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Simpósio Internacional de Literatura Argentina em seu bicentenário

Cortázar e a perspectiva de um devir-axolotl Ana Carolina Cernicchiaro

Título: Cortázar e a perspectiva de um devir-axolotl

Autora: Ana Carolina Cernicchiaro

Resumo:
No conto “Axolotl”, de Julio Cortázar, mais do que qualquer perseverança no ser ou
fixação de identidade, o que interessa é a instabilidade, a desterritorialização, o contato,
o contágio, o devir. Neste sentido, o texto expõe o eu como limiar, como porta entre
duas multiplicidades, e se aproxima do perspectivismo ameríndio ao apresentar uma
linha de fuga, que ultrapassa nossos dualismos, nossas classificações, nossas
estabilizações, pela via do entre, do estar-entre.

Ana Carolina Cernicchiaro é doutoranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-


Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (PGL/UFSC) e
bolsista CNPq. Desenvolve pesquisa sobre as relações entre literatura e perspectivismo
ameríndio, sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Medeiros. Mestre em Teoria Literária
pelo mesmo programa, com a dissertação Sousândrade-Guesa em “O Inferno de Wall
Street”: poéticas políticas, Cernicchiaro tem textos publicados em diversos periódicos
acadêmicos e é co-autora do livro Arte e animalidade, publicado pela editora Katarina
Kartonera em 2009. E-mail: anacer77@yahoo.com.br. Telefone: (48) 3269-7899 ou
(48) 8462-6441.

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Cortázar e a perspectiva de um devir-axolotl

Ana Carolina Cernicchiaro

Em “Axolotl”, um pequeno conto publicado pela primeira vez em 1952 na


revista Buenos Aires Literaria e depois reunido no livro Final del Juego, de 1956, Julio
Cortázar leva às últimas conseqüências o processo de abandono de si da literatura, da
perda do nome, do fracasso do eu1, numa abertura ao outro que busca implodir as
muralhas basais de nossas dicotomias. Assim como no perspectivismo ameríndio
(Claude Lévi-Strauss definia a arte como parque natural do pensamento selvagem no
pensamento domesticado), ali, mais do que qualquer perseverança no ser ou fixação de
identidade, o que interessa é justamente a instabilidade, a desterritorialização, o contato,
o contágio, o devir.
O que acompanhamos nestas poucas páginas é um devir-salamandra, devir-larva,
devir-animal, devir-axolotl do narrador: “Hubo un tiempo en que yo pensaba mucho en
los axolotl. Iba a verlos al acuario del Jardin des Plantes y me quedaba horas
mirándolos, observando su inmovilidad, sus oscuros movimientos. Ahora soy un
axolotl”, diz Cortázar (2007, p. 161) já nas primeiras linhas do conto. Um devir que o
próprio texto realiza em sua volubilidade: a 1ª pessoa do singular se torna 1ª pessoa do
plural, para, por fim, se transformar numa 3ª pessoa do singular que é o próprio
narrador. A voz única se multiplica para dar voz ao axolotl, mas também ao devir-
axolotl do homem e ao devir-homem do axolotl.
É esse devir intenso e infinito que nos permite aproximar narrador e texto dos
xamãs ameríndios, estes seres capazes de cruzar as barreiras corporais e adotar a
perspectiva de outras subjetividades não-humanas. Conforme explica Eduardo Viveiros
de Castro, o xamanismo é a capacidade “manifesta por certos (ou todos os) indivíduos
de uma dada espécie de cruzar as barreiras específicas e transformar-se em (adotar o
ponto de vista de) seres de outras espécies” (Viveiros de Castro, 2002, p. 468). Em “O
que significa tornar-se outro?”, Aparecida Vilaça explica que, para os Wari, o xamã é
“aquele que vê”; um ser especial - parte humano, parte animal - que pode ver os animais
como humanos, pois adota o ponto de vista deles (Vilaça, 2000).
Isso é possível porque, para o pensamento ameríndio de maneira geral, o estado
originário de homens e animais é a humanidade; e não a animalidade, como propõe
nossa ciência evolucionista. E é desse momento que nos falam os mitos, estas histórias

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de um tempo em que, analisa Lévi-Strauss, “os homens e os animais ainda não se


distinguiam” (apud Viveiros de Castro, 2002, p. 354).
O texto de Cortázar é, portanto, um conto mitológico, não apenas por falar dessa
indiscernibilidade de duas espécies (à qual voltaremos em seguida), mas porque,
biologicamente falando, a estranheza do axolotl propicia especulações míticas. Façamos
um pequeno parêntese para conhecer a história dessa curiosa salamandra. O axolotl
(Ambystoma mexicanum), cujo nome remete à língua asteca nauatl, tem como único
habitat natural os lagos próximos da Cidade do México - “que eran mexicanos lo sabía
ya por ellos mismos, por sus pequeños rostros rosados aztecas”, diz Cortázar (2007, p.
161).
Trata-se de uma espécie de salamandra que não se desenvolve da fase de larva,
pois conserva durante toda a vida brânquias externas e barbatanas que vão da cabeça à
ponta do rabo, características típicas do estado larval das salamandras. Raramente
(quase nunca na natureza) o axolotl sofre metamorfose para se tornar adulto, mesmo
assim é totalmente capaz de se reproduzir2. Neste sentido, é como se o axolotl estivesse
sempre em devir, sempre a ponto de se tornar uma outra coisa. Ele nunca se completa,
sua forma é a forma do inacabável, não tem origem ou destino. Como larva perene ele é
o próprio entre, que é o ser do devir, não apenas do devir-axolotl do homem, mas
também do devir-homem do axolotl:
Empecé viendo en los axolotl una metamorfosis que no
conseguía anular una misteriosa humanidad. Los imaginé
conscientemente, esclavos de su cuerpo, infinitamente
condenados a un silencio abisal, a una reflexión desesperada.
(…) No eran seres humanos, pero en ningún animal había
encontrado una relación tan profunda conmigo. Los axolotl eran
como testigos de algo, y a veces como horribles jueces
(Cortázar, 2007, p. 165).

Esse algo que os axolotl testemunham pode ser justamente essa proximidade
com a humanidade, com o caráter larval do homem. Foi isso que chamou a atenção de
Giorgio Agamben em “Idéia de Infância”. Abismado pela aparência infantil, quase fetal
do axolotl, o filósofo italiano considerou a neotenia deste animal - ou seja, a retenção de
características infantis na maturidade - uma nova chave para entender a evolução da
espécie humana (Agamben, 1989, p. 80). Segundo Agamben, esse infantilismo do
axolotl indica a hipótese de que o homem descende não de indivíduos adultos, mas de
um primata com capacidade de reprodução prematura, pois possui, exatamente como os

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axolotl, traços que são transitórios em outros animais, mas em nós definitivos. Assumir
essa inlatência, esse soma infantil da humanidade - tão bem manifesta na privação de
linguagem da criança, pois, diferente dos outros animais, o homem não é desde sempre
falante - permitiria sua abertura ao mundo. É isto, conclui ele, que se chama
pensamento, ou seja, política.
Essa abertura ao mundo que Agamben está situando na linguagem e no
pensamento, nós poderíamos pensar, com Gilles Deleuze e Félix Guattari, como a
possibilidade de devir do homem, desde sempre presente na condição fantasmática da
escritura, na morte que ela carrega. E aqui cabe lembrar que larva em latim significa
fantasma, espectro, máscara (Ernout e Meillet, 1985), “espírito dos mortos insepultos ou
que em vida foram maus” (Cunha, 1989). O próprio Cortázar destaca essa característica
fantasmagórica do axolotl:
Me sentía innoble frente a ellos; había una pureza tan espantosa
en esos ojos transparentes. Eran larvas, pero larva quiere decir
también máscara y también fantasmas. Detrás de esas caras
aztecas, inexpresivas y sin embargo de una crueldad implacable
¿qué imagen esperaba su hora? (Cortázar, 2007, p. 165)

A imagem que espera sua hora é a imagem de um fantasma, de uma morte, a


morte do eu-narrador, mas também do eu-autor. Em “O autor como gesto”, Agamben
(2007, p. 58) diz que o autor é aquele que ocupa o lugar de um morto. Essa “morte do
autor” acontece porque, quem explica é Maurice Blanchot (1995, p. 145), na palavra
escrita, nós não mais vivemos. Segundo a definição de Roland Barthes, “a escritura é a
destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse
oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda
identidade, a começar pela do corpo que escreve” (Barthes, 2004, p. 57). E é só por
conta desse apagamento, dessa diluição do autor no texto, que ele é capaz de devir-
outro, de se abrir ao pensamento de um axolotl. Mas isso não é privilégio do escritor ou
do artista, pois todo ser humano, na medida que não é ser completo, mas ser-com, larva
fantasmagórica, é capaz de devir, basta assumir, como faz a literatura, essa sua
incompletude, essa sua inlatência infantil.
Com isso em mente, podemos voltar ao segundo aspecto que faz deste um conto
mitológico: a indiscernibilidade dos seres. Quando o narrador diz que “si pienso como
un hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre dentro de su imagen de
piedra rosa” (Cortázar, 2007, p. 166) evidencia que a humanidade dos axolotl está presa

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em seu corpo externo. Esta idéia é muito próxima do pensamento ameríndio. Conforme
explica Viveiros de Castro, para o perspectivismo, a forma interna dos animais é
humana, mas esta humanidade (visível apenas pelos da própria espécie ou, como já
dissemos, por seres transespecíficos como os xamãs) está coberta por um envoltório,
uma ‘roupa”, um corpo animal. “Essa forma interna é o espírito do animal: uma
intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana,
materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara
animal” (Viveiros de Castro, 2002, p. 351).
É essa intencionalidade que o narrador do conto vê em seus pequenos
companheiros, essa subjetividade capaz de dizer eu e de fazer o ponto de vista do
axolotl se tornar o ponto de vista dominante. A partir disso e lembrando também o que
diz Cortázar em “Alguns aspectos sobre o conto” ao defender que não há leis num
conto, no máximo pontos de vista (Cortázar, 1993, p. 150), podemos pensar que este é
justamente um conto escrito a partir e sobre o ponto de vista do axolotl. Aliás, não é a
toa que, em grande parte do pequeno texto, o narrador descreva os olhos vazios de ouro
dos axolotl, numa obsessiva tentativa de entrar neles, justamente porque os olhos do
axolotl falam da presença de uma vida diferente, de outra maneira de olhar (Cortázar,
2007, p. 164), de outro ponto de vista. São olhos inexpressivos, de um ouro
transparente, que o narrador descobre como num susto e que, ainda que carentes de toda
vida, continuam olhando, se deixando penetrar pelo olhar do homem, de maneira tal que
o próprio homem passa a olhar através deles.
Mi cara estaba pegada al vidrio del acuario, mis ojos trataban
una vez más de penetrar el misterio de esos ojos de oro sin iris y
sin pupila. Veía de muy cerca la cara de un axolotl inmóvil junto
al vidrio. Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio,
la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio (Cortázar,
2007, p. 166).

Trata-se de um canibalismo ótico, de um comer com os olhos: “‘Usted se los


come con los ojos’, me decía riendo el guardián, que debía suponerme un poco
desequilibrado. No se daba cuenta de lo que eran ellos los que me devoraban lentamente
por los ojos, en un canibalismo de oro” (Cortázar, 2007, p. 165). O narrador devora o
ponto de vista do outro, e os axolotl, como sujeitos, devoram o narrador, numa
verdadeira transmutação de perspectivas, numa dupla desterritorialização. Neste
sentido, não há um axolotl que vira homem nem um homem que vira axolotl, mas um
devir dos dois, afinal, segundo Deleuze e Guattari, o devir produz apenas a si próprio.

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Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou


imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna
“realmente” animal, como tampouco o animal se torna
“realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa se não
ele próprio. (...) O que é real é o próprio devir, e não os termos
supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna
(Deleuze e Guattari, 1997, p. 39).

O devir não tem um sujeito distinto de si mesmo, nem mesmo um termo, porque
“seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que
coexiste, que faz bloco com o primeiro”, ele não se reduz à imitação ou identificação,
antes é da ordem da aliança, da comunicação. Eles não são absolutamente a mesma
coisa, explicam Deleuze e Guattari (1997, p. 44), mas “o Ser se diz dos dois num só e
mesmo sentido, numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é
mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos”. Devir é,
portanto, “fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de
intensidade ou de vizinhança” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 65), é entrar em contato, em
contágio: “Pero aquello cesó cuando una pata vino a rozarme la cara, cuando
moviéndome apenas a un lado vi a un axolotl junto a mí que me miraba, y supe que
también él sabía, sin comunicación posible pero tan claramente” (Cortázar, 2007, p.
166).
O devir é da ordem da epidemia, da proliferação, da ordem monstruosa da
criação, da transmutação de perspectivas xamânica, da multiplicidade, mas também da
excepcionalidade. O devir é múltiplo, mas um a um; plural, mas também singular; pois
é com o excepcional, com o anômalo, que se deve fazer aliança para devir-animal. Em
sua teoria do conto, já citada aqui, Cortázar diz que o tema do conto é sempre algo
excepcional, não porque deva ser extraordinário, fora do comum, mas porque traz uma
“abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma
da condição humana” (Cortázar, 1993, p. 155). Isso porque o excepcional, o anômalo
não é um indivíduo especial, antes um fenômeno de borda, alguém que está na fronteira
do bando, que permite um contato, um devir. Ele é um qualquer, no sentido de
Agamben, aquele que não importa qual seja realmente importa (Agamben, 2006, p. 11).
Este contato com o que está na fronteira, este devir-menor, é o que permite
Deleuze e Guattari definirem o devir como uma micropolítica ativa, porquanto é nos
devires-minoritários que se chega a uma desterritorialização que nunca se estabiliza.
Nela, o devir-menor não se torna um conjunto definível diante da maioria, não é algo

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fixo que possa ser classificado, capturado como identidade, assujeitado 3. Os axolotl
deixam de formar um grupo quando o homem devém axolotl, e passam a ser minoria
possível de um devir, pois são minoria não mais como conjunto definível em relação à
maioria (sua monstruosidade já lhes impedia isso), mas como desterritorialização
ilimitada. A impessoalidade do devir suprime a identidade-sujeitamento, que nos
impede de deslizar entre as coisas, de irromper no meio delas, de fazer do mundo um
mundo comunicante, um mundo em devir, de encontrar vizinhanças e zonas de
indiscernibilidade. Neste sentido, podemos dizer com Deleuze e Guattari, o devir é uma
política de feitiçaria:
Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da
feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são
nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles
exprimiriam antes grupos minoritários, ou oprimidos, ou
proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições
reconhecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos, em
suma anômicos (Deleuze e Guattari, 1997, p. 30).

Os feiticeiros - os xamãs - sempre tiveram essa posição anômala de borda,


justamente porque assombram as fronteiras. E se, conforme afirmam Deleuze e
Guattari, o escritor é feiticeiro, é justamente porque escrever é um devir, é ser
atravessado por estes estranhos devires-animais, é estar na borda. Mas as coincidências
não param por aí. Se o feiticeiro é um ser que vê demais, pois sabe o que se passa em
outras espécies (Viveiros de Castro, 2002, p. 79), também o escritor, como definiu
Jacques Rancière numa leitura da obra de Deleuze, “é aquele que viu a visão
excessivamente forte, insustentável, e que, a partir de então, nunca mais se conciliará
com o mundo da representação” (Rancière, 2000, p. 511). Lembremos, como fez o
próprio Cortázar em seu conto, que os axolotl não podem não ver porque seus olhos
estão sempre abertos, porque não têm pálpebras (Cortázar, 2007, p. 166).
Xamã, feiticeiro, escritor, é neste ver demais do devir que o homem pode ver a si
mesmo. Como explica Aparecida Vilaça (2000) a partir de sua etnografia dos índios
Wari, “o xamã se torna animal, e é como animal que adota a perspectiva dos seres
humanos”. Ele passa a ver os Wari como karawa, isto é, como não-humanos. Dessa
forma ele permite a todos da sociedade, “a experiência, indireta, de um outro ponto de
vista, o ponto de vista do inimigo”. Como no devir, o que acontece é uma dupla
inversão: “um homem destaca-se do grupo tornando-se animal e adotando um ponto de
vista humano (wari’) para que o resto do grupo, permanecendo humano (Wari’), possa

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adotar o ponto de vista do animal”. Trata-se, conclui ela, de uma reflexão profunda
sobre a humanidade, pois só nesta situação constantemente instável, “arriscando-se a
viver sempre na fronteira entre o humano e o não-humano”, sabendo o que é ser
karawa, é que os Wari podem experimentar o que é realmente ser humano.
Daí as sociedades tupi serem sociedades sem identidade, sem Estado, justamente
porque nelas o valor que interessa é o da troca, da transmutação de perspectivas. Como
diz Lévi-Strauss em História de lince (1993, p. 14), as fontes filosóficas e éticas dos
ameríndios se inspiram numa abertura para o outro. São, portanto, sociedades sem
história, na acepção deleuze-guattariana do termo (Deleuze e Guattari, 1997, p. 89), ou
seja, sociedades de devir, sociedades que, em sua busca pelo ponto de vista do outro,
não se fecham numa história, não se fixam numa identidade; antes se abrem ao outro, à
troca, à mobilidade.
Isso fica muito claro no exemplo tupinambá, que partia de uma incompletude
ontológica essencial da socialidade e da humanidade. Ali, a identidade era subordinada
à diferença e o interior ao exterior. O devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a
substância (Viveiros de Castro, 2002, p. 220). Nesta sociedade, não havia bolha
identitária que cuidasse de suas fronteiras, pois ela não existia fora de uma relação
imanente com a alteridade. Conforme as análises de Viveiros de Castro, para os
tupinambá, o fundamento da sociedade era a relação com o outro, não a coincidência
consigo mesmo, mas o desejo de ser o outro (Viveiros de Castro, 2002, p. 195), a
incorporação do outro, a saída de si, um devir-outro.
A arte que assume essa herança do pensamento selvagem, que faz do
perspectivismo e do devir sua política, da larva sua estética e da heterogeneidade sua
ética, é uma arte que propõe uma linha de fuga, que ultrapassa nossos dualismos, nossas
classificações, nossas estabilizações, nossas identificações, pela via do entre, do estar-
entre. Afinal, o que o devir nos ensina é que cada indivíduo é uma multiplicidade
infinita, que o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades, e
que, ao nos reduzirmos a linhas abstratas, nos tornamos capazes de nos conjugarmos
com outras linhas, para produzirmos, então, “um mundo, no qual é o mundo que entra
em devir e nós nos tornamos todo mundo” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 73). Nas belas
palavras de Clarice Lispector: “Eu me ultrapasso abdicando de mim e então sou o
mundo: sigo a voz do mundo” (Lispector, 1998, p. 23).

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NOTAS
1 Em A escritura do desastre, Maurice Blanchot (1995, p. 121) afirma que escrever é
renunciar estar no comando de si mesmo ou ter qualquer nome próprio.
2 Cf. os verbetes “Axolotl” e “Growth and development” de The New Encyclopaedia
Britannica (volumes I e XX).
3 “toda assunção de uma identidade também é sempre um sujeitamento” (Agamben,
2010).

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Deleuze: Uma vida filosófica. Trad. Ana L. de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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Vilaça, Aparecida. “O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico


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Viveiros de Castro, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de


antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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