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Livro de Atas do 1.

o Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa

A rota dos calundus entre Angola e Bahia:


Testemunhos da Inquisição portuguesa1*

Elisangela Oliveira Ferreira2


elisangela.oliferreira@gmail.com

RESUMO
Este trabalho analisa aspectos da religiosidade negra no contexto colonial dos séculos XVII e XVIII, a partir
de documentos da Inquisição de Lisboa, fazendo um estudo dialógico entre Angola e Bahia. Detém-se sobre
as crenças e práticas de escravos de origem centro-africana e seus descendentes na Bahia, estabelecendo
comparação com manifestações semelhantes registradas em Angola. O foco da análise são as práticas de
adivinhação, proteção e cura que se realizavam através da mediação dos espíritos ancestrais, notadamente as
manifestações denominadas calundu no Brasil e quilundo em Angola. Essas práticas e crenças, assim como
outras contribuições africanas à experiência religiosa na época moderna, eram consideradas superstição e
feitiçaria pela Inquisição portuguesa e frequentemente atribuídas a pacto com o demônio.

1. O demônio chamado quilundo

pelos seus nomes da terra, Camay e Calumbi, respectivamente, escravas de Mariana Fernandes. No mês

na horta que Mariana possuía na ilha de São João da Caranga. Engrácia era esposa de Simão Maxicongo,
responsável pela horta, e com ele tinha pelo menos uma filha, Isabel, sendo pai e filha também escravos de
Mariana.
A prisão das quatro mulheres foi ordenada pelo senhor bispo dos reinos de Angola e Congo, D. Frei Manuel de
Santa Catarina, com base em uma diligência eclesiástica em que foram ouvidas mais de vinte testemunhas. A
ordem de prisão também se estendia ao escravo Simão, mas consta que ele andava foragido, não se encontrando
em parte alguma. Entre outras culpas graves, Mariana Fernandes era acusada de usar de superstições e

1* A apresentação deste trabalho no XII Congresso Luso-Afro-Brasileiro (CONLAB) contou com o apoio da Coordenação

no exterior.
2 A autora é graduada em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS, 2002) e doutora
em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA, 2008), com pesquisa sobre trajetórias de famílias do
sertão do vale do São Francisco oitocentista. Está vinculada à Universidade do Estado da Bahia (UNEB) como
professora adjunta. Tem interesses na área de História Moderna, particularmente sobre o Mundo Atlântico
português, com ênfase nas temáticas relacionadas à história cultural, estudos inquisitoriais, diáspora africana,
religião e religiosidades. Atualmente desenvolve pesquisas sobre escravidão e religiosidade negra na Bahia dos
séculos XVII e XVIII a partir de fontes da Inquisição de Lisboa.

bem como foi introduzida pontuação quando necessário. Foi feito também o desdobramento de palavras abreviadas.
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na cidade que o demônio falava com ela através dos corpos das escravas. Também era voz pública que Simão

exemplo de Engrácia, a esposa de Simão. As celebrações eram realizadas ao som de “instrumentos ambundos”
como atabales, macanzas e buzinas.
As testemunhas no processo revelaram a extensão da rede de sociabilidades que cercava as práticas e
crenças heterodoxas de Mariana Fernandes e seus escravos. E revelaram também a preocupação dos poderes
eclesiásticos e inquisitoriais em fazer enquadrar essas práticas e crenças na ideologia do pacto com o demônio.
Na fala de muitos depoentes o demônio tinha até mesmo um nome próprio, na língua da terra, como deixou

consulta ao Demônio a que chamam Quilundo”.4


As cerimônias que se realizavam nos domínios de Mariana pareciam ter várias funções, sendo a cura de
doenças uma delas. Mas ela era acusada no período, principalmente, de usar os poderes dos quilundos para
a realização de desejos bem mais mundanos. As testemunhas foram praticamente unânimes em afirmar que
a ventura principal buscada por Mariana era “atrair os homens”. Teresa da Costa afirmou que Mariana usava
havia “muitos anos de superstições e feitiçarias amatórias para atrair os homens”.5 Também segundo a parda
forra Teresa de Jesus, a ré usava “de superstições, cerimônias e feitiçarias diabólicas” e consultava o demônio
“para atrair os homens com quem trata e para obriga-los a que mais lhe deem e bem lhe queiram”. Disse ainda
que ela usava de tais práticas desde “a idade de rapariga”.
Neste intento de atrair os homens consta que Mariana se utilizava de uma crença específica da população negra
local, que era uma forma de atrair ventura ou virtude. A viúva Lucrécia Ferreira disse que Mariana buscava
uma “virtude diabólica”, chamada “pela língua ambunda sassa”, que era “o mesmo que ventura”. A parda
livre Antônia Lopes confirmou que a acusada usava de “superstições e feitiçarias diabólicas, consultando e
invocando o demônio para ter virtude e atrair os homens com quem trata, o que pelo da terra chamam sassa”.8
Essa ventura ou virtude chamada sassa também foi referida por Maria de Mendonça, que depôs sobre as

[...] sabe por ser público e notório e por lhe haverem dito as escravas da mesma Ré
que esta usa de superstições diabólicas consultando e invocando o Demônio quando
dele pretende conseguir o intento de atrair alguém que bem lhe queira e mais dádivas
lhe dê, a que chamam os pretos sassa, que é pedir ao demônio ventura, e que para este

lhe vem falar o Demônio a que chamam Quilunduzes, o que é público e geral.9

As questões que envolviam Mariana, no longo processo que chegou à Inquisição de Lisboa, não diziam
respeito somente a crimes contra a fé católica e pertencentes à alçada inquisitorial. Como as acusações de
busca por ventura amorosa sugerem, os relatos das testemunhas dão conta de relacionamentos estabelecidos
pela acusada, atribuídos sempre às suas feitiçarias e invocações ao demônio, cujos homens tiveram um fim
trágico. As testemunhas traçaram um perfil de Mariana como uma mulher de muito má vida, uma verdadeira
“devoradora de homens”, a começar pelo destino infeliz de seu próprio marido, Inácio, desaparecido havia
muitos anos, cuja morte por suposto afogamento diziam ter sido feita por dois escravos a mando dela. A vida
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escandalosa de Mariana Fernandes foi o primeiro tema abordado pelas testemunhas e ponto de partida da
denúncia do promotor eclesiástico. Mas deixaremos de lado, neste trabalho, esses aspectos mais complexos
dos crimes morais de Mariana, da alçada das justiças civil e eclesiástica, em proveito dos crimes inquisitoriais
de que ela era acusada.

anos após a prisão de Mariana Fernandes e suas escravas. A maioria das testemunhas eram as mesmas que

Manuel de Santa Catarina, mas também foram arrolados novos depoimentos. Na fala de algumas pessoas que
depuseram uma segunda vez é possível perceber, em linhas gerais, um cuidado maior, ou mesmo reticência,
em afirmar que as práticas de Mariana Fernandes tinham ligação com o demônio, como fizeram na primeira
diligência. Mas também houve depoimentos que reafirmaram essa ligação, lançando mais peso sobre as culpas
atribuídas à acusada.
Foi o caso, por exemplo, do depoimento de Joana Leitão, 22 anos, que conviveu com Mariana Fernandes
muitos anos, no tempo que essa esteve concubinada com seu pai, Antônio Leitão Arnoso. A testemunha disse
que Mariana fazia “várias cerimônias ambundas” e que isto presenciara em uma ocasião em que um filho da
mesma, de nome Antônio, estava muito doente. Joana contou ao comissário que Mariana “mandou chamar
uma negra sua por nome Gracia, em cuja cabeça lhe falava o demônio, para que pelas suas feitiçarias curasse o
dito doente”. Joana ainda reforçou que Mariana era “tida e havida na conta de feiticeira, usando de medicinas
e curas supersticiosas, e benções, para dar saúde a algumas pessoas”. Disse que ela invocava o demônio
“na cabeça de sua preta Camay para atrair homens para com eles ter trato ilícito, como sucedeu ao pai dela
testemunha”.10

moça parda, solteira e forra. Isabelinha disse ao comissário do Santo Ofício que presenciou algumas das
práticas de Mariana Fernandes na época em que, ainda muito jovem, morou com ela para aprender o ofício
de costureira. Mariana era “tida publicamente por feiticeira, usando de superstições e feitiços os quais ela
testemunha viu fazer por várias vezes”, afirmou Isabelinha. Nessas práticas se juntava “com as suas negras e
outras várias que mandava chamar de fora, e seu negro Simão”, ocasião em que era invocado o demônio. Ela
disse que viu e ouviu o demônio falar na cabeça de uma escrava de Mariana chamada Mãe Gracia, que parecia
11

Consta que muitas das cerimônias promovidas por Mariana Fernandes eram realizadas na sua horta da Ilha da
Caranga tocando-se “caixas e buzinas ambundas” embaixo de uma palmeira que ali existia. Consta ainda que
o demônio vinha se abrigar no tronco da palmeira e que ele falava naquele tronco mediado pela consulta do
escravo Simão. Uma testemunha referiu que Simão era “o mestre dos Quilunduzes e insigne consultador do
Demônio”.12 Outra disse que o escravo era o “mestre dos ditos feitiços e reputado para fazer os Quilunduzes”.
É possível perceber, portanto, que o termo quilundo, no singular ou no plural, era usado neste caso tanto para
nomear o demônio quanto para se referir às práticas ou rituais denunciados ao bispo de Angola e Congo.
Algumas pessoas insistiram também que Mariana Fernandes tinha várias marcas, referidas como sarjaduras,
espalhadas pelo corpo e que essas seriam “sinais de dedicação e pacto que de si tem feito ao Demônio”, como
argumentou a viúva Lucrécia Ferreira.14
Mas apesar das graves acusações que pesavam contra Mariana Fernandes, e de sua prisão por ordem do bispo
de Angola e Congo, ela não chegou a ser enviada para os cárceres secretos do Santo Ofício, em Lisboa. Na
época prevista para o seu embarque Mariana se encontrava gravemente enferma, fato atestado por um médico,
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e por isso somente o seu processo foi enviado para Portugal em uma frota com parada no Rio de Janeiro.
Talvez por isso, pela sua ausência perante os inquisidores lisboetas, seu processo tenha ficado inconcluso. Mas

presas na cadeia pública da cidade de Luanda. O Santo Ofício ordenou, na época, que fosse realizada nova
diligência para apurar as culpas de Mariana Fernandes. Novas acusações sobre outros crimes, praticados na
própria cadeia, se juntaram aos já relatados nas outras diligências. Por essa época uma de suas escravas,
Engrácia, havia falecido tudo indica que dentro da própria prisão. Mas não é possível saber se e quando ela e
as outras duas escravas voltaram à liberdade.15

2. Do quilundo ao calundu

Os estudos inquisitoriais têm demonstrado como a ideologia do pacto com o demônio foi objeto de uma
verdadeira propaganda e não somente por parte dos agentes da Inquisição, mas também por parte dos párocos e

procurou enquadrar as crenças heterodoxas dos africanos e seus descendentes na ideologia do pacto. Dos
púlpitos das igrejas, ou mesmo no segredo dos confessionários, a mensagem da filiação diabólica das práticas
mágicas bem como de outras crenças diferentes da ortodoxia católica, se divulgou para a população colonial.
Essa filiação ao demônio está claramente inscrita na fala das testemunhas que descreveram as práticas de
Mariana Fernandes e suas escravas.
No entanto, através de relatos de missionários seiscentistas, estudiosos da cultura africana perceberam outros
significados simbólicos para o termo quilundo (também referido como kilundu), que no processo de Mariana
Fernandes já estava fortemente associado ao demônio. Nesses estudos que investigam a religiosidade centro-

por exemplo, através de uma leitura crítica da obra do missionário seiscentista Giovanni Antônio Cavazzi,
argumenta que “nas regiões umbundo as divindades eram tipicamente chamadas kilundu, embora muitas vezes
vistas claramente como deuses (nzambi, às vezes utilizado no plural, jinzambi).” Ele ainda acrescenta que o
kilundu “impunha às pessoas proibições, conhecidas como kixila, e as punia, geralmente com doenças, se elas
não as obedecessem”.

que se apossavam dos corpos dos vivos, normalmente com o objetivo de castigar seus parentes pela falta
de veneração e respeito adequados. O autor resume que, em Angola, “Quilundo era o nome genérico para

por um padre anônimo, em que são relatados “ritos e superstições pagãs observadas nos negros do reino de
Angola”, onde se percebe a associação dos quilundos à doenças cuja cura era alcançada pela ação intermediária
do demônio. No relato, o padre dizia que quando alguém sofria de alguma enfermidade acreditava-se que a
pessoa tinha quilundos e que era preciso a interferência do “Nganga dos Quilundos” que, invocando o Diabo,
descobria a doença. A pessoa teria sua saúde reestabelecida, segundo o padre, se fizesse “uma festa para o
Quilundo, que é o ídolo invocado, com muitas demonstrações de gratidão”.
A par destas definições, bem como da ideologia demonológica presente nelas, como foi percebido no processo
de Mariana Fernandes, podemos viajar de Angola para o Brasil seguindo a rota do tráfico de escravos. É

Brandão.
Ganga, ou nganga,
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possível surpreender na documentação inquisitorial relacionada à América Portuguesa um fundo de crenças e


manifestações que tinham ligação ancestral com o quilundo centro-africano, que receberam do outro lado do
Atlântico o nome de calundu
de denúncias feitas à Inquisição de Lisboa, a partir da capitania da Bahia, permite avaliar aspectos importantes
das contribuições centro-africanas para a vida religiosa na diáspora escravista. Permite identificar, inclusive,
como o calundu, entre outras crenças africanas, fincou raízes no Brasil ainda no século XVII enquanto o tráfico
de escravos africanos se intensificava.
As fontes demonstram que desde a segunda metade do século XVII o calundu já estava difundido como uma das
manifestações mágico-religiosas dos escravos africanos na Bahia. Já é bem conhecido um poema de Gregório
de Matos, que se referiu à presença dessas práticas e crenças evidenciando tanto o poder que a população
colonial dava aos rituais de origem africana, quanto à associação dessas práticas ao demônio, seguindo os
passos da própria Inquisição portuguesa. Desacreditado do poder atribuído aos calundus, caracterizados por
ele como delírios, Gregório de Matos dizia que Satanás andava neles metido.

Que de quilombos que tenho com mestres superlativos,/ nos quais se ensinam de
noite os calundus, e feitiços./ Como devoção os frequentam mil sujeitos femininos,/
e também muitos barbados que se prestam de narcisos./ Ventura dizem, que buscam;

que sei é que em tais danças Satanás anda metido,/ e só tal padre-mestre pode ensinar

Aos poucos, como sugere os versos do poeta seiscentista, a adesão aos calundus deixou de ser uma característica
apenas da comunidade negra na Bahia. Parte da população branca começou a adotar na condição de clientes,
vale ressaltar, os ritos de adivinhação, busca por ventura (amorosa ou financeira), proteção e cura mágica de
origem africana. As fontes inquisitoriais da segunda metade do século XVII também demonstram que desde
esse momento em que o tráfico de escravos africanos para o Brasil se intensificava, já se difundia nas cidades,
fazendas e engenhos coloniais as cerimônias de calundu, além de outros rituais que mesmo sem assumir o
mesmo nome tinham com ele relação inquestionável. No contexto seiscentista o significado do calundu já
estava relacionado à ação dos espíritos ancestrais, tal qual foi verificado pelos estudiosos sobre o quilundo de
Angola no mesmo período.
O caso da escrava angolana chamada Catharina, da localidade de Santa Luzia do Rio Real, no sertão de
baixo da capitania da Bahia, é exemplar neste sentido. Catharina foi uma das várias pessoas denunciadas aos
comissários do Santo Ofício na cidade da Bahia (como a capital, Salvador, era conhecida), por práticas de

de ter o poder de curar de “ulundus” ou “lundus”, termos entendidos aqui como outras variações da palavra
calundu. Os ulundus seriam os parentes que morreram em Angola que, atravessando o Atlântico, vinham se
meter nos corpos de outras negras. Mas Catharina não realizava aquelas curas sozinha, conforme se percebe

[...] e elas oprimidas com esses Ulundus a vão chamar para efeito de os lançar fora,
para o que a dita Catharina manda chamar os negros que lhe toquem uns cabaços, a
que chamam canzás; e ela sobredita Catharina vestida com peles de animais agrestes,
e tingida pela cara com tanhã, que é um barro branco que assim se chama, cantando
pela língua de sua terra, fingi e diz que fala com ela seus parentes; e daí vai ao mato
buscar raízes e ervas com que as cura [...].18
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O alferes disse que havia dez ou doze anos que ele tinha conhecimento que Catharina notoriamente curava
de ulundus. Mas ela não era a única naquela região. A mesma testemunha denunciou que Pedro de Serqueira
Barbosa, morador em Rio Real de Cima, “tinha um casa pública na qual estava uma negra sua por nome Luzia
curando publicamente, para cujo efeito mandava vir negros que lhe tocassem os canzás e lhe cantassem por
língua de Angola”.19
Os diversos casos de calundu da Bahia demonstram a participação efetiva de uma assistência na cerimônia,
assistência feita por homens e mulheres negras. Os homens eram particularmente responsáveis por tocar os
instrumentos, os canzás e atabaques, ao som dos quais se desenrolava toda a dança ritual seguida da possessão
pelos espíritos ancestrais. As mulheres, além de estarem na ampla maioria dos casos à frente dos rituais,
recebendo em seus corpos os espíritos, também aparecem na função de assistentes daquela que assumia a
liderança.
Outro caso de calundu que acontecia no sertão de baixo da capitania da Bahia ilustra bem essa questão. Trata-
se da história de Branca, escrava também descrita como “do gentio da Guiné”, mas que muito provavelmente
veio da região de Angola.20 Branca era escrava de Pedro de Serqueira Barbosa, aquele mesmo que era senhor
de Luzia, citada pelo alferes Custódio. Branca realizava curas e outras maravilhas extranaturais “usando ela de
ulundus de sua terra”, conforme uma testemunha, em uma casinha localizada no interior dos próprios domínios
de seu senhor, na freguesia de Rio Real de Cima. Pelas falas das diversas testemunhas ouvidas na diligência

deslocavam de longas distâncias em geral à procura de remédio para suas enfermidades. Como na cerimônia
conduzida por Catharina, Branca fazia uma dança ao som de canzás e atabaques, que eram tocados por outros
negros da comunidade circunvizinha. Uma testemunha que participou dos rituais disse que lá encontrou
“muitas pessoas das circunvizinhanças que iam assistir aquele folguedo e cura”.21
A dança ritual de Branca era conduzida no sentido de intermediar a participação dos espíritos ancestrais,
que se apoderavam do seu corpo para dizer as enfermidades das pessoas presentes, bem como suas causas
e remédios a administrar, fato comum a outras narrativas sobre calundus. Mas nesse caso específico não
se tratava de qualquer espírito ancestral. Dançando e cantando em língua de Angola, conforme resume a
fala de uma testemunha, “era os seus filhos por quem ela chamava nas suas cantigas”.22 Na sequência do
canto e da dança, como acontecia nos demais rituais, Branca caía no chão, desacordada, e quando retornava
a si já não era mais ela quem falava, mas os espíritos dos filhos que morreram em Angola. Conforme outro
relato, pelo menos duas mulheres negras, escravas de senhores da vizinhança, auxiliavam-na a vestir toda
uma indumentária apropriada para que o ritual tivesse continuidade e para que através da intermediação dos
espíritos ela adivinhasse as doenças e a cura a ser administrada.
Os componentes africanos da vida religiosa colonial não ficaram restritos ao domínio das senzalas e à própria
população escrava. Nesse caso de Branca, por exemplo, pesava a grave suspeita de que o próprio senhor da
escrava tomava parte nos rituais, apesar de ser um “homem branco e grave”, como se referiu uma testemunha.

denominada Guiné pelos portugueses, a Senegâmbia. Por isso os primeiros cativos eram chamados de “negros da Guiné”

escravos, da Gâmbia ao Congo. Todos eram chamados indiscriminadamente “negros da Guiné”, expressão ainda referida
nas fontes inquisitoriais até pelo menos a primeira década do século XVIII. Neste período também começou a aparecer
nas fontes a expressão “negro da Guiné do gentio de Angola”. Isso sugere como uma multiplicidade de etnias e culturas
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O certo é que ele permitia que sua escrava promovesse aqueles calundus em seus próprios domínios e eles se
davam com grande publicidade e assistência de muitas pessoas.
A documentação inquisitorial também guarda as queixas das autoridades eclesiásticas coloniais indignadas

chantre da Sé e comissário do Santo Ofício, escreveu aos inquisidores dizendo que a Bahia era o lugar
aonde “as feitiçarias e galhofas que os negros fazem a que chamam Lundus ou Calundus são escandalosas
e com superstições sem ser fácil evitá-las, pois ainda muitos brancos se acham nelas”.24 O cônego atribuía
a difusão dos calundus e de outras práticas consideradas desvios da fé católica à distância representada
pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, ao qual estavam subordinados os domínios ultramarinos. No ano

aonde vão várias pessoas a buscar ventura, e doentes para que lhes declarem se sua enfermidade procede
de malefícios”.25
Essas reclamações do chantre da Sé encontravam eco em outras vozes católicas que desde o século anterior

Domingos das Chagas, denunciando cerimônias de curas conduzidas por um casal de escravos da freguesia

brancas se curam com estes feiticeiros, com tão pouco escrúpulos como se fora coisa muito lícita”.
Mas era possível encontrar também entre os próprios religiosos da Bahia aqueles que indicavam os calundus
como forma de cura, sobretudo quando os recursos da medicina e dos exorcismos da Igreja falhavam. Já é
bastante conhecida a história do controverso frei Luís de Nazaré que usava de todo um ritual místico para curar
mulheres acometidas por doenças que a medicina da época não alcançava. Esse ritual envolvia, inclusive, abuso
sexual das doentes e assistentes, estas últimas em sua maioria escravas que ele solicitava para o auxiliarem no
processo de exorcismo. Mas quando as suas próprias artes mágicas não davam conta da enfermidade, por ser
ela coisa diabólica em sua opinião, o eclético frei Luís não se furtava de aconselhar às desafortunadas mulheres
que recorressem “aos negros calunduzeiros, chamados entre eles os curadores”.

consta entre os diversos casos de doentes que ele atendeu o da escrava Tomásia, cujo senhor lhe chamou para
descobrir se a mesma “tinha feitiços dos que chamam Calundos entre os negros”. Esses feitiços consistiam “em
se dizer que as almas dos seus parentes defuntos vêm falar pela boca dos enfeitiçados, o que é muito ordinário
naquele país”, descrevia o frei.28
que se manifestava através dos espíritos dos antepassados, que se apoderavam do corpo dos vivos. Em outra
ocasião, sendo chamado para atender a escrava Teresa da Silva que se encontrava gravemente doente, como
o próprio frei observou na sua confissão, ele então disse ao senhor e ao marido de Teresa “que a mandassem
aos curadores chamados calundureiros, por quanto a dita queixa era feitiços dos que chamam Calundos, e os
exorcismos não tiravam aquela casta de feitiços por serem coisa diabólica”.29 Em diversas outras oportunidades
o religioso usou o mesmo recurso de aconselhar aos doentes que procurassem os “calunduzeiros” para lhes
livrarem do mal que padeciam.
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A maioria dos rituais de calundu e outras cerimônias de origem africana no Brasil colonial eram realizadas com
o objetivo de descobrir as causas das doenças e a maneira de curá-las. A noção de saúde ou doença, na cultura
centro-africana, estava relacionada ao estado da alma, sendo a doença diretamente ligada à falta de proteção
espiritual da alma. Acreditava-se que as doenças poderiam ser causadas pela ação de feiticeiros, através de
espíritos maléficos, o que está bem ilustrado nas confissões do carmelita frei Luís de Nazaré. Mas elas também
eram creditadas à ação dos próprios ancestrais, que insatisfeitos com os parentes que negligenciavam suas

No entanto, como no caso de Mariana Fernandes, em Angola, acusada de usar os quilundos para alcançar
sucesso com os homens, na Bahia também se usava calundus tendo por finalidade o sucesso nas relações
pessoais, ou na vida amorosa, entre outras funções. Múltiplos poderes eram detidos, por exemplo, pela africana
Catharina, escrava do capitão Luís Fernandes, morador em Salvador, denunciada à Inquisição de Lisboa pelo

Chama-se essa negra Mãe Catharina; está fora da casa dos seus senhores porque é
muita a gente que concorre a ela; dizem fala com os demônios em certos dias em
que fazem as suas invocações com umas danças a que chamam na língua de Angola
Calundus.

Outro comissário chamado Francisco Rodrigues dos Santos afirmou que a escrava africana era “por insigne
a mestra dos Calundus, nome que na língua dos negros de Angola significa ajuntamento e celebridade dos
demônios”. Segundo ele, “por todo esse Brasil, principalmente nos engenhos de fábricas de açúcar” havia
“muita gente desta”, ou seja, que dominava aquelas práticas de Mãe Catharina. Muitas pessoas procuravam os
recursos da escrava africana “para se curar, e outros dizem que a buscar ventura e mulheres para lhes abrandar
o marido”, ou melhor, para “os maleficiar”, insistia o mesmo comissário.
Os poderes da africana eram tantos, conforme frei Rodrigo, que ela havia enfeitiçado o próprio senhor, Luís
Fernandes, “para que sua mulher e suas filhas usem mal de si”, dizia o comissário, sem que ele se opusesse.
O malefício se daria através de uma cadeira, conhecida como a “cadeira do encanto”, especialmente destinada
ao senhor. Quando ele se sentava na tal cadeira consta que adormecia “com tão profundo sono” que para ser
acordado era “necessário moverem-no e levantá-lo”. O outro comissário também insistiu que a procura pelos
recursos da escrava angolana era tão grande que ela morava “em casa à parte de seus senhores, arrabaldes da
cidade”.
Mas se as mulheres acusadas de práticas de calundu na Bahia tinham o poder de enfeitiçar as pessoas, como
nesse caso de Mãe Catharina, era também através delas que se poderia fechar o corpo e proteger-se dos feitiços.

clientes de pegarem feitiços. Na denúncia, dizia-se que Lucrécia “sabia e dançava Lundus, que era uso de sua
terra”, na freguesia de Itapagipe, em Salvador. Através dos tais lundus (outra variação do vocábulo calundu),
essa africana fazia as suas curas, adivinhações e proteções mágicas. Também na cidade da Bahia atuava outra
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chamam Calunduzes, usos gentílicos de suas terras, com que dizem que advinha o
feito e o por fazer, e dão remédios vários para coisas secretas, usando de bailes e
instrumentos e ações e palavras extranaturais [...].

no lugar conhecido como Espinheiro, “além da casa queimada, caminho para Itapagipe de Cima, à mão direita
da estrada atual”, conforme descreveu cuidadosamente o familiar do Santo Ofício. Naquele local ela atendia
“muita quantidade de gente de todo o sexo e qualidade, casadas e solteiras, boas e más”, dizia o mesmo
Domingos de Oliveira Lopes, que se referiu às práticas da mulher angolana como “bailes de Calunduzes”.
Entre as muitas pessoas envolvidas naquelas práticas estavam Maria Duarte e seu marido Domingos Nunes

achaques com baile de Calunduzes”.


Alguns elementos eram coincidentes entre as cerimônias realizadas na Bahia que foram denunciadas ao Santo
Ofício entre as últimas décadas do século XVII e primeira metade do XVIII. Percebemos, por exemplo, que
a maioria das pessoas denunciadas era de procedência centro-africana sendo elas às vezes referidas como

as cerimônias envolviam invariavelmente uma dança ritual ao som de instrumentos africanos, comumente
também referidos como instrumentos de Angola, como o canzá e o atabaque, que era seguida de transe ou
possessão espiritual. Aqui percebemos mais uma vez a aproximação com as cerimônias levadas a cabo pelas
escravas de Mariana Fernandes, em Angola. Lá, como na Bahia, os rituais se davam ao som de instrumentos
africanos. Em Angola, eles eram referidos como macanzas e atabales, nomes que denunciam um parentesco
direto com os canzás e atabaques da Bahia.
É possível perceber ainda pelos casos denunciados que o uso do termo calundu se firmou e se difundiu para
designar a possessão espírita que acometia os escravos e negros libertos, muitas vezes adoecendo-os. Mas
foi alargado. Ele
servia para designar o espírito que possuía a pessoa doente, mas também, em alguns casos, a própria entidade,
ou espírito, que agenciava a adivinhação da doença e sua procedência, bem como o remédio a administrar.
Paralelamente, em um sentido mais amplo ainda, calundu se tornou também a denominação usada para
descrever e caracterizar as próprias cerimônias e danças rituais que precediam a possessão e a adivinhação.
Outro elemento importante e que não deixa dúvidas sobre a filiação centro-africana de diversos calundus
realizados na Bahia é o fato de que as cerimônias eram conduzidas na língua de Angola.
Como já foi sugerido, havia indivíduos que frequentavam os calundus motivados por interesses diversos,
incluindo a busca por fortuna amorosa. Mas havia também pessoas que acreditavam poder alcançar sucesso
material através desses rituais. Na Bahia colonial, algumas situações demonstram que o recurso ao calundu ia
muito além da prevenção de doenças e malefícios ou busca de cura. Diversos eram os motivos que referendavam
as experiências particulares e adeptos dos calundus tinham como objetivo não apenas a prevenção de situações

Lima denunciou um inquilino seu chamado Manoel Lopes dizendo que ele “por se achar desfalcado de bens
e imaginar que isto lhe proviera por feitiços que lhe deitara uma sua escrava” foi juntamente com sua mulher
Bárbara da Silva “a um lugar chamado Cabula dançar calundus ou buscar ventura”. Antônio acusou ainda que
aquela não era a primeira vez que Manoel ia dançar calundu no Cabula, já que em várias ocasiões o mesmo
dormiu “fora de sua casa” e suspeitava-se que para lá teria ido com um seu camarada. Antônio Alves Lima
ainda reiterou que a esposa de Manoel foi ao Cabula constrangida pelo marido.
O próprio caso de Mariana Fernandes, de Angola, reuniu diversas denúncias de que a grande força motivadora
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dela através do quilundo era atrair a atenção e o desejo de homens que a sustentassem materialmente. A
acusação do promotor eclesiástico sobre um último relacionamento dela reforça essa ideia. Segundo a denúncia,
naquela mesma época em que se fazia diligência para ouvir testemunhas sobre os crimes de Mariana, consta
que ela vivia “amancebada pública e escandalosamente com André Ferreira Gil”, que era casado em Lisboa,
e que ele alugou para ela uma casa vizinha a que vivia. Não satisfeito, ainda mandava carregar a amásia “na
serpentina por escravos seus”, para grande escândalo da sociedade de Luanda. As testemunhas insistiam que
essas relações privilegiadas de Mariana eram conquistadas por meio do poder dos quilundos.

3. Os ventos de sua terra

Ao longo do século XVIII outros fragmentos de informações se incorporaram ao corpo de narrativas já formadas
sobre o complexo religioso de origem africana que se desenrolava na Bahia desde o início da escravidão. A
influência africana na formação religiosa colonial foi se ampliando e tornando-se mais complexa, na medida
da diversidade étnica dos escravos recém-chegados. Gente como a preta forra Bernarda, moradora na casa
de outra preta forra chamada Luzia Paes, que “adorava o santo de sua terra e que dançava e fazia maravilhas
quando tocavam tabaques”, certamente não estava culturalmente isolada na velha cidade da Bahia de Todos
os Santos.40
Em se tratando especificamente do processo de adivinhação e cura envolvendo possessão humana as fontes
começaram a mencionar também sobre “ventos” que se apoderavam das pessoas e que eram sinônimos de
calundu. Isto fica explícito, por exemplo, em uma confissão da viúva Josefa Maria da Conceição, moradora

havia permitido “a uma sua escrava por nome Ana da Silva que se curasse de ventos, ou lundus”. Procurando se
defender da implicação de cumplicidade no caso, Josefa explicou que ela própria não procurou pessoa alguma

dita escrava”.41
Também fica evidente a menção aos ventos como sinônimo de calundus e a busca de cura para eles em uma

José Raimundo de Barros e Rosa do Santo Deus compareceu perante um comissário do Santo Ofício para
formalizar uma denúncia contra a viúva Francisca Rodrigues, mestra de meninas, moradora em Salvador. O
casal baseava sua acusação em uma história narrada pela própria Francisca Rodrigues, onde ela dizia que foi
ao lugar chamado Cabula na companhia da preta forra Cunegunda e de uma irmã desta “para se desenganarem”
se as duas tinham calundus, o que foi constatado durante a cerimônia. Em determinado momento do ritual, no
entanto, “se passara o vento da doente”, a irmã de Cunegunda, para o seu amásio, o soldado Joaquim Pinto que
ali também estava. Era mais uma vez uma mulher que estava à frente de todo o ritual de calundu. Chamada
pelos denunciantes de “a mestra dos malefícios”, a dona da casa “perguntara ao dito Joaquim Pinto se queria
ficar com os Calundus”. O soldado então respondeu que não queria “porque só cria em Deus e na Virgem
Maria”. Francisca Rodrigues, no entanto, disse que “que cria haver aqueles ventos, ou Calundus”, porque
naquela casa do Cabula “vira muita gente, assim seculares, como clérigos e religiosos, e que ainda lá usavam
de relíquias e bentinhos e que isso não fazia mal a tais ventos”.42

catolicismo popular era que a acumulação de recursos espirituais diferenciados “não era vivida necessariamente
como uma contradição, mas como uma estratégia eficaz para lidar com a adversidade e propiciar boa fortuna”.
Misturar no mesmo local a crença nos ventos de adivinhar e nas relíquias católicas não parecia ser exatamente
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um problema para a eclética clientela do calundu do Cabula, que envolvia inclusive clérigos, segundo
Francisca Rodrigues. Esse, no entanto, foi um dos poucos casos em que houve menção a elementos católicos
em denúncias de calundu na Bahia colonial.
Francisca Rodrigues ainda contou outros pormenores sobre os ventos de suas companheiras de jornada ao
Cabula, segundo seus delatores. Disse que “Cunegunda e sua irmã tinham os ventos por lhes passar sua mãe”.
E que a mãe delas adquiriu os tais ventos através de sua senhora chamada Maria Cabra, nome que denota
origem escrava, moradora na freguesia do Desterro. Maria Cabra, por sua vez, havia comprado a escrava com

dos denunciantes é possível perceber a complexidade que envolvia a pessoa que possuía os chamados ventos.
Eles disseram “que uma preta por nome Clemência, da nação Mina”, escrava de uma crioula forra chamada
Antônia Soares, “por algum tempo não falara a língua de brancos e que perguntando a causa, lhe disseram ser
porque não tinha observado os preceitos de seus ventos e de tal sorte a viam alienada de si que nem os filhos
conhecia”. Eles ainda acrescentaram que o mesmo se deu com uma irmã de Clemência, também escrava,
chamada Ana.
O documento não diz quais eram os tais preceitos dos ventos que as escravas deveriam observar, mas pelas
narrativas fica claro que esses ventos poderiam ser passados de uma pessoa a outra. Tudo indica, porém, que
observar esses preceitos representava, entre outras coisas, a participação em cerimônias de calundu, como
fizera Cunegunda e sua irmã. A famosa calunduzeira Luzia Pinta, de Minas Gerais, estudada por Laura de
Mello e Souza e vários outros pesquisadores, havia adquirido seus ventos através de uma tia chamada Maria,
em Angola, quando ela ainda era criança, e sofreu com eles sem saber do que se tratava até que um preto
chamado Miguel descobrisse que tal queixa era de calundus “e que só a havia de curar e ter remédio mandando
tocar instrumentos”. Tocando os instrumentos, os atabaques, Luzia ficava “como fora de seu juízo, por lhe vir
nessa ocasião a doença de sua terra, a que chamam calundus”. Ela então incorporava os “ventos de adivinhar”,
que lhe entravam pelos ouvidos, e passava a dizer aos doentes que iam consultá-la os remédios que se deveria
44

sabia curar de ventos. Essa mulher era Vitória, escrava do padre Manoel Duarte, denunciada pelos proprietários
de uma casa localizada no Areal de Cima, onde viviam duas cativas, Leonor e Quitéria. Eles acusavam Vitória
de ter pedido às duas cativas para ir morar na casa e depois de lá estar levou também outra escrava chamada
Juliana. Esta última deveria curar-se com Vitória de um mal que sofria. Por conta da fama de calunduzeira de
Vitória os donos resolveram aparecer na propriedade e inquirir da doente o que de fato se passava e quem a
tinha acolhido na casa. Juliana então respondeu que a preta Quitéria “com medo que Vitória lhe fizesse algum
malefício lhe facilitara a entrada”. Juliana ainda confessou detalhes do infortúnio que a levou a procurar
Vitória.

A respeito da doença disse que eram ventos da sua terra, que quando não tinha
ocasião de dançar ficava doente e que para ser livre de tal doença procurava a escrava
Vitória por ser ela da sua terra e saber curá-la com coisas diabólicas e danças dos tais
calunduzes [...].45

Com a licença do padre Manoel Duarte, senhor da escrava, os denunciantes se propuseram a averiguar melhor o
caso usando para isso do recurso de castigar Vitória, dizendo ser da obrigação deles, talvez como proprietários
da casa, “criar a dita escrava em bons costumes”. Certamente debaixo de castigos físicos, Vitória “confessou
ser verdade que era dançadeira de calunduzes e que com várias raízes e caroços de dendê e umas farinhas fazia

Marcussi (2009).
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o seu feitiço”. A escrava disse ainda, conforme as testemunhas, que para melhor fazer o seu papel “dançava
com o diabo” e deixou escapar que outra escrava do padre Manoel Duarte, chamada Marcela, também fazia
o mesmo e “que um negro por nome Manoel era seu autor ou mestre da dita dança”. Como se deu com a
angolana Luzia Pinta, de Minas Gerais, iniciada nos conhecimentos do calundu pelo preto Miguel, também no
caso de Vitória foi um homem quem fez esse papel, a quem ela tinha por seu mestre. Lembramos também que

Da mesma maneira que a escrava Clemência andou por algum tempo alienada “porque não tinha observado
os preceitos de seus ventos”, e o mesmo se deu com sua irmã Ana, e também como na história da irmã de
Cunegunda que foi ao calundu no Cabula para tratar de seus ventos, assim também se deu com a africana
Juliana, que buscou a cura através da dança que Vitória sabia. O documento silencia sobre qual era a procedência
das duas escravas, mas sabemos que elas vinham da mesma terra e que o fato de serem conterrâneas era
importante, se não fundamental, no processo de cura de Juliana com a interferência de Vitória. Um dado da
história de Vitória e Juliana, no entanto, lança um importante indício sobre a origem africana das duas escravas.
Quando os denunciantes disseram que Vitória confessou que “dançava com o diabo”, eles acrescentaram
Vitória era, portanto, mais uma calunduzeira atuante
na Bahia vinda da região de Angola, pois quando o padre Pedro Dias escreveu a pequena gramática intitulada
Arte da Língua de Angola Cariapemba como significando
Otubiâ tuà cariàpemba tuà calelela”, dizendo
o fogo do diabo (o inferno) dura para sempre .
Nas denúncias de curas rituais na Bahia setecentista é possível perceber que os ventos estavam também

eram causadores de enfermidades, como nos casos citados anteriormente, eles também eram intermediadores
da cura, revelando a mesma ambiguidade que cercava a própria descrição do calundu, cuja flutuação do termo
está bem evidente na documentação. Vimos que em diversas situações o calundu apareceu como o próprio
causador da doença. Em outras foi referido como as próprias entidades espirituais que intercediam no corpo
das mulheres, em especial, para agenciar o processo de cura e operar outras dádivas. Mas calundu era descrito
ainda como o próprio rito ou cerimônia. No entanto, o imaginário eclesiástico, no Brasil como em Angola,
projetou outros significados para as crenças envolvendo o calundu (ou o quilundo), objetivando acomodá-las
em um modelo de desvio da fé católica e, portanto, passíveis de serem punidas pelo Tribunal do Santo Ofício
da Inquisição. O fio condutor desse imaginário era a crença no pacto com o demônio. Mas esse imaginário
não ficou restrito à esfera dos religiosos, tendo em vista que na fala de diversas testemunhas a associação dos
calundus (e quilundos) ao demônio se mostrou forte e repetida. Não é de se estranhar, portanto, a defesa do
poeta Gregório de Mattos de que satanás andava metido naquelas danças.

Referências

ASSIS JÚNIOR, A. de. (s/d.), Dicionário Kimbundu-Português: Linguístico, Botânico, Histórico e Corográfico,

Arte da Língua de Angola,


Nacional.
LAHON, Didier (2004), Inquisição, pacto com o demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII.
Topoi
Livro de Atas do 1.o Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa

Luzia Pinta”. Revista Brasileira de História das Religiões, Anais do II Encontro Nacional do GT História

MOTT, Luiz (2010), Bahia:


MOTT, Luiz (2008), “Feiticeiros de Angola na América Portuguesa vítimas da Inquisição”. Revista Pós
Ciências Sociais. São Luís, 5 (9/10), pp. 85-104.
Revista IAC,

Afro-Ásia,
Bruxaria e superstição num país “sem caça às bruxas”, 1600-1774,
Notícias Editorial.
A formação do Candomblé:
Editora da Unicamp.
Afra-Ásia

SCHWARTS, Stuart B (1988), Segredos internos:

SOUZA, Laura de Mello e (2009), O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil

SOUZA, Laura de Mello e (2002), “Revisitando o calundu”, In Lina Gorenstein e Maria L. Tucci Carneiro
(Org.), Ensaios sobre a intolerância:
Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-

HEYWOOD, Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil

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