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Resumo:
No conto “Axolotl”, de Julio Cortázar, mais do que qualquer perseverança no ser ou
fixação de identidade, o que interessa é a instabilidade, a desterritorialização, o contato,
o contágio, o devir. Neste sentido, o texto expõe o eu como limiar, como porta entre
duas multiplicidades, e se aproxima do perspectivismo ameríndio ao apresentar uma
linha de fuga, que ultrapassa nossos dualismos, nossas classificações, nossas
estabilizações, pela via do entre, do estar-entre.
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Simpósio Internacional de Literatura Argentina em seu bicentenário
Cortázar e a perspectiva de um devir-axolotl Ana Carolina Cernicchiaro
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Esse algo que os axolotl testemunham pode ser justamente essa proximidade
com a humanidade, com o caráter larval do homem. Foi isso que chamou a atenção de
Giorgio Agamben em “Idéia de Infância”. Abismado pela aparência infantil, quase fetal
do axolotl, o filósofo italiano considerou a neotenia deste animal - ou seja, a retenção de
características infantis na maturidade - uma nova chave para entender a evolução da
espécie humana (Agamben, 1989, p. 80). Segundo Agamben, esse infantilismo do
axolotl indica a hipótese de que o homem descende não de indivíduos adultos, mas de
um primata com capacidade de reprodução prematura, pois possui, exatamente como os
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axolotl, traços que são transitórios em outros animais, mas em nós definitivos. Assumir
essa inlatência, esse soma infantil da humanidade - tão bem manifesta na privação de
linguagem da criança, pois, diferente dos outros animais, o homem não é desde sempre
falante - permitiria sua abertura ao mundo. É isto, conclui ele, que se chama
pensamento, ou seja, política.
Essa abertura ao mundo que Agamben está situando na linguagem e no
pensamento, nós poderíamos pensar, com Gilles Deleuze e Félix Guattari, como a
possibilidade de devir do homem, desde sempre presente na condição fantasmática da
escritura, na morte que ela carrega. E aqui cabe lembrar que larva em latim significa
fantasma, espectro, máscara (Ernout e Meillet, 1985), “espírito dos mortos insepultos ou
que em vida foram maus” (Cunha, 1989). O próprio Cortázar destaca essa característica
fantasmagórica do axolotl:
Me sentía innoble frente a ellos; había una pureza tan espantosa
en esos ojos transparentes. Eran larvas, pero larva quiere decir
también máscara y también fantasmas. Detrás de esas caras
aztecas, inexpresivas y sin embargo de una crueldad implacable
¿qué imagen esperaba su hora? (Cortázar, 2007, p. 165)
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em seu corpo externo. Esta idéia é muito próxima do pensamento ameríndio. Conforme
explica Viveiros de Castro, para o perspectivismo, a forma interna dos animais é
humana, mas esta humanidade (visível apenas pelos da própria espécie ou, como já
dissemos, por seres transespecíficos como os xamãs) está coberta por um envoltório,
uma ‘roupa”, um corpo animal. “Essa forma interna é o espírito do animal: uma
intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana,
materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara
animal” (Viveiros de Castro, 2002, p. 351).
É essa intencionalidade que o narrador do conto vê em seus pequenos
companheiros, essa subjetividade capaz de dizer eu e de fazer o ponto de vista do
axolotl se tornar o ponto de vista dominante. A partir disso e lembrando também o que
diz Cortázar em “Alguns aspectos sobre o conto” ao defender que não há leis num
conto, no máximo pontos de vista (Cortázar, 1993, p. 150), podemos pensar que este é
justamente um conto escrito a partir e sobre o ponto de vista do axolotl. Aliás, não é a
toa que, em grande parte do pequeno texto, o narrador descreva os olhos vazios de ouro
dos axolotl, numa obsessiva tentativa de entrar neles, justamente porque os olhos do
axolotl falam da presença de uma vida diferente, de outra maneira de olhar (Cortázar,
2007, p. 164), de outro ponto de vista. São olhos inexpressivos, de um ouro
transparente, que o narrador descobre como num susto e que, ainda que carentes de toda
vida, continuam olhando, se deixando penetrar pelo olhar do homem, de maneira tal que
o próprio homem passa a olhar através deles.
Mi cara estaba pegada al vidrio del acuario, mis ojos trataban
una vez más de penetrar el misterio de esos ojos de oro sin iris y
sin pupila. Veía de muy cerca la cara de un axolotl inmóvil junto
al vidrio. Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio,
la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio (Cortázar,
2007, p. 166).
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O devir não tem um sujeito distinto de si mesmo, nem mesmo um termo, porque
“seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que
coexiste, que faz bloco com o primeiro”, ele não se reduz à imitação ou identificação,
antes é da ordem da aliança, da comunicação. Eles não são absolutamente a mesma
coisa, explicam Deleuze e Guattari (1997, p. 44), mas “o Ser se diz dos dois num só e
mesmo sentido, numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é
mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos”. Devir é,
portanto, “fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de
intensidade ou de vizinhança” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 65), é entrar em contato, em
contágio: “Pero aquello cesó cuando una pata vino a rozarme la cara, cuando
moviéndome apenas a un lado vi a un axolotl junto a mí que me miraba, y supe que
también él sabía, sin comunicación posible pero tan claramente” (Cortázar, 2007, p.
166).
O devir é da ordem da epidemia, da proliferação, da ordem monstruosa da
criação, da transmutação de perspectivas xamânica, da multiplicidade, mas também da
excepcionalidade. O devir é múltiplo, mas um a um; plural, mas também singular; pois
é com o excepcional, com o anômalo, que se deve fazer aliança para devir-animal. Em
sua teoria do conto, já citada aqui, Cortázar diz que o tema do conto é sempre algo
excepcional, não porque deva ser extraordinário, fora do comum, mas porque traz uma
“abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma
da condição humana” (Cortázar, 1993, p. 155). Isso porque o excepcional, o anômalo
não é um indivíduo especial, antes um fenômeno de borda, alguém que está na fronteira
do bando, que permite um contato, um devir. Ele é um qualquer, no sentido de
Agamben, aquele que não importa qual seja realmente importa (Agamben, 2006, p. 11).
Este contato com o que está na fronteira, este devir-menor, é o que permite
Deleuze e Guattari definirem o devir como uma micropolítica ativa, porquanto é nos
devires-minoritários que se chega a uma desterritorialização que nunca se estabiliza.
Nela, o devir-menor não se torna um conjunto definível diante da maioria, não é algo
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fixo que possa ser classificado, capturado como identidade, assujeitado 3. Os axolotl
deixam de formar um grupo quando o homem devém axolotl, e passam a ser minoria
possível de um devir, pois são minoria não mais como conjunto definível em relação à
maioria (sua monstruosidade já lhes impedia isso), mas como desterritorialização
ilimitada. A impessoalidade do devir suprime a identidade-sujeitamento, que nos
impede de deslizar entre as coisas, de irromper no meio delas, de fazer do mundo um
mundo comunicante, um mundo em devir, de encontrar vizinhanças e zonas de
indiscernibilidade. Neste sentido, podemos dizer com Deleuze e Guattari, o devir é uma
política de feitiçaria:
Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da
feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são
nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles
exprimiriam antes grupos minoritários, ou oprimidos, ou
proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições
reconhecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos, em
suma anômicos (Deleuze e Guattari, 1997, p. 30).
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adotar o ponto de vista do animal”. Trata-se, conclui ela, de uma reflexão profunda
sobre a humanidade, pois só nesta situação constantemente instável, “arriscando-se a
viver sempre na fronteira entre o humano e o não-humano”, sabendo o que é ser
karawa, é que os Wari podem experimentar o que é realmente ser humano.
Daí as sociedades tupi serem sociedades sem identidade, sem Estado, justamente
porque nelas o valor que interessa é o da troca, da transmutação de perspectivas. Como
diz Lévi-Strauss em História de lince (1993, p. 14), as fontes filosóficas e éticas dos
ameríndios se inspiram numa abertura para o outro. São, portanto, sociedades sem
história, na acepção deleuze-guattariana do termo (Deleuze e Guattari, 1997, p. 89), ou
seja, sociedades de devir, sociedades que, em sua busca pelo ponto de vista do outro,
não se fecham numa história, não se fixam numa identidade; antes se abrem ao outro, à
troca, à mobilidade.
Isso fica muito claro no exemplo tupinambá, que partia de uma incompletude
ontológica essencial da socialidade e da humanidade. Ali, a identidade era subordinada
à diferença e o interior ao exterior. O devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a
substância (Viveiros de Castro, 2002, p. 220). Nesta sociedade, não havia bolha
identitária que cuidasse de suas fronteiras, pois ela não existia fora de uma relação
imanente com a alteridade. Conforme as análises de Viveiros de Castro, para os
tupinambá, o fundamento da sociedade era a relação com o outro, não a coincidência
consigo mesmo, mas o desejo de ser o outro (Viveiros de Castro, 2002, p. 195), a
incorporação do outro, a saída de si, um devir-outro.
A arte que assume essa herança do pensamento selvagem, que faz do
perspectivismo e do devir sua política, da larva sua estética e da heterogeneidade sua
ética, é uma arte que propõe uma linha de fuga, que ultrapassa nossos dualismos, nossas
classificações, nossas estabilizações, nossas identificações, pela via do entre, do estar-
entre. Afinal, o que o devir nos ensina é que cada indivíduo é uma multiplicidade
infinita, que o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades, e
que, ao nos reduzirmos a linhas abstratas, nos tornamos capazes de nos conjugarmos
com outras linhas, para produzirmos, então, “um mundo, no qual é o mundo que entra
em devir e nós nos tornamos todo mundo” (Deleuze e Guattari, 1997, p. 73). Nas belas
palavras de Clarice Lispector: “Eu me ultrapasso abdicando de mim e então sou o
mundo: sigo a voz do mundo” (Lispector, 1998, p. 23).
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NOTAS
1 Em A escritura do desastre, Maurice Blanchot (1995, p. 121) afirma que escrever é
renunciar estar no comando de si mesmo ou ter qualquer nome próprio.
2 Cf. os verbetes “Axolotl” e “Growth and development” de The New Encyclopaedia
Britannica (volumes I e XX).
3 “toda assunção de uma identidade também é sempre um sujeitamento” (Agamben,
2010).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, Giorgio. La comunidad que viene. Trad. José Luis Villacañas e Claudio La
Rocca. 2ª ed. Valencia: Pre-Textos, 2006.
______. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
Barthes, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
Blanchot, Maurice. The writing of the disaster. Trad. Ann Smock. Lincoln: University
of Nebraska Press, 1995.
Cortázar, Julio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
______. Final del juego. 2ª ed. Buenos Aires: Punto de Lectura, 2007.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad.
Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.
Rancière, Jacques. “Existe uma Estética Deleuzeana?” In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles
Deleuze: Uma vida filosófica. Trad. Ana L. de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000.
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