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O que a Encíclica MATER ET MAGISTRA (e relacionadas) pode

nos ensinar?
Mãe e mestra de todos os povos, a Igreja Universal foi fundada por Jesus Cristo, a fim
de que todos, vindo no seu seio e no seu amor, através dos séculos, encontrem plenitude
de vida mais elevada e penhor seguro de salvação. A esta Igreja, "coluna e fundamento
da verdade" (cf. 1 Tm 3, 15), o seu Fundador santíssimo confiou uma dupla missão: de
gerar filhos, e de os educar e dirigir, orientando, com solicitude materna, a vida dos
indivíduos e dos povos, cuja alta dignidade ela sempre desveladamente respeitou e
defendeu.
Assim Sua Santidade João XXIII introduz sua encíclica MATER ET MAGISTRA,
Lembrando-nos que a Igreja não é somente aquela que nos dá vida, mas que educa, que
faz crescer com Sua autoridade (de auctoritas - do verbo augere, fazer crescer). O
ensino sempre foi característico da Santa Igreja, em sua função salvífica.
A discussão em torno da propriedade privada sempre foi notável nos meios intelectuais,
pagãos ou cristãos. Na cristandade, reunião de todos os reinos cristãos, descentralizada,
mas encabeçada pelo chefe espiritual que é o Sumo Pontífice, os sábios chegaram a um
consenso, que já vinha da Santa Tradição Apostólica: é mais oportuno privilegiar as
estruturas naturais e principais, com função social, do que as estruturas artificiais e
secundárias. Tal significa uma rejeição da propriedade privada? A tomada dela como
mero símbolo sem interioridade? Não. Significa que a função social da propriedade é
prioridade em uma sociedade minimamente ordenada, e que se este ensinamento é
ignorado, observamos sem demora o combalir e desmoronar das próprias estruturas
sociais, que são sustentadas pela coesão dos valores do espírito, animados pela
fraternidade entre cristãos, e não pelo estabelecimento da propriedade privada como
pedra fundamental do arco social.
Outrossim, em continuidade ao afirmado por Sua Santidade Leão XIII na RERUM
NOVARUM, a saber: a propriedade privada e pessoal é, para o homem, de direito
natural, S.S. João XXIII não advoga comunismo: A propriedade privada, mesmo dos
bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir. Consigo,
intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito, que se
exerce em proveito próprio e para bem dos outros. (Parágrafo 19).
À vista disso, queria a Igreja ensinar que uma ordem econômico-social reta surge
somente da convergência da responsabilidade de todos enquanto entes econômicos e
entes sociais, fugindo de um individualismo vulgar, fugindo da crença fideísta e liberal
de atomismo social, tentando restaurar no católico o sentido clássico de homem como
permanentemente e intimamente arraigado a três coisas: a Igreja, a família e o trabalho.
No parágrafo 20, seguindo seus predecessores, S.S. João XXIII pontua: O Estado, cuja
razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não pode manter-se
ausente do mundo econômico; deve intervir com o fim de promover a produção de uma
abundância suficiente de bens materiais, "cujo uso é necessário para o exercício da
virtude" (cf. S. Tomás, em De Regimine Principum, I,15.). Em contramão ao dogma
moderno da confluência dos interesses particulares ao bem comum, o Papa, seguindo
Pio XI, lembra a necessidade da reorganização da vida social mediante a
reconstituição de corpos intermediários autônomos com finalidade econômica e
profissional, criados pelos particulares e não impostos pelo Estado (parágrafo 37), pois
só assim não cairemos em um dualismo capitalista-comunista, ou na deificação da
propriedade privada.
Seguindo o princípio da natureza social do homem, e do seu ordenamento ao fim último
que é Deus mesmo, precisamos refundar as obras fundamentais, ou seja, recristianizar a
pagã sociedade moderna. Por isso o Papa cita a reconstituição de corpos intermediários,
abolidos pelo próprio liberalismo. Os corpos intermediários ou grupos sociais ou
agrupamentos humanos situam-se entre o indivíduo isolado (ou a família, célula social)
e o Estado, constituídos — ora naturalmente, ora por acordo deliberado — tendo como
objetivo atingir um fim em comum entre as pessoas que compõem esses grupos,
promovendo, assim, a verdadeira participação dos indivíduos na sociedade política (ou
Estado).
Ora, sabemos que a abolição dos corpos intermediários pelo liberalismo foi a base da
criação dos atuais partidos políticos, que na prática assumiram a posição de meio para
participação do indivíduo na política, rompendo a organização harmônica tradicional,
gerando inúmeros problemas de ordem social e facilitando, ademais, a própria
condenação das almas, ao descristianizar as estruturas, através do indiferentismo.
Por isso o supremo pastor indica, como princípios fundamentais, para remediar o
imperialismo internacional do dinheiro e a paganização da sociedade, o regresso do
mundo econômico à ordem moral e a subordinação da busca dos lucros, individuais ou
de grupos, às exigências do bem comum, antes de citar como antídoto eficacíssimo a
reconstituição de corpos intermediários. (Parágrafos 36 e 37).
Em sua encíclica Graves de communi de 1901, S.S. Leão XIII cita, na ordem
essencialmente temporal, algumas instituições basilares do catolicismo: “após os
Apóstolos, aqueles que abraçaram a fé cristã tomaram a iniciativa de criar uma grande
variedade de instituições para o alívio de todos os tipos de misérias que afligem a
humanidade. Essas instituições, que perpetuamente progridem, são a propriedade, a
glória e o ornamento da religião cristã e da civilização que foi originada por ela. Assim,
os homens de reto juízo não podem deixar de admirá-las, dada sobretudo a acentuada
inclinação que cada um de nós tem para buscar antes os próprios interesses em
detrimento do próximo (…); uma das glórias da caridade é não somente aliviar as
misérias do povo por meio de auxílios passageiros, mas principalmente através de um
conjunto de instituições permanentes. Com efeito, dessa maneira os necessitados
encontrarão uma garantia certíssima e mais eficaz. Também é digno de elogios o intento
de ensinar os artesãos e trabalhadores a adquirirem seu sustento e provisões futuras, a
fim de que ao longo do tempo eles assegurem por si mesmos, pelo menos em parte, seus
respectivos futuros.”
Na ordem essencialmente espiritual nós podemos citar, seguindo a expressão histórica
da Igreja e de acordo com suas posições pastorais tradicionais que, além da
reconstituição dos corpos sociais, meios eficazes de cristianizar as sociedades, a Igreja
fomentou a vida sobrenatural (e precisamos reproduzir nestes tempos pagãos): através
da pregação da fé por meio do catecismo, dos sermões, e da literatura religiosa, através
da luta contra a heresia, através do culto público; a santa missa de sempre em todas as
cidades, o ofício divino, as romarias e via sacras, através das inumeráveis ordens
religiosas e monastérios, através do auxílio à população e através das missões.
Assim como a dita “Esquerda” apropriou-se da luta anti-racista, o mesmo se deu com a
luta contra o imperialismo do dinheiro. Sua Santidade Pio XI sem dúvidas receberia o
título de “Comunista”, pois, como bem pontua S.S. João XXIII, nos parágrafos 38-40 de
sua encíclica, “os temas fundamentais, característicos da magistral encíclica de Pio XI,
podem reduzir-se a dois: O primeiro proíbe completamente tomar como regra suprema
das atividades e das instituições do mundo econômico quer o interesse individual ou de
grupo, quer a livre concorrência, quer a hegemonia econômica, quer o prestígio ou o
poder da nação, ou outros critérios semelhantes. O segundo tema recomenda a criação
de uma ordem jurídica, nacional e internacional, dotada de instituições estáveis,
públicas e privadas, que se inspire na justiça social e à qual se conforme a economia;
assim tornar-se-á menos difícil aos economistas exercer a própria atividade em
harmonia com as exigências da justiça e atendendo ao bem comum.”

Para o verdadeiro progresso, que é pautado na Caridade (a virtude, não a filantropia,


porque a verdadeira Caridade busca sempre a conversão), S.S. João XIII propõe,

Na agricultura: uma política econômica hábil no campo agrícola no que se refere ao


regime fiscal, ao crédito, à previdência social, à defesa dos preços, ao fomento de
indústrias complementares e à modernização dos estabelecimentos (Parágrafo 130);
ainda a solidariedade e colaboração - no setor agrícola, como aliás em qualquer outro
setor produtivo, a associação é atualmente uma exigência vital; e muito mais, quando o
setor se baseia na empresa familiar. Os trabalhadores da terra devem sentir-se solidários
uns dos outros, e colaborar na criação de iniciativas cooperativistas e associações
profissionais ou sindicais (parágrafo 145), algo análogo aos corpos intermediários;

No regime fiscal: a distribuição dos encargos segundo a capacidade contributiva dos


cidadãos é princípio fundamental de um sistema tributário justo e eqüitativo (parágrafo
131);

Nas comunidades locais, o respeito às suas características próprias: pelos recursos e


características do próprio ambiente natural, pelas tradições muitas vezes ricas de valores
humanos e pelas qualidades típicas de seus membros (parágrafo 168);

No respeito pelas leis da vida, isto é, do sacramento matrimônio entre homem e mulher,
da rejeição de métodos contraceptivos e na educação cristã dos filhos: temos de
proclamar solenemente que a vida humana deve ser transmitida por meio da família,
fundada no matrimônio uno e indissolúvel, elevado para os cristãos à dignidade de
sacramento. A transmissão da vida humana foi confiada pela natureza a um ato pessoal
e consciente, sujeito, como tal, às leis sapientíssimas de Deus: leis invioláveis e
imutáveis, que é preciso acatar e observar (parágrafo 192);

Na rejeição às ideologias errôneas: elaboraram-se e difundiram-se diversas ideologias


na época moderna. Algumas já se dissiparam, como névoa ao contato do sol; outras
sofreram e sofrem revisões substanciais; outras ainda, enfraqueceram bastante, e vão
perdendo cada vez mais o seu poder de fascinação no espírito dos homens (parágrafo
212) e prossegue: o erro mais radical na época moderna é considerar-se a exigência
religiosa do espírito humano como expressão do sentimento ou da fantasia, ou então
como produto de uma circunstância histórica, que se há de eliminar como elemento
anacrônico e obstáculo ao progresso humano. Ora, é precisamente nesta exigência que
os seres humanos se revelam tais como são verdadeiramente: criados por Deus e para
Deus, como exclama Santo Agostinho: "Foi para ti, Senhor, que nos fizeste; e o nosso
coração está insatisfeito, até que descanse em ti" (parágrafo 213);

Na educação: a educação cristã, integral; quer dizer, compreendendo a totalidade dos


deveres. Há de, pois, fazer nascer e fortificar nas almas a consciência de terem de
exercer cristãmente as atividades de natureza econômica e social;

No reconhecimento e respeito pela hierarquia dos valores, e, por fim, que reconheçamos
Deus como verdadeiro fundamento da ordem moral, porque a verdadeira Caridade é
amor de Deus, é santificação, é conversão perene:

A confiança recíproca entre os homens e os Estados só pode nascer e consolidar-se


através do reconhecimento e do respeito pela ordem moral. E a ordem moral não pode
existir sem Deus: separada dele, desintegra-se. (Parágrafos 206 e207).

Biggie, 10/2020

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