relação começou com o próprio conhecimento
que o Ocidente estabeleceu a respeito do Oriente através de viagens de
descobrimentos, contatos por comércio, estudos científicos, e a literatura
produzida por romancistas e viajantes.

Alejandro Haber ao analisar a conjuntura da colonialidade europeia sobre


os países asiáticos, africanos e americanos, entende que nesse processo
houve a criação de um discurso ocidental sobre “o outro”, isto é, o outro
só é visível na sombra que o Ocidente projetou. O Ocidente criou uma
imagem do Oriente, então podemos entender que a dominação também
ocorreu no campo das representações. O Oriente foi criado para que o
Ocidente se definisse em contraposição à sua imagem, estabelecendo um
antagonismo (os povos orientais são bárbaros e os ocidentais civilizados)
(Haber, 2011, p. 06).

Said (1990) cita o exemplo do Egito, que recebia adjetivações divergentes


entre os franceses e os ingleses. Os britânicos, entendiam o Egito como o
seu próprio quintal, isto é, uma extensão da Europa, mas que antes,
precisava ser dominada. Uma região que necessitou de sua educação, de
sua civilidade. Assim, toda a conquista francesa no Egito foi sufocada,
dando lugar à dominação britânica.Já os franceses, por haverem perdido o
seu espaço, enxergavam o Egito de forma imaginativa, um Oriente de
memórias, ruínas, mistérios. A própria Egiptologia surgiu na França,
originada pelos estudos de Chapollion e toda a contribuição de suas
descobertas a partir dos estudos da pedra de Roseta. Portanto, seriam os
franceses fantasiosos e os britânicos políticos. Lord Cromer havia
comparado os franceses a uma donzela encantada, inexperiente e iludida,
e os ingleses a uma mulher de idade, com fortes valores morais e
experiente. Independente destas representações se divergirem, a questão
é que elas se mantiveram dentro da matriz colonial de poder.

80
A ocupação do império britânico no Egito em 1882 foi estimulada pelo
interesse no Canal de Suez, que interligava o Oriente ao Mar
Mediterrâneo, e pelo algodão. Lord Cromer entendia os egípcios e os
indianos como se todos fossem iguais,desconsiderando as suas
especificidades. O problema é que esse presumido “conhecimento” dos
povos por parte de Cromer, pressupunha uma superioridade intelectual
dos ocidentais sobre os orientais, sendo os últimos, povos desprovidos de
pensamento lógico e racional, energia e iniciativa, dados a intriga, mentira
e letargia, totalmente opostos à “nobreza europeia”. Assim, Cromer
“delineava a relação entre a Inglaterra e o Oriente em termos de posse,
em termos de um grande espaço geográfico inteiramente possuído por
um eficiente senhor colonial” (SAID, 1990, p. 220).

Após a Segunda Guerra Mundial o imperialismo se deslocou da Europa


para os Estados Unidos. Cresceu o interesse norte-americano pelo
Oriente, como podemos perceber no aumento dos estudos orientalistas
nas universidades e os interesses políticos e econômicos pelos países
considerados dentro dessa determinação geopolítica.

A partir destas análises de Said (1990) podemos propor a importância do


pensamento decolonial nos debates a respeito do Orientalismo, que de
acordo Walter Mignolo (2007, p. 27-28) surgiu a partir da modernidade,
como uma reação à dominação europeia nos continentes americano,
africano e asiático. Após as independências africanas e asiáticas no início
do século XX houve uma turbulência de movimentos em prol da
descolonização, o que também foi impulsionado pela Conferência de
Bandung (1955). Mas somente após a Guerra Fria com o seu resultado
consolidado, o pensamento decolonial começou a traçar sua própria
genealogia.

Na década de noventa surgiu um grupo de pensadores latino-americanos


inspirados pelos debates pós-coloniais que criou o Grupo Latino-
Americano de Estudos Subalternos no ano de 1993. Mas ocorreu uma
ruptura dentro deste grupo, pois muitos intelectuais viviam nos Estados
Unidos e reproduziam a sua epistemologia. Surgiu assim, mais uma
inquietação, entendendo que os países latino-americanos estariam se
libertando de suas amarras coloniais europeias, porém, mantinham-se
presos dentro de uma nova forma de dominação que surgira
recentemente na História, o imperialismo norte-americano.

81
O giro epistêmico decolonial surgiu como uma consequência da formação
e implantação da matriz colonial de poder. Na verdade, o emprego desse
termo “giro epistêmico” é porque o pensamento decolonial para Mignolo
(2007, p. 28), se inicia no século XVI nas próprias colônias americanas. Ele
acredita que Felipe Poma de Ayala, cronista inca peruano e Otabbah
Cugoano, ex-escravo ganês que se tornou um abolicionista, teriam aberto
as portas para o pensamento decolonial quando abordaram a escravidão
sofrida por indígenas e negros. Esse pensamento se construiu a partir da
experiência e a memória destes povos.

Portanto, ao propor uma espécie de genealogia do pensamento


decolonial, Mignolo (2007) afirma que o mesmo pressupõe sempre a
diferença colonial, isto é, a exterioridade de conceitos impostos de “fora
para dentro”. Essas imposições entendem a cosmovisão de uma etnia
como uma racionalidade universal.

Para debater essa monopolização do saber, Santiago Castro-Gómez (2005,


p. 25) trabalha com a conceitualização do que ele denomina de
“Hybrisdelpunto cero”, que representa um começo epistemológico
absoluto, como uma forma de controle social e econômico sobre o
mundo, construindo uma visão legítima e apoiada pelo Estado. O autor
nos mostra que as dominações coloniais e imperialistas foram legitimadas
através do imaginário a respeito dos grupos subalternizados,
inferiorizando-os.

Para se compreender a Decolonialidade, é necessário esclarecer que


existiu na década de setenta, uma tendência de pesquisas a nível
internacional denominada de Pós-colonialismo, que identifica essa relação
de dominação entre colonizador e colonizado, tendo dentre os seus
pensadores, o próprio Edward Said, Gayatri Spivak, Franz Fanon e Homi K.
Bhabha.

Shiv Visvanathan (2009, p. 490) analisa que esse grupo de teóricos


representa:

 “*...+ uma formidável textualidade do saber do Terceiro Mundo nos


Estudos Culturais nas universidades ocidentais. Enquanto
intelectuais, eles são heróis não apenas para a comunidade

82
acadêmica do Terceiro Mundo, mas também para os indianos,
cingaleses e paquistaneses do Primeiro Mundo”.

Foram as bases teóricas do Pós-colonialismo que geraram as críticas


decoloniais. Dentre outras influências que o Pós-colonialismo recebeu
além do Pós-Estruturalismo foucaultiano é oportuno destacar o Pós-
modernismo de Jean François Lyotard (1988) que aponta para uma
mudança epistemológica ocorrida após as duas grandes guerras que
marcaram o fracasso da modernidade e a desconstrução de seus
paradigmas. O autor afirma que aconteceu durante o século XX uma
ruptura com determinados conceitos modernos. Surgiu uma descrença,
uma tentativa de superação das metanarrativas características da
modernidade como as grandes ideias clássicas e instituições ocidentais. De
tal modo, o Pós-colonialismo adota uma crítica da modernidade
eurocêntrica, analisando as representações e discursos sobre essa relação
entre Ocidente e Oriente, e de que forma ela participou dos períodos pós-
independência.

Os pensadores decoloniais acreditavam que a epistemologia que


influenciava os pós-coloniais era em sua maioria advinda de teóricos
europeus, o que ainda alimentaria uma reminiscência eurocêntrica de
pensamento, assim surgiu a necessidade de descolonizar a própria
epistemologia e a metodologia.

Mesmo que muitos decoloniais entendam os pensadores pós-coloniais


como mantenedores de uma episteme europeia, como também afirma
Boaventura Santos (2009, p. 445): “Acabam por ser eurocêntricos na sua
luta contra o eurocentrismo”, podemos compreender que seus estudos
foram os pioneiros da posição crítica contra a colonialidade, da qual, Said
e seus estudos sobre o Orientalismo fazem parte.

A colonialidade além de se desenvolver no plano econômico, político e


cultural, se infiltrou no âmbito intelectual. De acordo Aníbal Quijano
(2005), a colonialidade do poder estabeleceu uma hierarquia das raças,
impondo a superioridade da raça branca. Esse discurso eurocêntrico
impõe uma colonialidade do ser ao desumanizar o outro e uma
colonialidade do saber ao propor o conhecimento eurocêntrico como
hegemônico.

83
A expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziu à
elaboração de uma perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à
elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente,
isso significou uma nova maneira de legitimar as antigas ideias e práticas
de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e
dominados. Os povos conquistados e dominados foram colocados numa
situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus
traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais
(Quijano, 2005, p. 188).

Quijano (2005) ressalta que houve uma combinação de dois fatores que
transformaram o Ocidente em uma hegemonia mundial, o etnocentrismo
colonial e a classificação racial universal, que entendem os europeus como
naturalmente superiores aos outros povos.

Castro-Gómez (2005, p. 37) esclarece que houve um projeto ilustrado


baseado no ocidentalismo que postula a superioridade da raça branca
sobre todas as outras. Kant já havia formulado uma teoria baseada no
determinismo ambiental, em que a cor da pele indicaria a capacidade de
um povo de educar a natureza na qual ele estava inserido e a sua
capacidade de superar esse determinismo. Assim, ele entendia que
africanos, americanos e asiáticos seriam raças imaturas, porque não
superaram o determinismo da natureza. Isso porque, o pensamento
ilustrado desenvolveu uma visão de si mesmo, um discurso sobre suas
próprias origens, segundo a qual, a modernidade seria um fenômeno
exclusivamente europeu. A Europa possuiria em sua ótica qualidades
únicas que permitiram o seu desenvolvimento científico e racional.

Fundada na superioridade étnica e cognitiva, a colonialidade se mostra em


várias esferas: modos de conhecer, produzir conhecimento, símbolos,
modos de significação, e intelectualidade, uma violência epistêmica.
Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Walter Mignolo ampliaram a noção de
discurso colonial introduzida por Said, entendendo que modernidade e
colonialidade são duas caras da mesma moeda.

Os decoloniais nos mostram que a Europa não pode ser considerada um


sistema independente dos demais continentes. Foi a própria conquista
que lhe possibilitou essa vantagem determinante sobre os dominados. A

84
modernidade é o resultado desses eventos, não a sua causa. A conquista
trouxe novos mercados, novas fontes de matérias-primas, e força de
trabalho escrava que permitiu a “acumulação original de capital”
(CASTRO-GÓMEZ, 2005, p.50). A Europa só passou a ser o “centro”,
quando constituiu suas colônias como “periferia”.

A Decolonialidade permite a construção de marcos epistemológicos que


pluralizam o saber. Essas práticas propõem revalorizar os conhecimentos
ancestrais que podem ter aplicação na contemporaneidade, isto é,
entender estes conhecimentos como ciência, que também deve fazer
parte dos processos educativos, quebrando as barreiras da academia.
Conhecimentos estes, que foram outrora marginalizados pelo
cartesianismo e pela ciência moderna.

Boaventura de Sousa Santos (2009) acredita que para se chegar a uma


história global, que compreenda os diversos povos e suas formas de
conhecimento, é necessário:

 “*...+mostrar que tudo o que é atribuído ao Ocidente como sendo


excepcional e único – sejam ela a ciência moderna ou o capitalismo,
o individualismo ou a democracia – têm paralelos e antecedentes
em outras regiões e culturas do mundo” (p. 446).

O epistemicídio, que seria essa violenta forma de invisibilização dos


saberes não-ocidentais, considera a excepcionalidade ocidental, que não
reconhece cruzamentos, continuidades e semelhanças com os demais
conhecimentos no mundo (Santos, 2009).

Foi esse giro epistêmico que denunciou a expansão imperialista dos


Estados Unidos, e a necessidade de resistência latinoamericana. Esse
movimento foi também chamado de latinoamericanismo, entendido como
uma manifestação cultural frente a um confronto geopolítico (Mendieta,
2016, p. 11).

Assim, questionamos junto a Vinícius Caixeta (2015, p. 55) quais seriam os


elementos para substituir a episteme ocidental moderna? Como combater
as ciências sociais euro-americanas, criadoras de dicotomias redutoras? A
resposta começa pela alternativa teórica produzida fora desse eixo.
Existem estudos, teorias e metodologias, mas estão muito longe de

85
constituírem-se como parte das ciências humanas e sociais clássicas, as
chamadas “teorias situadas”. Nesse âmbito o autor nos lembra que
também não é difícil encontrar teorias contaminadas pelas epistemes
euro-americanas, pois existe uma grande dificuldade em se construir um
lugar crítico de enunciação, livre das amarras coloniais. Mas é possível que
possamos privilegiar informações contextuais no lugar das universalistas,
que construamos redes internacionais de pesquisa (Caixeta, 2015, p. 66).

 “Assim, é possível se resguardar dos falsos essencialismos e


reconhecer que a história do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste é
uma só grande história entrelaçada, híbrida, sem superiores e
inferiores, com a preocupação em revelar efetivamente as
especificidades das várias realidades locais” (CAIXETA, 2015, p. 71).

Considerações Finais
Procuramos suscitar uma problematização a partir de discussões teóricas
a respeito da epistemologia ocidental que se colocou como a referência
para os estudos dos povos recém descolonizados historicamente.

Para esta discussão, estabelecemos diálogos sobre o Orientalismo e as


teorias decoloniais para se chegar a uma compreensão de que estas
práticas foram embrionadas em um contexto histórico marcado pela
dominação europeia sobre os países colonizados. Essa hegemonia além de
dominar o campo econômico, militar e cultural, desenvolveu-se no campo
epistêmico e ontológico.

Todo encontro cultural mesmo que seja embrionado em um momento de


dominação de um agente sobre outro, desenvolve trocas de elementos
culturais, como foi o caso do encontro entre Ocidente e Oriente.

Para concluir, entendemos que o Pós-colonialismo foi o início da


genealogia de um pensamento que culminou na década de 90 com uma
proposta de desprendimento epistemológico. Edward Said fez parte deste
grupo, trazendo uma nova discussão a respeito do Orientalismo e como
ele foi praticado pelas reminiscências colonialistas.Porém, essa crítica das
colonizações efetuada por Said não conseguiu se desvencilhar das amarras
científicas ocidentais, pautando-se em estudos dos grandes clássicos para
pensar nas relações entre Ocidente e Oriente. Suas obras foram
construídas a partir de um arcabouço teórico ocidental. Said e seus

86
companheiros pós-coloniais foram assim entendidos por muitos cientistas
sociais do Sul (Caixeta, 2015) como perpetuadores da academia norte-
americana, o que obscureceria as maneiras em que os Estados Unidos
empregam as suas formas de Orientalismo em sua dominação imperialista
(Mignolo, 2007). Assim, o Oriente continuaria sendo entendido a partir de
matrizes de pensamento metropolitanas, por isso os estudos decoloniais
entraram em cena, trazendo uma nova forma de se produzir
conhecimento.

Referências
Pepita de Souza Afiune é doutoranda em História pela Universidade
Federal de Goiás. Bolsista CAPES/FAPEG. Mestra em Ciências Sociais e
Humanidades (UEG). Contato: pepita_af@hotmail.com

CAIXETA, Marcus Vinícius Gomes. Desconstruindo essencialismos: a


análise do imperialismo de Edward Said, os estudos pós-coloniais e as
sociologias do Sul. Temáticas.N.45/46. Campinas, dez. 2015. p. 53 – 74.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La hybris del punto cero. Ciencia, raza e
Ilustración en la Nueva Granada (1750-1816). Bogotá: Editorial Pontificia
Universidad Javeriana, 2005.
HABER, Alejandro. No metodología payanesa: notas de metodología
indisciplinada. Revista Chilena de Antropología. n. 23. Santiago:
Universidad de Chile, 2011. p. 09-49.
LYOTARD, Jean-François. O Pós-moderno. 3ª ed. Tradução Ricardo Corrêa
Barbosa. Rev. Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1988.
MENDIETA, Eduardo. Ni Orientalismo ni Occidentalismo: Edward Said y el
Latinoamericanismo. Tabula Rasa. N. 5. Bogotá - Colombia, julio-
diciembre, 2006. p. 67-83.
MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y
apertura. Un manifiesto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL,
Ramón. El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más
allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad
Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia
Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 25 – 46.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano
de CienciasSociales, 2005. p. 117 – 142.

87
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. 1ª
reimp. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Ocidente Não-Ocidentalista? A
filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: MENESES,
Maria Paula e SANTOS, Boaventura de Sousa (orgs.). Epistemologias do
Sul. Coimbra: Edições Almedina S.A., G.C. Gráfica de Coimbra, Ltda., 2009.
p. 445 – 486.
VISVANATHAN, Shiv. Encontros culturais e o Oriente: Um estudo das
políticas de conhecimento. In: MENESES, Maria Paula e SANTOS,
Boaventura de Sousa (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições
Almedina S.A., G.C. Gráfica de Coimbra, Ltda., 2009. p. 487 –505.

88
DE TRANSNACIONALISMO TIBETANO À UM LOCAL DE PEREGRINAÇÃO: O
CASO DO TEMPLO BUDISTA KHADRO LING DE TRÊS COROAS-RS
Jander Fernandes Martins
Vitória Duarte Wingert

Resumo: O presente trabalho é fruto de uma Etnografia realizada no Templo Budista


Khadro Ling, localizado na cidade de Três Coroas-RS a 91km da capital gaúcha Porto
Alegre. O objetivo desse trabalho foi perscrutar os motivos que levavam inúmeros
sujeitos de diversas localidades e distintas cosmovisões religiosas a visitar esse
ambiente. A coleta de dados se deu por meio de entrevistas semidirigidas. Estas, foram
realizadas durante dois finais de semana culminando em um total de 30 entrevistas.
Partindo da Antropologia da Religião. Nesse sentido, compreender como uma religião
oriunda de uma cultura oriental milenarmente constituída, instaurou-se em outro país,
o qual é culturalmente distinto, especialmente, em seus processos e manifestações
(religiosas) se demonstraram relevantes. Os resultados desse estudo nos convidam a
abrir discussão e reflexão sobre a o papel do budismo em uma região, histórica e
culturalmente, constituída de uma identidade germânica protestante. Além disso,
constatou-se que, mais do que uma questão de migração étnica, trata-se em nosso
entendimento de uma questão de “transnacionalismo religioso”.
Palavras-chave: Antropologia da Religião; Budismo; Etnografia; Transnacionalismo
Religioso.

Abstract: The present work is the result of an Ethnography held at the Khadro Ling
Buddhist Temple, located in the city of Três Coroas-RS, 91km from the capital of Porto
Alegre. The purpose of this work was to examine the reasons that led many people
from different locations and different religious worldviews to visit this environment.
Data collection took place through semi-structured interviews. These were held during
two weekends culminating in a total of 30 interviews. Starting from the Anthropology
of Religion. In this sense, to understand how a religion originated from an oriental
culture that was constituted for a thousand years, was established in another country,
which is culturally distinct, especially in its (religious) processes and manifestations.
The results of this study invite us to open discussion and reflection on the role of
Buddhism in a region, historically and culturally, consisting of a Protestant German
identity. Moreover, it has been found that, rather than a matter of ethnic migration,
this is a question of "religious transnationalism".
Keywords: Anthropology of Religion; Buddhism; Ethnography; Religious
Transnationalism.

Introduzindo, objetivando e justificando


O presente trabalho é fruto de uma Etnografia realizada no Templo
Budista Khadro Ling (site: http://templobudista.org/), localizado à 7km da
cidade de Três Coroas-RS. Cidade localizada no Vale do Paranhana
(mesorregião metropolitana). Fundada em 1846 por imigrantes alemães

89
vindos da Região do Vale dos Sinos (região metropolitana). Está localizada
há 91km da capital gaúcha Porto Alegre. Os resultados desse estudo se
pautam na análise discursiva gravadas e transcritas dos visitantes nesse
local. A coleta de dados utilizadas foi por meio de entrevistas semi-
dirigidas. Estas, foram realizadas durante dois finais de semana
(domingos). Durante essas visitações conseguiu-se realizar o
levantamento de 30 entrevistas (visitantes abordadas).

Por Etnografia se entende como uma das modalidades de pesquisa


qualitativa existentes e considerado o método de pesquisa mais
apropriado para estudos antropológicos. Tal definição parte da premissa
que se exige “contato direto com o objeto” que se está estudando
(grupos, comunidades, entidades, instituições, etc.), caracterizando-se
também, por uma observação prolongada, profunda e densa entre
pesquisador e grupo pesquisado. (Oliveira: 1996; Magnani: 2002)

O objetivo dessa etnografia girou em torno de algumas indagações


centrais, para os autores, que por sua vez serviram de perguntas-chaves
ao abordar os visitantes desse templo budista, quais sejam: “que motivos
levam as pessoas a visitar um Templo de orientação budista?”, “o que
pensam sobre o budismo?”, “concordam com a
filosofia/doutrina/cosmovisão budista?”, “considera o templo um lugar de
peregrinação?”, “visitar esse local lhe proporciona...?”.

A justificativa para esse trabalho está no seu diferencial, seja em uma


perspectiva histórica, ou sociológica ou ainda em uma perspectiva
antropológica (elegida pelos autores como premissa interpretativa do
fenômeno aqui estudado). Tal perspectiva nos permite compreender
como uma religião oriunda de uma cultura, totalmente diferente e que é
milenarmente constituída, instaurou-se em outro país, culturalmente
distinto, em seus processos e manifestações (religiosas, em especial).
Nesse caso, mais do que uma questão de migração étnica, trata-se em
nosso entendimento de uma questão de “transnacionalismo religioso”.
(Csordas: 2009; Smith; Guarnizo: 1998) Outra justificativa que esse
empreendimento etnográfico pode contribuir, é no processo de
elucidação de como se um determinado local pode vir a se constituir como
um “local de peregrinação”, para simpatizantes budistas, bem como para
sujeitos adeptos de outras orientações religiosas.

90
Esse templo budista em Três Coroas-RS, conforme consta em seu site e
conforme atestam seus moradores é vinculado a uma
entidade/associação maior:

 “O Chagdud Gonpa Brasil faz parte de uma rede internacional de


centros cuja origem é o Chagdud Gonpa no Tibete, um monastério
fundado no século XV. Estabelecidos em 1994 por S. Ema. Chagdud
Tulku Rinpoche, os centros brasileiros oferecem ensinamentos e
práticas de meditação da tradição Nyingma do Budismo Tibetano
Vajraiana”. (https://chagdud.com.br/quem-somos/)

Historicamente, esse templo foi idealizado, nas palavras dos adeptos, Sua
Eminência Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002). Sua migração para o
Brasil ocorreu no ano de 1994. Nesse período, estabeleceu no país o
Chagdud Gonpa Brasil iniciando a construção do seu centro principal, o
Khadro Ling, em Três Coroas-RS. Atualmente, esse local está sob a
regência espiritual de Chagdud Khadro desde 2002.

Um espaço de peregrinação? A relação religião – território –


territorialidade no Khadro Ling
Historicamente, como dito acima, esse templo budista teve sua
construção iniciada na década de 1990. Conforme dito no site dessa
entidade, Rimpoche migrou para o Brasil, como forma de fugir do regime
comunista tibetano. De acordo com Csordas (2009) e Smith; Guarnizo
(1998), o “transnacionalismo” pode ser “de cima” ou “de baixo”. Em seus
estudos antropológicos, o primeiro, se refere ao processo ocorrido pelas
chamadas religiões históricas (catolicismo, protestantismo, islamismo) dos
países do hemisfério norte que “viajaram bem” aos países coloniais e aí,
instauraram-se por meio de conversão e de ações missionárias. Já o
“transnacionalismo de baixo”, atualmente é entendida como os
movimentos pentecostais e neopentecostais originados nos países do
hemisfério sul (das ex-colônias) que buscam criar filiais, núcleos e redes
religiosas nos países da África, Ásia, América do Norte e Europa, exemplo,
disso é o caso da IURD. (Oro: 2017) esse movimento articulado das
religiões também, conhecidas como “missão invertida” (Freston: 2001),
“evangelização ao contrário” (Mary:2008) ou ainda, como “evangelização
de retorno” (Trombetta: 2013) nas últimas décadas se intensificou.

91
Dito isso, cabe indagar: - o budismo se enquadraria nesse conceito de
transnacionalismo religioso? Se sim, em qual?

Em nosso entendimento, uma resposta inicial (e ambígua) seria, por um


lado, “não”. Pois um dos elementos centrais da manifestação cultural,
filosófica, doutrinária, em uma palavra, religiosa dessa vertente budista,
não é o proselitismo. E, como consta na história dessa rede budista, sua
migração para o Brasil se deu por questões de ordem ideológica e política,
não sendo por missão religiosa de conversão. Exemplo disso, foi o fato de
que nas visitas realizadas nesse templo, os moradores e recepcionistas
estejam sempre de prontidão para atender toda e qualquer necessidade
dos visitantes. Em todos os momentos, buscam esclarecer, responder e
auxiliar os visitantes, sempre transparecer discursos, convites e/ou
atitudes evasivas de conversão. Por outro lado, responderíamos “sim” se
por transnacionalismo se entender: “construção e organização de
subjetividades e representações; serve como ponto referencial de
conduta, de visão de mundo, de perspectivas de futuro e significação das
experiências sociais”. (Tedesco; Mello, 2005: 2) essa concepção, distinta
das supracitadas, toma como justificativa basilar a ideia de que a “A
transnacionalidade também se processa dentro da própria perspectiva
universalista inerente nas religiões *...+” (Tedesco; Mello, 2005:11) Nesse
sentido, o budismo tibetano de Rimpoche estaria dentro dos preceitos de
transnacionalismo religioso.

Pontos de vistas à parte, a questão crucial é o fato desse templo ser


visitado semanalmente por centenas de pessoas das mais variadas
regiões, estados e países. Tal fenômeno o torna um local de peregrinação?
Para responder essa indagação, urge discutir dois outros elementos, a
saber: a territorialidade e território.

A questão da religião e território, em Brasil, é um campo de estudos


profícuo, dado a diversidade e pluralidade de manifestações culturais e
religiosas. Nesse sentido, Zeny Rosendahl (2005: 12933) compreende essa
relação como algo intrínseco a religião e a construção de seu local:

 “O território é, em realidade, um importante instrumento da


existência e reprodução do agente social que o criou e o controla. O
território apresenta, além do caráter político, um nítido caráter

92
cultural, especialmente quando os agentes sociais são grupos
étnicos, religiosos ou de outras identidades”.

Assim, a partir do momento em que Rimpoche escolheu um determinado


território, nas proximidades da cidade gaúcha, tornou esse local em um
agente social produtor de cultura (religiosa). E como tal, torna-se aquilo
que a autora denomina de “territorialidade religiosa”:

 “Territorialidade religiosa, por sua vez, significa o conjunto de


práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de
controlar um dado território, onde o efeito do poder do sagrado
reflete uma identidade de fé e um sentimento de propriedade
mútuo”. (Rosendahl, 2005: 12934)

Evidentemente, que controle local e poder sagrado no caso desse templo


budista se dá em função de permitir certo fluxo livre de visitantes em
algumas das dependências nesse local e fato de que os visitantes gozam
de acesso gratuito, a própria noção de senso comum e o imaginário social
produzido em torno dessa visão do que é ser budista? e o que é budismo?
Como se portar perante ambiente budista? leva o visitante a demonstrar,
agir e controlar seus corpos e posturas de forma ordenada, disciplinada de
tal modo que foge, muitas vezes de seus hábitos e características
personalísticas. Como menciona um dos visitantes disse: “eu sou tão
agitada e aqui me sinto tão tranquila”.

Esse controle da subjetividade que a visitante menciona adquirir quando


adentra esse local, exemplifica o que Rosendahl (2005: 12934) assevera:
“A territorialidade é fortalecida pelas experiências religiosas coletivas ou
individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que
constituem seu território. De fato, é pelo território que se encarna a
relação simbólica que existe entre cultura e espaço”.

Nesse sentido, a subjetividade e as mudanças comportamentais que os


frequentadores afirmam vivenciar nesse local, materializam esse sagrado
que, simbolicamente, o templo busca impregnar seus visitantes.

Em termos de materialidade simbólica, pautando-se na concepção de


Grabar (1998), o espaço “da” religião envolve a imbricação de três

93
elementos valorativos, a saber: “1) O espiritual; 2) o cultural e; 3) o
estético”. Nesse sentido, Gil Filho (2011) assim explica esses valores:

 “(1) *...+ que congrega os significados místicos e éticos atávicos da


religião que simbolicamente se refletem em forma, imagem e
prática social. (2) emerge das práticas sociais e dos costumes,
conferindo o seu caráter de representação. Remete a consciência
do seu passado e situação geográfica. (3) é a forma de expressão e
imagem inspirada em valores religiosos e que possuem uma
diversidade devido ao contexto histórico do lugar".

Portanto, levando em consideração esses arcabouços conceituais


supracitados, o templo budista Khadro Ling pode ser considerado um local
de peregrinação. Ainda que, como se verá abaixo, majoritariamente, seus
frequentadores tenham cosmovisão e pertencimento a outros grupos de
orientação religiosa.

Os visitantes, suas motivações e concepções


Como dito acima, consideramos esse templo como local que bem pode ser
entendido como local de peregrinação, assim como a vinda do budismo
tibetano para Três Coroas como inserido nos movimentos migratórios e de
transnacionalismo religioso. Essa perspectiva, acredita-se ser corroborada
pelos dados sistematizados a partir da etnografia realizada no local, pois
além das observações e diálogos abertos, envolveu algumas indagações
afim de esmiuçar esse fenômeno.

Assim, majoritariamente, os informantes nesse estudo trouxeram como


resposta à pergunta “que motivos levam as pessoas a visitar um Templo
de orientação budista?”os seguintes motivos que os levam a visitar o
templo: “curiosidade” e “convite de familiar ou conhecidos”. Ainda que
buscassem justificar e incrementar suas motivações, dentre os visitantes
abordados, apenas seis frequentadores mencionaram que a motivação
central não era as citadas acima. Ao contrário, alegaram ser
“frequentadores assíduos”, pois “visitavam o templo todos os domingos
para participar das meditações” e “buscavam sempre se envolver nas
atividades momentos de estudo e ações ocorridos no ambiente”.

Decorrente disso, sempre se lançavam a seguinte indagação: “você


considera o templo um lugar de peregrinação?”. Nem tanto

94
surpreendente para os autores, mas não deixa de ser significativo foi o
fato de a essa pergunta, a totalidade dos informantes responderam que
sim. Tratava-se de um local de peregrinação, pois era um “local sagrado”
e, como tal, todos os visitantes de alguma forma eram “abençoados e
iluminados”.

Ora, refletindo sobre as motivações e concepções dos informantes, nos


remetemos à Graburn (1989), quanto Bauman (1998), que discutiu acerca
da oposição entre “turismo e peregrinação”. Nesse sentido, Steil e
Carneiro (2008, p. 110-111) explica correlacionando os autores acima que
peregrinação tendo conotação de “tradição”, enquanto o turismo de
“modernidade”. no entanto, a questão que se evidencia é o fato de saber
se esse templo pode ou não ser considerado um local em que
“peregrinação e turismo religioso” se materializam de forma concreta?

Tomando emprestado os termos utilizados por Steil (2003) em seu estudo


“romeiros-turistas” e “romeiros tradicionais”, transportando-os para o
nosso estudo e para o local estudado, teríamos então “peregrinos-
turistas”, o qual representaria os aqueles visitantes movidos por convite
e/ou curiosidade. Os “peregrinos-tradicionais”, representando os
participantes mais assíduos nas atividades ocorridas e promovidas no
templo. No entanto, essa questão ainda está em aberto, visto que, por
exemplo o estudo realizado por Carneiro (2005) que objetivava focar os
novos locais de peregrinação, citam por exemplo o chamado Caminho das
Missoes (RS) e não citam o templo Khadro Ling. Isso se deve ao fato de o
budismo ser considerado uma religião tradicional ou ao contrário,
considerar o budismo como uma religião da chamada Nova Era? (Steil;
Carneiro, 2008)

Nesse sentido, Steil; Carneiro (2008: 112) se referindo sobre as novas


rotas de peregrinação no Brasil, afirmam o seguinte:

 “*...+ ao estarem desvinculadas das tradições religiosas que lhe


deram origem, parecem indicar um novo modelo de peregrinação,
cuja especificidade está na sinalização de uma crescente autonomia
da ‘experiência do sagrado’ em relação à mediação das instituições
religiosas tradicionais. É justamente porque a religião se tornou
uma experiência mística interior que os seus mediadores já não
necessitam de uma investidura sagrada institucional adquirida no

95
âmbito de uma comunidade de crenças e valores partilhados.
Cabendo apenas, aos novos mediadores, assegurar e garantir os
meios e os recursos simbólicos para que cada um possa fazer seu
próprio caminho”.

Levando em consideração o que os autores asseveram, cabe indagar: não


seria então o templo budista Khadro Ling de Três Coroas-RS um novo local
de peregrinação (e turismo) religioso? Essa indagação, em nosso
entendimento fica em aberto, visto que esse local merece mais estudos e
debates sobre sua relação religiosa e cultural em constante contato com
visitantes.

Por fim, a terceira e última questão-chaves lançada aos informantes era:


“visitar esse local lhe proporciona o quê?”. As respostas a essa indagação
foram variadas de caráter sentimental, psíquico e até mesmo sinestésico.
Nesse sentido, alguns alegavam que visitar o tempo lhes proporcionava
“paz, tranquilidade”. Outros informantes asseveravam que visitar esse
local lhes permitiam “compreender a vida e o mundo de uma forma mais
ampla”, nesse mesmo sentido, alguns inclusive demonstravam-se
emocionados dado ao sentimento de “êxtase” que o ambiente lhes
incutia. Outra parcela de entrevistados alegava “sentir corporalmente a
energia do ambiente” e que essas “sensações” lhes proporcionavam um
“bem-estar físico”.

Considerações
O objetivo desse estudo etnográfico foi visitar um templo budista
localizado em uma cidade gaúcha chamada Três Coroas. Sendo um local
que fica aberto a visitação de quarta-feira à domingo, nos impeliu a
refletir e realizar uma pesquisa de campo abordando visitantes e aí, por
meio de diálogo e entrevista semi-dirigida, perscrutar as motivações que
levam as pessoas a visitar esse local, da mesma forma que compreender o
que lhes proporcionava a visita. Complementando essas indagações,
também se objetivou saber se esses mesmos visitantes compreendiam e
consideravam o templo como um “local de peregrinação”.

Como salientado acima, no levantamento realizado nos parece se tratar


de um fenômeno ambíguo, complexo e contraditório. Um dos motivos
que nos levou a essa constatação foi o fato de serem “motivados por
curiosidades”, o que poderíamos traduzir como um comportamento

96
turístico. Ainda que em sua maioria considerassem um “local de
peregrinação” e um “local que lhes proporcionavam bem-estar psíquico e
físico”.

Em suma, esse estudo tem como proposta abrir diálogo, reflexão e


convites para estudos futuros, não só nesse local mas como perscrutar
locais que podem vir a ser considerados “locais de peregrinação” de
manifestações culturais orientais.

Referências
Jander Fernandes Martins é Mestre em Processos e Manifestações
Culturais (FEEVALE), Especialista em TIC na Educação (FURG), Pedagogo
(UFSM). Pesquisas e estudos com ênfase em: Antropologia da Religião,
Antropologia das Relações Humano-Animal, Organização do Trabalho
Didático, Educação Étnico-racial. E-mail: martinsjander@yahoo.com.br
Vitória Duarte Wingert é Mestranda do PPG Processos e Manifestações
Culturais (FEEVALE), Especialista em Ensino de Filosofia para Ensino Médio
(UFSM), Especialista em Literatura Infanto-Juvenil (FISIG), Especialista em
Mídias na Educação (IFSUL), Licenciada em História (FEEVALE). Pesquisas e
estudos com ênfase em: História, Antropologia, Educação. E-mail:
vitoriawingert@hotmail.com

ALDROVANDI, C.E.V. O monge, a morte e o estupa: práxis e padrões


funerários no Budismo primitivo a partir das fontes arqueológicas e
textuais. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 18: 155-
182, 2008
BAUMAN, Z. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editora, 1998.
CAPONE, S.; MARY, A. Lastraslogicas de una globalización religiosa a la
inversa. In: ARGYRIADIS, K. CAPONE, S., DE LA TORRE, R. (org.). En sentido
contrario. Transnacionalización de religiones africanas y latinoamericanas.
Mexico, CIESAS, 2012, p. 27-48.
CARNEIRO, S. de S. Novas peregrinações brasileiras e suas interfaces com
o turismo. Rio de Janeiro, 2005.
CSORDAS, Thomas. Transnational Transcendence. Essays on Religion and
Globalization. Los Angeles, University of California Press, 2009
(introdução).
FRESTON, P. The transnationalization of Brazilian Pentecostalism. The
Universal Church of the Kingdom of God. In: CORTEN, A.; MARSHALL-

97
FRATANI, R. (org.). Between Babel and Pentecostalism. Transnational
Pentecostalism in Africa and Latin America, Londres, Hurst&Company,
2001.
GIL FILHO, S. F. Geografia da religião: estudos da paisagem religiosa.
Disponível
em:http://www.ensinoreligioso.seed.pr.gov.br/arquivos/File/simposio201
1/artigo1gil.pdf. acessado em: 12/08/18.
GRABAR, O. O sentido do Sagrado. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v.
16 n 10, out., p.27-31, 1988.
GRABURN, N. Tourism: the sacred journey In: SMITH, V. (org.). Hosts and
Guests: the anthropology of tourism. 2ª ed. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1989.
ROSENDAHL, Zeny Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica
para o estudo da religião. Anais: X Encontro de Geógrafos da América
Latina – 20 a 26 de março de 2005 – Universidade de São Paulo.
MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia
urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais - v. 17, n. 49, jun. 2002.
MARY, A. Africanité et cristinité: une interaction première. Archives de
sciencies sociales dês religions, 143, pp. 9-31, 2008.
OLIVEIRA, R. C. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. Revista
de Antropologia. São Paulo: USO, V. 39, N. 1, 1996.
ORO, A. P. Transnacionalização evangélica brasileira para a Europa:
tipologia, significados e acomodações, 2017.
STEIL, C. A. Peregrinação e turismo religioso: tendências e paradigmas
deinterpretação. Newsletter de La Asociación de Asociación de Cientistas
Sociales de La Religión en El Mercosur,Buenos Aires, nº 13:1-5, 2002.
Disponível em: http://www.naya.com.br.
__________. Peregrinação, Romaria e Turismo religioso:
raízesetimológicas einterpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, E. S.
(org.).Turismo Religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo.
Campinas: Papirus, 2003.
STEIL, C. A.; CARNEIRO, S. de S. Peregrinação, Turismo e Nova Era:
Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil.Religião e Sociedade, Rio
de Janeiro, 28(1): 105-124, 2008.
TEDESCO, J. C.; MELLO, P. A. T. de. Imigração e transnacionalismo
religioso. Os senegaleses e a confraria Muride no centro-norte do Rio
Grande do Sul. Revista Nures, Ano XI, n. 30, Maio-Agosto, 2015.
TROMBETTA, P. L. (Org.). Cristianesimi senza frontiere: Le Chiese
Pentecostali nel mondo. Roma, Borla, 2013.

98
USARSKI, F. Declínio do budismo "amarelo" no Brasil.
Tempo Social: revista de sociologia da USP,20(2),133-153, 2008.
Disponível em: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-281325.
Acessado em: 10/08/18.
________. O momento da pesquisa sobre o Budismo no Brasil: tendências
e questões abertas. Debates do NER, 7 (9), pp. 129-141, 2006. Disponível
em: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-281930. Acessado
em: 10/08/18.

99
OS PROCESSOS MIGRATÓRIOS JAPONESES ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior

Resumo: Uma série de mudanças aconteceu no Japão durante o século XIX, e a maior
parte delas foi proveniente do período conhecido como “Restauração Meiji”, onde o
país se abriu ao Ocidente, após séculos de isolamento estabelecido pelo shogunato
Tokugawa. Este momento da história japonesa é crucial para entendermos como e
porque o país enfrentou ondas migratórias de seus cidadãos em seu próprio território
e para fora dele. O século XIX se caracterizou por estes grandes deslocamentos
populacionais internacionais, principalmente vindos da Europa, da China e do Japão. A
presença dos nipônicos nos países em que se instalaram causou fenômenos que
fomentam inúmeras reflexões, mas a maior e a primogênita destas é aquela que
objetiva entender o que os levou a buscar uma nova vida em várias nações pelo
mundo, principalmente no continente americano. Este trabalho se propõe a
sistematizar e a fundamentar a discussão sobre este momento histórico do Japão que
se iniciou no século XIX e adentrou pelo século XX, resultando em várias ondas de
deslocamento de nipônicos em diversas direções, com destaque ao Brasil.
Palavras-chave: História; Japão; Imigração.

Abstract: A series of changes occurred in Japan during the 19th century, and most of
them came from the period known as the Meiji Restoration, where the country
opened to the West after centuries of isolation established by the Tokugawa
shogunate. This moment in Japanese history is crucial to understanding how and why
the country has faced migratory waves of its citizens on and off its own territory. The
nineteenth century was characterized by these large international population
movements, mainly coming from Europe, China and Japan. The presence of the
Japanese in the countries where they settled caused phenomena that foment
innumerable reflections, but the biggest and the first of these are those that aims to
understand what led them to seek a new life in several nations around the world,
especially in the American continent. This work intends to systematize and to ground
the discussion about this historical moment of Japan that began in the nineteenth
century and entered the twentieth century, resulting in several waves of displacement
of Japanese in several directions, especially Brazil.
Keywords: History; Japan; Immigration.

O Japão passava por um momento de profundas mudanças internas na


segunda metade do século XIX, mais especificamente a partir do ano
1868, e isso é fundamental para entendermos o porquê do início de uma
intensa e variada onda emigratória e imigratória que mobilizou o país
nesta época e adentrou no século seguinte.

100
A Restauração Meiji e as mudanças internas
O ano de 1868 deu início ao período conhecido como Restauração ‘Meiji’,
ou Era ‘Meiji’, que consistia numa tentativa do país em se adequar ao
mercado capitalista externo após a abertura do Japão, econômica e
culturalmente falando, ao Ocidente. Após passar séculos sob o domínio do
‘shogunato Tokugawa’, o país já vinha enfrentando mudanças internas.
Mas, após a chegada da esquadra norte-americana, liderada pelo
comodoro ‘Perry’, em uma clara investida imperialista nos anos de 1853 e
1854, este processo foi acelerado e passou a ditar o ritmo da vida daí em
diante.

Imperialismo, de acordo com Edward Said, “significa pensar, colonizar,


controlar terras que não são nossas, que estão distantes, que são
possuídas e habitadas por outros.” (SAID, 2011, p. 39).Já Kalina Vanderlei
Silva e Maciel Henrique Silva dizem que ele é um conjunto de “práticas
militares e culturais desenvolvidas por potências para exercer domínio
sobre outros Estados, politicamente independentes.” (SILVA & SILVA,
2009, p. 218).

O fato de os Estados Unidos da América terem tomado a iniciativa de


pressionar o Japão a abrir seus portos e relações com o Ocidente fazia
parte de um grande projeto imperialista seu. Este já estava em prática em
outras regiões do mundo, e o Japão era o passo seguinte a ser
tomado.Sobre a experiência imperialista norte-americana, Said diz:

 “A experiência americana, como mostra Richard van Alstyne em The


rising American empire [O nascente império americano], desde o
início se fundou na ideia de “um imperium – um domínio, Estado ou
soberania que se expandiria em população e território, e
aumentaria em força e poder”. Era preciso reivindicar e lutar pela
anexação de novas áreas ao território norte-americano (o que foi
feito com um êxito assombroso); havia povos nativos a dominar,
exterminar e expulsar; depois, conforme a república ia
envelhecendo e se ampliava seu poderio no hemisfério, havia terras
distantes a considerar como vitais para os interesses americanos,
objeto de intervenções e disputas – por exemplo, Filipinas, Caribe,
América Central, o litoral norte da África, partes da Europa e do
Oriente Médio, Vietnã, Coreia.” (SAID, 2011, p. 41).

101
Foi de acordo com esta perspectiva de dominação por parte dos norte-
americanos que Henshall entra em detalhes sobre a chegada do
comodoro Perry em solo japonês:

 “A questão atingiu o auge com a visita, em julho de 1853, do


comodoro norte-americano Matthew Perry (1794-1858), que
entrou na baía de Edo com quatro navios a vapor. Perry tinha
ordens oficiais para pedir três coisas: tratamento mais humano para
os náufragos, a abertura dos portos para o aprovisionamento e
fornecimento de combustível e uma idêntica abertura ao comércio.
Era um homem determinado, disposto a usar força, se necessário
fosse, e teve o cuidado de se certificar de que os Japoneses estavam
cientes da sua determinação e do potencial do seu armamento,
tendo-lhes mesmo oferecido bandeiras brancas para facilitar a sua
rendição. Depois de os presentear também com uma carta do
Presidente americano para o Imperador do Japão, zarpou com a
promessa de voltar no ano seguinte para uma resposta. [...] Quando
Perry regressou, em fevereiro de 1854, com uma frota maior de
nove navios, o xogunato concordou com o tratado.” (HENSHALL,
2014, p. 96).

No que tange a estrutura política, foi neste momento que o poder, de


forma simbólica, realocou-se nas mãos do imperador, quando “Uma
aliança de domínios ‘tozama’, liderada por ‘Satsuma’ e ‘Choshu’ e
auxiliada por ‘Iwakura Tomomi’ (1825-1883), um nobre da corte com
ligações a Choshu, conseguiu obter um rescrito imperial apelando à
abolição do shogunato.” (HENSHALL, 2014, p. 98).

O Japão possuía, durante o shogunato Tokugawa, uma economia


fundamentalmente agrária, onde os senhores grandes proprietários de
terra, os ‘daimyos’, controlavam as ações. Este modelo econômico e social
é apontado, por diversas vezes, como uma estrutura feudal, a exemplo de
Henshall: “Era um sistema feudal e (...) o Japão possuía uma base comum
com o mundo ocidental medieval” (HENSHALL, 2014, p. 54).

Sobre “feudalismo”, Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva


definem como um “sistema político, econômico e social da Europa
medieval.” (SILVA & SILVA, 2009, p. 150), e, de uma forma mais
aprofundada:

102
 “(...) o modelo de Feudalismo clássico foi construído a partir da
Europa ocidental, principalmente da França. O termo em si não é
contemporâneo ao período que representa, pois só foi elaborado
no século XVII. Mas o mundo medieval conhecia a palavra feudo,
usada para nomear a posse e usufruto de uma parcela do
patrimônio fundiário do rei.” (SILVA & SILVA, 2009, p. 150).

Mas, apesar das proximidades encontradas, o período que antecede o


shogunato Tokugawa e o próprio trata-se de algo bem particular do Japão.
No máximo, guarda algumas semelhanças que fazem referência à
estrutura que se consolidou na Europa após a queda do Império
Romano.Sobre isso, Henshall diz:

 “No entanto, o feudalismo no Japão era diferente, porque operava


através da administração civil central tradicional. A relação senhor-
vassalo era também muito mais pessoal do que no Ocidente, onde
era mais frequente um tipo de relação contratual. No Japão, era
mais paternalista e de natureza quase familiar e alguns dos termos
usados para “senhor” e “vassalo” eram “pai” (oya) e “filho” (ko),
respectivamente”. (HENSHALL, 2014, p. 54).

Durante a Era Meiji, a sociedade japonesa sofreu profundas rupturas, mas


vale salientar que este período não se configurava como uma revolução, e
sim num momento de mudanças rápidas e incisivas, contudo, sem
substituir as estruturas, somente as adaptando para a chegada do novo
momento que o Japão estava prestes a vivenciar. Henshall reforça este
ponto de vista de Sakurai quando diz que “*...+ ao longo do tempo,
aconteceram transformações internas importantes, apesar do ideal de
manutenção do statu quo.” (HENSHALL, 2014, p. 99).

Uma das mudanças estabelecidas no Japão durante a Restauração Meiji se


deu sobre o modo de vida da população do campo. Os ‘daimyos’ possuíam
grandes propriedades rurais, os ‘hans’, e neles viviam várias famílias de
camponeses, que deviam obediência e o pagamento de obrigações
àqueles. Com o início da Restauração Meiji, as relações de trabalho, assim
como as sociais, passaram por drásticas reformulações, onde o camponês
subordinado ao ‘daimyo’se transforma num trabalhador livre para vender
a sua força de trabalho e com a obrigação de pagar impostos ao governo.

103
Dessa forma, as famílias camponesas rompiam os laços de séculos com os
seus senhores, se transformavam em trabalhadores assalariados e
perdiam a referência das terras dos ‘daimyos’, devendo adquirir as suas
próprias. Estas transformações foram particularmente mais danosas para
aqueles que pouco ou nada possuíam, no caso os próprios camponeses.
Estes, por sua vez, acabaram se vendo forçados a trabalhar em terras
arrendadas por capitalistas que compraram grandes lotes para lucrar com
a necessidade dos trabalhadores rurais em arranjar com urgência uma
forma de sustento. (SAKURAI, 2008, p. 236).

A migração como solução


É aí que surge o ponto chave para a emigração. Ao levar em consideração
este conturbado contexto, podemos vislumbrar o crescimento desta
possibilidade como sendo uma salvação para os japoneses em busca de
um futuro melhor para as suas famílias. Seja por iniciativa própria ou
estatal, os japoneses deram início a intensos fluxos emigratórios dentro e
fora de seu país. Podemos dividir estes fluxos em três grandes fases: a
primeira, que foi um momento onde os japoneses se deslocaram dentro
de seu próprio país; a segunda, onde eles buscaram melhores
oportunidades nos territórios recém-conquistados pelo império japonês
em suas guerras expansionistas; e, por último, a fase em que a emigração
atingiu o seu ápice, que foi o momento do deslocamento dos japoneses
para outros países com os quais o Japão possuía acordos comerciais.

Na primeira fase, os japoneses buscaram novas formas de sobrevivência


na recém-chegada Era Meiji, e uma delas foi o desmembramento das suas
famílias, enviando seus filhos para as cidades em busca de empregos
melhores. Nesta fase, como foi discorrido anteriormente, os camponeses
sofreram ao serem forçados a adaptar-se a novas formas de trabalho,
arrendando terras de oportunos empresários que as compraram por
preços irrisórios visando o surgimento deste contexto no andar das
transformações da Era Meiji. O êxodo rural foi uma constante, e os filhos
dos camponeses se viram obrigados a buscar trabalho nos centros
urbanos, principalmente nos setores industrial e de serviços.

O governo interferiu, visando dar mais oportunidades a estas pessoas que


foram nitidamente prejudicadas no processo de modernização do país.
Para tanto, ele organizou o deslocamento de milhares de camponeses

104
para a fria ilha de ‘Hokkaido’, localizada no extremo norte do arquipélago
japonês, com o intuito não só de amenizar o impacto da Restauração Meiji
na vida das pessoas mais pobres, mas também de povoar a ilha.

Dessa forma, o governo japonês pretendeu resolver dois problemas de


uma só vez. Com isso, o povoamento da ilha foi reforçado, que passou a
ser uma área mais produtiva, além de ter erguidas em seu solo bases
militares a fim de garantir a soberania do país frente a possíveis invasões.
Justamente neste momento, a expansão territorial ditava o ritmo da
política mundial, que era mais uma das facetas do imperialismo – vigente
à época. Era importante não só conquistar novos territórios, mas mantê-
los, assim como o seu próprio “centro metropolitano” (SAID, 2011, p. 40).
Esta importância da manutenção da estrutura imperialista é citada por
Said quando ele menciona Michael Doyle: “(...) O imperialismo é
simplesmente o processo ou a política de estabelecer ou manter um
império”. (In: SAID, 2011, p. 42).

No segundo momento, houve um grande fluxo de pessoas para os países


próximos recém-conquistados pelo exército imperial japonês, como a
Coréia, Taiwan, antigas posses alemãs no Pacífico, Manchúria e a China,
posteriormente. Nesta fase, além de tentar resolver o problema da baixa
qualidade de vida dos mais pobres, o governo japonês pretendeu também
amenizar os problemas decorrentes do grande contingente populacional
em seu arquipélago.

Com isso, além dos soldados que desembarcaram nestas regiões


pretendendo manter a autoridade japonesa pela força, chegaram também
milhares de colonos em busca de novas oportunidades e que,
concomitantemente, implementaram ideologicamente a presença do
império nipônico. Sobre isso, Sakurai diz:

 “A ideia do governo é transferir para os territórios conquistados a


mesma estrutura administrativa existente no Japão, a começar
pelas escolas e por órgãos de controle como a Polícia e as Forças
Armadas. Para a manutenção de toda a estrutura nas colônias do
Império Japonês, é preciso reforço ideológico: o culto ao imperador
é a regra inicial.” (SAKURAI, 2008, p. 236-237).

105
Além disto, haviam os contratos temporários oferecidos pelo governo aos
japoneses dispostos a trabalhar nestes territórios. Depois de realizadas as
suas tarefas, retornavam ao Japão com o suficiente para garantir o
sustento de suas famílias, que ficavam no aguardo de seu retorno e na
expectativa do sucesso da empreitada. (SAKURAI, 2008, p. 237).

A terceira grande fase da emigração japonesa é a etapa internacional, mas


para países além do Império Japonês. Devemos designá-la assim para
diferenciá-la da segunda, onde em sua maioria os japoneses migraram
para suas mais novas possessões territoriais. Aqui, os nipônicos decidiram
se aventurar em países independentes que possuíam acordos comerciais
pré-estabelecidos com o governo japonês.

Primeiramente, os japoneses se aventuraram na América do Norte, mais


precisamente no Havaí, Estados Unidos e Canadá. No primeiro caso, até
obtiveram relativo sucesso no cultivo de café, porém sem outras grandes
perspectivas. Por conta disso, passaram a visualizar os EUA e o Canadá
como uma opção mais proveitosa, mudando o roteiro emigratório a partir
de então.

Devido a grande quantidade de imigrantes japoneses desembarcando no


seu território e o crescente preconceito étnico decorrente disto, o
governo norte-americano decidiu proibir a entrada dos nipônicos através
de um acordo feito no ano de 1907, o ‘Gentlemen’s Agreement’ (Acordo
de Cavalheiros) (SAKURAI, 2008, p. 239). Antes disto, já havia uma onda de
xenofobia contra os japoneses por parte dos norte-americanos e, após a
assinatura deste acordo, a situação piorou. Já em 1924, foi assinada uma
lei que proibia de vez a imigração de qualquer asiático nos Estados Unidos
como um todo. Durante a Segunda Guerra Mundial, esta situação piorou
ainda mais com o governo e a sociedade encarando os japoneses como
inimigos de estado, muito por conta do ataque à base naval norte-
americana de ‘Pearl Harbor’, localizada no Havaí. Este fato desencadeou a
entrada dos Estados Unidos na guerra e causou um racha na relação dos
dois países naquele momento.

Os japoneses também se aventuraram na América Latina, principalmente


no México, Paraguai, Bolívia, Argentina, Chile e Uruguai, mas foi no Peru e
no Brasil que eles imigraram em maior quantidade. Os imigrantes
encontraram no Peru as mesmas dificuldades que nos EUA, como

106
proibição da imigração quando esta alcançou grandes índices e hostilidade
durante a Segunda Guerra, mas a sua presença se faz muito maior naquele
do que neste último.

Esperanças depositadas no Brasil


Mas, ao falar de imigração japonesa, é impossível não mencionar o Brasil,
país que foi o último destino dos nipônicos, porém o principal. Durante
todo o período imigratório mais ativo, entre 1908 e o final da década de
1970, desembarcaram em terras brasileiras cerca de 250 mil japoneses
(SAKURAI, 2008, p. 244). Além de ser o destino mais privilegiado com a
chegada de colonos nipônicos, foi também o mais diferenciado, pois, ao
contrário dos destinos anteriores, no Brasil desembarcavam famílias
inteiras, evitando a necessidade de os imigrantes passarem por
dificuldades na nova terra para encontrarem esposas e formarem laços.
(SAKURAI, 2008, p. 244).

Se, por um lado, esta característica facilitou o convívio entre os próprios


imigrantes, distanciou-os ainda mais dos brasileiros. Como aqueles
pretendiam inicialmente economizar os seus ganhos para voltar ao Japão
em melhores condições financeiras, Butsugan diz: “O estreitamento das
relações sociais com outros grupos étnicos era absolutamente dispensável
neste tipo de situação, uma vez que comprometia ao propósito de
conservação do espírito japonês no seio do seu grupo étnico.” (In: SAITO,
1980, p. 106).

Este modelo de imigração japonesa aplicado majoritariamente no Brasil –


o das famílias nucleares – favoreceu uma rede de sociabilidade chamada
de “associação”. Elas estavam presentes onde havia colonos japoneses
estabelecidos em considerável quantidade. Sobre as associações e a sua
importância para a integração das comunidades japonesas no Brasil,
Sakurai diz:

 “As associações japonesas foram os centros de referência para


todas as comunidades japonesas no Brasil e continuam a ser até
hoje. Nas cidades e até em bairros onde há alguma concentração
dessas famílias, há associações de cunho esportivo e escola de
língua japonesa.”(SAKURAI, 2008, p. 255).

107
Em um segundo momento (entre as décadas de 1950 e 1965), quando os
japoneses mudam esta sua postura e passam a aceitar o Brasil como sua
segunda nação (eles deixaram de vislumbrar uma rápida volta ao Japão
como única saída possível) ela “cria condições para a aceitação de
possíveis ligações com outros grupos étnicos, apesar de relutantemente.”
(In: SAITO, 1980, p. 106).

Outro fator singular na imigração nipônica no Brasil foi o fato de que para
cá vieram japoneses de todas as regiões do Japão, enquanto nos Estados
Unidos e no Peru predominaram os vindos das províncias de Kyushu e
Okinawa.

Os primeiros imigrantes japoneses (em fluxo contínuo) chegaram ao Brasil


no ano de 1908 embarcados no navio chamado ‘Kasato Maru’. Este veio
do porto de ‘Kobe’, no Japão, e com os imigrantes fazendo parte de uma
experiência bancada pelos fazendeiros de café do estado de São Paulo.
(SAKURAI, 2008, p. 245). Antes disso, alguns imigrantes já tinham vindo
para cá se aventurar, mas este grupo foi o primeiro oficial dentro da
política de imigração e utilizando da prerrogativa do acordo comercial
assinado entre o Brasil e o Japão em 1895. A leva de imigrantes em
questão continha 165 famílias, abrangendo 781 imigrantes contratados e
mais 12 livres. (SAITO, 1966, p. 21-38 apud VALENTE, 1978, p. 24).

Segundo Sakurai, “Brasil e Japão tinham um tratado de comércio assinado


desde 1895 e era necessário ativá-lo com alguma atividade que fosse do
interesse de ambos os países.” (SAKURAI, 2008, p. 245). Tal tratado
completou 120 anos de existência no ano de 2015.

O acordo acabou servindo como uma via de mão dupla, onde os


cafeicultores pretendiam se inserir no mercado japonês com a venda de
seu principal produto e o governo do Japão na mesma política de
desafogar a avantajada densidade demográfica. Além disso, planejava
amenizar os males causados pela Restauração Meiji e as más condições de
vida provenientes de sua chegada.

O Brasil, como dito anteriormente, foi somente o último grande destino


dos imigrantes japoneses, que antes tinham nos Estados Unidos a
alternativa de maior apelo. Porém, com o ‘Gentlemen’s Agreement’
(1907) e, posteriormente, a proibição definitiva da entrada dos nipônicos

108
no país norte-americano (1924), passou a ser muito mais procurado do
que era antes. Para a maioria dos japoneses do início do século XX, a
localização geográfica do Brasil não era nem conhecida, mas a forte e
eficiente propaganda governamental japonesa foi fundamental neste
momento.

Após os fracassos emigratórios para o Havaí e Estados Unidos, o governo


japonês não poderia deixar passar a oportunidade da empreitada
brasileira. Para tanto, como diz Magalhães, “as agências de emigração
tiveram um papel importante em fomentar a ideia de que o Brasil seria
um lugar ideal para a concretização do sonho de fazer riqueza e voltar ao
Japão rapidamente.” (In CARNEIRO, M. L. T. & TAKEUCHI, M. Y., orgs.,
2010, p. 344).

Além da ação destas agências, a mídia impressa também foi muito


importante, com o jornal ‘Yomiuri Shinbum’ publicando vários artigos
enfáticos sobre a possibilidade de enriquecer e buscar nova vida no Brasil,
como “O Plano de Emigração para o Brasil” (1896), “A Nova Colônia”
(1908) e o “Paraíso do Mundo Atual” (1908). (MAGALHÃES, 2010, 344).

Esta propaganda era parte integrante da política de imigração do governo


japonês e se mostrava extremamente vantajosa, pois estimulava os
japoneses mais carentes, sobretudo camponeses, a largarem tudo para
recomeçarem em um país do outro lado do mundo. Além disso, se
configurava como um interessante aliado comercial. Enquanto as
primeiras viagens eram subsidiadas pelos cafeicultores brasileiros
interessados em uma mão de obra barata e qualificada, em um segundo
momento elas foram bancadas totalmente pelo governo japonês como
forma de não retrair os fluxos imigratórios após a censura feita pelos
Estados Unidos.

Vale salientar o fato de que o governo japonês possuía políticas públicas


de imigração, acordos de amizades firmados e até bancava algumas
despesas de seus cidadãos que iam se aventurar no Brasil e em outras
partes do mundo, mas não dava toda a assistência necessária para se
encarar uma realidade completamente diferente da sua, dando a estes
sujeitos caráter de “aventureiro”, como diz Valente:

109
 “Nos começos, o imigrante era um aventureiro. Um quase-herói
capaz de servir de modelo à fantasia de certos novelistas. Por esse
tempo, a imigração resultava, de modo exclusivo, das forças de
expulsão, representadas principalmente pelo fator econômico. É o
que acontecia, por exemplo, com países de grande densidade
demográfica, as voltas com sérios problemas econômicos e sociais,
fixados na exiguidade do chamado “espaço vital”. Itália, Alemanha,
Espanha, Portugal, para lembrar apenas países europeus, estavam
neste caso. Fenômeno semelhante ocorreria também com o Japão,
em certa época, com o agravante da ostensiva falta de mercado de
trabalho.” (VALENTE, 1978, p. 5).

Além disto, era feito sem um prévio planejamento consistente, causando


inúmeros contratempos, imprevistos e dificuldades no cotidiano dos
imigrantes, pois “o processo de imigração se fazia sem disciplina de
espécie alguma. Era processo desordenado e caótico. Não se preocupava
sequer conhecer as exatas dimensões do problema.” (VALENTE, 1978, p.
6).

De todo modo, como forma de consolidar a sua política imigratória no


Brasil, o governo japonês buscou de início nos cafezais, principalmente
nos de São Paulo, o alicerce de toda a sua ação, visto que eles desejavam
ter em mãos um trunfo que possuísse um grande poder de apelo na sua
campanha midiática pró-imigração. Isso só foi possível graças ao
crescimento da economia do estado de São Paulo e de sua importância
política no país, que se refletia na criação e reformulação de
infraestruturas que davam condições para tanto, como foi no caso do
porto de Santos (fundamental para a chegada da primeira leva de
japoneses, além da maior parte do volume dos imigrantes japoneses e de
outras nacionalidades).A maior parte do imigrante japonês, de fato, se
deslocava para São Paulo, como reforça Valente:

“São Paulo absorvia a quase totalidade da mão de obra nipônica no Brasil.


Teicultura, cultura do café e cotonicultura tiveram no japonês excelente
força de trabalho. Isto para não falar na sericultura. São Paulo oferecera
condições favoráveis, de base agrícola, ao desenvolvimento econômico,
sobretudo contando com mão de obra de qualidade, como era a japonesa.
Cerca de 75% do japonês no Brasil se encontra no estado paulista.”
(VALENTE, 1978, p. 35).

110
Referências
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior é professor efetivo de História e História
da Cultura na Prefeitura da Vitória de Santo Antão-PE, graduado em
Licenciatura e em Bacharelado em História-UFPE e especialista em História
do Nordeste do Brasil-UNICAP.
E-mail: ronijr07@hotmail.com

CARNEIRO, M. L. T. & TAKEUCHI, M. Y. (orgs.).Imigrantes Japoneses no


Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2010.
HENSHALL, K. G. História do Japão. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2008.
SAID, E. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SAITO, H. (org.). A presença japonesa no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz:
Editora da Universidade de São Paulo, 1980.
SAKURAI, C. Os japoneses. 1. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2008.
SILVA, K. V. & SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed., 2ª
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.
VALENTE, W. O Japonês no Nordeste Agrário: Aspectos Sócio-Culturais e
Antropológicos. Recife: MEC – Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, 1978.

111

Você também pode gostar