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& Mm tàM^ Ây^J^e ^^íá^^i&meú

Volume2 • Capítulos3 e 4
“O mundo dará ouvidos” , diz o Dr. Martyn Lloyd-Jones, “quando
vir pessoas que desfrutam de paz, calma e tranqiiilidade em circunstâncias
difíceis. A maior lição que temos que aprender é como viver sem permitir
que as circunstâncias afetem a nossa paz e alegria interior... O que em última
instância importa na vida não são tanto as coisas que nos acontecem como a
maneira que encaramos essas coisas.”

Paz é todo o propósito do evangelho: paz com Deus, paz com nós
mesmos, paz com os outros. E tal paz só pode ser recebida por efeito da graça
de Jesus, dada gratuitamente, a qual “é o princípio e o fim da salvação” ,
porquanto “é a graça do Senhor Jesus Cristo que torna tudo possível!”

A Vida de Alegria cohxe os primeiros dois capítulos de Filipenses. Neste


estudo, abrangendo capítulos 3 e 4, o Dr. Martym Lloyd-Jones delineia, com
sua usual completitude e com sua sabedoria, o meio pelo qual os cristãos
individuais podem experimentar essa “paz de Deus, que excede todo o
entendimento” .

“Temos aqui alimento sólido, bem preparado


e proveitosamente apresentado.”
- EV A N GELICA L T IM E S

“Vindima Lloyd-Jones”
-C H U R C H O F EN G LA N D NEW SPAPER

“Leitura cativante... ter uma mente assim tão e.xcelente


levada a considerar as palavras do apóstolo Paulo,
inevitavelmente produz uma admirável exposição do evangelho.”
- F L O O D T ID E

“ Um comentário magnífico... sobre a essência do evangelho.”


- B.A PdlST T IM E S

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Rua 24 de Maio, 116-3° andar-salas 14-17
01041-000 - São Paulo - SP
A VIDA DE PAZ

Comentário sobre Filipenses


volume 2, capítulos 3 e 4

Dr. M artyn Llo^d-Jones

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287 - 01059-970 - São Paulo, SP
www.editorapes.com.br
Título Original:
The Life of Peace

Editora:
Hodder & Stoughton

Primeira edição em inglês:


1990

Copyright:
© Elizabeth Catherwood e Ann Desmond
1993

Tradução do inglês:
Odayr Olivetti

Cooperador:
Silas Roberto Nogueira

Capa:
Wirley dos Santos Corrêa

Primeira edição em português:


2008

Impressão:
Imprensa da Fé
ín d ic e

1. Regozijo verdadeiro.........................................................7
2. Culto verdadeiro............................................................22
3. Tudo em Cristo...............................................................36
4. A vida cristã.................................................................... 49
5. A justiça de D eu s........................................................... 62
6. A grande ambição de P aulo.......................................... 75
7. A meta suprem a............................................................. 88
8. A única coisa................................................................. 102
9. Fé e conduta.................................................................115
10. Cidadãos do c é u ...........................................................130
11. A vida e a obra da Igreja..............................................144
12. Regozijai-vos sempre...................................................158
13. Moderação..................................................................... 172
14. A paz de D eus...............................................................186
15. O pensamento hebraico e o grego.............................. 201
16. Como experimentar a paz deD e u s............................ 215
17. Aprendendo a estar contente......................................239
18. A cura fin al...................................................................244
19. Supridas todas as nossas necessidades....................... 260
20. Meu D eus......................................................................274
21. A comunhão dos santos...............................................285
22. A graça do Senhor Jesus Cristo.................................. 298
Nota

Os leitores dos livros do Dr. Lloyd-Jones vão perceber


que os capítulos 14,17 e 18 deste volume também foram
publicados na obra intitulada Depressão Espiritual -
Spiritual Depression (1971). A razão disso é que ele pregou
aqueles sermões em sua série de Filipenses, mas, dando-
-se conta de quão apropriados eram para o tema da
depressão espiritual, ele os incluiu naquele livro.
Contudo, é evidente que este volume ficaria incompleto
sem esses capítulos, e, por isso, com a bondosa permis­
são dos editores, Marshall Pickering, nós os incluímos
também na série na qual eles foram pregados origi-
nariamente.
Regozijo Verdadeiro
“Finalmente, irmãos meus, que vos regozijeis no Senhor. ‘
- Filipenses 3:1

Não se pode questionar que nestas palavras chegamos a


um ponto de transição, ou a um oonto divisório, desta carta
escrita à igreja de Filipns J ) esde os primeiros dias da Igreja
cristã tem havido muita discussão e muita divergência jus­
tamente sobre o que significa esta injunção. Não precisamos
entrar em detalhes aqui, mas é interessante, de qualquer
ponto de vista em que se estudem as Escrituras, tentar chegar,
mediante análise, à idéia precisa que estava na mente do
apóstolo. Há aqueles que acham que Paulo estava chegando
ao fim da sua carta aqui, que realmente dissera tudo o que
tinha planejado dizer, mas que, quando estava redigindo
estas palavras, “Finalmente, irmãos meus, que vos regozijeis
no Senhor”, de repente lhe ocorreu outra coisa que ele queria
dizer. Por isso, continuou a carta para dizê-la, e daí passou a
escrever o capítulo 3 e a primeira parte do capítulo 4, pois
vocês podem notar que no versículo quatro desse capítulo ele
volta ao mesmo tema e diz: “Regozijai-vos sempre no Senhor;
outra vez digo, regozijai-vos”. Por isso os referidos intérpretes
consideram todo o argumento do capítulo 3, e a primeira parte
do capítulo 4, como uma espécie de pensamento posterior
que Paulo incorporou na carta, em vez de fazer um pós-escrito.
A VIDA DE PAZ

Bem, não nos é necessário discutir essa questão, pois,


afinal é evidente que de fato não importa; embora a mecânica
desta carta tenha sua im portância, é sua parte menos
importante. Mas, no que me diz respeito, acho difícil aceitar
essa análise como uma explicação do que o apóstolo diz
neste ponto. Parece-me, antes, que Paulo está meramente
reassumindo aqui o tema que procuramos indicar em nosso
estudo introdutório,^ quando apresentamos uma vista geral
da Epístola toda. Paulo escreveu esta carta com o fim de
ensinar os filinenses a regozijar-se no Senhor - esse é o tema,
essa é a mensagem. E devido ao apóstolo ser um homem
deveras prático, ele fala sobre diversas coisas que têm a
probabilidade de privá-los dessa alegria; ele trata das
dificuldades uma por uma, e mostra que elas devem ser
sobrepujadas. Lembrem-se de que no capítulo primeiro ele
fala sobre o seu aprisionamento. Isso estava tendendo a
deixar deprimidos os crentes filipenses, e ele os põe logo
na linha falando sobre vários fatos relacionados com o estado
em que ele se encontrava. Ele diz: vocês não precisam pre­
ocupar-se comigo, “para mim o viver é Cristo, e o morrer
é ganho”; era imaterial para ele se morresse ou não.
Depois Paulo fala sobre o problema causado por alguns
falsos irmãos, e diz que, apesar disso, os filipenses podem
regozijar-se, pois, embora os falsos irmãos estejam pregando
Cristo por motivos errôneos, Paulo ainda se regozija porque
Cristo é pregado. Em seguida ele fala sobre as perseguições
que eles estavam experimentando, e lhes mostra como lidar
com elas também, ainda com vistas a manter a alegria deles. E
havia, talvez, a tendência de os cristãos filipenses experimen­
tarem alguma inveja e algum ciúme uns dos outros, e Paulo
lida com isso no início do capítulo dois, onde ele apresenta

^Ver 0 capítulo primeiro do primeiro volume de Filipenses, A Vida de


Alegria, PES.
Regozijo Verdadeiro

aquele admirável antídoto, fazendo a sua maravilhosa descri­


ção da encarnação. Diz ele: “De modo que haja em vós o mesmo
sentimento...”, pois, se esse sentimento estiver neles, sua alegria
será mantida. Depois ele aborda mais uma vez a questão da
sua ausência do meio deles e insiste em que eles não precisam
ficar desanimados ou perturbados por causa disso; ele sabe
que a obra terá prosseguimento, porque “Deus é o que opera
em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa
vontade” (2:13); e ele mostra como efetuá-lo. E, por último,
ele os conforta quanto à doença de Epafrodito, e diz: “eu o
estou enviado de volta a vocês, e não somente isso, espero
enviar-lhes Timóteo também” .
Constantemente, então, de várias maneiras Paulo está
mostrando a estas pessoas como elas podem manter a sua
alegria, e agora, no versículo primeiro do capítulo 3, ele chega
ao fim: “Finalmente” (VA) - ou, se vocês preferirem, podem
traduzi-lo por “ Quanto ao resto” (cf. Almeida Corrigida:
“Resta”) - “Finalmente, irmãos meus, regozijai-vos no Senhor.
Escrever-lhes as mesmas coisas na verdade não me aborrece,
mas para vós é seguro” (VA). Ele tem mais alguma coisa
para trazer à memória deles, e, como o excelente mestre, o
profundo psicólogo que é, ele assim os lembra, de passagem,
da alegria, e somos levados de volta com o grande tema do
regozijo no Senhor. E como se ele estivesse dizendo: “Agora
que já lidamos com estas questões, prossigamos; o que é
realmente grande é que nos regozijemos” - e então ele fala
das coisas que estavam tendendo a causar problema, a saber,
a obra dos judaizantes e daqueles falsos mestres que viviam
atrás dele e que causavam confusão intelectual e teológica
nas recém-nascidas igrejas cristãs.
Esse, parece-me, é o meio mais natural de considerar este
ponto de transição da Epístola. E meramente uma continuação
e um lembrete do mesmo tema central. Podemos ilustrar o
ponto^ extraindo algo da eslera da música. Numa sinfonia.
A VIDA DE PAZ

por exemplo, há um tema predominante, e uma e outra vez


0 compositor introduz esse tema; ele pode vagar em suas
variações, parecendo até havê-lo esquecido, mas sempre volta
a ele. E o que se vê Paulo fazer nesta Epístola, a mais lírica
de todas as que ele escreveu. Assim, aqui ele nos está lem­
brando mais uma vez o tema maior, à luz do qual todas estas
questões particulares sempre devem ser consideradas.
Esse é, então, o cenário, e é importante que o tenhamos
em mente. Mas também estou desejoso de me concentrar
agora na exortação positiva propriamente dita. O tempo todo
Paulo mostra-se inclinado a sugerir essa idéia; está presente
ali em diferentes formas, mas aqui ele a expõe explicitamente.
E uma exortação, um mandado - “Finalmente, irmãos meus,
regozijai-vos no Senhor.,,” . Sugiro que a óbvia maneira de
abordá-la é dividi-la em três partes. Antes de tudo, devemos
considerar o que significa regozijar-se no Senhor, Devemos
depois fazer a segunda pergunta óbvia; por que devemos
regozijar-nos no Senhor? E, em terceiro lugar: como fazer
isso?
Agora, ao examinarnios aquela primeira questão e per-
guntarmos n qiie significa “ regoziiar-se no Senhor”, a primeira
coisa que nos toca é que, como dissemos, o que lemos aqui é
um mandado, uma ordem. Não é tanto uma descrição do estado
em que nos encontramos como algo que somos exortados a
fazer. A tendência é sempre pensar na alegria como um estado
ou uma condição subjetiva, e claro está que fundamentalmente
o é, e, contudo, o simples fato de que Paulo nos dá ordem ou
nos chama para regozijar-nos é prova positiva de que não se
tr^ta de algn que experimentamos de maneira puramente
passiva ou subietiya. Não nos sentamos, confiando e esperando
que de repente vamos começar a regozijar-nos! Não, nós temos
que fazer algo para que nos regozijemos, e é algo que somos
capazes de fazer. Estas palavras apostólicas não são apenas
uma intimação a que fiquemos na expectativa ou na esperança

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Regozijo Verdadeiro

de que algo vai acontecer ou ocorrer em nós e de que


depois, de repente, vamos sentir-nos tremendamente felizes.
Esta questão geral da alegria na vida cristã freaüentemente
tem causado muita confusão. Se posso dizê-lo assim, muitos
cristãos são infelizes porque não experimentam alegria. Em
geral, a idéia deles é que a alegria é resultado das coisas que
acontecem conosco. Eles acreditam que não têm nenhum
controle sobre elas, que não somos capazes de fazer com que
nos regozijemos, que a alegria e o regozijo são o resultado final
da interação e da inter-operação de diversos fatores e forças, a
maior parte de fora, mas alguns dentro de nós. E, dizem eles,
em conseqüência disso tudo, somos felizes ou não. Mas me
parece que isso é um erro constantemente exposto e denun­
ciado nestas Epístolas do Novo Testamento, e aqui é exposto
pelo simples fato de que nos é dado um mandamento -
devemos regozijar-nos, é algo que podemos fazer.
Mas, tendo dito isso, devo assinalar que surgem imedia­
tamente dois perigos. O primeiro é o de tentarmos produzir
este estado de regozijo fa^ndo um ataquedireto às nossas
emoções. Não preciso desenvolver isto, é perfeitamente óbvio,
não é? Alguns dirão que, como o regozijo e a felicidade
pertencem ao domínio das emoções, se nos é ordenado que
nos regozijemos, então temos que começar a fazer as coisas
para nós emocionalmente, a fim de podermos adentrar este
estado feliz. E, naturalmente, estamos familiarizados com os
diversos métodos que as pessoas persistem em empregar com
essa finalidade. Por exemplo, numa reunião pública, ou num
ato público de culto, pensem em quantas vezes aconteceu algo
como o seguinte: o dirigente da reunião, ou alguma outra
pessoa, diz: “Bem, agora, a primeira coisa, é levar esta con­
gregação ou reunião a animar-se. Concentremos em hinos,
cânticos ou corinhos de um certo tipo - temos que fazê-los
felizes, temos que conseguir que se alegrem, que se regozijem.
Eles entraram aqui frios e em estado de miséria, vamos

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A VIDA DE PAZ

induzi-los a um bom e feliz estado” . Então introduzem hinos


vibrantes e alegres para fazer o povo regozijar-se. E isso que
eu quero dizer quando falo em um ataque direto às emogões..'
a tentativa de produzir alegria fazendo com a nossa vida
emocional coisas calculadas para levar a esse resultado.
Agora eu quero mostrar a vocês que não é esse o ensino do
apóstolo aqui, como também não é esse o ensino do Novo
Testamento em parte alguma. Na verdade, penso que posso
demonstrar que tal ataque direto às emoções é, de acordo com
o Novo Testamento, uma das coisas mais perigosas que
podemos fazer na vida; é a via expressa para o ensino falso e as
diversas seita§. irlá muitás maneiras pelas quais as pessoas
podem fazer-se sentir felizes: tomando drogas, manipulando
as circunstâncias, ou tateando à procura do mundo do faz de
conta, da imaginação e da fantasia, por exemplo. Há uma
variedade quase interminável de meios e maneiras, e, do ponto
de vista cristão, esse é o maior problema do mundo atual. O
mundo está repleto de problemas e de infelicidade, coisas
terríveis ameaçam a vida hoje em dia, mas, em vez de encarar
estas coisas realisticamente e de adotar o método cristão de
sobrepujá-las, o povo em geral deliberadamente dá as costas
aos problemas e, em sua busca de alegria, felicidade e paz,
cria um sentimento artificial de felicidade e prazer. E se isso
é um erro quanto ao mundo, é também um erro quanto a
nós, cristãos. Q princípio é aue iamais devemos tentar tornar-
-nos felizes e encher-nos de rpgr>7tjr> faypnrln algn im ediata p
diretamente com a nossa natureza emocional.
j<V) O outro perigo que devemos evitar é o de dar a impressão
de que somos cristãos brilhantes, felizes e alegres. Penso
que há um bom número de pessoas que vêem e entendem
acertadamente que os cristãos são destinados a serem homens
e mulheres que se regozijam. Há um tipo de cristão - talvez
muito mais comum no fim do século dezenove - para o qual
ser cristão é ser lamentoso e viver acabrunhado. E o tipo

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Regozijo Verdadeiro

de pessoa descrito por Milton como alguém que “despreza


os prazeres e vive dias laboriosos”. Entretanto, hoje muitos
vêem que essa é uma falsa representação do cristianismo e
do ensino do Novo Testamento, e que realmente o cristão
é o único ser humano capaz de conhecer a verdadeira feli­
cidade num mundo como este. Então, por causa disso,
eles adotam uma postura brilhante e jovial, e estão sempre
tentando dar a impressão de que ser cristão é uma coisa
maravilhosa.
Essa, parece-me, é a segunda forma que este erro de
abordagem direta tende a tomar. Não sei qual é a sua experi­
ência, mas, falando por mim, as pessoas mais deprimentes
que julgo haver encontrado, são as que tentam dar a im pressão
de que estão sempre alegres e felizes. Acaso não há toda a
diferença do mundo entre a pessoa que tenta dar a impressão
e a que realmente é feliz? Se uma pessoa é verdadeiramente
feliz, todo o mundo pode vê-lo, dispensa explicação porque
não há como não notá-lo. Mas nunca se sente isso quanto
àquelas outras pessoas. Sente-se que elas estão bancando
ser felizes, é o que se deve fazer, elas estão tentando fazê-lo.
Você vê a fundo tais pessoas. Você sente que a alegria delas
não tem maior profundidade que sua pele, pois carece de
uma qualidade vital e essencial.
Mas nós não somos chamados por Paulo para sermos
expoentes do que poderiamos chamar cristianismo “mecâ­
nico” . Não; é inacreditável que o apóstolo Paulo fosse desse
tipo ou ensinasse alguém a ser desse jeito. Ele experimentava
uma alegria maior do que a que a maior parte da humani­
dade tem tido o privilégio de experimentar neste mundo, e,
contudo, ao mesmo tempo, ele dizia: “Nós, os que estamos
neste tabernáculo, gememos carregados” (2 Coríntios 5;4); e^^
esse elemento nunca deve estar ausente. ^
Portanto, quando nos é dito que nos regozijemos no
Senhor, devemos evitar o erro de tentar fazer isso por meio de

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A VIDA DE PAZ

um ataque direto à nossa natureza emocional. Como, então,


fazer isso? Bem, em primeiro lugar, o nosso regozijo sempre
).Vdeve ser algo que resulte da percepção da nossa posição em
Cristo. Mmha alegria é o produto, quase o subproduto, da
minha concentração em minha relação com Deus em Jesus
Crislp. Isso ficará mais claro à medida que desenvolvermos
estes outros pontos. Permitam-me resumir este primeiro
ponto dizendo que de fato vemos muito claramente que, como
cristãos, devemos regozijar-nos; e suponho que raramente
houve algum tempo na história da Igreja e do mundo em
que esta exortação tenha sido mais importante do gne n é
^ je . O mundo, apesar das aparências externas e das diversas
drogas com as quais se está drogando na tentativa de ser feliz,
é profundamente infeliz, e o que ele está procurando é o
segredo que o leve a esta posição de regozijo. Bem, o que
em geral estamos propugnando é que ninguém, senão o
cristão, pode regozijar-se verdadeiramente, e, portanto, é aqui
que podemos dar o mais tocante testemunho no presente.
Estaríamos nós dando a impressão, na prática, de que as
palavras que o nosso Senhor proferiu para os Seus discípulos
são literalmente verdadeiras: “No mundo tereis aflições, mas
tende bom ânimo (regozijai-vos), eu venci o mundo” (João
16:33)? E somos chamados para mostrar que de fato cremos
que isso é verdade em nossa experiência, que de fato ven­
cemos o mundo.
O apóstolo Paulo expressou exatamente a mesma coisa em
muitas ocasiões. Ele disse aos cristãos romanos: “Estou certo
de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,
nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra cria-
u tura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo
I, Jesus nosso Senhor” (Romanos 8:38,39) - essa é a posição, e eu
e vocês somos chamados^ara ocupá-la. Isso nos é ordenado,
e é nosso privilégio simplesmente chocar o mundo, convencer

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Regozijo Verdadeiro

o mundo e levar o mundo a Cristo, demonstrando que, mesmo


as coisas estando como estão, e apesar de tudo, ainda nos
regozijamos. Mas, se isso é certo, também é certo dizer que
isto constitui um teste bastante completo para provar a nossa ^
profissão de fé. Nós nos regozijamos? Alegamos que somos
cristãos - bem, este é um dos resultados de a pessoa ser
cristã, esta é uma das coisas às quais o cristão é exortado
inevitavelmente. Ao cristão é realmente ordenado que se
regozije - estaríamos experimentando alegria, e seria esta
grande declaração verdadeira quanto a nós?
Deixemos, porém, esse ponto nesta altura e passemos à
minha segunda pergunta. Por aue devemos regozijar-nos no ^
^
Senhor?
' p
E aqui de novo o apóstolo dá numerosas respostas à
questão. Há m uitos moTivos nelos auais devemos regozijar-
-nos no Senhor. O nrimeiro é o aue iá consideramos - que
recebemos ordem para regozijar-nos. Mas isso não é tudo.
Também devemos regoziiar-nos no Senhor por causa do
Senhor. Esta grande salvação, presente no mundo na Pessoa
de nosso Senhor Jesus Cristo, é algo que foi operado por
Deus, é plano de Deus, é esquema de Deus, e Ele enviou
Seu Filho a este mundo. E-nos dito que até os anjos no céu
olham por sobre o parapeito, por assim dizer, para ver como
esta obra de Deus está sendo conduzida neste mundo. Se
vocês lerem E fésios 3:10, verão a descrição que Paulo faz é
disto: “Para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria 3
de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos
céus” . Aos principados que se acham nos lugares celestiais é
dada uma percepção da multiforme sabedoria de Deus por
aquilo que eles vêem na Igreja; a salvação é obra das mãos
de Deus; a salvação, todo o evangelho cristão, é algo que
Deus enviou à vida e ao mundo.
Portanto, desde que é ação de Deus, este é o grande motivo
pelo qual eu e vocês devemos regozijar-nos. Que crédito ^
dá a Deus um cristão que vive miseravelmente? Que crédito

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A VIDA DE PAZ

é dado a Deus e à Sua grandiosa salvação em Cristo por


pessoas que parecem estar sempre se desculpando por sua
fé? Será que isso manifesta a multiforme sabedoria de Deus?
Aí está o motivo nara regoziiar-nos - é fazê-lo pnr ransa
de_Deus. Em 1 Pedro, capítulo 2, Pedro diz a mesma coisa
quando nos declara que Deus nos chamou das trevas para
a Sua maravilhosa luz, para que proclamemos o Seu louvor
e a Sua glória - esse é o objetivo. Portanto, eu e vocês temos
este inestimável privilégio de manifestar a glória de Deus,
e 0 meio supremo pelo qual o fazemos é mostrando que
esta nossa vida cristã é uma vida que nos capacita a vencer
o mundo e a regozijar-nos mesmo em meio à tribulação.
Esse é o segundo motivo.
j O terceiro é óbvio. E pelos outros. Já tratei deste assunto,^
' de modo que não preciso demorar-me nele, mas é nosso
forçoso dever, numa época como esta, regozijar-nos no
Senhor por causa dos homens e das mulheres que nos
rodeiam, em sua aflição e infelicidade, buscando e procurando
uma resposta, indo de decepção em decepção, às vezes até
pensando em sair da vida pela porta dos fundos, que nunca
deveria ser aberta. Por amor dos outros, então, por aqueles
que estão sendo derrotados e levados à frustração pela vida,
é nosso dever expor-nos e irradiar esta nova vida, esta vida
diferente que requer regozijo, para que eles, vendo isso,
digam: “Há esperança para mim, afinal”.
No entanto, permitam que eu lhes mostre também que
0 apóstolo demonstra que até mesmo por nossa própria causa
devemos regozijar-nos no Senhor, e, num sentido, esse é o
grande tema desta Epístola. Ele já estivera salientando o
ponto, e por isso só preciso resumi-lo. Há d^^i^ motivos pel‘^s
quais eu devo regoziiar-me por minha própria causa. Acaso
vocês sabem que regozijar-nos no Senhor é uma das maiores

■Ver o volume 1,A Vida de Alegria.

16
Regozijo Verdadeiro

salvaguardas contra muitos dos perigos que nos confrontam? \


“A alegria do Senhor é a vossa força”, diz Neemias (8:10\ e. \
esse é um princípio óbvio, um princípio psicológico. Quando
nos sentimos felizes podemos fazer o nosso trabalho muito
melhor do que quando nos sentimos infelizes; quanto mais
feliz você se sente, mais facilmente você pode fazer as
coisas, e isso é igualmente certo na vida cristã. Q cristão que
realmente se regozija no Senhor tem muito menos dificul­
dades neste mundo e nesta vida do que aquele que não o
faz, porque, se você não estiver centralmente certo, você já
tem problemas mesmo antes de começar a lidar com outras
pessoas. De modo que viver a vida cristã suave e livremente
deve estar certo já no próprio alicerce.
Não somente isso, porém; observem os diversos perigos
dos quais o apóstolo já tratou em sua carta. Regozijar-nos no
Senhor é a maior salvaguarda, diz o apóstolo, contra aqueles
irmãos que estão pregando Cristo falsamente. Se eu me
regozijasse em mim e em minha pregação, diz Paulo, eu me
sentiria muito ferido pelos ataques deles; mas, graças a Deus,
eu não prego por meu próprio interesse ou por minha repu­
tação, prego por Cristo, de modo que, embora eles estejam
querendo atingir-me, não me tocam. Eu me regozijo no
Senhor, pelo que não me podem agredir nesse ponto. Não
seria óbvio que o aue nos torna tão sensíveis é a nossa preo­
cupação com nós mesmos e com a nossa auto-estima? Essas
coisas é que nos tornam vulneráveis às agressões que nos
são feitas. A única coisa de que você necessita é regozijar-se
no Senhor, simplesmente esquecer-se de si; você não está
trabalhando para si, está trabalhando para o Penhor. Paulõ
fala sobre isso no capítulo dois: “Nada façais por contenda
ou por vangloria, mas por humildade; cada um considere
os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para
0 que é propriamente seu, mas cada qual também para o
que e dos outros” (versículos 3,4), e, se você tão-somente

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A VIDA DE PAZ

fizer isso, diz Paulo, mesmo que você perca todas as coisas,
não ficará desanimado, porque já se considerava um mor­
domo, um administrador. Diz ele: eu os tenho sob meus
cuidados porque me foram confiados pelo Senhor, eles não
são meus; portanto, se eu perder tudo, não estarei perdendo
coisa alguma nesse sentido pessoal.
Regozijar-nos é também uma salvaguarda contra mais
uma coisa. Os filipenses, lembrem-se, sentiam-se infelizes e
se perguntavam o que fariam sem Paulo; estavam um pouco
propensos demais a ver Paulo como seu guia e instrutor.
Por isso Paulo praticamente diz: “ Não se regozijem em
mim, regozijem-se no Senhor; e depois, quer eu viva quer
morra, não importa, o Senhor está sempre com vocês” . O
verdadeiro regozijo é uma salvaguarda contra esse perigo,
e quando estudarmos o capítulo três vocês verão outro mo­
tivo muito importante. Os judaizantes se gabavam da sua
nacionalidade e do fato de terem sido circuncidados. Gabavam-
-se da sua moralidade e de várias outras coisas, e o resultado
foi que finalmente chegaram a um estado de aflição e
miséria, e a única cura era que se regozijassem no Senhor. O
regozijo é uma salvaguarda dos ataques vindos de todas ^
direções.
O quinto grande motivo para regozijar-nos no Senhor é
que essa é a única alegria aue iamais falhará conosco. Isso
é literalmente certo e verdadeiro. Qualquer outra coisa em
que eu e vocês tentemos basear a nossa alegria acabará falhan­
do conosco, seja com nós mesmos, seja com o nosso sucesso,
ou com a nossa capacidade, ou com a nossa cultura terrena, ou
com o nosso lar, ou com os nossos filhos. Não importa o que
seja, cada uma destas coisas finalmente nos será retirada, e
ficaremos isolados. Chegará o momento em que nós mesmos
nos veremos fora desta existência e deste mundo e compre­
enderemos que não podemos levar nada dessas coisas conosco.
Então as nossas almas ficarão despidas e nuas, e seremos

18
Regozijo Verdadeiro

despertados para o fato de que estivemos confiando em coisas


que não podem atravessar conosco o rio da morte - essa é
a solidão da morte.
Em João 16:32 diz o nosso Senhor: “Eis que chega a hora,
e já se aproxima, em que vós sereis dispersos cada um para
sua parte, e me deixareis só; mas não estou só, porque o Pai
está comigo”. Afinal todos nós vamos chegar a isso. O teste
virá quando nos virmos despidos de todas as coisas que o
mundo oferece, e então veremos que esta alegria é a única que
permanece - ela nunca nos abandonará nem nos deixará
sozinhos. Sua promessa é: “Não te deixarei, nem te desampa­
rarei” (Hebreus 13:5), e assim, se eu me regozijar nEle, estarei í
numa posição invulnerável, porquanto nada pode interpor-se
entre mim e o amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso
Senhor. Os homens podem lançar Paulo na prisão, mas não
podem privá-lo da alegria cristã. Podem persegui-lo, despojá-
-lo e difamá-lo; podem tentar privá-lo da reputação do seu
caráter e de tudo mais, porém isso não importa. Eis aqui algo
que jamais poderá ser tocado, algo que está fora do alcance
do homem e de todas as suas maquinações e esforços para
destruí-lo; é uma alegria que nunca falha e da qual nunca
poderemos ser desnoiados.
Como, então, devemos regozijar-nos no Senhor? Esse é (
0 ponto mais prático e, contudo, é perfeitamente simples.
Permitam-me apresentar-lhes a resposta em três proposições.
A maneira de nos regozijarmos no Senhor, como nos é
ordenado, é, primeiramente e antes de tudo, sendo capazes
de exercer controle sobre todas as outras fontes de alegria.
Essa é uma proposição negativa, mas é essencial. Se eu vir
que a minha alegria depende de alguma coisa que poderá ser
retirada de mim. Tenho aue corrigi-la. Como cristão, estou
nesta vida e neste mundo, mas, embora esteja neste mundo,
não sou dele; não devo apegar-me a ele nem às coisas que ele
me pode dar. Devo tomar muito cuidado para não ser colo-

19
A VIDA DE PAZ

cado sob o poder de nenhuma destas coisas. Em seu próprio


lugar, elas são permissíveis e legítimas, muitas delas foram
ordenadas por Deus, porém eu devo fixar minha atenção no
centro da minha alegria e devo sempre vigiá-la e corrigi-la.
Devo expô-la a mim mesmo e procurar aperceber-me do
perigo, e devo recusar-me a alicerçar minhas energias em
nenhum fundamento inseguro.
O próximo aspecto, um aspecto positivo, é o seguinte:
devo meditar no Senhor. Você não pode regozijar-se no
Senhor sem meditar nEle. Devo voltar deliberadamente
meus olhos das ouras coisas que tendem a me seduzir e a me
fascinar, e devo fixar-me demoradamente nEle. Porventura
não é essa a grande réplica do autor da Epístola aos Hebreus,
“...deixemos todo o embaraço, e o pecado que tão de perto nos
rodeia, e corramos com paciência a carreira que nos está
proposta” (Hebreus 12:1,21. Contemple-O, mantenha os seus
olhos fixos nEle. Você tem que olhar para Ele antes de
poder regozijar-se nEle.
E depois, o terceiro e último ponto é este: precisamos
considerar e ponderar o que Ele fez por nós - $ua grande,
marãvItKõsa e gloriosa obra. Devemos voltar e observar a
cruz; temos que ver todo o sofrimento que Lhe sobreveio na
cruz e meditar no que a cruz significou para Ele. Quando
lermos a Bíblia, devemos dizer: “Isto não é filosofia, não é
uma idéia ou uma fábula”. Devemos percorrer toda a história
que conta como Ele deixou as mansões celestiais e Se
humilhou, como Ele subiu cambaleando o Gólgota e foi
para a cruz. Temos que considerar tudo o que Ele sofreu, e
devemos dizer: “Ele fez tudo isso por mim”. Essa é a maneira
de regozijar-nos nEle. Devemos meditar no que Ele fez por
nós, e depois ir adiante e considerar o que Ele está fazendo
por nós agora. Paulo já dissera que Deus opera em nós
“tanto o querer como o efetuar” (Filinenses 2il3i. Ele não só
começou esta obra, mas a continua - “ aquele que em vós

20
Regozijo Verdadeiro

começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus .


Cristo” (Filipenses 1:6). J
Meus diletos amigos, não seria admirável e maravilhosa
a maneira como Ele entra na vida de vocês, muda as circuns­
tâncias que os envolvem e suscita em vocês esperança e
segurança? São essas as maneiras pelas quais Ele está operando
e continuando a obra mediante o Espírito Santo, e quanto
mais vocês se aperceberem disso, mais se regozijarão. Olhem
depois para o futuro, para o fim, e contemplem a consuma­
ção final de toda essa obra. Tomem a visão panorâmica da
história e vejam o mundo em toda a sua confusão, seu caos,
sua angústia, as facções em conflito e toda a balbúrdia que
há nisso tudo. Então, de repente vocês se lembram de que a
obra do Senhor continua e que Ele age tendo em vista um
alvo. Haverá um grande final, uma grande consumação,
quando Cristo vai voltar, vai derrotar todos os Seus inimigos
e vai estabelecer o Seu reino. Haverá então “novos céus e ^
nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3:13), e nós, que ^
cremos nEle e nos regozijamos nEle, reinaremos com Ele t
para sempre.
Não seria esse o modo de regozijar-nos - meditar nisso?
E esse o propósito desta exortação. Não sentaHn pgpp-
rando sentir-se alegre; não tente suscitar estes sentimentos
mediante algum estímulo artificial. A maneira de regoziiar-
-nos no Senhor é meditar no Senhor e em Sua obra de
salvação; é ver o que Ele fez, está fazendo e vai fazer. Se
você realmente vir isto, não poderá deixar de regozijar-se.
Ele firmará você sobre os seus pés; Ele o capacitará a
sorrir mesmo em face da morte, porque a morte não será
nada mais nada menos que a abertura daquela porta estreita
que o levará à glória e à presença do seu amado Senhor.
“ Finalm ente, irm ãos m eus, regozijai-vos no Senhor”
(Filipenses 3:1). •

21
Culto Verdadeiro
“Porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em
espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo na carne. ”
- Filipenses

Neste versículo o apóstolo nos oferece uma das muitas


definições do cristão que se encontram amplamente espalha­
das em suas diversas cartas. Ele achava necessário apresentar
essas definições constantemente. As pessoas para as quais ele
escrevia tinham ouvido o evangelho e tinham crido nele;
tinham sido convertido e se haviam tornado membros da
Igreja Cristã, mas isso não significa necessariamente que eles
entendiam perfeitamente os ensinamentos e a doutrina.
Muitas das heresias que subseqüentemente vieram a inquietar
a Igreja surgiram nos seus primeiros anos. No resto de toda
a sua carreira, o apóstolo teve que travar uma grande batalha
contra a heresia, e por isso ele tinha que ficar repetindo estas
defini-ções do cristão. Com efeito ele estava constantemente
dizendo: “ Se você crê nisto, ou se você faz aquilo, significa
que você não é cristão; ser cristão é isto” - e então oferecia
uma definição. E é justamente isso que ele faz neste ponto.
Penso que vocês verão que toda vez que chegam a uma
destas definições presentes nos escritos do apóstolo, é sempre
matéria de grande interesse e de profunda instrução notar a
maneira exata pela qual ele veio a apresentar a definição.
Neste versículo, seu motivo para apresentar uma definição
do cristão é que ele está interessado na alegria e na felicidade

22
Culto Verdadeiro

destes filipenses. Quando tratamos^JiQ-primeiFo-eapítulft-. de


Filipenses j ,: í -^‘‘Eínalmente, Irmãos meus, regozijai-yps no
Senhor” - as&inalanips que esse é o tema da Epístola toda e
que Paulo escreveu esta carta corn a finalidade de ajudar os
filipenses. não somente a terem esta alegria, mas também a
apegarrse_a.jÊla_£.a_mantê-la. Como já vimos, ele estivera tra­
tando dos diversos problemas que os estavam atacando e que
ameaçavam a sua felicidade, e aqui ele se ocupa de outro pro­
blema que tendia a interferir na alegria da igreja de Filipos.
Desta vez o problema não^ra alguma coisa que estava
acontecendo com ele, ou com eles, era um ensino ialscu-um
erro d^vasmdor,. que devia ser atribuído aos chamados
iudaizantes. Eram pessoas que iam por aquelas primeiras
igrejas cristãs apresentando em nome de Cristo um ensino e
doutrina que o apóstolo irá mostrar que subvertia inteira e
completamente tudo quanto constitui o verdadeiro cris­
tianismo, razão pela qual Paulo se ocupa desta questão
com tanto vigor. Deixem-me esclarecer que o seu interesse
primário não é por mera controvérsia - Paulo nunca se
interessava por controvérsia qua^ controvérsia, não tinha
prazer em discutir só por discutir, e nunca discutia, a não ser
que algo de grande importância estivesse em jogo. Ele se
ocupa desse ponto aqui porque, em sua opinião, se os mem­
bros da igreja de Filipos acreditassem nesta outra doutrina
que lhes estava sendo oferecida, toda a posição deles em
Cristo seria destruída.
Notem como ele nos mostra a imensa importância deste
assunto. Ele o faz ao menos de quatro diferentes maneiras.
Primeiro ele diz aos filipenses que vai repetir uma coisa
que já lhes tinha dito: “Não me aborreço de escrever-vos as
mesmas coisas...” . Pois bem, os doutos comentaristas se dão
muito trabalho sobre essa declaração. Que é que Paulo quer

' Como; como tal. Em latim no original. Nota do tradutor.

23
A VIDA DE PAZ

dizer com ela? Teria ele escrito outra carta, que se perdeu?
Estaria fazendo referência a algo que ele tinha escrito noutras
duas ou três cartas? Os teólogos põem à mostra a sua cultura
tentando resolver essa questão.
No entanto, para mim a explicação óbvia é que Paulo está
se referindo a algo que ele já lhes tinha dito enquanto estava
com eles; é, na verdade, uma coisa que ele está sempre
repetindo, que parece estar em quase cada uma destas cartas.
“Portanto”, diz ele, com efeito, a estas pessoas: “Vou dizer-lhes
de novo uma coisa que vocês já ouviram de mim muitas
vezes, mas não peço desculpa por repeti-la porque “é segu­
rança para vós” . Isso é tão importante e vital que, em que
pese eu ter que ser repetitivo, devo dizê-lo outra vez”. E isso é
uma coisa que exibe Paulo como um mestre sábio e profundo.
Não há t^taçãc) mais sutil, quanto aos cristãos, do que a
tentação para imaginarem que eles entendem perfeitamente
bem os pontos fundamentais da fé. Numa das suas Epístolas
Paulo disse que estava escrevendo porque os seus destina­
tários vacilavam em seus princípios. Pareciam perfeitamente
sólidos em suas crenças, mas a sua conduta revelava claramente
que eles estavam errados quanto a algumas coisas primárias.
E ainda existem pessoas que dizem: “Oh, sim, naturalmente,
já faz anos que eu sou cristão, entendo a mensagem sobre a
justificação pela fé e tudo mais”, e, todavia, é justamente na
citada doutrina que tais pessoas se extraviam tragicamente.
Jamais presumamos que chegamos a uma posição na vida
cristã na qual já não precisamos ser lembrados freqüente-
mente dos princípios elementares do evangelho de Jesus
Cristo. Esta repetição é necessária; sempre corremos o risco de
escorregar para longe da verdade e de presumir que estamos
certos quanto aos pontos fundamentais quando às vezes não
estamos. Paulo se repete e não pede desculpas por isso.
Depois, a segunda maneira pela qual ele salienta a grande
importância deste assunto é pela tríplice repetição do verbo

24
Culto Verdadeiro

“guardar-se” : “Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus


obreiros, guardai-vos da circuncisão”. Bem, isso não é apenas
um indevido exagero da parte do apóstolo. Este assunto é tão
vital que ele não poupa esforços para tentar despertar estas
pessoas para uma tomada de consciência do terrível perigo
que correm. Por isso levanta um cartaz com este letreiro -
guardai-vos, guardai-vos, guardai-vos - e pela repetição isso
fica impresso em suas mentes.
A seguir, o próximo meio de que se serve o apóstolo é a
violência da sua linguagem com relação a estes falsos mestres.
Ora, Paulo não era violento por natureza. Quando vocês lêem
os seus discursos em Atos dos Apóstolos, vêem que cavalheiro
ele era, como era incansavelmente cortês ao dirigir-se a outras
pessoas; dificilmente as ofendia, e quando empregava lingua­
gem forte, como faz aqui, tinha que ser por muito boa razão.
Devido ver o terrível perigo daquilo que esta sendo ensinado
por estes falsos mestres, ele os chama de “cães”. Eles alegavam
que estavam pregando o evangelho e que Paulo não estava, e
eles se haviam referido a todos os outros como cães, e então
Paulo afirma que eles são os cães; eles estão se portando como
cães, rasgando e destruindo tudo com esse tipo de fala.
Chama-lhes depois “maus obreiros”, homens que praticam
males, derrubando igrejas, derrubando cristãos e causando
cismas e divisões. E má obra, diz Paulo. Essa é a estimativa
da doutrina que eles estavam pregando. Depois, finalmente,
ele os denomina “concisão” (VA). E quase um trocadilho.
Estes homens falavam da circuncisão, mas realmente estavam
interessados na concisão: nalguma mutilação do corpo. Paulo,
porém, afirma que nós, em contraste, somos a circuncisão. A
violência desta linguagem é, de novo, uma chocante prova de
que o apóstolo considera este assunto da maior importância.
E então, em quarto lugar, Paulo calca isso em nós pelo
modo como faz a sua declaração positiva quanto ao que
constitui o cristão, e aqui voltamos ao ponto discutido

25
A VIDA DE PAZ

anteriormente. Paulo está escrevendo a cristãos; está escrevendo


a pessoas às quais ele dissera as coisas nobres e maravilhosas
que se acham no capítulo primeiro, 4-10, e também no capítulo
dois. Contudo, este homem é tão perito no que concerne à
vida espiritual que ele conhece as sutilezas destes mestres;
assim, mais uma vez, ele diz aos filipenses: permitam que
eu lhes diga o que é um real cristão. E então lhes apresenta
a sua tríplice definição.
Acabamos de ver, então, a imensa importância deste
assunto. Permitam-me resumi-lo assim: segundo o apóstolo,
toda a nossa posição no tempo e na eternidade depende do
nosso claro entendimento do que constitui o cristão - de
quais são os elementos básicos da posição cristã. E Paulo se
preocupa muito com essa questão porque, conforme o seu
ensino, se estivermos errados sobre isso, todo o nosso futuro
na eternidade sofrerá as conseqüências. Como é vital, então,
que evitemos aqueles falsos ensinos que estão sempre prontos
a fazer com que nos extraviemos.
Mas há um segundo motivo, e é nesse que Paulo está
bastante interessado aqui. A verdadeira alegria da vida cristã
também depende dgjinL.CQXrêto entendimento da doutrina.
Não conheço nada que tenda tanto a privar-nos da nossa alegria
como cristãos como a incerteza a respeito de doutrina. Ah,
quantos são aqueles que de fato acreditam que são cristãos
mas nunca experimentaram a alegria do Senhor sobre a
qual Paulo está falando, e isso simplesmente porque o ensino
que receberam é falso! Há quem pense que é quase pecado
alegrar-se como cristãos. Gente assim pensa que o cristão
anda cabisbaixo, vai se lamentando vida afora, e isso apesar
das exortações para alegrar-nos que vemos em profusão no
Novo Testamento. Tais pessoas olham tanto para si mesmas
que se esquecem de olhar para o Senhor; não entenderam o
fundamento. E é por isso que eu afirmo que é muito importante
que entendamos bem e que estejamos firmemente certos

26
Culto Verdadeiro

quanto a este assunto; é a única maneira de realmente nos


regozijarmos no Senhor e de termos o pleno benefício de
tudo 0 que nos é oferecido em Cristo.
Como isso é urgentemente importante para nós! Estamos
vivendo num mundo repleto de incertezas. Muitos cristãos
hoje não servem a Deus em paz, com segurança e com liber­
dade; estão em circunstâncias nas quais parece que foram
despojados de tudo em que confiavam no passado, e agora a
única coisa que importa para eles é conhecer Deus e orar a
Ele. E se você quiser poder fazer isso, terá que estar firme
em sua posição. Se, quando você dobra os joelhos, começa
a perguntar a si mesmo se você é cristão, ou se tem algum
direito de orar, se há algum questionamento quanto ao
alicerce, como poderá construir sobre ele a estrutura do
edifício? Em época de crise não temos tempo para pensar
nessas coisas, temos que estar habilitados a presumi-las ou
a assumi-las, e buscar Deus imediatamente. Por isso Paulo
se preocupa com esta questão. “ Se vocês estiverem certos
quanto a esta primeira questão”, diz ele com efeito a estes
filipenses, “então, aconteça com vocês o que acontecer, tudo
estará bem entre vocês e Deus, e nada poderá interferir.
Certifiquem-se da posição em que vocês estão.”
E eu sugiro a vocês que isso é algo que também nos
atinge com força. Não me cabe profetizar - quem pode
profetizar em dias como estes? Acaso não são muitos os
sinais no mundo atual que parecem apontar para o fato de que
eu e vocês talvez tenhamos que enfrentar um período no
qual nada importará senão a verdade de que estamos tratando
e que a única coisa que importará será conhecer Deus? Por
isso digo que não há nada mais importante do que saber o
que significa exatamente ser cristão. Assim é que, com o
apóstolo Paulo, eu não peço desculpa por chamar a atenção
de vocês para este assunto, para que o conheçam bem,
porque para todos nós “é segurança” que o façamos.

27
A VIDA DE PAZ

Pois bem, o apóstolo expõe a sua causa, como já lhes


lembrei, em termos dos judaizantes. Eles iam por todo lado
ensinando que não é suficiente crer em Cristo. “Você tem que
ser judeu”, diziam eles, “você tem que ser circuncidado.” E
visitavam as novas igrejas gentílicas com essa mesma mensa­
gem. “Ah, sim”, continuavam eles, “você crê no evangelho
pregado por Paulo, mas ele não foi suficientemente longe!
Se você quiser ser um cristão verdadeiro, terá que ser cir­
cuncidado. Você precisa ter algum conhecimento do culto
que se realiza no templo. Você não pode jogar fora todos
aqueles sacrifícios; eles continuam sendo essenciais - é preciso
Cristo-mais.” Essa era a mensagem deles, e foi essa a mensagem
a que Paulo se contrapôs com sua tríplice réplica.
Naturalmente eu e vocês não encontramos um ensino
precisamente nessa forma, mas o princípio que lhe é subja-
cente continua conosco, e à medida que estudarmos a definição
feita pelo apóstolo, penso que vocês verão claramente que não
estamos fazendo algo de interesse meramente acadêmico. Isso
pode acontecer em períodos em que o mundo está em paz,
como, por exemplo, nos dias da era vitoriana, mas nós estamos
examinando coisas que são relevantes hoje e que são tão
ameaçadoras para nós como o foram para os filipenses. E por
isso que devemos ter todo o cuidado de entender verdadeira-
^l,^J^ente a tríplice definição que Paulo faz do cristão.
A primeira característica que Paulo apresenta dos cristãos
é que eles servem a Deus “em espírito”; ou, para apresentar
já uma tradução alternativa (é impossível decidir qual é a correta),
podemos dizer: “A circuncisão somos nós, que servimos, ou
adoramos pelo Espírito de Deus”. Esta ou aquela pode estar
certa, não importa, porque essencialmente ambas as traduções
dizem a mesma coisa. Noutras palavras, a primeira coisa que
temos que encarar, se desejamos saber se somos realmente
cristãos ou não, é tudo o que se refere à ad oraçãq^u al é a
nossa idéia ou a nossa detÍniçlõ~de^!dõiu^o? Que é que

28
Culto Verdadeiro

realmente queremos dizer quando declaramos que adoramos


a Deus? “Ora, certo”, perguntará alguém, será que você não
está pedindo que consideremos coisas muito elementares?”
Mas eu o peço porque o apóstolo nos mostra com muita
clareza que o simples fato de que pensamos que somos
ad^adores.iiãa-prDm-que-rêalmente ado r a i s a Deus.
Há, entãouun-falsD_niodQ de adorar inteiramente oposto
ao verdadeiro. O apóstolo, vejam vocês, expressa o ponto de
um modo que contradiz o falso ensino dos judaizantes. “Eles
falam em “a circuncisão”, diz ele praticamente aos filipenses,
“estes outros mestres, que estão tentando inculcar em vocês
que eles estão certos. Estão sempre dizendo a vocês que vocês
devem ser circuncidados e que devem retornar aos cerimo­
niais e rituais judaicos e à adoração no templo, mas eu lhes
digo que vocês não podem adorar fazendo as coisas desse jeito.
Nós somos a circuncisão, e nessa qualidade adoramos a Deus
em espírito.” Que significa isso? Bem, em primeira instância,
0 cristão serve a Deus no espírito e sabe que aquelas outras
coisas não são mais necessárias. Há um novo caminho para
Deus, outro método, o qual agora é o certo; o outro foi posto
fora. Não é que ele era errado em si mesmo, mas, quando
você se torna cristão, ele deixa de ser necessário, e voltar a
ele é negar Cristo. Essa é a mensagem de Paulo.
Certamente este assunto ainda é relevante no presente. Tem
havido muita prosa nos anos recentes sobre adoração, e há
segmentos da igreja que dão muita ênfase a isso. Uma vez
participei de uma conferência na qual um excelente homem,
que acaso pertencia à Igreja Anglicana, estava dirigindo a
palavra e, sem nenhum desejo de ser ofensivo, disse: “Natu­
ralmente, a real diferença entre nós, anglicanos, e os não
conformistas é que nós damos ênfase à adoração”. E .coube-a
mim opinar aue ele não estava sabendo diferenciar entte
liturgia e ver.d ad eira^d ^ Ele queria dizer que os
anglicanos davam mais atenção à forma e à cerimônia do

29
A VIDA DE PAZ

que à pregação e à proclamação da Palavra, e esqueceu


que cada parte do culto é adoração a Deus.
Bem, eu uso isso meramente como ilustração para mos­
trar a vocês o que estou querendo dizer. E muito interessante,
quando se examina a história dos últimos cinqüenta anos,
mais ou menos,^ observar certas tendências que estão se
introduzindo na igreja. Elas me preocupam por causa do
estado em que se encontra a igreja atualmente. Estou certo
de que todos nós lamentamos o fato de que o número de
cristãos neste país é tão pequeno. Alguns gostam de dizer
que está tudo bem e que o país está quase cheio de cristãos,
porém eu imagino que a maior parte de nós não se dispõe a
afirmar tal coisa. Vemos que o cristão não conta, que a Igreja
não conta, e que a vida espiritual da nação vai indo abaixo.
Portanto, a questão que se levanta é: por quê? Bem, para
mim não é destituído de significação o fato de que, durante
os anos recém-passados, tem havido a crescente tendência de
retornar a uma forma de culto mais elaborada, ao uso de ora­
ções escritas e de liturgia. Há a tendência de exaltar edifícios,
especialmente edifícios bem ornamentados, e a tendência
de voltar às formas mecânicas de culto e de vida cristã.
Parece-me que, recentemente, essa tendência tem sido
marcante no movimento não conformista, bem como no
anglicanismo, e, portanto, isso é algo que, certamente, nós temos
que encarar juntos, porque se baseia numa certa idéia sobre
a adoração. Existe a tendência de exagerar e de inculcar em
nós a forma e a dignidade do culto e de rir dos nossos ante­
passados, que prestavam culto com maior liberdade, oravam
espontaneamente e louvavam tão livremente; há a tendência
de olhar sobranceiramente para o culto que eles realizavam
e de achar que lhes faltava solenidade. Hoie a adoração,
assim chamada, reverteu-se a mera forma ('ritual), e as pessoas

*A partir do início do século vinte. Nota do tradutor.

30
Culto Verdadeiro

acreditam que isso é verdadeira adoração. Para mim sempre


foi patético assistir a um culto nalguma grande igreja quando
o que se busca é o efeito produzido por um tipo particular
de edifício. O leito de verificar se as pessoas estão adorando
verdadeiramente ou não é.observar a sua conduta. A adoração
não tem relação nenhuma com o efeito produzido por um
particular tipo de edifício. O pagão em seu culto pagão
pode ter sentimentos maravilhosos, mas isso é verdadeira
adoração?
Noutras palavras, isso é confundir a aparência com a
realidade, e sugere uma atitude de reverência, antes que uma
verdadeira reverência. O verdadeirQ-adoradQrmãQ.á-aauele
que devotamente vai logo cedo a uma celebração e depois se
acha no direito de descansar o resto do dia, mas sim aquele
que adora com o co£açãq eçpm p espírito. Há sempre o perigo
de presumirmos que sabemos muito bem o que significa a
adoração, quando na verdade estamos fora do rumo. Mas, à
parte desses perigos óbvios, desejo fazer uma pergunta
muito mais pessoal e direta - que dizer da nossa adoração
individual e privada? Não temos liturgias para isso, não
temos cerimônias e formas, mas não permita Deus que por
isso imaginemos que a nossa adoração é certa e verdadeira.
Faço esta pergunta direta: você adora realmente a Deus? A
primeira característica do cristão, diz Paulo, é que ele serve
ou adora pelo Espírito de Deus ^isso é real adoração. Que é
que ele quer dizer? Permitam-me sugerir algumas perguntas
que devo fazer a mim mesmo a fim de determinar se eu
estou adorando realmente a Deus da maneira estabelecid^
pelo apóstolo.
Eis a primeira pergunta: eu adoro por dever, ou sinto ^
desejo de adorar? A adoração é uma incumbência que tenho
que cumprir, ou ela surge espontaneamente do meu íntimo?
Vejam vocês, o apóstolo define os cristãos como aqíieles que
adoram como fruto da operação do Espírito Santo neles, de

31
A VIDA DE PAZ

modo que adorar a Deus deixa de ser uma questão de dever,


é um deseio._Em segundo lugar, para expor o ponto de
maneira ligeiramente diferente, adorar a Deus pelo Espírito
significa que não precisamos forçar-nos a adorá-10, mas temos
consciência de que estamos sendo movidos, de que estamos
sendo impelidos a adorar. Não seria essa a prova decisiva?
Muitos de nós sabemos o que é ser forçado a ir a um local de
culto. Isso aconteceu conosco quando éramos crianças. E pode
ser que, quando éramos mais velhos, éramos forçados a ir à
igreja, ou pelos pais, ou nos diziam que era isso que tínhamos
que fazer. Não queríamos ir, sentíamos uma certa compulsão,
e nos rendíamos a isso. Não há toda a diferença do mundo
entre esse modo de agir e ter a consciência de estar sendo
movido, conduzido, por algo dentro de nós que insta conosco
e nos dirige? Há total diferença entre ajoelhar-nos mecanica­
mente ao lado da nossa cama porque é isso que se deve
fazer, e a experiência que nos vem, talvez, quando estamos
lendo a Bíblia, ou caminhando pela rua, ou meditando.
Somos movidos, somos perturbados e sentimos a direção do
Espírito. Esta consciência de que estamos sendo movidos
ii^riorm en te, de que estamos sendo cajpturados.e.jjondu-
zidos, é a característica da adoração jjelo-EspíritQ,.
Adorar pelo Espírito de Deus não é algo frio e formal, é
semp7ê~ãlgo cálldõ^ cheio deãmor ellvre. Certamente vocês
se lembram de como Paulo se expressa quando escreve à
igreja da cidade de Roma; diz ele; “O amor de Deus está
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos
foi dado” (Romanos 5:5). Se o Espírito Santo está em nós, só
pode haver algo do amor de Deus em nós, e temos que ter
este amor a Deus para que as nossas orações não sejam frias
e formais e nem mesmo tão-somente belas. Não, não é isso
que caracteriza a adoração pelo Espírito; é preciso haver
calor; é preciso haver liberdade; precisamos experimentar
algo do que é perder-se em louvor quando adoramos. E o

32
Culto Verdadeiro

calor do Espírito, não uma formalidade fria.


Todavia, permitam que eu o diga ainda mais especifi­
camente. Conforme os homens adoram cada y e z mais pelo
Espírito, vão se tornando cada vez menos dependentes dos
meiog.. Por “meios” me refiro a edifícios, liturgias, sacerdotes,
ministros, ou mesmo outras pessoas. Sugiro-lhes que, se vocês
lerem as biografias de algumas pessoas que nunca saíram da
igreja católica romana, mas que, ao que me parece, eram
inteiramente evangélicas, apesar de permanecerem lá, vocês
verão que, sem exceção, quando os homens vêm a conhecer
realmente a Deus e a adorá-10 no sentido evangélico, bíblico
começam a largar das suas orações escritas, da sua liturgia e
das suas formas, e começam a orar do coração; suas orações
passam a ser extemporâneas. Vê-se isso nos relatos do Aviva-
mento Metodista do século dezoito. Penso que, provavelmente,
todos nós achemos mais fácil adorar a Deus numa reunião
de oração do que num cenário eclesiástico formal, mas, à
medida que nos tornarmos mais espirituais, ficaremos menos
dependentes até dos nossos amigos e irmãos, e experimenta­
remos a mesma liberdade e facilidade que experimentamos
quando estamos a sós com Deus.
Permitam-me avançar um pouco mais. A verdadeira
adoração a Deus pode ser provada desta maneira; o homem
que adora a Deus no espírito não pensa em Deus como
uma abstração distante, quase como um conceito filosófico,
remotamente distante. Q homem que adora a Deus nq_ es­
pírito apercebe-se da presença de Deus: ele sabe que Deus
está ali, a seu lado. Se é conduzido pelo Espírito, ele toma
consciência de eslar na presença do Todq-poderoso. Que
belo teste da adoração espiritual!
Mas permitam-me sugerir-lhes uma última coisa, e penso
que esta é a melhor de todas. Podemos estar inteiramente
seguros de que adoramoA a Deusmo espírito^quando-temos a
perfeita mistura de, por um lado, um sentimento de reverência

33
A V ID A D E PAZ

e de santo temor, e, por outro, o espírito de adoção pelo


qual clamamos, “Aba, Pai” . Quero salientar isso porque
existem aqueles que podem concordar com tudo o que eu
disse até aqui. Podem dizer; “Você está perfeitamente certo
no que diz sobre a liturgia, a forma e a aparência. Acredito
na liberdade da adoração sobre a qual você está falando”.
Eles consideram adoração livre como algo que significa
gritar bastante, e, talvez, tocar pandeiro ou bateria; eles
acham que isso é adoração real.
Contudo, o oposto da liturgia, da forma e da cerimônia
não é a carne; e a verdadeira adoração espiritual não está em
costumes terrenos e carnais. Certamente todo aquele que
adora a Deus no espírito sabe o que o Senhor disse à mulher
samaritana: “Deus é um Espírito, e os que o adoram devem
adorá-lo em espírito e em verdade” (João 4:24, VA). Quem se
apercebe da presença de Deus, apercebe-se de aleo da Sua
santidade e se sente indigno. Não posso ir às pressas à pre­
sença de Deus. Não posso tratá-10 com familiaridade fácil
ou leviana, não posso gritar, não posso render-me à carne -
não, como diz o escritor da Epístola aos Hebreus, é preciso
haver “ reverência e santo temor” (Hebreus 12:28, ARA). Sim,
mas, ao mesmo tempo, “não recebestes o espírito de escravidão,
para outra vez estardes em temor, mas recebestes o espírito
de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai” (Romanos
S.-ISJ. Essa é a suprema e verdadeira adoração espiritual.
Dou-me conta da santidade de Deus, de modo que me
aproximo dele com reverência e temor, e, contudo, ao mesmo
tempo, sei que Ele é meu Pai, e Lhe digo: “Aba, Pai” . Sei
que Ele não é mera abstração. Sei que Ele me amou com
amor de Pai, sei que até mandou Seu Filho para a cruz
para me salvar. Ele Se nrentcupa-tanto comigo aue até os
cabelos da minha cabeça estão_J:odos contados, e nada me
pode acontecer à .parte..dEle...
Oh, submetamo-nos à prova destas coisas! Seria nossa

34
Culto Verdadeiro

adoração assim? Estaríamos adorando a Deus no espírito, ou


é mera questão de forma e aparência? Oro e leio a Bíblia
ocasionalmente, ou de fato sei que o Espírito cuida de mim?
Tenho consciência de que sou conduzido? “Todos os que são
guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”
(Romanos 8.T4). Ele guia, Ele dá liberdade, Ele inflama o
amor. Conhecemos Deus? Porventura amamos Deus? Pode­
mos dizer-lhe, “Aba, Pai” ? Não permita Deus que estejamos
confiando nalguma noção ou concepção errada de adoração;/
antes, queira Deus .c.Qnc,ederTCLOS que scjamas capazes de
ver que nós somos, a-circuncisão,- porque O adoramos pelo
Espírito.

35
Tudo em Cristo
“Porque a circuncisão somos nós, que servimos a D eus em
espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne. ”
- Filipenses 3:3

Ao continuarmos a nossa consideração deste versículo,


permitam-me lembrar-lhes que Paulq fez esta narticular
definição do cristão a fim de contrapor-se ao falso ensino aue
estava sendo oferecido aos filipenses pelos chamados judai-
zantes. E importante que te nhamos isso em mente, porque,
num sentido, esta definição só pode ser entendida plena­
mente quando a estudamos em seu próprio cenário. Ela é
decididamente polêmica. Não é tão-somente uma declaração
positiva, é também, ao mesmo tempo, uma contestação sobre
algo que ele está escrevendo. E uma afirmação, mas é também
uma rejeição, e é contra esse pano de fundo que vemos o
elemento dual da definição de Paulo.
Pois bem, é um fato extraordinário o apóstolo poder
oferecer-nos, num espaço tão curto, uma definição perfeita e
completa do cristão. Não lhe falta nada, e, se nos examinar­
mos honestamente à luz desta declaração, haveremos de
entender clara e seguramente, com as nossas mentes e com os
nossos corações, se somos cristãos ou não. As coisas impor­
tantes, essenciais, são, todas e cada uma delas, mencionadas
neste único versículo. Voltemos a examiná-las.
Naturalmente, a primeira é a nossa atitude para com
Deus. Isso vem necessariamente em primeiro lugar. Em

36
Tudo em Cristo

nossa tentativa de descobrirmos se somos cristãos ou não, não


devemos começar por nossas vidas, ou por nossas sensações e
experiências. Não devemos perguntar meramente: “ Sou feliz?
Tenho sucesso na vida? Estaria cometendo alguns pecados?”
Nossas respostas a essas perguntas podem dizer-nos alguma
coisa sobre o cristão, mas, se começarmos e pararmos nisso,
obviamente ficaremos numa condição muito perigosa. Todas
as espécies de coisas ilusórias podem propiciar tais experiên­
cias às pessoas - os falsos ensinos também podem fazê-lo - de
modo que a definição nunca deve começar ali. E óbvio que eu
devo começar por nossa relação com Deus. Foi isso que estu­
damos no capítulo dois deste livro - adoramos a Deus “pelo
Espírito” . O Novo Testamento freqüentemente salienta o
contraste entre a letra e o espírito. E neste versículo somos
postos imediatamente em confrontação direta com a doutrina
de Deus o Pai e com a doutrina de Deus o Espírito Santo.
Não somos cristãos, diz Paulo, a não ser que adoremos a
Deus desta maneira. Tal adoração é resultado da operação
do Espírito Santo.
Assim, pois, tendo considerado esse aspecto, passemos à
segunda declaração feita pelo apóstolo. Ele faz a abertura com
as palavras: “A circuncisão somos nós, que servimos a Deus o
Espírito...”, e agora ele segue adiante com a segunda declara­
ção: “ ...e nos gloriamos em Jesus Cristo” . Noutras palavras^o
segundo grande teste do nosso cristianismo é a nossa atitude
para com o Senhor Jesus Cristo, isto é, o lugar que o Senhor
Jesus Cristo ocupa em nossas vidas. Aqui de novo chegamos a
algo que o apóstolo repete constantemente. Já vimos que o
apóstolo concentra a sua atenção nisso,^ na verdade, como tem
sido demonstrado muitas vezes, Paulo foi um homem “Cristo-
-intoxicado” . Paulo não pode deixar Cristo de lado, está sempre
falando dEle. Este ponto é óbvio. O próprio nome “cristão”*

*Ver o volume l,A Vida de Alegria.

37
A V ID A D E PA Z

deveria ser suficiente em si para fazer-nos ver que Cristo é


absolutamente central. Adoramos a Deus no espírito; sim,
^ isso está certo, e a grande característica dessa adoração é o
lugar que o Senhor Tesus Cristo ncuna nela.
Bem, o apóstolo diz isso de maneira notável, e aqui,
lamento dizê-lo, devemos fazer ligeira correção na tradução
da Versão Autorizada (inglesa), não porque não é verdadeira,
nem porque não é certa, mas porque não mostra o particular
matiz do sentido que o apóstolo deseja comunicar. No primeiro
versículo deste capítulo Paulo escreve: “Finalmente, irmãos
meus, regozijai-vos no Senhor”. E aqui, no versículo 3, de novo
lemos: “...que adoramos a Deus no espírito, e nos regozijamos
em Cristo Jesus”. Na Versão Autorizada a mesma palavra
inglesa, “ regozijar*se”, é empregada nos dois versículos, porém
não é a mesma palavra no original. A palavra que Paulo
emprega no versículo 3 significa regozijar-se, mas expressa
uma particular forma de regozijo. Estou interessado em
salientar isso devido ao substrato polêmico desta declaração.
Paulo está lidando com. estas outras pessoas, com estes
judaizantes, sobre quem pesa a culpa de ministrarem ensino
errôneo, e é por isso que ele emprega uma palavra diferente
neste ponto.
Que será, então, que ele quer dizer com “nos regozijamos
em Cristo Jesus” ? Bem, uma tradução melhor neste ponto
seria com a palavra “gabar-se”, “ jactar-se” : “A circuncisão
somos nós, que nos jactamos de Cristo Jesus”, ou, se vocês
preferirem, “nos gloriamos em Cristo Jesus” (cf. Almeida: “nos
gloriamos”), ou “nos orgulhamos de”, ou, talvez melhor ainda,
“ falamos alto e bom som de Cristo Jesus”. Pois bem, esse é
de fato o sentido da palavra que o apóstolo empregou neste
versículo três. Claro está que você pode dizer que quem se
jacta de Cristo está se regozijando nEle, mas notem a dife­
rença na nuance de sentido. Aquelas outras pessoas, os
judaizantes, jactavam-se de outra coisa. Jactavam-se do fato

38
Tudo em Cristo

de que eram judeus e de que tinham sido circuncidados, de


que guardavam a lei. Nós, que somos cristãos, disse Paulo,
não nos jactamos destas coisas, mas de Cristo Jesus. Eles
estavam se jactando, essa era sua grande característica, e por
isso o apóstolo emprega deliberadamente esta palavra em
particular.
A

E a mesma palavra que vemos em 1 Coríntios, capítulo 1.


Ali Paulo assinala que nem muitos poderosos, nem muitos
nobres são chamados, e o motivo disso, diz ele, é que “nenhuma
carne se glorie (se jacte) perante ele” . E a mesma palavra que
no texto que estamos estudando é traduzida por “ regozijar-
-se”. E a vemos de novo no último versículo de 1 Coríntios,
capítulo 1, onde Paulo diz - “Como está escrito: aquele que se
gloria, glorie-se no Senhor” . Novamente a mesma palavra,
duas vezes,'não traduzida por “ regozijar-se”, mas por “gloriar-
-se”, e acertadamente, embora eu tenha sugerido que melhor
seria empregar na tradução a palavra “ jactar-se” - “Como está
escrito, aquele que se jacta, jacte-se, glorie-se, ufane-se do
Senhor, fale do Senhor em alta voz”.
E é isso que o apóstolo quer dizer aqui com a expressão
A

regozijar-se em Cristo Jesus. E uma declaração profunda, e


nós devemos tentar captar algo da sua profundidade. Não
significa apenas crer; significa isso, porém muitíssimo mais!
Você node crer numa nessoa, numa dinastia, ou num país e,
todavia, não ter orgulho disso. Que imenso mundo de diferença
há entre isso e jactar-se de algo, regozijar-se em algo! Muitos
há que acreditam numa causa ou noutra p Hispnstpw» a
dar-lhe apoio geral, mas há outros que se põem no fogo pela
causa que defendem, são zelosos, vibrantes e ativos, e estão
dispostos a derramar a última gota do sangue de suas veias
por essa causa. Oreulham-se dela, gloriam-se nela - essa é a
palavra.
Essa é a atitude dos cristãos, essa é a marca por excelência
dos verdadeiros crentes, diz Paulo; eles se jactam de Cristo

39
A V ID A D E PA Z

Jesus, exultam nEle; não somente crêem nEle, mas todo o seu
ser comove-se quando eles O contemplam, quando meditam
nEle. Noutras palavras, Ele é tudo em todas as coisas para eles
e, por isso, eles desejam atribuir a Ele toda a honra e toda a
glória. Ou talvez possamos expressar-nos desta maneira: a
característica do homem que se jacta é sempre, como a palavra
grega sugere, que ele fala em alto e bom som de si mesmo -
foi o que sugeri como uma tradução alternativa. Quando
você descreve alguém como “jactancioso”, você quer dizer
que ele deseja que todo o mundo saiba que excelente sujeito
ele é, e por isso fala em alto e bom som de si mesmo. JDê
acordo com esta tradução, os cristãos são pessoas que estão
sempre falando a respeito de Cristo, sempre O estão louvan­
do, e desejam que todas as outras pessoas ouçam falar dEle.
Eles querem que os outros saibam quão maravilhoso Ele
é, e assim sempre Lhe prestam homenagem e sempre Lhe
atribuem glória e honra.Toda a sua conversa é sobre Ele,
eles não podem parar de fazê-lo: é sempre Cristo.
Pensem nisso também em contraste com os judaizantes
que estavam sempre falando sobre a sua nacionalidade e sobre
todas aquelas coisas que Paulo menciona mais adiante.
Naturalmente, Paulo conhecia tudo isso muito bem; não tenho
dúvida de que, ao escrever esta Epístola, ele não estava pen­
sando só nos judaizantes, estava pensando também em si, como
ele era antes da sua conversão - que homem orgulhoso ele tínha
sido! E muito interessante percorrer todas as Epístolas'de
Paulo de olho nesta palavra grega que deveria ser traduzida
por jactar-se - recomendo isso àqueles dentre vocês que são
eruditos em Bíblia - verão que essa é uma das grandes pala­
vras de Paulo. No versículo seguinte ele vai dizer: “Ainda que
também podia confiar na carne; se algum outro cuida que
pode confiar na carne, ainda mais eu” (versículo 4) - e quantas
vezes ele repete isso! Era sua grande característica. Mas agora,
diz ele, já não é assim. Ele agora se jacta do Senhor Jesus

40
Tudo em Cristo

Cristo. Gloria-se nEle. Cristo é Aquele sobre quem Paulo


fala. “Nada me propus saber entre vós”, diz ele aos coríntios,
“senão a Jesus Cristo, e este crucificado” (1 Coríntios 2:2) -
regozijar-se, gloriar-se, jactar-se, exultar em Cristo Jesus.
Ora, se é isso que significa gloriar-se ou regozijar-se,
perguntemos, a fim de elucidar ainda mais a questão: por
que o cristão se jacta de Cristo dessa forma? Por que deveria
fazê-lo? Por que essa é a marca por excelência e a prova decisiva
do cristão? Eu não hesito em fazer uso de tais expressões. Para^
mim, a grande prova que distingue entre os qne são cristãos
e os que não são é o lugar de Cristo na vida deles. Seria Ele
central, essencial, absoluto? Se não for essa a nossa posição,
significa que, segundo o Novo Testamento, não somos cristãos^
.Que aconteceria conosco se de repente ouvíssemos dizer que
Cristo nunca existiu? Porventura nossas vidas não seriam
afetadas? Se não fossem não podemos ser cristãos, de acordo
com esta definição. Mas, por que é, então, que o cristão se
jacta e se gloria dessa forma no Senhor Jesus Cristo? Bem,
naturalmente, a resposta a isso é todo o evangelho. Aqui vou
simplesmente mencionar alguns pontos centrais que vocês
conhecem bem, mas não peço desculpa por me posicionar
com o grande apóstolo quando ele diz: “Não me aborreço
de escrever-vos as mesmas coisas...” . Não somente isso, se
alguma vez você se cansou de ouvir falar sobre o Senhor
Jesus Cristo, melhor seria reexaminar os (seus) fundamentos.
Qs santos, os que pertencem a Deus, nunca se cansam de
íouvãr as virtudes de Deus e de proclamar Sua glória e a
maravilha do Seu sen
Que sera, então, que deve fazer com que nos jactemos
unicamente nEle? Em primeiro lugar, é o próprio fato de Sua
Pessoa; Ele sobressai dentre todos os outros. Devo iactar-me
dEle, gloriar-me nEle. porque Ele é de fato o Filho unigênito
de Deus. Aí está o milagre da encarnação. E tudo o que Paulo
estava descrevendo nos primeiros versículos do capítulo dois.

41
A V ID A D E PA Z

todo aquele maravilhoso processo que trouxe o Filho de


Deus do céu à terra e O moveu a viver aqui na semelhança
da carne pecaminosa, e assumir a forma de servo e fazer
tudo o que Ele fez. Quando você olha para Ele e vê isso
tudo, e capta o significado disso tudo, só lhe resta fazer
uma coisa: jactar-se dEle, gloriar-se e exultar-se nEle.
Portanto, o nosso primeiro argumento é Sua Pessoa, e só
esse já basta. Todos nós temos muita coisa própria do adora­
dor dos heróis, e quantas vezes nos jactamos do homem,
quantas vezes elogiamos grandes homens do mundo, líderes
e pessoas que ocupam altos lugares e posições? Mesmo que
remotamente relacionados com eles, quanto orgulho sentimos
deles, e como gostamos que as pessoas saibam disso! Bem,
multiplique isso pela infinidade e ali você terá o Senhor
Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus encarnado - na carne -
aqui neste mundo, vivendo como homem. Se você quer
jactar-se, jacte-se disso, e jacte-se do fato de que você sabe
que graças à operação do Espírito Santo em seu ser, você
pertence a Ele e está relacionado com Ele. Jacte-se da
grandeza, da maravilha e da glória da Pessoa de Cristo.
Mas permitam que eu passe para outra coisa, pois o
assunto não termina aqui. O cristão se gloria em Cristo
porque se dá conta de que o objetivo da encarnação era que
Ele nos salvasse dos nnssns pecados e nos reconciliasse com
D e ^ . A encarnação em si, meramente como um espetáculo,
já é algo suficientemente grande e suficientemente grandioso
para absorver todo o nosso louvor e toda a nossa jactância.
Todavia, quando compreendemos o sentido e o propósito
dela, quando compreendemos que Cristo fez tudo isso por
nós, por amor de nós, por causa dos nossos pecados, e para o
nosso livramento e a nossa emancipação em todos os sentidos,
esse desejo de jactar-nos não se torna infinitamente maior?
Segundo o Novo Testamento, Cristo veio especificamente
para nos salvar, e quando nos dermos conta disso, com o

42
Tudo em Cristo

grande apóstolo vamos sentir que nada importa senão


unicamente Cristo.
Ou expressemos esse ponto de maneira ainda mais pes­
soal, e, naturalmente, isso é essencial porque eu realmente
quero que saibamos o que é iactar=.sejiE le. Certo é que devo
examinar a verdade objetivamente, mas, se a minha visão for
somente objetiva, o fator jactância não surgirá. A jactância
válida entra no ponto em que compreendemos que a nossa
salvação pessoal denende inteiramente dEle. E por isso que
Paulo, tratando desse assunto em Gálatas 2:20, fala “do Filho
de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”.
É coisa estupenda ver o Filho de Deus levando em Seu
corpo os pecados da humanidade no madeiro. Esse fato é,
em si, suficiente para fazer com que eu caia de joelhos e O
.adore e O louve. Entretanto, quando me dou conta de que
Ele 0 fez por mim, sim, por mim, e de que eu estou pessoal­
mente envolvido, nesse ponto eu me perco em encantamento.
Porque Ele fez tudo isso por mim, eu me jaclp, e tenho
minha jactância nEle. Quando me dou conta de que Ele é
o meio de que Deus Se serve para me salvar, e que não há
salvação para mim à parte desse fato, eu me glorio nEle,
Que significa isso tudo para nós? Bem, o Novo Testamento
fala sobre isso numa quase interminável variedade de maneiras.
Primeiro, é só em Cristo que eu chego a ver o meu problema
e a minha necessidade. Antes de realmente ver o Senhor
Jesus Cristo, o apóstolo Paulo tinha uma vida que lhe era
satisfatória. Contudo, havia algo fundamentalmente errado,
e, por isso, posteriormente, quando chegou a ter o conceito
certo, passou a dizer que todas as coisas das quais ele se jac­
tava tornaram-se refugo para ele. Antes de conhecer Cristo,
ele estava numa espécie de paraíso dos bobos, achando que
podia justificar a si mesmo e que tudo estava bem com ele.
Praticamente ele diz: “Eu teria continuado a viver daquela
maneira, não fosse Cristo; foi Ele que me fez ver a mim

43
A V ID A D E PA Z

mesmo, e ver o erro e o perigo de toda a minha posição”.


Essa é a primeira coisa que Cristo faz; é Ele que nos faz ver
0 nosso pecado e a nossa necessidade, e faz com que conhe­
çamos a condição desesperada na qual nos encontramos.
Mas, graças a Deus, o processo não pára aí, porque, no
momento em que vemos isso, instintivamente tentamos fazer
alguma coisa para corrigir-nos e para livrar-nos desse pecado
e dessa culpa. Não conheço nada que seja mais deprimente e
desanimador, nada que seja tão verdadeiramente mortífero
para a alma e para o espírito, do que essa luta contínua para
adequar-nos para estar na presença de Deus; não se pode fazer
isso. Paulo experimentou algo disso, e foi depois de alguma
luta que ele viu que, mais uma vez. Cristo era a resposta. Ele
viu todo o significado da morte na cruz; viu que ali Cristo o
estava colocando em boas relações com Deus. Ele não poderia
fazer isso por si, e ninguém mais tampouco poderia. Ele viu
que todo o sentido da cruz era que “Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo”, que “Aquele que não conhe­
ceu pecado” Deus “o fez pecado por nós” (2 Coríntios 5:19-
21). São palavras de Paulo. E ele escreve ainda: “Ao qual Deus
propôs para propiciação” (Romanos 3-J.5X o que significa que
lá no Calvário Deus estava fazendõ~algo que O habilitou a
perdoar. Ele tinha lançado os pecados de Paulo sobre Cristo,
e os tinha punido em Cristo, e assim Paulo foi perdoado e
ficou livre - é isso que a morte de Cristo na cruz significa. E
Paulo tinha vindo a enxergar isso, e ele havia encontrado
paz e descanso, e sabia que fora reconciliado com Deus.
Então começa a nova vida, a nova força, o novo poder, a
nova perspectiva, o novo entendimento, o novo tudo - mas eu
estou tentando o impossível! Vejam vocês, Paulo parece dar-
-se conta, no fim de 1 Coríntios, capítulo 1, de que isso é algo
que ele nunca conseguirá expressar, e por isso o coloca nestes
termos: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós
foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”

44
Tudo em Cristo

(1 Coríntios 1:30). Havería algo mais grandioso? Cristo é tu,do.


O Alfa e o Omega, o princípio e o fim, o começo e o término,
o Tudo em todos, e nEle estamos completos. Haveria alguma
coisa que você conceba ou imagine que necessita ou quer para
a sua alma? Está tudo nEle: “nele habita corporalmente toda
a plenitude da divindade” t^ln ssen ses 2:91 Não há nada que
a alma do homem possa necessitar no tempo ou na eterni­
dade que não esteja totalmente em Cristo. Você precisa de
perdão? Ali está. Você precisa de reconciliação com Deus?
Cristo Jesus, homem, é o único Mediador entre Deus e o
homem. Você precisa de uma nova vida e de uma nova
natureza? E bênção que você recebe dEle. Você precisa de
força e poder? Ele enviou o Espírito Santo para que você tenha
essa força, esse poder. Você precisa de um Advogado junto ao
Pai? Lá está Ele, assentado à destra de Deus. Você treme ao
pensar na morte e em ter que comparecer perante Deus no
juízo? Você tem a garantia de que será revestido da Sua justiça
e de que Ele o apresentará sem mancha. Que mais você
precisa? Ele é tudo: Profeta, Sacerdote e Rei, o Tudo em todos.

Ele é 0 Lírio dos Vales,


A Refulgente Estrela da M anhã,
O Escolhido dos milhares para mim.
- J. R. Murray

O homem que crê nisso só pode jactar-se de Cristo. Crísto,


A tudo: sabedoria, conhecimento, entendimento, uma visão
da vida, uma visão de Deus, uma visão do mundo. Paulo
encontrou tudo isso em Cristo. Anteriormente ele tinha uma
visão muito diferente; costumava considerar os gentios como
cães, mas agora os vê entrar na Igreja. Ele vê um plano
desvendado e em continuidade.
Nesta altura façamos a nós mesmos uma pergunta simples:
seria Cristo isso para nós? Temos nEle o nosso motivo para

45
A V ID A D E PA Z

jactância? Nós nos gloriamc^nEle? Dizemos honestamente


que Cristo é tudo para nós, que sem Ele não somos nada?
Dizemos que nem sequer podemos começar a vida cristã,
que não podemos ter acesso a ela, sem Ele? Ele é a vida:
“Eu sou o caminho, e a verdade e a vida”, diz Ele. “Ninguém
vem ao Pai, senão por mim” (Toão 14:6). Seria Ele vital para
toda a nossa perspectiva e para tudo quanto còncebemos?
Acaso compreendemos que a nossa completa e inteira
dependência é dEle? Será que compreendemos que, num
sentido, oração é coisa que não existe, a não ser por meio
dEle? Porventura Ele está no centro da nossa vida, no trono
do nosso coração?
Portanto, a segunda grande característica do cristão, diz o
a£Óstolo, é que ele se jacta de Cristo Jesus. Ele diz com o
a^stolo: “ Longe esteja de mim gloriar-me” - de novo a mesma
palavra “ jactar-se” - “Longe esteja de mim jactar-me, a não
ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo
está crucificado para mim e eu para o mundo” ÍGálatas 6:141
Não permita Deus que eu, nem por um segundo, me jacte
de alguma coisa ou de alguém que não seja Cristo.

N a cruz de Cristo eu me glorio,


Acim a das ruínas do tempo
Toda a luz da sagrada história
Sua sublime fronte envolve.
- J. Bowring

Isso toca alguma coisa em você? Se toca, você é cristão,


você está dentro da definição. Você se jacta de Cristo Jesus.
Permitam-me comentar resumidamente a derradeira
característica do cristão - “g não confiamos na carne” . Fico a
me perguntar por que Paulo passou a isso, depois da sua glo­
riosa declaração anterior. Penso que ele reconheceu o perigo
que ameaçava os filipenses e, por isso, colocou diante deles o

46
Tudo em Cristo

que deveria constituir sua atitude para com Deus, e depois


apresentou a atitude deles para com eles mesmos - “nenhuma
confiança na carne” (VA). Tomo a liberdade de passar-lhes
alguns títulos sobre isso, porque penso que será o bastante.
Paulo quer dizer, primeiro, que ele não se jacta da sua nacio­
nalidade. Antes se jactava - ele tinha orgulho de ser “hebreu
de hebreus” ^ - mas agora, diz ele com efeito, “Deixei de ter
confiança na nacionalidade. Minha confiança é inteiramente
em Cristo” . Repousar nossa confiança na nacionalidade é
negar o evangelho cristão, e nós fomos emancipados disso. É
o nosso nascimento em Cristo que nos reconcilia com Deus,
e disso nos jactamos; não nos jactamos da família, da tribo
de Benjamim, de sermos judeus ou britânicos: o nascimento
não conta.
Outras coisas tampouco fazem diferença, como Paulo nos
mostra em 1 Coríntios, capítulo 1; como fomos criados, ou
como fomos instruídos ou treinados, por exemplo. Você pode
ter tido uma excelente capacitação, pode ter sido melhor do
que todos os demais, mas isso não o salva. Você pode ter
recebido a mais excelente educação do mundo e, todavia, não
conhecer Cristo. E o seu amor e o seu zelo pela política ou
pela economia não poderão salvã-lo tampouco. Paulo era
melhor do que muitos: “segundo a justiça que hã na lei,
irrepreensível” (Filipenses 3:6); mas agora não tem nenhuma
confiança nesse tipo de coisa. Nem confia na filosofia, no
entendimento e na sabedoria deste mundo - que sutil inimigo!
Uma das últimas coisas que deixamos aue se vã por causa do
nosso orgulho é o intelecto - a jactância da filosofia, do enten­
dimento e do raciocínio. Jã não tenho confiança nisso, diz
Paulo, nenhuma confiança na carne. Se eu tivesse alguma
confiança nessas coisas e não unicamente em Cristo, estaria
numa situação perigosa. Cristo é o fim, e foi o princípio, e
^Em meu entendimento, “hebreu de hebreus” equivale a “hebreu da gema”.
Nota do tradutor.

47
A V ID A D E PA Z

devo ter minha confiança nEle do princípio ao fim. E nEle


que sou salvo, é nEle que fui santificado, é tudo nEle:
sabedoria, justiça, santificação e redenção. Devo colocar-me
na inteira dependência dEle, sem absolutamente nenhuma
confiança na carne.
Essa é, então, a definição do cristão. Permitam que,
finalmente, eu diga o seguinte: na passagem que estamos
estudando o apóstolo afirma que hós - os que adoramos a
Deus pelo Espírito, que nos regozijamos em Cristo e não
temos nenhuma confiança na carne - somos a circuncisão.
Significa que todas aquelas grandes promessas de Deus aos,
filhos de Israel na antiga disnensacão, no Velho Testamento,
as promessas feitas a Abraão, as promessas ret?etidas por
meio de Isaaue e de Jacó e no correr dos séculos, todas as
promessas extraordinárias feitas por Deus àquela nação,
aplicam-se a nós. Nós, cristãos de todas as nações, somos a
circuncisão; somos o Israel de Deus, adoramos a Deus no
espírito e não temos nenhuma confiança na carne. Todas as
promessas que Deus, por Sua graça, fez originariamente à
nação de Israel, agora são feitas à Igreja, ao povo cristão.
Noutras palavras, eu e vocês, se somos cristãos, somos os
herdeiros de todas aquelas promessas, e ninguém mais. A
nação de Israel foi posta de lado, como o nosso Senhor
mesmo disse, por sua rejeição dEle e por sua indignidade^ e
as promessas pertencem à nação que produz o fruto próprio:
a Igreja. E Paulo está dizendo a mesma coisa: “a circuncisão
somos nós” . Oh, que tragédià os judeus ainda a reivindica­
rem para si! Nós, os cristãos, somos os herdeiros daquelas
bondosas e gloriosas promessas; nós somos os cidadãos do
Reino, e vamos reinar com Cristo e fruir as bênçãos do Reino
eterno, de um mundo sem fim. Que privilégio! Somos a
circuncisão, o povo de Deus, e provamos isso adorando-O
pelo Espírito, gloriando-nos em Cristo Jesus e não tendo
nenhuma confiança na carne, de forma nenhuma.

48
A Vida Cristã
“Ainda que também podia confiar na carne; se algum outro
cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu, circuncidado ao
oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de
hebreus; segundo a lei, fu i fariseu, segundo o zelo, perseguidor da
igreja, segundo a justiça que há na lei, irrepreensível. M as o que
para mim era ganho reputei-o perda por Cristo. E , na verdade,
tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do
conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda
de todas estas coisas, e as considero como esterco, para que possa
ganhar a Cristo, e seja achado nele, não tendo a minha justiça que
vem da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que
vem de Deus pela fé; para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurrei­
ção, e à comunicação das suas aflições, sendo feito conforme à sua
morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição
dos mortos. Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas
prossigo para alcançar aquilo para o que fu i também preso por
Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado;
mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás
ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para
o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. ”
- Filipenses 3:4-14

Parece-me essencial considerarm os esta passagem


globalmente, antes de fazê-lo em suas diversas partes. Ela é
uma elaboração do que o apóstolo vinha dizendo nos três
versículos iniciais do capítulo, principalmente no versículo

49
A V ID A D E PA Z

três, no qual ele tinha afirmado, vocês se lembram, que


“a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito
(pelo Espírito) e nos regozijamos em Cristo Jesus, e não nos
gloriamos na carne”, Pois bem, os versículos 4 a 14 são, de
certo modo, uma exposição do tema declarado no versículo
3, desenvolvido de maneira magnífica e verdadeiramente
gloriosa nestes versículos subseqüentes. Noutras palavras, o
apóstolo está demolindo de vez os falsos ensinos e argu­
mentos dos judaizantes, que queriam que estes cristãos
gentios acreditassem que, em acréscimo à fé em Cristo, é
essencial que se tornem judeus. Isto é, que sejam circunci-
dados e sigam certas práticas judaicas, antes de se declararem
verda-deiramente cristãos.
O argumento é algo assim: estes homens estão fazendo
algumas afirmações acerca da importância do fato de que eles
são hebreus, judeus, estão se jactando das suas obras, e assim
por diante. Ora, diz Paulo, se alguém tem direito de jactar-se,
certamente sou eu; e depois ele apresenta uma lista descrevendo
o que ele era e do que costumava fazer; mas ele faz isso com o
único objetivo de contrastar, uma vez por todas, o seu velho
ser com esta nova criatura que no Senhor Jesus Cristo ele
veio a ser. Temos, pois, aqui, com efeito, uma garantia, e
certamente uma das declarações mais eloqüentes do que
significa ser cristão. O apóstolo, ao mostrar o contraste entre
a vida cristã e aquela outra vida, dá-nos um esplêndido
retrato positivo da vida cristã, e é isso que nos cabe examinar
juntos agora.
Todavia, antes de fazê-lo, há uma advertência que talvez
seja necessário fazer, e digo isso com base na experiência. A
advertência é que tenhamos a cautela de manter em mente
que o apóstolo não está descrevendo aqui somente o que o
caracterizava, mas também o que deveria caracterizar todos
os cristãos. Tenho encontrado muitas vezes homens que,
confrontados por uma passagem como esta, dizem: “Ah, sim,

50
A Vida Cristã

tudo bem, assim era Paulo, mas nós não somos Paulo!” Eles
pensam, equivocadamente, que a experiência única que
Paulo teve no caminho de Damasco, é algo que coloca toda
a sua experiência cristã numa categoria à parte.
Portanto, é vitalmente importante que entendamos bem
este ponto. E certo que a experiência que Paulo teve no
caminho de Damasco foi única. Paulo, vocês se lembram,
descia para Damasco para perseguir e massacrar os cristãos
daquela cidade, e teve um encontro com o Senhor ressurreto.
Não foi uma visão mística, foi-lhe feita uma manifestação
ocular. Ele viu realmente o Senhor ressurreto, como ele mesmo
diz. E evidente que a ocasião de ver o Senhor ressurreto foi
dada a Paulo para que ele fosse contado entre os apóstolos,
porque uma das marcas distintivas do apostolado era que o
apóstolo tinha visto com seus próprios olhos o Senhor ressur­
reto. De modo que esse encontro pessoal lhe foi concedido
de maneira muito especial e extraordinária, como ele nos diz
em 1 Coríntios 15:8, onde se descreve como “um abortivo” .
Como cristãos, não vemos, nem podemos esperar ver o
Senhor ressurreto do modo como Paulo O viu no caminho
de Damasco. Mas, afinal de contas, isso não é vital para a
experiência cristã, não é isso que torna alguém um cristão;
só era essencial para a vocação de apóstolo.
Mas aqui, nesta passagem, Paulo está dizendo o que o
caracterizava como cristão, e nela, portanto, dentre todos os
homens, o apóstolo estava preocupado em argumentar no
sentido de que não estava numa categoria à parte. Acaso não
nos diz ele, em 1 Timóteo 1:15, que ele é o maior de todos os
pecadores que o mundo conheceu? Paulo deixa patente­
mente claro que ele nada mais é do que um pecador salvo pela
graça de Deus em Cristo exatamente como todos os demais
cristãos. Portanto, não devemos contestar esta magnífica
declaração tentando salientar a diferença entre a sua experi­
ência no caminho de Damasco e o que se sabe que é verdade

51
A V ID A D E PA Z

a nosso respeito. Não, o que o apóstolo diz aqui sobre a


experiência cristã normal é que esta caracteriza verdadeira­
mente todos e cada um de nós. Não permita Deus que
perpetuemos a falsa divisão católica romana entre os cristãos
dizendo que alguns são espirituais e outros são comuns, que
alguns são excepcionais e alguns são seculares, do mundo. No
Novo Testamento não há divisão nenhuma: todos nós estamos
na mesma posição, todos nós temos a mesma experiência da
salvação operada por Deus, seja qual for a forma que tome,
e todos nós temos que lutar pelas mesmas coisas.
Portanto, com essa palavra de cautela, que lhes digo
simplesmente porque muito freqüentemente eu tenho que
argum entar sobre esse ponto com pessoas que evitam
completamente o desafio porque colocam Paulo num com­
partimento separado, consideremos algo do que o apóstolo
diz aqui. Como eu disse, nesta conjuntura só trataremos de
modo geral desta magnífica descrição. Teremos que retornar
a ela e entrar nos detalhes, mas eu penso que às vezes, por
isto ou por aquilo, é importante ter visão da vida cristã nos
diferentes aspectos que a compõem, de modo que alguns
destes grandes princípios sobressaiam em nossas mentes.
Que é que Paulo nos diz então aqui, em geral, sobre a vida
e a experiência cristã? Primeiro, ele nos diz que é algo que se
apodera de nós, nos domina e nos prende. Essa é, naturalmente,
a declaração do versículo doze. “Não que já a tenha alcançado,
ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para
o que fui também preso por Cristo Jesus”. Começo por esse
versículo porque, em minha opinião, para ser lógico, ele tem
que vir em primeiro lugar. Bem, pode ser que você diga, e
eu concordaria com você se dissesse, que neste ponto é indu-
bitável que o apóstolo está pensando no que lhe aconteceu
no caminho de Damasco. É mais ou menos inevitável que o
fizesse, porque foi desse modo que ele se tornou cristão. Diz
ele, com efeito: “Lá estava eu, fariseu orgulhoso, com minha

52
A Vida Cristã

justiça própria, jactancioso, indo para Damasco acreditando


de fato que estava servindo a Deus, quando, subitamente, esta
grande luz brilhou de um modo jamais visto antes. Eu O
vi, e o que realmente aconteceu comigo foi que Ele Se apo­
derou de mim, me capturou e me mantém seguro daquela
hora em diante”, “E”, diz Paulo, “a minha situação agora é
que eu tento agarrar-me àquilo que me agarrou.”
Encontramos aí um grande princípio que diz respeito,
não somente a Paulo, mas também a todos os demais
cristãos. Todos nós nos inclinamos a querer uma espécie de
vibrante experiência, como a que Paulo teve no caminho de
Damasco, mas não faz parte da pregação do evangelho dizer
que o pecador pode ser convertido de repente. O que impor­
ta é que tenhamos algum conhecimento do que o apóstolo
quer dizer quando declara que foi preso por algo ou por
Alguém. Se aconteceu de repente ou não, não importa - isso
é irrelevante - pode vir de mil e uma formas e maneiras, mas
o que é importante é esta consciência de ser seguro por
algo, de ser preso ou agar-rado firmemente por alguma coisa:
é isso que é tão vital para a posição cristã.
Noutras palavras, o cristão não é alguém que tomou algo
como objeto do seu interesse, é alguém que foi tomado por
esse objeto de interesse e não pode escapar dele. Por isso o
cristão nunca pode ter o coração dividido, porque ele tem
consciência desta garra que o prende. Não vou longe demais
quando me aventuro a colocar as coisas nestes termos, porque
às vezes penso que esse é, talvez, um dos testes mais delicados
que podemos adotar: será que vocês não sabem o que é às
vezes sentir que seria bom livrar-nos disso tudo, e, no entanto,
isso nos mantém presos, nos domina? Um hino expressa
muito bem essa verdade: “amor, que não me soltará” ^- é isso.

' Cf. Novo Cântico, 260, quarta estrofe: “Amor... que em tua graça me segura”.
Nota do tradutor.

53
A V ID A D E PA Z

Há ocasiões em que, em nossa loucura e cegueira, em nosso


pecado, gostaríamos de ser soltos, mas Cristo não nos deixa
sair; estamos dominados e presos firmemente.
Essa é a primeira coisa que caracteriza esta nova vida
na qual Paulo se vê. “Não é”, diz ele com efeito, “que eu tenha
desistido do judaísmo e assumido o cristianismo; não é que,
tendo ouvido algo sobre ele, eu o achei interessante, e gosto
de ler a respeito e de discuti-lo de maneira casual, desligada
e objetiva. Nada disso! Não é essa a posição cristã. O que
caracteriza o cristão em primeiro lugar é que, de repente, ele
se dá conta de que esta força tomou posse dele e ele não
pode safar-se dela; ele é aprisionado, preso por essa força, e
depois procura apoderar-se dela.”
Pois bem, issò é básico, é uma coisa difícil de colocar
em palavras, e, todavia, repito, não conheço nada que seja um
teste mais completo de toda a nossa posição. Seria a sua fé
Cristã uma coisa que você pega e, por assim dizer, carrega
com sua mão como se fosse uma sacola? Ou você está, antes,
na posição do escravo, dominado, agarrado, preso e seguro;
às vezes sentindo esse tolo e pecaminoso desejo de livrar-se
e, contudo, sabendo que não consegue? Essa é sempre a descri­
ção que o Novo Testamento faz dos cristãos. Eles sabem que
Deus esteve lidando com eles, que Deus fez algo com eles, que
Deus os move na direção que seguem, que Deus interferiu
em suas vidas. Não entendem bem isso, mas sabem que é
ação de Deus. Somos aprisionados - esse é o primeiro fato.
O segundo fato sobre esta nova vida - estamos só tratando
dos princípios proeminentes agora, voltaremos a tratar em
detalhe deste assunto - é, certamente, que ela é algo que leva
a uma completa mudança de perspectiva e de valores, e esse
é, naturalmente, o grande tema dos versículos 7 e 8. E algo
que Paulo nunca se cansava de dizer. Tendo feito a lista das
suas perfeições como judeu e orgulhoso fariseu, passa então a
dizer: “Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por

54
A Vida Cristã

Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as


coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu
Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as
considero como esterco, para que possa ganhar a Cristo” .
Pois bem, aqui ele está descrevendo uma transformação
completa, um ponto divisório. Lá estava ele escalando alturas
quando, de repente, se viu contemplando um panorama
A

inteiramente diferente. E meu desejo expressar este ponto


desta maneira: o cristianismo nunca é um acréscimo à nossa
vida, nunca é algo acrescentado ao que já tivemos: ou é central
ou não está em parte alguma. Se não controla a totalidade da
sua vida, você simplesmente não é cristão. Os cristãos não são
pessoas das quais se pode dizer que são idênticas a todas as
outras, têm em acréscimo algo extra e por fim são vistas como
cristãs. Não, diz Paulo, ser cristão significa que, bem no centro,
no cerne do seu ser e da sua existência, esta nova realidade
entrou e controla tudo. Uma mudança radical tem lugar
quando você se torna cristão; de repente você se dá conta
disso; é uma mudança de perspectiva sobre todas as coisas.
Não hesito em fazer uso do termo que o apóstolo emprega
no versículo 8 - todas as coisas se tornam “perda” .
Paulo elabora este tema em suas várias Epístolas, e penso
que é uma decorrência inevitável. Se ser cristão é ter sido
afetado profiindamente no centro do meu ser, centro que o
Novo Testamento denomina coração (coração não significa
emoção ou sede das emoções - significa o centro da persona­
lidade), se o centro da minha personalidade foi afetado,
bem, então, tudo mais será mudado necessariamente. Meu
modo de pensar será mudado, meu sentimento, meu querer
terá que ser mudado; e é exatamente isso que o apóstolo
requer quanto ao cristão.
Paulo torna a falar sobre isso, mais explicitamente, em
2 Coríntios 5:17: “se alguém está em Cristo, nova criatura é: as
coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”; e isso é

55
A V ID A D E PAZ

uma verdade literal, nada continua sendo a mesma coisa no


coração. Nos versículos 7 e 8 da passagem que estamos estu­
dando Paulo o diz em termos de ganho e perda: “Mas o que
para mim era ganho reputei-o perda por Cristo” . Se vocês
mesmos estudarem estes versículos com atenção, notarão que
Paulo repete essas palavras. Ele está dizendo que, longe de
serem ganho, essas coisas tornaram-se realmente uma perda.
Ele não poderia expressar a transformação completa que se
opera com linguagem mais forte do que fazendo uso dessa
particular analogia.
Em que aspectos, então, é certo dizer que a vida sofre
mudança total? Bem, Paulo responde a essa pergunta aqui,
nestes versículos. Ele passou a ter uma visão completamente
nova de si mesmo - aquele que se orgulhava tanto de si mesmo,
agora tem vergonha de si próprio; antes ele achava que era
melhor que ninguém, agora se vê como o maior dos pecado­
res. Que transformação! E isso também deve caracterizar
todos os cristãos. Quanto mais crescemos como cristãos, mais
consciência devemos ter, da corrupção dos nossos corações; e
não ter consciência disso é um sintoma muito grave. Eis aí
um homem que, em termos da moralidade, poderia ficar cara
a cara com qualquer rival desafiante e, contudo, assim que foi
iluminado, deu-se conta da sua corrupção e do seu pecado,
e pode clamar em agonia: “Miserável homem que eu sou!
Quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24).
E ele tem também uma nova visão de Deus - ele vê que a
idéia que tinha de Deus era grave e tragicamente defeituosa.
Ele tem uma nova visão da religião. Antes ele se contentava
com uma religião externa, mas agora tem ciência de uma
natureza espiritual. Sua idéia geral de como aproximar-se de
Deus é diferente. Antes ele O abordava em termos da sua
justiça própria e do seu próprio mérito, mas agora ele se hu­
milha diante do trono da misericórdia e sussurra as palavras:
“Cristo Jesus, meu Senhor” .

56
A Vida Cristã

Que mais? A própria vida, e toda a visão que ele tinha


dela, veio a ser diferente. Ele era fariseu, um grande mestre,
orgulhoso da sua posição e com grande perspectiva de pro­
moção. Qual é a sua visão da vida agora? Bem, ele já nos disse:
“para mim o viver é Cristo” (1:21); ele perdeu todos aqueles
seus falsos motivos, e o seu único desejo é conhecer Cristo
melhor e poder servi-10 mais fielmente. Ele agora tem uma
visão inteiramente diferente do propósito e do sentido da
vida, e, como nos disse no primeiro capítulo, tem uma visão
inteiramente nova da morte. A morte não pesa nada agora
para Paulo, porque significa estar com Cristo, o que é muito
melhor. E ele tem uma nova visão dos gentios. Outrora os
considerava como cães, alheios à comunidade de Israel, mas
agora se regozija neles como irmãos amados, herdeiros do
Reino eterno.
E assim que Paulo nos mostra a sua transformação com­
pleta. Mas não estamos falando só de Paulo, estamos falando
de nós mesmos. Por definição, os cristãos têm que ter uma
visão de tudo inteiramente diferente da dos incrédulos: uma
nova visão de si mesmos, uma nova visão de Deus e de como
devem aproximar-se de Deus, uma nova visão da vida. Pois
bem, eu penso que isso é muito importante no presente. Uma
vez que somos governados por novos princípios, devemos ver
os eventos de maneira diferente - toda a nossa atitude para
com todas as coisas é essencialmente diferente da atitude
dos que não são cristãos. A nossa maneira de ver a morte
deve ser diferente, e a nossa maneira de ver todas as outras
pessoas também deve ser diferente.
Como já vimos, Paulo vai bem longe, ao ponto de dizer
que as coisas que para ele eram ganho, tornaram-se de fato
perda. Estaria ele, com isso, condenando a lei de Deus que
fora dada aos filhos de Israel? Estaria ele condenado a reli­
gião judaica, que fora dada por Deus? Não, Paulo não diz que
estas coisas são em si erradas, mas de fato diz: “ Eu confiava

57
A V ID A D E PAZ

nelas, tinha uma falsa idéia delas, achava que eram ganho;
agora vejo que eram perda, eram coisas que se interpunham
entre mim e Cristo, e por isso as considero como refugo” .
E o cristão sabe exatamente o que Paulo quer dizer quando
diz isso. Existem muitas coisas boas, inocentes e inofensivas
neste mundo, mas, por causa da nova visão que agora temos,
podemos ver que essas mesmas coisas nos privam de algo
ainda maior, e as coisas que pensávamos que eram ganho,
na realidade são perda.
O próximo princípio é que esta verdade, que dominou e
capturou o cristão, é um valor pelo qual, evidentemente, ele
está disposto a perder e a sacrificar tudo mais. Paulo expressa
este ponto com suas magníficas palavras: “Mas o que para
mim era ganho reputéi-o perda por Cristo. E, na verdade, tenho
também por perda todas as coisas, pela excelência do conhe­
cimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda
de todas estas coisas, e as considero como esterco, para que
possa ganhar a Cristo”. Isso não é hipérbole. Paulo expõe fatos
literais. Essas coisas não têm nenhum sentido para Paulo
porque agora ele é cristão. Todo o seu maravilhoso orgulho
como fariseu se foi. Ele era um homem altamente intelectual,
tinha se saído melhor que ninguém nas escolas, tinha se sen­
tado aos pés de Gamaliel, estava no topo da lista, era um dos
proeminentes mestres da lei; e tornar-se cristão significou
para Paulo que ele foi considerado louco. Ele foi denunciado
por seu povo, todas as suas perspectivas de posição e grandeza
se foram, ele perdeu tudo, mas não faz objeção a isso, ele
está perfeitamente satisfeito. Se me for permitido usar a lin­
guagem dele, agradou-lhe a barganha. Lá estava ele, na velha
vida, mantendo um registro no livro da razão, mas agora ele
afirma que tem no outro lado algo infinitamente maior.
E, claro, ele sofreu perseguição. Em 2 Coríntios, capítulo
2, ele descreve tudo o que tinha sofrido por Cristo, e suportou
tudo sentindo-se perfeitamente feliz. As vezes penso que esta

58
A Vida Cristã

foi a sua maior perda: ali estava este homem altamente


inteligente, este homem que podia altear-se aos judeus da
mais alta categoria como igual a eles, e até podia superá-los, e,
todavia, teve que passar a maior parte da sua vida subseqüente
entre os gentios, e não somente isso, mas entre gentios igno­
rantes, muitos deles escravos e servos que não entendiam quase
nada e não sabiam apreciar a sua grandeza, mesmo como
homem natural, de modo que ele teve que trabalhar com
suas próprias mãos como fabricante de tendas. Parece-me
que a maior de todas as provas foi ele ter que descer a esse
nível e que passar sua vida com tais pessoas. Mas ele se
gloriava nisso, regozijava-se nisso, sofreu a perda de todas as
coisas, e ele nos diz que o fez alegremente.
E por que foi isso verdadeiro a respeito dele? Este é o
último princípio. Tudo aquilo de que estivemos falando
deve-se a uma só coisa, e esta é o que Paulo descreve aqui
como “a excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu
Senhor”. Isso explica tudo mais, foi isso que o dominou, foi
isso que mudou a sua perspectiva, e pelo que ele está disposto
a renunciar a tudo. Que é que há neste conhecimento que
é tão maravilhoso, em que consiste “ a excelência do co-
nhecimento” ? E quase uma tolice fazer essa pergunta - mas
permitam que eu lhes ofereça algumas breves sugestões.
A própria natureza desse conhecimento lhe dá direito a
essa descrição. E um conhecimento que trouxe Paulo a um
contato imediato, direto, pessoal com a Pessoa mais gloriosa
que este mundo já viu. Paulo tinha tido contato com Gamaliel,
tinha se sentado a seus pés, tinha tido encontros com grandes
teólogos, era versado na filosofia grega, mas agora tinha visto
alguém que pertence a uma categoria à parte. Nós também,
provavelmente, temos tido contato com grandes persona­
gens nesta existência, mas aqui está um conhecimento que
pode habilitar-nos a encontrar-nos com Deus, que pode
habilitar-nos a encontrar-nos com o Senhor Jesus Cristo

59
A V ID A D E PAZ

e a ter companheirismo e comunhão com Ele. A excelência


do conhecimento é devida à grandeza da Pessoa.
E depois, foi esse conhecimento que lhe deu entendimento
do maravilhoso plano divino de salvação. Vejam vocês, não
há necessidade de menosprezar o conhecimento humano. A
filosofia é muito boa e maravilhosa, você pode ler a literatura
que lhe interessar e desfrutar a música do seu gosto, e todos
os demais interesses, porém, mesmo quando você os toma
em sua melhor qualidade e em seu mais alto nível e os con­
trasta com o esquema delineado na Bíblia, eles empalidecem
e se reduzem à insignificância. A excelência do conheci­
mento decorre do plano de salvação feito por Deus.
Que m ais? Indubitavelmente, Paulo pensava nesse
conhecimento em termos do que ele tinha feito em seu favor.
Paulo fora salvo e libertado do inferno graças a esse conhe­
cimento. Ele ia para lá, e viu que esse conhecimento o salvara
da condenação eterna. Que conhecimento excelente esse, que
pode endireitar o homem para a eternidade e salvá-lo da
perdição, que pode dar-lhe consciência do perdão dos seus
pecados e da reconciliação de Deus! Haverá algum conheci­
mento comparável a saber que sua consciência está limpa, que
o livro está com a contabilidade correta, que os seus pecados
foram cancelados e que Deus, por Sua misericórdia, o perdoou?
Que excelente conhecimento! E depois, esse conhecimento
produz paz e alegria, mente tranqüila e serena, uma alegria
maior do que toda a que o mundo jamais pode conhecer
nem tirar. Vida nova, e poder para viver de modo digno do
nome de homem - foi isso que esse conhecimento lhe deu.
E depois, esse conhecimento lhe falou do que ia lhe
acontecer, comunicou-lhe prom essas a respeito do seu
futuro. Disse-lhe que ele se havia tornado filho de Deus e
que, por causa disso, ele era um herdeiro, e, por conse­
guinte, um co-herdeiro com Cristo. Deu-lhe uma percepção
da glória e da vida que há além deste mundo, da morte e

60
A Vida Cristã

do túmulo: mostrou-lhe a vida perfeita que ele, como


cristão, iria partilhar com Deus por toda a eternidade.
Quando Paulo viu isso, todas as outras coisas ficaram muito
pequenas e insignificantes, e ele diz: “Considero tudo isso como
esterco, como refugo” . A excelência do conhecimento:
excelente em si, excelente no que já fez por nós, excelente
no que vai fazer.
Assim, breve e inadequadamente, tivemos uma vista
geral desta admirável vida cristã. Permitam-me terminar
fazendo algumas perguntas: você foi possuído por essa espé­
cie de vida? Você sabe que Deus tem agido em você? Sente
a mão de Deus sobre você? Você foi agarrado e sente que
Ele está lidando com você, tem alguma percepção de que
não conseguirá sair disso? Você percebe que foi capturado,
antes que capturou? Sua perspectiva da vida é inteiramente
diferente da dos incrédulos que o rodeiam? Você tem visto
algo que o leva a preferir perder todas as outras coisas a
perder o que esse conhecimento lhe dá? Quando você me­
dita no evangelho do Novo Testamento, você concorda com
Paulo em que só há um modo de descrevê-lo - a excelência
do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor? Seria Cristo
o seu Senhor? Essa é a posição cristã. Cristo Se faz meu
Senhor e seu, Ele nos adquiriu, comprou-nos, apoderou-Se
de nós e nos segura com Seus braços poderosos.

61
A Justiça de Deus
“E seja achado nele, não tendo a minha justiça que vem da
lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem
de Deus pela fé. ” - Filipenses 3:9

Nos versículos 4 a 14 do capítulo 3, Paulo vem dizendo


aos filipenses que ele considera todas as coisas das quais
costumava jactar-se antes de se tornar cristão como pura
perda “pela excelência do conhecimento” de Cristo Jesus, seu
Senhor. E aqui, agora, neste versículo nove, ele passa a falar
sobre mais um aspecto da excelência desse conhecimento. E
uma coisa que emociona o apóstolo e o leva a sentir que
qualquer outra cosia que entre em competição com ela não
deve ser considerada nem por um segundo - e, portanto,
devemos concentrar a nossa atenção nela. O conhecimento
do qual Paulo fala agora refere-se à questão geral da justiça
- palavra que todos os que estão fam iliarizados com a
Bíblia conhecem muito bem, pois se vê constantemente
nas Escrituras.
Que significa justiça então? Pois bem, há um sentido em
que a questão da justiça sempre foi um problema para o
apóstolo. E a questão de como podemos estar em pé na presença
de Deus. Foi a velha questão proposta por Jó no princípio da
história: “Como se justificaria o homem para com Deus?” (Jó
9:2). Esse é o problema. Como qualquer de nós, desta vida e
deste mundo, poderá finalmente confrontar-se com Deus no
juízo? Esse é o problema, e porque descobriu a resposta do

62
A Justiça de Deus

evangelho para ela, o apóstolo nos diz que todas as outras


coisas não têm nenhum valor. Tudo aquilo em que ele se
gloriava e de que se jactava, e agora considera refugo, era
perda porque tinha ficado entre ele e esta grande resposta.
Bem, este é, naturalmente, o tema saliente do Novo Testa­
mento, e, particularmente, das Epístolas do Novo Testamento.
Talvez seja, em particular, o grande tema do apóstolo Paulo.
E sua doutrina central, doutrina que vocês o vêem ilustrar
quase em toda parte em todas as suas Epístolas.
Vejam, por exemplo, a declaração de Paulo em 1 Coríntios,
capítulo 1: “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para
nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação e
redenção” . De novo vocês poderão ver isso em 2 Coríntios 5:
21: “Aquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós;
para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” - é a mesma
coisa. Vejam a seguir Gálatas, capítulo 3, que nada mais é
senão outra exposição desta mesma doutrina. Mas talvez a
passagem clássica sobre este tema seja Romanos, capítulo 3.
A

E, na verdade, o tema de toda a Epístola aos Romanos, até


chegar às porções práticas, mas é especialmente o tema do
capítulo 3, e os versículos 20 e seguintes sobressaem nota­
velmente neste aspecto.
Não há nada, pois, que seja tão característico da perspec­
tiva geral de Paulo como o seu entendimento da questão da
justiça. Nenhum assunto o levantava como este; e não há nada
que 0 fizesse irromper tantas vezes em hinos de louvor como
o seu entendimento dele. E, na verdade, a chave de toda a
doutrina do apóstolo, e, se não entendermos bem o ensino de
Paulo sobre a justiça, não entenderemos coisa alguma do seu
ensino; é o primeiro, o centro, a doutrina da qual e com base
na qual ele deriva todas as outras doutrinas que compõem
o seu ensino; ela de fato constitui o eixo do seu ensino.
Mas podemos ir adiante e dizer que, através da longa
história da Igreja Cristã, nenhuma doutrina produziu tão

63
A V ID A D E PAZ

momentosos resultados como esta doutrina da justiça do


homem na presença de Deus por meio de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Foi, naturalmente, a grande doutrina
exposta por Agostinho; foi quando Agostinho chegou a ver
esta verdade, que toda a sua vida foi mudada e passou por
uma transformação completa. Foi essa a doutrina que mudou
0 curso da vida de Martinho Lutero. Martinho Lutero fora
educado naquela velha religião, na religião católica romana,
que, num sentido, nada mais era que um retorno dos judai-
zantes - uma tentativa de conseguir mérito, uma tentativa de
alcançar a justiça diante de Deus pelos esforços pessoais de
cada um. Quando Lutero viu a doutrina que Paulo anuncia
neste versículo nove, sua vida mudou imediatamente e a
Reforma Protestante veio à existência. Foi esta doutrina que
moveu Lutero a desafiar, não somente a poderosa igreja cató­
lica romana do seu tempo, mas também toda a tradição
acumulada nos séculos que o precederam. Este homem,
sozinho, lançou-se contra toda aquela tradição, e tudo por
causa da certeza da excelência deste conhecimento; seus
constantes desafios àquela igreja eram feitos em termos desta
particular verdade. Tendo-a visto, dispôs-se a arriscar tudo,
sua vida inclusive, antes que renunciar a ela. Esta verdade
revolucionou tudo, e esse é o efeito que ela sempre produz
quando os homens e as mulheres a entendem verdadeira­
mente. Esta doutrina constitui a explicação geral de grande
parte da história subseqüente, não somente da igreja, mas
até da história secular - é uma doutrina axial, central.
Se vocês quiserem outra ilustração da mesma coisa, vê-la-
-ão na vida de João Wesley. Foi quando Wesley de repente
passou a ver esta verdade que sua vida também mudou de rumo
espiritualmente; sua pregação tornou-se inteiramente nova,
e foi acompanhada pelos resultados que conhecemos bem.
E eu lhes apresentei essas ilustrações a fim de que per­
cebamos algo do cenário de fundo contra o qual sempre

64
A Justiça de Deus

devemos considerar esta doutrina. Permitam que eu o diga


ainda mais enfática e francamente: pergunto se podemos
dizer com o apóstolo Paulo que a doutrina da justiça de
Deus em Cristo Jesus é para nós a coisa mais maravilhosa,
mais estupenda e mais emocionante que já ouvimos. É o
que Paulo diz. Ele exclama: “E maravilhosa!” Este excelente
conhecimento que recebi em Cristo Jesus me leva a dizer,
sem hesitação, que considero toda as outras coisas como
nada mais que refugo, perda e pura inutilidade.
Talvez a melhor maneira de abordar esta grande doutrina
seja tentar definir a palavra “ justiça”. A melhor definição que
encontrei é a seguinte: “Justiça significa tanto justiça
propriamente dita como retidão”, quer dizer, justiça significa
conformidade com a lei. Ora, conformidade com a lei pode
expressar-se de duas maneiras. Primeiro, justiça significa
conformidade com a lei em executar o juízo ou a sentença
imposta pela lei; segundo, significa conformidade com a lei
em obedecer aos preceitos da lei. Paulo emprega a palavra
justiça em ambos os sentidos naquele capítulo três de
Romanos a que já me referi.
Justiça, no sentido de impor a lei, vem nos versículos 25
e 26: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu
sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos
pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para
demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que
ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus”.
Este uso da palavra justiça (retidão) realmente significa
justiça; as palavras “para demonstração da sua justiça neste
tempo presente”, referem à sua justiça (retidão). Cristo, pela
Sua morte na cruz, diz Paulo, vindica o perdão de pecados
da parte de Deus.
Justiça no segundo sentido, isto é, no sentido de confor­
midade com a lei na obediência a seus preceitos, vem nos
versículos 20 a 22: “Por isso nenhuma carne será justificada

65
A V ID A D E PA Z

diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhe­
cimento do pecado. Mas agora se manifestou sem a lei a
justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas;
isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos
e sobre todos os que crêem; porque não há diferença” .
A nossa justiça é a conformidade com a lei na questão da
obediência; a justiça de Deus é a conformidade com a lei de
Deus na execução da sua sentença. Deus é o legislador. Quando
Ele nos perdoa, manifesta a Sua justiça, ou a Sua retidão.
Foi preciso desenvolver este ponto em detalhe porque, se
não tivermos estes dois sentidos bem claros em nossas mentes,
acharemos esse capítulo três de Romanos um tanto confuso.
Se tivermos em mente que o capítulo se refere à parte de Deus
e à nossa parte, nestes dois sentidos, penso que ficará claro.
Assim, pois, a questão que se levanta para nós é a seguinte:
como podemos conformar-nos à santa lei de Deus? Que
podemos fazer a fim de conformar-nos às exigências da lei
de Deus em toda a sua plenitude? Pois esta é a nossa situação
e a situação de todas as pessoas que nascem neste mundo.
Gostemos ou não, estamos todos subordinados a Deus e à lei
de Deus; gostemos ou não, isso é um fato. Todos os nascidos
num particular país estão sob as leis desse país; eles podem
dizer que não ligam para elas, mas estão sob elas e poderão
ser incriminados por essas leis. De igual modo, todos nós
nascemos para esta vida sob a lei de Deus. Deus estabeleceu
e revelou Sua lei, e todos nós estamos subordinados a ela.
Portanto, a questão que nos confronta é: que podemos fazer
para que possamos cumprir as exigências da justiça de
Deus? Que podemos fazer com a nossa vida neste mundo de
modo que, quando finalmente a lei nos confrontar e nos
incriminar com suas exigências, possamos responder de tal
maneira que estaremos livres para fruir felicidade por todas
as incontáveis eras da eternidade? Essa é a questão.
E aqui Paulo nos diz que, em última análise, há só duas

66
A Justiça de Deus

maneiras de fazê-lo. Primeiramente, há o velho modo que


Paulo seguira como judeu. Esse velho modo todos nós
conhecemos muito bem. O nosso sistema não é o dos judeus,
mas o princípio é o mesmo, e assim, o que Paulo diz sobre o
método geral de busca da justiça sob a lei judaica caracteriza
todo aquele que não viu e não vê a necessidade absoluta de
crer no Senhor Jesus Cristo. E eu penso que todos nós
concordaremos em que esse obstáculo muito comum e fatal
ainda se interpõe entre os homens e as mulheres, e a fé no
evangelho. Perguntem a uma pessoa comum hoje o que
significa ser cristão e, se não estou muito enganado, penso
que vocês verão que, quase invariavelmente, essa pessoa,
homem ou mulher, lhes dirá o que ele ou ela faz ou tenta
fazer - a resposta será em termos de esforços humanos pessoais.
E essa é a exposição moderna desta posição judaica que
Paulo nos conta que ele tinha abandonado.
Com isso em mente, examinemos as suas características,
que são duas. A primeira consiste naquilo que Paulo nos diz
aqui: naquela velha vida, ele confiava em si, em seus esforços
pessoais, em ter “ a minha justiça que vem da lei” - é isso. Era
o esforço para produzir a sua própria justiça; era uma
justiça que dependia dele e das suas excelências pessoais;
era o seu diligente empenho quanto ao cumprimento da lei,
especialmente da lei cerimonial; era seu esforço pessoal.
Sua segunda característica era que consistia numa
perspectiva que se conformava às exigências cerimoniais da
lei. Paulo diz no versículo 6 que, julgado pela justiça que
há na lei, ele estava isento de culpa. Isso era uma parte da
sua jactância: “Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus, segundo
a lei, fui fariseu; segundo o zelo, perseguidor da igreja,
segundo a justiça que há na lei, irrepreensível” (versículos 5 e
6). Em que sentido ele tinha razão de dizer que era irre­
preensível? Bem, é o que vamos ver. Ele achava que, sob a lei.

67
A V ID A D E PAZ

era absolutamente irrepreensível e podia comparecer na


presença de Deus, e alegar isso, mas então chegou a ver, diz-
-nos ele agora, que a sua irrepreensibilidade era mera questão
de conformidade exterior com os mandamentos cerimoniais
da lei.
Noutras palavras, a lei judaica ordenava que as pessoas
fizessem ofertas queimadas e sacrifícios; elas tinham que fazer
certas coisas, e Paulo tinha igualado a lei de Deus ao cerimonial
superficial, exterior e mecânico da lei. Nesse aspecto ele era
irrepreensível. Mas só nesse aspecto, pois, Paulo tinha passado
a ver que a justiça da qual ele tanto se jactava, de fato e de
verdade nada mais era que a sua própria justiça. Ele viu que,
em vez de tomar a lei como esta realmente era, ele a substi­
tuira por seu entendimento e por sua interpretação dela, e
assim ele estava se conformando à sua pequena interpretação
pessoal. Paulo gostava de dizer isso. Em Romanos, capítulo
10, vocês verão que ele o diz claramente: “Irmãos, o bom
desejo do meu coração e a (minha) oração a Deus por Israel é
para a sua salvação. Porque lhes dou testemunho de que têm
zelo de Deus, mas não com entendimento. Porquanto, não
conhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua
própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus” (versículos
1 a 3). A tragédia dos meus patrícios, dos judeus, diz Paulo, é
que eles pensam que estão agradando a Deus; pensam que
a justiça que estão praticando é a justiça que Deus exige,
mas a dificuldade é que eles desconhecem a justiça de Deus
e ficam tentando estabelecer a deles próprios.
E, naturalmente, esse era o problema geral que havia
com os fariseus. Constantemente o nosso Senhor tratava deste
mesmo ponto. Ah, dizia Ele, vocês, autoridades, alegam que
são mestres na questão de regozijar-se na lei, e, todavia, o
tempo todo não fazem nada mais nada menos do que prestar
culto à sua própria tradição; vocês substituíram a lei de
Deus pelas tradições e opiniões dos homens! Paulo tinha feito

68
A Justiça de Deus

a mesma coisa. Imaginava gostosamente que era isento de


culpa. Lá estava ele, jactando-se de que era melhor do que os
outros. Mas subitamente passou a ver que não era a lei de
Deus que ele estava cumprindo, e, sim, era simplesmente a
sua minúscula idéia da lei de Deus - era sua própria justiça.
Ora, essa atitude é trágica, porém é muito comum, como
já vimos. Em geral os homens e as mulheres nos dizem que
não vêem nenhuma necessidade de crer na morte de Cristo
na cruz, o que lhes parece quase imoral. “Certamente”, dizem
eles, “se as pessoas tiverem vida moralmente boa e fizerem
todo bem que puderem, é isso que Deus exige.” A resposta é
que não é - e essa é a única réplica que cabe fazer a essa afir­
mação deles. Eles constroem uma lei e, tendo-a construído e
tendo-a igualado à lei de Deus, dizem que estão cumprindo
a lei de Deus. Entretanto, a verdade é que não há nisso nada
senão a própria justiça deles - eles procuram estabelecer sua
própria justiça e não se submetem à justiça de Deus.
Bem, Paulo chegou a ver que a lei não era apenas confor­
midade mecânica, exterior, a certos ditames; a lei era isto:
“Amarás pois o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de
toda a tua alma, e de todo o teu poder” (Deuteronômio 6:5).
Paulo a descreve toda em Romanos 7:7-9 e declara que,
quando chegou a ver a natureza espiritual da lei e suas
exigências, quando chegou a ver que Deus exige completa e
leal adesão do homem - seu coração e todo o seu ser - Paulo
foi condenado inteiramente e, escreve ele, “Morri”.
Não somente isso, porém; ele viu também que a lei é
algo que pronuncia juízo sobre o pecado. O Senhor disse:
“A alma que pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18:4); a lei de
Deus é isso, e a punição do pecado é a morte espiritual e a
separação de Deus. A lei, antes de tudo, nos apresenta
mandamentos positivos e nos pede que os cumpramos, e
então, por outro lado, ela pronuncia juízo. Há, pois, estes
dois lados da lei, e Paulo passou a ver claramente que

69
A V ID A D E PA Z

tinha falhado em ambos os aspectos.


Então, à luz disso, que é que o apóstolo quer dizer com a
expressão “conhecimento excelente” ? Esta é a real mensagem
do evangelho, a verdade maravilhosa que Cristo veio procla­
mar, e estas são as suas características: a primeira é que é a
justiça de Deus. “Não tendo a minha justiça que vem da lei,
mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça que vem
de Deus pela fé.” Certifiquemo-nos de que entendemos bem
o que Paulo quer dizer aqui. E justiça de Deus no sentido
de que é o método pelo qual Deus trata do problema da
justiça; não é a justiça que Deus exige ou requer, é a que Ele
provê. E isso que faz com que Paulo entre em êxtase. Eis aí
homens e mulheres que pecaram contra Deus e que tentam
estabelecer uma justiça que agrade a Deus, mas não con­
seguem, e 0 que é maravilhoso é que Deus, em Sua Palavra,
mostra-nos a justiça que Ele próprio providenciou livremente
para a humanidade decaída, desvalida e pecadora.
E devemos entender claramente esse ponto, porque
constitui a essência da doutrina da justificação pela fé. O
evangelho nos mostra que, ao mesmo tempo, não podemos
cumprir as exigências da lei, e Deus nos pode aceitar sem
violar a Sua justiça. A lei, volto a lembrar-lhes, exige que
tenhamos uma vida de obediência a ela e que a honremos;
mas outra vez ela denuncia o nosso fracasso nisso, e quando
definimos “lei” devemos incluir essas duas coisas. E preciso
acontecer algo que me livre da pena, e é preciso que eu entre
na posse de algo que me habilite a dar esse assentimento
positivo à lei para que eu possa honrá-la e cumpri-la. Esse
é o meu problema, e a resposta é que o evangelho nos fala
da provisão que Deus fez para nós nesse duplo aspecto. A
justiça que Deus provê é a justiça de Deus, não a minha.
Esse é 0 primeiro ponto.
A segunda característica é que isso tornou-se possível em
Jesus Cristo - “E seja achado nele, não tendo a minha justiça...

70
A Justiça de Deus

mas a que vem pela fé em Cristo...” . Esta justiça me vem por


eu crer no que aconteceu em Cristo. Isso tudo se me tornou
possível em Cristo. Isso é também uma coisa da qual Paulo
gosta de falar. Há, por exemplo, a sua grande declaração em
1 Coríntios 1:30. “(Cristo) para nós foi feito por Deus sabedoria,
e justiça, e santificação, e redenção” - é tudo em Cristo. Este é
o método divino de salvação, este é o meio de que Ele se
serve para nos prover justiça. Aqui estamos nós nesta vida;
todos nós pecamos contra Deus e Sua santa lei, e haverá
essa dúplice exigência. Sob a lei, a condenação do pecado é
a morte, e eu tenho que enfrentar isso.Também tenho que
encarar as perguntas: tenho cumprido a lei? Tenho-a honrado?
Mas não tenho.
Como é, então, que Cristo me ajuda nesse problema?
Eis a resposta: Ele veio a este mundo nascido de mulher,
nascido sob a lei. Embora sendo o Filho de Deus, nasceu
neste mundo como ser humano. Ele Se colocou sob a lei e,
em Sua vida na terra, prestou obediência absoluta e perfeita
a essa lei de Deus. Ele nunca a olvidou, em nenhum
aspecto, em nenhum detalhe. Ele votou-Lhe obediência ao
máximo, fidelidade ao máximo; Ele efetuou uma justiça
positiva, completa e perfeita. Então, naquele primeiro
Domingo de Ramos, foi deliberadamente para Jerusalém, e
depois foi deliberadamente para a cruz.
Por que Ele fez isso? Ele foi para lá porque era preciso
cumprir as exigências da lei. Ele era inocente, puro, abso­
lutamente justo; a lei não pôde apontar o dedo contra Ele,
não pôde encontrar nEle nem uma só mancha, mas Ele
tomou deliberadamente sobre Si os nossos pecados, e ali
Deus puniu os nossos pecados em Seu corpo, na cruz. Deus
O fez responder pela pena que nos cabia; Deus estava ali,
infligindo Sua pena ao Filho, de modo que em Cristo vemos
a exigência da lei satisfeita e sua pena cumprida, e vemos
satisfeita a exigência positiva da lei na questão da justiça.

71
A V ID A D E PAZ

Por conseguinte, Cristo é justo no sentido pleno e completo


de que Ele prestou obediência à lei tanto na penalidade
por ela imposta como em suas exigências, e a maravilhosa
e estupenda mensagem do evangelho é que Deus agora toma
essa justiça e no-la dá - “Não tendo a minha justiça que vem
da lei, mas a que vem pela fé em Cristo, a saber, a justiça
que vem de Deus pela fé”. Podemos expressar essa verdade
nestes termos: Deus Se dirige ao pecador e lhe diz: “Aí está
a justiça perfeita, e eu lhe darei essa justiça exatamente
assim como você está”. Essa é a oferta feita pelo evangelho;
foi isso que Paulo passou a ver e, sem fazer absolutamente
nada, exatamente como estava, ele a recebeu e a aceitou. Ele
viu que essa era a sua única esperança, sujeitou-se a ela, e foi
salvo; Deus o perdoou e o considerou como justificado - é
a justiça de Deus pela fé.
Entendamos bem este ponto. “Pela fé” não significa que
a nossa fé faz parte da justiça. A justiça está inteiramente
em Cristo; nada que possamos fazer pode satisfazer essa lei,
jamais poderiamos pagar a penalidade, jamais poderiamos
conformar-nos perfeitamente às suas exigências - a justiça é
e está em Cristo. Ele é a nossa justiça, está tudo nEle. A
minha fé não me faz justo; a fé é simplesmente o gerador
por meio do qual eu recebo essa justiça. A justiça é de
Deus, é Deus que me outorga Sua justiça, e o modo como
isso acontece, diz Paulo, é que, pela fé, eu sou unido a Cristo
- “E seja achado nele” . Minha fé nEle faz com que eu me
torne parte dEle. Eu entro numa união mística com Ele,
pertenço a Ele, estou nEle pela fé, de modo que tudo o que
Lhe diz respeito passa a dizer respeito a mim também - Sua
justiça é minha justiça.
E os resultados são que, como crentes, são-nos dados todos
os grandes benefícios de Cristo. Seria de admirar que Paulo
fale de modo tão lírico? Vocês se dão conta do que isso significa?
Significa que eu e vocês ficamos livres da penalidade da lei.

72
A Justiça de Deus

Significa mais que isso - significa que recebemos a recompensa


da obediência. Uma vez o arcebispo Leighton colocou essa
verdade nestes termos: “O pecador fica isento de culpa de toda
e qualquer falha, sim, como se tivesse cumprido toda a lei” - é
exatamente isso que esta doutrina significa. Se eu estou em
Cristo, Deus me considera isento de culpa; não somente
isso. Deus me considera como alguém que cumpriu plena­
mente a lei. Cristo a cumpriu e eu estou em Cristo. Eu
recebo, exatamente como sou e estou, todos os benefícios da
Sua obediência perfeita e da Sua morte expiatória. Essa é a
doutrina: “Assim como estou, sem nada alegar” - sem nada,
absolutamente nada; na verdade, pôr-se a fazer algo é negar
a doutrina. Você não pode fazer nada. Cristo fez tudo. Deus
oferece a Sua justiça, oferece-a como um dom, como uma
dádiva. Não é a nossa justiça que Ele requer, é a justiça
que Ele dá, de modo que devemos deixar de confiar em
nossos esforços, em nosso empenho e em nossas atividades.
Devemos compreender que, se vivéssemos até completar
mil anos de idade, não seríamos mais justos aos olhos de
Deus do que somos agora. Você pode crescer na graça, mas
em seu leito de morte a sua única esperança será a justiça
de Cristo. Tudo está em Cristo, e tudo o que você faz é crer
nEle, e, para usar a imagem do Novo Testamento, você está
coberto por aquilo que está em Cristo, está revestido disso.
No livro do Apocalipse, 3:18, o Senhor diz aos laodicenses
que eles precisam de vestidos brancos para se vestirem. E
lembrem-se de que no Apocalipse 19:7,8 nos é dito que o
Esposo está vestido de um manto de puríssima alvura, sím­
bolo da justiça de Cristo. Essa é a mensagem do evangelho,
e então será que vocês não vêem que isso veio a Paulo como
a coisa mais emocionante que ele tinha ouvido? Lá está
aquele fariseu, fiado em sua própria justiça, tentando edifi-
car sua justiça, e de repente vê que a justiça lhe foi dada.
Observem Lutero orando em sua cela, tentando produzir sua

73
A V ID A D E PAZ

própria justiça, e então, num lampejo, ele vê que Deus lhe


dá inteiramente, em Cristo, o que ele busca. O que quer que
eu possa fazer, jamais poderei fazer isso; é um dom, uma
dádiva. Cristo é absolutamente justo, e Deus me dá Sua
justiça. Pela fé sou incorporado nEle, e tudo o que é verdade
a respeito dEle torna-se verdade a meu respeito. Deus me
recompensará pelo cumprimento da lei, embora tenha sido
Cristo que o fez. A justiça que é de Deus pela fé - essa é “a
excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor”.

74
A Grande Ambição de Paulo
“Para conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição, e à comunhão
de suas aflições, sendo feito conforme à sua morte; para ver se de
alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos. ”
- Filipenses 3:10,11

Como já vimos, o objetivo do apóstolo Paulo em toda


esta passagem é denunciar todos os tipos de religião que
acrescentem alguma coisa à fé cristã além daquilo que foi
realizado pelo Senhor Jesus Cristo. Em nosso estudo anterior
examinamos o versículo 9 e vimos que ali a primeira coisa, a
fundamental, da “excelência do conhecimento” é a verdade
concernente à justiça de Deus que nos é dada em Cristo.
Quando Paulo medita nisso, mal se contém e empilha epíteto
após epíteto, pensando na glória deste conhecimento. Mas,
de acordo com o apóstolo, isso é só a primeira parte da
questão. E a primeira parte, e é a parte realmente vital,
porém, graças a Deus, não fica nisso. A posição de Paulo é
que ele passou a ver que tudo, todo este “excelente conhe­
cimento”, está na Pessoa do Senhor Jesus Cristo - Sua perfeita
vida de obediência e Sua morte expiatória.
Mas quando Paulo contempla todas estas coisas, vê tam­
bém algo mais e prossegue e nos fala nos versículos 10 e 11
deste conhecimento adicional que ele encontrou em Cristo e
no qual deseja se aprofundar mais ainda. Nos versículos 10
e 11 ele expõe a sua ambição pela qual ele considera todas
as outras coisas como perda. Ele se estica, como ele nos diz.

75
A V ID A D E PA Z

como o cão na correia que o prende. Ele quer ter esse


conhecimento, quer apreendê-lo e quer ser mantido seguro
por ele.
E a primeira coisa que ele nos diz sobre este conhecimento
adicional é que ele anseia por conhecer Cristo melhor ainda.
“Para conhecê-lo.” Ora, é muito importante que entendamos
bem esta declaração. Paulo não diz que deseja ter maior
conhecimento acerca de Cristo; tampouco diz que deseja
conhecer mais ainda certas verdades concernentes a Cristo.
Havia um sentido em que o apóstolo desejava isso, porém
o que ele diz é algo que vai muito além de tudo isso. Ele
nos diz que aspira a um conhecimento pessoal maior e
mais íntimo do Senhor
Bem, os passos da sua declaração são perfeitamente
claros. Ele estivera examinando a vida terrena do nosso Senhor
e Sua morte, e vê que sem Sua vida e Sua morte ele não seria
nada: não teria nenhuma esperança, nada em que se firmar.
“Presentemente”, diz com efeito Paulo, “vejo que em Sua
vida e em Sua morte Ele fez tudo isso por mim, mas, graças
a Deus, não permaneceu no sepulcro. Ele ressuscitou, triunfou
sobre a morte, apareceu a Seus discípulos e ascendeu ao
céu” . Isso Paulo nunca esqueceu, pois ele próprio vira Cristo
em pleno dia em sua viagem a Damasco; ele vira realmente
o rosto do Senhor ressurreto e glorificado, e ouvira Sua voz.
Num sentido ele está pedindo aqui uma experiência mais
intensa e mais aprofundada da sua experiência inicial no
caminho de Damasco.
Se considerarmos algumas das experiências de Paulo
registradas em Atos e em suas Epístolas, talvez vejamos ainda
mais claramente o que ele tem em mente. Lá, no caminho de
Damasco, ele havia tido aquela maravilhosa oportunidade de
ver o Senhor ressurreto, tivera comunhão e companheirismo
com Ele, ouvira Sua voz, e o Senhor lhe tinha falado; tivera
contato com a Pessoa de Jesus. Mas também nos é dito que.

76
A Grande Ambição de Paulo

subseqüentemente, Paulo teve algumas visões do Senhor. O


Senhor lhe apareceu no templo e lhe falou; não havia como
questionar isso. Paulo sabia que estava recebendo uma men­
sagem direta do Senhor ressurreto, glorificado. Depois, em
Atos somos informados de que, quando estava em Corinto,
passou por um período difícil em sua tentativa de pregar o
evangelho porque tudo parecia estar contra ele. Estava
desanimado - Paulo sabia o que é ficar desanimado - e quando
estava se sentindo completamente sem esperança e a tarefa
parecia impossível, o Senhor lhe apareceu de noite e lhe disse:
“Não temas, mas fala, e não te cales; porque eu sou contigo,
e ninguém lançará mão de ti para te fazer mal, pois tenho
muito povo nesta cidade” (Atos 18:9,10).
Também em 2 Coríntios, capítulo 12, ele nos conta que
conhecia um homem que havia catorze anos fora arrebatado
ao terceiro céu e ouvira palavras inefáveis - e esse homem era
o próprio Paulo. Ele tinha sido tomado e realmente estivera
nessa atmosfera sensitiva, etéria, acima da carne, acima do
mundo, num sentido, tendo comunhão imediata com o Senhor.
Não se trata de misticismo geral; é misticismo cristão. Não
é um homem sentir-se em harmonia com o Infinito; é comu­
nhão com o Senhor da glória propriamente dito. E, diz
Paulo, é por isso que eu anseio; “ ...para conhecê-lo”, para
que eu consiga conhecê-10 melhor.
Um exemplo tirado da vida diária ilustra isso perfeita-
mente. Você é apresentado a alguém com quem nunca se
havia encontrado, e imediatamente se encanta, e por isso
depois você diz ao amigo que o apresentou: “Gostaria de me
encontrar com esse homem outra vez - gostaria de ver mais
alguma coisa dele e de conhecê-lo melhor”. E isso que Paulo
está dizendo. Ele se encontrou com o seu Senhor, teve
comunhão com Ele, e agora a única coisa que importa para
Paulo na vida é ter mais e mais disso. Ele está sempre na
expectativa, sempre ansioso por entrar em maior comunhão

77
A V ID A D E P A Z

e num contato mais direto e mais pessoal com Cristo.


Ora, isso não deveria caracterizar somente o apóstolo
Paulo; o propósito é que caracterize todos nós. Falemos
com clareza. Não é provável que vejamos o Senhor ressurreto
como Paulo O viu, porque, como já observam os, essa
experiência foi única. A Paulo foi concedido vê-lo no ca­
minho de Damasco porque ele foi chamado para ser apóstolo,
e todo apóstolo, por definição, tinha que ser testemunha da
ressurreição. Em 1 Coríntios, capítulo 15, diz ele com efeito:
“Eu não O vi durante os quarenta dias, como aconteceu com
os outros; eu O vi posteriormente; foi-me concedido vê-10
desse modo especial para que eu me tornasse apóstolo”. Não
nos cabe ter essa experiência porque não nos foi destinada,
mas fomos destinados a ter real, viva e pessoal comunhão e
companheirismo com o Senhor ressurreto. Se como cristão
tudo o que posso dizer é que creio em certas verdades
acerca de Cristo, sou apenas um jovenzinho, um bebê em
Cristo. Naturalmente devo crer em verdades sobre Ele, e a
minha fé deve estar firmada nEle objetivamente, mas a
posição cristã não se detém aí. O cristão verdadeiro tem
este companheirismo e esta viva comunhão com Ele.
Também não se segue que necessariamente eu e vocês
havemos de ter visões. Essas são dadas a alguns cristãos, não
há como contestar isso - não se pode ler as biografias dos santos
sem ver que de tempos em tempos são dadas visões a filhos de
Deus. Mas não devemos cobiçá-las; o que devemos cobiçar
é esta comunhão, este intercâmbio e este companheirismo
pessoal com Ele, e, graças a Deus, isso é gloriosamente possí­
vel. Na ausência de uma visão direta, sem uma voz audível,
sem nenhum êxtase, completamente à parte disso tudo, é-nos
possível dizer com Henry Twells:

Se é certo que Tua forma não podemos ver,


Sabemos e sentimos que bem perto estás.

78
A Grande Am bição de Paulo

Ou podemos dizer com a escritora de outro hino:

E u preciso de Ti a todo instante;


Fica, ó Deus, por perto!
A s tentações perdem seu poder
Quando perto estás.
- Annie Sherwood Hawkes

Não, eu não O vi, não tive uma visão, não ouvi uma voz
audível dirigida a mim, mas graças a Deus eu posso dizer
essas palavras. Sei que Ele está aí, sinto a Sua presença. E
disso que Paulo está falando, e é isso que devemos cobiçar
e anelar.
“Para conhecê-lo.” Oh, não meramente crer em certas
verdades a respeito dEle, mas ter realmente consciência da
V

Sua presença! As vezes quando você está orando a sós, às


vezes quando você está lendo as Escrituras, às vezes quando
você está meditando nestas realidades, sobrevêm a estranha
percepção de que ali presente está outro, alguma outra
pessoa, a percepção de que você não está sozinho, e de que
parece que Ele está falando com você. Você não ouve, mas
capta a mensagem. Você entende o que Ele está dizendo. Ali
está Ele encorajando você sobre alguma coisa que você fez,
ou castigando ou censurando você. Ele se mostra em Sua
glória e em Seu esplendor, pedindo a você que chegue
mais perto e passe mais tempo com Ele. São essas as coisas,
isso faz parte da comunhão sobre a qual o apóstolo está
falando.
“Para conhecê-lo.” Ele ressuscitou, Ele vive, o apóstolo
O viu de fato, mas é possível ter esta comunhão pela fé, e
Paulo ansiava por ter mais dela. Quanto a nós, a questão é:
será que nós também ansiamos por ter mais desta comu­
nhão? Cada vez mais me parece que esse deveria ser o único
interesse para todos nós que somos cristãos; na verdade.

79
A V ID A D E PA Z

penso que essa é a única coisa que diferencia o verdadeiro


cristão de todas as outras pessoas deste mundo. Todo o
mundo deseja alguma coisa; eu e vocês talvez tenhamos
ambições de toda espécie. Pois bem, a sugestão é que o
cristão é ou seja alguém que diz: “O que anseio, acima de
tudo mais, é conhecê-10 melhor, e quando penso nisso, todas
as outras coisas se tornam relativamente insignificantes. Se
vendendo tudo o que tenho ou renunciando a tudo o que
tenho sido até aqui, se, fazendo isso, eu pudesse ter um
conhecimento mais profundo, um entendimento mais veraz,
uma comunhão mais íntima, alegremente o faria”. Esse é o
teste, essa foi a experiência de Paulo, e deveria ser a expe­
riência de cada um de nós. “A excelência do conhecimento
de Cristo Jesus”, no sentido de conhecê-10 ainda melhor, é
algo que transcende o mundo inteiro e sua riqueza, seus
tesouros e suas possibilidades.
Assim, pois, a primeira coisa que Paulo queria era conhe­
cer Cristo: “Para conhecê-lo” . A segunda coisa que ele desejava
era ser mais semelhante a Ele. O versículo 10 continua: “ ...e
o poder da sua ressurreição, e à comunhão de suas aflições,
sendo feito conforme a sua morte” . Vocês vêem a lógica
inevitável? Sempre que você se encontra com alguém que
você admira, instintivamente sente em seu íntimo o desejo
de ser seme-lhante àquela pessoa. Isso é igualmente certo
quanto à nossa relação com o Senhor. O homem ou a mulher
que quer conhecê-10 melhor é alguém que quer ser mais
semelhante a Ele, e essa era a constante experiência de Paulo.
E aqui ele nos fala de três coisas que são necessárias antes
de podermos tornar-nos mais semelhantes a Cristo. A primeira
é que precisamos conhecer “o poder da sua ressurreição”. O
apóstolo gostava muito desta figura. Quando vocês lerem as
suas Epístolas, procurem notar a freqüência com que ele
repete a idéia que está apresentando nestes dois versículos. Sua
frase favorita é “estar em Cristo” ; o cristão está em Cristo, e

80
A Grande Ambição de Paulo

Paulo explica o que ele quer dizer com isso. Ele faz a ousada
e, como ele mesmo diz, incrível afirmação de que aqueles
de nós que somos de Cristo e que, portanto, estamos “em
Cristo”, morremos com Cristo. Quando Cristo morreu, eu
morri com Ele; mas, diz Paulo, não somente morri com Ele;
quando Cristo ressuscitou, eu ressuscitei com Ele. Se eu estou
nEle, isso é necessariamente verdade; se estou ligado a Ele
pela fé, se pertenço a Ele, se sou membro do Seu corpo,
então, o que aconteceu com Ele, seja o que for, também
aconteceu comigo - fui sepultado com Ele no batismo e
também ressuscitei com Ele em novidade de vida.
Ora, se vocês quiserem a melhor exposição que mesmo
Paulo pode fazer, dirijam-se a Romanos, capítulo 6. Nos
cinco capítulos iniciais de Romanos, Paulo salienta a grande
doutrina da justificação pela fé. Não devemos fixar-nos em
nós e em nossos méritos, de modo nenhum; somos salvos
em Cristo, pelo que Ele fez. Depois Paulo imagina algum
sujeito esperto de Roma, que diz: “Vejo a doutrina, e então,
se somos justificados pela fé, não importa o que fazemos;
nesse caso continuaremos no pecado para que a graça seja
mais abundante? Claro”, responde essa pessoa, “esta é a lógica
do seu argumento: se é tudo em Cristo, posso fazer o que
quiser, estou coberto pelo sangue de Cristo, estou perdoado,
e tudo está bem” .
“Ah”, diz com efeito Paulo, “quem fala desse jeito nunca
entendeu a doutrina da justiça; nunca entendeu o significado
da morte de Cristo na cruz, e está sendo completamente
ridículo” ! Depois Paulo passa a explicar isso no capítulo seis.
“Romanos”, diz ele, “entendam isto: se vocês estão em Cristo
e morreram com Ele, receberam novidade de vida. Bem,
então, andem com Ele nesta vida ressurreta que partilham
com Ele.” E é exatamente isso que ele está dizendo aqui,
neste versículo 10 de Filipenses, capítulo 3.
Não, para aqueles que entendem esta doutrina não há

81
A V ID A D E PA Z

real perigo no “antinomismo”, assim chamado; são os que


querem conhecer m elhor Cristo que querem ser mais
semelhantes a Ele. Mas, que dizer de alguém que, homem ou
mulher, vem me dizer: “Aqui estou eu, em minha fraqueza,
cônscio do pecado que há em mim, sempre cercado de
tentações, todo o mundo organizado do lado do pecado, de
satanás e do mal. Já é suficientemente difícil manter-me
íntegro e moralmente reto num mundo como este, e você
me pede que eu viva a espécie de vida que Jesus de Nazaré
viveu na terra - é impossível” . A resposta a tal pessoa é: “o
poder da sua ressurreição”. Ele ressuscitou, manifestou o Seu
poder, e esse poder está sendo oferecido a nós. Esse é o
poder que pode tornar-se nosso, por fracos que sejamos; esse
poder é capaz de levantar-nos, de nos alçar e novidade de
vida e de habilitar-nos a andar com Ele.
Paulo expressa esta verdade de maneira sumamente
dramática em Romanos, capítulo 7; na realidade, estes versícu­
los de Filipenses são apenas uma breve sinopse dos capítulos
seis, sete e oito dessa Epístola. Que posso fazer? - Paulo se
pergunta. Quero ser melhor, quero viver a vida cristã, mas
não consigo. Amo a lei de Deus, sei que ela é correta e
quero viver em conformidade com ela, mas, “vejo nos meus
membros outra lei que batalha contra a lei do meu enten­
dimento e me prende debaixo da lei do pecado que está nos
meus membros. Miserável homem que eu sou! Quem me
livrará do corpo desta morte?” E há somente uma resposta:
“Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor” (versículos
23-25). Aquele que venceu o pecado, satanás e a morte, e que
ressuscitou triunfalmente, poderá capacitar-me. Seu poder
pode vir a ser meu, posso experimentar o poder da Sua vida
ressurreta. E à medida que percebo mais e mais que estou
nEle e consigo conhece-lO melhor, sentirei Seu grande
poder fluindo em mim e levantando-me acima de mim
mesmo e do pecado - “o poder da Sua ressurreição” .

82
A Grande Ambição de Paulo

Que m ais? O segundo elemento essencial para nos


tornarmos mais semelhantes a Cristo é “a comunhão de suas
aflições”. Que significa isso? Por que Paulo volta às aflições
de Cristo depois de ter falado da ressurreição? Bem, eu penso
que, experimentalmente, é uma lógica perfeita. Quero, diz
Paulo, estar nEle antes de poder ser mais semelhante a Ele,
e compreendo que nada senão o poder da Sua ressurreição
pode me tornar mais semelhante a Ele. E quero ser seme­
lhante a Ele neste sentido, que, por ser tão semelhante a
Ele, repetirei algumas das Suas experiências em minha
própria vida neste mundo. Este é um mundo de pecado, de
modo que até o Filho de Deus, quando veio, sofreu porque
Ele era santo e o mundo era pecador. Jesus Cristo não
poderia ter sofrido como sofreu, se não fosse perfeito. Os
sofrimentos do Filho do Homem na terra foram, inteira­
mente, uma conseqüência do pecado, e, diz Paulo, quanto
mais semelhante a Ele eu me tornar, mais sofrerei como
Ele sofreu.
Essa idéia é tremenda e terrificante. Paulo, escrevendo a
Timóteo, que estava sofrendo e de fato estava resmungando,
diz: Timóteo, meu amigo, você inverteu tudo. Devia estar
alegre com isso, pois “também todos os que piamente querem
viver em Cristo Jesus padecerão perseguições” (2 Timóteo
3:12). “Não é o discípulo mais do que o mestre, nem o servo
mais do que o seu senhor”, disse Cristo; “...Se chamaram
Belzebu ao pai de família, quanto mais aos seus domésticos?”
(Mateus 10:24,25); “Meus irmãos, tende por motivo de toda
alegria o passardes por várias provações” (Tiago 1:2, ARA).

Esse é 0 caminho que o Senhor seguiu,


N ão seria nesse que o servo deve andar?
- Horatius Bonar

E isso que Paulo quer dizer. Ele diz: “Posso ver claramente

83
A V ID A D E PA Z

que, quanto mais santo eu me tornar - quanto mais seme­


lhante a Cristo eu me tornar - mais Suas experiências serão
revalidadas em minha vida” .
O nosso Senhor era um “homem de dores, e experimentado
nos trabalhos” em parte porque a Sua alma santa ficou
atribulada quando Ele viu o que o pecado tinha feito com a
criação de Seu Pai. Quando Ele viu a torpeza e a feiúra do
pecado, isso O feriu e O afligiu. Assim também, quanto mais
nos aproximamos do nosso Senhor e da Sua vida, mais o
pecado deste mundo nos aflige e nos fere. O pecado deste
mundo nos magoa? Não estou perguntando se nos irrita; a
pessoa que apenas tem boa moral pode irritar-se com o
pecado, e freqüentemente se irrita, porém não foi isso que
o nosso Senhor sentiu. Ele não ficava irritado, o pecado O
afligia, tornou-se um fardo sobre Ele. E Paulo declara que
anseia entrar na participação desses sofrimentos. Em acréscimo
a isso, quanto mais semelhantes a Ele formos, maior proba­
bilidade teremos de ser perseguidos por aqueles que não O
entendem, por aqueles que gritam: “Fora com Ele! Crucifica-
-01” É isso que Paulo quer dizer com viver a vida que o
nosso Senhor viveu, e eu sei que a estou vivendo quando
experimento, em certa medida, o que o mundo fez a Ele.
A seguir Paulo diz: “sendo feito conforme à sua morte”, o
que significa que me tornei tão obediente a Deus que, como
aconteceu com meu Senhor antes de mim, estou pronto, se
necessário, a dar até a minha vida. Se é questão de lealdade a
Ele e a Seus santos mandamentos, não hesito. Meu Senhor
foi confrontado justamente por essa possibilidade, e deu Sua
vida voluntária e prontamente para que fosse feita a santa
vontade de Deus. E eu também, diz Paulo, estarei de tal modo
morto para o pecado, de tal modo morto para o mundo, de
tal modo morto para tudo o que não é de Cristo ou que Lhe
é oposto, que, como o meu Senhor fez antes de mim, vou
ser capaz de dar a minha vida, e, se necessário, até à morte.

84
A Grande Ambição de Paulo

Aí estão, em breves palavras, os três passos do processo


de nos tornarmos mais semelhantes a Cristo - conhecer o poder
da Sua ressurreição, partilhar as experiências dos Seus sofri­
mentos, sendo até feitos conforme à Sua morte. Mas, por
último, a final e suprema ambição de Paulo era estar com
Cristo na glória. “Para conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição,
e à comunhão de suas aflições, sendo feito conforme à sua
morte, para ver se de alguma maneira posso chegar à ressur­
reição dentre os mortos.” Vejam os passos: mais freqüente
comunhão com Ele, mais semelhança com Ele e então,
finalmente, estar com Ele para sempre. Paulo jamais rechaçou
esses passos; certifiquemo-nos de que os entendemos:
Versículo 9, justificação - Sua justiça;
Versículo 10, santificação;
Versículo 11, glorificação.
São esses os passos inevitáveis, indeléveis. Notem também que
ninguém pode ser justificado sem ser santificado e sem ser
glorificado. Certamente vocês se lembram de como Paulo se
expressou a respeito em Romanos 8:29,30: “Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem conformes
à imagem de seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também
chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos
que justificou a estes também glorificou”. São esses os passos,
e é tudo em Cristo.
Agora procuremos entender bem o que Paulo quer dizer
quando declara: “Para ver se de alguma maneira posso chegar
à ressurreição dentre os mortos”. “Mas eu pensava”, alguém
dirá, “que toda pessoa que vive na face da terra irá final­
mente ressuscitar no último dia.”
Certo, haverá uma ressurreição dos mortos. Cada um de
nós vai ressuscitar num determinado dia, esse é o decreto de
Deus para toda a humanidade, porém não é isso que Paulo
quer dizer aqui. O que ele quer dizer é esta outra verdade a

85
A V ID A D E PA Z

que acabamos de referir-nos; ele está olhando para o futuro,


não para a ressurreição que leva à segunda morte, à condena­
ção e ao inferno, mas à ressurreição do justo, a ressurreição
que leva à glória, para estar sempre com o Senhor.
Paulo está olhando para o futuro, para aquele estado no
qual todos os cristãos vão entrar finalmente, no qual vão estar
inteiramente livres do pecado. E incrível, mas vai acontecer.
Eu e vocês, se estamos em Cristo, ressuscitaremos, e nenhum
traço de pecado será deixado em nós. Mau pensamento ou
má imaginação é coisa que não existirá; estaremos sem culpa
e sem falha, sem mancha e sem defeito; os olhos de Deus
não vão detectar nada errado em nós, e seremos glorificados,
perfeitos, como Ele o é. Paulo põe um fecho nisso no último
versículo deste capítulo três: esperamos Aquele “que trans­
formará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo
glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si
todas as coisas”. Dia virá em que o pecado será extirpado,
não só da minha alma e espírito, mas também até do meu
corpo. Não haverá nada imperfeito nele, terei um novo
corpo, glorificado, serei semelhante a Ele. Eis como João se
expressa a respeito: “ ...não está ainda manifesto o que ha­
vemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar,
seremos semelhantes a ele; porque assim como (ele) é o
veremos” (1 João 3:2).

Transformados de glória em glória,


A té que no céu nosso lugar tomemos
E nossas coroas lancemos a Teus pés,
Perdidos em encanto, em amor e em louvor.
- Charles Wesley

Por essa experiência Paulo ansiava acima de tudo mais -


pelo dia que havia de vir, o glorioso dia da ressurreição. Ele
se refere a isso também naquele capítulo oito de Romanos.

86
A Grande Ambição de Paulo

Diz ele que toda a criação aguarda isso; mesmo os animais, as


aves, as flores, tudo geme enquanto o espera. O mundo
todo será renovado, haverá novo céu e nova terra, e tudo
quanto existe aguarda a manifestação dos sinais da glória
do Senhor - a glorificação final.
Cristo teve a vida perfeita, sofreu a morte expiatória, foi
sepultado num túmulo, ressuscitou e entrou na glória, e está
vivendo a vida da glória, e todos os que estão em Cristo
estão certos e seguros da mesma glória. A medida em que
compreendemos algo disso é a medida em que saberemos,
com o apóstolo Paulo, o que é ter este anseio e dizer, à luz
disso, que tudo mais é insignificante, é lixo. O mundo e
seus reinos e suas glórias, que são, quando penso nesta outra
glória? E, portanto, minha ambição é: “Para ver se de alguma
maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos” - e ter
entrada nessa glória.

87
Meta Suprema
“N ão que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas
prossigo para alcançar aquilo para o que fu i também preso por Cristo
Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas
uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam,
e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o
alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. ”
- Filipenses 3:12-14

Em todo e qualquer aspecto, esta passagem é notável e


importante. Imagino que, de muitas maneiras, esta é uma
das declarações mais conhecidas do apóstolo, mas também
ela tem levado a muita controvérsia e incompreensão.
Estes três versículos fazem parte da exposição que o
apóstolo está fazendo com respeito à sua fé e à sua posição.
Por certo vocês se lembram do pano de fimdo: ele se dispusera
a contrastar a posição dos judaizantes com a da cristandade, e
o faz em termos da sua experiência pessoal - como bem podia
fazê-lo, pois ele próprio experimentara a posição dos judeus
e dedicara anos da sua vida à tentativa de fazer-se aceitável
aos olhos de Deus, antes de lhe ser dado este entendimento
da verdade como presente em Cristo Jesus.
E de que modo ardente, emocionante e dramático ele
contrasta definitivamente estas duas posições! Uma vez que
ele obtivera este excelente conhecimento em Cristo, tudo mais
lhe parecia não somente trivial, mas na verdade um estorvo. E
ele vai adiante e declara que alegremente sacrificaria todas

88
Meta Suprema
.1

as outras coisas que lhe restavam - embora já tivesse sacrifi­


cado tantas - se fosse necessário para ganhar Cristo e ser
achado nEle, não tendo a sua própria justiça, que é da lei,
mas a que é pela fé em Cristo, a justiça que é de Deus
pela fé. A ambição de Paulo é “conhecê-lo, e o poder da sua
ressurreição, e à comunhão de suas aflições, sendo feito con­
forme à sua morte; para ver se de alguma maneira posso
chegar à ressurreição dentre os mortos” . Segue-se, então, a
passagem que vamos considerar agora.
Esta é uma declaração importante, mesmo se só for
tomada do ponto de vista da pessoa de Paulo. Ele constitui
um assunto bem merecedor da nossa consideração: um dos
homens mais importantes de todos os tempos, julgado por
qualquer padrão, uma das mentes proeminentes dentre as
mais altas mentes da história e do mundo. Esta passagem é
importante simplesmente porque nos ajuda a entendê-lo e a
entender mais clara e verdadeiramente a sua posição. Mas,
afinal de contas, não estamos aqui por mero interesse teórico
no grande apóstolo, por fascinante que isto seja do ponto de
vista da teologia e da psicologia. Estamos interessados nesta
declaração porque tem uma relevância bem definida para
nós, porque ela tem algo para nos dizer sobre o estado em
que nos encontramos e sobre a nossa posição.
Conquanto reconheçamos claramente que o apóstolo é
um homem qualificado por dons e que, como apóstolo, está
numa categoria à parte, não obstante devemos entender que
o que Paulo diz de si mesmo, como cristão, deveria ser ver­
dade a respeito de todos os cristãos. O próprio apóstolo
esclarece bem isso; ele diz “nós”, e constantemente inclui
outros cristãos com ele. Neste trecho particular ele escreve na
primeira pessoa do singular porque está tratando da sua
experiência pessoal, mas o que diz a seu respeito deveria dizer
respeito a todos nós como cristãos e, portanto, também deveria
fazer parte da nossa experiência. Por isso é urgentemente

89
A V ID A D E PA Z

importante para nós que descubramos exatamente o que o


apóstolo está realmente dizendo sobre si mesmo aqui.
Além disso, a nossa experiência depende do que cremos
e disto decorre, de modo que, se a nossa fé quanto ao que nos
é possível estiver errada, é mais que provável que a nossa
experiência esteja correspondentemente errada. Não se pode
duvidar de que muitas, se não a maioria, das dificuldades na
vida e na experiência cristã surgem da falta de entendimento
da doutrina, da falha de compreender as possibilidades
abertas a nós por este glorioso evangelho. Portanto, a questão
vital que nos cabe considerar é o que, na realidade, o apóstolo
está dizendo nestes versículos sobre si mesmo e sobre a sua
experiência.
Que é que ele está dizendo? Geralmente as pessoas dão a
essa pergunta uma de duas respostas antagônicas - mas eu
quero dar o meu parecer de que as duas respostas são errô­
neas. A primeira é que Paulo não está seguro da sua salvação.
Se alguma vez vocês se engajarem numa discussão sobre a
questão da segurança da salvação ou se ficarem envolvidos
numa discussão com pessoas que têm algum conhecimento
das Escrituras, penso que verão que aqueles que não têm essa
segurança vão além desse ponto e dizem que ninguém deve
ter certeza da salvação. E elas gostam de citar os versículos
que estamos estudando. Elas dizem: “Como pode alguém ter
certeza da sua salvação, quando até o grande apóstolo não
tinha?” “Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcan­
çado” - “acaso isso não quer dizer” : perguntam tais pessoas,
“que o apóstolo não estava seguro? Isso não mostraria que a
sua posição geral era que ele esperava que eventualmente seria
salvo? Porventura ele não está mostrando isso aí, e não tinha
dado a entender isso nos versículos anteriores?” “Se de alguma
maneira” - isso não denotaria incerteza? Será que a linguagem
que ele emprega nesse ponto não mostra especificamente
que 0 apóstolo, grande como era, não obstante não estava

90
Meta Suprema

seguro de que estava salvo, não estava seguro de que os seus


pecados tinham sido perdoados, e que não estava confiante
em que era filho de Deus? Ele esperava que eventualmente
o seria, mas estava incerto quanto a isso”.
Essa é, então, a opinião freqüentemente apresentada. Mas
um argumento como esse, parece-me, coloca-nos de frente a
um princípio vital. Sempre que nos defrontamos com um
texto difícil há o perigo de basearmos a nossa doutrina num
só texto, em vez de tomá-lo e considerá-lo à luz do ensino
geral das Escrituras. Pois bem, eu penso que posso mostrar
a vocês que a linguagem que o apóstolo emprega nesse ponto
de maneira nenhuma dá apoio à opinião de que ele não está
seguro da salvação. Na verdade, se dissermos isso, seremos
forçados a concluir que o apóstolo contradiz o que ele estabe­
lece tão categórica e explicitamente em várias outras partes
dos seus escritos; “Eu sei em quem tenho crido, e estou certo
de que é poderoso para guardar o meu depósito até àquele
dia” - essa é a declaração do apóstolo Paulo em 2 Timóteo
1:12; ou também em Romanos 8:38 e 39, onde ele diz: “...estou
certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,
nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra cria­
tura nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo
Jesus nosso Senhor”.
Depois, nesta mesma Epístola, por certo vocês se lembram,
no capítulo primeiro, versículo 6, ele diz: “Aquele que em vós
começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”.‘
Essa linguagem é de incerteza? “Para mim o viver é Cristo, e o
morrer é ganho”, continua ele no versículo 21, e no versículo
23 diz: “Mas de ambos os lados estou em aperto, tendo desejo
de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito
melhor” . Torno a perguntar: essa linguagem é de um homem

‘ Ver o volume l,A Vida de Alegria.

91
A V ID A D E PA Z

inseguro da sua posição, a linguagem de um homem que


meramente espera ser eventualmente salvo, ou que, de um
modo ou de outro, apesar de tudo, poderá estar entre os
redim idos? Certamente a linguagem do apóstolo é uma
completa contradição dessa opinião. Se alguma vez alguém
escreveu com plena confiança no que sabia concernente a si
mesmo e a sua posição em Cristo, foi este homem - “Porque
os que dantes conheceu também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho; a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a
estes também chamou; e aos que chamou a estes também
justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”
(Romanos 8:29,30). Essa é sua linguagem. “Quem intentará
acusação contra os escolhidos de Deus?”, Paulo pergunta em
Romanos 8:33. É impossível. Não, o apóstolo está certo e
seguro da sua salvação; “Porque a circuncisão somos nós, que
servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Jesus Cristo,
e não confiamos na carne” (Filipenses 3:3). Toda a sua lingua­
gem, em toda parte, e mesmo aqui, em Filipenses, nos torna
impossível dizer que a interpretação destes versículos é que
Paulo está inseguro da sua salvação.
Permitam que a seguir eu exponha a outra opinião dada,
a qual é exatamente o oposto da que acabei de esboçar. E
sustentada por aqueles que concordam que Paulo tinha
certeza da salvação. Estas pessoas achavam que, uma vez que
o apóstolo estava absolutamente certo da sua salvação, a
única maneira de explicar estes versículos é que Paulo quer
dizer que ainda não terminou a jornada da sua vida, que
ainda não chegou à ressurreição final dos mortos. Elas apresen­
tam com seriedade isso como explicação dessas palavras.
Dizem elas que a declaração de Paulo só pode significar:
“Para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição,
mas, irmãos, ainda não cheguei” .
Contudo, o certo é que essa é também uma opinião não

92
Meta Suprema

só patentemente inadequada mas, na verdade, até ridícula.


Significaria com efeito que o apóstolo, que fatualmente está
escrevendo ou ditando uma carta a pessoas de Filipos, lhes
dissesse: “Ainda vivo neste mundo; devo continuar a jornada”.
Mas isso é desnecessário, pois o fato de lhes estar escrevendo
diz tudo, e o certo é que não há necessidade de quem escreve
uma carta dizer que ainda está vivo!
Assim, então, se não podemos aceitar nenhuma destas
duas opiniões, qual é a nossa interpretação do que Paulo diz?
Bem, parece-me que há três declarações que se destacam na
parte que vai do versículo 10 ao versículo 14. Eis a primeira:
Paulo nos diz que Cristo o segurou, e ainda o mantém seguro,
a fim de que ele possa chegar a uma particular meta - “Não
que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo
para alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo
Jesus”. Essa é a primeira grande declaração. Noutras palavras,
aqui o apóstolo nos está dizendo que quando desceu para
Damasco naquela famosa ocasião, de repente foi “preso”,
capturado, pelo Senhor Jesus Cristo. “Apreendido”, diz a Versão
Autorizada (inglesa), termo ainda empregado no sentido de
“prender”, “capturar”, embora não tão freqüentemente como
no tempo em que foi feita aquela tradução. Contudo, ainda
falamos sobre a polícia “apreender” um homem quando o
detém para que se façam certas investigações. Paulo declara
que foi “apreendido” por Cristo; Cristo tinha posto as mãos
nele, e ainda o mantinha seguro.
Mas, notem, ele declara que isso lhe aconteceu por uma
certa razão, uma razão específica: “ ...para que eu apreenda
aquilo para o que também fui apreendido” (VA). Paulo foi
“apreendido” por essa razão particular. Pois bem, essa é, ao
que me parece, a chave para o entendimento desta particular
declaração. Para que Paulo foi “apreendido” ? Por que foi
capturado no caminho de Damasco? Em certo sentido ele já
nos falara sobre isso. Ele foi capturado por Cristo, não

93
A V ID A D E PA Z

meramente para conhecer o perdão, e não meramente para


desistir da tentativa de produzir sua própria justiça. Foi
seguro não apenas para deixar de perseguir a Igreja Cristã,
e não apenas para ser libertado e emancipado do erro.
Por que será então que ele foi “apreendido” ? Bem, por
esta razão positiva: como todos os outros cristãos, ele foi
salvo para poder chegar finalmente a uma particular meta,
e ele descreve essa meta no versículo 10 - conhecer Cristo
plena e perfeitamente; e não somente isso, mas também
tornar-se semelhante a Cristo, conhecer “o poder da sua
ressurreição e a comunhão dos seus sofrimentos, sendo feito
conforme à sua morte” (VA). O apóstolo gosta muito de
ensinar esta particular verdade. Assim ele a expressa em sua
carta a Tito: “Porque a graça de Deus se manifestou, trazendo
salvação a todos os homens, ensinando-nos que, renunciando
à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste
presente século, sóbria, e justa, e piamente, aguardando a
bem-aventurada esperança e o aparecimento da glória do
grande Deus e nosso Senhor Jesus Cristo; o qual se deu a si
mesmo por nós para nos remir de toda iniqüidade, e puri­
ficar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras”
(Tito 2:11-14). E exatamente a mesma idéia.
Então, a meta que Paulo nos conta que foi exposta diante
dele, aquilo para o que ele foi “apreendido”, é que ele chegue
a esse conhecimento íntimo de Cristo, a essa comunhão per­
feita, e que seja libertado não só da culpa do pecado, bênção
da qual ele está perfeitamente certo e seguro, mas também
do poder e da corrupção do pecado, e se torne semelhante a
Cristo em sua vida, em sua morte, em tudo; que reproduza
em sua vida a espécie de vida que o próprio Senhor Jesus
Cristo viveu. Eu fui capturado para isso, diz Paulo. Essa é,
pois, a primeira declaração. O nosso Senhor Se apossou
dele naquela tarde, no caminho de Damasco a fim de que
ele adentrasse e seguisse cabalmente esse outro caminho.

94
Meta Suprema

E essa é a ambição do apóstolo - chegar lá.


Depois, a sua segunda declaração nos revela que ele não
chegou a essa meta. Oh, sim, ele sabe que está salvo; ele com­
preende que a sua salvação final é tão certa quanto possível;
ele está em Cristo e sabe que vai estar com Cristo - não há
como questionar isso; ele deixou todas estas outras coisas
para trás e renunciou a toda e qualquer crença em qualquer
outra justiça. Ele agora tem a justiça que é pela fé em Cristo
Jesus, e sabe qual é o seu destino final. Mas o que o deixa
insatisfeito é sua falha em não chegar àquela meta para a
qual foi aprisionado - o conhecimento experimental de
Cristo e sua conformidade com Cristo em toda a sua existên­
cia e em todo o seu viver. “Não que já a^ tenha alcançado” -
Paulo não se refere à ressurreição, nem, como lhes mostrei, é
necessário que ele diga que está vivo - não, é “...para conhecê-
-lo e 0 poder da sua ressurreição” . Não alcancei isso, diz
Paulo, e é atrás disso que prossigo. Ele não alcançou a meta
para a qual fora “apreendido”, e, assim, a sua terceira declara­
ção é que ele anseia alcançá-la e retesa cada nervo para chegar
lá: “ ...avançando para as (coisas) que estão diante de mim,
prossigo para o alvo...” .
São estas as três verdades que o apóstolo diz nestes ver­
sículos: ele define a meta, a ambição do cristão; ele confessa
que ainda não a alcançou; e nos revela que todo o seu interesse
na vida é alcançá-la e que está fazendo aquelas coisas neces­
sárias para chegar lá. Então, tendo explicado as palavras do
apóstolo, passemos a deduzir a doutrina; noutras palavras,
apliquemos a nós o que o apóstolo diz sobre si próprio.
Este é um assunto acerca do qual há muita confusão e
muita prosa leviana de ambos os lados. Há aqueles que afirmam

^Na Versão Autorizada (inglesa) e no grego não consta o objeto do verbo. A


ARA coloca o objeto (“o”) não diretamente relacionado com “ressurreição”,
e a NVI diz: “Não que eu já tenha obtido tudo isso...”. Nota do tradutor.

95
A V ID A D E PA Z

mais do que o apóstolo afirma, e aqueles que não afirmam


tanto quanto ele o faz. Estes dois perigos estão sempre pre­
sentes. Alguns dizem que você não deve afirmar que tem
certeza da sua salvação; deve dizer apenas que está fazendo o
melhor que pode e espera chegar à meta no fim. Outros
sustentam que os cristãos já são perfeitos neste mundo e que
certamente devem afirmar que atingiram esse estado de
perfeição. Veremos, porém, que o apóstolo evita essas duas
afirmações e diz aqui uma coisa muito diferente. A doutrina
pode ser expressa assim:
Primeiro, perfeição nesta vida e neste mundo é coisa que
não existe; é impossível. Só o caso do grande apóstolo já é
suficiente para nos satisfazer sobre este assunto uma vez por
todas. “Não que já a tenha alcançado”, diz este grande homem
de Deus, “ou que seja perfeito” . O próprio Paulo não era
perfeito.
“Mas”, perguntará alguém, “ele não continua e não diz no
versículo 15: “Pelo que todos quantos já somos perfeitos?”
Mas seguramente o apóstolo não iria contradizer-se dentro
de uns poucos versículos! A palavra “perfeitos”, no versículo
15, é um daqueles termos limitativos que vemos empregados
pelo apóstolo em muitos lugares. Por exemplo, em 1 Coríntios
2:6 ele diz: “Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos” . Ele
está contrastando os que ainda são crianças com os que ocupam
uma posição mais avançada; ele diz que não pode ensinar a
doutrina mais alta aos crentes de Corinto porque ainda são
meninos em Cristo, ainda são “ carnais” (1 Coríntios 3:3).
“Todavia”, diz ele com efeito, “ falamos sabedoria com aqueles
que estão mais avançados e que são mais maduros.” E em
Filipenses 3:15 ele diz a mesma coisa: “Pelo que todos quantos
já somos perfeitos...”. Não é perfeição absoluta: eu ainda não
me tornei perfeito, diz ele; ainda não cheguei a esse ponto. Por
conseguinte, é óbvio que o grande apóstolo não está satisfeito
com a vida que está levando; há elementos em sua vida que

96
Meta Suprema

lhe causam muita insatisfação. Com base neste único exemplo,


sem recorrer a nenhum outro nem citar outras passagens, o
que eu poderia fazer facilmente, podemos firmar o princípio
de que a perfeição não é possível nesta vida. Que direito temos
de afirmar que isso aconteceu conosco? O apóstolo não alega
que isso aconteceu com ele.
“Então”, alguém perguntará, “por que é que Deus não nos
torna possível a perfeição aqui?” A essa pergunta a única e
definitiva resposta é que não sabemos. Tudo o que sabemos é
que, se Deus quisesse que fôssemos feitos perfeitos pela
operação do Espírito Santo agindo em nós, isso aconteceria.
“Mas por que Deus não faz isso?”, pode ser que alguém insista.
Há, porém, algumas perguntas que eu e vocês não devemos
fazer; tudo o que sabemos é que Deus não quis fazer isso.
E possível apresentar algumas respostas. Pode muito bem
ser que, por causa do pecado e do seu efeito sobre nós. Deus
nos deixe assim como somos e como estamos nesta vida para
manter-nos humildes, para que não nos gabemos e para que
não deixemos de perceber nossa completa dependência dEle.
São nossos fracassos que nos trazem de volta a Ele, é a
consciência que temos da nossa imperfeição que nos mantém
em comunhão com Ele. Deus preferiu agir dessa forma, como
igualmente agiu na vida dos filhos de Israel; vê-se que Deus
age daquela maneira. Eu não entendo isso, mas simplesmente
reconheço o fato de que o grande apóstolo declara que não é
perfeito, e disso eu deduzo que não é propósito que sejamos
perfeitos neste mundo.
Permitam-me dizê-lo negativamente: as alegações de
perfeição baseiam-se em dois erros, e o primeiro é um auto-
-exame incompleto. As pessoas que alegam que chegaram a
um estado de perfeição - e existem tais pessoas, pode-se ler
sobre elas na história - geralmente fazem tal alegação porque
pesa sobre elas a culpa de não se examinarem completamente.
Elas afirmam isso porque, uma vez que não cometem certos

97
A V ID A D E PA Z

pecados, são perfeitas; não examinaram seu coração ou sua


imaginação; não se aperceberam de que, na questão da
perfeição, o nosso estado é tão importante como os nossos atos.
O segundo erro é o de adotar um padrão muito baixo. As
pessoas se acham melhores do que eram porque não cometem
mais certos pecados. Também se acham melhores do que as
outras pessoas a seu redor - e daí pensam que chegaram à
perfeição. Mas o seu padrão é muito baixo. Permitam-me
lembrar-lhes que o padrão que o apóstolo estabelece para si e
para todos os cristãos não é nada menos que este: conhecer
Cristo num perfeito estado de comunhão e de companhei­
rismo; conhecer o poder da Sua ressurreição, que nos liberta
não só de atos de pecado mas também de pensar no pecado,
das maquinações pecaminosas e de brincar com o pecado,
libertando-nos da culpa, do poder e da corrupção de tudo o
que está ligado ao pecado; esse é o padrão, e nada menos que
isso. E a comunhão dos Seus sofrimentos, sendo feitos
conformes à Sua morte. E ninguém, homem ou mulher, pode
afirmar que alcançou esse padrão.
Depois, a minha próxima proposição é que a perfeição e
a santificação completa não são alcançadas repentinamente.
Penso que é óbvio que isto se segue como o próximo passo. Os
que ensinam algum tipo de perfeccionismo querem fazer
com que acreditemos que podemos chegar à perfeição subi­
tamente. Muitas vezes eles nos dizem que numa convenção ou
numa reunião aconteceu que de repente receberem esta outra
bênção e foram feitos perfeitos. Eles dizem que houve uma
súbita transição de uma condição para outra.
Ora, certamente, a linguagem do apóstolo aqui nega toda
e qualquer forma dessa doutrina. Ele fala em “ir após” (VA):
“...uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que
atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim,
prossigo para o alvo” . Não há nada repentino nisso; toda a sua
descrição é de desenvolvimento e progresso. Ele é como um

98
Meta Suprema

homem que vai pela estrada passo a passo e, contudo, sempre


avançando. Não há uma repentina transição de um estado de
melhoramento para um estado de perfeição. Na verdade, uma
boa ilustração, utilizada por Paulo e por outros escritores do
Novo Testamento sobre o mesmo assunto, é a do “menino em
Cristo”, onde a idéia geral sugere crescimento e desenvol­
vimento, mediante passos e estágios. Ou tomemos outro
exemplo utilizado por Paulo, das plantas e das flores. Ele fala
do agricultor lançando sementes (por exemplo, 1 Coríntios
3:6,7), e nessa ilustração há a mesma idéia. Perfeição e
santificação nunca devem ser concebidas como algo que
sucede repentinamente. Numa reunião ou numa convenção
você pode ter uma nova visão do amor de Deus, mas isso é
muito diferente de perfeição e de santificação completa. O
método do apóstolo é “prosseguir”, lutando e avançando,
passo a passo, estágio a estágio.
Isso me leva ao próximo princípio importante. Quanto a
nós, esta obra progressiva significa atividade, não passividade.
O ensino sobre a perfeição é quase sempre um ensino ligado
a passividade. Dizem-nos que as pessoas em geral querem
persistir em lutar pela santidade, em tentar santifícar-se
pessoalmente, porém o que se deve fazer é “deixar correr e
deixar com Deus”. Por outro lado, esta é a palavra do apóstolo:
“Prossigo”; “Uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas
que atrás ficam... prossigo” . Em 1 Timóteo 6:12 ele fala em
combater “o bom combate da fé” (ARA). Todas estas expres­
sões indicam grande atividade por parte do cristão no que se
refere à salvação. No que se refere à nossa justiça e justificação,
jamais conseguiremos repetir exageradamente que não faze­
mos nada, que não podemos fazer nada, que é obra realizada
inteiramente por Cristo. Mas uma vez salvos e tendo recebido
esta nova vida, a obra progressiva de santificação não pede
passividade, e somos exortados a exercer atividade.
O último princípio desta doutrina é que a nossa consciência

99
A V ID A D E PA Z

de imperfeição, longe de nos privar da certeza e segurança da


salvação, é, num sentido, quase a base da segurança da salvação.
E isso da seguinte maneira: sugiro-lhes que unicamente as
pessoas que falam como Paulo estão salvas, têm vida. A imensa
maioria dos homens e das mulheres do mundo não diz que a
sua maior ambição é “conhecê-lo, e o poder da sua ressurreição,
e à comunhão de suas aflições, sendo feito conforme à sua
morte”; a maioria não está interessada nisso, absolutamente
não é essa a sua ambição; em geral, os homens e as mulheres
estão interessados em coisas inteiramente opostas a isso.
Mas, certamente, os que dizem: “Não estou satisfeito, tenho
consciência da minha imperfeição, estou ciente do pecado
em mim, não sou o que deveria ser, “Miserável homem que
eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” - estes são
os que têm vida espiritual.
Quando você se examina à luz da verdade, porventura sente
que, como Paulo, ainda não atingiu o alvo, que ainda não
chegou à meta, que ainda não compreendeu tudo, que você
está muito atrás na estrada e gostaria de estar bem mais
adiante? Se se sente assim, é prova de que você tem vida
espiritual. Se essa é a sua ambição, longe de sugerir incerteza
sobre se você é cristão ou não, isso é prova de que você é.
Finalmente, deixem-me aplicar o que venho tentando
dizer fazendo algumas perguntas: estaríamos satisfeitos com
a vida que temos? O apóstolo Paulo não estava. Observe-o,
examine a vida que ele viveu. Eis aí um homem que tinha
visto Cristo, que tivera visões, que tinha ouvido uma voz
exteriormente audível. Eis aí um homem que tinha sido
arrebatado ao terceiro céu, um homem que tinha pregado o
evangelho dia e noite. Mas não estava satisfeito. Será que nós
somos complacentes? Achamos que estamos bem simples­
mente porque somos melhores do que a imensa maioria de
pessoas que não lançam sua sombra nas portas de um local de
culto? Estaríamos contentes com nossas vidas? Se estamos.

100
Meta Suprema

somos diferentes deste apóstolo. Ansiamos progredir? Paulo,


este grande servo de Deus, ansiava avançar ainda mais pela
estrada, esforçava-se para chegar à meta. Poderiamos dizer que
estamos avançando dessa maneira? Estaríamos lutando com
todas as nossas forças para chegar lá?
Bem, aí está esta grande e vital doutrina ensinada pelo
apóstolo neste ponto. E uma descrição do cristão. Os cristãos
recebem certeza da salvação; eles vêem claramente o que se
espera que eles sejam e sabem que não são; mas anelam ser, e
aplicam toda a sua energia para chegar à meta. Deus nos livre
de uma falsa doutrina sobre a perfeição, e implante em nós e
impulsione dentro de nós este princípio que se evidencia tão
claramente em Paulo, esta compreensão do padrão supremo,
este anelo por ele e esta determinação de não poupar esforços
para alcançá-lo.

101
8
^ _
A Unica Coisa
“N ão que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas
prossigo para alcançar aquilo para o que fu i também preso por Cristo
Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas
uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e
avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo,
pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.”
- Filipenses 3:12-14

Em nosso estudo anterior consideramos estas palavras


principalmente do ponto de vista de algo que posso descrever
como a sua importância teológica. Temos aqui, lembrem-se,
uma declaração pessoal feita pelo apóstolo - algo que ele
raramente fazia. Paulo só faz uso da sua experiência pessoal
quando essencial, por exemplo, se ele precisa definir seu direito
ao título de apóstolo ou se a sua autoridade como mestre está
sendo questionada. Ele evoca a sua experiência pessoal aqui
porque é evidente que é o melhor meio de refutar o argumento
apresentado pelos judaizantes, que causaram tanto estrago a
muitas das igrejas cristãs primitivas.
Vimos, então, que a descrição que Paulo faz da posição
dos cristãos é, em termos gerais, esta - segurança quanto à
obtenção final, insatisfação com a atual. Mas, tendo dito isso,
passamos agora a uma consideração mais prática da posição
cristã, pois nestes três versículos o apóstolo não somente
descreve o seu estado pessoal em termos teológicos, mas
também descreve em detalhe o que podemos qualificar como

102
A Única Coisa

o método da vida cristã. O apóstolo nos oferece aqui um


quadro mais descritivo da sua vida espiritual e da disciplina
do seu viver cristão do que o faz em qualquer outra parte
de todos os seus escritos, e é por isso que estes três versículos
são de supremo valor. Ele nos propicia uma penetração e
um vislumbre do seu procedimento normal diário; ele nos
diz que está lidando com este sentimento de insatisfação
com o que conseguiu no presente, e que vai seguindo mais e
mais avante, rumo àquela meta final e suprema em direção
à qual firmou o seu semblante.
Estes versículos são, pois, de grande importância prática
para nós, e devemos dar graças a Deus por eles, porque eu
penso que muitos de nós tendem a pensar neste grande após-
A

tolo de modo não inteiramente verdadeiro. E muito fácil pensar


nele como uma pessoa completamente à parte e cuja vida,
portanto, não tem valor nem significação para nós. Há tantas
coisas acerca de Paulo que o marcam como um homem
excepcional; foi excepcional por nascimento, excepcional em
sua capacidade, e excepcional em seu treinamento educacional;
e, depois, sua conversão ocorreu de maneira realmente
excepcional e extraordinária. Foi-lhe concedido ter visões, e
ele teve experiências tão singulares que, se não tivermos
cuidado, será muito fácil, ao lermos as diversas referências
a ele no Novo Testamento, simplesmente pensar nele como
uma espécie de pessoa miraculosa que ocupa uma categoria
peculiar, e pensar em sua vida como puramente miraculosa.
A

E muito difícil pensar em Paulo como alguém que teve


as lutas e os conflitos que nós experimentamos como cristãos.
Suponho que muitos de nós - especialmente alguns de nós -
tendem a idealizar em tal medida a vida do apóstolo que ela
quase fica sendo sem nenhum valor para nós como exemplo e
ilustração do modo cristão de viver. Mas aqui, nestas poucas
palavras, Paulo desilude as nossas mentes de tais idéias. Aqui,
penso eu, ele nos mostra com bastante clareza que ele acha

103
A V ID A D E PA Z

absolutam ente essencial agir de acordo com um dado


plano; que a sua vida não é apenas uma sucessão de eventos
miraculosos, mas que ele é o homem que é graças à sua
conformidade com certos princípios fundamentais, e é aí
que 0 seu caso se torna de tanto valor para nós.
Para colocá-lo numa forma direta e prática, podemos
fazer a nós mesmos estas perguntas: desejamos ter a experiência
de Paulo? Podemos falar da vida como este homem falava?
Podemos dizer que há um sentido em que o que possa aconte­
cer conosco no futuro é questão de suprema indiferença para
nós? Podemos dizer com Paulo que se o que se vai ter é uma
vida de aprisionamento, ou se o que se vai ter é a morte, é ima-
terial, pois, “para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho” ?
Estamos nós, como ele estava, em condições de poder dizer:
“...já aprendi a contentar-me com o que tenho” (4:11)? Podemos
dizer: “Posso todas as coisas naquele que me fortalece” (4:13)?
Essa é a experiência de Paulo; a questão é: já tivemos o an­
seio de conhecer isso? Como se pode alcançar tal experiência?
Como podemos chegar a ela?
Dou-lhes o meu parecer de que nesta passagem o apóstolo
responde a essas perguntas. Se quisermos ter a experiência do
apóstolo, teremos que viver a vida do apóstolo. Se quisermos
compartilhar destas coisas maravilhosas, que são registradas
na vida dos santos de Deus, teremos que conformar-nos ao
padrão da vida deles. E para mim é de grande interesse obser­
var que todas essas pessoas parecem conformar-se ao mesmo
padrão. Não importa se vocês tomam as biografias dos santos
que viveram no século primeiro, ou dos que vivem ou viveram
no século vinte, vocês verão que algumas coisas essenciais
estão sempre presentes, que eles sempre vivem de uma certa
maneira, e essa maneira está descrita perfeitamente nestes
três versículos.
Assim pois, ao passarmos a considerar a passagem em
detalhe, permitam-me salientar o que eu defino como sendo

104
A Única Coisa

os dois princípios determinantes da vida de Paulo. O primeiro,


que sobressai claramente, é que Paulo não vivia de suas
experiências. Lemos a história da sua conversão, lemos o seu
relato das visões que lhe foram concedidas, e da vez em que
ele foi arrebatado ao terceiro céu e viu e ouviu coisas inenar­
ráveis, e, contudo, nada é tão claro quanto à vida deste homem
como o fato de que ele não vivia com base nessas experiências.
Na verdade, em 2 Coríntios, capítulo 12, ele nos diz explicita­
mente que, apesar de poder jactar-se destas coisas, não se
jactava. Antes ele se gloriava em suas debilidades e fraquezas,
e nas aparentes perplexidades da vida, pois ele nos diz que,
embora tenha tido estas experiências extraordinárias, também
sabia o que era ter um espinho na carne, e embora tenha orado
rogando que esse espinho fosse tirado, o Senhor não o tirou.
Paulo fez essa oração três vezes, mas o espinho não saiu, e por
um tempo ele ficou desconcertado por causa disso. Todavia,
veio a entender a razão disso quando o Senhor lhe disse: “A
minha graça te basta” (2 Coríntios 12:9), e depois, Paulo nos
diz, ele chegou à sua filosofia suprema: “ ...quando estou fraco
então sou forte” .
Esse é o primeiro e grande princípio que devemos ter
sempre em mente. Muitos cristãos ficam em dificuldade
porque tentam viver das suas experiências passadas. Eles
lembram suas experiências e procuram extrair algo delas; por
assim dizer, eles sacam de um capital que lhes foi dado no
passado, e não recebem nada no presente. Paulo denuncia
isso; não é seu método. Ele não se agarra ao passado, nem
vive das suas experiências; seu método é ativo: prosseguir
com vistas ao futuro.
Isso leva ao segundo princípio, subjacente à concepção
que o apóstolo tem da santidade e da espiritualidade: a vida
cristã não é passiva. Não preciso demorar-me aqui, porque
já tratei deste assunto em nosso estudo anterior mas de
fato penso que é bom que o tenhamos em mente quando

105
A V ID A D E PA Z

considerarmos o método espiritual de Paulo. Não devemos


pensar em Paulo como um homem que passava a maior
parte do tempo de que dispunha em contemplação, ou de
joelhos, ou sentado, esperando algo. Em Paulo não há nada
do chamado “método espiritual” da idéia católico-romana
da santidade e da pureza, com a sua “noite escura da alma” e a
sua passividade e abnegação. Não se pode ver isso nos versí­
culos que estamos considerando, e em nenhum aspecto da
vida deste apóstolo - sua vida é, na verdade, a própria antítese
desse tipo de passividade.
E assim, com estes dois princípios em mente, chegamos
ao método paulino de viver. Num sentido, Paulo aqui nos diz
que a sua vida nada era senão uma exemplificação do que ele
disse aos filipenses que fizessem. No caso deles, lembrem-se,
a regra dada a eles está nos versículos 12 e 13 do capítulo dois:
“De modo que, meus amados, assim como sempre obedeces­
tes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha
ausência, assim também operai a vossa salvação com temor
e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer
como o efetuar, segundo a sua boa vontade” . Esse é o método. A

E este paradoxo, esta aparente contradição da vida cristã. E


um trabalho da nossa parte e, todavia, a percepção de que
não poderiamos trabalhar se não fôssemos trabalhados. E a
compreensão de que é algo de Deus e que, contudo. Deus
permite a nós, a quem foi dada nova vida, a nossa participa­
ção - “operai... porque Deus é o que opera em vós”. E isso
que vemos perfeitamente ilustrado aqui, neste método
prático do apóstolo.
Naturalmente, Paulo nos fala disso em toda parte. Vejam,
por exemplo, o capítulo primeiro, que já consideramos.^ Ali o
apóstolo declara aos filipenses que está confiante em que
“ aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até

' Ver o volume 1, A Vida de Alegria.

106
A Única Coisa

ao dia de Jesus Cristo” (versículo 6). E, todavia, a despeito


dessa confiança, em 1:9 ele diz: “E peço isto: que a vossa
caridade (amor) abunde mais e mais em ciência e em todo o
conhecimento” - etc. O apóstolo lhes dá certeza do final e do
que Deus está fazendo, e depois, imediatamente, dá seqüên-
cia a isso com uma exortação à atividade e ao trabalho.
São esses, pois, os princípios que estão por trás do
minucioso método que agora podemos considerar. Exami-
nemo-lo, então, da seguinte maneira: que é que caracteriza
a vida cristã? De acordo com o apóstolo, é luta, é peleja, é
esforço, um constante empenho em ir para a frente e para o
alto, rumo àquela distante meta da qual foi lhe concedido ver
algo. Permitam-me agora apresentar-lhes os termos - e tudo o
que vou fazer nesta altura é um ou dois comentários sobre as
palavras que Paulo emprega nestes três versículos. “Prossigo”
(“Vou após de” VA), diz ele. Não é como se ele já o tivesse
assegurado ou que fosse perfeito, mas “vou após de”. Essa é
uma das expressões, e logo a seguir ele tem outra, no versí­
culo 14: “Prossigo para...”, e o interessante é que no original
estas duas expressões são precisamente a mesma palavra. E o
que é ainda mais interessante é que é precisamente a mesma
palavra empregada no versículo seis. Lembram-se de que ele
fez um relato de sua vida anterior à sua conversão - “ Segundo
o zelo, perseguidor da igreja...” ? Bem, a palavra traduzida por
“perseguidor” é a que é traduzida por “ir após de” (VA) e
“prossigo para” na passagem que estamos estudando.
E isso nos propicia um perfeito retrato do caráter ou da
natureza da vida do apóstolo. Quando lemos em Atos, capítulo
9, a narrativa da sua conversão, vemos claramente com que
zelo e entusiasmo ele perseguia a Igreja. Ele foi falar com os
governantes em Jerusalém e lhes pediu autorização, docu­
mentos, para descer a Damasco em perseguição dos cristãos.
Nunca houve alguém mais entusiasta em seu trabalho, nin­
guém mais zeloso! Ele odiava estes cristãos e não poupava

107
A V ID A D E PAZ

esforços para fazer estrago entre eles. Para lá desceu ele,


respirando ameaças e mortes, perseguindo a igreja. E é desse
modo que ele vive a vida cristã. Assim como antes ia após os
cristãos, caçava-os e os procurava em cada canto e recanto,
assim também agora vai após aquilo para o que ele foi
“apreendido” ; “Vou após” ; “Prossigo para” ; “Persigo” . Essa é
a descrição que ele faz da sua vida como cristão.
Mas nem com isso Paulo se contenta. A fim de nos mostrar
este ardor, este anseio, este entusiasmo, Paulo acrescenta outra
palavra: “Irmãos... esquecendo-me das coisas que atrás ficam,
e avançando...” . Ora, “avançar” é mais forte que “ir após” ou
“prosseguir para”. Paulo está fazendo uso de uma conhecida
ilustração oriunda dos jogos gregos. Ele está retratando um
homem que participa de uma corrida, e esse é um quadro
maravilhoso e preciso. Quase se pode ver o homem avançando,
forçando-se com sua mão. Vocês conhecem a ansiedade de
quem compete numa corrida - ele estende a mão; ela não o
ajuda, porém mostra o seu desejo de vencer, de tocar a faixa
do fim antes mesmo de chegar lá. Sua mão é esticada, ele luta,
ele força o avanço, tenta consegui-lo - ele avança.
Esse é o tipo de cristão que Paulo era. Vocês vêem o seu
ardor. Ele é um homem que vê algo - uma possibilidade
gloriosa, 0 prêmio, ele quer chegar lá. Paulo prossegue firme,
ele corre, ele se estica com todo o seu vigor. Em seus dias de
homem não regenerado Paulo usava esse vigor para perse­
guir, mas agora ele foi arreiado e passou a seguir outra
direção. Ele dá tudo por este bem glorioso e tremendo que
está adiante dele, no futuro. Esse é o caráter, essa é a natureza
da vida cristã. De acordo com o apóstolo, esse é o tipo de
pessoa que o cristão foi destinado a ser.
Ora, eu falharia em minha tarefa como pregador neste
ponto, se meramente pintasse o quadro e seguisse adiante,
porque há, certamente, uma pergunta que todos nós devemos
fazer a nós mesmos: seria esse um retrato de nós? Sabemos o

108
A Única Coisa

que é ter entusiasmo por algo, mas esse ardor que há em


todos nós por natureza está canalizado na direção da meta
suprema do cristão? Essa é a questão. E porque isso verda­
deiramente caracterizava Paulo, que ele podia dizer com
tanta confiança: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer é
ganho”. Cristo é tudo, e Paulo está confiante e se sente seguro.
Muito bem, se essa é a natureza da vida cristã em geral,
permitam-me fazer a próxima pergunta, que é ainda mais
prática. Como podemos chegar a essa meta? Se a temos visto,
se temos conhecimento dela, se os nossos olhos estão fixos
nela; se estamos nesta corrida, e se visamos essa meta, como
vamos conseguir chegar lá? Quais são as regras do apóstolo?
Como ele corria? Baseado em quais princípios agia? Permi­
tam que eu apenas mencione as expressões - estão todas aqui.
A primeira é auto-exame. “Irmãos”, diz Paulo, “quanto a mim,
não julgo que o haja alcançado”, ou “Não considero que eu
mesmo o haja alcançado”. Bem, isso denota auto-exame. Eis
aí um homem que examina a si mesmo. Este é um grande
tema; cada um destes quatro pontos que vou anotar merece
mais que um só estudo, merece toda uma série de estudos.
Entretanto, como vivemos neste século vinte, e não nos grandes
dias dos puritanos do século dezesseis, temos que somente
correr e anotá-los de passagem, em vez de ocupar dois ou três
estudos sobre cada um deles!
O auto-exame é um assunto que facilmente pode ser mal
compreendido. Não significa que Paulo era mórbido, ou
introspectivo; não significa que estava sempre tomando seu
pulso espiritual ou medindo sua temperatura espiritual. Não,
mas significa, sim, que ele não vivia de pretensões concernen­
tes à sua pessoa. Ele estava sempre examinando o padrão e
constantemente se media por ele. Talvez um dos maiores
perigos que nos confrontam como cristãos seja o perigo de
nos contentarmos em ir adiante baseados em nossas presun-
ções, o perigo de pensarmos que, porque estamos numa certa

109
A V ID A D E P A Z

posição, estamos muito bem. Espero não estar sendo injusto


ao dizer o que vou dizer, mas não seria, talvez, a complacência
um dos nossos maiores perigos? Sinto que, porque não sou
culpado de certos pecados, está tudo bem comigo, e paro de
examinar a mim mesmo. Como é fácil nos contentarmos com
a conversão e nunca mais dar um passo adiante. Paulo estava
sempre observando e examinando a si mesmo para certificar-
-se de que continuava avançando rumo àquela meta. Ele não
ficava satisfeito consigo mesmo, e isso por causa deste auto-
-exame, e exorta os outros a fazerem o mesmo. Examine-se,
diz ele, certifique-se de que você está na fé.
E isso é algo que necessitamos fazer constantemente.
Naturalmente, uma das funções da pregação é encorajar isso.
Cada vez mais considero que é dever do pregador fazer
perguntas, e essa é uma das primeiras que devemos fazer.
Quantas vezes paramos para examinar a nós mesmos? Acaso
não gostamos de fazer auto-exame? Encaramos a nós mesmos,
ou procuramos rodear o toco fazendo o bem, dando atenção a
isto ou àquilo, e dessa forma tentamos livrar nossa consciência?
Bem, este é o primeiro elemento essencial. Devemos pedir
ao Espírito Santo que nos sonde; devemos meditar nestas
coisas; devemos anotar, se necessário, fraquezas óbvias.
Devemos ser honestos e sinceros com nós mesmos e olhar-nos
no espelho da lei perfeita da liberdade. Auto-exame - “Não
julgo que o haja alcançado”, diz Paulo.
Apressemo-nos agora para a segunda expressão, a palavra
concentração. “ Uma coisa faço.” E desse modo que Paulo
descreve a sua concentração. Examinemos de novo o homem
que está participando de uma corrida. O homem que corre
numa competição não se interessa pelo panorama. Se começar
a contemplar as montanhas e o encanto das flores das cercas
vivas, não ganhará a corrida; ele deve estar atento a uma só
coisa. Uma vez li num jornal uma história que me tocou como
uma encantadora e perfeita ilustração do que estou dizendo.

110
A Única Coisa

Um agricultor contou que estava dirigindo o seu carro numa


estrada estreita para visitar uma fazenda e disse que de re­
pente topou com um bando de ovelhas e um cão pastor.
Seu problema era como passar por essas ovelhas. Então ele
descreveu a maneira maravilhosa como o cão pastor lidou
com a situação, como ele tinha e mantinha seus olhos no
rebanho e fazia seus cálculos, correndo para trás e para diante.
Mas o interessante foi que um pequeno terrier ^ de uma casa
dali de perto veio puxar briga com o cão pastor, vindo contra
ele e latindo. O escritor do artigo salientou a magnificência
daquele cão pastor, que ignorou completamente o terrier e
seus latidos. Ele sabia que tinha um grande trabalho para
fazer - tinha que fazer com que as suas ovelhas passassem
pelo carro - e por isso não deu a mínima atenção ao terrier:
“Uma coisa faço”, disse o cão pastor.
E assim que os cristãos devem agir. Não devem deixar-se
levar por essas distrações - o mundo está repleto de interesses
que distraem, alguns legítimos, alguns não. Mas os que querem
ser como o apóstolo Paulo não olham para eles - uma só coisa
- concentração! Não ficam olhando para os lados, não se
permitem interessar-se por coisas que vão distraí-los e afastá-
-los do seu propósito; mantêm sua atenção nele. Além disso,
não são vacilantes e espasmódicos em sua vida cristã. Deus
sabe como nos sentimos esquadrinhados por uma palavra
como esta. Não seria esse o caso com muitos de nós que
constantemente tomamos resoluções sobre o que vamos
fazer? Estamos sempre indo fazer alguma coisa; damos um
começo, e então paramos. Começamos a corrida, mas aqueles
que nos conhecem sabem que antes do meio-dia provavel­
mente estaremos entregando os pontos. Esta vida cristã
irregular e espasmódica! O apóstolo diz: “Uma coisa faço” ;
sua vida cristã é regular e constante. Sem disciplina a vida•

• Raça de cão rateiro. Nota do tradutor.

111
A V ID A D E PAZ

cristã é impossível. Temos que nos controlar, temos que


saber dividir o nosso tempo, temos que compreender que,
num mundo voltado contra nós, se não disciplinarmos a nossa
vida espiritual, certamente nos veremos em dificuldade.
E depois, o terceiro grande princípio é, “esquecendo-me
das coisas que atrás ficam”. E aqui, de novo, o ponto mais
importante é, naturalmente, que devemos entender muito
bem o que Paulo quer dizer. Ele não quer dizer que o cristão
deve esquecer deliberadamente as experiências passadas,
nem tampouco diz que ele próprio esqueceu o que houvera
em torno da sua conversão; ele nunca esqueceu isso. Ele não
diz que tinha esquecido todas as coisas que tinham aconte­
cido com ele. Não, não é isso que ele quer dizer. Que é que ele
quer dizer então? Ele quer dizer que não devemos descansar
sobre as nossas experiências passadas, que não devemos estar
sempre olhando para trás, para elas, muito satisfeitos, de
molde a orgulhar-nos delas e a enfeitar-nos com elas. E como
o homem que participa de uma corrida. O que lhe cabe
fazer não é tanto considerar até que ponto ele chegou como
procurar saber quanto falta para ele chegar à meta. Que ten­
tação é estar sempre olhando para trás!
Claro está que há um sentido em que isso é perfeitamente
legítimo. Se alguma vez você escalou uma montanha, prova­
velmente está sabendo do que estou falando. Se durante a
escalada você olhar para o pico, ficará desanimado, mas quando
olhar para baixo se sentirá melhor. Isso é bom, enquanto você
não parar para ficar contemplando o que já realizou. E contra
isso que o apóstolo nos adverte. São os que estão sempre
olhando para trás que provavelmente não irão para frente com
rapidez e segurança. E por isso que eu acho que quando as
pessoas são chamadas repetidamente para contar a experiência
da sua conversão, embora isso possa ser bom para os que
ouvem, provavelmente é muito ruim para os que narram sua
experiência. Toda e qualquer coisa que possa cultivar esta

112
A Única Coisa

tendência de olhar para trás e de falar sobre experiências ou


realizações passadas, entra em conflito com o grande princípio
do apóstolo que vemos na passagem que estamos estudando.
Não; “esquecendo-me das coisas que atrás ficam” . Desejo
expressar este ponto francamente assim: não olhe para trás
com espírito de satisfação própria, nem quanto à sua ortodoxia.
Pode ser que você tenha feito grandes sacrifícios por amor a
Cristo - esqueça isso e pense nas coisas que ainda estão à sua
espera! E isso que Paulo quer dizer. Qualquer coisa que nos
faça olhar para traz com desejo de auto-admiração ameaça
o nosso progresso espiritual.
Mas, por fim, naturalmente, e, na verdade, supremamente,
é importante manter nossos olhos na meta e no prêmio, pois,
não seria óbvio que se fizermos isso, todas as outras coisas se
seguirão necessariamente? E esse era o maior segredo de Paulo:
“ Que eu possa apreender aquilo para o que também fui
apreendido” (VA). O apóstolo estava sempre de olho nisso; ele
via a meta, e, naturalmente, vendo a meta, não queria olhar
para trás para suas realizações passadas. Elas foram boas e
maravilhosas, sim, mas, agora, olhando para a meta, quão
pobres eram, quão pequenas! E esse, parece-me, é o segredo
da vida cristã. Os que estão de olho na meta não querem
comparar-se favoravelmente com outras pessoas; não, eles
vêem suas próprias imperfeições. Isso acaba também com a
inveja e com o ciúme. Eles não querem olhar para trás, o que
querem é conseguir chegar à meta. O apóstolo mantinha
fixos nisso os seus olhos, a sua contemplação.
E essa meta, que é? Já a descrevemos - “Para conhecê-lo, e
o poder da sua ressurreição, e à comunhão de suas aflições,
sendo feito conforme à sua morte...”. Que eu possa chegar
à ressurreição final dos justos e entrar na glória - é isso, essa
é a única coisa que conta para Paulo. Gosto mauito daquela
palavra que reune tudo o que estivemos considerando nestes
versículos: “Prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana

113
A V ID A D E PA Z

vocação (VA: “alta vocação”)...” . Na margem de algumas


Bíblias vocês encontrarão outra frase - “chamada celestial”.
Não importa qual você usa, a idéia é simplesmente esta: é
uma vocação que nos vem do alto, ou, se vocês o preferirem,
é uma vocação para que subamos. A vocação nos eleva e
nos convoca para a glória suprema na presença do próprio
Deus.
Esse é o segredo final. Não devemos comparar-nos com o
mundo pecaminoso que nos cerca por todos os lados; não
devemos comparar-nos com cristãos que claramente estão
atrás de nós na corrida. Não; nós fomos chamados, agarrados,
apreendidos por Cristo, para que O conheçamos, para que
sejamos semelhantes a Ele, para que estejamos com Ele para
sempre. Os cristãos de verdade sempre vêem isso e nunca o
perdem de vista. Para eles nada importa, senão alcançar essa
meta, e por isso eles prosseguem, eles se retesam para a
frente, eles estão sempre empenhados em chegar, e fazem isso
vigiando a si mesmos e suas realizações, mantendo esta
completa concentração na meta e esquecendo tudo o que
aconteceu até aqui.
Ao que me parece, esse é o método do apóstolo, a disciplina
do viver cristão. E então, o efeito disso deve ser algo como o
seguinte: nem um só dia de nossas vidas deve passar sem que
deliberada e seriamente não nos lembremos destas coisas. Eu
estou destinado a essa glória. Estou em Cristo, vou ser aperfei­
çoado em Cristo - essa é a meta. Porventura eu O conheço?
Sou semelhante a Ele? Estaria sendo feito conforme à Sua
morte? Fui apreendido por Cristo para isso, e esse deve ser
o centro da minha vida, o objeto da minha real ambição.
Queira Deus conceder-nos que todos nós vejamos a meta,
que fiquemos encantados com ela e sejamos atraídos por ela,
que não tenhamos nossos olhos fixos em coisa alguma, senão
nessa meta - o prêmio, o marco da soberana vocação de Deus
em Cristo Jesus.

114
Fé e Conduta
“Pelo que todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo;
e, se sentis alguma coisa doutra maneira, também Deus vo-lo revelará.
Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra,
e sintamos o mesmo. Sede também meus imitadores, irmãos, e tende
cuidado, segundo o exemplo que tendes em nós, pelos que assim
andam. Porque muitos há, dos quais muitas vezes vos disse, e agora
também vos digo, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo. Cujo
fim é a perdição; cujo Deus é o ventre; e cuja glória é para confusão
deles, que só pensam nas coisas terrenas. ” - Filipenses 3:15-19

Aqui, nestes versículos, e de fato nos dois versículos


subseqüentes também, o apóstolo aplica o que acabou de
dizer sobre si à situação dos membros da igreja em Filipos.
Nos versículos 4 a 14 vimos que, a fim de tratar do difícil
assunto relacionado com os judaizantes, ele fez um relato
sobre si e sobre as suas experiências. Ele descreveu como
tinha sido tirado do judaísmo e trazido para a posição cristã,
e desenvolveu essa exposição do modo como estivemos
considerando juntos no transcurso de vários estudos.
Mas não é intenção de Paulo simplesmente escrever
acerca de si próprio; seu interesse é ajudar os membros da igreja
de Filipos. E possível que ele seja executado a qualquer
momento, e, naturalmente, ele deseja salvaguardar a posição
futura deles. Ele se apresentou na exposição meramente a modo
de uma ilustração; seu propósito é aplicar tudo o que disse, a
fim de que os seus leitores ponham em prática em suas vidas

115
A V ID A D E PA Z

os princípios determinantes da sua própria vida e da sua


conduta. Nesta passagem, então, ele resume toda a experiência
que acabou de relatar, e a resume para reforçá-la e aplicá-la
aos filipenses.
Portanto, se quisermos saber como ter uma vida cristã em
plenitude, vitoriosa e feliz, o tipo de vida que o apóstolo tinha,
se quisermos desfrutar na vida cristã a experiência que tão
singularmente ele desfrutou, Paulo nos diz aqui exatamente o
que temos que fazer. Talvez a melhor maneira de considerar
isto seja, primeiro, apenas indicar os diversos pontos e
princípios que Paulo enuncia nestes versículos, e depois, tendo
comentado todos eles um por um, examinar a filosofia que
está por trás disso tudo. O grande tema é a inter-relação de
fé e prática, crença e conduta, porém, antes de passarmos a
expor o ensino em termos de um princípio como esse, pode
ser que seja bom notar os itens separados à medida que o
apóstolo os enumera.
A primeira coisa que Paulo nos diz é que devemos ter a
crença certa. “Pelo que todos quantos já somos perfeitos
sintamos isto mesmo...” (VA: “tenhamos esta mente...”). Bem,
o apóstolo Paulo gosta muito da palavra “mente”. Notem que
nesta mesma passagem ele fica repetindo isso. No versículo
dezesseis ele diz: “Mas, naquilo a que já chegamos, andemos
segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo” (VA: “tenhamos
a mesma mente”); e no versículo 19 ele conclui a descrição
daqueles crentes indignos acrescentando: “que só pensam nas
coisas terrestres” (VA: “que só têm a mente posta nas coisas
terrenas”). De novo, voltando ao capítulo dois, ele emprega
exatamente a mesma palavra. Ao exortar estes filipenses a
terem consideração uns pelos outros e a se ajudarem uns aos
outros, ele diz: “ De modo que haja em vós o mesmo
sentimento” (VA: “Haja em vós esta mente” ou “a mesma
mente”). Também em Romanos 8:5 ele mostra que a diferença
que há entre a pessoa natural e a espiritual é que os que são

116
Fé e Conduta

da carne “inclinam-se para as coisas da carne” (VA: “têm sua


mente posta nas coisas da carne”, ao passo que os que são
espirituais “(inclinam-se) para as coisas do espírito” (VA: “têm
a mente posta nas coisas do espírito”). Trata-se de um termo
expressivo, e geralmente significa que estas são as coisas que
não somente interessam, mas também preocupam grande­
mente as pessoas; são as coisas com as quais as pessoas
passam muito tempo, coisas sobre as quais elas formam fortes
conclusões. Por isso coloco este ponto na forma de um
princípio.
Portanto, antes de tudo, devemos certificar-nos de que
temos a crença certa: “Pelo que todos quantos já somos
perfeitos...”, diz Paulo. Não preciso explicar de novo o sen­
tido da palavra “perfeito” porque me referi a ela quando a
estivemos considerando no versículo 12, onde Paulo diz: “Não
que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito”. Nesse versí­
culo essa palavra é um termo absoluto, aqui, neste versículo
quinze, é relativo. Significa a condição daqueles que estão
amadurecidos e chegaram ao estado adulto, que progrediram
até aqui na vida cristã. Todavia, que é que temos para mos­
trar isso com clareza? Bem, certamente este capítulo três, que
dos quatro é o capítulo preeminentemente teológico, responde
a essa pergunta.
Paulo adverte os filipenses de que há dois importantes
erros que eles devem evitar a todo custo. O primeiro é o
que é tratado extensamente, o erro do judaizante: “ Se”, diz
praticamente o apóstolo, “vocês estiverem dispostos a dar
ouvidos a essas pessoas que ensinam e acreditam que se vocês
não forem circuncidados não são nem serão verdadeiros cris­
tãos, se vocês vão pôr isso em prática, toda a posição cristã de
vocês se desfará. Não adianta exortá-los a viverem a vida cristã
enquanto sua mente ou seu entendimento for errado acerca da
fé cristã.” Noutras palavras, Paulo está voltando, por assim
dizer, ao versículo três, onde ele diz: “Porque a circuncisão

117
A V ID A D E PA Z

somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos


em Jesus Cristo, e não confiamos na carne” . Temos que estar
absolutamente certos acerca disso, não devemos ficar num
estado de hesitação em nossas mentes quanto ao que faz de
uma pessoa um cristão. Cuidado com o erro do judaísmo!
Mas há também um segundo perigo, ao qual ele se referiu
quando delineou a sua experiência pessoal. Os filipenses
precisam igualmente entender bem o erro do perfeccionismo.
Ambas essas coisas têm que ser evitadas - judaísmo e perfec­
cionismo. O judaísmo geralmente se apresenta como uma fé
no poder do homem de salvar a si mesmo por suas obras, ou
por sua confiança no homem ou em seu nascimento ou em
sua criação ou em sua nacionalidade, estas coisas puramente
naturais e carnais que o apóstolo nos diz que ele deixou para
trás uma vez por todas. Devemos evitar isso tudo e compreen­
der que, como cristãos, estamos numa esfera espiritual e que
não devemos ter “mente” terrena - ou não devemos pôr as nossas
mentes nas coisas terrenas - mas, sim, nas coisas celestiais.
Esse é um perigo, e o outro é este erro igualmente peri­
goso do perfeccionismo, que, quase invariavelmente, tem
sido acompanhado pelo que comumente se conhece como
antinomianismo. Noutras palavras, esta passagem deixa
bem claro que na igreja de Filipos havia pessoas que esta­
vam ameaçando a vida, a paz e o bem-estar daquela igreja.
Na Igreja Primitiva havia pessoas (e tais têm aparecido na
Igreja de tempos em tempos desde então) que acreditavam
que haviam chegado a um estado de perfeição, as quais,
então, quando lhes mostravam que eram culpadas de
algumas coisas, não hesitavam, ou em tentar abrandar esses
pecados ou defeitos, ou em dizer que eles não importavam.
Era a carne, diziam elas, mas elas mesmas estavam certas.
E essa é a essência do antinom ianism o; esse diz que,
contanto que eu esteja em Cristo, o que eu faço não importa;
contanto que eu seja verdadeiramente cristão, minhas

118
Fé e Conduta

práticas são completamente irrelevantes.


Pois bem, o apóstolo declara que nós devemos entender
perfeitamente estas duas coisas - “Portanto, todos quantos
somos perfeitos, tenhamos esta mesma mente” (VA), e com a
expressão “esta mesma mente” ele quer dizer que devemos
ter perfeitamente claro em nosso entendimento a base geral
da nossa posição. Vocês, diz Paulo, devem concordar com o
que acabo de dizer - que temos que prosseguir, que não
descansemos sobre os nossos louros, que não digamos que já
chegamos, ou que já fizemos tudo o que nos cabia fazer para
manter este estado de perfeição que já alcançamos. Não é isso,
diz Paulo, mas, antes, as nossas vidas neste mundo devem estar
sempre empenhadas em avançar rumo ao marco, ao prêmio
e à meta. Devemos congratular-nos em nossas realizações,
mas sempre “esticando-nos para frente” . Temos que ter “esta
mente” - temos que nos livrar, uma vez por todas, dos perigos
apresentados pelos judaizantes e pelos perfeccionistas.
Ora, isso é tão real hoje como quando Paulo escreveu esta
carta para a igreja de Filipos. Sempre devemos começar pela
doutrina e pela fé. Não haverá esperança alguma na vida cristã,
se estivermos errados justamente na base e no fundamento da
nossa posição geral. Portanto, concordamos com o ensino do
apóstolo e compreendemos que a primeira coisa necessária é
ter a nossa mente esclarecida acerca destas questões, de modo
que, se formos interrogados sobre o que significa ser cristão,
saberemos a resposta exata; compreendemos que temos um
fundamento sólido porque é baseado no ensino das Escrituras
propriamente dita. Esse é o primeiro princípio.
Mas depois Paulo se apressa a passar ao segundo ponto,
que é igualmente importante e que é o seguinte; temos que
praticar essa fé e andar de modo coerente com ela. “Não
obstante, até onde já chegamos, andemos segundo a mesma
regra, tenhamos na mente o mesmo pensamento” (VA). Bem,
“andar seguindo a mesma regra” significa simplesmente que

119
A V ID A D E PA Z

devemos pôr em prática aquilo que já concordamos que é


a fé certa e correta. O apóstolo é particularmente insistente
nisso. Em toda parte, em suas Epístolas, vocês o vêem dizer
que não há propósito em ter uma fé certa se não a pomos em
ação. “Portanto, todos quantos já somos perfeitos, tenhamos
na mente esse mesmo pensamento; e se nalguma coisa ten­
des diferente idéia em vossas mentes, mesmo isso Deus vos
revelará” (VA). Há algum as coisas, diz Paulo, que são
absolutamente centrais e vitais. Não se deve argumentar e
discutir a respeito delas, temos é que entendê-las muito bem.
Entretanto, diz ele, pode haver outras coisas que não estão muito
claras para vocês - “se nalguma coisa tendes diferente idéia
em vossas mentes” . Se houver alguns aspectos da vida cristã
ou da fé cristã que ainda não estão claras em suas mentes, não
larguem da sua fé e prática cristã por causa deles.
Esse é, certamente, um princípio bastante saudável. O
método do apóstolo de lidar com essas dificuldades e com
algumas perplexidades intelectuais é este; prática! Ponha em
ação as coisas centrais das quais você está certo e seguro e, se
fizer isso. Deus então lhe revelará a verdade concernente
àquelas outras coisas. Não passe o resto da sua vida discutindo
sobre as coisas que não estão claras para você. Há algumas
questões relacionadas com a fé cristã sobre as quais os cristãos
nunca são unânimes. Não preciso mencioná-las em detalhe
agora, porém os cristãos divergem sobre o governo da Igreja,
por exemplo. Estamos familiarizados com isso neste país.
Ninguém pode dizer que um dado conceito é a verdade, e
nenhum outro. Não, mas acerca da justificação pela fé você
pode e deve dizer isso, e essa é a distinção que o apóstolo está
procurando demonstrar. Acerca da justificação pela fé, acerca
da inutilidade das obras no que diz respeito à salvação da
alma, não se deve levantar questão alguma, devemos estar
com a mente firme nisso, é ensino dogmático e definitivo.
Mas existem outros assuntos sobre os quais pode suceder

120
Fé e Conduta

que não temos claro entendimento: uma forma particular de


batismo, por exemplo, ou uma particular interpretação do
ensino profético - pré-milenista, pós-milenista e a- ou não-
-milenista (no que se refere a um milênio literal). Bem, essas
questões estão numa esfera na qual ninguém pode dizer: “Esta
é a verdade, e não há oura” . Há lugar para legítima diferença
de opinião, e os santos de Deus têm diferido sobre estas ques­
tões através dos séculos. Muito bem, diz Paulo, apegue-se às
coisas essenciais, ponha-as em prática, e, se você fizer isso
honestamente, poderá estar perfeitamente seguro em sua
mente de que Deus lhe revelará essas outras questões que no
momento você não vê com clareza e sobre as quais você não
tem certeza. Ele não diz quando isso vai acontecer, mas
afirma que eventualmente nos será dado claro ensino.
Essa é, pois, a distinção. Devemos manter sempre em
nossas mentes que há algumas coisas que são absolutamente
essenciais à salvação, e há outras que não são, embora possam
ser importantes. Portanto, a essência da sabedoria na vida
cristã está em traçar uma aguda distinção entre estas duas
coisas; nunca tratemos as questões essenciais com indiferença,
e jamais consideremos as questões pertencentes à esfera
da indiferença como se fossem essenciais. Nunca devemos
misturar as questões acerca das quais não pode haver certeza
nesta vida com as que são centrais e absolutamente impor­
tantes no viver cristão.
Qualquer pessoa que esteja familiarizada com a história
da Igreja perceberá como é importante este princípio. Acaso
não conhecemos, todos nós, cristãos que tornaram infeliz a sua
vida cristã simplesmente porque se acostumaram a tomar
coisas das quais não podemos chegar a ter certeza e a usá-las
como testes de ortodoxia; e insistiam em que deveriamos
concordar absolutamente com eles para depois podermos ter
comunhão com eles? Quanto dano tem sido feito à igreja por
causa disso, porque os homens e as mulheres não põem em

121
A V ID A D E PA Z

prática o ensino do apóstolo nesse ponto. “Portanto, todos


quantos já somos perfeitos, tenhamos na mente esse mesmo
pensamento; e se nalguma coisa tendes diferente idéia em
vossas mentes, mesmo isso Deus vos revelará” - é isso. Fora
com o judaísmo! Fora com o perfeccionismo! “Andemos
seguindo a mesma regra, tenhamos na mente o mesmo pen­
samento”; pratiquem aquilo sobre o que vocês têm certeza,
ponham em ação aquilo que está fora de dúvida, sejam sempre
cuidadosos e diligentes em executar estas coisas centrais sobre
as quais não pode haver discussão. Espero que todos os que
me estão acompanhando neste argumento se juntem a mim
na admiração do equilíbrio e do bom senso do ensino cristão,
e espero que possamos ver que muitas das heresias da Igreja,
e também muitas das infelizes divisões ocorridas na Igreja -
pois eu faço diferença entre diferenças legítimas e divisões
infelizes - têm acontecido devido ao fato de que os homens e
as mulheres falharam em não captar este ensino e em não
traçar estas distinções vitais entre os pontos centrais e os
periféricos, e entre os absolutos e os duvidosos.
A próxima peça de conselho que Paulo nos dá é uma
exortação a que sigamos bons exemplos - “ Sede também meus
imitadores, irmãos”. Aqui de novo só podemos ficar extasia­
dos ante a magnificência do ensino do apóstolo, e especialmente
diante da sua afabilidade. Ele se preocupa com a doutrina e,
para ajudar os membros da igreja de Filipos, diz praticamente:
“Ministrei a vocês o ensino dessa maneira concisa, rústica e
teórica, mas, se vocês querem realmente saber o que eu
quero dizer, permitam que me expresse desta forma: sigam
o meu exemplo, e não somente o meu exemplo, mas também
o dos seus mestres”. Pois bem, quase não há dúvida de que
ele se refere em parte a dois homens sobre os quais lemos
no capítulo dois, Epafrodito e Timóteo. Estes homens tinham
ajudado o apóstolo no ensino e na edificação da igreja em
Filipos, ele já fez referência a eles, e exorta os filipenses a

122
Fé e Conduta

observá-los - estas pessoas que eles conheciam.


Notem igualmente a maneira pela qual o apóstolo se
volta de si e inclui os outros: “ Sede também meus imitadores,
irmãos, e tende cuidado, segundo o exemplo que tendes em
nós, pelos que assim andam” . Não estou nem um pouco certo
de que concordo com os que acham que o apóstolo disse isso
meramente devido a sua modéstia. O que ele quer dizer é que
não hesita em pedir-lhes que o sigam - não é egoísmo da parte
do apóstolo, é simples declaração de uma verdade literal. Este
homem, que tinha sido salvo pelo Senhor Jesus Cristo e que
dedicara toda a sua vida a agradar a seu Senhor, era alguém
que tinha direito de pedir a outros que o imitassem e o
seguissem. Ele faz isso freqüentemente em suas Epístolas, e,
todavia, nenhum homem dotado de mentalidade espiritual
se sentiria bem em acusar o apóstolo de orgulho. Jamais
houve homem mais humilde que Paulo; sua vida era tal que
ele poderia voltar-se para os seus acusadores e dizer: estou
apresentando a vocês um exemplo e uma ilustração, e esta é a
ilustração: “Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito;
mas prossigo” . E isso que ele lhes diz que sigam. “Eu os
exorto”, é praticamente o que diz, “a fazerem justamente o
que eu estou fazendo. Não estou satisfeito com a minha vida
e com as minhas realizações, estou empenhado em prosseguir
rumo ao marco e à meta. Sejam meus seguidores, façam a
mesma coisa que eu estou fazendo. Mas isso não diz respeito
somente a mim, também diz respeito a Epafrodito e a
Timóteo” . E dessa forma ele exorta estes membros da igreja
de Filipos a seguirem o grande e glorioso exemplo deles.
Mais uma vez, haverá coisa que possa ser de maior valor
prático para o cristão desejoso de viver uma vida verdadei­
ramente cristã do que seguir exemplos tão bons? Haveria
algo que nos ajude tanto em nossos esforços para chegar à
meta final e suprema do que ler as vidas dos santos de Deus,
as biografias de homens e mulheres bondosos e piedosos?

123
A V ID A D E PA Z

Falando por mim mesmo, certamente posso testificar que


não encontrei nada de maior valor e incentivo. Você vê a ver­
dade na prática; vê-a transferida da esfera de puro ensino e
posta em ação. Para mim, uma das características mais tristes
da vida atual da Igreja é que freqüentemente se vêem pes­
soas que ignoram os grandes santos do passado. Nossos pais
estavam familiarizados com eles e passavam muito tempo
lendo sobre eles, e estas grandes biografias ainda estão
disponíveis. Certamente nada pode nos fazer maior bem do
que ler sobre eles e estudá-los, para podermos seguir o
exemplo deles, como o apóstolo nos exorta neste ponto.
A última porção de conselho que Paulo nos propicia é
que devemos estar advertidos quanto aos maus exemplos:
“Muitos há, dos quais vos falei muitas vezes, e agora também
digo, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo... cuja mente
só se ocupa de coisas terrenas” (VA). Não somente é certo seguir
bons exemplos, é igualmente importante observar estas
ilustrações do mau viver cristão. A Bíblia nos fornece muitos
deles, e não há dúvida de que é por isso que esses casos estão
registrados nela; são postos como grandes advertências ao
povo de Deus. Vemos a história de Caim, do povo de Sodoma
e Gomorra, e temos o exemplo dos filhos de Israel; seguramente
essas diversas ilustrações foram registradas para nosso bene­
fício - somos informados sobre pessoas que não viveram
piedosamente, e vemos o que lhes aconteceu.
Acaso não podem os encontrar a mesma coisa na
subseqüente história da Igreja? Nada é mais valioso e útil do
que nos familiarizarmos com a grande história passada da
Igreja, com os olhos postos nos elementos positivos e nega­
tivos, como o apóstolo nos exorta neste ponto. Temos aqui a
prescrição do apóstolo para uma vida cristã feliz, vitoriosa e
abundante; esteja absolutamente certo em sua mente das
coisas vitais e, no momento em que você estiver certo delas,
ponha-as em prática.

124
Fé e Conduta

Mas Paulo está inculcando aqui uma doutrina sobre a


questão geral da relação entre fé e prática. Permitam-me
mencionar o que considero seu ensino essencial sobre esta
questão. A primeira coisa é, certamente, que a nossa fé
sempre determina a nossa conduta. O apóstolo e seus amigos
viviam a vida que viviam porque “ tinham esta mesma
mente”. Paulo vivia a vida que vivia porque tinha enxergado
o erro do judaísmo e fora libertado dele; tinha enxergado a
verdade positiva concernente a Cristo e também tinha en­
xergado o erro do perfeccionismo. Por conseguinte, a conduta
do apóstolo, enquanto seguia na corrida cristã, era determi­
nada pela fé que ele sustentava.
Exatamente da mesma maneira, diz-nos ele, a conduta dos
que vivem vida indigna, “cujo fim é a perdição”, também é
fruto da sua fé. Seu problema é que eles têm “a mente posta
nas coisas terrenas” ; seu real interesse está no mundo e na
vida que se vive neste mundo. Sua mente, sua preocupação,
seu interesse, seus pensamentos estão presos à terra, e Paulo
declara que de tais pessoas pode-se dizer: “ seu deus é o
ventre” e “sua glória é para confusão deles” . Por quê? Porque
“sua mente está posta nas coisas terrenas” . A conduta de
uma pessoa é definitivamente determinada por sua crença e
por sua fé.
Porventura isso não é dolorosamente provado e demon­
strado pelo nosso mundo moderno, na atualidade? Observem
a conduta da maioria das pessoas. Que é que explica isso? Bem,
certamente, a resposta simples é que elas têm uma crença
errada. E por isso que a educação, a cultura e todas as coisas do
gênero não podem lidar com a situação. O problema do
mundo nestes últimos cinqüenta anos^ tem sido este - em geral
se diz: “ Sim, tudo bem com o cristianismo, mas não precisa­
mos incomodar-nos com dogma e doutrina” . Em geral o*

*Na primeira metade do século vinte, aproximadamente. Nota do tradutor.

125
A V ID A D E PA Z

mundo se dá bem com a ética cristã, pelo que gosta de elogiar


0 Sermão do Monte, mas não quer nada do que se fala sobre
Jesus de Nazaré ser o Filho de Deus, sobre a Sua encarnação
e sobre a Sua morte na cruz. Assim foi que o mundo varreu
para um lado a doutrina cristã e com gosto acredita que
pode sustentar aquilo que ele acha ser boa ética cristã.
Mas isso é impossível, à luz do que a Bíblia diz sobre a fé
/•

cristã e o ensino cristão. E inútil a pessoa dizer que crê em


Deus, mas não vê nenhuma necessidade de cumprir os Dez
Mandamentos; é igualmente ocioso esperar que as pessoas
creiam nos Dez Mandamentos sem crerem em Deus - o que
constitui o primeiro mandamento. A fé determina a conduta,
e o mundo moderno nada mais é que uma eloqüente exi­
bição da sólida veracidade deste fato. Devemos partir do
princípio da crença e da fé, pois a conduta de uma pessoa
sempre expressa o que ela supremamente crê.
Permitam-me expressar isso de forma ligeiramente
diferente num segundo princípio. A conduta é o melhor índice
da natureza e do valor da nossa fé. Noutras palavras, mostrem-
-me a conduta de um homem, e eu poderei dizer-lhes qual é
sua crença. Essa é a razão pela qual nesta passagem o apóstolo
exorta tão constantemente estes cristãos a se certificarem de
que a sua conduta está de acordo com a sua fé. Em Tito 2:3
Paulo emprega a expressão: “como convém à santidade” (VA)
- esse é seu argumento em prol da santidade no viver. “ Será
que vocês não conseguem ver”, diz ele efetivamente, “que é
realmente incoerente dizerem que crêem numa coisa, se estão
fazendo exatamente o oposto?” Esse é o argumento do Novo
Testamento em favor da pureza e da santidade. Se cremos que
Cristo morreu por nossos pecados a fim de libertar-nos da
esfera do pecado, como podemos continuar no pecado? E
completamente incoerente, e o apóstolo não hesita em dizer
que não há valor nenhum na suposta fé e crença de um
homem que constantemente vive a outra vida - “Não erreis:

126
Fé e Conduta

Deus não se deixa escarnecer” (Gálatas 6:7). E possível alguém


fazer toda uma série de asserções intelectuais, mas, se ele vive
inteiramente noutra direção, dá prova positiva de que sua
fé não tem o mínimo valor e que não é uma fé real. Nesta
questão não há diferença nenhuma entre Tiago e Paulo;
ambos dizem exatamente a mesma coisa de diferentes manei­
ras. A conduta de uma pessoa é a prova final e o testemunho
definitivo da realidade ou do valor da sua profissão de fé e
da sua crença.
E depois, finalmente, o teste supremo da fé e conduta de
um homem é a cruz. “Muitos há, dos quais muitas vezes
vos disse... que são inimigos da cruz de Cristo.” Notem que
aqui Paulo declara que estas pessoas são inimigas da cruz
de Cristo. O que realmente prova que o erro supremo dos
judaizantes é que eles lançam fora a cruz. Aqueles que me
dizem que podem acertar sua vida com Deus vivendo uma
vida moralmente boa são inimigos da cruz de Cristo porque
noutras palavras estão dizendo que a cruz de Cristo não os
salvará. O amigo da cruz diz: “Nada me pode salvar, senão a
cruz”. Quem quer que de algum modo acrescente algo a isso
ou subtraia algo disso é inimigo da cruz - essa é a condenação
final do judaizante e do moralista.^ Todos aqueles que dizem
que por seus próprios esforços podem ficar preparados para
comparecer e permanecer na presença de Deus, são inimigos
da cruz, estão menosprezando sua glória.
Contudo, você pode fazer exatamente a mesma coisa em
sua conduta, diz o apóstolo. Ele está falando sobre pessoas que
estão vivendo o tipo errado de vida, cujos deuses são suas
cobiças, suas paixões, sua natureza carnal, que vivem para

^ Conhecí seminaristas que apoiavam certos pastores e certos teólogos


porque os entendiam mal. Visto que esses condenavam o moralismo
(teológico), aqueles pobres coitados entendiam que eles estavam pregando
licença moral! Nota do tradutor.

127
A V ID A D E PA Z

essas coisas, que “têm sua mente posta nas coisas terrenas” .
Paulo diz igualmente delas que são inimigas da cruz de
Cristo. Haveria alguma classe de pessoa que cause tão má
reputação à cruz do que essa? Vocês já viram pessoas que
falam da cruz e dizem que Cristo morreu por elas, e, todavia,
estão tendo vida imoral? Eu vi um homem embriagado
proclamar que cria que Cristo morreu por ele - estava pregando
a cruz, por assim dizer - e, no entanto, sua conduta não
somente negava essa pregação, mas também provava que ele
era inimigo da cruz. Ele a envergonhava e lhe causava má
reputação.
Se cremos no que reivindicamos acerca da cruz, quão
cuidadosos devemos ser! Por nosso proceder, por nossa con­
duta, podemos mostrar que somos inimigos da cruz, podemos
fazer com que outros a ridicularizem, a blasfemem e riam dela.
Não somente isso, estamos realmente negando o propósito e a
função da cruz. Permitam-me lembrar-lhes como Paulo se
expressa sobre isso dirigindo-se a Tito. Diz ele que Cristo
morreu para “purificar para si um povo seu especial, zeloso
de boas obras” (Tito 2:14). Por que o nosso Senhor sofreu a
morte que sofreu na cruz? Por que foi para o Calvário? Ali
está a resposta: para separar estas pessoas do pecado, da ini-
qüidade, da vergonha, e fazer delas “um povo seu especial,
zeloso de boas obras”. Portanto, se eu não sou zeloso de boas
obras, se vivo uma vida pecaminosa, mundana, carnal,
obviamente sou inimigo da cruz de Cristo.
Portanto, a cruz é o teste supremo, tanto da minha fé e
crença, como da minha conduta e prática. Que tremenda
responsabilidade pesa sobre aqueles de nós que somos
cristãos! Com que cuidado devemos sempre ver que estas
duas coisas estão intimamente relacionadas, pois, enquanto
mantivermos a cruz em frente de nós como a pedra de toque
das nossas vidas, jamais poderemos extraviar-nos. Será que
a cruz é vital e é tudo para mim? Será que minha vida

128
Fé e Conduta

proclama que eu creio que Cristo morreu na cruz por mim,


não somente para que os meus pecados fossem perdoados,
mas também para que eu fosse libertado totalmente da esfera
do pecado e me tornasse filho de Deus, e que Deus está me
preparando para a glória que com Ele ainda me aguarda?
Minha fé determina minha conduta; minha conduta é
uma proclamação e uma afirmação concernente à minha fé;
e ambas, minha fé e minha conduta, juntas, estão sempre
sendo postas à prova pelo que elas dizem a respeito da
cruz. Queira Deus conceder-nos que todos nós sejamos
pessoas cuja vida, inteira e completa, e cuja fé e conduta
estão cen-tradas na cruz de Cristo.

129
10
Cidadãos do Céu
“M as a nossa cidadania está nos céus, de onde também
esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o
nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo
0 seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas. ”
-Filipenses 3:20,21

Uma tradução alternativa destes versículos - que é mais


ou menos a da Versão Revista (inglesa) - seria assim: “Pois a
nossa cidadania está no céu, de onde também esperamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que mudará este corpo da
nossa humilhação para que seja modelado pelo corpo da Sua
glorificação (ou seja feito conforme o corpo da Sua glorifi­
cação), segundo a energia do Seu poder, pelo qual Ele pode
sujeitar todas as coisas a Si mesmo” . (VA: “Pois a nossa
conversação (maneira de viver) está no céu....”)
Estou certo de que todos nós temos que concordar que
estes versículos constituem um grande clímax de um grande
capítulo. Temos exposto este capítulo três da Epístola de Paulo
aos Filipenses em diversos estudos e vimos que de vez em
quando emergem proeminentemente declarações individuais,
e são algumas das declarações mais magníficas feitas por este
grande apóstolo. E um capítulo repleto de aspectos grandio­
sos, nobres e maravilhosos. E uma singular descrição da
experiência pessoal do apóstolo; sua definição clara e inequí­
voca do cristão, feita várias vezes; e nele vimos a seriedade
com que o apóstolo rejeita o falso ensino do judaísmo, o dos

130
Cidadãos do Céu

antinomianistas (ou antinomistas) e o de várias outras pessoas.


Mas, acima de tudo, percorrendo isso tudo, há uma exaltada
e magnífica concepção da vida cristã e da posição cristã in­
dividual. E aqui, nestes dois versículos, Paulo conclui isso
tudo e o leva a um glorioso e magnífico clímax.
E desse modo que abordamos estes dois versículos. Eles
devem ser considerados como um sumário de tudo o que Paulo
esteve dizendo na grande argumentação desenvolvida neste
capítulo. E, portanto, perfeitamente válido descrever estes dois
versículos como simplesmente outro lembrete do que significa
ser cristão. Eles expressam a essência da posição do evangelho
do Novo Testamento como o apóstolo o expressa aqui. Como
já vimos, ele exortou os membros da igreja de Filipos a
seguirem seu exemplo; “ Sede meus imitadores”, diz ele, e de
todos os que andam como eu. E reforçou a exortação mediante
uma negativa; existem aqueles, diz ele, “dos quais muitas vezes
vos disse, e agora também digo, chorando, que são inimigos
da cruz de Cristo, cujo fim é”, não esta glória em direção à
qual nos movemos, mas - a perdição. Seu Deus não é o Senhor
Jesus Cristo, mas suas cobiças e paixões carnais; sua glória
não é a glorificação que nos aguarda, mas o seu opróbrio, e
sua mente está posta nas coisas terrenas. Esse é o problema
máximo deles. Mas, Paulo conclui, “a nossa conversação (a
nossa cidadania) está no céu”. Noutras palavras, ele oferece aqui
esta definição particularmente gloriosa da posição cristã em
geral porque deseja fazer-lhes um apelo final para um santo
viver e para que sigam avante pela estrada da santificação.
Mas, antes de examinarmos estes dois versículos em
detalhe, penso que é importante que tenhamos em mente este
grande princípio: a nossa cidadania no céu. Isso é típico do
apelo do Novo Testamento para a santidade,
y
apelo sempre
expresso em termos do que somos. E aí que a santidade de
que fala o Novo Testamento - não hesito em dizê-lo - é essen­
cialmente diferente do moralismo. O moralismo está sempre

131
A V ID A D E PA Z

interessado em ações em si e por si, razão pela qual ele tem


que produzir argumentos particulares, quer sobre bebida,
quer sobre qualquer outra coisa. A atividade geral do
moralismo consiste em mostrar defeitos, mas, embora o
evangelho não negue nada disso, nunca é essa a base do seu
apelo. O Novo Testamento nunca diz ao homem que evite a
bebida por causa do efeito que ela produz em seu corpo; o
ensino cristão é que o homem não deve fazer-se culpado de
bebedeira porque ele é cidadão do céu, é filho de Deus. O
argumento está num plano mais alto e, como eu disse, devemos
ter sempre isso em mente. Dou ênfase a isto porque acredito
que muito dano tem sido feito à causa cristã e à Igreja Cristã
devido a essa triste confusão entre o moralismo e a santidade
apregoada pelo Novo Testamento; devido à preocupação
com detalhes em detrimento do princípio; devido à inca­
pacidade de ver que há uma total diferença na colocação
que o Novo Testamento faz sobre a vida e o viver, e sobre a
santidade e a conduta. A diferença é entre o judaísmo e o
cristianismo; entre a preocupação com detalhes e com a lei,
e esta outra grande concepção de estado e posição.
Assim, tendo lembrado que nunca devemos perder de
vista este grande princípio, consideremos como Paulo descreve
o cristão nesta altura. Podemos dividir melhor o nosso assunto
em dois títulos, os quais se sugerem de imediato. O cristão
deve ter este tipo de vida, deve seguir Paulo e todos os outros
participantes da vida cristã, e deve fazer isso, primeiramente
e acima de tudo, porque ele é o que é, e, em segundo lugar,
deve fazê-lo pelo que ele espera ser. Examinemos agora a
primeira razão. Que é o cristão? A resposta do apóstolo é
que, em primeiro lugar, o cristão é um cidadão do céu; a
Versão Autorizada diz: “A nossa conversação está no céu”,
outros dizem que a frase deve ser traduzida por: “nós somos
uma colônia do céu” - o sentido é sempre o mesmo. Para
mim, o que é importante salientar é a palavra está - a nossa

132
Cidadãos do Céu

cidadania está no céu. Dou essa ênfase com a finalidade de


mostrar que o apóstolo não está dizendo: “a nossa cidadania
estará no céu”, mas que está lá agora!
Noutras palavras, as autoridades concordam que a palavra
“está”, empregada aqui por Paulo, é a palavra que significa
“estando já em existência e se manifestando”; ou, como diz o
Dr. Lightfoot, “a nossa cidadania está agora mesmo no céu”.
Já é, agora mesmo, um fato - não que vamos estar, mas que
estamos. E aqui nos defrontamos com uma das doutrinas
primárias, fundamentais, do Novo Testamento. Este é apenas
um modo de expor a doutrina da regeneração e do novo
nascimento. Ao examinarmos uma grande descrição do cristão
como esta, não seríamos levados a sentir que as pequenas
definições muitas vezes correntes na atualidade são, não
somente inadequadas, mas também quase ultrajantes? Pen­
sem na descrição do cristão simplesmente como alguém que
leva uma vida moralmente decente! Talvez eu não deva falar
deste jeito da moralidade. Não faço isso com espírito de con­
trovérsia, mas porque sou zeloso quanto a esta vida gloriosa
que temos em Cristo e, com o apóstolo, faz-me chorar
pensar na vida cristã apenas como uma vida moralmente
boa, uma vida que é apenas um pouco melhor do que a da
pessoa comum. Os cristãos são homens e mulheres que já são
cidadãos do céu, pessoas que já foram trasladadas e elevadas.
Permitam que eu lhes passe algumas outras declarações
de Paulo que expressam todo este assunto com perfeição. Por
exemplo, escrevendo aos efésios, ele diz: “Mas Deus, que é
riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que
nos amou, estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos
vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos
ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares
celestiais, em Cristo Jesus” (Efésios 2:4-6). O cristão já está
sentado junto com Cristo nos lugares celestiais - estamos lá
num sentido espiritual, somos cidadãos do céu. Ou vejam

133
A V ID A D E PA Z

como Paulo se expressa sobre isso em sua carta aos colossenses,


onde ele diz de novo exatamente as mesmas coisas: o nosso
Senhor “nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou
para o reino do Filho do seu amor” (Colossenses 1:13).
Bem, essa concepção é tão magnífica que tende a nos
iludir. Era difícil para os membros da igreja de Filipos,
sofrendo como estavam, compreender que já estavam sentados
nos lugares celestiais em Cristo. Para nós hoje é igualmente
difícil, e, todavia, esta é a primeira coisa a que devemos apegar­
mos. Não somos cidadãos do reino celestial por nos termos
provido de naturalização; você pode ser cidadão de qualquer
outro país obedecendo aos trâmites legais, mas você continua
sendo a mesma pessoa que era. Não é essa a concepção do
Novo Testamento. Somos cidadãos do céu porque nascemos
de novo, somos cidadãos por nascimento. Não pagamos nada
para obter a nossa cidadania; não é questão de transação
legal; fomos criados, somos novos seres, somos participantes
da natureza divina, somos filhos de Deus. Estamos no reino
e temos a nossa cidadania por direito de nascimento e de
sangue, e nada menos. Assim, a reivindicação que Paulo faz
em favor do cristão é que o cristão é essencialmente dife­
rente de todos os que não são cristãos.
Claro está que o apóstolo tem em sua mente o contraste
que ele traçou dos que levam uma vida indigna, inimigos que
são de Cristo - “Nem por um momento pensem em viver desse
modo”, diz praticamente ele, “vocês não pertencem à mesma
esfera deles. Eles pertencem ao reino deste mundo; vocês são
cidadãos do céu” - essa é a posição do Novo Testamento. Como
cristãos, se somos dignos do nome, somos neste momento
essencialmente diferentes dos não cristãos, não só um pouco
melhores, nem meramente diferentes na superfície, e sim
diferentes em nosso ser como resultado do novo nascimento.
Temos uma nova cidadania, estamos em Cristo e, porque
estamos em Cristo, estamos sentados com Ele nos lugares

134
Cidadãos do Céu

celestiais. Vão acontecer algumas coisas antes de finalmente


chegarmos ao céu, mas a nossa cidadania é tão definida
agora como será então. Haverá uma trasladação física
quando morrermos, mas espiritualmente já estamos lá,
pertencemos ao céu. Este ponto vai ficar cada vez mais claro,
à medida que prosseguirmos a uma elaboração mais ampla
do cristão.
Que significa, então, esta cidadania? Por que o apóstolo se
expressa dessa forma? Talvez a melhor maneira de explicar
isso seja desenvolver o contraste a que já aludi. Segundo o
ensino do Novo Testamento, cada pessoa está num dos dois
reinos - há só dois, o reino do céu e o reino deste mundo; o
reino de Deus e o reino de satanás. O apóstolo e os outros
escritores do Novo Testamento falam sobre o reino de satanás,
o domínio do deus deste mundo. Falam sobre o príncipe
das potestades do ar que controla a vida dos que não crêem,
e falam sobre o reino das trevas - são essas as expressões que
eles empregam. E contra todos esses domínios das trevas e
acima deles está este outro reino, o reino de Deus, o reino do
céu, o reino do Seu amado Filho, o reino da luz, e assim por
diante. Não há termo médio entre estes dois opostos, não há
terreno neutro; se não estamos no reino de Deus, estamos
no reino de satanás, é um ou o outro. Portanto, aqui, quando
Paulo salienta o fato de que a nossa cidadania está no céu,
ele está dizendo que estamos num reino diferente e decla­
ramos uma lealdade diferente.
A primeira característica de um reino é o rei, o chefe de
estado, aquele a quem você deve lealdade. Paulo traça um
contraste aqui. Daquelas outras pessoas ele afirma que seu “deus
é seu ventre” (VA), e com isso ele quer dizer que elas vivem
para seus instintos, suas cobiças, suas paixões; são essas as
coisas que as governam e as controlam, e é aí que está a sua
lealdade. Você pode testar onde está a lealdade de uma pessoa
pela maneira como ela gasta seu tempo, seu dinheiro e suas

135
A V ID A D E PA Z

energias. O tesouro do homem está onde seu coração está, e o


seu coração está onde está o seu tesouro, como diz o nosso
Senhor no Sermão do Monte. O homem logo mostra o que
ou quem é seu deus. Mas a posição dos homens e mulheres
cristãos é que o seu Rei é o Senhor Jesus Cristo, que o seu Rei
é Deus, que Ele é supremo na vida deles, e eles votam lealdade
a Ele, e a mais ninguém. Nesse aspecto os cristãos são inteira­
mente diferentes dos incrédulos. O que sempre deve ser uma
realidade a respeito dos cristãos é que eles estão cônscios de
que as suas vidas são dominadas por Deus, que a sua primeira
preocupação é a vontade de Deus e Seu prazer.
Vocês vêem, novamente, quão diferente isso é do
moralismo. Você pode ser perfeitamente moral sem pensar
em Deus, pode fazer muito bem e ter uma vida decente, sem
que Deus jamais entre em seus pensamentos. Não, diz Paulo,
esse não é o modo de ser do cristão. Se você é cristão, está em
relação com Deus, Deus é o seu Rei e, por conseguinte, os seus
pensamentos são sobre Ele.
A segunda característica é que o cristão vive sob uma lei
diferente, vive um tipo diferente de vida, sob um diferente
sistema. Vejam, por exemplo, o grande argumento desenvol­
vido por Paulo em Romanos, capítulo 6. Ele diz: “Antes de
você se tornar cristão, você estava sob o domínio do pecado e
de satanás, mas agora não está mais sob esse domínio. Noutras
palavras, não há nada que seja tão ridículo como falar que os
homens e as mulheres têm livre arbítrio: isso não é verdade,
nós nascemos em pecado, e estamos sob o domínio do pecado
e de satanás. E é por isso que as pessoas afundam cada vez
mais no pecado; elas são escravas das coisas que elas fazem.
Em Lucas 11:21o nosso Senhor fala sobre o homem forte que,
quando “guarda, armado, a sua casa, em segurança está tudo
quanto tem” - é satanás controlando a vida dos homens e das
mulheres, enquanto, naturalmente, os persuade de que eles
estão em liberdade.

136
Cidadãos do Céu

Pode-se entender facilmente isso quanto ao mundo


internacional e ao mundo político na atualidade. Existe uma
forma de tirania que persuade você de que você é livre. E é
isso que satanás faz - ele persuade os homens de que são livres,
apesar de estarem presos sob o seu domínio. Mas os cristãos
não estão nessa situação. Eles foram resgatados, estão no reino
de Deus, têm uma lei diferente, estão sujeitos a diferentes regras
e regulamentos. Toda ordenação da sua vida é diferente, eles
foram literalmente tirados de um reino e transferidos para outro.
Como cidadãos deste novo reino, eles conhecem um código
inteiramente novo. Assim como há diferentes costumes e
normas nos diferentes países, assim também há uma dife­
rença essencial entre o reino de Deus e o reino de satanás, e
os que agora são cidadãos do reino de Deus conhecem idéias
inteiramente novas sobre a vida. Eles vêem as coisas de
maneira diferente porque conhecem uma nova lei: esta lei
perfeita da liberdade.
E a terceira coisa importante que caracteriza a cidadania
do cristão é que ela nos habilita a diferentes direitos e
privilégios. Como cidadãos de um país, temos direito de fazer
certas coisas que os que não são cidadãos não têm direito de
fazer. Na vida cristã isso é de vital importância. Como cidadãos
do céu, temos o direito de ter audiência com o Rei, o direito
de acesso ao trono, temos o direto de apresentar-Lhe nossas
petições e de fazer-Lhe nossas solicitações. A Bíblia está
repleta destas coisas. Ela nos diz que Deus está particular­
mente interessado em Seu povo. Falando ao povo por meio
de Amós, Ele diz: “A vós somente conheci” (Amós 3:2). Num
sentido, Ele conhecia todas as outras nações, mas aqui Ele se
refere a um conhecimento íntimo. Deus se preocupa com os
que Lhe pertencem e se interessa particularmente por eles. E
isso é algo que vocês vêem elaborado no Novo Testamento. O
nosso Senhor disse pessoalmente a cristãos: “Até mesmo os
cabelos da vossa cabeça estão todos contados” (Mateus 10:30).

137
A V ID A D E PA Z

Nada pode acontecer com vocês sem que o seu Pai o saiba.
Deus, o nosso Pai, interessa-Se por nós dessa maneira íntima.
Não seria isso algo sobre o que devemos ponderar e no
que devemos meditar numa época como esta? Onde quer que
você esteja, seja qual for a sua situação: pode estar nos confins
da terra e cercado de inimigos, pode estar na situação mais
impossível - sempre tem este direito de acesso a seu Rei. Como
diz o salmista: “Desde o fim da terra clamo a ti” (Sal. 61:2).
Estes são privilégios e direitos que pertencem, inerentemente,
aos cidadãos do reino.
Passemos, porém, agora a algo que, num sentido, tem
maior importância prática, e que é algo que devemos salien­
tar nestes dias. Quais são as implicações desta cidadania? Pois
bem, claro está que quando Paulo nos diz que a nossa cidadania
está no céu, ele não está ensinando que o cristão não deve ter
nenhum interesse por este mundo e pelos negócios desta vida.
Ele fala de uma relação espiritual, e ele deseja dar ênfase a
isso. Se devo interessar-me, como devo, por esta vida e por
este mundo, devo fazê-lo de modo diferente do homem ou da
mulher do mundo que não é cidadão ou cidadã do reino do
céu. Noutras palavras, embora o cristão esteja, como está, no
mundo, não é do mundo. Que coisa banal e, todavia, quão
profunda é isto: estamos no mundo como todos os demais,
mas, como cristãos, não somos dele. Muitos hinos têm esse
tipo de ensino, e muitas vezes eles o expressam dizendo que
este mundo não é o nosso lar; se somos cristãos, estamos longe
do lar.
Sou estrangeiro aqui,
O céu é o meu lar,

diz o antigo escritor, e todo cristão deveria dizer isso.


Durante os últimos cem anos,^ o povo em geral tem

A contar de meados do século vinte. Nota do tradutor.

138
Cidadãos do Céu

zombado dessa espécie de ensino, mas, como cristãos, devemos


passar a ver que somos apenas uma colônia aqui; a nossa
cidadania, o nosso lar, está no céu. Nesse sentido, devemos
ser antiterrenais, e o nosso interesse por este mundo deve
provir unicamente do fato de que cremos que este mundo
é de Deus e que lamentamos o estrago que os homens e as
mulheres estão fazendo nele. Não é que achamos que este é
o único mundo e que esta vida é a única, e que podemos
muito bem estabelecer-nos neste mundo e desfrutar a vida.
Absolutamente não! Mas nós cremos na restrição do mal,
porque este mundo pertence a Deus. Ao mesmo tempo, se
eu digo que não sou deste mundo, devo dar-me conta dos
perigos da vida no mundo, dos perigos da iniqüidade, do
pecado, da arrogância, da torpeza que há nele. Cada vez mais
vou chegando à conclusão de que não há teste mais seguro,
para ver se os homens e as mulheres são verdadeiramente
cristãos ou não, do que a visão que eles têm da vida neste
mundo. O critério não é só se dizemos que cremos em certos
artigos da fé. Os cristãos, que são novos homens e novas
mulheres, e que têm uma nova natureza, necessariamente
têm que ter uma visão da vida neste mundo diferente da
que os incrédulos têm - esse é um teste completo e absoluto.
O cristão vê o perigo da vida neste mundo, e está constante­
mente cônscio desse perigo; ou, para empregar a linguagem
do apóstolo Paulo, os cristãos “têm em mente” outras coisas;
o interesse deles está em algo diferente.
Agora, gostemos ou não, e por estranho que soe aos nossos
ouvidos acostumados à ênfase mundana, os cristãos do Novo
Testamento, como é certo sobre os cristãos de todos os grandes
períodos de avivamento e de despertamento, tinham suas
mentes e seus afetos postos nas coisas do alto, não nas da
terra. Como eu disse, isso não significa que os cristãos se retiram
da vida e não se interessam pelas atividades deste mundo -
mas o céu é o lugar no qual suas mentes estão postas. Eles

139
A V ID A D E PA Z

contemplam coisas que se não vêem, ou, para ir mais longe,


sua ufania está nessa cidadania celestial. Todos nós sabemos
que a cidadania sempre leva a ufania. Alguns dos pensadores
mais profundos atuais nos estão dizendo que a principal
causa do nosso problema é a ufania que o povo tem da sobe­
rania nacional, e, indubitavelmente, há muita verdade nisso,
e isso pode ser muito perigoso. Mas a ufania pela cidadania
é inevitável, e o verdadeiro cidadão ufana-se do fato de que
é um cidadão. Isso vem primeiro, é a coisa da qual ele se
gaba, a coisa pela qual ele está disposto a sacrificar sua vida
e tudo.
Povo cristão, estamos nós prontos a morrer pela cidadania
que está no céu, como o estamos pelo nosso reino terreno? Não
estou colocando estes dois como opostos; esta é apenas a minha
maneira de fazer com que todos nós nos lembremos de que a
nossa ufania pela cidadania celestial deveria ser infinitamente
maior que o orgulho que temos por qualquer posição terrena.
Deveriamos desejar a ufania do reino do céu e, acima de
qualquer outra coisa, deveria ser a nossa maior ambição sermos
dignos dele. “A Inglaterra espera que cada homem cumpra
hoje o seu dever” - sim, e Deus e o reino do céu esperam isso!
Embora estando longe do lar, lembre-se de que a honra e a
dignidade do grande reino a que você pertence está em suas
mãos. Aí estão, ao redor de você, por todos os lados, aqueles
que não pertencem ao reino a que você pertence; eles o
observam e vão julgar o seu país por você. Portanto, diz o
apóstolo, lembre-se do que você é e viva de um modo que
seja digno desta soberana vocação do cidadão do céu.
M as, finalm ente, consideremos abreveiadamente a
esperança do cristão. Os cristãos têm esta espécie de vida por
causa da esperança posta diante deles. Este é, talvez, o maior
consolo e incentivo que o cristão pode ter. A nossa situação no
mundo é exatamente a situação dos íilipenses descrita por
Paulo. Estamos num mundo que nos é completamente hostil.

140
Cidadãos do Céu

É controlado por satanás e pelo pecado, e por todas as forças


malignas mobilizadas contra nós. Não somente isso, nós
mesmos não somos perfeitos - “Não que já a tenha alcançado...
Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado” - há
fraquezas e defeitos em nós, o próprio corpo nos causa
problemas, é fraco e está sujeito a enfermidades e, finalmente,
à morte. Essa é a nossa situação neste mundo, rodeados de
inimigos e de fraquezas, de problemas dentro e fora. Como
podemos prosseguir? Que adianta nos dizerem que somos
cidadãos do céu? Parece quase um escárnio.
Não, diz Paulo, pois “a nossa cidadania está nos céus, donde
também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que
transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu
corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também
a si todas as coisas”. Vocês vêem o que ele quer dizer? Esta é a
suprema consolação. Aguardamos algo, e esse algo é o retorno
do Senhor Jesus Cristo. Ele vai voltar, e, quando voltar, vencerá
o inferno; Ele subjugará todos os inimigos - satanás, o pecado,
o mal e a iniqüidade. Tudo quanto pertence ao reino das trevas
Ele derrotará definitivamente e exterminará completamente.
Estamos à espera do Salvador, o Senhor Jesus Cristo. A vida
pode ser dura, e pode piorar; podemos ter que sofrer perse­
guição, podemos ter que encarar algumas das coisas que
outros cristãos estão encarando no presente. Tudo isso pode
vir sobre nós. Eis a nossa resposta: encha-se de cólera o inferno,
levantem-se os reinos do mundo com toda a sua íuria, façam
o que fizerem, sabemos que vem o dia em que o Salvador
voltará, o nosso Senhor Jesus Cristo. Ele descerá do Seu
trono no céu e voltará a este mundo como Rei. Ele terá a
vitória final sobre tudo e sobre todos, e reinará supremo.
Mas o ensino não pára aí. Quando Ele vier, vai fazer uma
outra coisa que, num sentido, é ainda mais maravilhoso para
nós. Leio no Novo Testamento sobre essa glória da minha
estada na presença de Deus e sobre a glória de ver os santos

141
A V ID A D E P A Z

anjos e de ver o meu Salvador como Ele é. Penso nesta terra e


neste céu renovados, onde tudo será feito de novo, e pergunto:
Como posso habitar num tal reino ou viver sob tais condições,
sabendo o que sou? Eis a resposta: Paulo ensina que o Senhor
vai até transformar o meu corpo vil (VA) - isto é, o corpo da
minha humilhação - a palavra “vil”, na Versão Autorizada, é
uma tradução infeliz. O que o apóstolo está dizendo é sobre
a diferença que há entre o corpo da enfermidade (Paulo esteve
sujeito a enfermidades ou fraquezas do corpo, e sabemos,
também, que, quanto a algumas pessoas, o pecado está
associado ao corpo), e o glorioso futuro que me espera é este:
Cristo vai me libertar de tudo o que é humilhante, tudo isso
será eliminado, e me será dado um novo corpo. No caminho
de Damasco, Paulo viu o Senhor ressurreto em toda a Sua
glória. O brilho era tal que ele foi derrubado ao chão, e,
Paulo diz, vou ter um corpo glorioso assim. Será como a
glória que envolveu o nosso Senhor no Monte da Trans­
figuração, uma glorificação que se aplicará a nós e que nos
capacitará a passar a eternidade na presença de Deus. E essa
realidade que esperamos. Você pode ser fraco, pode estar
cansado, pode estar cônscio de imperfeições, mas, diz o
apóstolo, prossiga caminho afora, você não está fazendo isso
por si mesmo, o Salvador vem.
Esse é, pois, o apelo final que ele faz a todos nós - pros­
siga, mas enquanto prosseguir, fique de olho na distância,
contemple e aguarde a glória, espere Cristo: “Donde também
procuramos ver o Salvador” (VA). Que expressão a palavra
“olhar” é! Significa que não estamos olhando para outras
coisas. E uma palavra muito poderosa e significa espera
paciente, expectação anelante e anelante antecipação.
E assim , pois, que o apóstolo apela aos homens e
às mulheres para que tenham um santo viver e uma vida
santificada. Como cristãos, somos cidadãos do céu. Per­
tencemos àquela esfera, e vem o dia em que o Rei voltará.

142
Cidadãos do Céu

Então entraremos em nossa herança e seremos transformados


completamente. O pecado será removido inteiramente, com
todos os seus efeitos e influências, e, perfeitos e glorificados,
habitaremos com Deus na glória para todo o sempre. Esse
é o nosso direito de nascimento, essa é a nossa posição. Seria
necessário, então, apelar a todos nós no sentido de que
sejamos dignos da nossa alta vocação e de que nos gloriemos
em Cristo e em Sua cruz, e de que vivamos por Ele e para
Ele?

143
11
A Vida e a Obra da Igreja
“Portanto, meus amados e muito queridos irmãos, minha alegria
e coroa, estai assim firmes no Senhor, amados. Rogo a Evódia, e
rogo a Stntique, que sintam o mesmo no Senhor. E peço-te também
a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres
que trabalharam comigo no evangelho, e com Clemente, e com os
outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida. ”
- Filipenses 4:1-3

Chegamos agora a estes três versículos iniciais do capítulo


quatro, e a própria palavra “portanto”, no início do versículo
primeiro, lembra-nos que há uma estreita conexão entre o
que 0 apóstolo está começando a dizer agora e o que acabou
de dizer no fim do capítulo três. Examinamos a gloriosa
doutrina da volta do nosso Senhor, da Sua vitória sobre os
Seus inimigos, livrando o mundo do mal e até mudando isto:
0 corpo da nossa humilhação, e modelando-o para ser feito
conforme o corpo da Sua glorificação, segundo a energia do
Seu grande poder, pelo qual Ele pode sujeitar a Si todas as
/•

coisas. E uma doutrina extraordinária, não se achando em


parte alguma outra que seja mais grandiosa. “Portanto...”, diz
o apóstolo; e mais uma vez ele faz algo que lhe é característico.
Ele nunca expõe uma doutrina só por expô-la, ele sempre
a aplica, e aqui ele começa a aplicar o que acabou de dizer.
Eu sempre acho particularmente fascinantes estas tran­
sições do pensamento de Paulo. Nunca posso decidir bem se
ele é mais grandioso quando expõe a doutrina ou quando a

144
A Vida e a Ohra da Igreja

aplica; tento discutir este ponto comigo mesmo, e, franca­


mente, não consigo chegar a conclusão alguma. Eu o acho
igualmente fascinante, igualmente emocionante, seja o que
for que ele faça. Pois a verdade acerca do apóstolo é que,
seja expondo doutrina ou seja aplicando-a, ele é sempre
doutrinário. Ele é incapaz de manejar um problema, a não
ser em termos de doutrina, e, assim, realmente não faz muita
diferença se ele nos está pedindo que examinemos as grandes
declarações feitas objetivamente, ou se as está apresentando
de forma prática, imediata e subjetiva.
Assim é que, aqui, vamos lidar com a aplicação, mas, como
eu espero mostrar a vocês, veremos que ela está cheia de
doutrina, cheia de ensino, e veremos que, mais uma vez, Paulo
se demonstra incapaz de manusear o problema das contendas
havidas dentro da igreja sem colocá-lo no grande contexto da
verdade global. Este “portanto” é o elo de ligação, e tudo o que
Paulo vai dizer sobre este problema deve ser considerado
à luz do que ele esteve dizendo sobre o retorno do nosso
Senhor, “donde” - do céu - “esperamos o Salvador” . Em
acréscimo, devemos lembrar-nos da ênfase que ele deu ao
fato de que, como cristãos, já somos cidadãos do céu; não
“vamos ser”; somos. E, se tudo isso é verdade a nosso respeito
- “portanto”, isso nos traz a esta questão particular.
Aqui o apóstolo ainda esta tratando do que podemos
denominar, a doutrina da Igreja Cristã. Ele está fazendo isso
por causa do particular problema surgido na igreja de Filipos,
mas, nem desse problema menor ele pode tratar sem que
entre em cena o caráter geral da Igreja. Temos, pois, aqui o que
podemos descrever como um maravilhoso quadro de Paulo
retratando a natureza da Igreja Cristã, e o caráter da vida dela;
e, ao fazer isso, o apóstolo faz mais uma coisa. Eu sugiro que
o faz inconscientemente, mas ele apresenta também um
maravilhoso retrato de si mesmo. Confesso que para mim foi
uma real tentação, ao pensar nestes três versículos e meditar

145
A V ID A D E P A Z

neles, dividir esta matéria em duas partes, porque temos


aqui dois quadros, um retratando Paulo, o pastor, e o outro a
igreja na qual ele ministrava. Decidi, porém, que não podemos
entrar em detalhes aqui com o retrato de Paulo, exceto, talvez,
como ele transparece quando tratamos da outra doutrina;
mas não posso refrear-me e deixar de assinalar a maneira
pela qual Paulo se dirige a esta igreja: “Portanto, meus
amados e muito queridos irmãos, minha alegria e coroa, estai
assim firmes”, e de novo, “amados”. Essa deve ser a relação
entre o ministro e os membros da sua igreja, e qualquer
ministro que leia palavras como estas deve sentir-se humilde
e quase humilhado. Essa é a relação entre pastor e povo, este
inflamado e ardoroso amor. Muitos membros da igreja de
Filipos tinham entrado no reino como resultado da pregação
de Paulo, e por isso ele os descreve como sua alegria e coroa.
Eles constituem uma espécie de diadema que ele vai usar no
grande dia, uma coroa de vitória. Ele os ama calorosamente,
e aqui nos propicia um retrato extraordinário desta relação
íntima e amorosa.
Considerem também a notável humildade demonstrada
pelo apóstolo. Notem como ele se dirige a Evódia e a Síntique
- ele não ordena, roga. Este supremo evangelista e mestre,
este grande apóstolo, pede a estas duas mulheres que se unam.
Por favor, diz o apóstolo, não gostariam de...? Ele poderia
ter-lhes ordenado, mas não o faz; ele desce ao nível delas e
lhes pede. Isso nos permite, de passo, ter um esplêndido dis­
cernimento do caráter deste nobre homem de Deus.
Mas agora devemos dar atenção ao que estes três versícu­
los nos dizem acerca da natureza e do caráter da Igreja Cristã.
O problema do qual o apóstolo tem que tratar é a dificuldade
que, na igreja de Filipos, há entre estas duas mulheres, Evódia
e Síntique. Estas duas, por um motivo ou outro, estão em
conflito e estão causando dificuldade à igreja, e Paulo, amando
a igreja como ama, e desejoso como está de sua perfeição.

146
A Vida e a Ohra da Igreja

tem que lidar com esse problema. E o meio de que se serve


para fazê-lo é colocar a contenda no cenário da doutrina geral
da Igreja. Oh, se a Igreja Cristã sempre se lembrasse disso,
quantas dificuldades seriam evitadas! Todo e qualquer
problema, não importa quão pequeno e insignificante, sempre
deve ser colocado em seu contexto mais amplo. Em nenhuma
igreja existe problema isolado. Não se pode considerar este
ou aquele problema sem considerá-lo à luz da natureza da
Igreja, e é o que Paulo faz aqui.
Ele tem três coisas importantes para dizer acerca da
Igreja. A primeira relaciona-se com a tarefa da Igreja, que, de
acordo com o apóstolo, é “trabalhar no evangelho” . Ele se refere
a Evódia e a Síntique como “essas mulheres que trabalharam
comigo no evangelho”. Paulo já nos tinha apresentado esse
pensamento no início da Epístola; no capítulo primeiro, ver­
sículo 5, ele agradece aos filipenses a sua “cooperação no
evangelho desde o primeiro dia até agora” ; eles tinham traba­
lhado ou cooperado com ele - esse era o seu companheirismo
ou a sua parceria no evangelho. Depois, no versículo oito, ele
diz: “Porque Deus me é testemunha das saudades que de todos
vós tenho, em entranhável afeição de Jesus Cristo”; e também
no versículo sete: “Como tenho por justo sentir isto de vós
todos, porque vos retenho em meu coração, pois todos vós fostes
participantes da minha graça, tanto nas minhas prisões como
na minha defesa e confirmação do evangelho” ; e novamente
em 1:27; é a mesma coisa em todos estes versículos.
Portanto, evidentemente, essa é a tarefa primária da Igreja
Cristã. E uma tarefa missionária; essa é sempre a concepção
que Paulo tem da Igreja, e essa é a descrição que o Novo
Testamento faz dela. A Igreja é um corpo de pessoas que vivem
num mundo que está sob o controle do pecado e de satanás,
um mundo oposto a Deus, que inconscientemente se preci­
pita para a perdição. Em vista disso, qual será então o dever da
A

Igreja? E propagar o evangelho, é dirigir a palavra a esse

147
A V ID A D E PA Z

mundo e falar-lhe sobre o seu pecado e sobre a sua condição


desesperadora, falar-lhe sobre o Salvador e sobre o único
caminho da salvação - esse é o dever da Igreja. Paulo mesmo
viajou por aquele mundo antigo fazendo justamente isso, e
onde ele conseguia juntar um corpo de pessoas, formava
com elas uma igreja e as mandava sair e fazer a mesma coisa.
Ele dá graças a Deus pelos membros da igreja de Filipos
porque eles estão realizando essa obra com ele; eles o têm
ajudado; todos eles são participantes do seu ministério.
O livro de Atos está repleto disso. Lemos sobre isso não
somente com referência aos apóstolos, mas também aos cris­
tãos mais comuns, os quais se espalharam por toda parte em
conseqüência da perseguição, e por onde iam pregavam a
palavra. O registro da Igreja Primitiva, no século primeiro,
dá abundante e eloqüente testemunho do fato de que o
evangelho era difundido, em primeiro lugar, por cristãos
comuns. Falando com as pessoas sobre o evangelho e
vivendo-o em seu viver diário, eles o propagavam.
Entretanto, à parte disso, esta mesma passagem que
estamos considerando juntos aqui, imprime isso em nossas
mentes. Este “ verdadeiro companheiro de jugo” estava
realizando a mesma obra, junto com essas mulheres que tinham
trabalhado com Paulo no evangelho, e também com Clemente
e os outros cooperadores. A tarefa missionária da Igreja é
para todo cristão individual. O propósito é que todos nós
estejamos envolvidos nela. A Igreja correu o risco de perder
de vista esta particular verdade há muitos anos, quando as
igrejas e capelas viviam cheias e quando era moda e era coisa
popular ser cristão, e, certamente, há um perigo muito real
de esquecermos isso no presente. Pois nunca houve um
tempo, talvez, em que o cristão individual devesse dar-se
conta da importância da sua pessoa neste assunto como
hoje; em nossa vida diária e em nosso modo de viver, devemos
espalhar por todos os lados as boas novas.

148
A Vida e a Ohra da Igreja

Faz-se isso de muitas maneiras; nem todos devem fazê-lo


pregando do púlpito. Num sentido, todos podemos pregar o
evangelho, todos devemos engajar-nos na oração, oração pela
pregação e pela propagação do evangelho, e oração pelas
almas de homens e de mulheres. Depois, todos nós podemos
fazê-lo dando testemunho com nossas vidas e pela maneira
como conduzimos nossos negócios ou praticamos nossa
profissão. As pessoas verão que há algo diferente em nós, e
nesse caso podemos dar-lhes a explicação. Também podemos
trazer outros para ouvirem a palavra de Deus, e nós mesmos
podemos freqüentar reuniões onde a palavra de Deus é
pregada. Pois bem, cada um destes crentes de Filipos, diz-nos
Paulo, era um cooperador; todos estavam tomando parte na
obra e está bem claro que tomavam parte na obra por um ou
alguns desses meios.
Vocês sabem que tomam parte na pregação do evangelho
estando presentes? Sua presença encoraja o pregador. Eu
confesso francamente que nunca entendo bem aqueles que
acham que, numa época desesperadora como esta, para eles é
suficiente que freqüentem a casa de Deus, mas só ocasional­
mente. Quando aqueles que talvez tenham passado anos sem
vir à igreja entram na casa de Deus, ficam impressionados
com o fato de que muita gente ainda acredita em ouvir o
evangelho. Portanto, meu amigo cristão, se você acha que
não tem nenhum dom, permita-me garantir-lhe aqui e agora
que você é uma daquelas pessoas cujos nomes estão escritos
no Livro da Vida, e a sua presença num culto de adoração
é um grande auxílio.
Em acréscimo, o apóstolo deixa muito claro em todas as
suas Epístolas que havia aqueles que ajudavam na propaga­
ção do evangelho simplesmente prestando assistência às suas
necessidades pessoais. Observem, por exemplo, o homem
chamado Onesíforo. Em 2 Timóteo 1:16 Paulo dá graças a Deus
por esse homem porque, quando ele estava preso em Roma,

149
A V ID A D E PA Z

Onesíforo foi visitá-lo. Ora, Paulo era um homem poderoso e


proeminente, e vocês poderíam pensar que ele estava acima
de qualquer necessidade desse tipo, mas ele dá graças a Deus
por este homem que o visitou quando ele estava acorrentado
e animou o grande apóstolo, que se sentia um tanto deprimido.
Há um infindável número de maneiras pelas quais todos nós
podemos pregar o evangelho, tornar-nos colaboradores nele
e propagá-lo por toda parte.
Mas, acima de tudo, fazemos isso tornando o evangelho
atraente para outros e despertando interesse por ele pela
maneira como levamos a vida cristã. Podemos ser pessoas tais
que as pessoas que entram em contato conosco logo sabem
que há algo diferente em nós, e querem saber a explicação.
Todavia, permitam que eu passe a algo ainda mais
importante. Se trabalhar no evangelho é a grande tarefa da
Igreja, consideremos alguns fatores essenciais à realização dessa
tarefa, e nisso está o peso destes três versículos. Certas coisas
são essenciais, e a primeira é que devemos dar-nos conta do
Senhorio de Cristo. Notem qual é o anelo do apóstolo: “Rogo
a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor”
(VA: “ ...que tenham a mesma mente no Senhor”). Pois bem,
sempre temos que começar por esse ponto - pelo Senhorio de
Cristo. Todos os apelos do apóstolo foram feitos nestes termos.
Quando trata aqui desta pequena dificuldade que surgiu na
igreja de Filipos, Paulo não apela para que estas mulheres
acertem as coisas pelo bem dele. Ele não diz: “ Vocês estão
estragando a minha igreja” . Ele não lhes pede que façam isso
pelo bem da reputação dele. Nada disso! Ele diz: “no Senhor”,
por amor do Senhor. Tampouco apela que acertem as coisas
pelo bem delas próprias, ou pela reputação da igreja de
Filipos. O Novo Testamento nunca faz isso, sempre faz o seu
apelo em nome do Senhor. Talvez os cristãos do Novo Testa­
mento não estivessem tão interessados na igreja local como
nós. Nós gostamos de falar da nossa igreja ou da nossa

150
A Vida e a Ohra da Igreja

denominação, sempre nesse sentido pessoal. Mas o apóstolo


diz: “no Senhor”, e por esta boa razão: a obra é do Senhor.
Lembram-se daquela poderosa declaração do capítulo
primeiro, versículo 6? A obra é do Senhor. Ele a começou e,
diz o apóstolo no capítulo dois, é Ele que lhe dá continui­
dade. Deus está operando em vós “tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade”. E Ele que vai levá-la à
sua consumação final. Mais uma vez deveria tocar-nos o fato
de que, se tão-somente a Igreja tivesse tido o cuidado de
observar esse fato, quão diferente teria sido sua história! A
obra é do Senhor; nunca estaríamos na Igreja, não fora a
graça do Senhor. A Igreja não é nossa, é de Deus. Portanto, a
glória tem que ser dEle, a honra tem que ser dEle. Ele é que,
necessariamente, está no controle, e é preciso que toda e
qualquer decisão nossa seja tomada em Sua presença, pois
Ele é supremo. O Senhor comprou Sua igreja com Seu
sangue; ela Lhe pertence, e tudo, na Igreja, deve ser colocado
nessa relação. Se tão-somente cuidássemos de começar
desse ponto, muitas das nossas dificuldades desapareceríam
imediata e automaticamente.
A segunda coisa que somos exortados a fazer, o segundo
princípio essencial quanto à Igreja Cristã, é “estar firme no
Senhor”. Essa é também uma das grandes frases de Paulo. Ele
diz a mesma coisa à igreja de Corinto: “Vigiai, estai firmes na
fé; portai-vos varonilmente, e fortalecei-vos” (1 Coríntios
16:13). Ele já havia dito aos filipenses que fizessem isso:
“ Somente deveis portar-vos dignamente conforme o evangelho
de Cristo, para que, quer vá, e vos veja, quer esteja ausente,
ouça acerca de vós que estais num mesmo espírito” (Filipenses
1:27; VA: “...que estais fixos (ou firmes. Significa a mesma
coisa.) num só espírito”). Fiquem firmes no Senhor. Que será
que Paulo quer dizer quando emprega essa expressão?
Poderiamos dizê-lo assim: devemos estar firmes na fé. Vocês
vêem a seqüência? A tarefa da Igreja é uma tarefa missionária.

151
A V ID A D E FA Z

ela deve pregar o evangelho, ela deve proclamar estas boas


novas, levar a salvação aos homens e às mulheres, mas não
deve fazer isso se não estiver segura de sua fé. Paulo não diz,
estejam firmes juntos, mas, estejam firmes no Senhor, estejam
firmes na fé.
Não é meu desejo ser polêmico neste ponto, mas nos dias
atuais ouvimos muita prosa acerca do movimento ecumênico,
e com o espírito geral dessa prosa todos nós estamos de acordo.
Mas eu estou aqui para asseverar que mesmo antes disso vem
esta verdade: estar firme no Senhor. Como posso estar seguro
e firme junto com quem nega a divindade do meu Senhor?
Como posso estar firme, ombro a ombro e na mesma fileira,
com alguém que não crê em milagres e no sobrenatural? Como
posso alinhar-me com quem nega os aspectos substitutivos,
vicários, da expiação? Não, não somos exortados pelo após­
tolo meramente a que estejamos juntos e apresentemos uma
frente comum contra o inimigo, absolutamente não! Não é
esse o meu padrão, não é isso que nos une. E a verdade, a
verdade concernente ao Senhor. Estejam firmes, diz Paulo, não
se comprometam. Estejam firmes na verdade e apeguem-se
ao que sabem que é certo. Coloquem o Senhor em primeiro
lugar, porque, se forem fiéis a Ele e permanecerem firmes
nEle, poderão fazer coisas mais extraordinárias do que as
que poderia fazer um grande exército que esteja inseguro
acerca da sua verdade e da sua doutrina.
Além disso, se vocês não estiverem firmes no Senhor, não
terão um evangelho para pregar. Se a Igreja estiver incerta
quanto à sua mensagem, como poderá evangelizar? A força
da Igreja está em sua mensagem e no poder do Espírito Santo.
Ah, quantas vezes ela se esqueceu disso! Que tentação é con­
centrar-nos em sermos altamente organizados e pensar que,
se pudermos apresentar uma grande multidão, teremos im­
pacto sobre as pessoas. A história nega isso. As igrejas viviam
cheias há cem anos, mais ou menos, mas, apesar disso, hoje

152
A Vida e a Ohra da Igreja

enfrentamos a situação atual. Os números nunca convencem


ninguém do pecado. E a verdade que convence, e o que é


importante quanto a nós, é colocar isto em primeiro lugar.
Temos que estar firmes na verdade, na mensagem, pois sem
ela não temos poder. Podemos ser amáveis e bondosos uns
com os outros, porém isso não convencerá o mundo do
pecado, e não o trará a Jesus. Só a verdade pode fazer isso.
Esse é o segundo ponto.
Depois, o próximo princípio é que também devemos
“sentir o mesmo”, “ter a mesma mente”. “Rogo a Evódia, e
rogo a Síntique, que tenham a mesma mente no Senhor.” Mais
uma vez vocês vêem que perfeito retrato isso é da Igreja. Eis a
Igreja, sua tarefa é ser missionária, ela deve ter o cuidado de
fazer tudo para o Senhor e de ter a mensagem certa. Ela não
deve brincar com isso, nem ceder a nenhum compromisso,
em nenhum sentido. Esse é o perigo da heresia de que Paulo
tratou no capítulo três; é um dos perigos que vêm de dentro.
E outro perigo estava surgindo dentro da igreja de Filipos. É
evidente que essas duas mulheres estão em contenda uma
com a outra, estão tentando formar facções rivais, e o apóstolo
roga a elas que parem, porque tal coisa manchará a história,
transtornará o testemunho geral da Igreja e arruinará tudo o
que ele está tentando fazer.
Portanto, devemos ter todo o cuidado, não só de proteger­
mos das heresias que vêm de fora, mas também dos nossos
próprios espíritos, das tentações sutis que surgem de dentro
de nós mesmos e que podem estragar a obra. E desse modo
que o apóstolo fala disso negativamente. Não devemos ser
como Evódia e Síntique, que estavam formando facções. Elas
não falavam uma com a outra, estavam tentando corromper
as pessoas a seu redor; havia murmuração, e elas estavam se
recusando a trabalhar uma com a outra. Se tão-somente vocês
compreendessem, diz o apóstolo, que todos vocês estão
subordinados ao Senhor e que nenhum de vocês estaria na

153
A V ID A D E PAZ

Igreja se não fosse a Sua graça, vocês não estariam fazendo


esse tipo de coisa - parem com isso!
No entanto, permitam que eu lhes mostre como ele trata
do problema positivamente; vou simplesmente fazê-los notar
as palavras interessantes que Paulo emprega. “E peço-te
também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas
mulheres que trabalharam comigo no evangelho”. Bem, tem
havido m uita disputa sobre quem é este “ verdadeiro
companheiro”, mas o que o apóstolo está dizendo é o seguinte:
“Você, caro cooperador, ajude essas mulheres a se confrater­
nizarem”. E me enleva particularmente a descrição que o
apóstolo faz aqui deste seu cooperador. Ele o descreve como
“verdadeiro companheiro de jugo” (VA). Vocês vêem a figura,
não vêem? Pensem naquele madeiro grosso, cruzado por
uma barra, um pedaço de couro em cada ponta e um boi em
cada lado da tora. Os dois ficam jungidos, presos ao jugo, e
o segredo de um bom trabalho com o arado está em que os
dois avancem juntos. E ali estava um homem que o apóstolo
descreve como um verdadeiro companheiro de jugo. Ele
sempre agia corretamente, e puxava o arado junto com Paulo;
é desse espírito que a Igreja tem necessidade.
Paulo nos diz também que anteriormente essas mulheres
faziam a coisa certa. “E peço-te também a ti, meu verdadeiro
companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam
comigo no evangelho.” Essa foi a tragédia de Evódia e de
Síntique; houve tempo em que elas se alegravam em ajudar,
em que elas trabalhavam com o apóstolo no evangelho. Bem,
é uma pena que a Versão Autorizada (inglesa) use aqui o verbo
trabalhar, porque neste versículo Paulo se refere a outros como
“colegas de trabalho”, “companheiros no trabalho”, e no grego
a palavra não é a mesma. Eis o que Paulo está de fato dizendo:
ajude essas mulheres que no passado foram atletas comigo.
Essa figura lembra um grupo de atletas que formavam uma
equipe - lembrando os jogos olímpicos ou algo parecido - e o

154
A Vida e a Ohra da Igreja

segredo era que a sua primeira lealdade era para com a sua
equipe. Você não participava da corrida para conquistar honra
para si, você atuava numa equipe; o grupo era de atletas que
eram colegas, companheiros. Paulo está dizendo que no pas­
sado Evódia e Síntique haviam sacrificado tudo pelo interesse
da igreja e do Senhor. Ajude-as a voltarem a isso, diz Paulo.
Esse deve ser o espírito de equipe: devemos trabalhar
juntos; ou, como Paulo diz mais adiante; devemos ser com­
panheiros no trabalho, cooperadores, colaboradores. Ou talvez,
para colocar a questão no seu mais alto nível, a nossa ambição
sempre deve ser a de tornar-nos como Paulo. Certamente vocês
notam o espírito de amor que o envolvia e de que modo ele
amava os membros desta igreja. Certamente notam sua
humildade. Como temos visto, em vez de dar uma ordem a
essas mulheres, ele lhes roga, ele quase derrama lágrimas
quando desce ao nível delas. “Peço-lhes”, diz Paulo. “Por favor,
acertem isso.”
Notem também a sabedoria de Paulo e sua discrimina­
ção. Ele não dá ordens às duas mulheres, tle pleiteia com elas,
ele lhes roga; mas, quando conta com um homem como este,
que ele descreve como seu verdadeiro companheiro de jugo,
ele insta com ele.* E disso que a Igreja Cristã necessita -
discriminação na maneira de lidar com as pessoas. Por que
é tão importante este espírito? Porque, se a igreja não agir
bem neste aspecto, agravará o Espírito Santo, e se ela agravar
o Espírito Santo, perderá seu poder e não poderá ser uma
igreja missionária. Além disso, se a igreja perder o seu
espírito, isto será uma negação da mensagem que ela prega,
e, acima e além disso tudo, estará desonrando o Senhor, e,
afinal de contas, a Igreja é dEle.

' No grego são empregadas duas palavras diferentes, e a segunda não é tão
enfática. A New International Version emprega aqui as palavras “plead”
(pleitear) e “ask” (pedir, solicitar) que talvez até esclareçam melhor o
argumento do Dr. Martyn Lloyd-Jones. Nota dos editores do original inglês.

155
A V ID A D E PA Z

Assim, pois, são essas as coisas essenciais - o senhorio de


Cristo, estar seguro e firme na verdade e manter em guarda os
nossos espíritos contra todo tipo de tentação sutil. Contudo,
permitam que eu conclua com o últim o grande ponto
apresentado por Paulo - as palavras de incentivo para a reali­
zação desta tarefa. Quão gloriosas são! Paulo diz: “E peço-te
também a ti... que ajudes essas mulheres...e com Clemente, e
com os outros cooperadores, cujos nomes estão no livro da
vida”. Estaria indo longe demais quando sugiro que o que o
apóstolo estava realmente dizendo era isto: “Não somente essas
mulheres e Clemente, e todas aquelas outras pessoas - esqueci
seus nomes, não importa, esses nomes estão escritos no livro
da vida” ? Não conheço maior encorajamento que esse. A
caso vocês se lembram do que o nosso Senhor disse a Seus
discípulos que tinham saído para pregar? Eles estavam cheios
de orgulho e de altivez; eles disseram: “Senhor, pelo teu nome,
até os demônios se nos sujeitam”, mas o nosso Senhor lhes
disse: “Não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos;
alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos
céus” (Lucas 10:17,20).
Amado povo cristão, essa é a maior ambição e o maior
privilégio que podemos ter - que os nossos nomes estão ou
estejam escritos no livro da vida. Aí está o seu encorajamento.
Deus conhece todas as coisas. Pode ser que o mundo nunca
saiba, e que mesmo a Igreja nunca saiba o que você vem
fazendo. Pode ter sido uma obra silenciosa, realizada por trás
dos bastidores, e o diabo talvez o tente e lhe diga: “Por que
continuar com isso? Por que se incomodar com isso? Todo o
mundo fala do homem que ocupa o púlpito e de alguns ofi­
ciais conspícuos, mas, vale a pena continuar fazendo o seu
trabalho? Fique em casa e não faça nada!” Mas, permita que
eu 0 faça lembrar-se disto: o seu nome está escrito no livro
da vida. O ministro pode não saber nada do que você está
fazendo, e talvez ninguém mais o saiba, mas Deus sabe.

156
A Vida e a Ohra da Igreja

Nada do que você faz fica sem registro, e seu Pai, que vê
secretamente, o recompensará abertamente. Lembre-se
também de que Ele é o Juiz; os livros serão abertos para Ele,
e Ele é absolutamente justo. Não pense que alguma outra
pessoa está tendo mais crédito que você. Isso pode ser ver­
dade na terra, mas quando você estiver diante dEle, não será.
Você receberá justiça, todos os seus humildes atos são
registrados e conhecidos. Deus é absolutamente justo, você
não tem por que temer. Não se aborreça com o que o
homem possa fazer-lhe, o Senhor é o nosso juiz, e Ele é o
nosso guardião.
Além disso, permita-me lembrá-lo de que a sua recom­
pensa é certa e gloriosa. Se o seu nome está escrito naquele
livro, você vai para a glória e, em última instância, não
importa muito o que o homem acaso lhe tenha feito. Como
Paulo disse uma vez por todas no fim daquele extraordinário
capítulo quinze da Primeira Epístola aos Coríntios: “ Sabendo
que o vosso trabalho não é vão no Senhor” . Portanto:

Trabalha, gasta e desgasta-te;


Seja teu gozo fazer a vontade do Pai.
- H. Bonar

Seus nomes estão escritos no livro da vida. Vendo esse privilégio


e apegando-se a ele, sigam avante com o seu trabalho, para
a glória do Senhor.

157
12
Regozijai-vos Sempre^
“Regozijai-vos sempre no Senhor, outra vez digo, regozijai-vos. ”
- Filipenses 4:4

Ao passarmos agora a considerar a conhecida exortação


do apóstolo Paulo, é importante que lembremos que toda a
história da Igreja Primitiva e, na verdade, todas as Epístolas
do Novo Testamento, só podem ser entendidas à luz do
derramamento do Espírito Santo sobre a infante igreja de
Jerusalém. E um dos eventos históricos pertencentes à série
de grandes e cruciais eventos registrados nas Escrituras,
estando ligado à história dos filhos de Israel no Velho Testa­
mento, à vocação de Abraão, ao êxodo do Egito, à travessia
do Mar Vermelho e à travessia do Jordão. O derramamento
do Espírito está relacionado com uma série de eventos
como a encarnação, o nascimento de Cristo, Sua morte. Sua
ressurreição e Sua ascensão.
O Pentecoste é um evento que devemos manter firme­
mente em nossas mentes, porque à parte dele não podemos
ter esperança de entender nem o próprio livro de Atos, nem
tampouco nenhuma das Epístolas do Novo Testamento.
Alguém disse que os Atos dos Apóstolos bem poderiam ser
chamados “Atos do Espírito Santo”, e, seja assim ou não, é
evidente que o Espírito Santo dominou a vida da Igreja
Primitiva. Em Atos nota-se a constante repetição de frases

' Este sermão foi pregado no dia de Pentecoste, em 1948.

158
Regozijai-vos Sempre

como “o Espírito não disse”, ou “o Espírito disse”, ou “o


Espírito indicou” - a vida da Igreja era dominada pelo
poder do Espírito Santo.
E pode-se ver a mesma coisa nas Epístolas do Novo
Testamento. A classe de vida retratada nelas e em Atos é a
classe de vida produzida pela ação e operação do Espírito
Santo. Para usar a expressão de Paulo em Gálatas, capítulo 5,
a vida cristã é o fruto do Espírito e da Sua ação e operação.
No Novo Testamento às vezes isso é declarado explicitamente
- temos um exemplo disso na citada passagem de Gálatas,
capítulo 5, onde Paulo diz especificamente: “O fruto do
Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fé, mansidão, temperança” (versículos 22,23). Esse é
o tipo de personalidade, ou o tipo de vida que o Espírito
Santo produz. Mas, mesmo onde isso não é declarado expli­
citamente, essa doutrina está implícita em toda parte nas
Epístolas. A vida que elas descrevem, e os apelos que elas
fazem em prol da vida cristã, quase todos são feitos nos termos
da doutrina do Espírito Santo - ou em outras palavras, elas
tomam a referida doutrina como ponto pacífico.
Permitam-me oferecer-lhes uma perfeita ilustração do que
estou querendo dizer. Vejam este capítulo quatro de Filipenses,
que estamos estudando. Aqui, nesta passagem, o Espírito Santo
não é mencionado pelo nome, de modo que, se vocês a lerem
superficialmente, poderão dizer que esta passagem não tem
nenhuma relação com a doutrina do Espírito Santo. Mas espere
um momento! Sobre o que Paulo está falando nesta parte?
Nos três versículos iniciais ele menciona o amor - “Portanto,
meus amados e muito queridos irmãos”; e por certo vocês se
lembram de que os versículos 2 e 3 nada mais são do que um
apelo dirigido a Evódia e a Síntique para que se amem e
cooperem uma com a outra. Além disso, Paulo apela a todos
os outros membros da igreja para que as ajudem. Os três
versículos iniciais são uma grande exposição sobre o amor.

159
A V ID A D E PA Z

Chegamos depois aqui, ao versículo 4: “Regozijai-vos


sempre no Senhor” - gozo, alegria. Depois, o próximo versí­
culo diz: “ Seja a vossa eqüidade (VA: “moderação”) notória a
todos os homens” - longanimidade. E a seguir - “Não estejais
inquietos por coisa alguma” ; e “a paz de Deus” - amor, gozo,
paz, longanimidade. Essa é uma perfeita ilustração do ponto
que estou defendendo. As vezes Paulo expõe explicitamente
esta doutrina da vida do Espírito Santo, mas implicitamente
ela está em toda parte. Isso é fundamental para o nosso
entendimento de toda a doutrina neotestamentária da vida
cristã. Este capítulo nada é senão outra exposição que Paulo
faz sobre o fruto do Espírito - amor, gozo, paz etc. Portanto,
esse é o substrato essencial para o entendimento destas
particulares palavras do versículo quatro. Aqui Paulo coloca
sua ênfase num destes frutos do Espírito - gozo, alegria.
“Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-
-vos”.
Ora, não há nada, talvez, que seja mais típico da doutrina
do Novo Testamento do que justamente essa injunção. É algo
que se vê percorrer todo o Novo Testamento, do princípio ao
fim. Nada era mais característico da vida dos cristãos primi­
tivos do que este elemento de alegria. O nosso Senhor, vocês
se lembram, tinha prometido a Seus seguidores que lhes daria
uma alegria que o mundo não poderia tirar. Disse Ele: “ Vocês
vão ficar decepcionados quando me virem preso e crucificado,
mas a sua alegria lhes será devolvida” (João 15:11; 16:22).
Vocês não podem ler o livro de Atos sem impressionar-se
com a admirável maneira como estas pessoas eram realmente
capazes de alegrar-se nas circunstâncias mais adversas e difí­
ceis. Em Atos lemos que algumas dessas pessoas foram
detidas, encarceradas e açoitadas, e quando saíram louvaram
a Deus por terem sido consideradas dignas de sofrer por Seu
nome - regozijavam-se na tribulação. Quando vocês exami­
narem a história toda, verão que, apesar da malignidade dos

160
Regozijai-vos Sempre

seus inimigos, apesar da contradição do mundo a seu redor,


elas continuavam a regozijar-se.
Depois, quando lerem as Epístolas, verão por toda parte
esta grande e dominante qualidade de alegria na vida das
pessoas. Leiam como Paulo se expressa a respeito em Romanos
14:17: “Porque o reino de Deus não é comida nem bebida,
mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” . Pedro, escre­
vendo a pessoas semelhantes sobre o Senhor Jesus Cristo,
diz: “Ao qual, não havendo visto, amais; no qual, não o vendo
agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso”
(1 Pedro 1:8). E até no livro do Apocalipse, se examinamos a
sua mensagem geral, em vez de nos perdermos nos detalhes,
veremos que é um livro cujo propósito é fazer só uma coisa:
ensinar o povo daquele tempo e dos períodos subseqüentes
da história da Igreja a se regozijarem, apesar da adversidade,
e das dificuldades, tribulações e inquietações.
Assim é em toda parte, mas, como já assinalei, esse é
particularmente o tema desta Epístola aos Filipenses. O real
motivo de Paulo para escrever a carta era ensinar a estas
pessoas como regozijar-se em toda espécie de circunstâncias;
e daí vimos que ele destacou várias coisas que tendem a privar
os cristãos da sua alegria e que tratou delas uma após outra.
Para começar, os filipenses estavam preocupados com ele; isso
está no capítulo primeiro. Depois, várias dificuldades dentro
da igreja tendiam a criar discórdia, e assim ele tem que
endireitar isso, e o faz oferecendo-nos uma grande ilustração,
que é de Cristo em Sua humilhação e encarnação - “Haja em
vós esta mesma mente que havia também em Cristo Jesus”
(VA). Depois, eles ficaram inquietos ao saberem da doença
de Epafrodito; Paulo nos fala sobre isso no capítulo dois. A
seguir, vimos no capítulo três que ele passa a tratar da grande
questão das heresias e do modo errôneo de viver, e de como
a fé errônea sempre pode privar as pessoas da sua alegria.
E então vem esta disputa entre Evódia e Síntique.

161
A V ID A D E PAZ

Este é, pois, o grande tema de Paulo, e ele o retoma.


Podemos comparar esta carta como uma espécie de sinfonia.
O tema é a questão da alegria; Paulo executa as suas variações
sobre ela, e depois volta ao tema. Ele já nos disse no início do
capítulo três que esse é seu tema: “Resta, irmãos meus, que
vos regozijeis no Senhor...”. Mas não terminou ali. “Regozijai-
-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos”, diz ele
em 4:4. E assim ele vai repetindo isso. Mas por quê? Não estaria
claro que era o que Paulo desejava para estas pessoas acima de
tudo mais? Esta era sua herança como cristãos, e, para Paulo
era uma tragédia que algum cristão fosse infeliz. A infelicidade
era uma negação da sua profissão de fé. Faltava-lhes algo, eles
estavam sendo privados do que há de mais glorioso no que diz
respeito à fé, e por isso o apóstolo não pode deixar isso de lado.
Ele não sabia se ia viver muito tempo - ele dizia que isso era
muito duvidoso, e não sabia se preferia partir ou permanecer
aqui. Mas, praticamente ele disse: “O que quer eu faça, o que
me interessa é que vocês estejam certos, e que ninguém os
prive desta alegria no Espírito Santo, possível para vocês e
para todos os verdadeiros crentes no Senhor Jesus Cristo” .
Então, ao abordarmos agora o texto, permitam que eu
pergunte: conhecemos esta alegria? Temo-la em nossas vidas?
Seria ela um fato vivenciado em nossa experiência? Nós nos
regozijamos no Senhor? Examinemos isso juntos, então, tendo
em mente a doutrina geral do Espírito Santo e da Sua vinda
sobre a Igreja no dia de Pentecoste. Permitam-me sugerir o
primeiro princípio: a natureza da alegria. Qual seria o caráter
desta alegria? Notemos aqui dois aspectos: o primeiro é que
esta alegria é algo positivo. E preciso dar ênfase a isso porque
sempre devemos diferenciar entre esta alegria de caráter
cristão e a mera resignação negativa. Com o apóstolo, continuo
repetindo este aspecto porque penso que, num dia e num tempo
como este, um dos perigos mais sérios que enfrentamos é o
de confundir o espírito estóico de resignação negativa com

162
Regozijai-vos Sempre

a coragem, a fortaleza e a alegria cristãs. Mas Paulo não está


defendendo a idéia de que eles devem adotar uma atitude
negativa face às coisas que estão acontecendo com eles. Não, é
algo essencialmente positivo: “Regozijai-vos sempre... outra
vez digo, regozijai-vos”. Vocês podem ouvi-lo trombeteando
como num toque de reunir. A alegria cristã é estimulante e
vibrante; jamais devemos pensar nela como algo negativo e
passivo.
Ou, para expressá-lo de outro modo, não é mero estado de
indiferença. Isso também deve ser repetido constantemente
porque a questão é, toda ela, muito sutil. Imagino que quanto
mais científica a humanidade se torna, mais propensa se torna
à sutil tentação de confundir soluções psicológicas com solu­
ções espirituais. Permitam-me explicar isso. A criança mostra
os seus sentimentos, seja de prazer, seja de desprazer, quer de
satisfação, que de insatisfação, e os povos mais primitivos
fazem exatamente a mesma coisa. Mas quando ficamos mais
velhos, e quando o mundo todo fica mais velho, há a tendência
de esconder os nossos sentimentos. Até certo ponto, isso é
perfeitamente certo, mas pode ser um perigo muito real, e se
torna de fato um perigo quando nos leva a sentir e a pensar
que a atitude cristã para com os problemas é uma atitude de
indiferença, como se as pessoas dissessem a si mesmas: “Bem,
o único meio de ir pela vida sem me machucar é vestir um
mecanismo protetor de indiferença, que diz: “Não importa
o que o povo diz, ou o que possa acontecer comigo”. A idéia
é que, se você se cingir de uma tela de indiferença, você
não reagirá violentamente às coisas que lhe aconteçam.
Isso, porém, não é o que o apóstolo tem em mente aqui.
Os que se escondem atrás de uma tela de indiferença não
têm alegria; também não a têm os estóicos, com a sua
resignação negativa. Paulo está falando sobre uma alegria
positiva; é ativa, e contém um elemento emocional. Ela não
nos refreia, há poder e vida nela - é um espírito de exultação.

163
A V ID A D E PA Z

“Regozijai-vos” - é seguramente algo ativo e positivo!


A segunda característica que devo anotar é que é uma
alegria específica. E alegria no Senhor - “Regozijai-vos sempre
no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos” . O Novo Testamento
nunca se restringe a exortar as pessoas a que sejam felizes, nem
lhes diz que se alegrem por lhes mostrar simpatia psicológica.
Isso é coisa que o Novo Testamento nunca faz, e é por isso que
eu torno a insinuar que não há, talvez, maior perversão do
evangelho de Jesus Cristo do que o ensino psicológico que se
apresenta em termos cristãos. Uma apresentação do evangelho
que queira que nos alegremos, ou que pretenda fazer algo que
nos leve a sentir-nos mais felizes por algum tempo, é uma
negação do evangelho de Cristo. Devemos regozijar-nos no
Senhor. Não há necessidade de nenhum mecanismo estóico
aqui, é algo direto e imediato, e é em termos do Senhor.
Noutras palavras, a alegria que cabe ao cristão experi­
mentar é uma alegria solidamente baseada na verdade cristã
e na doutrina cristã. Notem que foi só depois que Paulo lhes
disse, “Estai firmes no Senhor”, que ele lhes disse, “Regozijai-
-vos no Senhor”, e qualquer coisa que não esteja baseada na
doutrina concernente ao Senhor Jesus Cristo, não é alegria.
Há muitos meios de fazer-nos felizes. Na verdade, você
pode tomar bebida alcoólica e pode sentir-se feliz e cheio de
alegria - mas isso não tem nenhuma relação com a alegria
do Senhor. Paulo não está falando sobre alegria num sentido
geral, mas de uma alegria específica. Ele não está mera­
mente interessado em se somos felizes ou não; seu interesse
é que, porque somos cristãos, devemos regozijar-nos.
E assim, tendo delineado dessa forma a natureza da ale­
gria cristã, permitam-me dizer algo sobre os obstáculos a esta
alegria. São muitos, e, obviamente, não posso tratar deles todos
num só estudo, pelo que eu vou simplesmente procurar destacar
os mais óbvios, mencionados neste contexto.
Primeiramente, há um obstáculo, para algumas pessoas.

164
Regozijai-vos Sempre

quanto à questão geral do mecanismo desta alegria, quanto à


maneira pela qual ela nos vem, como esta alegria se nos torna
acessível. Algumas pessoas têm uma dificuldade intelectual
inicial com relação a isto porque aqui, neste versículo, o
apóstolo nos confronta e nos diz: “Regozijai-vos no Senhor”,
“E, todavia”, diz alguém, “em Gálatas, capítulo 5, Paulo declara
que o “ fruto do Espírito é amor, gozo (ou alegria), paz...”. Como
pode ser isso algo que eu faço e, no entanto, ser fruto e operação
do Espírito?” Conhecemos bem o argumento, ele tem seguido
seu curso na Igreja desde os seus primórdios, o aparente conflito
entre os dois tipos de vida cristã, a vida de atividade e a vida
de passividade, de meditação; o contraste entre os que crêem
que o que devemos fazer na vida cristã é estar sempre engaja­
dos nalguma atividade, e os que crêem na contemplação e na
concepção mística, monástica, da vida cristã.
Mas, quando vocês examinarem as Escrituras mais
atentamente, verão que não há contradição. Observem Gálatas,
capítulo 5: antes de Paulo nos dizer que “o fruto do Espírito é:
amor, alegria...”, ele já havia dito: “Andai no Espírito e jamais
satisfareis à concupiscência da carne” (5:16, ARA). As duas
coisas estão juntas no mesmo capítulo. Por conseguinte,
conciliamos a aparente contradição da seguinte maneira - é
quando praticarmos estas coisas que o fruto do Espírito se
manifestará em nossa vida. E perfeitamente certo que, por
mim mesmo, eu não posso criar ou produzir alegria, porém,
se eu der ouvidos e obedecer aos ditames e à direção do
Espírito Santo dentro de mim, se eu praticar a vida cristã,
se eu puser em ação a doutrina do Espírito Santo, então o
Espírito Santo fará produzir-se este fruto, a alegria, em
minha vida. Não podemos encontrar alegria meramente
apressando-nos à atividade ou meramente postando-nos em
contemplação. Tentar somente uma destas duas possibilidades,
certamente levará a infortúnio. Precisamos fazer ambas as
coisas: temos que meditar na verdade e temos que praticá-la,

165
A V ID A D E PA Z

e, quando fizermos isso, o Espírito Santo inundará de alegria


nossas vidas. Isso não é só teoria, e não é somente ensino do
Novo Testamento. Se vocês lerem as vidas dos santos, verão
essa verdade confirmada abundantemente. Nós mesmos
podemos confirmá-la, graças a Deus; é uma experiência
literal, fatual e atual na vida cristã.
A segunda causa que impossibilita o cristão de ter esta
alegria que há em Cristo é não estar numa correta relação com
Ele; é por isso que dou ênfase à expressão “no Senhor”. Muitos
não conhecem a alegria atualmente por esta única razão: eles
nunca se deram conta da sua pobreza, da sua vacuidade e da
condição de morte em que se encontram. Muitos que nunca
experimentaram a alegria da salvação são pessoas que nunca
enxergaram a sua plena e total necessidade da salvação. Isso
pode parecer paradoxal, mas quão verdadeiro é! O nosso
Senhor o expressou perfeitamente no Sermão do Monte:
“ Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o
reino dos céus... Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque serão fartos” (VA). Vejam vocês, a únicas
pessoas que vão ser saciadas são as que têm fome e sede; as
pessoas que vão ter saúde e riquezas espirituais eternas são
as que se vêem como mendigos na esfera espiritual. Há
muitos que nunca experimentam a alegria do Senhor porque
não se vêem como miseráveis pecadores. A única maneira
de ser feliz em Cristo é sentir-se desesperadamente infeliz
sem Ele.
Noutras palavras, há pessoas que nunca experimentaram
a alegria da salvação porque confiam em si mesmas e em suas
obras. Ainda acham que podem viver a vida cristã por suas
próprias forças, e que podem acertar sua relação com Deus.
Mas se vocês quiserem ficar cheios da alegria do Senhor,
terão que estar absolutamente vazios, terão que ver-se como
pecadores desprezíveis e desesperados, terão que saber que
nada do que possam fazer terá valor, mas que terão que vir a

166
Regozijai-vos Sempre

Ele em sua total pobreza e desvalimento. Então provavel­


mente conhecerão a alegria do Senhor, e não antes disso. Ou,
para dizê-lo de outro modo: tais pessoas nunca se lançaram
inteiramente sobre Ele. São esses os dois elementos essenciais
para o recebimento desta alegria - experimentar a completa
miséria resultante da convicção de pecado, como o Novo
Testamento no-lo revela em toda a nossa desesperança e afli­
ção; e, depois, vir de mãos vazias a Cristo e lançar-nos à Sua
misericórdia e à Sua bondade, ao Seu amor e compaixão,
e dizer-lhe -

N ada em minhas mãos eu trago,


Somente à Tua cruz me agarro.
- Augustus Toplady

Se você tem alguma coisa em suas mãos, nunca a terá cheia


do que dEle venha; você tem que vir sem absolutamente
nada, e então receberá a alegria do Senhor.
E isso é confirmado abundantemente pela história sub-
seqüente da Igreja Cristã. As pessoas que dizem as coisas mais
terríveis sobre si mesmas, como são por natureza, são as que
mais se regozijam em Cristo Jesus. São as que dizem, “Vil e
cheio de pecado eu sou” que têm podido dizer, “Abundante
graça em Ti se encontra”. E as que nunca admitiram que são
vis pecadores são as que nunca se regozijaram em Cristo
Jesus e jamais conheceram a abundância do viver cristão.
Temos que estar certos quanto a esta realidade, temos que
estar em correta relação com Cristo, ou, se não, jamais
conheceremos a alegria e a felicidade, a paz e o amor, que
Ele pode dar.
E isso me leva ao próximo obstáculo. Há muitos que têm
falta da alegria do Senhor porque não mantêm correta relação
com Ele. Vocês não somente devem entrar nessa correta relação,
devem mantê-la, e farão isso em seu espírito e em sua atitude

167
A V ID A D E PA Z

uns para com os outros. Estas duas mulheres que estavam em


contenda na igreja certamente perderam sua alegria; você não
poderá ter a alegria do Senhor se o seu espírito não for sau­
dável e puro. Isso agrava o Espírito e Ele se vai. Portanto, se
quisermos ter a alegria do Senhor, temos que manter o espírito
bom e certo.
Além disso, também devemos manter a prática correta -
temos que andar e viver retamente. O que Paulo disse aos
gálatas deixa isso óbvio. Se somos culpados de algumas prá­
ticas e de alguns pecados, não podemos conhecer a alegria do
Senhor; como disse o nosso Senhor: “Não podeis servir a
Deus e a mamom” (Mateus 6:24). Se você quer a alegria do
Senhor, tem que abandonar outras coisas. Ande no Espírito,
deixe-se guiar pelo Espírito, e experimentará a alegria do
Espírito.
E do próximo ponto mencionado pelo apóstolo - “ Seja a
vossa eqüidade notória a todos os homens” - ele já havia tratado,
e por isso ele passa à injunção subseqüente: temos que manter
contato com Cristo pela oração e pela comunhão. “As vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração
e súplicas, com ação de graças”. Portanto, não devo só vigiar
meu espírito, também tenho que passar algum tempo conver­
sando com Ele. Essa é a fonte da alegria; somente Ele pode
fazer-nos verdadeiramente felizes. Quão tolos somos nesta vida
cristã! Pomos a nossa confiança em muitas outras coisas, mas
o segredo dos santos sempre foi o tempo que eles passavam
em conversa e em comunhão com o Senhor, e meditando nEle.
Temos que manter esse contato; temos que ir à origem e fonte
da alegria, e temos que ir lá bem dispostos e freqüentemente.
E depois, também, temos que manter este contato com
Ele nunca nos deixando tiranizar pelas circunstâncias. Essa
é a causa mais comum da perda da alegria - a tirania dos
eventos e das circunstâncias. Muitas são as coisas que se inse­
rem entre nós e Ele e que nos privam da sua presença e da Sua

168
Regozijai-vos Sempre

alegria. Oh, estas coisas que tendem a aborrecer-nos e a fazer


com que a ansiedade nos derrube! Ficamos pensando nelas,
elas crescem sobre nós, e nos preocupamos com elas, e, agindo
assim, nós nos sentimos miseráveis, e nos ocorrem a depressão
e ouros males semelhantes.
São essas, então, algumas das coisas que nos privam da
alegria. Passemos agora ao lado positivo. Se essas são as coisas
que nos privam da alegria, como podemos mantê-la? E a
resposta é muito simples: temos que evitar todas as coisas que
nos impedem de concentrar-nos em Cristo - “Regozijai-vos
sempre no Senhor...” . Contemplem-nO, considerem-nO,
meditem nEle, em Sua Pessoa, em Sua obra, em tudo o que
Ele fez. Sua morte. Sua ressurreição e Seu derramamento
do Espírito Santo. Considerem também as coisas que Ele
vai realizar, todo o esquema e plano do Novo Testamento
para a vida, e a suprema e gloriosa esperança da qual nada
nos poderá privar. E isso; meditem nEle, em Sua Pessoa, e
em toda a glória da Sua obra.
E, finalmente, permitam-me perguntar: poderia esse
estado de alegria continuar? Seria sempre possível experi­
mentá-lo? Paulo responde: sim, sempre. “Regozijai-vos sempre
no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.” Não se pode dizer
isso de nenhuma outra coisa; todas as outras fontes de alegria
e de felicidade necessariamente nos faltarão, mais cedo ou
mais tarde. Algumas pessoas são bastante tolas para encontrar
sua alegria no trabalho. Enquanto ele dura, tudo bem, e, à parte
do evangelho, não é uma coisa ruim. Mas, meu amigo, vai
chegar o dia em que você perderá seu trabalho - você enve­
lhecerá ou ficará doente. Ver tais pessoas é algo trágico. Eram
tão felizes quando trabalhavam, mas, quando são postas de
lado não sabem o que fazer da vida. Para a sua alegria e sua
felicidade elas dependiam dos seus esforços e do seu empenho.
Pensem então nos homens e nas mulheres que só são felizes
quando têm sucesso. Nossa réplica a eles é: “Inquieta pousa a

169
A V ID A D E PAZ

cabeça que usa uma coroa” - há sempre outros em busca dessa


coroa. Você pode estar tendo sucesso, mas observe aquela
outra pessoa que está subindo rápido e que logo o baterá e
o superará. Você vai cansar-se, suas energias vão lhe faltar, e
outra pessoa tomará o seu lugar. Essa é uma tragédia nas vidas
dos homens e das mulheres em suas profissões. Eles são felizes
nos dias do seu sucesso e das suas realizações, enchem-se de
alegria quando chegam ao ápice da sua profissão, mas depois
começam a descer pelo outro lado, e é muito mais difícil
descer do que subir. Que patéticas se tornam tais pessoas!
Que insensatez deixar que a nossa alegria dependa das nossas
circunstâncias, porque vivemos num mundo do qual é certo
dizer; “Mudança vejo em tudo, e corrupção” .^ Mais cedo ou
mais tarde as circunstâncias forçosamente farão você descer.
Não ponha sua confiança nelas.
Não, há somente uma coisa que nunca falha: é regozijar-
-se no Senhor. E nunca falha porque está sempre voltado para
a alma e seu destino; está sempre voltado para algo que é certo
e seguro, algo que o mundo nunca pode afetar porque está em
Cristo e o temos em Cristo. Esta alegria está fora do alcance de
todos aqueles outros poderes, e você a põe em ação desta
maneira: você diz: “As circunstâncias certamente poderão
mudar e falhar comigo, mas nada pode afetar a minha relação
com Cristo. Não importa o que o mundo me faça, o mundo
não poderá afetar a minha relação com Ele” . Lembra-se do
argumento de Paulo? “Porque estou certo de que, nem a morte,
nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as
potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a
profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar
do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”
(Romanos 8:38,39).
Noutras palavras, você pode estar na prisão, mas ainda ali

^Salmos e Hinos antigo, n°. 361, segunda estrofe. Nota do tradutor.

170
Regozijai-vos Sempre

você encontra Cristo. Você pode ser alijado e despojado de


tudo, mas não da sua alma e do seu destino eterno, nem da
glória que o espera em Cristo - estas coisas estão além das
circunstâncias. Para ir mais longe, permita-me mostrar-lhe
que você pode regozijar-se no Senhor mesmo no fracasso,
mesmo no pecado. Seria essa uma declaração atrevida? Não,
“Regozijai- vos sempre no Senhor” - até mesmo quando falhei
ou pequei? Sim, e desta maneira - se como cristão eu cair em
pecado, o Espírito Santo me convencerá desse pecado, e isso
me porá em miseráveis condições. Mas, se eu de fato for guiado
pelo Espírito, não ficarei parado nisso. Voltarei para Cristo,
voltarei ao Calvário, ao sangue ali derramado, o sangue que
ainda me purifica, e, tendo voltado, saberei que fui lavado
e purificado, e então me regozijarei. Se eu sou cristão de
verdade, se o Espírito Santo habita em mim, Ele necessa­
riamente cuidará da minha alegria, e quando eu voltar
dominado pela contrição e pela vergonha, penitente e cônscio
da minha indignidade. Seu amor é suficientemente grande
para cobrir o meu pecado e o meu fracasso. Então volto, e vejo
que Seu amor é maior do que eu pensava. Faço uma nova
descoberta do Seu amor e da sua misericórdia e compaixão, e,
em meu pecado e em meu fracasso, sou impelido a regozijar-
-me como sempre. Regozije-se sempre no Senhor, na vida,
na morte, nos pecados ou nos fracassos, aconteça com você o
que acontecer, sejam quais forem as suas circunstâncias.
“Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-
-vos”.

171
13
Moderação

“Seja a vossa eqüidade (moderação) notória a todos os homens. ”


- Filipenses 4:5

Quando lemos as diversas Epístolas do apóstolo Paulo,


nada é mais instrutivo e interessante do que observar a maneira
pela qual as declarações e anotações, que aparentemente são
casuais, são, não obstante, partes integrantes de um sistema
lógico muito definido, e têm uma seqüência lógica de idéias
que evidentemente prendiam a mente do apóstolo quando ele
as estava escrevendo. Quando vocês lêem os versículos iniciais
deste capítulo quatro, podem ter chegado, à primeira vista, à
conclusão de que têm aqui uma série de injunções notáveis,
apresentadas uma após outra sem nenhuma ordem definida,
expostas pelo apóstolo à medida que vinham à sua mente. Mas,
examinadas mais a fundo, vemos que cada uma destas
injunções específicas e particulares está relacionada com as
outras, e que todas cooperam para formar um todo composto e
completo.
Noutras palavras, a injunção que estamos considerando
juntos agora decorre, como penso que vocês verão, diretamente
da que estivemos considerando em nosso estudo anterior sobre
o versículo quatro, onde Paulo diz: “Regozijai-vos sempre no
Senhor; outra vez digo, regozijai-vos” . Ora, aqui, esta injunção
segue-se diretamente àquela porque, como penso que todos
nós só temos que concordar, nada tem tanta probabilidade de

172
Moderação

privar-nos da nossa alegria como algum conflito em nossos


próprios espíritos ou em nossa relação com outras pessoas.
Permitam-me salientar novamente que a dominante idéia de
Paulo nesta Epístola é a questão geral da alegria, que é o que
realmente o preocupa, e por isso ele fala sobre as diversas coisas
que tendem a privar-nos da alegria, e sucede que esta é
uma delas. Devemos dar atenção, negativamente, aos nossos
próprios espíritos e às nossas condições pessoais, e fazê-lo
especialmente em relação às outras pessoas.
Mas também devemos examinar isso de outro ponto de
vista. O apóstolo não estava só preocupado com a felicidade e
a alegria dos membros da igreja de Filipos, estava igualmente
preocupado em que eles manifestassem e retratassem o caráter
cristão em toda a sua plenitude. Temos visto alguma coisa sobre
o seu amor por estas pessoas; ele fala deles como seus irmãos,
“meus amados e muito queridos irmãos, minha alegria e coroa”.
Sim, mas por maior que fosse seu amor por eles, seu amor
por seu Senhor era ainda maior, e este amor sempre o concitava
e o impelia a escrever estas diversas cartas e exortações aos
cristãos primitivos, a fim de que vivenciassem a vida cristã
em toda a sua plenitude e em toda a sua glória. Ele queria
mostrar-lhes, se posso fazer uso de tal expressão, a obra das
mãos de Deus na salvação. No estudo anterior argumentei de
passagem no sentido de que os cristãos infelizes ou que se acham
em condições miseráveis, não somente são uma paupérrima
propaganda do evangelho de Jesus Cristo, mas também
difamam a glória do Senhor, se não estão mostrando a
possibilidade da vida cristã em sua plenitude. E se isso foi
uma verdade quanto à injunção a que nos regozijemos no
Senhor, é igualmente verdade com respeito à injunção que
agora estamos considerando, porque é parte essencial do caráter
cristão que tornemos a nossa eqüidade (VA:moderação)
conhecida de todos os homens. E tão vital para o caráter cristão
que exercitemos e demonstremos moderação, como que nos

173
A V ID A D E PA Z

regozijemos sempre nos gloriemos e exultemos no Senhor


sob todas as condições.
Assim, pois, estas injunções são ligadas e inter-relaciona-
das muito estreitamente. Você não poderá ter uma verdadeira
alegria no Senhor se estiver errado neste ponto, e o seu caráter
cristão não estará completo se mais este aspecto também não
estiver presente.
Bem, parece que uma questão muito interessante para
discussão, numa reunião fraternal na igreja ou em qualquer
encontro de pessoas cristãs preocupadas com a vida cristã,
seria esta: qual é mais difícil, a injunção do versículo 4, ou
esta, do versículo 5? Que é mais difícil, regozijar-nos sempre
no Senhor, ou tornar conhecida a nossa moderação a todos os
homens? Recomendo-lhes que meditem nesse tema. Posso
sugerir algumas idéias a vocês, quando embarcarem nesse
processo. No que me concerne, esta injunção do versículo cinco
é em tudo a mais difícil das duas. Acho mais fácil regozijar-
-me sempre no Senhor do que fazer com que a minha
moderação sempre seja conhecida de todos os homens. Por
que será? Sugiro estas duas razões: no versículo 4 o apóstolo
nos exorta a um certo estado, a uma certa condição. Preocupa-
-se com o que devemos ser, mas aqui ele se preocupa com a
aplicação desse estado, e penso que vocês concordarão que
aplicar uma verdade geralmente é muito mais difícil do que
sustentar ou possuir a verdade propriamente dita.
Permitam-me explicar o que estou querendo dizer. Estou
certo de que todos nós sabemos algo sobre isto - estou sozinho
em meu quarto, lendo a Bíblia, e passo por esta injunção que
me manda regozijar-me no Senhor. Então penso em todos os
argumentos que o apóstolo me fornece para eu me regozijar
no Senhor, e ali, inteiramente a sós, posso regozijar-me. Mas
é muito mais difícil eu continuar a regozijar-me quando me
encontro com meus companheiros, homens e mulheres, e
quando enfrento aflição e dificuldade. Aceitar teoria geralmente

174
Moderação

é mais fácil do que praticá-la, e neste versículo nós estamos na


área da aplicação. Ou permitam que eu me expresse desta
maneira: sinto que regozijar-me sempre no Senhor é mais fácil
do que tornar a minha “moderação conhecida a todos os
homens” porque, quando sou exortado a regozijar-me sempre
no Senhor, sou exortado a expressar algo, ao passo que nesta
outra exortação sou exortado a praticar restrição; e não hesito
em dizer que a pessoa restringir-se é mais difícil do que
expressar-se. Há algo essencialmente positivo no ato de
regozijar-se no Senhor; você quer cantar e louvar a Deus; todo
o seu ser se envolve. Sim, mas quando lhe dizem: “veja que a
sua moderação seja conhecida por todos os homens”, o elemento
de restrição entra em ação. Não é que isso seja negativo, (vou
mostrar que é positivo), mas há nele um elemento negativo.
Ou deixem-me dizê-lo assim: a injunção do versículo 4 é
mais fácil do que a do versículo 5 porque no versículo 4 sou
exortado a olhar para o meu Senhor, ao passo que no versí­
culo 5 sou exortado a ser semelhante a meu Senhor. É fácil
regozijar-se no Senhor enquanto você O contempla e medita
nEle, enquanto você pensa na obra realizada por Ele, e quando
você O vê objetivamente em Sua obra. Sim, mas aqui me é
solicitado que eu faça uma coisa mais difícil, sou solicitado a
reproduzi-10. Sou solicitado a conduzir-me e a proceder
exatamente como Ele o fez quando esteve na terra, enfrentando
as provações e as contradições da vida que eu próprio tenho
que enfrentar. Assim, pois, aqui, em muitos aspectos, topa­
mos com uma das mais altas exigências do evangelho cristão.
Penso que podemos dizer com segurança que, em certo sentido,
o evangelho nunca nos chama para maior altura do que o faz
aqui quanto à nossa vida, à nossa conduta e à nossa prática. Na
verdade, eu diria que me é muito mais fácil regozijar-me,
mesmo nas tribulações, do que tornar a minha moderação
conhecida a todos os homens.
Por isso agradeço a Deus que o apóstolo, fiel a seu método.

175
A V ID A D E PA Z

como ele o é sempre, sem exceção, me passa a injunção mas


também a acopla à doutrina. Não há cristão pelo qual eu me
lamente mais do que aquele que ainda não se deu conta da
total importância da doutrina. Já notamos que o apóstolo
nunca apresenta injunção sem ao mesmo tempo ministrar
doutrina. No versículo 4 ele não estava simplesmente dizendo
“ regozijai-vos”, mas “ regozijai-vos no Senhor”, essa é a
doutrina; é “no Senhor”. E aqui também o apóstolo não diz
apenas, “ Tornai a vossa moderação conhecida a todos os
homens” ; ele acrescenta; “Perto está o Senhor” . Essa é uma
doutrina extraordinária, e eu dou graças a Deus por ela,
porque só um pleno entendimento e uma completa percepção
do que Paulo quer dizer com essa doutrina podem realmente
capacitar-me a pôr em prática a injunção. Isso é bastante
característico deste apóstolo. Ele nunca nos pede que façamos
algo sem ao mesmo tempo mostrar-nos como fazê-lo. Ele
nunca nos mostra a altura a que temos que subir sem indicar-
-nos a fonte do poder que nos habilitará a subir; nunca vem
uma sem a outra. O Novo Testamento não está interessado
em que tenhamos um certo tipo de vida só por tê-la, a
doutrina é fundamental e absoluta.
Então, com isso em mente, examinemos a injunção
diretamente. Que é que Paulo quer dizer com moderação?
Tratemos primeiro dos aspectos negativos, antes de passarmos
aos positivos. Com moderação Paulo não se refere apenas a
uma boa natureza, a algo próprio da vida animal. Ele não está
falando de psicologia ou de temperamento. Tampouco, em
segundo lugar, está se referindo ao que podemos chamar
frouxidão, flacidez e falta de definição. Isso não pode ser o
que o apóstolo quer dizer com moderação porque ele já nos
dissera; “Estai firmes no Senhor” . Nunca nos esqueçamos de
que todos estes imperativos devem ser tomados juntos; esta é
uma injunção de uma série. As pessoas das quais se espera
que sejam moderadas são as que permanecem firmes no

176
Moderação

Senhor, custe o que custar. Não são negocistas; não são


homens e mulheres que, por não crerem em nada em particular,
podem ser indulgentes com relação a todas as outras pessoas.
Tampouco são pessoas que, porque lhes falta propósito,
acreditam numa espécie de coalizão com todas as outras
pessoas. Não, elas estão firmes no Senhor. Portanto, devemos
descartar-nos, uma vez por todas, da idéia de que a modera­
ção é uma espécie de indiferença, algo vago, uma atitude
nebulosa para com a verdade, a vida e tudo mais; a idéia de
que é o tipo de pessoa que é “tudo para todos” num sentido
errado e indigno; o homem que está sempre pronto para
ceder, custe isso o que custar, “paz a qualquer preço”. Nada
disso! Nada está mais longe do grande e magnificente caráter
do apóstolo. Não, é muito mais difícil que isso. Há pessoas,
concedamos, que parecem ter nascido desse jeito, mas vocês
vêem que, obviamente, o apóstolo não está interessado nisso,
porque está escrevendo para muitos tipos de pessoas. Havia
toda espécie de pessoa na igreja de Filipos, como há todos
os tipos de pessoas na Igreja atual, e, portanto, a injunção
de Paulo não deve ser elaborada nessa linha.
Podemos então expressar-nos positivamente desta forma:
esta palavra “moderação” significa controle de si mesmo e
controle do próprio espírito, e é demonstrada por autocontrole,
domínio próprio, poder da pessoa sobre o seu espírito e sobre
a sua atividade. Significa não exercer pressão ao máximo sobre
o direito pessoal deste ou daquele - essa é a primeira idéia
inerente nestas palavras. Devo estar livre do espírito que in­
siste no peso máximo em toda e qualquer situação. Significa
a capacidade de diferenciar entre o que é de real importância
e 0 que não é, manter-se firme como uma rocha pelas coisas
vitais, mas ser razoável com relação às coisas não vitais.
Significa não pressionar o meu poder de negociar até à
última gota de sangue, significa eu estar disposto, às vezes, se
necessário, a ter menos do que me é devido por amor da

177
A V ID A D E PA Z

igreja e por amor dos outros, mas, acima de tudo, por


amor do Senhor. “ Tornai a vossa moderação conhecida a
todos os homens” : não abarcando tanto nem ficando tão
arrebatado que o seu espírito fique completamente envol­
vido. Noutras palavras, não é tanto o que você faz como o
modo como o faz.
Permitam-me expressar o ponto de outra maneira. Indubi­
tavelmente, esta palavra “moderação” transmite a idéia de
paciência, isto é, uma condição na qual a pessoa não se ofende
facilmente. Aí estão vocês, diz o apóstolo; vocês são, juntos,
membros da igreja de Cristo, e eu os exorto a que tenham tal
controle dos seus espíritos, da sua mente e de todo o seu ser
que não se abatam nem se ofendam facilmente. Já examina­
mos isso, lembrem-se, no caso de Evódia e Síntique - pessoas
melindrosas, muito sensíveis, sempre prontas a ofender-se.
Todos conhecemos algo disso, o Senhor tenha misericórdia
de nós! E uma grande, maravilhosa e nobre qualidade do
caráter cristão esta qualidade de não se ofender facilmente.
Alguns têm controle e domínio de si mesmos, de modo que,
ainda que lhes lancem dardos, esses não encontram nenhum
ponto sensível. Permitam-me esclarecer mais uma vez que
não estou defendendo uma espécie de indiferença estóica, ou
uma condição negativa, passiva. Não, a moderação é uma
qualidade essencialmente ativa. Se você a possui, significa
que você tem a graça cristã em sua personalidade, de modo
que, quando vêm esses dardos, você pode recebê-los de algum
modo, sem se aborrecer com eles - sendo longânimo, capaz de
suportá-los com paciência, sem se ofender facilmente.
Todavia, a questão vai mais longe. Significa que você
tem consideração pelos outros. Acaso vocês vêem os passos da
definição desta palavra? Primeiro, você, por sua conta e risco,
está disposto a ter menos do que lhe é devido. Segundo, quando
você entra em contato com pessoas irritantes e difíceis, você
tem uma espécie de amortecedor de atritos, com relação a elas.

178
Moderação

Ah, sim, mas você deve ir além desse ponto, se deseja que
a sua moderação seja conhecida por todos os homens: você
deve considerá-las ativa e positivamente; deve tentar encon­
trar escusas para elas e procurar uma explicação para a sua
conduta! Você poderia dizer: “Bem, afinal de contas, elas estão
passando por um período difícil”, ou, “Creio que essa pessoa
nasceu com um temperamento difícil” . Você fica o tempo todo
tentando explicar tais pessoas para você mesmo, tentando
aparar a conduta desagradável e difícil. Você se esforça ao
máximo possível para ter boa relação com as pessoas e para
suprir qualquer deficiência que haja nelas - tendo consideração
pelos outros e tentando entendê-los e ajudá-los de fato, e
procurando facilitar as coisas para eles. Isso constitui uma
parte essencial desta palavra “moderação” .
Permitam que eu me estenda ainda mais. Notem o tipo
de pessoa que o apóstolo é, notem a qualidade da sua per­
sonalidade - uma personalidade que nunca reage violenta ou
impetuosamente a coisa alguma. Seja a sua moderação
conhecida de todos os homens, em todos os tempos e circun­
stâncias e sob todas as condições. Permitam-me elaborar o ponto
assim: o cristão nunca reage impetuosamente em nenhuma
área, nem mesmo com respeito à alegria. A sua moderação
deve ser conhecida de todos os homens, até nos períodos de
felicidade. Não preciso demorar-me nisto. Haveria coisa
mais óbvia e mais triste no mundo moderno do que a falta
de moderação dos homens e das mulheres que estão “gozando”
a vida? Eles se deixam arrebatar, pondo-se logo fora de
controle, intoxicados pela alegria. Mas o cristão nunca deve
ser assim, é preciso haver um elemento de controle até mesmo
em sua alegria, e mais ainda, talvez, em sua tristeza. Em
tempos de tristeza e pesar, o cristão nunca reage muito
impetuosamente. Não me entendam mal, não estou dizendo
que ele não deve ser natural. Jamais houve o propósito de que
0 cristão fosse antinatural, e não permita Deus que alguma

179
A V ID A D E PAZ

vez pensemos isso. Os cristãos não experimentam somente


alegria; também experimentam tristeza e dor - talvez mais
que qualquer outras pessoas - sim, mas essa tristeza e dor não
os domina. Este é o problema: muito freqüentemente esta­
mos alegres demais, no topo do monte, ou nos afundamos nas
profundezas do desespero. Mas os cristãos não devem ser
assim, jamais devem reagir impetuosamente - sempre deve­
mos diferenciar entre o autocontrole do cristão e o controle
do estóico. O estóico aceita as coisas, mas a moderação do
cristão é jovial, animada. Há muito estoicismo no mundo
moderno; o mundo mostra um admirável autocontrole, mas,
que coisa fria é! Não há bom ânimo nesse controle. Não é desse
tipo de controle que Paulo está falando. Vocês devem ser, ao
mesmo tempo, controlados e felizes, e também devem ter,
mesmo essa alegria, com moderação. Permitam que eu lhes
ofereça uma ilustração perfeita disso. Paulo, escrevendo à
igreja de Corinto, disse: “Além disto, eu, Paulo, vos rogo,
pela mansidão e benignidade de Cristo...” (2 Coríntios 10:1)
- a mansidão e benignidade de Cristo! E essa é a exortação
que aqui o apóstolo faz a estes cristãos filipenses.
De novo desejo salientar o fato de que todos nós somos
chamados para mostrar esta moderação. Paulo não está
meramente escrevendo a algumas pessoas no sentido de que
sejam equilibradas pelo temperamento. Não, mesmo que
você seja naturalmente impulsivo, isso não importa, você é
exortado a ver que a sua moderação seja conhecida por
todos os homens. Talvez alguém pergunte se isso é possível
para todo tipo de personalidade; não seria isso pedir o
impossível? Replico que é possível para todos. Permitam
que eu lhes dê uma prova disso. Fui forçado a lembrar-me
disso quando era chamada a atenção para o fato de que
transcorria o aniversário daquele grande estadista cristão,
William Gladstone. Lembro que uma vez li sobre algo que a
senhora Gladstone disse a John Morgan sobre o seu marido.

180
Moderação

Disse ela: “Você deve lembrar-se de que ele tinha dois lados,
um impetuoso, impaciente e irreprimível, e o outro, de
completo autocontrole, sendo capaz de descartar-se de tudo,
exceto do grande assunto central, capaz de pôr de lado o
que era debilitante e perturbador. Ele conseguia exercer
este domínio próprio e este bom senso em meio à luta desde
a idade de vinte e três ou vinte e quatro anos, primeiro
pela força natural do seu caráter, e, segundo, por muita luta,
em oração, para chegar ao cumprimento desta injunção:
“Tornai a vossa moderação conhecida a todos os homens”. E
Gladstone conseguiu isso, esta maravilhosa graça do caráter
cristão.
Mas, naturalmente, o supremo exemplo é o do nosso
Senhor. O apóstolo Pedro expressa este fato com muita clareza
quando diz: “Porque para isto sois chamados; pois também
Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que
sigais as suas pegadas. O qual não cometeu pecado, nem na
sua boca se achou engano. O qual, quando o injuriavam, não
injuriava, e quando padecia, não ameaçava, mas entregava-se
àquele que julga justamente” (1 Pedro 2:21-23). Pouco antes
Pedro já dissera: “Vós, servos, sujeitai-vos... aos senhores, não
somente aos bons e humanos, mas também aos maus... Porque,
que glória será essa, se, pecando, sois esbofeteados e sofreis?
Mas se, fazendo o bem, sois afligidos e o sofreis (VA: “suportais
pacientemente”), isso é agradável a Deus” (1 Pedro 2:18-20).
E isso - o nosso Senhor era assim; sigam Seus passos, sejam
como Ele; “Tornai a vossa moderação conhecida a todos os
homens.”
Assim, pois, permitam-me fazer uma segunda pergunta:
como isso há de manifestar-se, e a quem? E a resposta é que
nós o manifestamos na prática, o revelamos em nossas vidas
e em nossos procedimentos para com os outros. Sim, deixem-
-me salientar mais uma vez que devemos mostrar esta
moderação a todos os homens - a todos, sejam bons ou não.

181
A V ID A D E PA Z

sejam amáveis e gentis ou cruéis e intratáveis; quer sejam


despóticos, quer sejam os nossos melhores amigos.
Não somente isso, devemos mostrar moderação em
todas as esferas e em cada departamento da vida. Devemos
mostrá-la quando estamos combatendo pela fé e estamos
firmes no Senhor. Noutras palavras, devemos dedicar-nos à
verdade, sim, e fazê-lo desta maneira: devemos vigiar nossos
espíritos, para que não haja em nós nenhum rigor exagerado
e nenhum legalismo por picuinhas. Devemos aprender a
diferenciar entre o que é vital e o que é relativamente sem
importância. Devemos expressar e mostrar esta moderação
em nossas atividades ou em nossa profissão. Devemos agir de
modo que as pessoas vejam, pela maneira como ordenamos
as nossas atividades, que somos cristãos. Não significa que
devemos tolerar o mal no que se refere à lei. Não, o próprio
apóstolo Paulo apelou para César e questionou quando foi
lançado na prisão sem julgamento. Não significa isso, mas
significa que sempre nos certificamos de que não estamos
lutando só por nossos interesses pessoais, mas sim pela
verdade - e como é difícil, às vezes, fazer isso! Como é difícil
diferenciar entre zelo santo ou indignação justa, e a mera
expressão de um espírito áspero, crítico, condenatório. O
texto nos diz que nos portemos com moderação para com
todos os homens e em todas as ocasiões, e eu diria que não
há maior testemunho do poder e da graça do evangelho do
que os homens e as mulheres que mostram a sua moderação
dessa forma.
Permitam-me concluir com uma palavra de encoraja­
mento que o apóstolo nos provê para habilitar-nos a fazer
isso. Como poderemos alcançar tal estado? Que será que existe
que possa ajudar-nos? Eis a resposta: “Perto está o Senhor” .
Este é o modo como o apóstolo nos diz que devemos aprender
cada vez mais a ser indiferentes para com este mundo e seus
caminhos. Como povo cristão, temos uma idéia inteiramente

182
Moderação

nova da vida, vemos as coisas sempre à luz do Senhor, vemos


tudo à luz da salvação que Ele realizou, por Sua vida. Sua
morte, Sua ressurreição e Sua ascensão. Vemos isso tudo à
luz do fato de que Ele vai voltar à terra, vai vencer todos
os Seus inimigos e vai introduzir uma ordem inteiramente
nova. O Senhor está perto.
Existem aqueles que procuram argumentar no sentido
de que com estas palavras Paulo quis dizer que o Senhor está
sempre perto, mas todo o contexto é certamente contra isso. E
uma verdade, Ele sempre está perto, mas em muitos aspectos
esta é uma verdade maior. Em tudo o que fazemos, devemos
sempre lembrar-nos de que o Senhor pode retornar a qual­
quer momento. Sua vinda sempre está próxima, sim, mas não
sabemos quando, e, por isso, devemos viver sempre com esta
percepção de que Ele vem. E isso funciona desta maneira: se
nos lembrarmos sempre de que o Senhor vem, sempre nos
lembraremos de que este mundo e esta vida nada são senão
uma espécie de escola preparatória; somos apenas peregrinos
e estrangeiros aqui, estamos aqui hoje, e amanhã teremos
partido. Muito bem, pois, se tivermos sempre isso em mente,
já teremos andado mais da metade do caminho rumo à
demonstração desta moderação. Em geral as pessoas pensam
que esta vida e este mundo são os únicos, e é por isso que elas
lutam pelo derradeiro tostão; mas, que são sessenta, setenta
ou oitenta anos comparados com a eternidade? “O Senhor
está perto” - lembrem-se disso.
Estas palavras também nos lembram que Ele é o Juiz, e
não nós. Quão prontos estamos para julgar, mas Ele é o Juiz.
O Senhor está perto. Eu não sou o juiz, e quando me lembro
disso, muitos problemas são resolvidos para mim. Não somente
isso; também sou levado a lembrar esta verdade: nós mesmos
seremos julgados, e teremos que prestar contas de nossas vidas
e de nossos feitos; portanto, tenha cuidado em seus julgamen­
tos. Lembre-se do que Cristo disse a respeito: “Não julgueis.

183
A V ID A D E PA Z

para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que
julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes
medido vos hão de medir a vós” (Mateus 7:1,2). Então, quando
estiver inclinado a julgar, não se esqueça de que você vai ser
julgado. O Senhor está perto e, quando você se der conta
disso, você estará dispostos a deixar de lado muitíssimas
coisas desta vida e deste mundo.
Acrescenta, porém, que não devemos ficar ansiosos por
obter a retribuição ou a justiça a que achamos que temos
direito. O Senhor mesmo julga os que praticam o mal, ou
qualquer pessoa que acaso nos tenha prejudicado aqui, porque
todos e cada um terão que comparecer perante Cristo. Não se
aborreça, não pense em ter vingança imediata. Paulo diz: “Não
vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque
está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o
Senhor” (Romanos 12:19). Se você crer nisso, sentirá pena
das pessoas que lhe fizeram mal, tremerá ao imaginá-las
comparecendo diante de Deus, e sua moderação já estará
em ativa operação.
Ou, finalmente, permita-me coloca-lo da seguinte maneira:
você pode estar passando por um duro período - Paulo não
menospreza isso - as pessoas talvez estejam sendo muito cruéis
e maldosas com você, sua situação pode realmente ser aflitiva.
Talvez você tenha que suportar algo terrível, talvez pessoas que
estão implicando constantemente com você, dia após dia, noite
após noite. Mas, seja o que for que você tenha que sofrer ou
suportar nesta vida, o Senhor está perto e está preparando
uma recompensa maravilhosa para você. Quando Ele vier e
quando o reino de glória tiver início, você estará com Ele, estará
reinando com Ele, e estará compartilhando sua alegria e toda
a Sua glória. Meu amigo, se o seu nome está escrito no céu,
se você pertence a Cristo, sua recompensa é absolutamente
certa. Há na glória, à sua espera, uma alegria que você não
pode imaginar nem conceber. Portanto, lembre-se de que

184
Moderação

Ele vem, o Senhor está perto - mantenha os olhos postos


nisso.
Noutras palavras, mais uma vez, você é exortado a fazer
justamente o que o nosso Senhor fez. Eis o que a Epístola aos
Hebreus diz a respeito dEle: “o qual, pelo gozo que lhe estava
proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta” (Hebreus
12:2). Ou considere como Tiago o expressa: “ Sede, pois, irmãos,
pacientes até à vinda do Senhor. Eis que o lavrador espera o
precioso fruto da terra, aguardando-o com paciência, até que
receba a chuva temporã e a serôdia. Sede vós também paci­
entes, fortalecei os vossos corações; porque já a vinda do
Senhor está próxima. Irmãos, não vos queixeis uns contra os
outros, para que não sejais condenados. Eis que o juiz está
à porta” (Tiago 5:7-9).
Seria necessário dizer mais alguma coisa? Isso não é
uma peça de psicologia. Seja moderado em todas as coisas.
“Perto está o Senhor.” Toda a sua vida está nesse cenário.
Quando você se der conta de que Ele e o Juiz, e não você,
quando você se der conta da vingança que Ele vai mani­
festar contra o pecado e o mal, e contra todos os que têm sido
maus e que Lhe têm feito mal, a Ele e a todo o Seu povo, ore
por aqueles que vão sofrer. Mas, acima de tudo, contemple
estar com Ele, você passando a eternidade em Sua gloriosa
presença e compartindo a alegria colocada diante dEle.
“Tornai a vossa moderação conhecida a todos os homens.”

185
14
A Paz de Deus
“N ão estejais inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições
sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplica,
com ação de graças. E a p a z de Deus, que excede todo o entendimento,
guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus. ”
- Filipenses 4:6,7

Esta é, sem dúvida, uma das declarações mais nobres, mais


grandiosas e mais consoladoras das que se acham em qualquer
parte de toda a literatura existente. A tentação é dizer isso a
respeito de muitas passagens das Escrituras, e, contudo, do
ponto de vista da experiência prática, nada contém maior
conforto para o povo de Deus do que estes dois versículos. Em
nosso estudo anterior vimos que um espírito inquieto, o desejo
de seguir o nosso próprio caminho, muito freqüentemente nos
priva da nossa alegria; e aqui, nestes versículos, Paulo passa a
considerar outro fator, talvez mais problemático do que
qualquer dos outros que tendam a privar-nos da alegria do
Senhor, fator que podemos bem descrever como a tirania das
circunstâncias, ou das coisas que nos acontecem. Quantas são,
e com que freqüência elas nos sobrevêm! Aqui o apóstolo trata
desta questão de maneira final. Quando se lê a Bíblia completa,
é extraordinário notar quantas vezes este assunto é tratado.
Pode-se firmar uma boa tese dizendo que todas as Epístolas
tratam deste particular problema, e se destinavam a ajudar os
cristãos primitivos a lidar com ele. Eles viviam num mundo
muito difícil e eles tinham que suportar muita coisa; e estes

186
A Paz de Deus

homens, chamados por Deus, escreveram suas cartas a fim de


lhes mostrar como sohrepor-se a essas coisas. Esse é o grande
tema do Novo Testamento; mas também se vê no Velho
Testamento. Vejam os Salmos três e quatro, por exemplo. Com
que perfeição eles expõem isso tudo. O grande problema da
vida é, num sentido, a pessoa deitar-se para repousar e dormir.
“Eu me deitei e dormi”, disse o salmista (Salmo 3:5). Todos
podem deitar-se, mas a questão é: você consegue dormir?
O salmista se descreve cercado de inimigos, dificuldades e
tribulações, e o seu extraordinário testemunho é que, a
despeito disso, graças à sua confiança no Senhor, ele se
deitava, dormia e acordava salvo e seguro de manhã. Por
quê? Porque o Senhor estava com ele e cuidava dele.
Esse é 0 tema de tão grande parte da Bíblia, tanto do Velho
Testamento como do Novo que, obviamente, é um assunto de
suprema importância. As vezes penso que, talvez, nada proveja
uma prova tão completa da nossa fé cristã como justamente
essa questão. Uma coisa é você dizer que subscreve a fé cristã;
uma coisa é você, tendo lido a Bíblia e tendo abstraído a sua
doutrina, dizer: “ Sim, eu creio nisso tudo, essa é a fé pela qual
eu vivo” . Mas nem sempre é exatamente a mesma coisa
encontrar aquela fé triunfante e vitoriosa e se manter num
estado de alegria, quando tudo parece ir contra você e o leva
para bem perto do desespero. Isso é uma prova sutil e delicada
da nossa posição por ser uma prova essencialmente prática.
Está muito longe da esfera da teoria pura e simples. Você está
na posição, você está na situação, essas coisas estão acontecendo
com você, e a questão é: para que serve a sua fé nesse ponto?
Ela diferencia você dos que não têm fé? Obviamente, isso é
algo de enorme importância, não somente para a nossa paz e
para o nosso conforto, mas também, e especialmente numa
época como esta, do ponto de vista geral do nosso testemunho
cristão. Hoje há pessoas que nos dizem que não se interessam
por doutrina, e que não estão muito interessadas em ouvir o

187
A V ID A D E PA Z

que temos para dizer, mas, se elas vêem um grupo de pessoas


que parecem ter algo que as capacita a triunfar na vida,
imediatamente se interessam. Isso porque elas são infelizes e
se sentem frustradas e inseguras, e temerosas. Se, quando se
acham nessas condições, elas vêem pessoas que parecem ter
paz, calma e tranqüilidade, ficam prontas a observá-las e a
ouvi-las. Por conseguinte, tanto do ponto de vista da nossa
felicidade pessoal e da nossa manutenção da alegria do
Senhor, como também do ponto de vista do nosso testemunho
pela palavra e pela vida nestes dias difíceis, convém que
consideremos com muita atenção o que o apóstolo tem para
dizer nestas magistrais declarações acerca da maneira de lidar
com a tirania das circunstâncias e das condições.
O assunto parece dividir-se de modo bastante simples.
Antes de tudo, ele nos diz o que devemos evitar. Há algumas
coisas que devemos evitar, diz o apóstolo - “Não estejais
inquietos por coisa alguma” . Essa é uma injunção negativa -
algo que se deve evitar. Agora, entendamos bem o termo
“inquietos” (VA: “preocupados”). “Não estejais preocupados
com coisa alguma”, diz a Versão Autorizada (inglesa), mas vocês
poderão ver outra tradução, e melhor: “Não estejais ansiosos
por coisa alguma”. “Preocupados”, no original inglês, significa
“cheios de cuidado”, que significa ansiedade, cuidado fatigante,
solicitude nervosa, ter a tendência de meditar demais nas
A

coisas ou a ponderá-las demoradamente. E a palavra que o


nosso Senhor empregou no Sermão do Monte - por certo
vocês se lembram daquela parte do capítulo seis de Mateus:
“Não andeis cuidadosos...” . Significa “não ficar ansioso
demais, não meditar ou ponderar demais, não ter essa
solicitude nervosa por isto ou por aquilo” . Esse é o sentido
do termo.
E importante, digamos de passagem, que entendamos
que a Bíblia em parte alguma nos ensina a não fazer provisão
para a vida, ou a não fazer uso do bom senso. Ela não

188
A Paz de Deus

incentiva a ociosidade. Certamente vocês se lembram do que


disse Paulo, escrevendo à igreja de Tessalônica: “ Se alguém
não quiser trabalhar, não coma também” (2 Tessalonicenses
3:10). Portanto, o termo “preocupados”, usado aqui, não se
refere a uma previdência prudente, mas deve ser interpre­
tado como ansiedade importuna, molesta e fatigante. E isso
que o apóstolo nos diz que devemos evitar a todo custo.
Notem, porém, que ele não fica só nessa injunção negativa.
Há uma profunda peça de psicologia bíblica aqui. O apóstolo
nos mostra que temos a tendência de entrar nesse estado de
ansiedade nervosa, mórbida, opressiva. Observem que ele nos
diz que tudo isso se deve à atividade do coração e da mente -
“A paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os
vossos corações e os vossos sentimentos (VA: “vossas mentes”)
em Cristo Jesus”. O coração e a mente é que tendem a produ­
zir este estado de ansiedade, esta preocupação e solicitude
mórbida.
Isso é psicologia profunda, e dou ênfase a isso porque
mais adiante vamos ver quão vital é que, na aplicação que o
apóstolo nos faz do remédio, captemos e entendamos a sua
explicação psicológica da condição em foco. O que o apóstolo
está dizendo é, noutras palavras, que podemos controlar
muitas coisas em nossas vidas e fora das nossas vidas, mas não
podemos controlar os nossos corações e as nossas mentes. “Esta
condição de ansiedade”, diz Paulo, “é algo que, num sentido,
está fora do seu controle; acontece independentemente de
você e apesar de você.” E como isso é comprovado pela experi­
ência! Recorde qualquer ocasião na qual você estava nesta
condição de ansiedade. Lembre-se de que não era possível
controlar isso. Você estava deitado e acordado, e daria o mundo
inteiro, se pudesse, só para dormir, para aquietar o coração e a
mente e fazê-los parar de revolver-se e de pensar, mantendo
você desperto. Mas a sua mente não o deixa dormir, o seu
coração não o deixa dormir. O coração e a mente. Temos aqui.

189
A V ID A D E PAZ

na verdade, psicologia profunda, e o apóstolo não hesita em


usá-la. Aqui, mais uma vez, passamos pelo maravilhoso
realismo das Escrituras, sua sinceridade absoluta, seu reconhe­
cimento do homem como ele é. E assim o apóstolo nos diz
que dessa forma o coração e a mente, ou, se vocês preferirem,
as profundezas do ser, tendem a produzir este estado de
ansiedade. Aqui, “coração” não significa apenas a sede das
emoções, significa realmente a parte central da personalidade.
“Mente” pode-se traduzir por “pensamento”. E doloroso,
mas todos nós temos experimentado esta condição e sabemos
muito bem o que o apóstolo quer dizer. O coração tem
emoções. Se uma pessoa querida cai de cama, como o coração
se põe a bater! A sua preocupação com a pessoa, seu amor
por ela, é a causa da ansiedade. Se você não pensasse nem um
pouco na pessoa, não ficaria ansioso. Aí você vê onde entram
o coração e os afetos. Não somente isso - a imaginação! Que
prolifera causa de ansiedade é a imaginação! Você é confron­
tado por determinada situação, mas, se fosse apenas isso,
provavelmente você poderia deitar-se e dormir. Mas a imagi­
nação entra em ação e você começa a pensar: “Como será, se
acontecer isto ou aquilo? Tudo está lindamente sob controle
esta noite, mas, como será, se amanhã de manhã a temperatura
subir, ou se esta condição surgir e levar àquela?” Você fica
pensando horas, agitado por essas imaginações. E dessa forma
o seu coração o mantém acordado.
Ou, então, não tanto na esfera da imaginação, porém
mais na esfera da mente e do puro pensamento, você se vê
começando a considerar possibilidades, avalia as situações,
lida com elas, analisa-as, e diz: “ Se acontecer isso, vamos ter
que fazer este ou aquele arranjo”. Vocês vêem como a coisa
funciona? O coração e a mente estão no controle. Somos vítimas
dos pensamentos; nessa condição de ansiedade, nós somos as
vítimas. O coração e a mente, estes poderes que estão dentro
de nós e que estão fora do nosso controle, nos dominam e nos

190
A Paz de Deus

tiranizam. Diz-nos o apóstolo que isso é uma coisa que a todo


custo devemos evitar. Não preciso demorar-me sobre as
razões disso. Penso que todos nós o sabemos por experiência.
Neste estado de ansiedade passamos o tempo todo racio­
cinando, argüindo e seguindo as imaginações. E nesse estado
nós somos inúteis. Não queremos falar com outras pessoas.
Pode parecer que as estamos ouvindo quando conversam
conosco, mas a nossa mente está indo em busca destas
possibilidades. E assim, é pena, mas o nosso testemunho é
inútil. Não valemos nada para os outros e, acima de tudo,
perdemos a alegria do Senhor.
Mas passemos logo ao segundo princípio. Que é que
temos de fazer para evitar esse tumulto interior? Que é que o
apóstolo nos ensina aqui? E aí que chegamos àquilo que é
peculiar e especificamente cristão. Se eu não fizer nada mais,
espero ser capaz de lhes mostrar a diferença eterna entre o
modo cristão de lidar com a ansiedade e o modo psicológico,
ou o método do bom senso. Talvez alguns me achem duro
contra a psicologia, mas permitam que eu apresente uma
breve justificativa. Eu acredito que a psicologia é um dos
perigos mais sutis, com relação à fé cristã. As vezes as pessoas
pensam que estão sendo sustentadas pela fé cristã, quando o
que elas têm é meramente um mecanismo psicológico; e,
numa crise real, ele se rompe. Nós não pregamos psicologia,
pregamos a fé cristã.
Permitam-me, a seguir, mostrar-lhes a diferença que há
entre o método cristão de lidar com a ansiedade, e este outro
método. Que é que o apóstolo recomenda que façamos
quando nos vemos ameaçados pela ansiedade? Ele não diz
apenas: “Pare de preocupar-se”. Isso é o que o bom senso e a
psicologia dizem. “Pare de preocupar-se e junte suas forças.”
O apóstolo não diz isso por esta boa razão: dizer a uma pessoa
que está nessas condições que pare de preocupar-se é inútil.
Diga-se de passagem, também é má psicologia. Caso você

191
A V ID A D E PA Z

seja uma pessoa dotada de força de vontade, você pode reter


essas coisas da sua mente consciente e o resultado será que
elas vão agir na mente inconsciente. Isso é o que se chama
repressão - condição até pior que a ansiedade. Não só isso,
porém; é realmente ocioso dizer a uma pessoa comum que
pare de preocupar-se - razão pela qual a “psicologia” de Paulo
é tão importante. E justamente o que essa pessoa, homem ou
mulher, não consegue fazer. Gostaria de faze-lo, mas não
consegue. E como dizer a um bêbado inveterado que pare
de beber. Ele não consegue, porque está irremediavelmente
nas garras desse vício e dessa paixão. De igual modo, a Bíblia
não diz: “Não se preocupe, bem pode ser que isso nunca
aconteça” . Esse é um dito psicológico popular, e muitos o
acham maravilhoso - “Por que se preocupar? Bem pode ser
que isso não aconteça jamais”. Mas, se alguém me diz isso
quando estou nesse estado, a minha reação é: “ Sim, mas
pode acontecer” . Esse é o meu problema. E se acontecer?
Essa é a essência do meu problema, de modo que não me
ajuda dizer que pode ser que não aconteça.
Outra negativa é a seguinte: muitos tendem a dizer a
pessoas aflitas, que se acham ansiosas e preocupadas: “Você
não deve preocupar-se, é um erro preocupar-se, e mesmo
juntando toda a preocupação do mundo, não faria diferença
nenhuma”. Ora, isso é a pura verdade, e é senso comum dos
bons. Os psicólogos, por sua vez, dizem: “Não desperdice a
sua energia. O fato de você preocupar-se não vai afetar a
situação nem um pouco”. “Ah, sim”, digo eu, “isso está certo,
é perfeitamente correto; mas, saiba que isso não chega à
origem do meu problema, por esta boa razão: eu estou
preocupado com o que pode acontecer! Concordo quando
você me diz que a preocupação não vai afetar a situação, mas
a situação permanece, e é a situação que me esta causando
esta ansiedade. O que você diz é perfeitamente certo, mas não
trata da minha situação particular.” Noutras palavras, todos

192
A Paz de Deus

esses métodos deixam de lidar com a situação porque nunca


levam em conta o poder daquilo que Paulo chama “coração”
e “mente” - estas coisas que nos prendem. É por isso que
todos esses métodos do bom senso e da psicologia são
finalmente inúteis.
Que será, então, que o apóstolo diz? Ele coloca o seu
remédio na forma de uma injunção positiva: “As vossas
petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus” . Essa é
a resposta. Mas agora, aqui, é de vital importância que saiba­
mos precisa e detalhadamente como lidar com isso. O apóstolo
diz: “As vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de
Deus”. “Aü”, diz muito sofredor. “Tenho tentado, tenho orado;
porém não encontrei a paz da qual você fala. Não tive resposta.
Não adianta me dizer que ore.” Afortunadamente para nós, o
apóstolo percebeu isso também, e nos deu instruções especí­
ficas para podermos pôr em prática a sua injunção. “Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em
tudo conhecidas diante de Deus pela oração e súplicas, com
ação de graças.” Estaria o apóstolo apenas despejando injunção
após injunção, ou estaria falando avisadamente? Posso mostrar-
-Ihes que ele está de fato falando avisadamente quando nos
demonstra como fazer com que as nossas petições sejam
conhecidas diante de Deus.
Como havemos de fazer isso? Primeiro ele nos diz que
oremos. Ele diferencia entre oração, súplicas e ação de graças.
Que quer ele dizer com o termo oração? Este é o vocábulo
mais geral e significa culto e adoração. Se você tem problemas
aparentemente insolúveis, se você está sujeito a ficar ansioso
e a sentir-se oprimido, e alguém lhe diz que ore, não corra
para Deus com sua petição. Não é esse o caminho. Antes de
fazer suas petições conhecidas diante de Deus, ore, preste
culto, adore. Venha à presença de Deus e por um tempo
esqueça os seus problemas. Não comece por eles. Apenas pro­
cure conscientizar-se de que está face a face diante de Deus.

193
A V ID A D E PA Z

A idéia de estar face a face é inerente à própria palavra


“oração”. Você vem à presença de Deus, dá-se conta da Sua
presença, fixa na memória a Sua presença - esse é sempre o
primeiro passo. Antes mesmo de fazer com que as suas peti­
ções sejam conhecidas diante de Deus você se apercebe de
que está face a face diante dEle, que está em Sua presença, e
você derrama seu coração em adoração. Esse é o começo.
M as, em seguida à oração vem a súplica. Passemos
adiante agora. Tendo prestado culto a Deus porque Deus é
Deus, tendo oferecido este culto e adoração geral, chegamos
agora ao particular, e aqui o apóstolo nos anima a fazer as
nossas súplicas. Ele nos diz que podemos levar coisas
particulares a Deus, que a petição é uma parte legítima da
oração. E assim apresentamos as nossas petições, as coisas
particulares que agora nos causam preocupação.
Agora estamos mais perto de fazer com que as nossas
petições sejam conhecidas. Mas esperem, ainda há uma outra
coisa - “pela oração e súplica, com ação de graças”. De todas
estas expressões, essa é uma das mais vitalmente importantes.
E é justamente aqui que muitos de nós perdem o rumo
quando estão nesta condição da qual o apóstolo está tratando.
Espero que não seja necessário que eu faça uma digressão
para demonstrar que, em conexão com estes passos, o apóstolo
não estava interessado meramente em formas litúrgicas.
Que tragédia, as pessoas se interessarem pela forma do culto
apenas num sentido litúrgico. Não é com isso que o apóstolo
está preocupado. Ele não está interessado em formalidade;
está interessado na adoração.
A ação de graças é absolutamente essencial por esta razão:
se quando oramos a Deus temos alguma relutância contra Ele
em nossos corações, não temos direito de esperar que a paz de
Deus guarde o nosso coração e a nossa mente. Se nos ajoe­
lharmos achando que Deus é contra nós, podemos muito bem
levantar-nos e ir embora. Não, nós devemos aproximar-nos

194
A Paz de Deus

dEle “com ação de graças”. Não deve existir nenhuma dúvida


em nosso coração quanto à bondade de Deus. Não deve haver
nenhum questionamento, nenhuma interrogação duvidosa;
temos que ter razões positivas para dar graças a Deus. Temos
nossos problemas e dificuldades, mas, quando estivermos de
joelhos, devemos perguntar a nós mesmos: “Para o que eu posso
agradecer a Deus?” Temos que fazer isso deliberadamente, e
isso é algo que podemos fazer. Devemos lembrar-nos disso.
Devemos dizer: “Posso estar em dificuldades no momento,
porém posso dar graças a Deus por minha salvação e por ter
enviado Seu Filho para morrer na cruz por mim e por meus
pecados. Estou me defrontando com um problema terrível,
sei disso, mas Ele fez aquilo por mim. Dou graças a Deus por
ter enviado Seu Filho, o nosso Senhor Jesus Cristo, ao mundo.
Darei graças a Ele por levar meus pecados em Seu corpo no
madeiro, dar-Lhe-ei graças por Ele ter ressuscitado para a
minha justificação. Derramarei meu coração em gratidão por
isso. Dar-Lhe-ei graças pelas muitas bênçãos que recebi no
passado”. Devemos elaborar com a nossa mente e com toda a
nossa energia as razões para dar graças e louvores a Deus.
Devemos lembrar-nos de que Ele é o nosso Pai, que Ele nos
ama tanto que até os cabelos da nossa cabeça estão todos
contados. E quando nos lembrarmos destas coisas, devemos
derramar o nosso coração em ação de graças. Devemos manter
boas relações com Deus. Temos que compreender a verdade
concernente a Ele. Portanto, devemos vir à Sua presença com
adoração transbordante de amor, de louvor e de reverência, e
de fé confiante, e depois fazer as nossas petições conhecidas
a Ele. Noutras palavras, a oração que Paulo propugna não é
um desesperado grito no escuro, não é um apelo frenético
feito a Deus sem nenhum real pensamento. Não, primeiro
nos concientizamos e nos lembramos de que estamos cultuan­
do um Deus bendito e glorioso. Primeiro adoramos Deus, e
depois fazemos as nossas petições conhecidas.

195
A V ID A D E PAZ

Depois, o próximo princípio é a graciosa promessa de


Deus a todos os que fazem isso. Já vimos o que temos de fazer;
fomos instruídos sobre como devemos tratar disso, e agora
vem a graciosa promessa àqueles que fazem o que o apóstolo
acabou de dizer que façamos. Naturalmente, esta é a melhor
parte, mas precisamos aprender a examiná-la. Vocês notaram
a promessa, notaram o seu caráter, notaram que ela nem
menciona as coisas que os preocupam? Essa é a peculiaridade
do método cristão de lidar com a ansiedade. Acaso o apóstolo
diz, “Em todas as coisas - nessas coisas que preocupam - as
vossas petições sejam conhecidas diante de Deus, e Ele banirá
e removerá todas elas” ? Não, Paulo não diz isso. Ele não as
menciona, não fala nada sobre elas. Para mim essa é uma das
coisas mais emocionantes da vida cristã. A glória do evangelho
é que ele se preocupa conosco, e não com as nossas circuns­
tâncias. A vitória final do evangelho se vê em que, sejam quais
forem as nossas circunstâncias, nós mesmos podemos ser
postos em ordem e mantidos em ordem. Ele não menciona a
nossa condição, não fala sobre essas coisas que nos arrasam e
nos deixam perplexos, não diz uma só palavra sobre elas. Elas
podem acontecer ou não, eu não sei. Paulo não diz que a temida
coisa não vai acontecer; ele diz que seremos guardados, quer
aconteça quer não. Graças a Deus, essa é a vitória. Sou levado
acima das circunstâncias, sou triunfante apesar delas.
Esse é o grande princípio. Todos nós tendemos a ser
tiranizados pelas circunstâncias porque dependemos delas e
gostaríamos que elas fossem governadas e controladas, mas não
é desse modo que as Escrituras tratam da situação. Eis o que
0 apóstolo diz: “As vossas petições sejam em tudo conhecidas
diante de Deus, e a paz de Deus, que excede todo o entendi­
mento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos” .
Ele os manterá absolutamente a salvo dessas coisas que os
mantêm despertos e impedem o seu sono. Elas serão mantidas
fora, e vocês serão guardados em paz, apesar delas.

196
A Paz de Deus

Eu desejo assinalar novamente que o apóstolo nunca diz


que, se orarmos, a nossa oração, em si e por si, fará com que
nos sintamos melhor. E uma ignomínia as pessoas orarem
por esse motivo. Esse é o uso que os psicólogos fazem da
oração. Eles nos dizem que, se tivermos dificuldades, nos
fará bem orar - boa psicologia, péssimo cristianismo. A oração
não é auto-sugestão.
Tampouco ele diz; “Orem, porque, enquanto estiverem
orando, não estarão pensando nesse problema, e, portanto,
vocês terão alívio temporário” . De novo boa psicologia, mas
péssimo cristianismo.
Nem diz ele: “ Se vocês encherem sua mente de pensa­
mentos sobre Deus e sobre Cristo, esses pensamentos expelirão
as outras coisas” . Mais uma vez, boa psicologia, mas sem
nenhuma relação com o cristianismo.
Tampouco diz, e eu digo isto ponderadamente: “Orem
porque a oração muda as coisas” . Não, não muda. A oração
não “muda as coisas”. Não é isso que o apóstolo diz; isso é,
outra vez, psicologia, e nada tem com o evangelho. O que o
apóstolo diz é o seguinte; “Você ora e faz conhecida diante
de Deus as suas petições, e Deus fará algo” . Não é a sua
oração que vai fazer isso, não é você que o vai fazer, é Deus.
“A paz de Deus, que excede todo o entendimento” - Ele, em
meio a tudo aquilo, “guardará os vossos corações e os vossos
senti-mentos em Cristo Jesus”.
Devo dizer uma palavra sobre a expressão “guardará” os
vossos corações e os vossos sentimentos. O verbo significa
manter guarda, proteger - várias palavras podem ser empre­
gadas. Essa expressão produz na mente uma figura. O que
vai acontecer é que esta paz de Deus circundará as muralhas e
as torres da nossa vida. Estamos dentro, e as atividades do
coração e da mente estão produzindo aquelas pressões,
ansiedades e tensões que vêm de fora. Todavia, a paz de Deus
as manterá fora, e nós, dentro, estaremos em perfeita paz.

197
A V ID A D E PA Z

E Deus que faz isso. Não somos nós, não é a oração, não é
nenhum mecanismo psicológico. Fazemos nossas petições
conhecidas diante de Deus, e Deus faz isso por nós e nos
mantém em perfeita paz.
Que diremos desta frase: “A paz de Deus, que excede todo
o entendimento” ? Você não pode entender esta paz; não pode
imaginá-la; num sentido, nem crer nela você pode; todavia,
ela acontece, e você a experimenta e a desfruta. E a paz de
Deus que está em Cristo Jesus. Que é que o apóstolo quer
dizer com isso? Ele nos está dizendo que esta paz de Deus
age apresentando-nos o Senhor Jesus Cristo e fazendo com
que nos lembremos dEle. Para colocar o assunto nos termos
do argumento da Epístola aos Romanos: “ Se nós, sendo
inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu
Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos
pela sua vida” (Romanos 5:10); “Todas as coisas contribuem
para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados por seu decreto”; “Aquele que nem mesmo a seu
próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como
nos não dará também com ele todas as coisas?” (Romanos
8:28,32); “Estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem
os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o
presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade,
nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos
8:38,39). O argumento é que, se Deus realizou esse feito
supremo pela morte de Seu Filho na cruz, Ele não pode
abandonar-nos agora, não pode deixar-nos no meio do
caminho, por assim dizer. Portanto, a paz de Deus, que
excede todo o entendimento, guarda os nossos corações e as
nossas mentes por meio de Cristo Jesus ou em Cristo Jesus.
Dessa maneira Deus garante a nossa paz e a nossa liberdade,
protegendo-as da ansiedade.
Concluo com uma palavra sobre o último princípio, que

198
A Paz de Deus

é a compreensibilidade ou abrangência da promessa. “Em nada


estejais preocupados” - “Não vos preocupeis com coisa alguma,
mas em todas as coisas,..” . Não importa quais sejam essas
coisas, não há limite nisso. Amado cristão, seja o que for que
esteja tendendo a manter você deprimido, a torná-lo vítima
desta ansiedade, desta preocupação mórbida que o arrasa e
que estraga a sua vida cristã e o seu testemunho, seja qual for o
problema, faça com que isso seja conhecido diante de Deus
dessa forma, e, se você fizer isso, é absolutamente garantido
que a paz de Deus, que excede todo o entendimento, protegerá,
guardará, montará guarda para segurança do seu coração e
da sua mente. Esse extraordinário tumulto do coração e da
mente dentro de você não o afetará. Como o salmista, você se
deitará e dormirá, você experimentará esta paz perfeita. Você
tem experiência disto, você tem esta paz? Seria isso outra
peça de teoria, ou realmente acontece? Eu assevero que
quase dois mil anos de história cristã - a história da Igreja
Cristã - proclama que isto é um fato. Leiam as histórias dos
santos, dos mártires e dos confessantes^ que não se retrataram.
E você obtém a mesma comprovação nas histórias con­
temporâneas.
Recentemente eu li sobre uma experiência narrada por
John George Carpenter, até alguns anos atrás o General do
Exército de Salvação.^ Ele nos conta que ele e sua mulher
tiveram que separar-se de sua filha, uma bela jovem, que eles
amavam muito e de quem tanto se ufanavam, e que tinha

' No texto do autor e no contexto da vida cristã, a palavra “confessors”


(no original inglês) refere-se aos cristãos que, face à perseguição não negam
ou não negaram sua fé. Nota do tradutor.
^ Em 1980 surpreendi-me ao ouvir, em São Paulo, o então General do
Exército de Salvação, cujo nome infelizmente não recordo, pregar
claramente a salvação pela graça, exclusivamente pela graça. E o fez
com forte ênfase à incapacidade humana de agir ou cooperar para sua
própria salvação. Nota do tradutor.

199
A V ID A D E PA Z

dedicado sua vida ao trabalho missionário em terra estrangeira,


no Oriente. De repente ela adoeceu, vítima da febre tifóide.
Eles puseram-se a orar, claro, mas John Carpenter e sua esposa
sentiram de algum modo, embora não podendo explicá-lo, que
não podiam orar pela recuperação da filha. Continuaram
orando, mas a sua oração era: “Tu podes curá-la, se o quiseres”
- não conseguiam pedir positivamente a Deus que a curasse;
somente diziam - “Tu podes, se quiseres” . Não conseguiam ir
além desse ponto. Continuaram assim durante seis semanas, e
então a formosa jovem morreu. Na mesma manhã em que
ela morreu, John Carpenter disse à Sra. Carpenter: “ Sabe,
sinto uma estranha e curiosa calma em meu íntimo”. E a Sra.
Carpenter respondeu: “ Sinto exatamente a mesma coisa”. E
ela lhe disse: “Isto só pode ser a paz de Deus”. E era. Era a paz
de Deus mantendo o coração e a mente tranqüilos no sentido
de impedir que esses transtornassem a pessoa. Lá estavam
eles, tinham feito sua petição conhecida da maneira certa, e,
para seu espanto e sua consternação - eles quase se censura­
ram por isso - sobreveio a eles esta espantosa calma, esta paz.
Não podiam entender isso, e essa foi a única explicação - “ Só
pode ser a paz de Deus” . E era. Graças a Deus por isso. Eu e
vocês não podemos explicar estas coisas, elas nos acabrunham;
mas Ele é todo-poderoso.
Portanto, com oração, súplicas e ação de graças, faça as
suas petições conhecidas diante de Deus, e Ele, mediante a
Sua paz em Cristo, guardará em repouso e em paz o seu
coração e a sua mente.

200
15
A Mentalidade Hebraica e a Grega
“Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é
justo, tudo 0 que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa
fam a, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai. ”
- Filipenses 4:8

Com essas palavras chegamos à última exortação da série


que 0 apóstolo dirige aos membros da igreja de Filipos. A
expressão “Quanto ao mais” (VA: “finalmente”) indica clara­
mente que o apóstolo está achando muito difícil terminar esta
carta. Ele ama tanto os membros da igreja de Filipos, sua
ligação com eles é tão grande, por causa da relação especial
que existe entre eles, e o caráter da igreja é tal, que o apóstolo
se sente atraído por eles de maneira excepcional, e ele tem o
maior gosto em escrever-lhes esta carta. Por isso ele acha difícil
terminá-la, e, contudo, deve fazê-lo, e assim, fora algumas
observações adicionais, de caráter mais pessoal, ele leva a carta
à conclusão com esta exortação geral. Bem, provavelmente
estas palavras são familiares para todos nós. No tempo em que
se costumava pôr textos em quadros e colocá-los nas paredes,
muitas vezes se via este versículo encarando a gente. Ele é
citado muitas vezes, e, todavia, sugiro que, talvez, das pala­
vras escritas pelo apóstolo não há outras que estejam mais
abertas ao entendimento errôneo. Freqüentemente elas têm
sido mal entendidas; e elas têm sido o campo de combate de
uma grande discussão que tem ocorrido na Igreja Cristã quase
desde o princípio. Por isso eu penso que, ao examinarmos este

201
A V ID A D E PA Z

versículo, nada é tão importante como a questão da nossa


abordagem dele.
Há alguns versículos da Bíblia dos quais sempre se pode
dizer, sem faltar com a verdade, que a nossa abordagem deles
é vital e determina a nossa exposição. Para os interessados na
questão da exegese e da exposição, esse é um princípio muito
importante. É sempre perigoso tomar um versículo isolada­
mente; nenhum versículo deve ser tirado do seu contexto, mas
especialmente é esse o caso com relação a alguns versículos.
Seria possível, por exemplo, tomar as diferentes palavras
empregadas pelo apóstolo e dar-lhes seu sentido exato, e então
considerar isso como uma interpretação adequada. Mas eu
quero tentar mostrar a vocês que é muito inadequado fazer
isso com um versículo como este, e que, principalmente aqui,
a nossa abordagem geral da declaração do apóstolo é de
suprema significação. Noutras palavras, a questão que logo se
levanta é a seguinte: sobre o que exatamente o apóstolo está
falando aqui? E, como eu já lhes fiz lembrar, isso imediata­
mente nos introduz à grande discussão que vem ocorrendo
desde os primeiros dias do cristianismo e que dividiu os
cristãos em dois grupos.
O problema posto diante de nós por este texto particular
é o da relação entre o cristianismo e a cultura. Bem, estou certo
de que muitos cristãos, senão a maioria, têm interesse nessa
questão, porque é de real significação e importância. Na ver­
dade convém que cheguemos a uma decisão quanto a toda esta
questão porque é realmente um dos problemas mais urgentes
e mais relevantes com que se defronta a Igreja Cristã neste
exato momento.
Podemos pôr isto em seu cenário próprio abordando o
assunto historicamente. Se vocês retrocederem na história,
verão que o problema levantado aqui é a diferença entre a
mentalidade hebraica e a grega - a coisa é antiga assim! No
mundo antigo dois métodos de pensamento confrontavam

202
A Mentalidade Hehraica e a Grega

OS homens e as mulheres - a perspectiva hebraica da vida e a


perspectiva grega, e estas eram muito diferentes. Em certo
sentido, a luta que se vê na Bíblia - e que certamente se vê na
história subseqüente da Igreja Cristã - é este conflito entre o
hebreu e o grego, entre estas duas atitudes com relação à vida.
Permitam-me anotar brevemente algumas das diferenças
características entre as duas perspectivas.
Bem, o hebreu sempre tende a ser ativo; por outro lado,
0 grego tende a ser abstrato. O hebreu crê na salvação por
feitos e atos, ao passo que o grego crê na salvação pelas idéias.
O Velho Testamento, que é a quintessência da perspectiva
hebraica, é a história dos atos de Deus - Deus fazendo coisas -
esse é o conceito hebraico de salvação. Não idéias sobre a
salvação, não pensamentos, não conceitos, mas Deus agindo.
Deus interferindo, essa é a ênfase hebraica, ao passo que para
o grego tudo tende a ser uma questão de idéias. A salvação é
uma idéia, algo que você elabora em termos do pensamento,
pela passividade e pela contemplação - é salvação por pen­
samentos e idéias.
Outra distinção importante é que o hebreu é caracterizado
por emoção e paixão, ao passo que o grego, eu diria, é
caracterizado pela sentimentalidade,^ ou pela reflexão, e pelo
controle. Penso que vocês verão a importância destas distinções.
Se vocês examinarem os grandes profetas hebreus, cujos
escritos nós temos no Velho Testamento, verão que eles
transbordam de emoção, de movimento, de força rude, cor­
tando em pedaços, batendo com força e com poder. Por outro
lado, o grego não gosta de paixão ou de emoção; pelo menos,
ele gosta de emoção controlada, que se torna sentimental,
reflexiva; tudo tem que ser muito bem ordenado. O grego não

*Sentimentality, no sentido clássico do termo inglês: fina sentimentalidade,


apercepção, capacidade de reflexão. Aplique-se esta explicação quanto ao
termo sentimental empregado no texto inglês mais abaixo. Nota do tradutor.

203
A V ID A D E PA Z

salienta tanto a força e o poder como a beleza e a ordem, a


classificação e o controle. Para dizê-lo com uma só palavra,
talvez, a diferença essencial entre o hebreu e o grego é a
diferença entre o profético e o educativo.
Vejam agora a importância disso no presente. Há pessoas
na Igreja que dizem que o que precisamos ter é um grande
ministério docente; mas há outras que dizem que o que
precisamos ter é, acima de tudo, um ministério profético. Elas
dizem que não basta apresentar idéias pelo ensino - não,
precisamos de algo mais profundo e mais fundamental, e a
nota profética é a nota da qual necessitamos. Vocês podem ver
que a decisão da Igreja com respeito a estas duas coisas afeta
0 seu ministério. Nisto vocês vêem também a diferença entre
aqueles homens e mulheres que só precisam que lhes sejam
apresentadas idéias, e aqueles que necessitam do poder
profético que queime, rasgue, convença de pecado e leve à
conversão - a poderosa atividade de Deus. Esse é o substrato
essencial deste versículo que ora examinamos.
Assim vocês têm aí, no retrospecto da história, a diferença
entre o hebreu e o grego. Todavia, no momento em que a
Igreja Cristã veio a existir, o problema tornou-se muito agudo,
no momento em que este evangelho foi pregado na Europa e
nas áreas gregas do mundo, começou a grande luta. A tendência
era de a perspectiva grega, a perspectiva filosófica,impor-se à
idéia essencialmente hebraica da salvação, e de controlá-la e
modificá-la. Por isso vocês vêem um homem como o apóstolo
Paulo esforçando-se além das medidas, quando escreve à igreja
de Corinto, para dizer que prega Cristo “não em sabedoria de
palavras, para que a cruz de Cristo se não faça vã” (1 Coríntios
1:17). Ele adverte as pessoas contra a filosofia, contra esta ciência
do saber, contra esta concepção grega.
Pois bem, as autoridades estão todas de acordo em dizer
que durante os três ou quatro primeiros séculos o evangelho
cristão teve que lutar por sua própria vida contra a filosofia

204
A Mentalidade Hebraica e a Grega

grega: a idéia de transformar o evangelho, com sua atividade,


com sua ênfase profética, noutra filosofia, embora talvez a
melhor e a mais grandiosa de todas. Mas desçamos séculos
abaixo e vejamos como a luta continuou. Vocês a vêem mostrar-
-se claramente nos séculos dezesseis e dezessete, especialmente
e antes de tudo, no século dezesseis. Refiro-me ao conflito entre
a Reforma e a Renascença, pois as duas surgiram juntas, ao
mesmo tempo - o avivamento da cultura e o avivamento da
religião - e houve grande luta entre ambas. Num sentido essa
luta foi representada por duas pessoas: Martinho Lutero e
Erasmo. De um lado, Lutero, o pregador profético do evan­
gelho, crendo na idéia hebraica; do outro, Erasmo, com suas
idéias sobre ensino e com seu conhecimento e sua cultura. E
muito interessante ler a correspondência entre estes dois
homens, porque ali se vê o desenvolvimento desta grande
questão.
Passem depois ao século dezessete, onde verão mais uma
vez a mesma coisa, e aqui o conflito é entre o puritanismo e
o anglicanismo - refiro-me ao anglicanismo como um termo
geral. Era uma luta entre a idéia de culto, que era simples,
direta e imediata, e que dava ênfase à emoção, a tremer na
presença do Deus Santo e a estar sujeito à atividade de Deus;
havia um conflito entre isso e a idéia de culto que dá ênfase a
formas, cerimônias, ritual, beleza de dicção e de linguagem,
edifícios ornamentados, e o conceito grego de beleza e bon­
dade, como também da verdade. E esta grande luta entre o
hebreu e o grego em termos de puritanismo e anglicanismo
tem persistido através dos séculos. Vocês a encontram no
século dezenove de maneira extraordinária. No século dezoito,
como fruto do Despertamento Evangélico, a idéia hebraica
teve ascendência, com avivamento, conversões e feitos de
Deus. Ah, sim, mas no século dezenove, em conseqüência do
chamado “iluminismo” e de um novo interesse pelos clássi­
cos, pela cultura e pelo conhecimento, a idéia grega voltou a

205
A V ID A D E PA Z

infiltrar-se, e a sua influência sobre a interpretação das


Escrituras tem sido muito profunda! Na verdade, a imensa
maioria das idéias teológicas atuais mostra a decisiva influên­
cia da perspectiva grega sobre a salvação. Pensem nos homens
que viveram durante o século passado, homens como Emerson,
Ruskin, Matthew Arnold e pessoas que tais: eram gregos
típicos, e, contrariamente a eles, temos os evangélicos bíbli­
cos, com sua ênfase hebraica, e estes dois pontos de vista estão
sempre lutando um contra o outro.
Chamo a atenção de vocês para isso porque é minha
profunda convicção que o estado atual da Igreja, nesta terra
e em muitas outras, deve-se atribuir inteiramente ao fato de
que os gregos ganharam ascendência, a velha idéia da
mensagem profética está sendo empurrada para os fundos, e a
idéia de prestar culto a Deus em termos de idéias e pensa­
mentos está ganhando terreno. Você não deve falar sobre
conversão - isso estava certo nos tempos proféticos, mas não
há mais necessidade de que as pessoas sejam convertidas. Não,
você simplesmente absorve a idéia e, dessa forma, o mundo
inteiro vai ser salvo. Essa é a concepção grega em contradis-
tinção^ da concepção hebraica.
E, naturalmente, estamos frente a frente com esta mesma
coisa na presente hora. Mas hoje a luta é entre o cristianismo
e a chamada cultura ocidental, ou européia. Agora convém
que examinemos esta questão séria e cuidadosamente. Será
dever da Igreja lutar por essa cultura? A minha opinião sobre
a cultura dos tempos modernos não é outra senão que ela é
muito boa, mas eu devo perguntar se é dever da Igreja
meramente pregar esse tipo de cultura, ou se o trabalho da
Igreja é pregar o evangelho profético, a atividade de Deus,
a necessidade de conversão.
Estaríamos simplesmente defendendo a propagação de

^Caldas Aulete registra “contradistinguir”. Nota do tradutor.

206
A Mentalidade Hebraica e a Grega

certos valores que têm sido úteis na vida e na conduta, ou


devemos pregar condenação e juízo? Deveriamos invocar
Deus visando arrepender-nos e humilhar-nos, e dessa forma
ter tratos pessoais com Deus? Essa é a questão, e vocês vêem
que ela é de vital e momentosa importância para o futuro
geral da Igreja Cristã.
Pois bem, tudo isso vem à tona por causa do versículo
oito de Filipenses, capítulo 4. Quando examinamos este
versículo, a primeira pergunta que logo nos vem é esta: que é
que Paulo está dizendo? Estaria ele, só por uma vez em sua
vida, e a única vez em seus escritos, adotando de repente a
idéia grega? Estaria ele apenas dizendo a estes filipenses,
“Agora, então, procurem familiarizar-se com a cultura grega
e dediquem seu tempo a pensar nestas coisas” ? Essa é a ques­
tão. Vocês podem ver que a nossa abordagem deste versículo é
de suprema importância, porque este é o versículo favorito
daqueles que defendem a perspectiva grega. Se alguma vez
vocês tiverem uma discussão com eles sobre a relação entre o
cristianismo e a cultura, posso assegurar-lhes que eles lhes
apresentarão este versículo - é o único que eles podem apre­
sentar - e eles dirão que aqui o apóstolo Paulo está colocando
diante de nós esta idéia grega.
Contudo, eles se vêem numa dificuldade, e é interessante
notar como todos eles têm que admitir isso - Paulo emprega a
palavra virtude: “ Quanto ao mais irmãos... se há alguma
virtude...”, e imediatamente eles começam a escrever suas
notas: “Bem”, dizem eles, “isto é notável. A palavra virtude
era pagã, e não seria extraordinário que esta foi a única vez
que o apóstolo a empregou?” Eles têm que reconhecer que
Paulo sabia tudo acerca da cultura grega, que era um homem
versado nestas coisas, que era um homem ilustrado, e, todavia,
eles têm que admitir que, em todos os escritos deste apóstolo,
este é o único lugar onde ele faz uso desta palavra. A virtude
era algo em que os gregos acreditavam, e constituía a base da

207
A V ID A D E PA Z

filosofia deles. A filosofia grega nada era senão um constante


apelo aos homens para exercitarem a virtude, era um apelo
moral. Mas Paulo emprega a palavra só uma vez, aqui, e é por
isso que eles estão em dificuldade.
Mas a questão que se levanta para nós é exatamente o que
o apóstolo quer dizer neste versículo. Há diversas maneiras
pelas quais as pessoas tradicionalmente têm abordado e
interpretado este versículo. A primeira é a que eu chamaria de
abordagem e interpretação sentimental. Algumas pessoas que
lêem estas palavras, ou as vêem numa parede, dizem: “Que
belas!” E nunca vão além desse pontoj é a abordagem estética.
Quando lêem este versículo, elas dizem alto para si mesmas:
“Que maravilhai” Não preciso demorar-me nisso. Se há uma
coisa de que o apóstolo jamais deve ser acusado é de senti­
mentalidade. Sentimento, paixão, sim; sentimentalismo,
nunca - esta é completamente alheia ao caráter cristão
essencial.^
A segunda abordagem eu descrevo como uma inter­
pretação feita em termos da chamada “ciência do pensamento”.
Este ponto é importante porque me parece que, com mui­
tíssima freqüência, nós, como cristãos, confundimos esta
linguagem da “ciência do pensamento”, assim chamada, com
a mensagem do evangelho cristão. O que ela diz é que
você deve encher sua mente de belos pensamentos, poesia,
boa literatura ou música. Esse é o apelo do evangelho, se­
gundo esse conceito. Se enchermos as nossas mentes destes
belos, amáveis e enaltecedores pensamentos e idéias, seremos
salvos e emancipados de tudo o que tende a ser indigno e
a pôr-nos abaixo.
Vocês estão familiarizados com isso; vocês o vêem nos
livros e nos jornais. E-nos dito que, de noite, a última coisa
que devemos fazer é assegurar-nos de que temos belos

*Ver Nota 1, acima. Nota do tradutor.

208
A Mentalidade Hebraica e a Grega

pensamentos em nossas mentes; isso não só nos ajudará a


dormir, mas também ajudará toda a nossa vida e toda a nossa
perspectiva, e nos despertaremos sentindo-nos renovados e
mais lúcidos. “Cerque-se”, dizem tais pessoas, “da beleza da
poesia, da literatura e da música, e de outros elementos do
gênero, e, à medida que for fazendo isso, gradativamente você
irá ficando uma pessoa melhor.” Pois bem, existem cristãos
que usam este versículo desse modo, prazerosamente imagi­
nando que é isso que o apóstolo está defendendo; devemos
encher nossas mentes destas coisas maravilhosas, e, quando o
fizermos, gradativamente estaremos obtendo a salvação. A
ciência do pensamento, ou a cultura da mente, é isso, e é uma
perspectiva tipicamente grega - é uma excelente psicologia,
mas é uma ofensa ao evangelho cristão.
E depois há o que eu poderia intitular como a interpre­
tação semi-cristã deste versículo. Ela atrai os que acreditam
que a salvação só é possível em termos da morte e ressurreição
do nosso Senhor, mas que também acreditam que esse tipo de
coisa veio como um acréscimo ao evangelho e como um seu
suplemento, e que nos ajudará a aperfeiçoar a nossa salvação.
Segundo esse conceito, a maneira de evitar o pecado e de
viver uma vida digna, a maneira pela qual podemos ser
felizes e manter a nossa alegria, é tão-somente ter estas boas,
belas e verdadeiras idéias, pensar e meditar nelas, e render-
-nos a elas. Então, ao fazermos isso, vamos tornar-nos pessoas
melhores.
Mas a resposta a isso é um eterno “Não!”, e por estes dois
importantes motivos: antes de tudo, há um motivo geral, e
depois um motivo específico indicado por Paulo no próprio
versículo 8. Primeiro, esses conceitos são uma interpretação
errônea do ensino geral do Novo Testamento. O Novo Testa­
mento nunca nos pede que contemplemos em mira idéias,
mas sempre nos chama para olharmos para a Pessoa. Essa é a
diferença essencial entre o evangelho e a filosofia, entre

209
A V ID A D E PAZ

hebreu e grego. Desejo lembrar-lhes mais uma vez que não


havia nada que Paulo temesse tanto como que a doutrina da
cruz se tornasse uma filosofia - e como é fácil acontecer isso!
Sustentar, por exemplo, que “a morte é essencial à vida”, ou
que há “um princípio de sacrifício na vida”, é transformar a
doutrina da cruz numa idéia filosófica, e acontece exatamente
a mesma coisa com a ressurreição. Vocês já notaram que,
quando se aproxima a época da Páscoa, as pessoas começam a
sentimentalizar a “ vida”, dizendo que a semente semeada
morre e que depois o germe da vida surge da morte, e que
nisso você vê a ressurreição como um princípio de vida
porque a vê em toda parte? E o fato glorioso da ressurreição
de Cristo é transformado filosoficamente dessa forma num
princípio geral de “ ressurreição” .
Ora, isso é algo que o Novo Testamento nunca faz. O Novo
Testamento preocupa-se com fatos, com uma Pessoa, a Pessoa
de Cristo; Paulo disse a respeito dEle: “Para conhecê-lo, e o
poder da sua ressurreição...”, não um princípio geral do
ressurgir na vida. Não, o Filho eterno de Deus nasceu
literalmente como um bebê em Belém; não é uma idéia, não
pertence à mitologia grega, aconteceu. Ele sofreu e persistiu,
literalmente subiu cambaleando ao Gólgota, foi cravado no
madeiro - estas coisas não são idéias. Aconteceram! Vejam-
-nO, contemplem-nO. Ele morreu e foi sepultado, uma pedra
foi rolada para a boca do túmulo, mas foi removida, e Ele
emergiu. Saiu literalmente em corpo, e tornou a mostrar-Se.
O tempo todo somos exortados a considerá-10 e a considerar
estes fatos, enquanto que, ao mesmo tempo, nos é dito que o
que Ele fez é plenamente suficiente.
“Mas”, dirá alguém, “certamente, se tudo isso é verdade,
esta outra idéia não ajuda? Não é uma boa idéia, e não
ajudará a minha salvação, se eu encher minha mente de
belos pensamentos, palavras e música?” Não, isso é o casco
dividido do diabo, é onde o diabo entra. O evangelho de

210
A Mentalidade Hebraica e a Grega

Jesus Cristo não precisa de nenhuma assistência, não precisa


de nenhum suplemento; nada pode salvar o homem, exceto
0 que Deus realizou em Cristo. Se o mundo da cultura grega
e da perspectiva grega falhou e não pôde salvar o mundo, se
falhou na realização maior, temos nós necessidade de apelar
para a sua assistência na realização menor? Fora com tal
insinuação! “Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para
nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e
redenção” (1 Coríntios 1:30). Ele é a vida, e eu não preciso
acréscimo dos homens. Ele é o princípio e o fim, Ele é tudo
em todos, e nEle habita corporalmente a plenitude da
Deidade. Não preciso da cultura grega, não preciso da ciência
do pensamento, tenho tudo nEle. Não admitirei nenhuma
assistência, nenhum suplemento.
E claro está que isso não é mera teoria. Penso que posso
mostrar que a história dos últimos cem anos'^ prova a minha
afirmação. Temos ouvido muita prosa sobre essa outra idéia
durante esse tempo. Não temos pregado o evangelho profético;
não temos dado ênfase à necessidade de arrependimento, de
conversão e de total humilhação diante de Deus; não gostamos
da expressão “vil pecador”, somos por demais polidos!
Trabalhamos baseados na idéia grega, mas a que isso levou?
Vocês vêem o que acontece quando pedimos ajuda à cultura
grega? Vejam o mundo moderno, vejam a vida que os homens
e as mulheres levam, vejam a lama moral espalhada pelo
mundo inteiro. Não, a simples idéia de pedir essa ajuda deve
ser descartada; as pessoas em geral gostam que se lhes diga
que encham suas mentes de belos pensamentos e, portanto,
fazer uso deste versículo no sentido grego é um perigo para
os homens e para as mulheres porque isso fomenta o seu
orgulho.
Depois, como procurei mostrar a vocês, esse conceito põe

*De meados do século dezenove a meados do século vinte. Nota do tradutor.

211
A V ID A D E PAZ

em descrédito a glória e a perfeição da obra de Cristo na cruz.


Posso colocar isso em termos de uma particular ilustração, a
fim de lhes mostrar a diferença entre estas duas coisas que
temos discutido juntos. Vejam o problema de lidar com o medo,
ou o problema de lidar com pensamentos indignos, talvez o
problema da inveja. Bem, a pessoa que se vê perturbada por
uma dessas coisas tem medo de ficar sozinha, tem medo do
que vai acontecer. A idéia grega acredita na chamada sub-
jugação ou domínio. Aí está você, sozinho, e começa a temer, e
então, imediatamente começa a pensar em coisas bonitas,
amáveis e puras, e, ao encher sua mente destes pensamentos,
você esquece o seu medo, e assume o controle. Dessa maneira
você guarnece esse temor, você o liga a algo superior, e, ao
fazer isso, você se livra do seu temor ou desses pensamentos
indignos, e, em vez disso, tem estes pensamentos belos e
amáveis.
Ora, não é esse o método neotestamentário de lidar com
o problema, e por esta boa razão: tratá-lo dessa forma significa
que você não está encarando, nem a si mesmo, nem as tentações
honestamente. Enquanto que o método grego lhe diz que não
pense nisso, o método cristão lhe diz que olhe diretamente
para ele, de frente. O método cristão, o método do evangelho,
nunca lhe diz que evite pensar no pecado; ele lhe diz que o
encare e que pense a respeito. E aqui está a essência de toda a
questão, e é por isso que, por natureza, as pessoas em geral
preferem o grego ao hebreu. Este é o modo cristão de lidar
com o medo: este lhe vem e lhe diz: “ Você diz que, como
cristão, tem este medo? Você, que diz que crê que Deus o
amou e enviou Seu Filho unigênito para morrer na cruz por
você e ressuscitou para justificá-lo, e você diz que Deus, que
realizou o feito maior, não vai cuidar de você?” O evangelho
não diz: “Ora, tenha belos pensamentos e esqueça os outros” .
O evangelho lhe vem e lhe diz: “Acaso você, como cristão,
está abrigando tais pensamentos? Cristo morreu para que

212
A Mentalidade Hehraiea e a Grega

você continuasse pensando e vivendo desse jeito? Encare-se”,


diz o evangelho, “examine as suas imperfeições pessoais, e
depois olhe para o semblante de Cristo naquela cruz, e peça
a Deus que tenha misericórdia e compaixão de você”. Esse
é o método cristão, não a ciência do pensamento, mas olhar
para si mesmo à luz de Cristo e do que Ele fez por você,
levando esse pecado, esse torpe e feio pecado, imediatamente
a Ele, encarando esse pecado e a si mesmo em Sua santa
presença e crendo verdadeira, absoluta e implicitamente
em Seu poder.
Em vista disso tudo, dou-lhes meu parecer que o que
Paulo estava dizendo aos filipenses era o seguinte: todo o seu
pensar e todas as suas ações devem ser controlados pelo
evangelho. Ele ainda estava preocupado com a alegria e a
paz deles, e esta é sua derradeira palavra sobre isso. Pratica­
mente, ele diz: “ Se você quer conhecer essa paz de Deus que
excede todo o entendimento, se você quer experimentar a
alegria do Senhor, então, em acréscimo ao que eu lhe tenho
dito em termos negativos, lembre-se positivamente disto:
toda a sua vida, todo o seu pensamento e todas as suas ações
precisam ser controlados pelo evangelho. E preciso que você
não pense em coisas incompatíveis com o evangelho”. E depois
ele o diz em termos positivos: as coisas nas quais devemos
pensar devem ser compatíveis com o evangelho. Devem ser
verdadeiras, verdadeiras nesse sentido supremo, devem ser
sérias, devem ser reverentes. Os cristãos são essencialmente
sérios porque se vêem como pecadores perdidos, salvos
somente pela morte de Cristo na cruz, e aqueles que vêem
isso só podem ser profunda e fundamentalmente sérios. Não
digo que sejam formais, mas que sejam sérios e reverentes;
há seriedade na perspectiva geral da vida. E preciso que eles
sejam justos, e que os seus pensamentos sejam puros, limpos
e sem sinal de adulteração; amáveis, no sentido de que levem
as pessoas a considerá-los e a amá-los; de boa fama, isto é.

213
A V ID A D E PA Z

comentados favoravelmente; caracterizados pela virtude,


pela excelência moral; merecedores de louvor, de aprovação
moral pela prática da verdade.
E isso que o apóstolo diz. Como cristãos, devemos cuidar
que tudo em nossa vida, os nossos pensamentos e idéias,
tudo, esteja sob o poderoso controle do Senhor ressurreto.
Todo pensamento deve ser posto em sujeição a Ele. Como
lemos em 2 Coríntios 10:5, devemos levar tudo cativo a
Cristo; é necessário que Cristo controle as nossas mentes e
todo o nosso pensar. Procuremos estar cientes do perigo sutil
de confundir a cultura geral, que em si é boa, com o glorioso
evangelho de Deus em Jesus Cristo. Que a nossa vida seja,
toda ela, um tributo e um testemunho, para louvor do nosso
Redentor.

214
16
Como Experimentar a Paz de Deus
“O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em
mim, isso fazei; e o Deus de p a z será convosco. ” - Filipenses 4:9

Lembremo-nos novamente de que estes dois versículos,


oito e nove, constituem a exortação final do apóstolo aos
membros da igreja de Filipos, e vimos que eles são particu­
larmente compreensivos. O versículo oito, que consideramos
em nosso estudo anterior, salienta mormente o pensamento
do cristão, a esfera na qual se deve exercitar o pensamento, a
maneira pela qual o evangelho limita a vida intelectual e define
as coisas nas quais o cristão deve meditar. Depois, aqui, neste
versículo nove, chegamos à outra grande parte da exortação,
e esta é a parte mais prática. Aqui Paulo está interessado
em destacar o que o evangelho tem para nos dizer na esfera
da conduta e da ação.
Portanto, aqui, nesta exortação final, somos levados a
lembrar-nos de alguns princípios fundamentais quanto ao
evangelho, princípios que não podemos nem na verdade
devemos esquecer. Aqui, num sentido, o apóstolo nos dá um
sumário de tudo o que ele vem procurando dizer. É como se
dissesse: “Agora passei aos detalhes; tratei desses problemas
particulares, procurei visualizar as tentações que vocês podem
ter que enfrentar, e tudo o que eu lhes disse pode ser expresso
assim: vejam que toda a sua vida seja dominada dessa forma
pelo evangelho, e então tudo lhes irá bem”. E isso, eu diria,
traz-nos à memória dois princípios fundamentais, quanto ao

215
A V ID A D E PA Z

evangelho. O primeiro é que o evangelho não é algo que acres­


centamos às nossas vidas, é, antes, algo que as deve dominar
inteiramente.
Temos que repetir isso constantemente, porque acredito
que um perigo muito sutil, que tende a tomar-nos de assalto, é
o perigo de fazer do nosso cristianismo uma espécie de
acréscimo a nossas vidas, em vez de vermos que o Novo Testa­
mento ensina em toda parte que o evangelho controla a
totalidade da vida. Não deve existir nada na vida do cristão
que não venha a estar sob o controle e o domínio do evan­
gelho. Noutras palavras, nesta exortação o apóstolo nos está
lembrando que todo o nosso pensar, toda a nossa atividade
intelectual, para usar as suas palavras em 2 Coríntios 10:5,
tem que sujeitar-se ao Senhor Jesus Cristo, ou ser feita
cativa dEle.
Bem, pode-se dividir a vida do homem na terra nestas
duas categorias. Toda a nossa existência aqui é matéria de
pensamento e de ação; e o apóstolo nos ensina que em ambos
os aspectos devemos ser controlados pelo evangelho. Ele nos
deu as características do evangelho na esfera do pensamento;
o evangelho só se ocupa de coisas honestas, justas, puras,
amáveis e de boa fama, tudo o que pertença à excelência
moral e tudo o que mereça louvor. E aqui, na conduta, é
exatamente a mesma coisa - “o que também aprendestes, e
recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso fazei” - o seu pensar
e o seu agir devem ser dominados inteiramente pelo evan­
gelho de Jesus Cristo.
Portanto, a vida cristã não é mera modificação da vida
natural, é uma nova vida, e os cristãos não apenas acrescentam
algo a suas vidas; eles são pessoas que foram transformadas
em seu íntimo, são inteiramente diferentes. Pois bem, não
necessitamos demorar-nos nisso, mas certamente isso é básico
no ensino do Novo Testamento. “Assim que, se alguém está
em Cristo, nova criatura é” (2 Coríntios 5:17), não uma criatura

216
Como Experimentar a Paz de Deus

melhorada, não uma criatura renovada, porém uma nova


criatura, uma nova criação; ele é completamente diferente,
toda a sua vida deve apresentar um notável contraste com os
que não são cristãos. Os cristãos não pensam da mesma
maneira, não vivem da mesma maneira; há um novo poder e
um novo propósito no próprio trono do seu ser, dominando
sua atividade e seu pensamento, cobrindo inteiramente as
suas vidas. Tudo isso é sugerido por esta grande exortação.
Depois, o segundo grande princípio é o que o apóstolo
nos mostra aqui muito claramente quanto à doutrina neo-
testamentária da santidade. O ensino do Novo Testamento
sobre a santidade ou a santificação nunca é apresentado como
uma lei. Isso é algo que tende a levar-nos para fora do
rumo. Há sempre o perigo de transformarmos a santidade
de que fala o Novo Testamento em moralismo, mas as duas
coisas são inteiramente diferentes.^ O Novo Testamento
nunca faz uma lista de regras e regulamentos, nunca nos
diz o que fazer, o que não fazer, várias coisas; isso é a lei. Mas
o Novo Testamento não faz isso; a santidade, diz ele, é, antes,
algo que não somente é essencial, mas também é inevitável,
se é que verdadeiramente desejamos desfrutar as bênçãos
do evangelho cristão. Nunca me canso de dizer isto: no Novo
Testamento, a doutrina da santidade é um apelo dirigido ao
nosso bom senso cristão; é um apelo feito à nossa razão. Não
vem, por assim dizer, na forma de uma ordem ditatorial:
“Faça estas coisas!” Não, na verdade ele vem e diz: “ Se você
'■ Alguns libertinos da minha denominação, ou nunca entenderam o que é
moralismo, ou, pior ainda, entenderam e fizeram uso disso com má fé.
Suponho que não entenderam que, falando concisamente, o moralismo
pertence à lei e, entre os cristãos, é visto como meio de salvação (salvação
pelas justiça própria, pela obras pessoais), ao passo que a moralidade cristã
é o desenvolvimento natural da salvação (não servir para ser salvo, mas ser
salvo para servir; não ser santo para merecer o céu, mas santificar-se para
glorificar o Deus do céu). O moralismo é matéria de opção; a moralidade
cristã é inevitável na vida do verdadeiro cristão. Nota do tradutor.

217
A V ID A D E PA Z

deseja realmente desfrutar a plenitude e as bênçãos do


evangelho de Cristo, há algumas coisas que você deve fazer”.
Por isso devemos compreender que não é preciso denun­
ciar as pessoas que não vivem a vida santa. Ao que me parece,
o Novo Testamento tem pena delas. Não há necessidade de
denunciar os cristãos que não fazem o máximo para viver a
vida cristã, porque, pobres deles, já basta o que sofrem por
serem como são. Eles perdem as coisas mais grandiosas que o
evangelho tem para dar. O Novo Testamento considera paté­
ticas as pessoas que afirmam que desejam as bênçãos do
evangelho e, todavia, não fazem a única coisa que é essencial
para recebê-las. Tais pessoas estão enganando a si mesmas, são
insensatas; não seria esse o termo que o nosso Senhor empregou
- o insensato que edificou a sua casa sobre a areia? É desse
modo que o Novo Testamento proclama esta doutrina de
santidade e de santificação. Ele nos vem com este grande
apelo, e nos diz: “Aqui estão as bênçãos que são possíveis,
mas, se você quiser recebê-las, terá que prestar atenção no
que sempre as acompanha” .
Noutras palavras, as bênçãos do Novo Testamento são
condicionais. Este é apenas outro modo de dizer que uma das
palavras mais importantes do versículo 9 é o último “e” : “O
que também aprendestes... e vistes em mim, isso fazei; e o
Deus de paz será convosco”, isto é: “Se vocês fizerem isso, então
isto se seguirá”. Essa é a maneira pela qual o Novo Testamento
oferece estas bênçãos. Na verdade, pesquisem a Bíblia do
começo ao fim, e verão que todas as promessas de bênçãos são
condicionais. No Velho Testamento, não teria sido essa a
verdade a respeito dos filhos de Israel? Esse era o erro crasso
cometido por eles; eles se esqueciam de que tudo o que Deus
tinha prometido a Abraão, e receberem eles a terra e habitarem
nela, era condicional. Isso foi expresso num dos mandamentos
- “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os
teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Êxodo 20:12).

218
Como Experimentar a Faz de Deus

Deus prometeu aos filhos de Israel que eles só possuiríam


aquela terra enquanto obedecessem aos Seus mandamentos e
vivessem de acordo com a Sua santa vontade. Leiam de novo
sobre os dois montes, o monte da bênção e o monte da maldição
(Deuteronômio 11:29). Enquanto o povo obedecia ao Senhor,
era abençoado, mas quando desobedecia, era amaldiçoado.
E vocês se lembram de que aquele povo estulto achava que,
como era o povo de Deus, nada poderia perturbá-lo, mas se
esquecia de que as promessas eram sempre condicionais. Ou
leiam também o preâmbulo dos Dez Mandamentos, em
Êxodo, capítulo 19. Está tudo ali, sempre este “se”, de modo
que, se a condição não for observada, não teremos nenhum
direito de esperar bênção de Deus.
Depois, quando vocês chegam ao Novo Testamento, vêem
exatamente a mesma coisa. Vejam as bem-aventuranças do
Sermão do Monte: “Bem-aventurados os mansos... Bem-
-aventurados os pobres de espírito”, e assim por diante. Essas
são as pessoas que são abençoadas; sim, há sempre a condição:
é preciso que você seja manso e pobre de espírito; é preciso
que você tenha fome e sede de justiça, se quiser ser saciado.
Não se nos diz que seremos saciados porque somos cristãos,
não, nós temos que ter fome e sede, e então seremos saciados,
e abençoados. E agora vemos esta grande explicação desse
princípio aqui, no versículo nove deste último capítulo de
Filipenses.
Examinemos, pois, esta declaração, e façamos uma aná­
lise dela, verificando suas partes componentes. O assunto se
divide por si mesmo de maneira bem simples. O primeiro
princípio ensinado aqui é a vital importância da prática, ou
da ação e da conduta. E a palavra fazei. Vocês ouviram estas
coisas, diz Paulo, aprenderam-nas e as viram em mim; sim,
mas é preciso que as pratiquem. Aí estão vocês, amados
filipenses, encarando um futuro incerto, e aqui estou eu,
prisioneiro em Roma. Pode ser que jamais os veja, pode ser

219
A V ID A D E PA Z

que eu seja executado amanhã, não sei. Todavia, eu sei que,


se vocês viverem esta vida, se praticarem estas coisas, nada
terão que temer, o Deus da paz estará com vocês, e nada lhes
causará dano. Vocês vêem a perfeição do método do apóstolo?
No versículo 8 ele tratou da esfera do pensamento. Ah, mas
o apóstolo sabe do sutil perigo que sempre nos confronta, o
perigo de contentar-nos com um conhecimento teórico,
o perigo que corremos de satisfazer-nos só com a doutrina, o
perigo de deixar de pôr em prática o que sabemos.
Permitam-me sublinhar de novo a ênfase dada a esta
doutrina do princípio ao fim da Bíblia. Acaso não se resumia
nisso todo o problema dos fariseus? Eles descansavam em seu
conhecimento da lei, achavam que a conheciam muito bem;
mas o problema deles era que não a praticavam. Eram mestres,
sim, mas não basta saber estas coisas, é preciso pô-las em prática.
Ou vejam a grande demonstração que Paulo faz deste prin­
cípio em Romanos, capítulo 2. “O problema dos judeus”, diz
Paulo, “é que eles acham que, porque são o povo a quem foi
dada a lei, tudo só pode estar bem. Contudo”, diz ainda Paulo,
“o conhecimento da lei não salva, é a prática da lei que põe
o homem de bem com Deus, e eles confiam em seu conheci­
mento sem a prática. Insensatos”, continua ele, “vocês estão
confiantes no fato de conhecerem os mandamentos de Deus,
mas vocês têm que praticá-los.” E desse modo que ele
mostra que os judeus são culpados, diante de Deus, de não
receberem a salvação realizada por Jesus Cristo.
Tiago diz a mesma coisa: o homem que sabe estas coisas
mas não as pratica, é como o homem que vê seu rosto no espelho
e logo que se vai, esquece o que viu. Tiago mostra que o homem
que contempla a lei perfeita da liberdade, “e nisso persevera”,
é que vai ser abençoado (Tiago 1:22-27). Nada é mais perigoso
para nós do que satisfazer-nos com um conhecimento mera­
mente superficial da lei de Deus. O nosso Senhor diz: “ Se sabeis
estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes” (João 13:17).

220
Como Experimentar a Paz de Deus

Ah, sim, você não vai ser feliz só por sabê-las; antes, você
será feliz se as puser em prática e se as viver em sua vida
diária!
Ou tomemos a advertência que se lê em Mateus, capítulo
7, a figura das duas casas, a casa sobre a rocha e a casa sobre
a areia. Que representam elas? “Todo aquele, pois, que escuta
estas minhas palavras e as pratica”, diz o nosso Senhor, “asse­
melhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa
sobre a rocha” (Mateus 7:24). Entretanto, o homem que edifica
a sua casa sobre a areia é o homem que escuta estes dizeres de
Cristo, mas não os pratica. Ele ouve o que o evangelho tem
para oferecer-lhe e sabe disso, mas não faz nada a respeito, e o
homem imprudente imagina que está tudo bem. Mas, quando
chega a tribulação, aquela casa é totalmente demolida. Ele não
praticou estas coisas, contentou-se com um conhecimento
teórico, com um conhecimento acadêmico. Por isso o apóstolo,
nesta derradeira exortação, adverte os filipenses contra esse erro
pavoroso e terrível. “Eu estive com vocês”, diz praticamente
Paulo, “e vocês ficaram sabendo e receberam de mim certas
coisas. Não somente me ouviram dizê-las, também as viram
desempenhadas em minha vida, e eu lhes rogo que as ponhais
em prática. Não se contentem com um mero conhecimento
destas coisas, vivam-nas em seu viver diário, e então o Deus
da paz estará com vocês, e só então.”
Pois bem, a mim me parece que neste ponto surgem duas
dificuldades. Sinto que muitos de nós perdem muita coisa em
sua vida cristã simplesmente porque não põem à prova este
princípio aparentemente óbvio, e penso que acontece isso por
duas principais razões. Uma, naturalmente, é o prazer que
alguns de nós tendem a ter, por natureza, no conhecimento
teórico e na verdade teórica. Ainda existem alguns que gostam
de ler filosofia, teologia e coisas do gênero. Em minha opinião,
a consideração da realidade e da verdade é o processo intelec­
tual mais alto de que o homem é capaz. Observem a grande

221
A V ID A D E P A Z

doutrina exposta nesta verdade! Sim, mas o maior perigo


que tais pessoas correm é o de contentar-se com esse interesse
teórico. Você pode ser um grande estudioso, até da Bíblia, e
ter uma vida completamente contrária a ela. É lamentável,
mas existem muitos assim. Houve muitos cuja principal
atividade no lazer consistia em dissecar e analisar a Bíblia.
Interessavam-se por sua numerologia e por várias outras
coisas, mas eram pessoas duras e insensíveis, e muitas vezes
falhavam em alguns princípios elementares da vida cristã.
Menciono isso porque muito freqüentemente ouço dizer que
essa é a principal causa do moderno abandono do evangelho.
Há quem diga: “Não quero ser como aquele vitoriano cuja
cabeça estava tão cheia de teologia e de entendimento das
Escrituras, porém que falhava tão tragicamente em sua vida
diária”, e muitas vezes essa crítica é justa. Este perigo se
defronta com esse tipo de indivíduo. A obra prima de satanás
é levar-nos a colocar a teoria e a prática em compartimentos
estanques, separados, fazer com que os homens se interessem
tanto pelo Livro que se esqueçam de aplicar o seu ensino. O
que vocês viram, diz Paulo, pratiquem!
A segunda dificuldade é a seguinte: alguns há que
parecem perder a bênção do evangelho de salvação porque
sempre pensam nele em termos de alguma experiência, de
algo que lhes aconteceu. Passam a vida à espera de uma
experiência. Muitos esperam certas reuniões porque ouviram
falar de pessoas que foram a tais reuniões e que receberam
grandes bênçãos, e eles dizem: “E isso que eu quero. Vou lá
receber esta grande bênção que o evangelho tem para dar. O
que é preciso fazer é ir a essa reunião, e então isso me acon­
tecerá” . Mas esperar experiências desse modo é negar este
ensino; você não precisa esperar coisa alguma. Comece a
praticar o claro ensino das Escrituras; não se trata de receber
alguma experiência. Claro está que você pode ver de repente
esta verdade numa reunião; isso está certo - você pode entender

222
Como Experimentar a Paz de Deus

a mensagem ali. Você pode ter experiências específicas, pode


ter algum sentimento emocional, há muitas coisas dessa
espécie, mas o ensino do Novo Testamento é que, sem a prática
dos preceitos, não temos direito de esperar o cumprimento de
nenhuma promessa. O apóstolo Pedro disse às primeiras
pessoas que o ouviram que o Espírito Santo é dado aos que
obedecem a Deus. Sem essa obediência não temos nenhum
direito de esperar as bênçãos do Espírito Santo.
No entanto, passemos agora a algo ainda mais prático e
imediato. Se eu disser que sem a prática não podemos esperar
que o Deus da paz esteja sempre conosco, então que é que
devemos praticar? Paulo expõe o ponto de maneira bem
simples: “O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes,
e vistes em mim, isso fazei” . Isso não é egoísmo; o apóstolo
Paulo tinha direito de falar desse modo. “Graças a Deus”, diz
com efeito Paulo, “eu tenho experimentado estas bênçãos do
evangelho, e, se vocês quiserem experimentá-las, pratiquem
as coisas que de mim aprenderam e que viram em mim.” Ele
não hesita em dizer-lhes que vivam a espécie de vida que ele
tinha vivido na presença deles. E esse é um princípio muito
valioso para nós. Precisamos descobrir o que devemos fazer,
tanto pela leitura das Escrituras como também observando
o exemplo dos santos.
Bem, aqui há algo que para mim, não somente é de grande
importância, mas também é de grande interesse. Muitas vezes
observei, ao ler as biografias de homens e mulheres devotos
e piedosos, que eles sempre se conformam a um padrão. Os
santos são extraordinariamente parecidos. Se vocês lerem a
vida de qualquer deles, sempre verão que sua vida se baseava
em alguns princípios muito simples. A vida santa é sempre
uma vida muito simples, a vida dos ímpios é que é compli­
cada. O pecado sempre traz complicações. Fez isso logo no
início, quando o homem pecou e mentiu para ocultar o seu
pecado; e no momento em que os homens e as mulheres

223
A V ID A D E PA Z

voltam para Deus e vivem vidas piedosas, suas vidas se


conformam a um padrão muito simples.
Por conseguinte, se vocês observarem Paulo, se observarem
qualquer dos santos que alguma vez adornaram a Igreja, verão
que há certas coisas simples que eles nunca deixam de praticar
e às quais eles dão a mais rigorosa atenção. Permitam-me apenas
anotá-las. Talvez vocês pensem, quando eu as mencionar, que
elas são quase pueris, e, contudo, à medida que as examinarmos,
creio que teremos que admitir que perdemos muita coisa da
vida cristã porque falhamos nessas coisas simples. Eis aqui,
pois, alguns dos princípios pelos quais os santos viviam. Em
primeiro lugar e antes de tudo, vinha a sua atitude para com
Deus. A primeira característica dos santos sempre era que eles
desejavam viver para a glória de Deus. Naturalmente isso se
expressa num desejo de conhecê-10 melhor. Vocês me viram,
disse Paulo aos filipenses, e qual foi a grande característica
da minha vida? Minha grande ambição era “conhece-10, e o
poder da sua ressurreição, e à comunhão de suas aflições” .
Vocês não vêem sobressair em minha vida este grande desejo
de glorificar Deus e conhecê-10 melhor?
Podemos nós dizer que essa é a principal realidade em
nossas vidas? Temos muitos interesses, muitos deles muito
necessários e perfeitamente legítimos, mas, quando exami­
namos a nós mesmos, podemos dizer que esta característica
sobressai acima de todas as outras coisas, que a nossa mais
alta ambição é conhecer Deus melhor, que o nosso maior
empenho nesta existência é no sentido de viver para a glória
de Deus? Vejam qualquer dos santos - Paulo, Agostinho,
Lutero, Calvino, Wesley - observem esses homens e verão
que este é o traço dominante em suas vidas. Sim, mas sejamos
bem práticos: a que prova devemos sujeitar-nos para ver se
isso é verdade a nosso respeito? Bem, isso se expressa de
vários modos práticos, e o mais óbvio é que os santos liam
tanto quanto podiam a auto-revelação de Deus. “Essas coisas.

224
Como Experimentar a Paz de Deus

que vistes em mim fazei” (VA). Quais são elas? Primeira­


mente e antes de tudo, a leitura do livro-texto. Se você
quer conhecer Deus, vá ter com a revelação de Deus. Se
você quer conhecê-10, não poderá evitar essa prática. Passe
o tempo de que dispõe com as Escrituras, demore-se para
entendê-las; diga, como Pedro diz, que, como um bebê
recém-nascido, você tem sede do leite puro da Palavra, para
que por ele você possa crescer (1 Pedro 2:2).
Depois, logo a seguir, obviamente, está a oração. Se você
gosta de uma pessoa, quer passar com ela tanto tempo
quanto puder. Se quisermos conhecer Deus melhor, certa­
mente precisamos passar tempo conversando com Ele. Quanto
tempo passamos em oração, privadamente, em público, em
oração sobre estas coisas, falando com Deus sobre a nossa
indignidade pessoal, pedindo-Lhe que Se nos revele mais e
mais? “Essas coisas fazei” - se você quer que o Deus da paz
esteja com você, a questão é fazer, não esperar experiências.
Você começa lendo a Bíblia e logo passa a orar. Talvez você
diga: “Mas eu não consigo orar” . Fale com Deus sobre isso.
Diga-lhe que é seu desejo conhecê-10 melhor e passar tempo
com Ele. Não seria óbvio? Faça estas coisas, diz Paulo.
Além disso, a atitude dos santos para com eles mesmos é
uma decorrência inevitável. Eles têm consciência da sua
pecaminosidade e por isso se rebaixam e se humilham, e
fazem o máximo para mortificar suas imperfeições - vocês
verão isso na biografia de todo e qualquer santo. E então, como
eles fazem isso? Passando tempo a examinar a si mesmos, o
que é uma das coisas mais difíceis de fazer neste mundo
atarefado. Mas, se um homem quiser rebaixar-se e humilhar-
-se diante de Deus, terá que achar tempo para examinar-se e
para examinar sua vida. Ele terá que examinar-se à luz das
Escrituras e à luz das vidas dos santos. Ele precisa ver onde
falha; ele precisa inspecionar constantemente seu coração,
pondo para fora as coisas ocultas e dando a elas o devido

225
A V ID A D E PA Z

tratamento. Auto-exame - como os santos se concentravam


nisso!
Que mais? A próxima coisa é sua atitude para com o
mundo no qual eles se acham. Isso também é inevitável. Os
santos sempre consideraram este mundo como um lugar
pecaminoso, oposto a Deus e oposto aos mais altos interesses
da alma. Por isso faziam o máximo para evitar sua influência,
seus interesses egoísticos e as cobiças mundanas, e mantinham
rompimento com todas essas coisas. Não estou enunciando
isso como lei, estou somente lhes dizendo o que vocês
podem ver nas vidas de Paulo e de todos os santos de Deus.
Eles sempre viram que o mundo é oposto aos nossos mais
altos e melhores interesses - que ele está sempre puxando a
gente para baixo; e, tendo visto isso, eles renunciavam ao
mundo, custasse o que custasse.
Qual é a atitude dos santos de Deus para com os que não
são cristãos? É vê-los como vítimas do pecado e de satanás, e
por isso se lamentam por eles e lhes falam sobre estas coisas.
Procuram esclarecê-los, adverti-los do perigo para suas
almas; não hesitam, correndo o risco de sofrer perseguição e
escárnio, em admoestá-los e em procurar atraí-los e levá-los
a ver a verdade de Deus como ela se vê em Cristo Jesus.
Portanto, para resumir tudo isso, os santos sempre con­
sideraram a vida apenas como uma jornada, como uma
peregrinação. Eles se consideravam pessoas em viagem através
deste deserto rumo a Deus e à glória, e seus olhos sempre
estiveram postos nisso. Tudo o que se interpunhava entre
eles e essa meta, tudo o que se opunha a isso, era evitado;
eles se concentravam nesta única coisa - vida piedosa.
Bem, eu fiz apenas um sumário do ensino da Bíblia;
vocês o verão em muitas passagens. Paulo, por exemplo,
escrevendo a Tito, resume toda essa questão dizendo que
somos ensinados a que “ renunciando à impiedade e às
concupiscências mundanas, vivamos neste presente século.

226
Como Experimentar a Paz de Deus

sóbria, e justa, e piamente, aguardando a bem-aventurada


esperança, e o aparecimento da glória do grande Deus e
nosso Senhor Jesus Cristo” (Tito 2:12,13). É isso - é o que
nos cabe praticar.
Vimos, pois, a importância da prática e do que temos que
praticar, e agora, finalmente, examinemos a recompensa dada
a tal prática. Ei-la - fazei estas coisas: “e o Deus de paz será
convosco” . Será que alguém acha que eu tenho sido estreito
demais, que este tipo de vida é muito estreito e que dificilmente
vale a pena? “Evite isto, leia a Bíblia, ore - isso não é uma
apologia sobre a vida?” Mas é o que o evangelho diz: “Essas
coisas... fazei: e o Deus de paz estará convosco”. O preço é muito
alto? Meu caro amigo, ninguém pode decidir isso por você,
você é que decide por si mesmo. Tudo o que lhe digo é que,
se você quiser que o Deus de paz esteja com você, faça estas
coisas. E isso que Paulo estivera fazendo, é o que os santos
sempre fizeram. “Haveria alguma diferença”, alguém per­
gunta, “entre a paz de Deus mencionada no versículo sete e a
paz de Deus a que se refere este versículo nove? Os versículos
6 e 7 dizem: “...as vossas petições sejam em tudo conhecidas
diante de Deus... E a paz de Deus... guardará os vossos corações
e os vossos sentimentos...” ; mas aqui Paulo diz: “o Deus de
paz será convosco.”
Não há diferença essencial. No versículo 7 você tem a apli­
cação particular, mas no versículo 9 você tem uma declaração
geral: “Viva esta vida”, diz com efeito Paulo, “e Deus estará
sempre com você, e Ele é o Deus de paz”. A paz é a Sua grande
característica. Há paz no amor de Deus porque Ele é santo;
Ele é um Deus de paz e quer estar em paz com você. Esse é o
sentido geral do evangelho, e por isso Cristo veio. Os homens
e as mulheres ficaram em condições miseráveis porque se
rebelaram contra Deus, e Deus enviou Cristo para fazer a
paz. O significado da cruz é que Deus está fazendo a paz
com os Seus inimigos, que se haviam rebelado contra Ele,

227
A V ID A D E PA Z

tornando possível aos homens estarem em paz com Ele.


Cristo apagou o nosso pecado e, portanto, podemos estar em
paz com Deus. E, também, Ele me faz ficar em paz comigo
mesmo, porque, quando Ele remove o pecado da minha
vida, a pressão, a tensão e o conflito se vão, e eu encontro
uma estranha paz. Ele me faz viver em paz com os outros e
me habilita a estar num estado de paz, sejam quais forem
as circunstâncias, as condições e tudo quanto me cerca.
Essa é a promessa e, oh, que promessa generosa e gloriosa!
Ande na luz desse caminho, diz Paulo, e Deus andará com
A

você. Essa é a figura. E exatamente como Enoque, da anti-


güidade: “Andou Enoque com Deus” (Gênesis 5:24), e Deus
andou com ele. Aqui está, pois, a promessa de Paulo aos
cristãos aos quais estava escrevendo: andem por esse caminho,
e 0 Deus de paz estará com vocês. Dificuldades podem
surgir, mas Ele as extinguirá. Aconteça o que acontecer, Ele
estará sempre com vocês. “ Essas coisas, que aprendestes,
recebestes, ouvistes e vistes em mim, fazei: e o Deus de paz
estará convosco.” Na vida, na morte, sempre. Sua promessa
é: “Nunca te deixarei, nunca te abandonarei” (Hebreus 13:5,
VA. cf. NVI).
Seria Deus isso para você? Você O conhece? Você O tem
a seu lado nos dias de tribulação? Durante a fraqueza e a
doença, a inquietação e a infelicidade, Ele está com você?
Que maravilhosa possibilidade! Mas a condição é esta: faça
estas coisas e então, se as fizer, Ele estará realmente com
você, sempre.

228
17
Aprendendo a Estar Contente
“Ora, muito me regozijo no Senhor por finalmente reviver a
vossa lembrança de mim; pois já vos tínheis lembrado, mas não
tínheis tido oportunidade. Não digo isto como por necessidade, porque
já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei
também ter abundância; em toda maneira, e em todas as coisas estou
instruído, tanto a terfartura, como a terfome; tanto a ter abundância,
como a padecer necessidade.” - Filipenses 4:10-12

Nas palavras de Filipenses 4:10-12 temos uma das por­


ções das Escrituras que sempre me fazem pensar que há um
sentido em que a única coisa certa e própria que se deve fazer
depois de as lermos num culto na igreja é impetrar a bênção!
Trememos só de chegar perto de tão nobres e exaltadas pala­
vras, evocando como evocam as marcas da maré alta da
experiência cristã deste extraordinário apóstolo dos gentios.
Contudo, embora as abordemos com temor e tremor, é nosso
dever tentar analisá-las e explicá-las. Com o fim do versículo
nove deste capítulo o apóstolo chegou ao fim das particulares
exortações que tanto desejara dirigir aos membros da igreja de
Filipos. Ele realmente terminou a sua doutrina, mas ainda
não pode concluir a carta. Há mais uma coisa que ele precisa
fazer, e é que ele devia expressar a sua profunda gratidão aos
membros da igreja de Filipos pela dádiva pessoal que lhe
tinham enviado por mãos de seu irmão e amigo Epafrodito,
estando Paulo na prisão, em Roma.
Esse é um dos motivos pelos quais Paulo estava escrevendo

229
A V ID A D E PAZ

a carta, afinal. A igreja filipense lhe enviara uma dádiva. Não


somos informados sobre o que era, se era em dinheiro ou em
espécie, mas lhe tinham enviado algum presente por meio de
Epafrodito como seu emissário. Agora Epafrodito ia voltar a
eles e Paulo lhes envia a carta com ele. Tendo terminado sua
doutrina, ele quer agradecer-lhes essa expressão do seu amor
e da sua solicitude por ele, em seu sofrimento e em seu
aprisionamento. E o que Paulo passa a fazer nos dez versículos
que vão do versículo 10 ao versículo 20. Sempre acho, acerca
desta Epístola, que não há nada mais interessante do que
observar minuciosamente a maneira pela qual o apóstolo faz
tudo; e a maneira pela qual ele apresenta seus agradecimentos
aos membros da igreja de Filipos é cheia de instrução e de
interesse. Está bem claro que esta questão de agradecer aos
membros da igreja de Filipos pelo seu presente e sua bondade
punha diante do apóstolo um problema. Vocês poderiam
pensar que certamente não poderia haver nenhum problema
em mostrar gratidão a pessoas que tinham sido bondosas e
generosas, e, todavia, para Paulo obviamente é um problema.
Ele ocupa dez versículos para tratar disso. Freqüentemente
vocês o vêem tratar de uma doutrina extraordinária em um
versículo ou dois, mas quando ele passa a agradecer aos
membros da igreja de Filipos sua bondade e sua amabilidade,
isso exige dele dez versículos. Notem também como ele se
repete. “Não digo isto como por necessidade”, e mais adiante,
“Não que (eu) procure dádivas.” Há uma espécie de argumento,
e ele parece achar difícil encontrar as palavras certas.
O problema de Paulo era mais ou menos o seguinte: ele
desejava muito agradecer à igreja de Filipos sua amabilidade.
Mas, ao mesmo tempo, ele estava igualmente desejoso, se não
mais, de lhes mostrar que não estivera esperando impaciente­
mente esta expressão da sua bondade, ou contando com isso,
e, ainda mais, que em nenhum sentido ele dependia da bondade
e da generosidade deles. Desse modo ele se vê confrontado

230
Aprendendo a Estar Contente

por um problema. Ele tem que fazer, ao mesmo tempo, estas


duas coisas - expressar sua gratidão aos membros da igreja de
Filipos, e, contudo, terá que fazê-lo de um modo que em
nenhum sentido detrate ou deprecie a realidade da sua
experiência como cristão dependente de Deus. Por isso ele
precisa de dez versículos. Era o problema de um cavalheiro
cristão, sensível face aos sentimentos alheios. E que grande
cavalheiro este apóstolo era! Como se preocupava com os
sentimentos dos outros! Como cavalheiro, deseja expressar
aos filipenses a sua profunda gratidão e fazê-los saber que a
sua bondade realmente o comovia profundamente, e, por
outro lado, está preocupado em deixar bem claro para eles
que ele não tinha passado tempo a se perguntar por que
eles não pensavam em suas necessidades, nem tinha ficado
sofrendo por eles não lhe terem enviado nada, estando ele na
prisão. Ele queria deixar perfeitamente claro que nunca
estivera nessas condições, e o que temos nestes dez versículos
é o método do apóstolo de resolver esse problema particular.
Agora, o que temos que captar sobre a verdade cristã é
que esta é algo que governa a totalidade da nossa vida. O
evangelho cristão domina a vida inteira do cristão. Controla o
seu pensamento, como temos visto no versículo 8, controla as
suas ações, como já vimos no versículo 9, e, nesses dez versí­
culos, mesmo na questão de retribuir com agradecimentos
uma bondade recebida, faz isso de modo diferente do modo
como o faz uma pessoa incrédula. O cristão não pode fazer
nada, nem uma coisa como esta, a não ser de maneira
verdadeiramente cristã. Por isso o apóstolo mostra aqui, ao
mesmo tempo, seu débito a seus amigos, mas seu débito ainda
maior ao Senhor. Paulo sempre era zeloso da reputação do
Senhor, e temia que, ao agradecer aos filipenses sua dádiva, de
algum modo daria a impressão de que o Senhor não era
suficiente para ele. Isso ele tinha que manter em primeiro lugar.
Ele ama de coração estes filipenses e lhes é profundamente

231
A V ID A D E PA Z

grato. Mas ama seu Senhor muito mais, e teme que, ao lhes
apresentar agradecimentos, de algum modo dê base à suspeita
de algo que insinue que o Senhor não era suficiente para ele,
ou que tenha dependido dos filipenses num sentido funda­
mental.
Então ele dá início a esta passagem extraordinária, com as
afirmações estupendas e espantosas que ela contém, para
mostrar a primazia do Senhor e a absoluta suficiência do
Senhor, embora mostrando, ao mesmo tempo, sua gratidão,
seu débito e seu amor aos filipenses por esta manifestação do
seu pessoal cuidado e solicitude por ele. A essência da questão
acha-se nos versículos 11 e 12. Aqui temos a doutrina - “Não
digo isto como por necessidade, porque já aprendi a conten-
tar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter
abundância; em toda maneira, e em todas as coisas estou
instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter
abundância, como a padecer necessidade”.
Precisamos examinar agora esta grande doutrina que Paulo
anuncia desse modo. Há dois grandes princípios aqui. O
primeiro é, claro, a condição a que o apóstolo chegou. O
segundo é a maneira pela qual ele chegou a essa condição. Eles
constituem o assunto por excelência desta tremenda declaração.
Examinemos primeiro a condição alcançada pelo apóstolo.
Ele a descreve com uma palavra aqui traduzida por “contente”
- “Em qualquer condição em que me encontre, aprendi a estar
contente com isso” (VA). E importante captar o sentido preciso
desta palavra. Nossa palavra inglesa “content” não explica
plenamente o sentido da palavra do texto grego. A palavra que
Paulo emprega significa realmente que ele é “auto-suficiente”,
independente das circunstâncias ou das condições ou das coisas
que haja ou sucedam a seu redor, “ter suficiência em sua pró­
pria pessoa”. Esse é o real significado da palavra traduzida por
“contente” . A afirmação feita pelo apóstolo é que ele chegou a
um estado no qual pode dizer real e verdadeiramente que é

232
Aprendendo a Estar Contente

independente da sua posição, das suas circunstâncias, das coisas


que 0 cercam e de tudo o que lhe está acontecendo. Ora, que
isso não foi mera declaração retórica por parte do apóstolo é
demonstrado claramente nos registros que temos acerca deste
homem e da sua vida em diferentes partes do Novo Testamento.
Há, por exemplo, um interessante caso exemplo disso em
Atos, capítulo 16, que descreve a primeira visita de Paulo a
Filipos, onde viviam os destinatários desta carta. Certamente
vocês se lembram de que ele e Silas foram detidos, açoitados
e lançados na prisão, com os pés presos no tronco. Não seria
muito fácil suas condições serem piores do que eram, e,
todavia, tão pouco efeito fizeram sobre Paulo e Silas que “perto
da meia-noite” eles “oravam e cantavam hinos a Deus” (Atos
16:25). Independente das circunstâncias, “contente, em qual­
quer condição em que me encontre” . É o que vocês poderão
ver também na famosa passagem de 2 Coríntios, capítulo 12,
onde Paulo nos conta que aprendeu a ficar independente do
“ espinho na carne” ; ele era auto-suficiente, apesar disso.
Lembrem-se também de que Paulo exorta Timóteo a agarrar-
-se a este princípio, dizendo: “E grande ganho a piedade com
contentamento” (1 Timóteo 6:6). “Não há nada como ter
piedade com contentamento”, praticamente ele diz. “ Se você
tem isso, tem tudo.” Paulo já era um homem de idade nesse
tempo, e escreve ao jovem Timóteo, e lhe diz: a primeira coisa
que você tem que aprender é a ser independente das circuns­
tâncias e das condições - “Piedade com contentamento”. Essas
são apenas algumas das muitas ilustrações similares para as
quais eu poderia chamar a atenção de vocês.
O ensino do Novo Testamento, contudo, não afirma
somente que isso era uma verdade concernente a Paulo; o Novo
Testamento deixa bastante claro que essa é uma condição na
qual todos nós, como cristãos, deveriamos entrar. Lembrem-
-se da afirmação feita pelo nosso Senhor em Mateus 6:34: “Não
vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã” . Não fiqueis ansiosos

233
A V ID A D E PA Z

nem preocupados dem ais com o que comer, nem com


nenhuma das coisas dessa espécie. Essa é a gloriosa e extra­
ordinária independência daquilo que nos acontece, algo
que todos nós devemos conhecer e experimentar. É auto-
-suficiência no bom sentido.
Mas é muito importante que tenhamos em nossas mentes
um claro entendimento do que isso significa. A palavra
“contente” tende a provocar certa incompreensão do que o
apóstolo está ensinando. Vocês podem interpretar esta
declaração de Paulo de um modo que justifica mais ou menos
a acusação de que o evangelho cristão nada mais é do que “o
ópio do povo”. Muitos hoje tendem a pensar que o evangelho
cristão tem sido um impedimento para a marcha progressiva
da humanidade, que ele tem sido um empecilho do progresso,
que não tem sido nada mais do que “uma droga para dopar o
povo”. Dizem eles que o evangelho é uma doutrina que tem
ensinado o povo a sujeitar-se a toda espécie de condições, sejam
quais forem, e por mais infames e injustas que sejam. Tem
havido uma violenta reação política contra o evangelho de Jesus
Cristo porque muitos têm interpretado muito mal este tipo de
texto, ao ponto de ser possível expressar essa interpretação
desta maneira:
O rico em seu castelo;
O pobre à sua porta,
Deus os fez, plebeus ou nobres,
E seu estado ordenou.
- C. E Alexander

Ora, isso é ridículo, e é uma deslavada negação do que o


apóstolo ensina aqui. Contudo, quantas vezes a interpretação
tem sido essa! E causa de grande pesar o fato de que aquele
que pôde escrever o hino, “Mui longe o monte verde está”,' se
' Novo Cântico, n°. 261. Autor do original inglês: C. F. Alexander; autor da
versão em português: J. G. Rocha.

234
Aprendendo a Estar Contente

tenha feito culpado de uma tal violação do ensino da Bíblia -


“O rico em seu castelo, o pobre à sua porta” . Teria sido propó­
sito que os homens fossem o que são e assim permanecessem
para sempre? A Bíblia nunca ensina isso; ela não diz que os
pobres, homens e mulheres, se contentem em permanecer na
pobreza, que nunca devem esforçar-se para “melhorar”. Não
há nada na Bíblia que conteste a proposição segundo a qual
todas as pessoas são iguais aos olhos de Deus e que todas têm
direito a igual oportunidade. Grave dano tem sido feito à
Igreja de Cristo pelo fato de uma declaração como a do nosso
texto ser, como tem sido, mal interpretada dessa maneira.
Tampouco significa mera indiferença face às circunstân­
cias. Essa atitude nada mais é que a resignação negativa de um
estoicismo pagão, e longe está da posição cristã. Que significa,
então? Diz o apóstolo na passagem que estamos estudando que
ele não é dominado ou controlado pelas circunstâncias. Se você
puder melhorar as suas circunstâncias utilizando meios justos
e legítimos, faça tudo para consegui-lo; mas, se não conseguir,
se tiver que permanecer numa situação penosa e difícil, não se
deixe dominar por isso, não permita que isso o deprima, não
deixe que tal situação o controle, não deixe que ela determine
a sua miséria ou a sua alegria. “Você”, diz o apóstolo, “deve
entrar num estado no qual, sejam quais forem as condições
em que você se encontre, você não é controlado por elas.” É
isso que ele afirma a respeito de si próprio. “ Seja qual for a
minha condição ou circunstância”, praticamente é o que ele
diz, “eu estou no controle. Eu sou senhor da situação, não sou
dominado pela situação. Sou livre. Estou em liberdade. Não
dependo, para a minha felicidade, daquilo que me acontece.
Minha vida, minha felicidade, minha alegria e minha experi­
ência independem das coisas que sucedem ao meu redor, e
nem mesmo das coisas que acontecem comigo.” Eu gostaria
de lembrá-los de novo de que Paulo estava na prisão, prova­
velmente acorrentado a um soldado à sua direita e a outro à

235
A V ID A D E PA Z

sua esquerda, quando proferiu estas palavras, e, contudo,


mesmo nessa condição, ele pode dizer que é independente das
circunstâncias. “Minha vida”, diz Paulo, “não é controlada e
determinada pelas coisas que me acontecem; estou num
estado e numa condição em que me elevo acima delas. Estas
coisas não são os fatores determinantes em minha vida e em
minha experiência.”
Bem, essa é a sua alegação, e ele estava muito desejoso de
salientar o fato de que é uma alegação totalmente abrangente.
Observem de novo as suas palavras. Tendo feito a declaração
geral, ele agora a amplia: “ Sei estar abatido, e sei também ter
abundância; em toda maneira, e em todas as coisas estou
instruído” - mais uma vez ele volta a isso - “tanto a ter fartura,
como a ter fome, tanto a ter abundância, como a padecer
necessidade” . Ele desejava deixar perfeitamente clara a total
abrangência da sua alegação. Permitam-me colocar os opostos
em série. Ele sabe estar abatido, sabe ter fome e sabe padecer
necessidade; por outro lado, ele sabe ter abundância (estar bem
de vida), sabe ter fartura e sabe ter abundância (de suprimentos).
Seria interessante discutir a dificuldade dessas duas coisas. Seria
mais difícil ter contentamento mental quando se está abatido
(em má situação), ou quando se tem abundância? Não sei se
alguma vez poderemos responder a essa pergunta. Ambas as
situações são extremamente difíceis, e uma coisa é tão difícil
como a outra. Poderia estar abatido sem ter algum ressenti­
mento ou sem ficar preocupado? Poderia padecer necessidade
de alimento ou de roupa, poderia ser rebaixado em minha
profissão liberal no escritório ou no trabalho braçal, poderia,
de um modo ou de outro, ser posto abaixo e ainda permanecer,
no espírito, exatamente como eu era antes? Como é difícil ser
posto no segundo lugar, ser injuriado, ser insultado, ver outros
sofrendo as mesmas coisas, sofrer necessidade ou dor física - e
saber ser rebaixado, passar fome, padecer necessidade nalgum
aspecto. Uma das maiores tarefas da vida consiste em descobrir

236
Aprendendo a Estar Contente

como suportar alguma dessas coisas ou todas elas sem ter


algum ressentimento ou queixa ou aborrecimento ou amargor
de espírito, descobrir como não ficar preocupado ou ansioso.
Paulo nos diz que aprendeu a fazer isso. Ele experimentou
toda espécie de provação e de tribulação e, todavia, não foi
afetado por nada disso.
Vejam então o outro lado: sei “ter abundância” (ARA: “ser
honrado”), diz Paulo. Sei “ter abundância”, “ter de tudo”. Como
isso é difícil! Como é difícil uma pessoa rica não sentir com­
pleta independência de Deus! Quando somos ricos e podemos
ajeitar e manipular tudo, temos a tendência de esquecer Deus.
Muitos de nós nos lembramos dEle quando estamos por
baixo. Quando estamos em necessidade nos pomos a orar, mas
quando temos tudo o que necessitamos, como é fácil esquecer
Deus! Deixo com vocês a decisão sobre o que é mais difícil. O
que Paulo diz é que em qualquer destas situações ele é per-
feitamente livre. A pobreza não o derruba, a riqueza não o
arrebata fazendo-o perder o pé. Ele diz que não depende nem
de uma nem da outra, que, neste sentido, ele é auto-suficiente,
que a sua vida não é controlada por estas coisas, que ele é o
que é independentemente delas. Quer tenha abundância,
quer padeça necessidade, nada disso importa.
Mas ele não se contenta com isso, ele vai mais longe e diz:
“Em toda maneira e em todas as coisas”, o que significa em
toda e qualquer coisa, cada coisa em detalhe, e todas as coisas
juntas. Pois bem, Paulo faz esse tipo de divisão deliberada-
mente. Ele quer dizer que não há limite para o que ele pode
fazer a respeito - “Em cada coisa única, particular, sou desse
jeito”. Depois acrescenta: “Agora eu as coloco juntas - em todas
as coisas, aconteça-me o que me acontecer, sou auto-suficiente,
não dependo delas, minha vida, minha felicidade e minha
alegria não são determinadas ou controladas por elas”.
De acordo com o apóstolo, é desse modo que se deve viver,
esse é o viver cristão. E bom que encaremos esta declaração

237
A V ID A D E P A Z

extraordinária. Vivemos dias e tempos de incerteza, e bem


pode ser que a primeira e maior lição que temos que aprender
seja como viver sem deixar que as circunstâncias afetem nossa
paz e nossa alegria interior. E, contudo, talvez nunca tenha
havido um período da história do mundo em que foi tão difícil
aprender esta lição como o é atualmente. A vida em geral é tão
organizada na presente hora que torna quase impossível viver
esta vida cristã auto-suficiente. Mesmo no sentido natural,
todos nós somos tão dependentes das coisas feitas em nosso
favor e para nós, e de tudo o que acontece ao nosso redor, que
se tornou muito difícil viver as nossas próprias vidas. Nós
ligamos o rádio ou a televisão, e aos poucos vamos ficando
dependentes deles, e dá-se o mesmo com os nossos jornais, os
nossos cinemas, os nossos entretenimentos. O mundo organiza
a vida para nós em todos os aspectos, e nós ficamos dependentes
dele. Boa ilustração nos oferece o que ocorreu nos primeiros
dias da última guerra, quando pela primeira vez nos foram
impostos os regulamentos do apagão (do “hlackout”). Ouvia-se
algo que era descrito como “a chateação do apagão”. As pessoas
achavam quase impossível passar uma sucessão de noites em
casa sem fazer nada. Elas tinham ficado dependentes do
cinema, do teatro e de várias outras formas de entretenimento,
e quando essas coisas foram cortadas de repente, elas não sabiam
o que fazer. Isso é a real antítese daquilo que Paulo está
escrevendo aqui. Mas essa está se tornando cada vez mais a
tendência da vida atual; cada vez mais nos tornamos depen­
dentes do que os outros estão fazendo por nós.
É pena, mas isso não é verdade só com relação ao mundo
em geral; também está se tornando uma verdade a respeito do
povo cristão em particular. Opino que um dos maiores perigos
com que nos defrontamos, no sentido espiritual, é o de nos
tornarmos dependentes de reuniões. Está se desenvolvendo
uma espécie de “mania de reuniões”, e há cristãos que parece
que sempre estão em reuniões. Bem, não há nenhuma dúvida

238
Aprendendo a Estar Contente

de que as reuniões têm grande valor. Ninguém me entenda


mal nem imagine que eu estou dizendo que você só deve ir
a um lugar de culto no domingo. As reuniões são excelentes,
mas tomemos o cuidado de não ficar tão dependentes das
reuniões que um dia, quando nos virmos doentes e de cama,
não saibamos o que fazer. Até das reuniões cristãs podemos
ficar exageradamente dependentes - mesmo de uma atmosfera
cristã. Outro dia um homem discutiu comigo sobre o que é
mencionado como a “fuga” que ocorre entre os membros de
certas organizações cristãs preocupadas principalmente com
jovens. Há um problema muito real aí. Enquanto estão na
atmosfera da organização cristã, esses jovens mostram entu­
siasmo e interesse, mas no período de alguns anos a igreja os
perde. Qual a causa dessa fuga? Muito freqüentemente é que
eles se tornam demasiado dependentes de uma particular
comunhão, de modo que, quando vão para o mundo ou se
mudam para outro distrito onde não estão mais cercados por
toda essa particular comunhão, de repente afrouxam e caem.
Essa é a espécie de coisa contra a qual o apóstolo nos adverte.
Devemos estar cientes do perigo de apoiar-nos em escoras,
mesmo no serviço e testemunho cristão. Por isso o apóstolo
nos exorta a adentrar um estado no qual sejamos indepen­
dentes do que aconteça ao redor de nós, mesmo nessas coisas.
Devemos cultivar esta gloriosa auto-suficiência.
O professor Whitehead proferiu uma grande verdade
quando disse em sua definição de religião: “A religião é o
que 0 homem faz com a sua solidão” . Em última análise, eu
e vocês somos o que somos quando estamos sozinhos. Con­
fesso que, num sentido, me é mais fácil pregar de um púlpito
do que sentar-me sozinho em meu gabinete; provavelmente
é mais fácil para a maioria das pessoas gozar a presença do
nosso Senhor na companhia de outros cristãos do que
quando estamos sós. Paulo queria que nós desfrutássemos
o que ele desfrutava. Ele tinha um amor pelo Senhor que

239
A V ID A D E PA Z

0 tornava independente de tudo o que estava acontecendo, ou


que viesse a acontecer - em cada coisa, em todas as coisas, onde
quer que ele estivesse, acontecesse o que acontecesse, ele estava
contente. Humilhado ou em alta, em necessidade ou na
abundância, não importava, ele tinha esta vida, esta vida
escondida com Cristo (Colossenses 3:3).
Consideremos brevemente a segunda questão que encon­
tramos aqui, a saber, como foi que o apóstolo chegou a esta
condição. Aqui também ele faz uma declaração muito
interessante. Notem que ele diz: “Aprendi”, ou melhor: “Vim
a aprender”. Dou graças a Deus por Paulo ter dito isso. Nem
sempre Paulo estava no mesmo nível, como acontece com
qualquer de nós. Ele tinha “vindo a aprender”. E há outra
palavra interessante também. Ele diz: “Em toda maneira e em
todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura como a ter
fome”. Todas as autoridades concordam em dizer que o que
ele realmente diz aqui é: “Fui iniciado”, “entrei no segredo”,
“no mistério”.
Paulo declara que veio a aprender a estar nesta condição.
Bem, muitas passagens do Novo Testamento dão a idéia de
que isso foi particularmente difícil para ele. Paulo era um
homem sensível, orgulhoso por natureza, e, em acréscimo, era
um ser intensamente ativo. Nada poderia ser mais mortificante
para tal homem do que jazer numa prisão. Ele fora criado como
cidadão romano, mas aqui está sofrendo escravidão, não pas­
sando sua vida entre grandes intelectuais, mas sim entre
escravos. Como ele pôde lidar com isso? Ah, diz ele, eu aprendi,
entrei no segredo, fui introduzido no mistério!
Como foi que ele veio a aprender? Permitam-me tentar
responder essa pergunta. Em primeiro lugar, foi por mera
experiência. Basta eu dirigir a atenção de vocês para 2 Coríntios,
capítulo 12, especialmente para os versículos 9 e 10, que falam
do “espinho na carne” . Paulo não gostou. Lutou contra ele;
orou três vezes pedindo que fosse removido. Mas não foi. Ele

240
Aprendendo a Estar Contente

não conseguia ficar em paz com isso. Ficou impaciente, estava


ansioso para sair e pregar, e esse espinho na carne o mantinha
derrubado. Entretanto, lhe foi ensinada a lição: “A minha graça
te basta”. Ele chegou a uma posição de entendimento como
fruto da pura e simples experiência que teve do procedimento
de Deus com ele. Paulo tinha que aprender, e a experiência
nos ensina, a todos nós. Alguns de nós somos muitos lentos
para aprender, mas, em Sua bondade. Deus pode enviar-nos
uma doença, às vezes até nos derruba - alguma coisa que nos
ensine esta grande lição e nos traga a esta importante posição.
Todavia, não foi só pela experiência. Paulo tinha chegado
a aprender esta verdade pela elaboração de um grande
argumento. Permitam-me oferecer-lhes alguns dos passos do
argumento que cada um de vocês pode elaborar pessoalmente.
Penso que a lógica do apóstolo segue um rumo como este: Ele
disse a si mesmo:
1. As condições estão sempre mudando; logo, é óbvio que
eu não devo depender das condições.
2. O que importa, suprema e vitalmente, é minha alma e
minha relação com Deus - este é o aspecto principal.
3. Como meu Pai, Deus preocupa-Se comigo, e nada me
acontece independentemente de Deus. Até os cabelos da minha
cabeça estão todos contados. Nunca devo me esquecer disso.
4. A vontade de Deus e os Seus caminhos são um grande
mistério, mas eu sei que, seja o que for que Ele queira ou
permita, é necessariamente para o meu bem.
5. Toda situação na vida é o desdobramento de alguma
manifestação do amor e da bondade de Deus. Logo, é meu
dever buscar descobrir cada manifestação da bondade e da b-
nignidade de Deus e estar pronto para surpresas e bênçãos,
porque “Os vossos caminhos (não são) os meus caminhos, diz
0 Senhor” (Isaías 55:8). Qual será, por exemplo, a grande lição
que Paulo aprendeu na questão do espinho na carne? E que
“quando estou fraco então sou forte” . A fraqueza física foi o

241
A V ID A D E PA Z

meio pelo qual Paulo aprendeu esta manifestação da graça


de Deus.
6. Logo, não devo considerar as circunstâncias e as condi­
ções em si mesmas, mas como parte dos procedimentos de
Deus para comigo na obra pela qual Ele aperfeiçoa a minha
alma e me leva à perfeição final.
7. Sejam quais forem as minhas condições no presente
momento, são apenas temporárias, são passageiras, e jamais
poderão privar-me do gozo e da glória que final e suprema­
mente me esperam em Cristo.
Eu sugiro que Paulo raciocinou e desenvolveu o assunto
dessa maneira. Ele tinha encarado condições e circunstâncias
à luz da verdade cristã e do evangelho cristão, e tinha desen­
volvido esses passos e estágios. E, tendo feito isso, ele diz:
aconteça comigo o que quer que vocês possam pensar, per­
maneço exatamente na mesma posição em que estava antes.
Seja o que for que me aconteça, fico inabalável.
O grande princípio que emerge claramente é que Paulo
aprendera a encontrar o seu prazer e a sua satisfação em Cristo,
e sempre em Cristo. Esse é o aspecto positivo deste assunto.
Temos que aprender a confiar-nos a Ele e, para podermos fazer
isso, temos que aprender a ter comunhão com Ele, e temos
que encontrar nEle o nosso prazer. Permitam-me dizê-lo com
franqueza - o perigo que alguns de nós corremos é o de passar
muito tempo lendo sobre Ele. Poderá vir o dia, e na verdade
virá, em que não conseguiremos ler. Então virá a prova. Você
continuará sendo feliz? Você O conhece tão bem que, embora
esteja surdo ou cego, esta fonte ainda estará aberta? Você O
conhece tão bem que pode falar com Ele, ouvi-10 e desfrutá-
-10 sempre? Estará tudo bem porque você sempre se pôs na
dependência da sua relação com Ele de tal maneira que
nada mais importa? Essa era a condição do apóstolo. Sua in­
timidade com Cristo era tão grande e tão profunda que ele
se tornara independente de tudo mais.

242
Aprendendo a Estar Contente

Finalmente, acredito que o que o ajudou mais a aprender


esta lição foi observar o grandioso e perfeito exemplo do
próprio Cristo. “Olhando para Jesus... o qual pelo gozo que
lhe estava proposto suportou a cruz, desprezando a afronta”
(Hebreus 12:2). Paulo “olhou para ele” e O viu, e viu nEle o
exemplo perfeito. E o aplicou à sua própria vida. “ Não
atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não
vêem; porque as que se vêem são temporais e as que se não
vêem são eternas” (2 Coríntios 4:18).
“Em qualquer estado em que eu estiver, aprendi a ser
auto-suficiente e independente das circunstâncias.”
Irmãos, vocês podem dizer isso? Vocês têm conhecimento
desse estado? Que isso esteja em primeiro lugar para nós, seja
essa a nossa ambição, esforcemos estrenuamente cada nervo e
façamos tudo o que pudermos para chegar a esse bendito
estado. A vida pode impô-lo a nós, mas, mesmo que as
circunstâncias não o façam, inevitavelmente chegará o tempo,
mais cedo ou mais tarde, em que terra e todo o cenário terreno
passarão, e nesse isolamento final da alma, estaremos sós,
enfrentando a morte e a eternidade. A maior grandeza da vida
é poder dizer com Cristo nessa hora: “Mas não estou só, porque
o Pai está comigo” (João 16:32).
Queira Deus, por Sua infinita graça, capacitar-nos a
aprender esta grande e vital lição, e com esse fim nos leve a
fazer freqüentemente esta oração de Augustus Toplady:^

Quando o derradeiro olhar


A este mundo aqui volver,
E no Trono eu te encontrar,
Teu chamado a responder;
Rocha eterna, espero ali.
Abrigar-me, salvo, em ti!

^Novo Cântico, n°. 136,3®. estrofe. Nota do tradutor.

243
18
A Cura Final
“Posso todas as coisas naquele que me fortalece.”
- Filipenses 4:13

Aqui de novo somos confrontados por uma daquelas


estupendas declarações que se acham em grande profusão nas
Epístolas deste grande apóstolo dos gentios.
Nada é mais enganoso, quando alguém lê as Epístolas
do apóstolo Paulo, do que supor que quando ele terminava
o trabalho que se propusera fazer, ao mesmo tempo termi­
nava as grandes e extraordinárias coisas que planejara dizer.
Devemos estar sempre de olho nos seus pós-escritos. Nunca
se sabe quando ele vai inserir uma jóia. Em todo e qualquer
lugar, na introdução das suas cartas, nos pós-escritos delas,
há geralmente algum admirável aprofundamento na verdade
ou alguma profunda revelação de doutrina.
Aqui estamos nós, num sentido, examinando o pós-escrito
desta carta. O apóstolo concluiu sua tarefa no fim do versículo
9 e agora está apenas apresentando os seus agradecimentos
pessoais aos membros da igreja de Filipos por sua bondade
para com a sua pessoa, pela dádiva que eles lhe tinham envi­
ado. Mas, como já vimos, o apóstolo não poderia fazer isso
sem envolver-se logo com doutrina. Ansioso como está para
agradecer-lhes, mais ansioso ainda fica para mostrar-lhes, e
para mostrar a outros, que a sua suficiência está em Cristo e
que, quer esquecido, quer lembrado pelos homens, ele
sempre tem sua completude no Senhor. E é nessa conexão

244
A Cura Final

que chegamos a este versículo treze.


Repito que esta declaração é estupenda - “Posso fazer
todas as coisas por meio de Cristo, que me fortalece” (VA). É
uma declaração caracterizada, ao mesmo tempo, por um
sentimento de triunfo e pela humildade. A princípio parece
que Paulo está se gabando, e, contudo, quando você torna a
examinar a sua declaração, vê que ela é um dos mais glori­
osos e extraordinários tributos prestados por ele em toda e
qualquer parte a seu Senhor e Mestre. E uma daquelas
declarações paradoxais com as quais o apóstolo parece deleitar-
-se; é de fato a pura e simples verdade dizer que a verdade
cristã é sempre essencialmente paradoxal. Ela nos exorta, ao
mesmo tempo, a regozijar-nos, a jactar-nos, e, todavia, a sermos
humildes e a rebaixar-nos. E não há contradição, porque a
jactância do cristão não é por si mesmo, mas pelo Senhor.
Paulo gostava de dizer isso. Veja, por exemplo, a declaração:
“Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo” (Gálatas 6:14). Ou também: “Aquele,
porém, que se gloria, glorie-se no Senhor” (2 Coríntios 10:17).
Aí está, por um lado, a exortação a que nos jactemos; sim,
mas que sempre nos jactemos em Cristo.
Bem, a presente declaração pertence a essa categoria
particular, e talvez a melhor maneira de abordá-la seja fazer
uma tradução alternativa. A Versão Autorizada (inglesa) é,
num sentido, bastante acertada, mas realmente não traz a
particular nuance de sentido que o apóstolo deseja comunicar.
Diz ela: “Posso fazer todas as coisas por meio de Cristo, que
me fortalece” . Mas eu sugiro que uma tradução melhor seria:
“ Sou forte ou fortalecido, quanto a todas as coisas, nAquele
que constantemente infunde força em mim” . As autoridades
concordam que a palavra Cristo não deve constar no texto, e
não precisamos embaraçar-nos com isso. Vejamos o que Paulo
diz de fato. O que o apóstolo está realmente dizendo não é
tanto que ele pode fazer pessoalmente certas coisas, como que

245
A V ID A D E PA Z

ele é capacitado a fazer certas coisas, na verdade todas as


coisas, por este Ser que nele infunde força. Noutras palavras,
temos neste versículo a íiindamental e final explicação daquilo
que Paulo disse nos versículos anteriores. Ali, lembrem-se,
ele diz - “Em todo e qualquer estado em que me encontre,
com isso (nisso) aprendi a estar contente. Tanto sei estar
rebaixado como sei ter abundância; em todo lugar e em todas
as coisas fui instruído tanto a ter plena satisfação como a
passar fome, tanto a ter fartura como a padecer necessidade”
(VA). Vimos ali que o apóstolo veio a aprender. Nem sempre
ele pôde agir dessa forma. Paulo tivera que aprender a estar
contente em todo e qualquer estado, a ser auto-suficiente,
a ser independente das circunstâncias e das coisas que o
cercavam. Tivera que aprender; na verdade ele vai adiante e
declara que tinha sido “iniciado” nos segredos de como agir
dessa forma. Esse é o sentido da expressão, “fui instruído”, e já
vimos algumas maneiras pelas quais o apóstolo fora condu­
zido. Vimos que ele tinha chegado a este conhecimento pela
experiência, pelo raciocínio lógico resultante da fé cristã e
pelo cultivo de um conhecimento íntimo e pessoal do Senhor,
vendo-O como o seu glorioso exemplo.
Mas é aqui, neste versículo treze, que temos a explicação
suprema. O real segredo que descobri, diz Paulo, é que eu sou
fortalecido para todas as coisas nAquele que está constante­
mente infundindo força em mim. Essa é a explicação final.
Pois bem, eu quase nem preciso lembrar a vocês que o após­
tolo sempre volta a esse ponto. Paulo nunca elabora um
argumento sem voltar a ele. Esse é o ponto ao qual ele sempre
leva todo argumento e toda discussão; tudo sempre termina
em Cristo e com Cristo. Ele é o ponto final, Ele é a explicação
do modo de viver de Paulo e de toda a sua perspectiva da vida.
E essa é a doutrina que ele nos recomenda aqui. Noutras
palavras, ele nos está dizendo que Cristo é to do-suficiente
para toda e qualquer circunstância, para toda e qualquer

246
A Cura Final

eventualidade e para toda e qualquer possibilidade. E,


naturalmente, ao dizer isso, ele nos introduz àquilo que em
muitos aspectos podemos descrever como a doutrina princi­
pal do Novo Testamento. Afinal de contas, a vida cristã é
vitalidade, é poder, é atividade. Isso é uma coisa que cons­
tantemente nos inclinamos a esquecer. A vida cristã não é
mera filosofia, não é um ponto de vista, não é apenas um ensino
que adotamos e que tentamos pôr em prática. E tudo isso,
mas é infinitamente mais. A essência mesma da vida cristã,
de acordo com o ensino do Novo Testamento em toda parte, é
um poder extraordinário que penetra em nós; é uma vida,
se lhes parece bem, que pulsa em nós. E uma atividade,
uma atividade da parte de Deus.
O apóstolo já havia salientado essa verdade em várias
passagens desta mesma Epístola. Permitam-me lembrar-lhes
algumas delas. No capítulo primeiro ele declara que confia
em que “aquele que em vós começou a boa obra, a aperfeiçoará
até ao dia de Jesus Cristo” (versículo 6). “Quero que penseis
em vós mesmos como cristãos desse tipo”, diz praticamente
Paulo. “Vocês são pessoas nas quais Deus começou a operar;
Deus introduziu-se em vocês. Deus está agindo em vocês.” É
isso que os cristãos são realmente. Os cristãos não são apenas
homens que adotaram uma certa teoria e que estão tentando
praticá-la; é Deus realizando algo neles e por meio deles.
Ou escutem de novo o que lemos no capítulo dois, ver­
sículos 12 e 13: “Operai a vossa salvação com temor e tremor;
porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade”. E segundo a Sua boa
vontade que Deus opera em nós tanto o querer como o efetuar
- os nossos pensamentos mais elevados, as nossas aspirações
mais nobres, todas as nossas inclinações retas provêm de Deus,
o próprio Deus é que os traz à existência dentro do nosso ser.
E atividade de Deus, não meramente nossa, e é por isso que
Paulo nos diz no capítulo 3, versículo 10, que a sua suprema

247
A V ID A D E PA Z

ambição na vida é; “Para conhecê-lo, e o poder da sua ressur­


reição...” . O tempo todo ele está interessado nesta questão de
poder e vida.
Vocês vêem Paulo dizer exatamente a mesma coisa
noutras Epístolas. Qual é a grande oração de Paulo pelos
efésios? Ele ora no sentido de que eles venham a conhecer “a
sobre-excelente grandeza do seu poder sobre nós, os que
cremos, segundo a operação da força do seu poder, que
manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos” (Efésios
1:19,20). Em Efésios 2:10 ele continua e declara que somos
“feitura sua (de Deus), criados em Cristo Jesus”. Lembrem-se
também da grande declaração registrada no fim do capítulo
três: “Aquele que é poderoso para fazer tudo muito mais
abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos,
segundo o poder que em nós opera” . Bem, isso é doutrina
característica do Novo Testamento, e, se não a captarmos,
estaremos perdendo uma das coisas mais gloriosas relacio­
nadas com a vida cristã e com a posição cristã. O cristão é,
essencialmente, alguém que recebeu nova vida, Voltemos a
algo que eu nunca me canso de citar, a saber, a definição do
cristão favorita de João Wesley. Ele a encontrou naquele livro
de Henry Scougal, um escocês que viveu no século dezessete,
e já no título do referido livro - A Vida de Deus na A lm a do
H om em } E isso que faz de alguém um cristão. O cristão não é
tão-somente um bom homem, decente e virtuoso, a vida de
Deus introduziu-se nele, há nele energia, poder, vida, e é isso
que 0 torna peculiar e especificamente cristão, e é exatamente
isso que Paulo nos está dizendo aqui.
Permitam-me começar colocando isso em termos nega­
tivos. O apóstolo não diz, neste grande versículo, que ele se
tornou estóico. Não diz ele que, como resultado de muita

' Ver minha tradução, publicada por Publicações Evangélicas Selecionadas


(PES). Nota do tradutor.

248
A Cura Final

cultura pessoal, ele desenvolveu certa indiferença para com


o mundo e para com as coisas a este concernentes, e que, como
resultado da disciplina, ele pôde, por fim, ver que pode fazer
todas as coisas e suportar todas as coisas por causa dessa cul­
tura. Não é isso. Permitam-me lembrar-lhes que o estóico era
capaz de agir assim. O estoicismo não era só teoria, era um
modo de viver para muitas pessoas. Leiam as vidas de alguns
dos estóicos e verão que, em conseqüência dessa perspectiva,
eles desenvolveram uma espécie de indiferença passiva face
ao que sucedesse no mundo. Talvez vocês tenham ouvido ou
lido sobre os faquires indianos, homens que desenvolveram o
poder mental que controla os seus corpos, e pela concentração
no cultivo da mente podem desenvolver certa imunidade ou
indiferença quanto ao que possa acontecer com eles e com o
que os rodeia. Esse é também o grande princípio que caracte­
riza muitas religiões orientais, tais como o hinduísmo e o
budismo. Todas essas religiões visam basicamente ajudar as
pessoas a morrer para as circunstâncias e para o que os cerca,
e a desenvolver certa indiferença quanto ao mundo que os
rodeia, para seguirem pela vida e pelo mundo sem serem
afetadas pelas circunstâncias. Pois bem, o ponto que eu quero
defender é que o apóstolo não está ensinando nenhuma
doutrina desse tipo. Paulo não nos diz que se tornou como os
místicos orientais, não está dizendo que desenvolveu essa
filosofia estóica ao ponto de nada poder afetá-lo.
Por que estou tão preocupado com esta ênfase negativa?
O motivo que me impele a isso é que esse tipo de ensino é
realmente frustrante; todas essas religiões são finalmente
pessimistas. Em última análise, o estoicismo era um pessi­
mismo profundo. Realmente chegava ao seguinte: não há
esperança para este mundo, nada pode fazer qualquer bene­
fício e, portanto, o que você tem que fazer é ir pela vida da
melhor maneira que puder e sim plesm ente negar-se a
deixar-se ferir por coisa alguma desta vida. Claro está que

249
A V ID A D E PA Z

as religiões orientais são inteiramente pessimistas. Consideram


a matéria má em si, consideram a carne como essencialmente
má; tudo é mau, dizem elas, e a única coisa que lhe resta fazer
é avançar pela vida com um mínimo de dor e esperar que
nalguma reencarnação subseqüente você ficará completa­
mente livre disso e, afinal, será absorvido e desaparecerá para
sempre no absoluto e no eterno (impessoal), deixando de existir
como uma personalidade separada.
Ora, isso é a real antítese do evangelho cristão, que não é
negativo, mas positivo. Ele não considera a matéria como
essencialmente má, nem o mundo como essencialmente mau
em si mesmo, no sentido material. Mas nós rejeitamos a visão
negativa in toto,^ supremamente porque não atribui a glória e
a honra ao Senhor Jesus Cristo. E com isso que Paulo está
mais preocupado. Paulo quer que vejamos que a sua vitória
se baseia em sua associação a Cristo. Noutras palavras,
voltamos uma vez mais à nossa definição original - ser cristão
não é somente crer no ensino de Cristo e praticá-lo, é estar tão
vitalmente relacionado com Cristo, que a Sua vida e o Seu
poder estejam operando em nós. Pois bem, estas são algumas
das expressões neotestamentárias - “em Cristo”, “Cristo em
vós, a esperança da glória” . Elas se acham em toda parte nestas
Epístolas do Novo Testamento.
Podemos expor a nossa doutrina desta forma: Paulo está
dizendo que Cristo infunde nele tanta força e tanto poder que
ele fica forte e capaz de fazer todas as coisas. Ele não é deixado
entregue a si mesmo, não está lutando sozinho e em vão contra
essas poderosas forças que atuam contra ele. E um grande
poder proveniente do próprio Cristo que vem entrando, e
entrou, em sua vida, e ali está como um poderoso dínamo,
como uma força e como uma energia. “ Com isto”, diz Paulo,
“sou capaz de tudo.”

-Totalmente. Em latim no original. Nota do tradutor.

250
A Cura Final

Bem, esta é, seguramente, uma das mais gloriosas decla­


rações feitas por Paulo. Eis aí um homem na prisão, um homem
que já sofreu muitíssimo em sua vida, um homem que sabe o
que é sofrer decepção de muitas maneiras - um homem perse­
guido, tratado com zombaria e escárnio, e até decepcionado
algumas vezes com os seus colaboradores, como ele nos diz
no capítulo primeiro. Ei-lo ali na prisão, em condições
criadas com o propósito de produzir desalento no coração
mais valente, talvez tendo que encarar um cruel martírio - e,
contudo, ele pode enviar este desafio extraordinário: “Posso
agüentar, posso suportar todas as coisas nAquele que está
constantemente infundindo força em mim”.
Estou desejoso de expressar esta doutrina, nos dias atuais,
da seguinte maneira: existem os que acham que, numa época
como esta, o que compete ao pregador cristão e à Igreja Cristã
é fazer constantemente comentários sobre a situação geral. Há
muitos que perguntam: “ Será que você fica só falando sobre
questões da vida pessoal quando o mundo está como está? Não
seria isso ficar distante da vida? Acaso você não lê jornal, ou
não ouve as notícias do rádio? Não vê em que estado se encontra
o mundo? Por que você não se pronuncia sobre a situação
mundial ou sobre o estado em que se acham as nações?”
Minha resposta singela a essa prosa é a seguinte: o que eu, ou
um bom grupo de pregadores, ou a Igreja Cristã inteira, disser
sobre a situação geral, provavelmente não a afetará nem um
pouco. Faz muito tempo que a Igreja vem falando sobre
política e sobre a situação econômica, mas sem nenhum efeito
digno de nota. Não é esse o dever da pregação cristã. O dever
da pregação cristã é dizer às pessoas: neste mundo instável, no
qual já experimentamos duas guerras mundiais dentro de
um quarto de século, e no qual talvez ainda tenhamos que
enfrentar outra, e coisas até piores, você deve perguntar a si
mesmo: “Como vou enfrentar isso tudo? Como posso lidar
com tudo isso?” Se eu der minha opinião sobre a política

251
A V ID A D E PA Z

internacional, não ajudarei ninguém; mas, graças a Deus, há


algo que eu posso fazer. Posso lhe falar sobre alguma coisa,
posso lhe falar de um caminho que, se você o praticar e o
seguir, capacitará você a dizer, com o apóstolo Paulo: “ Sou
forte, estou capacitado para qualquer coisa que me aconteça;
seja paz ou guerra, seja liberdade ou escravidão, seja o tipo
de vida que temos conhecido há tanto tempo, seja ela
completamente diferente, estou preparado para isso” . Essa
atitude, repito, não significa uma aquiescência passiva, nega­
tiva àquilo que é errado. Absolutamente não - mas significa,
sim, que, venha o que vier, você está pronto para isso.
Podemos empregar a linguagem de Paulo? Já experi­
mentamos algumas provas e provações, e bem pode ser que
estejam chegando outras mais. Poderiamos dizer com este
homem que temos tanta força, tanto poder que, venha o que
vier, estamos preparados para enfrenta-lo? O apóstolo tinha
um poder que o capacitava a agüentar qualquer coisa que
acontecesse. Como podemos adquirir esse poder?
Há muita confusão a respeito disso, e tudo o que eu desejo
fazer é tentar diminuir essa confusão.
Muitos passam toda a sua vida tentando obter esse poder
e, todavia, se vê que eles nunca o têm. Eles dizem: “Encontro
outros cristãos que o possuem, mas parece que não vou conse­
gui-lo nunca”. Ou: “Eu daria o mundo inteiro, se pudesse, só
para ter este poder em minha vida. Como posso obtê-lo?”
Passam a vida inteira tentando obtê-lo e, todavia, nunca o
conseguem. Por que será? Penso que a maior dificuldade é
que eles não reconhecem e não compreendem as respectivas
posições corretas entre o “eu” e o “Ele”, ou o “ Ser” mencionado
pelos apóstolos. “Posso todas as coisas”, ou, “Estou capacitado
para todas as coisas por meio do Ser que está constantemente
infundindo força em mim”, ou, para dizê-lo com as palavras
da Versão Autorizada (inglesa): “Posso fazer todas as coisas por
meio de Cristo, que me fortalece” . Ora, aí está o ponto crucial

252
A Cura Final

de toda a questão - a correta relação e o equilíbrio certo entre


“eu” e “Cristo” .
Há grande confusão sobre este ponto. A primeira causa de
confusão está em só se dar ênfase a esse “eu” . Num sentido, já
tratei disso. E o que o estóico faz, é o que o hindu ou o budista
faz, é o que todas essas pessoas que vão atrás do “cultivo da
mente” estão fazendo constantemente. E vimos que isso é inade­
quado. Mas talvez a razão final que torna inadequado esse tipo
de ensino é que ele só é possível a pessoas que têm grande
força de vontade e que dispõem de tempo para cultivar essa
força de vontade. Na verdade, concordo inteiramente com o
que o Sr. G. K. Chesterton dizia que era a sua maior objeção à
vida simples, a saber, que você tem que ser milionário para
vivê-la. Você precisa de tempo e, se você é um operário ou um
trabalhador assalariado, não tem nem o lazer nem a oportu­
nidade - você tem que ser milionário para poder ter vida
simples. Não seria exatamente a mesma coisa, ou na verdade
mais, quanto a este outro ensino? Se acontece que você nasceu
uma pessoa altamente intelectual e tem o tempo e o lazer, você
pode dedicar os seus dias e as suas semanas à concentração e ao
cultivo da mente e do espírito. Esse tipo de evangelho não
serve para quem não dispõe nem de lazer nem de energia, e
especialmente para os não dotados de inteligência. Não
devemos dar ênfase demais ao “eu”.
Isso é um erro, mas há outro, que está no outro extremo.
Assim como existem aqueles que exageram na ênfase ao “eu”,
assim também existem aqueles que tendem a obliterar o “eu”.
Permitam-me dizê-lo em termos de algo que li num periódico
religioso. Esta é a sua definição do que é um cristão. O cristão,
disse 0 artigo, é:
Uma mente pela qual Cristo pensa,
Uma voz pela qual Cristo fala,
Um coração pelo qual Cristo ama,
E a mão pela qual Cristo ajuda.

253
A V ID A D E PA Z

Minha réplica a isso, conforme os termos do texto sobre


o qual estou pregando, é - absurdo. E não somente é um
absurdo, mas é também uma perversão do ensino cristão. Se o
cristão é uma mente pela qual Cristo pensa, uma voz pela
qual Cristo fala, um coração pelo qual Cristo ama e a mão pela
qual Cristo ajuda, onde está o “eu” ? O “eu” foi eclipsado, o
“eu” foi obliterado, o “eu” não está mais presente. O ensino
representado por essa citação é que o cristão, seja homem, seja
mulher, é alguém cuja personalidade deixou de existir,
enquanto Cristo fica usando os seus diversos poderes e facul­
dades. Não usando a sua pessoa, mas a sua voz, a sua mente, o
seu coração e a sua mão. No entanto, não é isso que Paulo diz.
Ele diz: “Posso fazer todas as coisas por meio de Cristo, que
me fortalece”. Ou escutem o que ele diz noutro lugar. Vocês
se lembram do que ele diz em Gálatas 2:20: “Vivo, não mais
eu, mas Cristo vive em mim” . Haveria nesse versículo uma
obliteração do “eu” ? “ Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em
mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé no Filho
de Deus, que me amou e se entregou por mim.” O “eu”
continua ali.
Portanto, se queremos ser justos para com esta doutrina,
devemos salvaguardar a posição verdadeira. A vida cristã não
é uma vida que eu viva por meu próprio poder, nem tampouco
é uma vida na qual eu sou obliterado e Cristo faz tudo. Não,
“(Eu) posso fazer todas as coisas por meio de Cristo”. Pergunto-
-me se posso expressa melhor este ponto contando-lhes como
um velho pregador do século dezenove o expressou quando
estava pregando sobre este mesmo texto. As vezes aqueles
antigos pregadores pregavam de maneira muito dramática.
Eles mantinham uma espécie de diálogo com o apóstolo no
púlpito. E assim, esse velho pregador começou a pregar sobre
este texto do seguinte modo: “Posso fazer todas as coisas por
meio de Cristo, que me fortalece”.

254
A Cura Final

“Espere um minuto, Paulo; que foi que eu ouvi você


dizer?”
“Posso fazer todas as coisas.”
“Paulo, certamente isso é gabolice, seria verdade que você
está afirmando que é um super-homem?”
“Não, não; eu posso mesmo fazer todas as coisas.”
Bem, o velho pregador deu continuidade ao diálogo. Ele
questionou Paulo e citou todas as declarações de Paulo nas
quais ele se diz o menor dos santos, etc., e disse: “Geralmente
você é muito humilde, Paulo, mas agora diz: “Posso fazer todas
as coisas” ; será que você não começou a se gabar?”
E então, por fim, Paulo diz: “Posso fazer todas as coisas
por meio de Cristo”. ‘
“Ah, sinto muito Paulo, peço-lhe perdão. Não percebi
que havia dois de vocês.”
Pois bem, eu acho que isso expressa o ponto perfeita-
mente. “Posso fazer todas as coisas por meio de Cristo.” “Há
dois de vocês.” Não só eu, não só Cristo, mas eu e Cristo, dois
de nós.
Muito bem. Coloquemos então a doutrina nestes termos:
qual é 0 jeito certo de abordar esta questão de poder? Como
posso obter este poder que Paulo nos diz que estava sendo
infundido nele e que o fortaleceu e o capacitou a resistir e a
agüentar todas as coisas? Posso sugerir uma analogia? Faço
isso hesitante e trepidante, porque nenhuma analogia é per­
feita, e, todavia, seu uso pode ajudar-nos a chegar à verdade. O
que é vital, nesta conexão, é a questão da abordagem, ou, se
vocês preferirem um termo militar, a estratégia. Nunca a
estratégia da “abordagem indireta” é mais importante do que
o é aqui. Vocês sabem que na estratégia militar nunca se vai
V

diretamente ao objetivo. As vezes parece que a tropa está indo


na direção oposta, mas ela volta. Essa é a estratégia da aborda­
gem indireta, e essa é a estratégia necessária aqui.
Permitam-me, a seguir, expressar esta verdade em termos

255
A V ID A D E PA Z

de uma ilustração. Esta questão de poder na vida cristã é


como a questão de saúde física. Há neste mundo muitos que
passam a maior parte das suas vidas na busca de saúde. Gastam
seu tempo e seu dinheiro indo de balneário a balneário, de
tratamento a tratamento, de médico a médico. Estão em busca
de saúde. Toda vez que vocês os encontram, logo começam a
falar da sua saúde. O que há de importante na vida deles é esta
questão de saúde, e, contudo, eles nunca estão bem. Qual é o
problema? As vezes o problema se deve ao fato de que eles se
esquecem dos princípios elementares, e toda a explicação do
estado em que eles se encontram é que comem demais e fazem
pouco exercício. Vivem de forma antinatural, e, porque comem
demais, produzem certos ácidos, e estes ácidos produzem
condições que requerem tratamento. O que precisa ser dito a
eles é que comam menos ou que se exercitem mais, ou seja o
que for. Seu problema nunca teria surgido, se não tivessem
esquecido os princípios elementares, as regras fundamentais
da vida e de como viver. Por isso desenvolvem uma situação
e condições antinaturais que exigem tratamento. Bem, sugiro-
-Ihes que isso é análogo a todo este assunto sobre o poder na
vida de alguém como cristão. Saúde é algo que decorre de um
modo certo de viver. Não se pode obter saúde direta ou imedi­
atamente, em si e por si. Há um sentido em que a pessoa não
deve pensar em sua saúde. Saúde é resultado de um correto
viver, e eu digo exatamente a mesma coisa sobre esta questão
de poder em nossa vida cristã.
Ou permitam que eu use outra ilustração. Vejam a questão
da pregação. Nenhum assunto é discutido mais freqüente-
mente do que o do poder na pregação. “Oh, se eu pudesse ter
poder na pregação!”, diz o pregador, e se põe de joelhos e ora
rogando poder. E eu penso que isso pode estar completamente
errado. E certamente está, se essa é a única coisa que o prega­
dor faz. O meio pelo qual você pode ter poder é preparar
cuidadosamente a sua mensagem. Estude a palavra de Deus,

256
A Cura Final

reflita sobre ela, analise-a, ordene-a, faça o máximo que


puder. Essa é a mensagem que tem maior probabilidade
de Deus abençoar - a abordagem indireta, antes que a direta.
Dá-se exatamente o mesmo nesta questão de poder e capaci­
dade para viver a vida cristã. Em acréscimo à nossa oração por
poder e capacidade, precisamos obedecer a algumas regras e
leis primárias.
Posso, pois, sumariar o ensino assim: o segredo do poder
está em descobrir e aprender do Novo Testamento o que nos
é possível em Cristo. O que eu tenho que fazer é ir a Cristo.
Devo passar tempo com Ele, devo meditar nEle, devo tratar
de conhecê-10. Essa era a ambição de Paulo - “para conhecê-
-10” . Devo manter-me em contato e em comunhão com
Cristo, e devo concentrar-me em conhecê-10.
Que mais? Devo fazer exatamente o que Ele me diz. Devo
evitar as coisas que me embaraçam. Para usar a minha
ilustração, se eu quiser estar bem de saúde, não devo comer
demais, não devo adentrar uma atmosfera que me é nociva,
não devo expor-me ao frio. De igual modo, se não cumprir­
mos as regras espirituais, podemos orar interminavelmente
pedindo poder, e nunca o teremos. Na vida cristã não há atalhos.
Se no meio da perseguição quisermos sentir-nos como Paulo
se sentia, temos que viver como Paulo vivia. Devo fazer o que
ele diz, tanto fazer como não fazer, conforme o caso. Devo ler
a Bíblia, devo exercitar, praticar a vida cristã, devo viver a
vida cristã em toda a sua plenitude. Noutras palavras, devo
pôr em prática o que Paulo disse nos versículos oito e nove.
Esta, como eu a entendo, é a doutrina neotestamentária da
permanência em Cristo. Agora, a palavra “permanecer” faz
com que muitos se tornem sentimentais. Eles em geral pensam
em “permanecer” como algo passivo e fixo, mas permanecer
em Cristo é fazer o que o apóstolo diz a você que faça,
positivamente, e orar sem cessar. Permanecer é algo tremen­
damente ativo.

257
A V ID A D E PA Z

“Bem”, diz o apóstolo, “se você fizer isso tudo. Cristo


infundirá Sua força em você.” Que idéia maravilhosa! É uma
espécie de transfusão de sangue - é esse o ensino de Paulo aqui.
Eis o caso de um paciente que, por uma ou outra razão,
perdeu muito sangue. Ele está desfalecido e arquejante, sem
ar. Não adiante ministrar-lhe remédios porque ele não tem
sangue suficiente para absorvê-los e para aproveitá-los. O
homem está anêmico. A única coisa que se pode fazer por ele
é ministrar-lhe uma transfusão de sangue, infundir sangue
nele. E isso que Paulo nos diz que o Senhor Jesus Cristo esta
fazendo por ele. “ Sinto-me muito fraco”, diz Paulo, “minha
energia parece esvair-se, e às vezes sinto que não há em mim
nenhum sangue vital. Mas, vocês sabem, por causa desta relação
sinto que Ele o infunde em mim. Ele conhece todo estado e
condição em que me encontre, sabe exatamente qual é a
minha necessidade. Oh, quanto Ele me dá! Ele me diz: “Minha
graça te basta”, e por isso posso dizer: “Quando estou fraco,
V

então estou forte” . As vezes tenho consciência de grande


poderi há outras vezes em que não espero nada, mas Ele me
dá tudo.”
Esse é o romance da vida cristã. Em parte alguma nós o
experimentamos mais do que no púlpito. Há certamente
algo romântico na pregação. Tenho dito muitas vezes que o
lugar mais romântico da terra é o púlpito. Subo as escadas do
púlpito domingo após domingo - e nunca sei o que vai acon­
tecer. Confesso que às vezes, por diversas razões, não espero
nada; mas de repente me é dado poder. Outras vezes penso
que tenho muito por causa da minha preparação; mas,
lamentavelmente, não há nenhum poder no que preparei.
Graças a Deus que é assim! Faço o máximo, mas Ele controla
o suprimento e o poder, Ele o infunde. Ele é o médico celes­
tial e conhece cada variação da minha condição pessoal. Ele
vê a minha compleição, Ele toma o meu pulso. Ele sabe
quando a minha pregação é inadequada, Ele sabe tudo. “E

258
A Cura Final

isso”, diz Paulo, “e, portanto, posso fazer todas as coisas por
meio dAquele que constantemente está infundindo força
em mim.”
Aqui temos, então, a receita: não agonize em oração,
rogando a Deus que lhe dê poder. Faça o que Ele lhe disse que
faça. Viva a vida cristã. Ore, e medite nEle. Passe tempo com
Ele e peça-lhe que se manifeste a você. E, assim que tiver feito
isso, deixe tudo mais com Ele. Ele lhe dará força - “como teus
dias, assim será a tua força” (Deuteronômio 33:25). Ele nos
conhece melhor que nós mesmos, e o suprimento que rece­
bemos é de acordo com a nossa necessidade. Faça isso, e você
poderá dizer com o apóstolo Paulo: “Posso (recebi força para)
fazer todas as coisas por meio dAquele que está constante­
mente infundindo força em mim” .

259
19
Supridas Todas
as Nossas Necessidades
“N ão que (eu) procure dádivas, mas procuro o fruto que abunde
para a vossa conta. M as bastante tenho recebido, e tenho abundância:
cheio estou, depois que recebi de Epafrodito o que da vossa parte me
fo i enviado, como cheiro de suavidade e sacrifício agradável e
aprazível a Deus. O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá
todas as vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus.”
- Filipenses 4:17-19

Nestes versículos temos a declaração final que o apóstolo


acha necessário fazer quanto a esta questão da dádiva a ele
enviado pelos membros da igreja de Filipos, estando ele preso
em Roma. Eles lhe tinham enviado uma dádiva, obviamente
uma dádiva grande e generosa, por meio de Epafrodito, e
agora que Epafrodito ia voltar para Filipos, o apóstolo deseja
enviar sua palavra de gratidão. Já consideramos o que ele diz
sobre esse ponto, e vimos as profundas implicações teológicas
envolvidas. Demos ênfase à sua grande preocupação no sentido
de que, por muito que ele os ame, não imaginem que ele
depende finalmente deles. Essa é a sua dificuldade, como
agradecer-lhes profusamente sem dar a impressão de que
depende deles, e como agradecer-lhes sem detrimento da glória
de Deus, e vimos como ele planeja fazer isso. Mas aqui che­
gamos ao fim da sua declaração e mais uma vez vemos
claramente quão desejoso ele ainda está de que os filipenses

260
Supridas Todas as Nossas Necessidades

mantenham esta questão na perspectiva certa; por isso ele


continua se repetindo. Ele tem zelo pela honra, pela glória e
pela reputação do Senhor, e deseja que eles saibam que ele
encontra a sua plenitude completa em Cristo - é preciso que
não haja nenhum engano quanto a isso.
Contudo, deseja também que eles se apercebam de que
aprecia profundamente a solicitude deles por ele. Quando
lhes diz isso, faz-lhes um grande cumprimento. Ele lhes diz
que eles foram as únicas pessoas que lhe enviaram uma
dádiva. Não podemos demorar-nos nisto - é em si um
importante assunto - mas devemos lembrar quão cuidadoso
o apóstolo foi para que ninguém pensasse que ele pregava
para ganhar dinheiro. Vocês poderão vê-lo tratar desse assunto
em 2 Coríntios, capítulo 11, como na verdade já tratara dele
em 1 Coríntios, capítulo 9. Tinham sido feitas insinuações de
que ele ia por toda parte com vistas a fazer dinheiro, que sua
mente era de um comerciante. A verdade é que Paulo se
preocupava tanto com o evangelho, e, acima de tudo, com o
Senhor, que se recusou a receber qualquer pagamento, mas
continuou trabalhando com suas próprias mãos como fabri­
cante de tendas para seu sustento, de modo que ninguém
poderia dizer que ele fazia dinheiro da cruz de Cristo.
Bem, este é um grande assunto, e devemos compreender
que muitos dos problemas da Igreja Cristã têm surgido
porque nem sempre a Igreja se lembrou do modelo apostó­
lico. A igreja ficou muito rica e poderosa, no sentido mundano,
mas perdeu o seu poder espiritual. Alguém assinalou sabia­
mente que, enquanto a Igreja podia dizer, “Não tenho prata
nem ouro”, ela podia repetir os milagres do apóstolo Pedro,
mas quando chegou o dia em que veio a possuir muita
prata e muito ouro, ela se tornou um poder mundano, uma
instituição secular que usa a terminologia cristã, e deixou
de funcionar como poder de Deus entre os homens. Só toco
de passagem nisso. O ponto que estou acentuando é que o

261
A V ID A D E PA Z

apóstolo aqui lembra aos filipenses que, tendo em vista o fato


de que esse é seu método e seu modo de viver, ele aprecia
grandemente o presente que lhe enviaram. Por alguma razão,
as outras igrejas não se deram conta dos seus sofrimentos, mas
os filipenses lhe enviaram presente duas vezes, e ele de­
monstrou profunda apreciação por esse gesto. Mas depois
ele se sente um pouco mal com isso - “Todavia fizestes bem
em tomar parte na minha aflição” - este lembrete de que o
tinham feito mais uma vezj e então: “Não que (eu) procure
dádivas” - de volta a isso outra vez. Foi maravilhoso eles o
terem feito, mas não permita Deus que eles pensem ou
imaginem que se sentia infeliz antes da chegada da dádiva
deles, ou que ele não poderia continuar feliz se não o rece­
besse. Mesmo que pudesse, isso não poderia depreciar a
generosidade deles, mas estabelece de novo a completitude
de suprimento que se acha em Deus por meio de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. Noutras palavras, o grande
apóstolo deseja ansiosamente que aqui os filipenses tenham
bem claro em suas mentes o que diz respeito à questão da
satisfação das nossas necessidades como cristãos, enquanto
estivermos aqui na terra.
Pois bem, ele tem coisas muito interessantes para dizer
sobre isso. Tomemos a frase “ com respeito a dar e a receber”,
no versículo 15. Os filipenses deram e Paulo recebeu, e Paulo
passa a enunciar três princípios relacionados com a gene­
rosidade cristã, a benevolência cristã, a caridade cristã, ou os
princípios da caridade na vida e na conduta dos cristãos. O
primeiro é que a nossa generosidade é sempre um teste cabal
do real valor da nossa profissão de fé cristã. Paulo amava
esta igreja de Filipos porque seus membros eram excelentes
pessoas cristãs, e provaram isso enviando-lhe dádivas.
Façamos uma reconstrução do quadro. Os filipenses eram
gentios, o apóstolo Paulo era judeu; certamente vocês se
lembram da animosidade que havia entre judeu e gentio, o

262
Supridas Todas as Nossas Necessidades

azedume e o ódio de ambos os lados, o judeu considerando o


gentio como cão e o gentio considerando o judeu quase como
bárbaro porque não conhecia nenhuma filosofia. Então este
judeu vem pregar em Filipos e estas pessoas são convertidas e
se tornam uma igreja. Mais tarde eles ficam sabendo da
necessidade de Paulo e imediatamente lhe enviam um dona­
tivo, e o fazem duas vezes. Há só uma explicação disso, diz
Paulo: é o amor cristão deles, seu entendimento do evangelho
e do seu propósito. Eles amam este homem porque lhes havia
trazido algo mais valioso que o mundo inteiro. Eis aí um
homem que lhes havia trazido paz com Deus, um novo amor,
um novo entendimento e uma nova alegria, uma alegria que
continua a repetir-se. Eles devem tudo a ele, e, portanto, quando
vêem que ele está passando necessidade e está sofrendo,
sentem que precisam fazer algo a respeito; seu amor cristão
os move a fazê-lo.
Agora, esse é um ponto que vemos salientado freqüen-
temente no Novo Testamento. O apóstolo ensina aos coríntios
como praticá-lo, e vemos o mesmo ensino na famosa parábola
narrada pelo nosso Senhor quando Ele esteve na casa de um
homem chamado Simão, um fariseu. Uma mulher entrou ali
e caiu a Seus pés. Lavou Seus pés com suas lágrimas, e os
enxugou com os cabelos da sua cabeça, e os ungiu com
ungüento, sendo que Simão, o fariseu, não tinha feito nada
para Ele. Então o nosso Senhor, percebendo que Simão
estava reprovando todo o incidente, contou a história dos
dois devedores que tiveram suas dívidas perdoadas, e mostrou
que aquele a quem fora perdoada a dívida maior amou mais
o credor. “De igual modo”, disse com efeito o nosso Senhor,
“essa mulher mostra que compreende o que eu fiz por ela”
(Lucas 7:37-50). Expressamos o nosso amor e o nosso enten­
dimento pelo que fazemos, e eu penso que o princípio
evidencia-se por si só. Se realmente cremos no evangelho,
então temos que crer que, no mundo atual, nada é mais

263
A V ID A D E PAZ

importante que a propagação desse evangelho; essa deve ser a


nossa maior preocupação. E por isso que sempre me pareceu
uma contradição do ensino do Novo Testamento ter que apelar
para fundos, quer para igrejas locais, quer para a causa
missionária. Não, essa questão nos coloca sob juízo; os que
realmente crêem no Senhor e O amam são os que conhecem
algo daquele amor que constrange e que os leva a dizerem:
“Não posso fazer outra coisa”. “Porque Deus ama ao que dá
com alegria” (2 Coríntios 9:7).
Esse é, pois, o primeiro princípio de Paulo. O segundo
princípio - devemos ter todo o cuidado sobre como expressá-
-lo, e, todavia, o apóstolo o faz marcantemente - é que a
caridade e a beneficência constituem um investimento ma­
ravilhoso. “Não que (eu) procure dádivas”, diz o apóstolo no
versículo 17, “mas procuro o fruto que abunde para a vossa
conta.” Ora, essa declaração é realmente notável. Paulo está
dizendo algo assim: sou profundamente grato a vocês por
essas dádivas que me enviaram, porém saibam que o que mais
me agrada não é o benefício que auferi pessoalmente, mas a
maneira pela qual eu posso ver que a conta de vocês, o seu
depósito, vem aumentando como resultado disso; agrada-me
ver o aumento dos juros em sua conta - “Ao Senhor empresta
o que se compadece do pobre” (Provérbios 19:17).
Esse princípio também é ensinado em diversos lugares
no Novo Testamento. Em Lucas 16:9 o nosso Senhor diz:
“Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que,
quando estas vos faltarem (VA: “quando faltardes” ), vos
recebam eles nos tabernáculos eternos” . Seu ensinamento é:
“Façam uso correto do seu dinheiro, ou da riqueza que acaso
tenham recebido neste mundo. Usem-no de tal modo, e façam
tanto bem com ela, que com isso juntem amigos no céu, para
que, quando vocês faltarem, haja gente lá para recebê-los” .
Noutras palavras, vocês estão fazendo isso agora, sim, mas o
estão preparando para o seu futuro. Vocês não podem exercer

264
Supridas Todas as Nossas Necessidades

a caridade e a beneficência cristãs sem ao mesmo tempo


beneficiar-se inconscientemente.
O apóstolo Pulo ensina a mesma coisa em 1 Timóteo,
capítulo 6, onde diz a Timóteo que exorte os ricos deste mundo
a usarem a sua riqueza em benefício de outros. Por quê? “Que
entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro,
para que possam alcançar a vida eterna” (versículos 17-19).
Vocês parecem estar dando, mas, desta maravilhosa e miste­
riosa maneira, vocês estão granjeando, estão recebendo juros
que serão depositados em sua conta, diz Paulo. Devemos
manejar esta questão com muito cuidado. O apóstolo não está
exortando os filipenses a serem benévolos a fim de construí­
rem uma conta, e o nosso Senhor não ensina isso na parábola
registrada em Lucas, capítulo 16. Esta é uma doutrina gloriosa
- você, como cristão, não pode fazer nada que não tenha uma
repercussão final, e a glória dessa beneficência é que, embora
aparentemente você esteja dando, você vai receber.
O terceiro princípio sobre este assunto é que, embora, num
sentido, os filipenses tenham dado suas dádivas a Paulo, na
realidade os estavam dando a Deus. Essa é a mensagem do
versículo dezoito: “Mas bastante tenho recebido, e tenho
abundância. Cheio estou, depois que recebi de Epafrodito o
que da vossa parte me foi enviado, como cheiro de suavidade
e sacrifício agradável e aprazível a Deus” . Pois bem, isso é o
que há de mais glorioso e mais maravilhoso. “Esta sua dádiva
a mim”, diz com efeito Paulo, “não é apenas algo que eu recebi;
é como um cheiro suave aos olhos de Deus.” Fora dito aos
filhos de Israel que apresentassem a Deus ofertas “de cheiro
suave”, e temos aqui uma bela figura disso - o aroma agradável
que se exala da oferta. Deus descia ao nível do entendimento
do povo israelita, e falava desta maneira antropomórfica
para descrever o prazer que Ele auferia quando o povo Lhe
trazia suas ofertas. Todos sabemos que prazer nos dá aspirar
o aroma de uma flor, e essas dádivas eram semelhantes a esse

265
A V ID A D E PAZ

aroma para Deus. Paulo declara que esses donativos parti­


culares dados à sua pessoa emitiram esse odor agradável, o
aroma deste belo ato havia sido transportado diretamente
para o céu, e Deus, em Seu trono eterno e sempiterno, se
agradara dele.
Esse é o princípio supremo, quanto a esta questão geral de
dar e receber. O nosso Senhor estabeleceu isso uma vez por
todas com a história da mulher que tinha duas pequenas
moedas. Ela as lançou na arca do tesouro, e poucas pessoas a
viram ou ficaram sabendo desse fato. Grandes ofertas estavam
sendo feitas, sim, mas ela deu tudo o que tinha, e esse ato sin­
gelo foi levado para o céu e Deus o viu. Dá-se exatamente a
mesma coisa com toda contribuição crista. Qualquer coisa
que façamos para ajudar a causa cristã, ou para ajudar algum
cristão individualmente, qualquer ato que realizemos para
Cristo, por termos sido animados e movidos por nosso amor
a Ele, ainda que pensemos que o estamos fazendo só para
certa pessoa ou causa, qualquer ato dessa natureza é arreba­
tado para cima daquele nível e Deus o vê e o abençoa. Assim
é que Paulo está dizendo a estas pessoas que, na realidade,
não é tanto que elas lhe fizeram um donativo como que
elevaram seu sacrifício, sua oferta de suave odor, a Deus, e
Ele a recebeu, e ama Seu povo por causa disso.
Ao considerarmos estas declarações do apóstolo, acaso não
sentimos que é desse modo que a Igreja deve agir? Será que
não é trágico ver que as igrejas têm que promover vendas de
trabalhos e festas, e têm que convocar o mundo e seus
entretenimentos, a fim de manter a causa de Cristo, e que têm
que recorrer a pessoas importantes, não espirituais, só para
aumentar os fundos? E uma tragédia não compreendermos
que o ensino relativo ao dar e receber é que nos cabe fazer
tudo aos olhos de Deus e em Sua presença; para Ele é como
um aroma suave.
Mas há algo mais a acrescentar, algo que, num sentido, é

266
Supridas Todas as Nossas Necessidades

ainda mais importante. O que preocupa finalmente o após­


tolo é que estes filipenses entendam completamente que
na questão geral da vida cristã e do modo cristão de viver,
eles devem evitar toda e qualquer ansiedade pecaminosa e
mórbida quanto à questão geral de como hão de viver e do
que vai acontecer. E aqui Paulo firma este admirável prin­
cípio no versículo dezenove: “O meu Deus, segundo as suas
riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por
Cristo Jesu s” . Como Paulo chega a dizer isso? Ele lhes
agradece o que eles fizeram por ele, estava em necessidade e
eles tinham superabundância, e ele lhes envia essa men­
sagem: “ Filipenses”, diz com efeito Paulo, “no momento estou
na prisão. Vocês estão fora da prisão e podem ajudar-me, e
estou muito agradecido por isso. Todavia, pode ser que
chegue o dia em que vocês não poderão dar coisa alguma. A
situação pode inverter-se, e vocês é que podem vir a passar
necessidade. Mas não se preocupem, seja qual for o estado
ou a condição em que se encontrem, “o meu Deus suprirá
todas as vossas necessidades”. Essa é a minha posição. Eu lhes
disse que aprendi a estar contente em qualquer estado em
que me encontre, e vocês devem aprender a mesma coisa. E o
segredo de tudo isso é que “o meu Deus, segundo as suas
riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por
Cristo Jesus” .
Aqui, pois, inequivocamente, está o grande ensino quanto
ao incômodo assunto sobre como nós, como cristãos, devemos
viver neste mundo, e sobre qual deve ser a nossa atitude face
às reais necessidades da vida. Essa é uma das coisas mais
marcantes que o apóstolo disse, enquadrando-se na mesma
categoria das suas outras declarações que já consideramos:
“Já aprendi... Posso todas as coisas em Cristo”. O nosso Senhor
ensina essa mesmíssima coisa em Mateus, capítulo 6, no
Sermão do Monte: “Não vos inquieteis pois pelo dia de
amanhã...”; não passem muito tempo pensando no que vão

267
A V ID A D E PA Z

comer ou beber... “Olhai para os lírios do campo... Basta a cada


dia o seu mal” . Esse ensino é repetido muitas vezes. E é isso
que o apóstolo está repetindo nesta altura, em sua carta aos
filipenses.
Não sei como vocês se sentem, mas eu nunca posso ler
palavras como estas sem sentir, e eu o digo deliberadamente,
que o maior problema nosso, como cristãos, é que somos uns
tolos. Como nos privamos das riquezas da graça! Como, com a
nossa sabedoria terrena, pomos nossos estreitos limites ao que
Deus nos oferece, e como nos privamos de tão grande parte
da alegria da salvação, e da glória do viver cristão! Vejam um
homem como Paulo. Alguma vez houve homem mais feliz
que este? Vejam outros muitos santos que adornaram a Igreja
Cristã. Essas pessoas parecem temerárias demais à primeira
vista, e, todavia, quão maravilhosas suas vidas foram! Bem,
esta é uma grande doutrina, e vocês podem encontrá-la no
Velho Testamento também. No fim da sua vida, disse Davi:
“Nunca vi desamparado o justo, nem a sua semente mendigar
o pão” (Salmo 37:25). Essa é a contraparte veterotestamentária
desta declaração de Paulo.
Tratemos de analisá-la, pois. Temos aqui uma promessa
feita por Deus a Seu povo de que todas as nossas necessidades
serão supridas. Consideremos, antes de tudo, a grandeza da
promessa, ou, se lhes parece bem, a grandeza do suprimento.
Qual é a minha posição como cristão? De acordo com Paulo, a
minha posição é que Deus se preocupa comigo - o meu Deus.
Quais os recursos à minha disposição? Deus está no controle.
Deus está gerenciando os recursos. Mas Paulo não fica nisso;
ele descreve mais amplamente esses recursos. Ele os denomina
“suas riquezas... em glória”, ou, “suas riquezas gloriosas” . Em
que consiste a riqueza de Deus? Ninguém pode responder tal
pergunta: “Do Senhor é a terra e a sua plenitude” (Salmos 24:1).
As vezes este assunto é manuseado na Escritura com um
elemento do que eu não hesito em denominar divino humor

268
Supridas Todas as Nossas Necessidades

ou divina ironia. Leiam Salmos como o quarenta e nove ou o


cinqüenta, e vejam como Deus fala às pessoas, algumas das
quais achavam que os seus sacrifícios para Deus eram para
beneficiá-10, e a réplica é; “Porque meu é todo animal da selva,
e o gado sobre milhares de montanhas” (Salmo 50:10)! Deus é
o dono de tudo; do nada Ele trouxe tudo à existência. Qual é a
riqueza de Deus? E igual à Sua glória, que é absoluta e eterna.
“ Suas riquezas em glória.” Recomendo a vocês, como estudo
interessante, fascinante e comovente, que percorram estas
Epístolas de Paulo e anotem declarações paralelas a esta. Por
exemplo: “Aquele que é poderoso para fazer tudo muito mais
abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos”
(Efésios 3:20) - é isso! Não se pode descrever Suas riquezas.
As riquezas de Sua graça, as riquezas de Sua glória são
ilimitadas.
Mas vocês podem ver, mesmo agora, que Paulo acha que
não é suficiente dizer o que disse; ele tem que acrescentar algo:
“O meu Deus suprirá todas as vossas necessidades” - não há
limites, não importa quais. E, todavia, penso que devemos ser
cuidadosos ao interpretarmos essas palavras, para que não
suceda que violentemos as Escrituras para nossa destruição.
E literalmente correto dizer que com Deus todas as coisas são
possíveis e que Deus pode suprir todas as nossas necessida­
des, e que o fará. Sim, mas nem sempre eu e vocês somos as
melhores autoridades quanto ao estado das nossas necessidades.
Paulo não diz, “O meu Deus suprirá tudo o que vos causa
prazer”, mas, “O meu Deus suprirá todas as vossas necessidades”,
e o que eu e você necessitamos e o que pensamos que
necessitamos, nem sempre é a mesma coisa. Não, não nos é
prometido luxo e prazer, mas o suprimento de toda a nossa
necessidade; seja esta qual for, o meu Deus a suprirá; nesse
sentido não há limite.
No entanto, o apóstolo emprega ainda outra palavra
para comunicar a idéia desta benevolência: o verbo “suprir”.

269
A V ID A D E PA Z

E é muito interessante notar que no original grego a palavra


traduzida aqui pelo verbo “suprir’ é a palavra que no versículo
anterior é traduzida por “estar cheio” - “Tenho todas as coisas
com abundância” . De modo que o que Paulo está dizendo é o
seguinte: o meu Deus satisfará plenamente todas as suas
necessidades, segundo as Suas riquezas em glória, por Cristo
Jesus. Deus os encherá até às bordas de tudo aquilo que
Ele vir que vocês real e verdadeiramente precisam receber.
Isso é, então, apenas um olhar de relance para a grandeza
da promessa. Fico a me perguntar, cristãos, se nos damos
conta como deveriamos, e se estamos cônscios como pode­
riamos, do fato de que a promessa se aplica a nós. Isso é certo,
não há equívoco algum quanto a isso, é isso que é prometido
ao povo de Deus. Com toda essa riqueza, Ele está agindo a
nosso favor, e conhece todas as nossas necessidades.
Mas permitam que eu mencione, em segundo lugar, o que
eu descrevo como a limitação da promessa. “O meu Deus,
segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas necessidades
em glória, por (em) Cristo Jesus.” Sim, há um limite muito
definido para esta promessa. A declaração de que Deus supre
todas as nossas necessidades não é feita ao mundo em geral,
não é feita a todo o mundo; é uma declaração particular, uma
promessa particular, e é limitada por Cristo Jesus. Parece
quase contraditório eu dizer que a promessa está limitada
em Cristo Jesus. Existiría algum limite para Cristo? Não, não
existe - e, contudo, existe! Paulo quer dizer que a largueza e a
benevolência vêm através de um canal particular, e esse canal
é Cristo Jesus. Eu sei que Deus faz o Seu sol subir sobre maus
e bons e sobre justos e injustos; trata-se da graça comum e da
benevolência geral de Deus. Mas esta promessa é particular;
é algo pessoal e individual que só vem pelo canal de Cristo
Jesus - todos os tesouros das riquezas da graça de Deus
vêm unicamente por meio de Cristo Jesus.
Este é um elemento fundamental do ensino geral do Novo

270
Supridas Todas as Nossas Necessidades

Testamento e, portanto, significa que, a menos que e a não ser


que estejamos nesta relação particular com Deus, esta promessa
não se aplica a nós. Esta promessa é feita somente àqueles que,
tendo visto o seu aperto desesperador, a sua condição deses-
peradora e o seu estado de perdição, correram para Cristo,
entregaram-se a Ele, estão sendo incorporados nEle e são
membros do Seu corpo. Não é feita a ninguém mais; a promessa
está restrita aos cristãos, àqueles que estão em Cristo Jesus nesta
relação, que estão conectados ao canal e que são recipientes da
graça de Deus na salvação. Há, pois, um limite muito definido
para a promessa propriamente dita; ela é ilimitada, mas está
confinada no canal de Cristo, no que Ele fez em Sua vida
morte e ressurreição. Ele está chamando os Seus para Si, e
isso é para os Seus, e somente para os Seus.
Vimos, pois, a grandeza da promessa e a limitação da
promessa, e isso, por sua vez, leva-me ao último princípio,
que é a certeza da promessa. “O meu Deus suprirá...” . Não há
dúvida quanto a isso, não é contingente, não é incerto, não é
dito “talvez”, “pode ser”. Não! “O meu Deus suprirá” “ Tão
certamente como estou escrevendo para vocês”, diz com efeito
Paulo, “isso lhes acontecerá. Eu sei, tenho certeza, são esses os
Seus termos”. Agora, Paulo não diz que sabe como exatamente
Deus vai fazer isso, e nós tampouco sabemos. “Move-se Deus
de modo misterioso, para Suas maravilhas realizar”. Leiam a
história de homens como George Müller e verão a espécie de
método pelo qual Deus opera, mas às vezes Ele o deixa de
lado a fim de dar algo, e todos nós temos tido, talvez, experi­
ência disso de um pequenino modo ou de outro. As vezes
parece que Ele esvazia antes de encher, mas Ele o faz, e o fará.
✓ y

E certo. E absoluto.
Quais serão, então, os argumentos em prol da certeza?
Permitam-me anotá-los. Se eu e vocês estamos em Cristo,
estamos numa relação muito particular com Deus; se estamos
em Cristo, somos participantes da natureza divina, somos

271
A V ID A D E PA Z

membros da fam ília de D eus, somos Seus fam iliares e


pertencemos a Ele. Que declaração estupenda! Mas é a pura
verdade. Se estamos em Cristo, somos “herdeiros de Deus e
co-herdeiros de (com) Cristo. Nesta maravilhosa relação
pessoal, somos filhos; Deus se fez nosso Pai, e vocês se lem­
bram do argumento que o nosso Senhor deduziu desse fato?
Ele disse; “Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos
contados” (Mateus 10:30), e mais: “ Se vós, pois, sendo maus,
sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso
Pai, que está nos céus, dará bens...?” (Mateus 7:11). Todos esses
pronunciamentos são espantosas declarações do paternal
interesse e preocupação de Deus por nós. A analogia está logo
ali, na superfície. Basta pensar em como os pais antecipam as
necessidades do seu filho; o filho não tem que pedir, eles estão
observando, eles vêem a necessidade até onde o filho não a vê.
E Deus é assim conosco, se estamos em Cristo; Ele vai suprir
todas as nossas necessidades porque Ele é nosso Pai.
Contudo, há uma coisa maior ainda; aquele notável argu­
mento utilizado por Paulo nos capítulos 5 e 8 da sua Epístola
aos Romanos. E um dos grandes argumentos lógicos, este
baseado na seguinte proposição: se o maior é verdadeiro, logo
o menor inevitavelmente o é: “Porque se nós, sendo inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito
mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida”
(Romanos 5:10) - é inevitável. Ou, de novo, diz ele no capítulo
8, versículo 32: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho
poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará
também com ele todas as coisas?” Não há necessidade de
argumentar; o Deus que enviou Seu Filho unigênito para a
cruel cruz no Calvário, onde Seu sangue foi derramado e Seu
corpo foi partido para que nós, pecadores rebeldes, fôssemos
salvos, perdoados e redimidos. Deus, que fez isso por nós, não
vai nos abandonar quanto a coisas menores como comida,
bebida, vestuário e outras coisas temporais. Não. “Aquele que

272
Supridas Todas as Nossas Necessidades

em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus


Cristo” (Filipenses 1:6). O feito maior, que Ele já realizou, é
garantia de que certamente realizará o feito menor. “ O meu
Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas neces­
sidades em glória, por Cristo Jesu s.” A bem-aventurada
segurança do cristão não é só nas coisas espirituais, é até mesmo
nas coisas materiais, se obedecermos a estas condições. A
promessa de Deus é absoluta.

273
20
Meu Deus
“O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as
vossas necessidades em glória, por Cristo Jesus. Ora, a nosso Deus
e Pai seja dada glória para todo o sempre. ” - Filipenses 4:19,20

Como já vimos em nosso estudo anterior, aqui o apóstolo


está confortando os filipenses e lhes está lembrando que o
futuro deles está perfeitamente salvo e seguro. Aconteça-lhes
o que lhes acontecer, seja qual for a experiência que se requer
que tenham, ele está confiante e tem certeza de que o seu
suprimento estará sempre à mão, porque tudo lhes será
plenamente suprido pelo próprio Deus. Já consideramos os
termos com os quais ele coloca esse argumento diante deles:
a grandeza de Deus e o caráter ilimitado do Seu tesouro e das
Suas riquezas. Vimos também que tudo vem por meio de
Cristo, e Paulo está certo disso, pelo forte argumento segundo
o qual o Deus que realizou o maior feito na morte de Cristo,
não pode abandoná-los agora, visto que eles foram introduzidos
na vida cristã. Paulo apresenta esse argumento a fim de dar
aos filipenses uma sensação de confiança e de certeza.
Neste estudo desejo concentrar a atenção na particular
maneira pela qual o apóstolo expressa isso tudo: “O meu Deus...
suprirá todas as vossas necessidades...”. Ele já havia empregado
a expressão “meu Deus” no versículo três do capítulo primeiro,
onde diz: “Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me
lembro de vós”, e vocês poderão ver que ele faz uso desta
expressão ou de outra similar, “Meu Senhor”, também em
muitas outras passagens.

274
Meu Deus

Bem, isso era muito característico do apóstolo. Vocês não


podem ler nenhuma das suas Epístolas, nem qualquer dos seus
discursos registrados em Atos, sem que logo fiquem impres­
sionados com a nota pessoal que sempre está presente em cada
declaração. Essa experiência pessoal está sempre ali, e ele nunca
escreve sem que vocês se sintam aquecidos e sintam uma
crescente devoção. Qualquer outra coisa que se possa dizer
sobre as Epístolas, penso que todos hão de admitir isso.
Obviam ente, este homem escreve baseado numa rica
experiência pessoal - nessas cartas não há nada que seja
acadêmico ou abstrato. Elas não somente são pastorais, e não
somente se percebe nelas o amor que existe entre o apóstolo e
as pessoas a quem ele escreve, mas também todas as suas
referências a Deus e a nosso Senhor Jesus Cristo têm uma
nota de intimidade pessoal, devoção e amor. Na verdade, a
justaposição destas duas palavras, “meu” e “Deus”, lembra-
-nos o que, afinal de contas, é o traço central da vida religiosa
do apóstolo, e também a característica dominante de todos os
escritores do Novo Testamento. Noutras palavras, são uma
perfeita combinação de doutrina e experiência.
Pois bem, penso que se pode construir um bom argumento
dizendo que grande parte das dificuldades que a Igreja Cristã
tem experimentado através da sua longa história deve-se ao
fato de que os cristãos não têm sido suficientemente atentos
para verem que esses dois elementos estavam presentes ao
mesmo tempo e no mesmo lugar. A nossa tendência é salientar
ou um ou o outro, e muitas vezes um em detrimento do outro.
Existem os que põem ênfase e insistem na doutrina: eles falam
sobre Deus, conhecem bem a doutrina e a verdade concer­
nentes a Deus, sendo esse é o seu grande interesse. Deus é o
objeto do seu constante estudo e pesquisa, e o grande tema
que ocupa a sua mente e a sua atenção, e eles conhecem, não
somente a doutrina sobre Deus como Ele é ensinado na Bíblia,
mas também sabem como essa doutrina tem sido desenvolvida

275
A V ID A D E PAZ

pela igreja e por muitos concílios. Eles são cultos, são eruditos,
e têm muito conhecimento, e, todavia, de um modo ou de outro,
vocês não podem deixar de sentir que o interesse e a preocu­
pação deles são puramente acadêmicos e teóricos, que eles estão
engajados numa espécie de ciência. Assim como alguém
escolhe uma ciência física e procura descobrir a verdade
concernente a ela, assim estes homens parecem escolher o
conhecimento de Deus como o seu interesse na vida e como
0 campo da sua busca científica. Naturalmente, o resultado é
que eles dão a impressão de que têm o que tem sido quali­
ficado como teologia “árida como o pó” . O conhecimento
está ali, a doutrina está ali, a percepção da verdade está ali,
porém nada mais. Nunca dão a impressão de que falam sobre
o “meu Deus” . As diversas verdades de que tratam parecem
quase abstrações e conceitos isolados concernentes a um ser
augusto e supremo - doutrina e nada mais.
Todavia, claro está que, por outro lado, existem aqueles
que vão ao outro extremo. E a experiência pessoal que recebe
a proeminência e a ênfase. Eles vão dizer-lhes que nada sabem
doutrina e com franqueza lhes dirão que não têm interesse
nisso. Eles dizem muita coisa sobre os teólogos “áridos como
pó”, que podem argumentar com muita inteligência e produ­
zir sua casuística, mas que parecem ter seus corações, suas
mentes e suas experiências vazios de conhecimento vivido e
real. Já estes falam de suas experiências, do que sentem e do
que provaram e conhecem. A ênfase é toda sobre eles mesmos.
Eles têm algo; certamente tiveram a experiência e ficam falando
dela e sobre ela, mas toda a sua ênfase é sobre isso, e dizem:
“ Não adianta me falar sobre doutrina. Não me peça para
explicar a doutrina sobre Deus, ou a doutrina da encarnação
ou a da expiação. Não entendo essas coisas, mas tenho sentido
e experimentado algo” .
Penso que vocês concordarão comigo que a tendência é a
seguinte: ou um extremo ou o outro. Entretanto, isso é uma

276
Meu Deus

coisa que nunca se poderá dizer deste grande apóstolo, nem


de nenhum dos escritores do Novo Testamento. A glória da
posição deles é que as duas coisas vêm juntas. Deus, sim; mas
também o “meu Deus”. Doutrina e experiência, o objetivo e
o subjetivo. A grande declaração da verdade e, contudo, o
experimental, ou, se vocês o preferirem, o conhecimento
vivencial dessa verdade.
E é isso que o apóstolo nos lembra ao tratar da questão
da segurança do crente cristão, e essa é a base suprema da sua
segurança e da sua confiança. Vocês não precisam preocupar-
-se com 0 futuro, diz Paulo, “o meu Deus, segundo as suas
riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por
Cristo Jesus.”
Temos aqui, pois, uma declaração que merece a nossa mais
cuidadosa atenção e análise. Permitam-me expô-la a vocês
primeiramente e acima de tudo fazendo algumas perguntas.
Será que nós falamos habitualmente de Deus como “o meu
Deus” ? Será que eu, como cristão, uso instintivamente essa
expressão? Acaso eu digo, do fundo do meu ser, “Meu Deus,
quão maravilhoso és!” ? Falo eu em meu Senhor Jesus Cristo?
Seria essa a expressão natural da minha vida religiosa e da
minha experiência cristã? Paulo, como lhes mostrarei
quando examinarmos os versículos 19 e 20, não restringe isso
à sua pessoa. “Nosso Deus” - quanto aos crentes filipenses e
a todos os demais. Ele é “nosso Deus e Pai”.
Há, então, certas coisas que podemos deduzir. Em pri­
meiro lugar, o apóstolo fala sobre um Deus que ele conhece.
Talvez possamos salientar esse ponto colocando-o em oposição
a diversas negativas. O culto e a religião de Paulo não eram
uma superstição. E possível que nós pensemos que estamos
prestando culto a Deus e, contudo, sermos culpados de
superstição. Paulo faz essa acusação contra os cidadãos de
Atenas. “Quando eu estava andando pelas ruas da sua cida­
de”, disse ele com efeito, “observei que vocês são muito

277
A V ID A D E PA Z

supersticiosos e vi o seu altar dedicado ao Deus Desconhecido”


(Atos, capítulo 17). Existem aqueles que dizem com W. E.
Henley: “Dou graças por quaisquer deuses que estejam a favor
da alma invencível” . Eles não conhecem Deus, mas acreditam
vagamente que existe um grande poder. E uma religião de
medo e pavor, uma consciência da existência de algo indefinido,
tremendo, remotamente distante, nalgum lugar. Esta idéia vaga
de um ser poderoso e majestoso não é a que caracteriza o culto
e a religião do apóstolo Paulo. A sua religião não é supersticiosa.
Deus é uma realidade, uma Pessoa com quem ele tem
intercâmbio e com quem ele mantém conversa e comunhão.
Em segundo lugar, permitam-me expor a declaração em
foco da seguinte maneira: é evidente que o Deus do qual o
apóstolo fala não é meramente o Deus da filosofia. Esta é
também uma negativa importante. Claro está que existe o Deus
da filosofia. Há escolas de filosofia que gostariam de ensinar-
-nos e de fazer-nos acreditar que se pode provar a existência
de Deus. Existem aqueles que chegam a Deus como resultado
de diversos argumentos elaborados por Tomás de Aquino. Os
próprios filósofos falam muito sobre Deus, mas o Deus do
filósofo tende a ser uma abstração, uma espécie de “x” filosófico
que é essencial ao respectivo esquema e sistema. Ele é o que
eles chamam “ realidade suprema” ou “absoluto”. Oh, o orgu­
lho de conhecimento com que eles tendem a usar esses termos!
E como se eles se julgassem superiores ao cristão humilde,
que fala em “meu Deus” . Pois bem, essa é a tendência do
filósofo. Que ninguém me entenda mal; estou tentando indicar
o terrível perigo de confundir essa concepção meramente
filosófica com o Deus de quem Paulo fala - o “meu Deus”,
alguém que ele conhece.
Em terceiro lugar, o Deus de quem Paulo fala não é somente
o Deus da teologia - e aqui eu estou procurando ser escrupu-
losamente justo. Desafortunadamente, é-nos possível falar de
um Deus que nada é senão uma concepção teológica. E um

278
Meu Deus

avanço, e, entretanto, é algo muito diferente do Deus acerca de


quem o apóstolo fala aqui, em nosso texto. E possível que nos
interessemos pela Bíblia por ser ela, incomparavelmente, o
livro mais grandioso do mundo, e, para um homem dotado de
inteligência, não pode haver estudo mais fascinante do que o
estudo deste livro. Então você começa a ler livros sobre a Bíblia,
e você se depara com as maiores mentes que o mundo conheceu,
incidentalmente, os maiores filósofos desta era cristã. Mas ei-
-los aí, combinando o conhecimento com um estudo deste livro,
e elaboram esta ou aquela doutrina, e falam sobre o Deus da
revelação que fez isto e aquilo, mas ainda aí você pode estar só
tratando com uma abstração, com um Deus que figura neste
livro do mesmo modo como você trataria com um personagem
de uma peça de Shakespeare. Você lê a peça tantas vezes que o
personagem quase assume realidade para você - e, contudo,
claro está que ele não tem essa realidade. E uma ficção que
Shakespeare criou em sua mente e introduziu em sua peça.
Pois bem, há um terrível perigo de que Deus seja alguém
assim para nós; essencial ao nosso sistema teológico, mas não
alguém que conhecemos. A teologia da Bíblia é um extra­
ordinário conceito intelectual, e o perigo terrível é que Deus
seja tão-somente uma parte desse esquema para nós. Não, não
é esse o Deus a respeito de quem o apóstolo escreve e de quem
fala tão constantemente. Paulo conhece Deus. Deus não é mera­
mente um Espírito vago, indefinível, irrompendo e fazendo
algo terrificante e alarmante; tampouco Ele é o “ supremo” -
alguém que é essencial a um entendimento da história dos
judeus a quem Paulo pertence. Não, para este apóstolo Deus
é uma realidade, alguém que ele conhece - “meu Deus” . O
Deus que eu conheço, o Deus da experiência com quem eu
falo, e que é mais real do que a própria vida. O apóstolo Paulo
conhecia Deus. Mas não podemos parar aí.
A nossa segunda dedução importante é que Paulo ama
Deus. Isso não é exagero. Porventura vocês não podem

279
A V ID A D E PAZ

detectá-lo na frase “meu Deus” ? Ele não somente O conhece;


ufana-se dEle. Ele nos diz algo sobre o caráter de Deus. Ele
não treme na presença de Deus quando pensa na força e no
poder de Deus e em Seu domínio ilimitado. A razão é dada no
próximo versículo: para o apóstolo Paulo Deus é também
“Pai” . Temos aqui outro tema interessante - a freqüência com
que Paulo se refere ao “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo” . Essa é uma exposição da declaração feita pelo nosso
Senhor: “Quem me vê a mim vê o Pai” (João 14:9). Deus é
isso. Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo; é o nosso
Deus e o nosso Pai; e o resultado é que Paulo ama Deus.
Bem, nós estamos acostumados com essas declarações;
elas soam muito simples, mas como são profundas! O manda­
mento é que amemos; não somente que creiamos e aceitemos
vários princípios e declarações, mas: “Amarás pois o Senhor
teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e com
todas as suas forças” (Deuteronômio 6:5)1 Ame a Deus!
Quão fácil é passar por cima de uma frase como esta - “meu
Deus” .
E nós, amamos Deus? Ou antes achamos que Ele é alguém
posicionado contra nós, um grande Poder de quem não
podemos escapar, alguém que parece impedir-nos e proibir-
-nos de fazer o que queremos? Seria essa a nossa idéia de
Deus, ou podemos dizer que O amamos? “Meu Deus”, no
sentido de posse, como quem ama possui o objeto do seu
amor; alguém que nos é querido.
Em terceiro lugar, Paulo também nos diz algo sobre o
caráter de Deus. Ele define Deus aqui contradistinguindo-0^
de outros deuses. Lembremo-nos de que Paulo está escrevendo
aos filipenses, e, enquanto Paulo não foi a Filipos, eles eram
pagãos, a não ser uns poucos judeus e prosélitos. Naturalmente,
eles eram politeístas. Exatamente como Atenas, eles tinham
templos e altares pagãos em Filipos; tinham sido criados na
' Verbo registrado por Caldas Aulete. Nota do tradutor.

280
Meu Deus

atmosfera do politeísmo e adoravam deuses de prata, de


madeira e de pedra. Lembrando mais uma vez aos filipenses a
grande mudança operada em suas vidas, praticamente Paulo
diz: “ Permitam-me lembrar-lhes que vocês não precisam
preocupar-se; estou baseando a minha confiança em meu Deus,
não nos deuses que vocês costumavam adorar”. Deus não é
como os outros deuses que pessoas tolas, em sua cegueira,
continuam cultuando, mas é o “meu Deus” . Paulo define o
Ser de Deus e Suas características. Quais são elas? São estas
duas, que devemos salientar neste ponto.
Em primeiro lugar. Deus é o único Deus vivo e verdadeiro.
Novamente vocês poderão ver Paulo elaborar essa verdade em
muitos lugares. Em seu discurso em Atenas ele diz ao povo
que Deus não é alguém que habita em templos de ouro ou de
prata (ver Atos, capítulo 17); Ele não depende do homem. Deus
é o Eterno, o Criador, o Artífice e o Sustentador de tudo quanto
existe; glorioso em santidade e poder - “meu Deus”. Pois bem,
essa é uma verdade que precisamos manter constantemente
em nossas mentes. O Deus que é o nosso Salvador, o Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, é também o Criador. E aí que a
doutrina é tão importante. Ele existe de eternidade a eternidade.
Ele criou tudo do nada. Ele é Aquele por quem “as nações são
consideradas... como a gota num balde, e como o pó miúdo
das balanças” (Isaías 40:15). Ele e o único Deus vivo e verda­
deiro, o Criador. Nesse sentido Ele é o “absoluto” dos filósofos,
e mais. Noutras palavras, Paulo desejava lembrar-lhes que
esta não é uma crença supersticiosa, uma invenção da imagi­
nação - “o Deus de quem estou falando é o Deus vivo”. Ele
é uma Pessoa, e Ele não somente criou tudo e sustenta tudo,
mas também tudo está sujeito a Seu domínio e a Seu reinado:
“O Senhor reina.” Este Deus, de quem estou falando, “nunca
te deixará, nem te desamparará” (Hebreus 13:5).
Em segundo lugar, Ele é o Deus que se alia - o Deus das
alianças. Se vocês lerem Deuteronômio, capítulo 29, verão que

281
A V ID A D E PA Z

essa é uma das passagens onde essa grande idéia de Deus se


aliando a Seu povo é salientada e desenvolvida. O Deus de
quem estou falando, diz Paulo, não é um Deus a quem
chegamos por meio da superstição ou da filosofia, porém o
fazemos baseados na revelação. A Deus aprouve manifestar-
-Se, falar-nos a Seu respeito, revelar Seu grande propósito
quanto aos homens e às mulheres, revelar Seu grande plano
de salvação. Ele nos falou destas coisas de tal maneira que
tenho o direito de falar dEle como o “meu Deus”.
Permitam-me trazer à memória de vocês algumas pas­
sagens: Gênesis 17:8: “E te darei a ti, e à tua semente depois de
ti, a terra de tuas peregrinações, toda a terra de Canaã em
perpétua possessão, e ser-lhes-ei o seu Deus”. A palavra “ seu”
(deles) é importante. Deus vai ser o “seu Deus” de um modo
particular.
Jeremias 31:33: “Mas este é o concerto que farei com a
casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha
lei no seu interior, e a escreverei no seu coração; e eu serei o
seu Deus e eles serão o meu povo” . Esse é o grande concerto, a
grande aliança. Deus a fez originariamente com Abraão e
continuou a repeti-la até chegarmos a Cristo; temos depois, no
Novo Testamento, as grandes elaborações da mesma aliança
expostas por Paulo, por exemplo em 2 Coríntios 6:16: “Porque
vós sois o templo do Deus vivente, como Deus disse: neles
habitarei, e entre eles andarei; e serei o seu Deus e eles serão o
meu povo”. Há depois uma grande exposição em Hebreus,
capítulo 8, onde o autor igualmente se refere à nova aliança -
“Eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo” (Hebreus
8:10). A Aliança de Deus! Pois bem, dessa verdade os nossos
pais costumavam falar muitíssimo, mas, lamentavelmente,
nós a deixamos cair em desuso. Esta aliança de Deus com
Seu povo: vou confinar-me em vocês, meu povo; vocês são o
meu povo, minha possessão peculiar; Eu serei o seu Deus
num sentido no qual não serei Deus de ninguém mais.

282
Meu Deus

Portanto, amados filipenses, diz Paulo, não tenham


nenhuma preocupação ou inquietação quanto ao futuro de
vocês.
Mas, permitam-me salientar o outro lado. Se Deus é um
Deus que Se entregou a Paulo, Paulo se entregou a Deus. Ele
é o Deus a quem me doei, diz Paulo, e que eu reconheço
e proclamo. Eu me aliei a Ele. Uma aliança tem dois lados,
duas partes. Deus alia-Se a nós, mas nós temos que aliar-nos
a Ele, e, diz Paulo, eu fiz isso.
Mas, finalmente, Paulo diz “Meu Deus” a fim de dizer
aos filipenses que Deus é um Deus que ele provou, de quem
ele tem experiência. Paulo não somente O conhece e O ama e
tem ciência das Suas características profundas, mas também -
“O meu Deus, segundo as sua riquezas, suprirá todas as vossas
necessidades” . Eu O conheço, diz Paulo, não estou escrevendo
teoricamente; firmei nEle a minha vida e todo o meu ser. Uma
vez que vim a conhecê-10 verdadeiramente, entreguei-me a
Ele. Firmei tudo nEle e na verdade concernente a Ele, e, aqui
diz com efeito Paulo, “Nunca fiquei decepcionado” . Nunca!
Tornem a ler 2 Coríntios, capítulos 11 e 12, e Paulo lhes
dirá algo sobre as suas experiências - açoitado, náufrago,
incompreendido, difamado, passando fome, sede e frio, quase
morto a pedradas - e, todavia, a sua declaração é sempre que
o Senhor o livrou de todas essas coisas.
Há um glorioso exemplo disso na segunda carta de Paulo
a Timóteo: “Ninguém me assistiu na minha primeira defesa,
antes todos me desampararam” (4:16). Este extraordinário
Paulo, que tinha pregado e feito tanto por outros, e que sofrerá
tanto, estava sendo julgado e ninguém esteve com ele, antes
todos 0 abandonaram! “Que isto não lhes seja imputado”, diz
ele, e prossegue: “Mas o Senhor assistiu-me e fortaleceu-me...
E o Senhor me livrará de toda má obra, e guardar-me-á para
o seu reino celestial” (versículos 16-18). “Nunca te deixarei,
nem te desampararei.” Paulo provou isso.

283
A V ID A D E PAZ

Filipenses, diz o apóstolo, “o meu Deus suprirá todas as


vossas necessidades” . Essa é a espécie de Deus que Ele é;
eu O testei, eu O provei; Ele nunca me desamparou, nunca
falhou. “O meu Deus” - o Deus que eu conheço, o Deus que
eu amo, o Deus que eu posso atestar, digamos assim, o Deus
que disse: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos” (Mateus 28:20).
Portanto, faço aqui as mesmas perguntas que fiz no
começo: Você pode dizer “meu Deus” ? Você O conhece? Ele é
real e está vivo para você? Você O ama? Você O provou e O
testou?
Que será que nos habilita a ter esta experiência? Não
posso tratar disso em detalhe e, assim, apenas o menciono. Tudo
isso se tornou real para Paulo porque ele foi a Deus por meio
de Jesus Cristo. O próprio Senhor lhe disse: “Eu sou o caminho,
e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim”
(João 14:6). Você jamais poderá conhecer Deus, exceto em Jesus
Cristo. Você pode conhecer a abstração filosófica, o conceito
lógico, mas as únicas pessoas que realmente conhecem Deus
são as que compreendem que não O conhecem e que nunca
poderão chegar a esse conhecimento por si mesmos. E em
completo desespero e desamparo, clamam a Deus, “Não te
conheço”, e então crêem em que simplesmente se lhes pede
que abandonem a si mesmos para que Deus Se encarregue
delas. Em completo desvalimento, tais pessoas pedem a
Cristo que lhes revele Deus, e continuam pedindo, até poderem
dizer “meu Deus”, por meio de Jesus Cristo.
Faça 0 que Paulo fez. Renda-se a Deus, e, se o fizer, confie
nEle; então você chegará a conhecê-10 - e não sem isso. O
Espírito Santo é dado àqueles que obedecem a Deus. Se
você Lhe obedecer vindo a Cristo e se entregando a Ele,
Ele lhe dará o Espírito de adoção, pelo qual clamamos,
“Aba, Pai” - “Meu Deus” .

284
21
A Comunhão dos Santos
“Saudai a todos os santos em Cristo Jesus. Os irmãos que estão
comigo vos saúdam. Todos os santos vos saúdam, mas principalmente
os que são da casa de César.” - Filipenses 4:21,22

Nestes versículos o apóstolo, numa espécie de segundo pós-


-escrito, apenas transmite suas saudações e as dos seus
colaboradores, como também, na verdade, de todos os mem­
bros da igreja de Roma, aos membros da igreja de Filipos.
Vocês verão que ele as insere praticamente em todas as suas
Epístolas. Ele não escreve somente por si, escreve por todos
os cristãos que estão com ele, onde quer que acaso ele esteja.
Mas, o que nos interessa neste pós-escrito adicional é o
extraordinário e belo quadro que o apóstolo nos oferece da
natureza e da vida da Igreja Cristã primitiva. Não é sua
intenção fazê-lo, mas, ao transmitir as suas saudações, ele,
incidentalmente - e, num sentido, quase por necessidade -
dá-nos este idílico quadro descritivo.
Pois bem, há ocasiões em que sinto, e o sinto muito
fortemente, que, talvez, uma das maiores necessidades da
Igreja atual seja a necessidade de recapturar este quadro
neotestamentário. Vocês não podem ler as Epístolas e observar
o caráter da Igreja em seu início sem ficarem logo impres­
sionados com o chocante e estranho abandono que houve desse
modelo. Temos que admitir que, em geral, a Igreja Cristã se
tornou formal, estagnada e mais ou menos sem vida. Vocês
lêem estas passagens do Novo Testamento, apanham estes

285
A V ID A D E PA Z

vislumbres, principalmente nas introduções e nos pós-escritos,


e lhes é feita uma descrição de uma comunhão realmente
maravilhosa de um corpo comunitário de pessoas que se
reúnem para adorar a Deus, para considerar o nosso evangelho
cristão e para compartilhar suas experiências. O que sobressai
desde logo é a comunhão, o amor, e esta qualidade peculiar
de intimidade e entendimento. O próprio Novo Testamento
descreve a Igreja como o corpo de Cristo, e freqüentemente se
esforça para fazer com que nos lembremos da natureza e da
relação das diferentes partes. E evidente que a Igreja do Novo
Testamento era uma Igreja vibrante de vida, com poder, com
comunhão e com entendimento. Se vocês tentarem criar em
suas mentes uma reunião da Igreja Primitiva e contrastá-la
com uma reunião típica da Igreja atual, ficarão mal impres­
sionados com a notável e extraordinária diferença. Quando
vocês pensam na tendência que a Igreja tem de dar crescente
atenção ao edifício, a formas, à cerimônia ,e ao ritual, e a
desenvolver um tipo de hierarquia, com ofícios e coisas do
gênero, vocês não ficariam surpresos por não poderem
encontrar isso no Novo Testamento? No Novo Testamento
a Igreja é, primariamente, uma comunhão, e nela há uma
atmosfera de intimidade e de amor. Há uma ausência de
form alidade e daquilo que, lamentavelmente, tem sido
salientado muito nos últimos cento e tantos anos e que é
expresso pela palavra dignidade. A forma era palpavelmente
irrelevante. As pessoas se interessavam pela substância, e o
resultado era que algumas das igrejas se reuniam em casas:
reuniam-se onde quer que lhes fosse possível, mas, porque se
reuniam desse modo e nesse estilo, eram uma igreja.
Assim foi que apresentamos apenas um vislumbre deste
breve segundo pós-escrito. As coisas que logo nos surpreen­
dem são a natureza ativa da comunhão e o espírito de unidade.
Não importa a cidade em que viviam, ou em que país, todos
eles pareciam ser um só em amor admirável que tinham uns

286
A Comunhão dos Santos

pelos outros e em seu interesse e cuidado uns pelos outros.


Os cristãos filipenses preocupavam-se com os cristãos da cidade
de Roma; as pessoas de Roma enviavam saudações aos cristãos
filipenses; e é a mesma coisa em todas as Epístolas. Parece-me
que este é um teste completo de toda a nossa posição como
cristãos. Teríamos este interesse especial pelos outros cristãos?
Preocupamo-nos em ler sobre eles? Preocupamo-nos com as
condições em que eles se encontram? Preocupamo-nos com
os seus sofrimentos?
Faço essas perguntas num tempo como este, quando nos
vemos de volta a um estado estranhamente similar ao que
prevalecia na era do Novo Testamento. Alguma vez pensamos
em tantos cristãos que sofrem pelo mundo afora e que não
gozam a liberdade de culto que gozamos? Na Igreja Primitiva
o que sobressaía era o interesse que os cristãos tinham uns
pelos outros. Que estaria acontecendo com os outros? Esta­
riam sofrendo perseguição? Havia um grande desejo de se
ajudarem uns aos outros e de ajudar na propagação do
evangelho em todas as terras e entre todos os povos. Esse era
um traço característico da vida destes cristãos primitivos.
Dessa forma, ao enviarem saudações uns aos outros, eles
simplesmente sublinhavam e salientavam a tese de que a
Igreja é de fato o corpo de Cristo e de que há esta unidade
peculiar entre os membros, como há entre os membros e a
nossa grandiosa e gloriosa Cabeça.
A palavra de saudação lembra-nos logo isso, mas eu quero
ir além desse ponto agora e concentrar a atenção em algo
adicional. Paulo faz aqui uma declaração muito significativa:
“ Saudai a todos os santos em Cristo Jesus... Todos os santos
vos saúdam, mas principalmente os que são da casa de César”.
Bem, isso é o que há de notável nesta altura. As duas frases
juntas descrevem a Igreja Cristã e os seus membros, mas eu
sinto que esta frase particular nos diz algo muito especial e
adicional acerca do cristão. Para que eu possa ajudá-los a reter

287
A V ID A D E PA Z

a idéia em suas mentes, permitam-me sugeri-la em termos


da seguinte proposição:
Primeiro, o que significa para qualquer um ser cristão.
Os cristãos são santos.
Segundo, qualquer um pode ser cristão.
Terceiro, é possível ser cristão em qualquer lugar.
O primeiro ponto, então, é que devemos ter claro em
nossas mentes o que significa para quem quer que seja ser
cristão. Que é um cristão? O apóstolo responde a essa pergunta
com seu repetido uso da palavra santo, ou santos. E, de novo,
naturalmente, vemos num relance como a igreja em todos os
séculos tem tendido a afastar-se do modelo do Novo Testa­
mento. Quando ouvimos a palavra “ santo”, será que não
pensamos instintivamente num tipo especial de membro
de igreja, ou numa pessoa excepcionalmente “ cristã” ? A
Igreja, em seu uso do termo “santo”, apartou-se radicalmente
do uso feito dele no Novo Testamento. Apesar da Reforma
Protestante, pensamos num santo em termos do ensino
católico-romano; consideramos santo um cristão incomum
que foi canonizado por uma corporação de homens devido
a alguns méritos peculiares ou a virtudes notáveis. Por isso
evitamos chamar-nos santos. Gostamos demais de dizer: “Estou
muito longe de ser um santo”, como se teméssemos que
alguém nos considerasse santos!
Essa forma de pensar e de agir constitui um abandono
radical do Novo Testamento, pois, de acordo com o ensino
do Novo Testamento, todo cristão, todo membro da Igreja
Cristã, é santo. Leiam as introduções das Epístolas - “aos
santos que estão em Roma... em Corinto...”, “chamados
santos” ou “chamados para ser santos”, cada um deles. “ Saudai
todos os santos”, ou, para expressá-lo com uma linguagem
mais moderna, “D ai minhas saudações a cada santo da
igreja” . Noutras palavras, o apóstolo não somente fala de cada
membro individual da igreja de Filipos como santo, mas

288
A Comunhão dos Santos

considera todos eles como santos. Você não pode ser cristão
sem, ao mesmo tempo, ser santo. Portanto, isso significa que,
evidentemente, a nossa definição do que constitui um santo
perdeu-se de algum modo. O santo, conforme a Bíblia, é
alguém que foi separado, é uma pessoa santa, sagrada. Quando
lerem o Novo Testamento, vocês verão referências ao “monte
santo”, e essa expressão se refere a um monte que foi separado
por Deus e consagrado. Não houve mudança alguma na
constituição do monte como tal, mas Deus o separou. Os
“vasos santos” também eram vasos do templo que eram
consagrados; derramava-se sangue sobre eles, e eles eram
separados para uso no templo.
Temos aí, pois, a chave para o entendimento do que o
Novo Testamento quer dizer com a palavra “santos” . Antes de
tudo, o santo é uma pessoa que foi chamada para fora do
mundo pelo Deus todo-poderoso. Nós nascemos em pecado e
fomos formados em iniqüidade, mas então a graça de Deus
em Cristo Jesus veio até nós, apreendeu-nos, selecionou-nos
e nos separou. Fomos postos à parte como povo santo, povo
especial de Deus; povo que Deus marcou para Si. Por tal
povo Deus tem um interesse especial - são pessoas que Ele
deseja usar com um propósito muito especial.
Essa é, então, a concepção neotestamentária do que seja
um membro de igreja, homem ou mulher: alguém que tem
sido tratado por Deus de um modo que o diferencia de todos
A

os que estão fora. E muito importante que retenhamos este


sentido primário e incipiente da palavra “santo” e que, em
primeira instância, não pensemos no que fazemos ou não
fazemos, mas, antes, no que somos. E, portanto, estejamos
cônscios de que, a despeito da nossa pecaminosidade e da
nossa indignidade. Deus trata conosco. Deus nos inquieta, há
em nós alguma coisa diferente do que outrora havia de fato
em nós, ou na pessoa mediana. Se Deus está em meus
pensamentos e se eu quero servi-10 mais fielmente, então

289
A V ID A D E PA Z

eu sou um santo, porque não se pode dizer isso da pessoa


mediana. O homem natural não pode entender Deus, nem
as coisas do Espírito de Deus. O homem natural está em ini­
mizade contra Deus. A maioria das pessoas não se preocupa
com isso, e então, porque nós nos preocupamos? Haveria
alguma explicação que não seja a de que Deus nos fez algo?
Os cristãos, os membros de igreja, os santos, são pessoas
separadas por Deus para Seus grandes e gloriosos propósitos.
Eles são o Seu povo especial.
E claro está que isso nos leva inevitavelmente a dizer que
as pessoas que se dão conta da veracidade destas coisas se
propõem viver vidas santas. O sentido secundário de “santo” é
que ele é alguém que procura viver uma vida reta e piedosa,
agradável aos olhos de Deus. Pois bem, ser cristão é isso. O
ponto que devemos salientar não é tanto o que estamos ten­
tando fazer, mas, antes, o nosso conhecimento e a nossa
consciência de que somos separados por Deus. Como o vaso
separado, como o monte separado, assim também fomos postos
numa categoria diferente. Os homens e as mulheres cristãos
são pessoas especiais, excepcionais, neste mundo; não podem
evitar isso, porque é ação de Deus neles, e assim, com os cristãos
do Novo Testamento devemos regozijar-nos neste fato e em
nossa distinção, no fato de que fomos postos à parte nesta
ordem separada, somos este grupo separado de pessoas aqui,
neste mundo limitado pelo tempo. E isso que, quanto a
qualquer pessoa, significa ser cristão.
A nossa segunda proposição é que qualquer um pode
ser cristão - e que ninguém entenda mal o que quero dizer.
Chego a essa conclusão desta maneira: “ Saudai a todos os santos
em Cristo Jesus”, diz Paulo. “Os irmãos que estão comigo vos
saúdam. Todos os santos vos saúdam, mas principalmente os
que são da casa de César.” Por isso vejo que devo deduzir os
seguintes pontos: judeus e gentios podem ser cristãos. E o
apóstolo Paulo que está escrevendo, e ele é judeu. Quem são

290
A Comunhão dos Santos

seus cooperadores? Um deles é “Lucas, o médico amado”, outro


é Demas, e, em acréscimo, há algumas outras pessoas a quem
ele faz referência. Em Roma alguns são judeus, mas muitos
deles, provavelmente a maioria, são gentios, e, na verdade,
subdividindo o ponto ainda mais, alguns destes cristãos eram
realmente servos da casa de César. Alguns são escravos, alguns
são homens livres, alguns destes membros da chamada
nobreza ligada à própria pessoa do imperador. Essa é a natu­
reza e a constituição da Igreja - nem judeu nem grego, nem
servo nem livre, nem macho nem fêmea, mas todos são um
em Cristo Jesus.
Essa é a razão pela qual eu sustento que qualquer um
pode ser cristão. Não é questão de nacionalidade; não é questão
de ter nascido num particular país nem de pertencer a uma
certa tradição. Tampouco é questão de um particular tem­
peramento psicológico. Sabemos que algumas pessoas,
arrogando-se um incomum grau de inteligência, muitas
vezes sustentam isso, dizendo que ser cristão é questão de
temperamento. Alguns, dizem eles, têm “um temperamento
religioso” - (se não um “complexo”) - e acham que toda essa
questão pode ser resolvida facilmente desse modo. Se você
tem uma particular inclinação ou um particular tempera­
mento, você vai ser cristão; se não têm isso, você não vai ser
cristão, mas não se incomode com isso.
A resposta simples a essa idéia está em ler qualquer das
Epístolas. Na verdade, vocês não precisam ir além de um
estudo dos doze apóstolos, pois verão imediatamente que
homens de todo e qualquer temperamento concebível
acham-se lado a lado na Igreja Cristã, todos provenientes de
diferentes culturas, essencialmente diferentes em suas próprias
pessoas, e, todavia, todos juntos na Igreja, regozijando-se na
mesma esperança. Esta é uma das mais gloriosas caracterís­
ticas da Igreja Cristã, porquanto nos lembra que, afinal de
contas, o que nos torna cristãos é o que Deus nos faz. Somos

291
A V ID A D E PA Z

cristãos graças à ação de Deus, e, portanto, as questões


de temperamento e de inteligência são completamente
irrelevantes. Os fatos dão apoio a esta teoria. Na Igreja sempre
houve gente de todo tipo, de toda forma de miscigenação e de
toda constituição, e ainda há essa variedade nos dias atuais.
Ainda há judeus e gentios na Igreja; homens e mulheres
capazes de perspectiva científica e artística; homens e mulheres
que receberam diferente educação e que têm diferentes ante­
cedentes, provenientes de todas as culturas concebíveis. Em
todo o mundo ainda se vê isso.
É isso que faz da Igreja Cristã o lugar mais romântico da
terra. Nunca se sabe o que vai acontecer; graças a esta verdade,
há esperança para todos; ninguém está “fora dos limites”. E
agora eu desejo salientar isto: “Todos os santos vos saúdam,
mas principalmente os que são da casa de César” . Quem
esperaria encontrar membros da igreja na casa de César -
naquela casa imperial, sujeita à vida que tanto caracterizava
as cortes antigas? Foi algo maravilhoso, quase inacreditável.
Vocês se lembram, também, de que nos é dito que mesmo os
discípulos, até os apóstolos, quando ouviram falar da conver­
são de Saulo tiveram alguma dúvida? “Como pode ser isso?”,
eles diziam. Será que Saulo era real e verdadeiramente cristão?
Mas é justamente isso que o evangelho faz; “santos da casa
de César” .
Uma vez eu tive o privilégio de ouvir o Diretor da Missão
Nacional do Interior da China quando fez um breve relato de
uma visita que ele tinha feito àquele país, e o ouvi declarar
que, de todas as coisas que ele tinha visto na China, a mais
espantosa foi uma igreja que ele visitou numa prisão. Uma
obra fantástica tinha sido levada a efeito e um bom número
de homens tinha sido convertido, e então havia surgido uma
igreja entre os prisioneiros mantidos naquela prisão. Tam­
bém tive o privilégio de ouvir um pastor evangélico alemão
que estava visitando este país. Disse ele que a obra mais

292
A Comunhão dos Santos

extraordinária que se está realizando atualm ente na


Alemanha é entre homens que haviam pertencido à “ S.S.”
(polícia de segurança do nazismo), sobre os quais pesava a
culpa das mais terríveis atrocidades. Eles se haviam desper­
tado para os horrores da sua vida pregressa, e houve grande
número de conversões entre eles. “Os santos da casa de César.”
Agora quero fazer uma aplicação dessa verdade por meio
de uma ilustração. Em minha experiência pastoral, à vezes
tenho que lidar com este difícil problema: pais me procuram
porque seu filho, homem ou mulher, está interessado numa
pessoa não cristã, ou está se propondo casar com tal pessoa.
Esta pessoa não se interessa pelo cristianismo, nunca observa
o santo repouso semanal, etc., e os tais cristãos acham que isso
é o fim, e ficam em completo desespero. Mas eis o que eu tenho
para dizer a tais pessoas. Quando se está na esfera do evan­
gelho ninguém é caso perdido. Não e impossível. Saulo de
Tarso - o último homem em quem vocês teriam pensado - foi
convertido. Existem “santos na casa de César” . Cristãos, nunca
se permitam considerar alguém como sem esperança. O
evangelho é o poder de Deus. Se você tem um problema
como esse, ore pela conversão da outra pessoa. Isso acontece.
Escravos, livres, qualquer pessoa, em qualquer lugar, pode,
pela graça de Deus, tornar-se cristã. Procuremos, então, ter na
lembrança esta frase sobre os santos da casa de César, tenhamos-
-la sempre em mente, para que não fiquemos desanimados
ou até caiamos no pecado de negar o próprio evangelho.
Por último, é possível ser cristão em qualquer lugar. “Todos
os santos vos saúdam, mas principalmente os que são da casa
de César.” Devo salientar isso um pouco, e restringi-lo. Você
pode viver como cristão em qualquer lugar, voluntária ou
involuntariamente, sem nenhum limite. Noutras palavras,
não há nenhuma necessidade de circunstâncias e condições
especiais. Algumas pessoas acham que você não pode ser
cristão, a não ser que saia do mundo, mas esse é o erro

293
A V ID A D E PA Z

fundamental do monasticismo. Os “santos da casa de César” -


cristãos nas circunstâncias mais difíceis que se pode imagi­
nar. Há pessoas que, quando convertidas, pensam que
necessariamente têm que mudar de ocupação ou ir de uma
casa para outra. A lição que temos aqui é que você pode ser
cristão em qualquer lugar e que não deve achar que tem
necessidade de circunstâncias e condições particulares antes
de poder praticar a vida cristã. Devemos dar testemunho dela
onde quer que acaso estejamos. Aquelas pessoas pertenciam
à casa de César. Eram servos e escravos, ou oficiais de alta
graduação na casa de César. O evangelho se havia apoderado
deles no palácio de César, e lá estavam eles, dando testemunho
da vida cristã.
Permitam-me aplicar isso particularmente àqueles que,
nas palavras do nosso texto, são santos “que são da casa de
César”. Como cristãos somos todos iguais e todos nós temos o
dever de dar testemunho onde quer que acaso estejamos, mas
há diferenças. Estamos em diferentes lugares e em diferentes
circunstâncias, e a arte do cristão, se posso dizê-lo assim, está
em perceber a maneira especial pela qual podemos dar
testemunho em lugares especiais. Existem hoje os que são
“santos na casa de César” . Estou pensando nos professores
em seu trabalho nas escolas, nos médicos, nas assistentes reli­
giosas e enfermeiras nos hospitais, nos oficiais do governo e
em diversas outras pessoas. A Bíblia tem muito a dizer sobre
este assunto. Lembram-se de Neemias, o copeiro do rei, e da
história de Ester? Se alguma vez houve uma pessoa santa “na
casa de César” foi Ester, e a mesma coisa se pode dizer de
Daniel e seus companheiros. Condições especiais requerendo
verdades especiais. Como santos na casa de César, tais cristãos
têm que compreender certas coisas especiais. Permitam que
eu fale diretamente a qualquer “santo da casa de César” que
talvez esteja lendo este livro agora. Você é confrontado por
perigos excepcionais. O maior perigo é o de ter vergonha do

294
A Comunhão dos Santos

evangelho porque você é pessoa culta e porque está entre


pessoas cultas, as quais estão sempre mais prontas a zombar
do que qualquer outra pessoa, e são as que têm maior pro­
babilidade de tentar depreciar a fé cristã. Por isso você pode
ver-se participando de várias atividades cristãs em casa, mas
não está fazendo nada para dar testemunho onde você está
exercendo a sua profissão.
O próximo perigo é o de fazer concessões aos seus prin­
cípios, talvez por ambição, por estar ansioso por sucesso. Não
há nada de errado numa ambição justa, mas, se suceder que
tal ambição o leva a comprometer a sua posição cristã, essa
ambição é má. Você precisa exercitar excepcional cuidado,
pois você está sendo observado atentamente. Provavelmente
você está sendo observado mais atentamente do que qual­
quer outra pessoa. Irritabilidade, mau temperamento, fuga
ao trabalho - todas estas coisas estão sendo julgadas por
outras pessoas.
Você foi colocado onde está e tem oportunidades excep­
cionais. Você vê crianças que estão sob os seus cuidados, ou
pacientes no leito de enfermidade, que estão começando a
pensar na morte e na eternidade - não preciso desenvolver
este ponto. O cristão que está em posição excepcional tem
oportunidade excepcional.
Permitam-me, então, dizer-lhes apenas uma palavra
sobre regras que vocês poderão seguir. Num aspecto, existe
somente uma regra: mantenha a sua lealdade a Cristo sempre
na primeira posição; se fizer isso, você nunca perderá o rumo.
A lealdade a Cristo primeiro, sempre. Faça o seu trabalho tão
bem quanto puder porque, quanto melhor fizer o seu trabalho,
melhor cristão você será. Alunos cristãos, procurem estar em
primeiro lugar; procurem estar no topo da lista. Esse é um
maravilhoso testemunho em favor de Cristo. Lealdade a
Cristo primeiro, e depois, realize o seu trabalho aplicando toda
a sua capacidade. Depois, seja prudente: “prudentes como

295
A V ID A D E PAZ

serpentes, e símplices como as pombas” (Mateus 10:16). Seja


prudente no modo de apresentar o evangelho e de dar seu
testemunho. Não seja insensato; não o faça mecanicamente;
não se faça causa de aborrecimento para as pessoas. Lembre-
-se da singularidade da sua posição, do caráter excepcional
dela, e ore a Deus rogando que lhe dê Sua sabedoria para
que você possa dar um testemunho real e verdadeiro.
Lembre-se, sempre, de que a lealdade a Cristo vem em
primeiro lugar; por causa da sua posição muito especial, você
pode ser tentado e provado mais que todos os outros. Aconte­
ceu isso com os “santos da casa de César” logo no início. Foram
eles que tiveram que enfrentar primeiro este grande teste. Lá
vinha o imperador que se dizia deus e exigia que todos
dissessem “César é Senhor”, e as primeiras pessoas de quem
se exigia isso eram os membros da casa do imperador. Os
oficiais vinham aos cristãos e lhes diziam: “Vocês tem que dizer,
“César é Senhor”. Não estamos fazendo objeção a que vocês
sejam cristãos, mas, ademais disso, vocês devem dizer, “César
é Senhor” . E, para a eterna e sempiterna glória desses cris­
tãos, eles se recusavam a dizê-lo. Eles diziam: “Há somente
um Senhor, o Senhor Jesus Cristo”. Mesmo que isso signi­
ficasse serem lançados aos leões na arena, sua lealdade a Cristo
estava em primeiro lugar. Eles continuaram fazendo seu
trabalho na casa de César e então, nessa altura, como aconteceu
com Daniel e com Ester, se arriscaram. Expuseram suas
vidas por Seu Senhor e Mestre. Essa é a regra que temos
que aplicar; temos que ser leais a Ele até o limite extremo,
mesmo que isso envolva a morte.
Contudo, finalmente, permitam-me dizer uma palavra
de encorajamento a todos os “santos da casa de César” . Se
vocês forem fiéis e leais, acontecerá com vocês o que aconteceu
com os antigos “santos da casa de César” . Tendo eles prosse­
guido em seu trabalho, eventualmente tiveram que tomar
sua posição, e milhares deles foram massacrados. Mas vocês

296
A Comunhão dos Santos

se lembram do que aconteceu? Chegou o dia em que o


próprio César se tornou cristão. Como se deu tal coisa? Foi
por causa do que os imperadores romanos e seus conselheiros
tinham observado quanto àqueles cristãos. Apenas um punhado
de gente a princípio, mas eram santos; pertenciam a Deus e
tiveram a supina honra de sofrer pelo nome de Cristo. O
mundo antigo observou isso, e, finalmente, o próprio impe­
rador se tornou cristão. “O sangue dos mártires é a sementeira
da Igreja”, e os homens e as mulheres que se mantêm firmes
assim por Cristo e pela verdade podem estar certos de que o
testemunho deles será honrado, e eles receberão a coroa da
glória e terão um galardão especial na glória.
“Os santos da casa de César” - perigos excepcionais, mas
oportunidades excepcionais. A única regra absoluta de
lealdade a Cristo, e a certeza de que, se você for leal, sua
resistência e seu trabalho nunca serão em vão. Graças a Deus
pelo privilégio que temos de fazer parte de uma comunhão
tal - a comunhão dos santos, o povo de Deus.

297
22
A Graça do Senhor Jesus Cristo
“A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com vós todos.
A m ém .” - Filipenses 4:23

Chegamos agora ao nosso último estudo desta grande


Epístola aos Filipenses. Talvez a melhor tradução do nosso
texto seja a da Versão Revista (inglesa), que diz: “A graça de
nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito” Estas
são as últimas palavras da carta; elas expressam a oração
final do apóstolo por estas pessoas que lhe eram tão caras e
que ele tanto amava no Senhor. Mas é importante compreen­
der que essa frase não é apenas uma maneira formal de
terminar uma carta; não é apenas uma frase expressiva ou
casual empregada pelo apóstolo. Freqüentemente tenho sa­
lientado esta particular verdade: Paulo nunca escreveu coisa
alguma de maneira casual, e, se não aprendemos ne-nhuma
outra coisa enquanto estávamos estudando a carta aos filipenses,
bom será que tenhamos aprendido que nada deve ser tomado
superficialmente em qualquer Epístola escrita por este grande
apóstolo. Suas observações aparentemente laterais muitas
vezes estão recheadas de doutrina, seus pós-escritos estão
impregnados da verdade e de instrução. Diferentemente de
nós que, muitas vezes, terminamos uma carta com alguma
expressão formal que não paramos para considerar, ou
empregamos um sentido que não temos o cuidado de sopesar,
Paulo, quando emprega uma expressão como esta, quer dizer
exatamente o que diz. E aqui, nesta palavra final, nesta oração

298
A Graça do Senhor Jesus Cristo

final, ele realmente está elevando o que não hesito em des­


crever como a mais abrangente oração que qualquer pessoa
pode elevar em favor de outros.
Vocês verão que o apóstolo gosta muito desta particular
expressão; ele conclui suas Epístolas aos Gálatas e a Filemom
do mesmo modo, e, com ligeira variação, vocês verão esta
expressão num lugar ou noutro de muitas das suas Epístolas,
quer nas observações iniciais, quer na palavra de saudação final,
como no presente caso. E, pois, algo que o apóstolo quer dizer
literalmente, e neste único versículo ele resume tudo o que
estivera dizendo aos filipenses. Lembrem-se de quantas vezes
fomos levados a perceber que o objetivo do apóstolo é encorajar
e fortalecer estes filipenses. Ele quer que eles conheçam a
alegria da sua salvação; ele mesmo sabe o que é comover-se
com esta gloriosa experiência e ter um gozo no Senhor que
nada pode mudar ou afetar. Apesar de estar na prisão, ele
ainda assim se regozija e quer que eles se regozijem. Pode ser
que lhe seja permitido viver, pode ser que possa visitá-los
outra vez, ou pode ser que ele seja levado à morte; ele não
sabe. Mas, seja a vida seja a morte, a única coisa realmente
grande é que os filipenses entendam e captem de tal modo
a verdade que tenham esta alegria - “Regozijai-vos sempre
no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos” .
Esse é o tema do apóstolo, e é por amor deles que ele se
ocupa destas diversas questões, destas diversas coisas que
tendem a nos privar da alegria, e ele trata destas questões e as
explica, e depois nos faz suas exortações positivas. Nisto se
resume o seu objetivo; ele quer que eles vivam plenamente à
altura desta maravilhosa salvação à qual foram trazidos pelo
Senhor Jesus Cristo. E que melhor maneira de expressar tudo
isso do que com as palavras deste versículo - “A graça de
nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito”. Sendo
assim, se você tem essa salvação, todas estas outras coisas estão
incluídas. Portanto, nada maior podemos desejar ou pedir

299
A V ID A D E PA Z

para qualquer de nós do que isto: que a graça do Senhor


Jesus Cristo esteja presente conosco e esteja controlando
nossos espíritos.
Dessa forma, vejam vocês, temos aqui uma das grandes e
abrangentes declarações de Paulo, e tudo o que eu quero fazer
agora é examiná-la com vocês e, dividindo-a em suas partes
componentes, ver algo da abrangência global desta petição.
“A graça de nosso Senhor Jesus Cristo” : bem, aí vocês têm,
antes de tudo, uma declaração que, como já vimos, acha-se
freqüentemente nas cartas de Paulo. Muitas vezes falamos de
Paulo como o apóstolo da fé, e é perfeitamente certo isso, mas
fico um tanto em dúvida se uma expressão melhor não seria
“o apóstolo da graça” ; este é seu grande tema, e ele nunca pode
afastar-se dele. Acompanhar esta palavra por todas as Epís­
tolas e observar as diversas coisas que Paulo diz a seu respeito
produz um estudo muito fascinante e muito interessante. Claro
está que, em certo sentido, a palavra frustra toda descrição e
transcende o entendimento. Em última análise, a graça é algo
que eu sinto e que não pode ser descrito acuradamente. Talvez
a mais próxima descrição que podemos dar é que é favor
espontâneo e imerecido. E isso que realmente significa graça
neste caso: favor imerecido, algo que brota espontaneamente
no coração de Deus, algo que o homem absolutamente não
merece, em nenhum sentido. A graça não é, de modo nenhum
uma resposta a algo que seja bom e nobre no homem; é Deus
olhando para o homem, abençoando-o apesar do que ele é e
apesar do que se possa dizer verdadeiramente dele. Essa é a
essência da doutrina bíblica da graça. Apesar de o homem ter
pecado contra Deus, de haver se rebelado contra Ele e de se
haver tornado completamente indigno da Sua bênção. Deus
olhou para ele e, em Sua infinita graça, decidiu abençoá-lo.
Notem quantas vezes, no começo destas cartas, vocês
encontram uma expressão semelhante a esta: “Graça, miseri­
córdia e paz...” . Pois bem, essas três palavras são muito

300
A Graça do Senhor Jesus Cristo

interessantes, e os teólogos antigos gostavam de discutir a


questão da ordem certa em que essas palavras devem vir.
Geralmente eles concordavam em dizer que, embora esta seja,
talvez, a melhor ordem formal, na qual devem ser utilizadas,
realmente, na mente de Deus a ordem possivelmente seria:
misericórdia, graça e paz. Com isso eles queriam dizer que, no
céu. Deus olhou para a terra e para o homem, e viu o homem
em sua miséria, em sua infelicidade e em sua vileza, em
conseqüência do pecado. E a primeira coisa que Deus sentiu
foi piedade - ou seja, misericórdia; sentiu-se misericordioso
para com o homem. Depois, sentindo misericórdia e piedade.
Deus decidiu que devia fazer algo a respeito, e então entrou
a graça. O homem não merecia nada, absolutamente nada,
mas, a despeito disso. Deus, em Sua graça, olhou para ele e
então decidiu fazer chover sobre ele o Seu amor e o Seu
favor. Tão perto quanto podemos chegar do entendimento
dessa palavra, esse é o sentido da palavra graça; é algo não
merecido, espontâneo, autogerado, não produzido por coisa
alguma alheia a Deus, porém que vem do ser e do coração
do próprio Deus; o amor de Deus expressando-se desse
modo para com o homem - graça.
Depois, na oração de Paulo, chegamos às palavras “nosso
Senhor Jesus Cristo” . Percorram de novo esta Epístola aos
Filipenses e contem o número de vezes nas quais o apóstolo
usa a expressão “o Senhor Jesus Cristo”, ou “Cristo Jesus”; acho
isso estupendo e maravilhoso. Só com base nisso já fica claro
que 0 centro mesmo da religião de Paulo, e de toda a sua fé
e vida cristã, é o Senhor Jesus Cristo. Naturalmente Paulo
adorava Deus o Pai, sim, mas o que Paulo se dispõe a ensinar
em toda parte é que, não fora o Senhor Jesus Cristo, ele
nunca teria conhecido o Pai. Martinho Lutero gostava de
expor este ponto desta maneira: ele costumava dizer: “Não
conheço nenhum Deus senão Jesus Cristo”. Bem, ele não se
fez culpado de heresia por isso; eis o que ele quis dizer: não

301
A V ID A D E PA Z

posso conhecer Deus, a não ser em Jesus Cristo. Foi o que o


nosso Senhor mesmo disse: “Eu sou o caminho, e a verdade
e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14:6).
Por conseguinte, Ele é o centro, Ele é essencial, e o apóstolo
nunca pode esquecer esse fato.
Muitas vezes, no curso destes estudos, salientamos essa
verdade. Paulo nunca esqueceu a sua experiência no caminho
de Damasco. Ele tivera aversão pelo Senhor, tinha blasfemado
contra Ele, achava que Ele era um impostor, e tinha feito o
máximo que podia para massacrar e exterminar todos os
seguidores de Cristo. Então ele O viu, e desde aquele momento
o Senhor Jesus Cristo dominou a vida deste homem. Cristo
estava no centro da experiência de Paulo; Paulo vivia por
Ele: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho” - por
quê? - para “estar com Cristo, porque isto é ainda muito
melhor” . E a sua ambição era: “conhecê-lo, e o poder da sua
ressurreição...” . Ele ansiava por Cristo e por Sua gloriosa
manifestação. O Senhor virá do céu como foi para o céu, e vai
mudar estes nossos corpos e os vai modelar, assemelhando-0
a Seu corpo glorioso. “Posso todas as coisas”, diz Paulo, “em
Cristo que me fortalece” - Cristo está sempre no centro. E aqui,
em sua derradeira palavra nesta carta, Paulo Lhe dá a pre-
eminência mais uma vez; ele não pode dizer uma última
palavra a quem quer que seja, exceto em termos de Cristo.
Só menciono de passagem estas coisas porque me parece
que elas nos lembram novamente a nossa posição geral.
Nesta oração o apóstolo torna a enunciar a sua grande dou­
trina - o Senhor Jesus Cristo - Jesus, Jesus de Nazaré. Não nos
preocupamos com filosofia ou com teoria, toda a nossa fé
centraliza-se numa Pessoa, Alguém que literalmente andou
pela face desta terra. “ Não vos fizemos saber a virtude e a
vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas artifi­
cialmente compostas; mas nós mesmos vimos a sua majestade”
(2 Pedro 1:16). Toda a nossa posição depende de alguém que

302
A Graça do Senhor Jesus Cristo

nasceu como bebê em Belém, alguém que viveu em Nazaré


e ali trabalhou como carpinteiro, um jovem que partiu para
pregar com a idade de trinta anos e realizou coisas estupendas
durante três anos - Jesus.
E o ensino de Paulo em geral é que a pessoa que apareceu
como homem entre os homens outro não é, senão o Senhor
Deus, Jeová, Deus o Filho, o Senhor Jesus Cristo. Jesus é
Senhor, é Deus, e é também o Cristo, o Messias, Aquele que
Deus ungiu e que Deus separou para o propósito específico de
efetuar este grande plano de salvação para que a humanidade
fosse resgatada e redimida. Aqui, vejam vocês, em sua oração
final e em sua palavra de conclusão, Paulo nos coloca face a
face com esta grande e central doutrina, a deidade única, a
divindade, de Jesus de Nazaré; Jesus é Senhor, Jesus é Deus, e
Ele é o Messias, Aquele que foi separado para a realização
dessa obra. Esta consiste em Seu nascimento. Sua morte, Sua
ressurreição; é o derramamento do Seu sangue para purificar
0 homem, para que o homem fosse reconciliado com Deus.
Está tudo aqui. ^
Mas agora tomemos de novo a frase como um todo: “A
graça de nosso Senhor Jesus Cristo”. Que é que Paulo quer
dizer com isso? Bem, ele emprega esta expressão porque,
permitam-me salientar isto de novo, a graça do Senhor Jesus
Cristo é o princípio e o fim da nossa salvação cristã. Não há
melhor maneira de expressar essa verdade, talvez, do que a
maneira pela qual o apóstolo a expressa em 2 Coríntios 8:9,
que é uma das coisas mais gloriosas ditas pelo apóstolo: “Porque
já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico,
por amor de vós se fez pobre; para que pela sua pobreza
enriquecésseis”. E isso. Esse é o sumário perfeito de todo o

plano de salvação. E a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que


torna tudo isso possível; se não fosse isso, não teríamos nem

‘ Ver o Volume l,A Vida de Alegria (PES).

303
A V ID A D E P A Z

fé nem salvação alguma. Ele, no céu e na glória, totalmente


envolto pela glória da eternidade e do Pai, veio a este mundo
e se fez pobre. Não precisamos demorar-nos nisto; já consi­
deramos tudo isso no capítulo dois desta grande Epístola -
“De modo que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não
teve por usurpação ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si
mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante
aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a
si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”. A
graça do Senhor Jesus Cristo é isso.
Ora, esse é o princípio da nossa salvação, mas é também a
continuação da nossa salvação, constitui toda a base da nossa
perseverança na fé e é a única coisa que garante o supremo
fim e a consumação da nossa salvação. “A graça de nosso
Senhor Jesus Cristo é responsável por tudo quanto constitui a
nossa salvação, do começo ao fim. “Porque pela graça sois
salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”
(Efésios 2:8). São essas as declarações do apóstolo, de modo
que este grande versículo, “A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo”, é vitalmente importante para que a ele nos aferremos,
porque o apóstolo pretende que experimentemos todo o
propósito de Deus em Sua graça a respeito de nós em Cristo
Jesus, nosso Senhor.
Tendo dito isso, passemos à segunda expressão: “A graça
de nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito”, diz o
apóstolo, e aí também há algo que é de real significação. Por
que diz ele “com o vosso espírito” ? Parece-me que a única
resposta adequada a essa pergunta só pode ser expressa desta
maneira: os nossos espíritos constituem a parte mais elevada
das nossas naturezas; em última instância, tudo o que é cen-
trai e mais importante está no espírito. E por nossos espíritos
que somos capazes de comunhão com Deus. Somos corpo,
alma, espírito, e o espírito é a parte mais elevada - o corpo é

304
A Graça do Senhor Jesus Cristo

animal, a alma liga o corpo ao espírito, mas o espírito é uma


espécie de elo entre nós e Deus, apesar da Queda. O espírito
dentro de nós reclama essa completitude que só Deus pode
dar; ele é a parte mais elevada do nosso ser e da nossa natureza.
O espírito é no homem aquilo que ainda, apesar da Queda,
nos distingue do animal e nos lembra que a humanidade foi
originariamente feita à imagem e semelhança de Deus. Claro
está que, em última análise, é certo dizer que o nosso espírito
controla a totalidade da nossa vida. Aí vocês vêem por que
o apóstolo ora deliberadamente pelos filipenses no sentido
de que a graça do Senhor Jesus Cristo esteja com os seus
espíritos. Se é o espírito que, em última instância, controla
toda a nossa vida, quão importante é que a graça do Senhor
Jesus Cristo o esteja controlando, e é por isso que Paulo fala
sobre isso como fala.
Permitam-me expô-lo negativamente. Digo que os nossos
espíritos são muito mais importantes do que qualquer outra
coisa, de modo que a condição dos nossos espíritos é muito
mais importante, por exemplo, do que os nossos atos. Provér­
bios 16:32 expõe muito bem este ponto: “Melhor é o longânimo
do que o valente, e o que governa (controla) o seu espírito
do que o que toma uma cidade”. Que profunda palavra de
sabedoria! Em nossa grande insensatez, temos a tendência de
achar que aquilo que alguém faz é a coisa mais importante,
mas, de acordo com essa sabedoria antiga, e com o apóstolo
Paulo, que estava ensinando a mesma coisa aqui, o controle
pessoal do espírito é muito mais importante do que qual­
quer coisa que a pessoa possua. Houve homens na história do
mundo que tinham grande inteligência, alguns foram reis, e
príncipes, alguns foram líderes militares, mas, porque não
puderam controlar seus espíritos, arruinaram tudo. Mais
importante que a capacidade e a habilidade de fazer coisas é
a habilidade de ser algo, especialmente esta habilidade de
você estar no controle do próprio espírito, e de ver que sua

305
A V ID A D E PA Z

mente e seu coração estejam no estado verdadeiro e correto.


Ou, para usar outra negativa, é muito mais importante
usar corretamente os nossos espíritos do que dar muita atenção
às coisas que nos acontecem, e eu não tenho dúvida de que
isso também está fortemente presente na mente do apóstolo
neste ponto. Ei-lo aqui, escrevendo a estes filipenses que se
vêem cercados de inquietações e problemas. Sim, diz Paulo,
muitas coisas podem acontecer com você, mas as suas condi­
ções pessoais são de maior importância do que essas coisas,
porque, se o seu espírito estiver na condição correta, num
sentido não importa o que lhe aconteça. Uma vez alguém disse:
“Não é a vida que importa, mas a coragem que você insere
nela” . Eu não gosto do uso que esse homem faz da palavra
“coragem” nessa frase; prefiro a expressão que o apóstolo
emprega aqui. O que em última instância importa na vida não
é tanto o que nos acontece, como o modo como examinamos o
que acontece, de maneira que, se o meu espírito está bem e
certo, fico mais ou menos independente do que acontece
comigo e a meu redor. Pois bem, esse tem sido o principal
tema em toda esta Epístola. Ele está na prisão, e, em certo
sentido, tudo está contra ele, mas ele está por cima disso tudo,
porque o seu espírito está em boas e corretas condições. “A
graça de nosso Senhor Jesus Cristo” está controlando o seu
espírito.
Estivemos examinando aquela grande frase: “A paz de
Deus... guardará os vossos corações e os vossos sentimentos” -
e é justamente a mesma coisa. Desta forma, o que o apóstolo
está dizendo com estas últimas palavras é praticamente o
seguinte: “Oro rogando que a graça do Senhor Jesus Cristo
esteja com o seu espírito, porque, se Ele estiver ali na pleni­
tude da Sua graça, guardando o seu espírito, então, aconteça
o que acontecer com você, você mesmo estará perfeitamente
bem”.
Ou permitam que eu o diga deste modo: não seria um

306
A Graça do Senhor Jesus Cristo

espírito em más condições a causa de muitas das nossas


dificuldades e dos nossos problemas na vida? Façam um
exame retrospectivo das suas vidas e considerem as causas da
infelicidade, da dor e das aflições. Não teriam vocês que
admitir, com sinceridade, uns aos outros e diante de Deus,
que nós mesmos criamos a maior parte das nossas dificul­
dades e dos nossos problemas? Maus pensamentos, más
imaginações e maus desejos - que estrago fazem em nós! Um
sentimento mau ou de rancor, de ciúme, de inveja - são essas
as coisas que nos afligem e nos causam dificuldade. Quanta
infelicidade e miséria evitaríamos nesta vida e neste mundo,
se tão-somente os nossos espíritos fossem amenos e puros.
Por isso o apóstolo diz: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo
seja com o vosso espírito”. Não haverá maus pensamentos, não
haverá más imaginações, não haverá ciúme nem inveja, não
haverá sentimento mau nem rancor, não haverá nenhuma
tendência de queixar-nos contra Deus, se o espírito de vocês
for ameno, saudável e puro. É por isso que Paulo dá ênfase
especial a nossos espíritos.
Finalmente, permitam-me salientar essa verdade com
um último princípio. Que será, então, que a graça do Senhor
Jesus Cristo faz conosco e com os nossos espíritos? Permitam-
-me sugerir estas respostas:
Em primeiro lugar, a graça do Senhor Jesus Cristo nos
reveste de cada uma das graças cristãs. Posso explicar melhor
este ponto citando 2 Coríntios 8:7: “Portanto, assim como em
tudo abundais em fé, e em palavra, e em ciência, e em toda a
diligência, e em vosso amor para conosco, assim também
abundeis nesta graça” . Paulo está se referindo à graça da
liberalidade, e assim, quando a graça do Senhor Jesus Cristo
está com vocês, vocês têm todas as graças da vida cristã, a fé, a
esperança, o amor, o conhecimento, o entendimento, e todas
as demais coisas. Bem, esse é outro modo de dizer: “Oro no
sentido de que todo o fruto do Espírito se manifeste nos seus

307
A V ID A D E PA Z

espíritos” . Se a graça do Senhor Jesus Cristo estiver com os


nossos espíritos, teremos o conhecimento do qual Paulo nos
fala aqui - conhecimento de pecados perdoados, conhecimento
do gracioso propósito de Deus com respeito a nós, e, afinal
de contas, essa é a coisa mais grandiosa que o homem pode
conhecer. O que eu desejo, diz o apóstolo a estes amados
filipenses, é que, em toda e qualquer ocasião, vocês saibam
quais são os propósitos da graça de Deus com respeito a vocês,
para que, estejam onde estiverem, cada um de vocês saiba que
Deus o ama como seu Pai, que você é filho de Deus, que você
está no grande propósito de Deus, e, finalmente, que você
está no plano de salvação e está definitivamente destinado à
glória que se seguirá, eternamente. A graça do Senhor Jesus
Cristo nos dota de todas as demais graças, e assim, tendo isso,
eu tenho fé, tenho esperança, tenho amor, tenho conhecimento
e entendimento, e eu começo a manifestar estes diversos
aspectos do fruto do bendito Espírito Santo.
Depois, em segundo lugar, a graça do Senhor Jesus Cristo
nos impõe restrição. Os que se interessam pelos teólogos
antigos se lembrarão de que eles sempre dedicavam uma parte
ao que eles denominavam “graça restringente” , e isso é
vitalmente importante - esta graça do Senhor Jesus Cristo
que nos retém quando gostaríamos de correr para algo errô­
neo e mau, ou quando os nossos espíritos tendem a nos levar
de roldão. O nosso Senhor nunca teve tais defeitos - havia nEle
calma, compostura, equilíbrio e perfeição de vida, juntamente
com a mansidão, a humildade, e todas as demais coisas acerca
das quais lemos nos Evangelhos. Portanto, como a Sua graça
controla os nossos espíritos, Ele nos restringirá dessa forma.
Que mais? Bem, em terceiro lugar, a graça do Senhor
Jesus Cristo também nos anima e nos incentiva em nossos
procedimentos uns para com os outros. Por isso Paulo escreveu
aquelas palavras grandiosas que já citei: “Porque já sabeis a
graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor

308
A Graça do Senhor Jesus Cristo

de vós se fez pobre; para que pela sua pobreza enriquecésseis”


(2 Coríntios 8:9). Paulo estava escrevendo àqueles membros
da igreja de Corinto, que não tinham feito coleta para os santos
mais pobres. Praticamente ele disse: “ Sendo que Cristo fez
isso por você, você não acha que deve fazer-se responsável
pelos irmãos mais pobres?” Assim é que a graça do Senhor
Jesus Cristo nos leva a amar uns aos outros e a considerar
uns aos outros. Os filipenses tinham feito isso em favor de
Paulo, e ele ora no sentido de que esta graça continue a
con-duzi-los e a guiá-los.
Finalmente, a graça do Senhor Jesus Cristo nos fortalece
e nos sustenta, e Paulo escreveu sobre isso no capítulo dois.
Ali estavam aquelas pessoas, membros da igreja de Filipos,
que, em meio a grande prova e aflição, estavam cheios de
alegria. Como é que eles conseguiam isso? A resposta é que a
graça do Senhor Jesus Cristo os fortalecia e os sustentava. Os
filipenses estavam passando por um período de provação
muito grande, mas experimentavam abundante alegria, e, em
meio à sua profunda pobreza, foram extremamente liberais.
Esse é o grande tema do Novo Testamento. Vocês o vêem mais
perfeitamente em 2 Coríntios, capítulo 12, onde consta que
Paulo tinha orado acerca do espinho em sua carne, e, certa­
mente vocês se lembram, tendo orado três vezes rogando que
o espinho fosse removido, aprendeu esta grande lição; Cristo
disse: “O meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”. E é isso que
o apóstolo está tentando dizer a estes filipenses.
Como será que a graça do Senhor Jesus Cristo nos forta­
lece e nos sustenta? Ela o faz dando-nos certeza do Seu
amor, dando-nos paz perfeita, capacitando-nos a ver, além
dos nossos problemas, a glória que está adiante. No Salmo 63
0 salmista pronunciou estas importantes palavras: “A tua
benignidade é melhor do que a vida” . O homem que pode
dizer isso dominou a vida. “Posso ter provações na vida”, diz
ele; “ sim, eu sei que eventualmente elas têm que vir, mas

309
A V ID A D E PA Z

elas são apenas temporárias e passageiras. Mas a tua be-


nignidade nunca passará, nunca me deixará nem me
desamparará”. E Paulo tinha experimentado isso; quer na
prisão, quer em naufrágio, quer sofrendo perseguição, a
graça do Senhor Jesus Cristo estava sempre com ele. Disso
o mundo não nos pode privar. “A tua benignidade é melhor
do que a vida.”
Ou permitam que eu me expresse assim: a graça do
Senhor Jesus Cristo é suficiente para todas as coisas. Voltemos
a Paulo: ele orou três vezes, pedindo que o espinho na carne
fosse removido, e o Senhor lhe respondeu dizendo: “A minha
graça te basta” . E suficiente; sim, o espinho continuará ali,
mas isso não importa. Sua graça será suficiente, ela o fará
seguir avante. E essa, parece-me, é a suprema bênção que
podemos gozar na vida. “A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo seja com o vosso espírito.”
Meus amados irmãos, vivemos num mundo inseguro,
temos vida incerta; não sabemos o que vai acontecer com
qualquer de nós. Existe um número quase infinito de
possibilidades. Poderiamos concluir a nossa consideração
desta extraordinária Epístola com uma observação mais
grandiosa que esta? O que quer que aconteça na vida ou na
morte; o que quer que venha a acontecer em quaisquer
condições ou circunstâncias; seja qual for a nossa situação, a
graça do Senhor Jesus Cristo será suficiente; ela o segurará
e o sustentará; até o habilitará a regozijar-se nas tribulações;
ela o fortalecerá, o firmará, o terá firme em Suas mãos; ela o
guardará, atenderá a todas as suas necessidades e o conduzirá.
Finalmente, a graça do Senhor Jesus Cristo o apresentará
sem defeito, perfeito, na glória, na presença de Deus. “A
graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito.
Amém.”

310

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