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Feliz aniversário, de Luisa Geisler

As tias permaneceram no carro, Sofia e a mãe só buscam o bolo, questão de minutos.


Saem da confeitaria, a mãe carregando, com as duas mãos, a caixa. No banco do carona,
Juliana, a prima, destrava as portas. Os óculos de sol, a janela aberta e a camiseta de
mangas longas da prima são incompatíveis. Juliana emagreceu muito desde a última vez
que ela e Sofia viram-se.

Enquanto Sofia planeja sua entrada no banco traseiro, Juliana ― no banco da frente ―
ajeita as mangas longas.

As duas tias, ambas com IMC de classificação de, no mínimo, obesidade mórbida,
empurram-se para que Sofia entre no carro, no banco de trás, ao lado delas. A mãe de
Sofia insiste que ela coloque o cinto de segurança. Sofia coloca-o, ajusta a postura,
sente o apertão no peito. Ajusta as pernas com dificuldade no banco de trás do carro, as
tias grunhem a cada movimento. Apertam-se. A mãe coloca devagar a caixa de papelão
no colo de Sofia. Mal a mãe vira-se para o volante, ela enche a filha de recomendações.
A caixa gelada pesa no colo da garota.

Sofia mexeria mais as pernas se pudesse, se não tivesse um metro e oitenta. Um metro e
oitenta que se tornaram um metro e oitenta só de pernas. O banco vibra enquanto a mãe
liga o carro e dirige-se à casa de Juliana e da tia. Juliana permanece em silêncio, mexe
nas mangas, puxa-as para cima das mãos.

As tias voltam à conversa em voz alta com a mãe de Sofia. Falam da festa. O calor
deixa marcas de suor nas roupas de tecido estampado, na região das axilas. Sofia
concentra-se no bolo dentro da caixa: o bolo da prima é bonito, sim. Confetes coloridos
cobrem o bolo, o recheio tem camadas coloridas das cores coloridas do colorido do
arco-íris. O bolo tem ― conforme a atendente chama ― uns três andares de glacê
magenta. O peso pressiona as pernas de Sofia, machuca. As tias falam dos salgadinhos,
da festa, dos convites, da decoração da casa, telefonemas, de quem virá à festa, de quem
não virá, xingam os ausentes com palavrões.

― Mas nem por isso as pessoas tinham que deixar de comparecer ― diz uma tia. ― A
gente não precisa se ver só em aniversários.
Sofia imagina que a mãe se esforce para ouvir as tias com os ruídos de carro, que
entram pela janela escancarada de Juliana. A mãe, dirigindo, olhando as ruas, os carros,
diz:
― É que muita gente se magoou. Acham que é coisa de gente mimada.
― E não vir quer dizer o quê?

Juliana pede, sua voz baixa, pede que mudem de assunto, que falem de outra pessoa. A
tia baixa a voz, volta a falar dos salgadinhos de festa, do bolo escolhido colorido com
colorido colorido colorido especialmente para a festa. Reclama de um farol onde
pararam.

O carro abafa-se com a espera sob o Sol, calor, bolo úmido. As pernas da tia ao lado
prendem, cada vez mais, Sofia entre a porta do carro e contra a gordura da tia. Sofia
sente suas pernas mergulharem no tecido adiposo, a gordura da tia abraça o raquitismo
de Sofia. Sofia respira fundo, sentindo o cheiro do aromatizador de lavanda, o cheiro de
rua entra pela janela. 
Náusea. Falta-lhe ar, falta-lhe ar, todo o ar do carro, todo o ar das janelas escancaradas é
supérfluo, falta-lhe ar dentro do pulmão, ela nunca encherá o pulmão de oxigênio por
completo, falta-lhe silêncio.

Sofia inspirando e expirando, repetindo para si que tudo ficaria bem, a umidade do bolo
atravessando a caixa atravessando a calça jeans até as coxas magras, até os ossos.

Juliana vira o pescoço para trás, o cinto de segurança impedindo-a de virar-se inteira.
Juliana olha para Sofia por trás dos óculos de sol. Os óculos de sol cobrem metade do
rosto e metade da expressão. Com um sorriso literalmente amarelo, Juliana diz com a
voz baixa:

― Tá tudo bem aí contigo?

Juliana voltou para casa há apenas uma semana. A umidade do bolo atravessa a caixa e
atravessa a regata de Sofia, gruda na barriga. Juliana perdeu tantas aulas na
universidade, talvez o semestre inteiro, talvez reprovasse por faltas. Sofia sentiu a falta
da prima durante Antropologia IV, quis dormir durante todo o pós-estruturalismo. 

O celular tocara num dia de calor idêntico. Sofia lembrava-se que naquele dia vestira
uma jaqueta de moletom sobre o pijama e passou calor no hospital sem poder tirá-lo.
Sofia não se recordava se o calor pertencia àquele dia ou ao moletom. Mas o corpo
inteiro suara. Parecia a Sofia que tudo aquilo fazia anos, mas foram semanas. Sofia, de
férias, meio adormecida em casa, recebendo a ligação dos tios no meio da tarde.
Sofia lembrava-se que fazia brigadeiro de panela naquela tarde.

Chamaram Sofia e a mãe ao hospital. Sofia sujou o pijama, vestiu a jaqueta de moletom.
Os tios deveriam estar em viagem, mas sentiram-se culpados de deixar Juliana sozinha.
A família deveria viajar em conjunto, como sempre fizera. Voltaram. Na sala de espera,
as lágrimas emolduravam os discursos de “e se…”, jogando as culpas em todos os
lugares e pessoas. Sofia baixou a cabeça quando os pais perguntavam a ela por que
Felipe, o namorado de Juliana, não atendia aos telefonemas deles. O médico acalmava-
os, afastava as preocupações, deixassem Felipe de lado, o pior já passara, Juliana estava
bem, estava ali.

Quando eram pequenas, Sofia e Juliana gostavam de dançar atrás da casa, perto da
árvore. A tia derrubaria a laranjeira para aumentar a garagem. Juliana chorou trancada
no quarto ao saber da laranjeira.

Juliana sempre foi sensível demais.

O farol abre. Sofia sorri. O carro vibra com o movimento do motor, movimento das
ruas. O cheiro de suor que vem das tias e dela mesma não a incomoda. O mormaço do
carro, a umidade que Sofia lança na camiseta regata dela, em sua testa, em torno de seu
cabelo loiro preso num curto rabo-de-cavalo, nada daquilo a incomoda. O bolo pesa no
colo. Juliana acabou de perguntar se está tudo bem lá, com Sofia, com Sofia e Juliana, a
sensível Juliana, sem Felipe, mas com Sofia e Juliana e Sofia sorri:
― Tudo ótimo.

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