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Vida de Cristo, Fulton Sheen

Capítulo 7 – Nicodemos, a serpente e a Cruz (102 a 105)

Após o início da vida pública de Jesus em Caná da Galileia, onde reafirma a necessidade da cruz
para que haja a glória; e no Templo em Jerusalém, manifestando que Ele é o verdadeiro Templo de Deus,
agora veremos dois importantes fatos, diálogos de Jesus: com Nicodemos e com a Samaritana.
Naquele momento, Jesus realiza muitos milagres e pregações, de modo que o Evangelho registra
que muitos creram nele. Vendo estes sinais, um dos homens do Sinédrio não só admite sua autenticidade,
como reconhece que Deus está com Ele e operava tais sinais, era Nicodemos, que vem falar com Nosso
Senhor.
Esse homem, apesar de sábio, versado nas Escrituras, religioso, pertencente ao grupo dos fariseus
– aqueles que insistiam nas minúcias da Lei, vai ao encontro de Jesus à noite. Esse fato revela algo desse
diálogo: a noite. A noite representa a escuridão, as trevas, onde não se pode ver direito. De fato,
Nicodemos percebe que há algo de divino no que Jesus realizava, mas não estava pronto para reconhecer
a divindade em Jesus.
Fulton chama atenção para um detalhe: o de que Nicodemos usa um “nós sabemos...” Diz que
esse é um truque que alguns intelectuais usam para fugir da responsabilidade pessoal; ou seja, se deve
haver uma mudança, ela deve ocorrer para a sociedade em geral, ao invés de para o próprio coração.
Lembro-me de um padre na minha antiga paróquia contando que muitas pessoas chegavam a ele e diziam
“a Igreja tem de mudar tal coisa...”, e ele respondia: “ora, a Igreja não é você também? Você não é
membro do Corpo de Cristo? Você não tem coisas que precisam ser modificadas e melhoradas? O que
pode ser mudado em você para que a Igreja mude, para que o Corpo de Cristo seja beneficiado?”
Nicodemos usa esse artifício para se afastar da necessidade de se posicionar diante da pessoa de
Jesus. Esse discurso que repete “as pessoas precisam, as pessoas tem de, as pessoas, as pessoas...” é
só um discurso retórico. Quem são as pessoas? Em que você se encaixa nisso? Você não é uma dessas
pessoas? “As pessoas precisam ficar em casa, as pessoas precisam entender, as pessoas precisam
buscar a Deus”, e você? Como você pessoalmente se posiciona diante disso? Jesus não interessa em
saber o que as pessoas precisam, ou o que você acha que as pessoas precisam, ele está interessado em
você. Está interessado que você o ame, que você se aproxime dele e, reconhecendo-o como seu Senhor
e Salvador, se aproxime, se torne amigo e o ame.
Num outro momento mais adiante, Jesus pergunta aos discípulos: “quem dizem os homens que eu
sou?” Diante de algumas vagas respostas, Jesus vai no íntimo de cada um, no mais profundo de cada um
dos discípulos e de cada um de nós também: “E vós, quem dizeis que eu sou? Quem eu sou para vós?”
Quem é Jesus para você? Essa pergunta é feita aos amigos de Jesus e ecoa por todo o tempo até hoje:
para você, quem é Jesus? A resposta a essa pergunta diz quem é você, diz como você gasta sua vida, diz
como você pensa, como você sente. Aliás, o contrário, vendo sua vida podemos dizer quem é Jesus para
você. Olhemos para os santos e vemos que Jesus é o amor da vida toda deles. Olhemos para Fulton
Sheen, olhemos para São João Paulo II, para Santo Agostinho, para a Virgem Maria. A vida deles
responde quem é Jesus para eles.
Mas Nicodemos não estava pronto a dar esse passo. Reconhece Jesus como mestre, mas Jesus
se apresenta a Ele como verdadeiro Redentor e Salvador. E essa mudança em Nicodemos requer um
renascimento na alma, e esse renascimento seria adquirido por Jesus com sua Paixão e Morte: “é
necessário que o Filho do Homem seja elevado”.
No início do diálogo, Jesus e Nicodemos tratam dessa diferença da vida espiritual em relação à
vida física ou intelectual. Fulton Sheen diz que a vida espiritual não é um impulso vindo de baixo, mas um
dom vindo do alto. De fato, no batismo nascemos para o alto, o Espírito Santo nos reveste e nos infunde a
Vida de Cristo. Jesus diz que deve haver um novo nascimento. Se toda pessoa tem um primeiro
nascimento na carne, é necessário nascer do alto para a vida espiritual. A ênfase não é no
autodesenvolvimento, mas na regeneração; não na melhoria de nosso estado atual, mas na mudança
completa de nosso estado.
De fato, vemos que nossas forças são limitadas, por nossa conta nós só conseguimos ir até certo
ponto, até certo estágio, não conseguimos adquirir uma vida espiritual por nossos méritos. É uma vida
dada pelo alto. O desenvolvimento de nossa vida espiritual requer algum esforço nosso, mas é muito mais
graça de Deus. Até pra nos esforçar pra algo é necessária a graça de Deus, como diz São Paulo aos
Filipenses: “é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo sua vontade”. Até para desejarmos
ir a Deus, é necessária uma graça dele, para nos dedicarmos na vida – sobretudo na vida espiritual – é
necessário um renascer do alto, é necessária uma vida que vem do alto.
Nicodemos então vai se aproximando do mistério da Vida de Cristo, daquilo que Nosso Senhor lhe
anuncia. Mas não compreende que o que Jesus diz não é um redecorar um homem velho, mas criar um
homem completamente novo. Ser um cristão não é ser uma Gabriela, dizer eu nasci assim, eu cresci
assim, eu vou ser sempre assim e carregar uma cruz no peito e um véu na cabeça; mas é ser como Maria
que diz “faça-se em mim segundo a vossa palavra” e carrega Jesus no coração e na razão. Nicodemos
não compreendia como é possível tornar-se algo que não é.
Assim, o Reino de Deus é apresentado como uma nova criação Quando nasce, o homem é uma
criatura de Deus, mas para se tornar filho de Deus, tem de se tornar algo que não é, o que só é possível
por um dom divino, partilhar da natureza divina, da Vida de Cristo. Jesus diz que essa regeneração e
renascimento é que nos torna Filhos de Deus, e possibilita-nos acessar ao seu Reino.
Nicodemos pensa, então, como pode se dar esse efeito de regeneração, como isso poderá
acontecer. Jesus então apresenta-lhe o modo. Sua morte reconciliaria a humanidade com o Pai
(perdoando os pecados) e ela seria regenerada pelo Espírito Santo. Esse novo nascimento é conhecido
pelos efeitos na alma. Para ilustrar isso, Jesus diz que não é possível compreender o sopro do vento mas
obedecê-lo e se aproveitar dele, tal qual o Espírito Santo. Tantas são as vezes que Deus nos apresenta
algo e tentamos compreender, mas não aproveitar aquilo como um sopro do Espírito para avançarmos no
amor de Deus. Tantas ocasiões na minha e na sua vida foram sopros de Deus para velejarmos no
crescimento de seu amor, mas nós, tentando compreender intelectualmente esse mistério, desperdiçamos
o vento.
Capítulo 8 – Salvador do mundo (111 a 116)

Jesus sai de Jerusalém em direção à Galileia, dos gentios. No entanto não vai pelo caminho mais
comum tomado pelos judeus, evitando a Samaria, mas, ao contrário devia passar por ela, como nos diz o
Evangelho. De fato este dever está relacionado a outro dever: o da sua morte e redenção, oferecendo sua
vida por toda a humanidade. Nosso Senhor não vem para um povo escolhido, mas sim para todos, nos
mostra com essa decisão de passar pela Samaria que deve ir ao encontro da humanidade em todas as
suas realidades.
O Senhor veio para encontrar o homem. O homem que havia se separado de Deus com o pecado
original, é expulso do Éden e vive essa vida como vida de exílio, esperando que Deus o encontre
novamente. Nossa vida aqui é como de exilados de nossa pátria original, o céu. Na oração da Salve
Rainha, dizemos os degredados filhos de Eva que gemem e choram nesse vale de lágrimas. O pecado de
fato degradou a nossa alma com a mancha original, mas o maior mal é a separação de Deus, o degredo, o
exílio. Vivemos nessa vida como quem espera quem nos encontre e nos diga que podemos voltar à nossa
pátria. Vemos em tantos momentos da história homens que foram exilados de sua pátria, de sua nação; e,
ao retornarem, sua alegria é comovente, é repleta, é o unir-se de volta ao lugar de onde nunca devia ter
saído. O lugar de onde nunca deveríamos ter saído é ao lado de Deus.
A Samaria então é essa terra de um povo meio judeu, meio pagão, que adora deuses estranhos,
mas conserva alguns livros das Escrituras. Os judeus não gostavam nem de citar o nome dos samaritanos
(tanto que na parábola do bom samaritano, quando Jesus pergunta qual dos três parece ter sido o mais
próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões”, eles não respondem “o samaritano”, mas sim “aquele
que usou de misericórdia para com ele”.) e, além disso, usavam até quando queriam depreciar alguém.
Jesus passa por esse lugar e está casado com o trabalho (não de trabalhar, mas com a
caminhada). Senta-se ao lado do poço, quando vem até ele uma mulher. Jesus já estava lá primeiro, como
ele quem encontrou Zaqueu, como Paulo fora encontrado quando não era procurado. Tantos são atraídos
para Jesus em ocasiões despretensiosas.
A samaritana, reconhecendo nele um judeu, o evita. Mas ele lhe pede: dá-me de beber. Sempre
que quer fazer um favor, Jesus começava pedindo um (como fez com Maria). Jesus nos pede a
disponibilidade de coração, a disposição de lhe fazer um favor. Deve haver um esvaziamento de humano
para que nos preenchamos de Deus, assim como ele, sendo Deus, esvaziou-se de si mesmo e assumiu a
condição humana. Assim será ao longo da nossa caminhada cristã: para nos preencher mais de Si, Jesus
nos pede para tirar algo. À medida em que crescemos no amor de Deus é a medida em que nos
disponibilizamos a ouvi-lo e fazer tudo o que ele nos disser.
O diálogo de Jesus com a samaritana vai acontecendo em progressão do desenvolvimento
espiritual. No início ela o identifica como um simples judeu, mas vai acabar reconhecendo-o como Senhor
e Salvador. Essa compreensão errada a faz achar que ele precisa de ajuda, quando na verdade é ela
quem precisa. Quando um personagem não tem seu nome identificado nos evangelhos, é para que nós
nos coloquemos no lugar dele. Assim, nós somos a samaritana que precisamos do auxílio do senhor.
Quando rezamos, servimos ou fazemos algo de bom pensamos estar realizando algo para Deus, ajudando
a Deus, mas tanto mais Ele nos ajuda quando encontra a disposição interior de nos reconhecermos
necessitados, pequenos, sedentos dele.
Ele se apresenta como dom de Deus, mas a mulher o vê apenas como alguém cansado da viagem.
Fulton Sheen diz que “a pena daqueles que vivem demasiado próximos da carne é jamais compreenderem
o espiritual”. Aqueles muito próximos dos sentidos, que buscam somente a satisfação de seus prazeres,
de suas necessidades sensoriais, que vivem ligados nas coisas da terra, não compreendem o espiritual.
Não veem a mão de Deus agindo na história, não veem a presença de Jesus Cristo na sua história.
Acham que é somente alguém cansado da viagem, acham que tudo é obra do acaso, no máximo creem
em coisas estranhas – superstições, energias, magias, afins.
Jesus apresenta para ela que há uma falha nisso, pois a satisfação humana dos desejos não se
satisfazem para sempre. Há sempre a necessidade do “quero mais”, veja uma criança que deseja um
brinquedo novo. Ela enche o saco, você dá e cinco minutos depois ela não o quer mais, mas quer o outro
brinquedo que ela não tem. Se a gente não direcionar esses desejos para algo que nos sacia, seremos
eternas crianças desejando o outro brinquedo.
Jesus não condena os rios terrenos, nem os proibiu, só disse que aquilo nunca saciaria aquela
mulher, se ela se limitasse aos poços da felicidade humana, jamais seria satisfeita. Ainda sem entender
muito ela o chama de “Senhor”, pensando que ele falava sobre não ter mais de ir até o poço pegar água.
Não consegue ver o espiritual pelas tantas manchas do pecado que a haviam cegado.
Então Jesus vai direto à sua consciência: “vá chamar teu marido”. Ele pretendia suscitar nela o
sentimento de vergonha e pecado, não porque fosse um moralista, nem porque queria desdenhar dela, ou
porque a queria recriminar, mas porque sabia que, fazendo isso, ela se sentiria necessitada. Quando
olhamos para nossas falhas e pecados, reconhecemos verdadeiramente que erramos e nos damos conta
de que não conseguimos resolver tudo sozinhos, nos abrimos a um outro, que é Cristo. Aquele que vem
para encontrar-nos outra vez. Para isso, é preciso confessar o pecado, a consciência deve vir à tona.
Quando se choca com isso, ela faz o que muitos ainda hoje fazem: muda de assunto. Quando a
religião exige uma reforma de conduta, não aceitam. Ela estava disposta a discutir sobre religião, mas não
queria fazer dela um ponto de decisão.

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