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ISBN — 978-85-225-1589-9

Copyright © Helenice Aparecida Bastos Rocha, Luís Reznik, Marcelo de Souza Magalhães

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Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo Decreto Legislativo no 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo
Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008.

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.


1a edição — 2009

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS: Maria Lucia Leão Velloso de Magalhães


EDITORAÇÃO E LETRÔNICA : Arte Luzes Studio Gráfico
REVISÃO: Fatima Caroni e Sandra Maciel Frank
CAPA: Gisela Abad
ARTE FINAL DE CAPA: Alyne Monteiro
MANIPULAÇÃO DE IMAGEM DE CAPA: Túlio Couceiro

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

A história na escola: autores, livros e leituras / Helenice


Aparecida Bastos Rocha, Luís Reznik, Marcelo de Souza Magalhães
(organizadores). – Rio de Janeiro : Editora FGV, 2009.
352 p.

Inclui bibliografia.

1. História – Estudo e ensino. 2. Historiografia. 3. Livros


didáticos. I. Rocha, Helenice Aparecida Bastos. II. Reznik, Luís. III.
Magalhães, Marcelo de Souza. IV. Fundação Getulio Vargas.

CDD – 907

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Sumário

Apresentação 9
Introdução 13
Ilmar Rohloff de Mattos
Parte I — AUTORES E LIVROS 29
1 — As relações entre autor e editor no jogo entre memória e
história: as duas edições de Compêndio da história do Brasil,
de José Inácio de Abreu e Lima, no ano de sua publicação 31
Selma Rinaldi de Mattos
2 — Coração: um diário, vários tempos e algumas
histórias 49
Rebeca Gontijo
Um livro em vários tempos e espaços 52
Um livro com múltiplos tempos e espaços 59
Conclusão 65
3 — Formar cidadãos republicanos fluminenses:
a Terra fluminense de Coelho Neto e Olavo Bilac 71
Rui Aniceto Nascimento Fernandes
Um livro para formar o cidadão fluminense republicano 72
As primeiras lições para formar o cidadão republicano
fluminense: conhecer a terra e o homem 77
Uma identidade alicerçada na experiência agrária 81
A defesa da pátria: as experiências de guerra 83
Considerações finais 85
4 — Imagens recortadas: os protagonistas da história do Brasil
na narrativa didática de Jonathas Serrano 91
Maria Cristina Fonseca Ribeiro Vidal

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5 — Uma história de cruzamentos providenciais: o manual
didático de Octávio Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque
de Holanda 109
Márcia de Almeida Gonçalves
Trajetórias e sociabilidades 111
Políticas governamentais para livros e programas escolares 116
Cruzamentos providenciais 117
À guisa de conclusão 124
6 — História da liberdade no Brasil, ou quando uma
história acaba em samba 125
Angela de Castro Gomes e Vanessa Matheus Cavalcante
Quando as academias se encontram, dá samba 128
Viriato Corrêa: um autor em desfile 133
História da liberdade no Brasil: revoluções no conteúdo e na forma de
um livro 138
A História da liberdade no Brasil deixa a avenida 148
7 — Livro didático e Estado: explorando possibilidades
interpretativas 151
Tania Regina de Luca
Do triângulo ao quadrilátero 153
Estado e livros didáticos no século XIX 154
Monteiro Lobato e a edição de livros escolares 158
Estado Novo: em busca do controle 166
Editoras e o PNLD 171

Parte II — LEITURAS 173

8 — Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no ensino de


história 175
Ana Maria Monteiro
Livros didáticos: instrumentos de políticas educacionais 177

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Livro didático: instrumento didático renovador ou
“vilão da história”? 180
Livro didático: objeto cultural complexo 185
Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no ensino
de história 194
Considerações finais 198
9 — Livros didáticos de história: a diversidade de leitores
e de usos 201
Helenice Aparecida Bastos Rocha
O resumo do livro didático 205
As operações realizadas na produção do resumo 212
A leitura como estratégia para contextualizar 215
O que é preciso saber sobre os romanos da Roma Antiga? 220
As condições de uso e a apropriação do texto didático 223
10 — Ensinar a escrever no âmbito do livro didático
de história 227
Maria Lima
Língua escrita e consciência histórica 229
Os desafios do escrever no âmbito das aulas de história 234
A escrita enquanto processo 236
Considerações finais 240
11 — “Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história:
negociando sentidos da história ensinada na educação
básica 243
Carmen Teresa Gabriel
Entrando no debate 243
Livro didático de história: espaço de hibridização e didatização
cultural 245
Os exercícios nos livros didáticos de história: terreno de disputa
pelo controle social das aprendizagens 249

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Exercícios com documentos históricos nos livros didáticos:
recontextualizando e hibridizando antigos e novos discursos
pedagógicos e históricos 253

Parte III — PERSONAGENS: ÍNDIOS E NEGROS 261


12 — A história, o índio e o livro didático:
apontamentos para uma reflexão sobre o saber
histórico escolar 263
Mauro Cesar Coelho
Populações indígenas e cultura histórica 264
O livro didático e o saber escolar 268
O índio e o livro didático 272
Palavras finais 280
13 — Imagens de índios e livros didáticos: uma reflexão sobre
representações, sujeitos e cidadania 281
Eunícia Barros Barcelos Fernandes
14 — Personagens negros e livros didáticos: reflexões
sobre a ação política dos afrodescendentes
e as representações da cultura brasileira 299
Hebe Mattos, Martha Abreu, Carolina Vianna Dantas e Renata Moraes
Sobre heróis negros no passado 300
Escravidão, pluralidade cultural e cultura brasileira 308
Conclusão 318
Referências bibliográficas 321

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Apresentação

Como todo livro, A história na escola: autores, livros e leituras tem uma história.
É produto de um grupo de pesquisa, de um projeto e de um seminário.
O grupo de pesquisa Oficinas de História foi criado em 2004, tem registro
no CNPq e está sediado na Faculdade de Formação de Professores da Universida-
de do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com perfil interinstitucional, reúne pes-
quisadores vinculados a instituições universitárias do estado do Rio de Janeiro —
Uerj, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal
Fluminense (UFF), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio) e Faculdade de Filosofia de Campos — e mantém parcerias fora do estado,
por exemplo, com a Universidade Federal do Pará.
Os componentes do grupo desenvolvem duas linhas de pesquisa. A primei-
ra — Intelectuais, Historiografia e Ensino de História — busca historicizar a
elaboração e a veiculação de materiais e recursos didáticos relacionados com a
referida disciplina escolar, entre os quais destacam-se os livros didáticos e
paradidáticos. A segunda — Saberes e Práticas no Ensino de História — preocu-
pa-se com alunos e professores nas salas de aula, mais especificamente com as
condições do ensino-aprendizagem em nossa sociedade. Procura problematizar
as especialidades e complexidades dos saberes na formação docente e as práticas
do ensino de história.
Entre 2005 e 2007, o grupo desenvolveu o projeto O Livro Didático como
Discurso Historiográfico, contando com um duplo apoio: do CNPq, por meio
do Edital Universal, e da Faperj, por meio do Programa de Apoio às Entidades
Estaduais de Ciência e Tecnologia (Paep).
O projeto consistiu em um programa de pesquisa sobre o livro didático de
história. Dada sua importância como mediador no processo de ensino-aprendi-
zagem em diferentes tempos, o livro didático de história é entendido como porta-

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10 A história na escola

dor de um discurso historiográfico. Longe de representar uma mera transposição


didática dos conhecimentos produzidos no âmbito da academia, é um dos frutos
do processo de interpelação, tensa, entre a escola e a academia. O livro didático
resulta da apropriação seletiva do conhecimento histórico a ser ensinado no es-
paço escolar.
Os resultados parciais das pesquisas desenvolvidas sobre o livro didático
foram apresentados no seminário Os Livros de História na Escola: Trajetórias e
Usos, realizado nos dias 12 e 13 de abril de 2007, na PUC-Rio. O seminário contou
com a participação de alguns professores convidados: Ilmar Rohloff de Mattos
(PUC-Rio), Tânia Regina de Luca (Unesp) e Circe Maria Fernandes Bittencourt
(USP). Nos dois dias, foram apresentados 20 trabalhos, distribuídos em sete me-
sas e uma conferência. Além da mesa de encerramento, composta por Tânia de
Luca e Circe Bittencourt, as demais versaram sobre:

 por uma pedagogia da nacionalidade: história, ensino e a formação de cida-


dãos;
 índios e negros nos livros de história: entre conceitos e preconceitos;
 o livro didático de história: narrativas e leituras;
 imagens da terra e das gentes: narrativa didática e escrita da história do Brasil;
 como se escreve a história escolar: a Regência e a República nos livros didáticos;
 o livro didático de história: entre a leitura escolar e a leitura acadêmica.

O livro que ora vem a público visa divulgar as reflexões apresentadas e


discutidas nas mesas-redondas e na conferência do seminário. Trata-se do pri-
meiro produto com pretensões de dar a conhecer as pesquisas desenvolvidas pelo
grupo Oficinas de História. O livro está organizado em três partes. A primeira —
Autores e livros — reúne sete capítulos, versando cada um dos seis primeiros
sobre um determinado livro. A ordem dos capítulos seguiu o ano de publicação
da primeira edição de cada livro tratado. Selma Rinaldi de Mattos apresenta uma
reflexão acerca de duas edições de Compêndios de história do Brasil, de José Ignácio
de Abreu e Lima. Rebeca Gontijo busca compreender como o livro Cuore, de
Edmond de Amicis, com diversas traduções no Brasil, contribuiu para a constru-
ção de uma consciência histórica. Rui Aniceto Nascimento Fernandes preocupa-se
em entender a proposta de educação cívica, para a formação de cidadãos republica-

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Apresentação 11

nos fluminenses, contida no livro Terra fluminense, de Coelho Neto e Olavo Bilac.
Maria Cristina Fonseca Ribeiro Vidal analisa os protagonistas da história do Brasil
presentes na narrativa didática de Jonathas Serrano. Márcia de Almeida Gonçal-
ves, trabalhando com o livro História do Brasil, de Octávio Tarquínio de Sousa e
Sérgio Buarque de Holanda, analisa a trajetória e a inserção dos autores do manual
nas sociabilidades de uma comunidade interpretativa e intelectual, de modo a iden-
tificar a centralidade do uso de alguns argumentos e conceitos na narrativa didáti-
ca. Angela de Castro Gomes e Vanessa Matheus Cavalcante acompanham o encon-
tro do Salgueiro, escola de samba da cidade do Rio de Janeiro, com Viriato Corrêa,
analisando o livro História da liberdade no Brasil. Por fim, a parte se encerra com
o texto de Tânia Regina de Luca, que apresenta uma instigante interpretação das
relações entre a produção do livro didático e o Estado.
A segunda parte — Leituras — reúne textos que tratam da diversidade de
leitores e usos dos livros didáticos. Ana Maria Monteiro analisa as relações possí-
veis entre professores do ensino básico e os livros didáticos de história, a fim de
discutir o uso destes últimos pelos primeiros. Helenice Aparecida Bastos Rocha
focaliza as formas de recepção dos livros didáticos de história nas salas de aula.
Preocupa-se em perceber os diversos usos do livro didático nas escolas em que
realizou trabalho de campo. Maria Lima examina a escrita e seu papel no proces-
so de desenvolvimento de uma consciência histórica, à luz de contribuições teóri-
cas da psicolinguística. Carmen Teresa Gabriel trata da disciplina escolar “histó-
ria”, apostando na potencialidade heurística do livro didático para pensar questões
relativas ao conhecimento histórico produzido, socializado e apreendido nas ins-
tâncias em que este saber específico circula.
Na terceira e última parte — Personagens: índios e negros —, os textos
refletem sobre as representações de índios e negros nos livros didáticos. Mauro
Cesar Coelho procura destacar a relação existente entre o conteúdo do material
didático relativo às populações indígenas e o saber histórico escolar. Para tanto,
trabalha com livros adotados no estado do Pará. Eunícia Barros Barcelos
Fernandes analisa as imagens de índios nos livros didáticos, a partir de uma refle-
xão que trabalha com as categorias de representação, sujeito e cidadania. E, por
fim, o texto de Martha Abreu, Hebe Mattos, Carolina Vianna Dantas e Renata
Moraes procura compreender os lugares de personagens negros nos livros didáti-
cos de ontem e de hoje.
Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

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12 A história na escola

Tecnológico e ao Pronex — Culturas Políticas e Usos do Passado — os apoios que


tornaram realidade esta publicação. Somos gratos também à professora Marieta
de Moraes Ferreira por ter aceitado, prontamente, publicar o livro pela Editora
FGV.
Encerramos esta apresentação anunciando outra, sob o título de “Introdu-
ção”. Este é um livro, na verdade, com duas introduções. Estranho, mas proposi-
tal. A que se encerra expõe um pouco o histórico que resultou na publicação do
livro e também as opções feitas para organizar as partes da coletânea. A seguin-
te, de Ilmar Rohloff de Mattos, consiste na transcrição do texto da conferência
de abertura do seminário Os Livros de História na Escola: Trajetórias e Usos, o
que é facilmente perceptível pela marca da oralidade ali presente. Ao final da
organização do livro, logo concluímos que a conferência constituía a melhor
carta de apresentação tanto para o livro quanto para o grupo de pesquisa Ofici-
nas de História. Sem mais demora, vamos a ela!

Helenice Aparecida Bastos Rocha


Luís Reznik
Marcelo de Souza Magalhães

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Apresentação 13

Introdução

Ilmar Rohloff de Mattos*

Fui convidado a refletir a respeito do ensino da história nas escolas de educação


básica. Desse ponto de vista, não posso deixar de estar satisfeito por esta oportu-
nidade. De outro, porém, me encontro certamente menos à vontade, uma vez que
minhas relações com o ensino de história, com as práticas que o caracterizam e
com as reflexões que daí derivam foi sempre meio ambígua, digamos assim, por
circunstâncias de uma trajetória profissional que acabaram por me encaminhar
em outra direção. Não obstante, jamais consegui “tirar os olhos” da questão do
ensino, nos níveis iniciais de escolaridade ou no nível universitário; jamais conse-
gui deixar de ser indiferente ao que costumo chamar de ensino-aprendizagem da
história. Um “não tirar os olhos” intermitente, assinalado por descontinuidades,
por vezes mais atento, outras nem tanto; mas um “não tirar os olhos” que, de
modo até certo ponto irônico, sublinha a ambiguidade de uma trajetória profis-
sional e acadêmica ao me propiciar ser, ainda que provisoriamente (poderia ser
de outro jeito?), neste momento, professor de prática de ensino de história, ainda
que por uma circunstância particular. Mas por que comento a respeito disso?
Porque ao encontrar colegas de ofício, alguns ex-alunos, de já reconhecida com-
petência, debruçados sobre essa temática, isso me faz retornar e viver ainda uma
vez a ambiguidade que sempre distinguiu minha trajetória profissional, permi-
tindo-me conhecer um pouco melhor as diferenças entre gerações universitárias,
entre os modos como aprendiam e deveriam ensinar história e ainda como deve-
riam se relacionar com os livros didáticos.
Acredito não precisar acrescentar mais nada a respeito do valor que atri-
buo ao seminário que deu origem a este livro e que os organizadores escolheram

* Professor do Departamento de História da PUC-Rio.

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14 A história na escola

denominar Os Livros de História na Escola: Trajetórias e Usos. Minha atenção se


volta, em primeiro lugar, para o fato de esses mesmos organizadores não terem
optado por qualificar, de modo restritivo, “os livros de história na escola” como
livros didáticos de história... Decisão evidentemente inteligente, fundamentada
seguramente em uma ou várias boas razões; mas também algo provocativa. Se-
guindo a sabedoria de um antigo político nordestino, se caminhamos por uma
estrada e avistamos um jabuti em cima de uma árvore, o melhor a fazer é seguir
caminho e evitar perguntar por que o jabuti ali se encontra, até mesmo porque, é
sabido, jabutis não sobem em árvores... Ainda assim, por não “conseguir tirar os
olhos” do jabuti, tomo a liberdade de falar aqui de algumas “trajetórias e usos”
que experimentei, indelevelmente marcadas pela ambiguidade já referida, mas
não apenas por ela, ao lado de um companheiro inseparável de jornada, o “livro
didático”.
Durante quase seis décadas de minha vida (não apenas profissional, acredi-
to ser desnecessário dizer), eu “persegui” o livro didático — nem sempre apenas os
de história, mas principalmente estes; de modo recíproco, eles me “perseguiam”.
No momento em que imaginava deles começar a me distanciar, não propriamen-
te separar, eles retornam com toda a força, porque ainda que provisoriamente
passei a lidar mais diretamente com os licenciandos...
Destaco, porém, que falar de uma trajetória e de algumas experiências não
significa dizer que elas devam ser consideradas algo paradigmático. Se, quando
muito, elas são importantes para aqueles que as viveram, como um exercício de
memória, elas talvez apenas sirvam, aqui, para pôr em evidência alguns pontos e
aspectos a serem considerados em uma reflexão a respeito do próprio livro didá-
tico e de sua história... Talvez! De outra parte, os comentários que muito certa-
mente, em alguns momentos, emergirão no decorrer desta introdução não de-
vem ser considerados senão como comentários pessoais. Falo, pois, de uma
trajetória, recortada aqui em cinco experiências ou momentos diversos.
Quando, pela primeira vez, “aconteceu” essa “perseguição recíproca” a que
me referi há pouco? Quando “esbarrei” com um livro didático pela primeira vez
na vida? Se é que aquela publicação deve ser identificada como um “livro didáti-
co”, e assim faço coro — quem sabe? — com os organizadores do seminário. Foi
por volta dos seis anos de idade, ao ingressar na escola primária. (Não se preocu-
pem, por favor: ao traçar uma trajetória não vou falar ano por ano de minha
experiência.) Então, aos seis anos, a marca dessa primeira experiência foi a do
encontro entre o livro (didático) e um aluno. Uma marca ou um encontro que

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Introdução 15

todos nós já experimentamos um dia, para muitos provavelmente inesquecível,


para outros nem tanto. Mas um encontro que, do meu ponto de vista, tem para
nós, professores de história, uma marca distintiva, quase única, porque eu sem-
pre vivo o sentimento de que o livro didático de história, ou aquilo que assim é
denominado, guarda certas particularidades em relação aos livros de outras dis-
ciplinas. E o encontro foi uma grande fascinação. Correndo aqui, pela primeira
vez, os riscos que a memória sempre nos prega, eu li todo o livro, que não era um
livro que abordava apenas conteúdos de história, em uma ou duas semanas, e o
reli inúmeras vezes durante todo o ano, como se quisesse exemplificar aquilo que
os praticantes da história da leitura chamam de “leitura intensiva”. E bota inten-
siva nisso! Como que para tornar ainda mais intensa a fascinação ou a sedução
que o livro exercia, ele se chamava Meu tesouro! E que criança não gostaria de ter
um livro com esse título?
Dia desses, conversando com uma pessoa que me é muito próxima, não
apenas porque mora comigo, nós retomávamos a explicação que as duas autoras
do livro (não possuo maiores referências a respeito delas) davam “aos mestres” a
respeito das intenções e da organização da obra. Dirigindo-se aos professores —
e não aos alunos, faço questão de frisar —, elas sublinhavam que dois princípios
as animavam a publicar o que caracterizavam como um “compêndio”: aumentar
na “infância” o interesse pelas coisas de “nossa pátria”, por meio de “lições de
leitura” constituídas de “motivos brasileiros”, e tornar mais fácil a vida do “estu-
dante” e menos árdua a tarefa do “mestre”. Ainda que por demais sucinta, e daí
ser por demais arriscado dela tirar conclusões mais definitivas, da explicação
saltam elementos que possibilitam talvez vincular as intenções das autoras às
grandes vertentes que nortearam o surgimento da historiografia didática no Bra-
sil do século XIX, falando de uma maneira ampla. Animava as autoras o objetivo
de “formar brasileiros”: não os “alunos”, e sim a “infância” (ou ainda os
“brasileirinhos”), por meio de um “compêndio” e de “lições”. A obra de Joaquim
Manuel de Macedo, e certamente não apenas a dele, se projeta para além de seu
tempo, com suas explicações, valores e conceitos. Mas, seguramente, eu não sou a
melhor pessoa para falar a respeito.
Quando chego ao ginásio, uma grande novidade: sou apresentado a dois
tipos diversos de livros de história. Volto a chamar a atenção para o fato de que
Meu tesouro não era exclusivamente um livro de história e, se nele me atraíam os
conteúdos de “história do Brasil”, estes ali eram apresentados ao lado dos de
“linguagem”, “geografia” e “ciências físicas e naturais”. Ora, os dois tipos diversos

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16 A história na escola

de livros se apresentavam sob uma classificação da história que, ainda hoje, não
foi de todo abandonada: o livro de história do Brasil e o livro de história geral.
Todavia, se houve grandes descobertas nesse momento, seguramente não foi tan-
to a desses dois “continentes”, os quais em sua complementaridade serviam, sem
dúvida, para sublinhar a singularidade de nossa constituição. Das duas grandes
descobertas, a mais significativa para mim ocorreu por volta dos 10 anos: os
livros tinham autores! Os livros de história geral e do Brasil contribuíam decisi-
vamente para algo que já vinha se esboçando na preferência e na escolha dos
livros “do Monteiro Lobato” sempre que se oferecia a oportunidade da leitura
não necessariamente escolar. Muitos anos depois, ao ler uma entrevista de Clarice
Lispector, constatei com certa frustração que ela descobrira que os livros tinham
autores por volta dos cinco anos... De modo mais particular, e isso talvez não seja
irrelevante como exercício de memória, a descoberta dos autores dos livros de
história, mais exatamente de dois autores (um pouco adiante, em um compêndio
dedicado à história da América, aliás muito chato, descobri um terceiro autor
cujo nome também guardo). Os nomes de Joaquim Silva e Antonio Borges
Hermida jamais seriam esquecidos, e creio que isso deve ter acontecido com um
número significativo de alunos de minha geração. Era como se ninguém mais
escrevesse livros de história (e, evidentemente, os manuais escolares eram para
mim os únicos livros de história!). Descoberta que logo se desdobrou em uma
constatação, até porque cada um daqueles autores tinha produzido livros de
ambas as histórias: os livros de história do Brasil eram mais concisos, mais “secos”
e menos atraentes — se é que a memória não me trai a esse respeito. O que posso
assegurar é que, apesar das atrações diferenciadas exercidas pelos livros (ou pelas
histórias neles contidas), eu preferiria sempre os livros de Monteiro Lobato, so-
bretudo a História das invenções, e não saberia dizer agora se alguma vez esperei
um livro de história do Brasil saído lá do Sítio... De qualquer modo, o livro de
história geral parecia mais interessante, em especial o de Joaquim Silva. E um dos
pontos que o diferenciava eram as notas de pé de página. Ainda que as lesse, e
geralmente pouco entendesse, elas me atraíam por alguma razão. Havia uma
nota de pé de página inesquecível sobre “feudalismo”, que era a transcrição de
uma definição contida em um livro sobre o assunto de um medievalista francês,
que eu só reencontraria muito mais tarde no curso de graduação. Tempos depois,
uma dúvida se me apresentou: o livro do Joaquim Silva era muito moderno ou o
curso da faculdade era muito atrasado... A outra grande descoberta dessa época,
e eu não saberia dizer se ela vem relacionada à primeira, é a de que havia editoras,

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Introdução 17

algo que já era destacado por alguns professores. Havia, então, duas editoras
principais de obras didáticas, ou pelo menos assim me parecia em função dos
livros de história que me eram oferecidos: a Editora do Brasil e a Companhia
Editora Nacional (esta me chamava a atenção por ficar em uma rua cujo nome
me parecia incomum e intrigante: rua dos Gusmões). A Nacional, durante anos,
liderou o mercado de livros didáticos no Brasil.
Chego ao colegial, ao “curso clássico”. Então, a descoberta foi de outra
natureza, propiciada, sobretudo, por um livro de história do Brasil de autoria de
professores do Colégio Pedro II e editado pela Cia. Editora Nacional. Eram eles
Alfredo d’Escragnolle Taunay e Dicamor Moraes. Nele, em notas de pé de página
ou mesmo em citações no próprio texto, me foram apresentados, pela primeira
vez, autores da historiografia brasileira (por certo, eu não os identificava assim),
muitas vezes os autores responsáveis pela moderna historiografia brasileira. Foi
ali que, pela primeira vez, li trechos de Caio Prado Junior e de Gilberto Freyre.
Havia também em algum momento uma referência pequena a Sérgio Buarque de
Holanda (mais uma vez recordo ser tudo matéria de memória, não tendo tido eu
a oportunidade de retornar a esses livros mais recentemente), mas que muito me
chamou a atenção, a respeito da designação “profissional (ou profissão) liberal”.
Não me custa recordar, neste momento, algo que sublinho para os meus alunos
sempre que conversamos a respeito da tríade modernista da historiografia brasi-
leira. No início dos anos 1960, quando chego à universidade, e mesmo na década
seguinte, dos três autores clássicos, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, o Sérgio
Buarque de Holanda era o menos lido e discutido, por razões não tão difíceis de
compreender, não se distinguindo pelo prestígio que, justamente, desfruta hoje.
E, encerrando as “minhas recordações” de um primeiro encontro com o
livro didático, chego à Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Bra-
sil (atual UFRJ), para ali viver, seguramente, a experiência mais marcante e emo-
cionante como aluno. Ali, cada um dos alunos e não poucos professores, apesar
das expectativas e sonhos por vezes diversos, parecia experimentar, e efetivamen-
te em muitos casos o faziam, o forjar de um país novo. Eu lá cheguei no segundo
semestre de 1961, no momento da renúncia de Jânio Quadros, para cursar o “pré-
de-história”, como se dizia. Por uma coincidência, era editado na mesma ocasião
um novo livro... didático, digamos assim: História contemporânea, da professo-
ra Maria Yedda Linhares, professora catedrática da Faculdade Nacional de Filo-
sofia, e outros colaboradores, alguns deles seus assistentes. É evidente, não? Se eu
ia prestar o concurso vestibular, bastante rígido, não poderia deixar de comprar

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18 A história na escola

e, sobretudo, ler o livro da “Dona Yedda”, como ele logo ficaria conhecido. Co-
nhecesse eu Piaget, naquela ocasião, não teria dúvidas em dizer que a leitura de
cada uma de suas páginas produzia em mim uma desequilibração. O livro apre-
sentava antigos conteúdos de uma forma muito mais densa, ao lado de outros
novos (ou por mim desconhecidos), como os que punham em destaque a história
das relações internacionais, o que não poderia deixar de tornar inseguro alguém
que ia prestar exames dali a quatro ou cinco meses. Por outro lado, o livro era
pouco atraente, a começar pela capa... Os textos eram “pesados”, pouco
motivadores, embora de excelente qualidade, como já referi, não sendo possí-
vel afirmar com certeza que leitor os autores tinham em vista, não obstante a
indicação da capa. A bibliografia era copiosa, mas fora do alcance do leitor
comum, em sua grande parte. Editado pela Briguiet, História contemporânea
era, literalmente, um compêndio. E, há quatro décadas e meia, ele parecia se
oferecer como fecho conclusivo para essa primeira parte, ainda que esta deva ser
entendida como uma conclusão minha. Assim, se havia livros de história que nós
podemos chamar de livros escolares ou livros didáticos, eu arrisco dizer que eram
livros muito mais preocupados com os professores, voltados para os professores
e as “lições” que deveriam ministrar, do que para os alunos, não raro esquecidos
ou imaginados de modo homogêneo, sem consideração pelas “idades da vida”. O
tipo de escritura, o tamanho dos parágrafos, o vocabulário utilizado, a forma de
argumentar, a ausência de ilustrações (não obstante as limitações editoriais e
técnicas) falam de modo eloquente.
Um segundo encontro se deu já não como aluno e, sim, como professor.
Uma nova experiência que provavelmente em muito se assemelha às experiências
de muitos professores dos níveis fundamental e médio. No meu caso, para alguém
que já era professor há mais de quatro décadas, ela foi até relativamente restrita,
tendo se estendido por cerca de uma década e meia. Uma parte dela foi vivida no
Colégio de Aplicação da atual UFRJ. E ali, por razões de natureza diversa, onde
transcorria o último e mais significativo momento da formação dos professores,
não trabalhávamos nas salas de aula, de modo sistemático, com o livro didático.
Ele era utilizado, muitas vezes ao lado dos livros escolares franceses e da
historiografia acadêmica, na produção de nossas aulas; mas só muito raramente
o utilizávamos no trabalho com os alunos. Por outro lado, quando fui trabalhar
na rede estadual, minha primeira experiência em uma escola noturna, na qual os
alunos nem sempre tinham condições de adquirir o livro indicado, foi também
muito limitada. Em contrapartida, outras formas de “contar a história”, mesmo

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Introdução 19

por escrito, foram experimentadas em ambas as oportunidades, e quase sempre


de modo positivo; não obstante, tenho absoluta certeza de que o livro didático
era o grande ausente. Todavia, da experiência então vivida resultou algo quase
obrigatório, uma prática exercitada desde “o dia seguinte” ao da minha formatu-
ra: eu me tornei um escritor compulsivo de textos para as minhas aulas, muitas
vezes sob a forma de apostilas (em especial para os cursos pré-vestibulares, onde
também atuei como professor por quase 10 anos). Creio não cometer um equívo-
co se disser que sou conhecido como um “professor de história”, e não sei se deve-
ria ser de outra maneira; todavia, não tenho dúvidas em afirmar que o primeiro
momento em que fui assim identificado resultou, sobretudo, das apostilas que
redigi, em particular a de História do Brasil colônia. Acreditem se quiserem:
ainda hoje, em não poucas oportunidades, sou procurado por ex-alunos daquela
época, professores ou não, que me solicitam um exemplar da apostila, ficando
decepcionados quando lhes comunico que há muito ela deixou de ser publicada.
E alguns se espantam quando lhes digo que deve ser exatamente assim. Como qual-
quer outro texto, qualquer que seja o seu suporte, como qualquer aula, a apostila
não deixa de expressar o modo de o professor pensar a história, ainda que sob a
forma de um compêndio. Sim, porque a apostila não deixa de ser um compêndio, e
ao afirmar isso me dou conta de quantas vezes já me referi a um compêndio nesta
introdução.
Ora, essa minha experiência particular como professor acabou por possi-
bilitar, em larga medida, a experiência seguinte nisto que está ganhando a forma
de um quase depoimento. Uma experiência que se tornaria marcante nessa traje-
tória de um encontro recorrente. Em 1971, eu me tornei autor de um livro didá-
tico; dizendo de modo mais preciso, coautor de um livro didático, e não de um
compêndio, sublinhando aqui a diferença entre os dois tipos de textos. Minha
geração universitária, mas provavelmente o mesmo acontecia com as que a prece-
deram, deixava a faculdade de filosofia, onde eram formados os professores se-
cundários, com a intenção de produzir manuais escolares que substituíssem tex-
tos que julgávamos antiquados e pouco atraentes — os textos que havíamos
utilizado como alunos. Não pretendíamos, embora houvesse exceções, produzir
textos historiográficos, sermos historiadores no sentido estrito do termo, até
mesmo porque a maior parte de nossos professores não o fazia; a produção aca-
dêmica, aliás muito restrita, se limitava aos catedráticos. Nossa intenção traduzia
perfeitamente o objetivo da faculdade de filosofia. Ela revela também a distância
entre a universidade brasileira do início dos anos 1960 e a de hoje, na qual um
lugar e um papel significativos pertencem à pós-graduação.

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20 A história na escola

Certo dia, um colega me disse que um editor em São Paulo estava interessa-
do em fazer um novo livro didático de geografia e o convidara. Aceito o convite,
ele sugeriu ao editor que fosse feito também um novo livro de história do Brasil
por alguns colegas “muito competentes”. E lá fomos nós para São Paulo conver-
sar com o “dono” da Companhia Editora Nacional, a quem conhecia de nome e
por quem, confesso, não nutria grande simpatia por lembrar ter sido ele sócio de
Monteiro Lobato (sempre ele!), que falira, ao passo que o sr. Octalles Marcondes
de Souza se tornara o proprietário da maior editora de livros didáticos do país,
estando entre os “capitães de indústria”, como era costume se dizer então. Vale
dizer, alguém que tinha “faro para ganhar dinheiro”, ao passo que eu (melhor
dizendo, nós) tinha (tínhamos) “faro para arranjar trabalho”... Indo direto ao
assunto, ele nos propôs fazer um livro didático de história do Brasil para as esco-
las do Rio de Janeiro. Sua sensibilidade “dizia” que a tendência do mercado dos
livros didáticos era a regionalização. Ainda que com muitos temores, nós não
deixamos a oportunidade escapar. Nós: José Luiz Werneck da Silva, um exemplar
professor de história já falecido, com quem muito aprendi; Ella Dottori, com
quem trabalhara no Colégio de Aplicação e também muito me ensinara; e eu.
Tínhamos em comum o fato de termos sido (Ella permanecia sendo) professores
do CAP. E foi uma experiência extraordinária que não dá para relatar aqui, a
descoberta de um novo “continente”, como gosto de dizer. Não obstante, gosta-
ria de contar algo que aconteceu quando a reunião já se aproximava do fim. Um
de nós teve a ideia — “não muito feliz”, poder-se-ia dizer — de perguntar o se-
guinte: “Quer dizer que o nosso livro vai ser vendido no Rio de Janeiro?” “Sim,
basicamente no Rio de Janeiro.” “E qual livro vai ser vendido em São Paulo?” “O
livro do Sérgio Buarque de Holanda!” Olhamos uns para os outros e por pouco
não desistimos. Conforme é do conhecimento de vocês, Sérgio Buarque de Holanda
já produzira um texto didático em colaboração com Octávio Tarquínio de Souza
havia algumas décadas; mas um daqueles livros didáticos que “não haviam pega-
do”. Hélio Vianna, o catedrático de história do Brasil da Universidade do Brasil,
também o fizera. E, como já referi, o mesmo acontecera com a professora Maria
Yedda, em determinado momento de sua carreira. O que estou tentando subli-
nhar é que os catedráticos das universidades brasileiras, talvez seguindo uma
tradição francesa, também se empenhavam na produção de manuais escolares.
Revelavam todos a preocupação com o ensino da história; já não os animava,
seguramente, a intenção de formar brasileiros, como as autoras de Meu tesouro.
Mas em seus propósitos revelava-se o molde que desenhavam para a nação.

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Introdução 21

Retomando o fio da exposição, o fato é que o Sérgio Buarque de Holanda


seria o coordenador e consultor da nova coleção, o que, naquele momento, foi o
suficiente para nos deixar um pouco tranquilos. E o nosso livro foi feito, em dois
volumes, tornando-se um livro mais citado e referido do que propriamente utili-
zado. O título dado — Brasil, uma história dinâmica — recuperava, em parte, o
título de uma publicação argentina, e desde aí as reações foram se apresentando,
embora os aplausos e incentivos nos confortassem. Propunha-se uma “história
dinâmica” no momento em que a ditadura militar não se interessava por qual-
quer dinamismo nessa área. Muito rapidamente os qualificativos que distinguiam
o discurso de uma época determinada lhe foram atribuídos, de modo explícito ou
insinuado: “livro subversivo”, “conteúdo com viés esquerdista” etc. Ou ainda
restrições relacionadas a situações pontuais, mas que falavam por si mesmas.
Recordo o caso de um colégio confessional da Zona Sul do Rio de Janeiro que
alegou ao representante da editora não poder adotar o livro porque ele apresen-
tava um “índio nu” na capa! O que é verdade, embora o índio apareça de perfil.
Como proceder? “Corrigir” a capa da edição vestindo o índio? Apresentar o colo-
nizado “tal qual” ou ceder aos ditames dos colonizadores, que insistiam em vestir
os nativos? Todavia, o livro era tão inovador quanto “dinâmico”. Por certo,
assim como ele não inventava inteiramente um título, ele também não era o pio-
neiro em algumas inovações, mas seguramente tentava aproveitá-las ao máximo,
digamos assim. E, dentre elas, a mais significativa era a de eleger como seu leitor o
aluno; escolhemos contar uma história para os alunos e junto com eles, o que
fazia grande diferença com o que existia até então, e se expressava, entre outros
aspectos, em uma linguagem coloquial. Contar uma história junto com os alunos
trazia outras dificuldades (não tanto no plano da narrativa), que acabaram por
restringir a adoção do livro, de acordo com os depoimentos de inúmeros profes-
sores. No texto dos diferentes capítulos, o aluno era sempre incentivado a per-
guntar ao professor — de história ou de outras disciplinas, de acordo com a
temática abordada —, buscando tornar “dinâmica” a situação de aprendizagem.
E os professores sentiam-se inseguros ao viverem a diferença entre o poder de
perguntar e o dever de responder.
Feito o balanço, uma experiência inesquecível. E acrescentaria: uma expe-
riência corajosa também. Ela se desdobraria em outras produções, didáticas e
paradidáticas, com outros parceiros. Uma experiência tão gratificante quanto a
do exercício do magistério, até porque ambas se alimentam reciprocamente. To-
davia, posso assegurar: hoje, não sei... e quando digo não sei é porque não sei

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22 A história na escola

mesmo... se aceitaria o convite para produzir um livro didático! Talvez na parte


final deste relato eu fale de algumas das minhas dúvidas a respeito.
A quarta experiência foi muito curta no tempo, e muito provavelmente já foi
vivida por alguns de vocês, leitores. Foi o meu encontro com o livro didático na
condição não de leitor (aluno), professor ou autor, mas de avaliador. E tal se deu
em duas circunstâncias diversas: como avaliador de livros para a Secretaria Estadual
de Educação (escapam-me, agora, o nome e a sigla do programa respectivo) nos
anos 1980, e como avaliador para as próprias editoras. Neste último caso, o traba-
lho é menos relevante, pelo menos do meu ponto de vista, as editoras estando mais
interessadas em identificar possíveis “erros” e “deslizes” dos livros já produzidos e
impressos do que propriamente avaliar sua fundamentação historiográfica e peda-
gógica. No primeiro caso, além dos subsídios fornecidos para a decisão por instân-
cias superiores a respeito da aquisição de determinados títulos para as escolas da
rede estadual, o trabalho realizado servia ainda para os estudos feitos na própria
secretaria pelas equipes pedagógicas que elaboravam propostas de ensino. Não vivi
a experiência de avaliador do PNLD, embora a tenha acompanhado em algumas
oportunidades, por uma circunstância que logo adiante se explicitará. Diga-se de
passagem, não discordo das avaliações feitas, de um modo geral, a começar pelos
critérios estabelecidos, que vêm sendo aperfeiçoados, e pelas equipes que as reali-
zam. O problema do PNLD é de outra natureza, no meu entender.
Um último encontro, uma última experiência, como uma espécie de
concretização de um sonho acalentado desde a infância e que acabou também por se
tornar possível, durante um determinado período de tempo, quase que por aca-
so, por uma circunstância de vida. O sonho de ser editor, completando talvez o
conjunto de encontros com o livro, caso deixe de lado a condição de livreiro.
Como me tornei editor — melhor dizendo, sócio de uma editora — e como
também deixei de ser editor é assunto que algum dia eu prometo contar. O que
importa agora, pelo que tenho em vista, é lembrar que fui sócio de uma editora
que, no fundamental, era uma editora de livros didáticos. E, desde aí, algo novo se
apresentava, um “outro continente”, voltando a me servir de uma imagem já
utilizada várias vezes, porque, entre outras coisas, pela primeira vez eu deixava de
lidar apenas com livros didáticos de história. E deixava de lidar apenas com os
livros de história a partir do desafio de produzir livros didáticos de qualidade em
todas as disciplinas, e não apenas “fazer livros”! O desafio de lidar com autores de
diferentes disciplinas, com seus sonhos e idiossincrasias (todos os autores as têm);
de lidar com revisores, diagramadores e demais profissionais do livro, além das grá-

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Introdução 23

ficas e fornecedores de papel; de lidar com divulgadores e professores; e ainda com


o governo, que embora apareça nessa lista incompleta de novidades em último
lugar, muito rapidamente se tornou o personagem mais importante, porque eu
me tornara editor no momento em que o PNLD começava a ganhar uma dimen-
são incomum.
Não vou ceder ao lugar comum e dizer que há coisas que só acontecem no
Brasil, até porque geralmente recorremos a essa fórmula para pôr em destaque
algo negativo. Mas, com toda certeza, por meio da política do livro didático do
governo federal se revela, sem dúvida, mais uma vez, nossa capacidade de inven-
tar coisas positivas. Afinal, fazer chegar o livro didático aos alunos das escolas
públicas das mais diferentes localidades do país, alunos em sua maioria de baixa
condição social, com restrito acesso à palavra escrita e impressa, não é apenas
vencer uma dificuldade em termos operacionais (fazer o livro “chegar lá”), é rea-
lizar algo cujo valor e dimensão em qualquer plano é difícil de mensurar, embora
como professores e cidadãos saibamos avaliar. Não por outra razão, devemos
lutar por sua continuidade. E daí também a revolta e indignação de que somos
possuídos quando temos notícia, como aconteceu nesses dias, de livros que jazem
nas salas das secretarias de educação de alguns municípios por não terem sido
encaminhados às escolas. Uma ação cuja relevância não precisa ser novamente
sublinhada e que somente se tornou possível pela atuação do governo federal —
ou, dizendo melhor, pela ação do Estado, reiterando ainda uma vez um dos tra-
ços que distinguem nossa constituição histórica. Como editor de livros didáticos,
como sócio de uma pequena editora, fui em direção ao PNLD porque o PNLD me
levava inevitavelmente a isso. Significativo: Brasil, uma história dinâmica deveria
atender ao mercado do Rio de Janeiro, assim nos fora dito; os livros de minha
pequena editora deveriam competir no “mercado nacional” de livros didáticos,
assim era dito agora por uma política de Estado. Lembro-me, como se fosse hoje,
o dia em que um ex-aluno e colega de ofício me telefonou para dizer que um dos
livros da editora, um dos livros utilizados por um de seus filhos, havia sido selecio-
nado pelo PNLD para ser oferecido à avaliação e à escolha pelos professores de
“todo o Brasil”. Sua satisfação era, certamente, a satisfação de quem aposta na
possibilidade de livros melhores e de um ensino-aprendizagem de qualidade su-
perior em qualquer nível de ensino. Não era a satisfação de “um dono de editora”!
Tudo se tornava diferente, desde então. (Ou tudo reiterava o mesmo). De modo
muito simplificado, já não deveríamos imprimir 3 mil exemplares, que eram ven-
didos com dificuldade em um ano, não obstante a reconhecida qualidade do

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24 A história na escola

livro; deveríamos imprimir 90 mil exemplares (foi a primeira demanda do livro


daquela série), a um custo infinitamente inferior ao praticado até então, de modo
a que pudesse ser adquirido e distribuído pelo MEC. Eu descobria, na prática, a
“produção em escala”; passava a viver, na prática, o que já ensinara muitas vezes
a respeito do capitalismo industrial e financeiro; eu ia aprender cotidianamente,
nos meses e anos seguintes, não o que era o “capitalismo editorial” de Benedict
Anderson, mas o capitalismo dos editores, dos grandes editores de livros didáti-
cos e suas relações com o Estado, ao qual vendiam alguns milhões de livros, além
daquelas com as pequenas editoras e seus livros inovadores... Ainda assim, pelo
menos nos primeiros tempos, o tempo em que o próprio programa ia definindo
seu perfil e modo de operacionalização, foi uma experiência fascinante e gratifi-
cante (não no sentido pecuniário, creiam). Poucas coisas equivalem à satisfação
de encontrar em diferentes escolas públicas, nos mais diversos pontos do país,
crianças com o “seu” livro, mesmo quando “aquele” não seja o livro que você
editou, o que foi se tornando cada vez mais comum à medida que, em algo ineren-
te à lógica das relações capitalistas, as grandes editoras foram se impondo na
“escolha” dos livros pelos professores. Por outro lado, poucas coisas equivalem à
experiência de viver o poder do grande capital, sob a forma das dificuldades coti-
dianas, dos embates desiguais, da relação entre política e negócios, dos sonhos
abandonados. O editor saiu de cena há seis ou sete anos!
Mas voltemos ao Meu tesouro! Creio ser desnecessário chamar a atenção
para as diferenças materiais entre a edição de um livro escolar do início dos anos
1950 e uma dos dias atuais. Mudaram as edições, e também os editores: já não há
“capitães de indústria”. Mas será mesmo necessário sublinhar tudo isso para pro-
fessores de história? Ao lado de outros fatores, o PNLD também contribuiu, e não
em pequena escala, para tornar mais evidente o livro didático como mercadoria,
uma mercadoria especial, sem dúvida, assim como são especiais os leitores aos
quais essa mercadoria se dirige. Mas uma mercadoria diferente também em seu
texto, não apenas porque mudaram os conteúdos dos programas escolares, se é
que ainda se pode dizer assim, mas porque, como é possível constatar se olharmos
com um pouco mais de cuidado a página de créditos do livro (e, por vezes, a
própria capa): aos autores em sentido estrito, ou seja, os responsáveis pelo texto
em sentido estrito, agregam-se os ilustradores, diagramadores, revisores,
cartógrafos, fotógrafos e outros profissionais responsáveis por um texto que já
não se reduz à palavra escrita. Quantas diferenças entre os livros de Joaquim
Silva, Escragnolle Taunay e Maria Yedda, de um lado (sem descartar as diferenças
entre esses autores), e um livro didático de história de nossos dias! Diferenças que

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Introdução 25

se apresentam também relacionadas a quem eles se dirigiam ou dirigem, por exem-


plo; e ainda ao modo que o faziam ou fazem; para não mencionar os propósitos
que moviam ou movem sua produção. Se de um simples inventário inicial das
diferenças passarmos à tentativa de compreensão dessas mesmas diferenças, tal-
vez consigamos entender que significados eram atribuídos à denominação “livro
didático” em diferentes momentos, além da polivalência que ela encerrava neces-
sariamente em um determinado momento, se é que esta foi sempre a denomina-
ção utilizada; talvez consigamos entender ainda as diferenças entre “formar os
brasileiros” na sociedade imperial e as múltiplas intenções de “formar cidadãos”
atribuídas ao ensino da história no período republicano, embora em ambos os
casos, qualquer que fosse a denominação dada ao livro utilizado por uma disci-
plina escolar, o livro de história tivesse um irrecusável compromisso com o futu-
ro; talvez estejamos começando a fazer uma história do livro didático de história.

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26 A história na escola

O tempo em que vivemos não é apenas o tempo em que tudo que é sólido
se desmancha no ar de modo cada vez mais acelerado; é também o tempo em
que a dimensão do “presente” tornou-se extremamente ampliada, não apenas
reduzindo a perspectiva do futuro como também redefinindo os limites das
“idades da vida”, de tal modo que a “ampliação da adolescência” não apenas
“encurta a infância” como “atrai os adultos”, diminuindo as distâncias entre
pais e filhos, professores e alunos, redefinindo os padrões de autoridade e o
modo de estar no mundo. Vivemos intensamente esse presente ampliado; ago-
ra, é o presente que deve ser explicado e compreendido, o que tanto redefine as
relações entre passado-presente-futuro quanto põe em destaque outras identi-
dades. Nossas inquietações como leitores e autores de livros didáticos de histó-
ria também o revelam; elas também não deixam de estar presentes nas aulas que
produzimos.
Do que temos clareza, hoje, por circunstâncias que nosso ofício permite
explicar e compreender seguramente melhor do que qualquer outro é que, como
autores — quer de um livro didático (ou mesmo de um livro paradidático) quer
de uma aula (uma “aula como texto”, como costumo dizer) —, como produto-
res de um texto, enfim, não estamos produzindo um texto historiográfico no
sentido estrito do termo, um texto acadêmico. Mas temos clareza de que estamos
produzindo um texto (“a história começa com a escrita”, sempre nos foi dito) em
uma situação que se distingue por uma dupla prática de leitura. E aí reside a
marca distintiva desse texto historiográfico específico: o texto didático de histó-
ria. Lemos para escrever um texto historiográfico específico: um livro didático ou
o texto de uma aula. Escrevemos um texto historiográfico específico para contar
uma história.
Uma dupla prática de leitura. A primeira referida a uma autoridade: a
historiografia acadêmica. Porque a condição para ser autor desse outro texto
historiográfico pressupõe uma espécie de deferência a uma autoridade historio-
gráfica, sob a forma de leitura de uma narrativa da qual decorre o novo texto que
intento produzir. Mas uma leitura que não pode deixar de ser, necessariamente,
um exercício de tradução, o qual implica uma “traição” (traduttore traditore,
dizem os italianos). Uma tradução referida, por sua vez, de modo necessário e
incontornável, a uma segunda prática de leitura, certamente mais desafiadora,
por ter como “texto” os alunos e o universo no qual convivem; ou, dizendo de
outra maneira, aqueles para quem escrevo. Um novo texto historiográfico, com
suas marcas específicas, que será oferecido à leitura dos alunos, pelo professor e

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Introdução 27

com sua mediação, de modo a possibilitar aos novos leitores tornarem-se tam-
bém autores de seu próprio existir no presente.
“Alunos” não são “a infância” ou “brasileirinhos”, e aí se encontra a dife-
rença fundamental entre Brasil, uma história dinâmica e Meu tesouro, se me
permitem o exemplo; aí se encontra uma das razões, por certo, dos diversos signi-
ficados atribuídos a “livro didático” em diferentes momentos, e por que ele foi,
em não poucas ocasiões, denominado “compêndio”.
Tudo isso são algumas reflexões, resultado de algumas leituras, as quais,
evidentemente, tanto não se restringem aos textos acadêmicos, historiográficos
ou não, quanto pressupõem a “leitura do mundo”, como gostava de ensinar um
educador incomum. Há quase dois anos escrevi um artigo para uma revista uni-
versitária a respeito de um dos tipos desse texto historiográfico específico — a
“aula como texto” —, e o dediquei aos professores de história que há muito pro-
duzem “aulas como texto”, uma prática que me possibilitou algumas das conclu-
sões que ali expus e aqui foram apresentadas de modo muito resumido.1
No momento de encerrar essas reflexões (e já está mais do que na hora), me
vêm à lembrança os versos de uma música de Tom Jobim, cujo nome me escapa.
Um deles diz: “Assim como uma nuvem só acontece se chover...”. Não é outra a
condição do livro didático, que também só acontece se houver o professor (como
autor, em qualquer das duas possibilidades) e o aluno. Afinal, não é outra coisa o
que os versos finais cantam: “Não há você sem mim. Eu não existo sem você”.

1 Mattos, 2006:15-26.

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Parte I

AUTORES E LIVROS

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Capítulo 1

As relações entre autor e editor no jogo entre


memória e história:
as duas edições de Compêndio da história do Brasil,
de José Inácio de Abreu e Lima,
no ano de sua publicação*

Selma Rinaldi de Mattos **

Logo após a maioridade de d. Pedro II, José Inácio de Abreu e Lima tomou a
decisão de “formar um compêndio” e assim o fez, publicando Compêndio da
história do Brasil, em 1843.
No prefácio do Compêndio, o autor expôs suas intenções para elaborar,
no seu próprio dizer, “o primeiro Compêndio da História do Brasil”. A primeira
delas era fazer algo que pudesse ser usado pela “mocidade Brasileira” e a segunda,
contribuir para a formação de “uma literatura propriamente brasileira”.
É à segunda intenção que o autor parece dar maior atenção. Assim, para o
pernambucano Abreu e Lima,

um país, que apenas conta vinte anos de existência como nação, não pode ter literatura
propriamente sua; porque nos primeiros desenvolvimentos da inteligência não é dado
tocar a perfeição, que se requer nas obras do espírito humano. Todas as nações
existiram anos e séculos antes de possuírem uma literatura própria; e só depois da
introdução das artes e das ciências é que cada povo as vai apropriando e desenvolven-

* Este texto é uma versão ligeiramente modificada de parte do capítulo 2 de minha tese de
doutorado — Para formar os brasileiros: o Compêndio da história do Brasil de Abreu e Lima
e a expansão para dentro do Império do Brasil, defendida em 2007, no Programa de Pós-
Graduação em História Social da FFLCH-USP.
** Professora do Departamento de História da PUC-Rio.

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32 A história na escola

do segundo o caráter nacional, e formando deste modo o pecúlio de suas doutrinas e


fatos. Assim foi que as artes precederam as ciências, que a crônica precedeu a história,
porque começou-se pela prática e acabou-se pela teoria.1

A intenção era expressa com clareza, o que não impedia que fosse polêmica,
porque nem todos os componentes da boa sociedade imperial concordavam com
a opinião do autor pernambucano a respeito da inexistência de uma “literatura
brasileira”.2
O autor desejava contribuir, prestar um serviço à pátria, escrevendo um
livro — um livro de história pátria. Para fazê-lo, declara ter usado em grande
parte obra alheia, ter feito recompilações, extratado, copiado. Mas destaca ter,
em primeiro lugar, averiguado e ordenado os fatos, organizando-os em séries
divididas por épocas. Cada época com uma cor que a diferenciasse das demais.
Mas se um prefácio é uma apresentação que convida à leitura, é também,
em não raras oportunidades, o ponto de partida de indagações, que logo se trans-
formam em questões, quer para os contemporâneos, quer para nós próprios,
hoje. A exposição feita por Abreu e Lima de uma de suas intenções suscitaria
ontem, como hoje, discussões a respeito da produção historiográfica e do lugar
de seu texto quando do surgimento de uma historiografia brasileira. Nesse mo-
mento, porém, outro tipo de questão me interessa em particular, a partir do
próprio texto do “Prefácio”, aguçando-me a curiosidade.
Afinal, não deixa de ser intrigante que a primeira intenção do autor ao
elaborar o Compêndio seja apresentada com uma simples frase — “formar — um
Compêndio da História do Brasil — para uso da mocidade Brasileira” —, em
flagrante contraste com a alentada exposição sobre a segunda delas, que se desdo-
bra na explicação de como a concretizou.
Procuro compreender as razões de tal assimetria, se é que tais razões existi-
ram, uma vez que a referência “para uso da mocidade Brasileira”, ou algo equiva-
lente, não era incomum à época.3 Para tanto destaco duas circunstâncias que, em

1
Abreu e Lima, 1843, t. 2, p. v-vi.
2 Cf., entre outros, Souza, 2007.
3Como um exemplo, entre inúmeros outros, ver “Resumo das instituições políticas do barão
de Bielfeld, parafraseadas e acomodadas à forma atual de governo no Império do Brasil,
oferecido à mocidade brasiliense por um seu compatriota pernambucano”, apud Holanda,
1966. Utilizo-o como exemplo pela significativa referência a uma “mocidade brasiliense” feita
por um “compatriota pernambucano”.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 33

um intervalo de tempo de três ou quatro anos, em muitos momentos se cruza-


ram. A primeira vincula-se ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
fundado em 1838; a segunda, aos editores.
Abreu e Lima orgulhava-se de pertencer ao “Instituto” desde 1839. Então,
se não sabia, pelo menos talvez sentisse ser aquele o “lugar” — embora não exclu-
sivo — onde começavam a ser forjados muitos dos elementos simbólicos que
possibilitariam a consolidação da ordem monárquica, sob uma direção determi-
nada. Procurava participar, ou pelo menos acompanhar, as discussões e reflexões
então predominantes entre seus membros, referidas em larga medida ao “fim e
objeto” da instituição. Discussões e reflexões que, quase inevitavelmente, se des-
dobravam nas questões referentes tanto aos “períodos” quanto a “como se deve
escrever a história do Brasil”. A primeira — proposta pelo cônego Januário em 1o
de dezembro de 1838, sob a forma de um “programa” para “determinar as verda-
deiras épocas da história do Brasil, e se essa se divide em antiga e moderna, ou
quais devem ser suas divisões” — tendeu a seguir as indicações do brigadeiro
Raimundo José da Cunha Matos, que propunha uma periodização em “três épo-
cas” — a primeira relativa aos aborígines; a segunda sobre as eras dos descobri-
mentos pelos portugueses e da administração colonial; e a terceira abrangendo
acontecimentos desde a emancipação política.4 A segunda, a que dizia respeito a
“como se deve escrever a história do Brasil”, desaguaria na proposição, também
feita pelo secretário perpétuo, de um concurso público. Como é sabido, na avalia-
ção dos sócios efetivos do IHGB, a questão foi respondida por Karl Friedrich
Philip von Martius, que se apresentava como “um autor filosófico, penetrado das
doutrinas da verdadeira humanidade, e de um cristianismo esclarecido”.5 Tendo
por título a questão que motivara o concurso, a Memória de von Martius era
datada de 10 de janeiro de 1843 — o mesmo ano da edição do Compêndio.
Todavia, entre as duas proposições do cônego Januário — a referente à
periodização e a que resultou na Memória de von Martius —, um acontecimento
talvez ajude a compreender a decisão de Abreu e Lima de “formar” um compên-
dio e, mais do que isso, a tímida menção a sua primeira intenção no “Prefácio”,
que abriu caminho para a segunda trajetória. Um acontecimento que nem sem-
pre tem merecido a atenção dos estudiosos, algo até certo ponto também intri-

4 Matos, 1863:121-143. Ver também Rodrigues, 1957:152-181.


5 Mattos, 2000:67.

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34 A história na escola

gante. Foi na sessão de 8 de fevereiro de 1840 que Justiniano José da Rocha — que
ainda não redigira o panfleto “Ação, reação, transação” que o tornaria conheci-
do — deu ciência aos membros do instituto que fora nomeado pelo governo para
lecionar um “curso de História Pátria” no Imperial Colégio de Pedro II, criado no
mesmo ano da fundação do IHGB. “Achava-se embaraçado” por não existir ain-
da um “bom compêndio da História do Brasil por onde se pudesse orientar [...] a
fim de preparar as suas lições”, razão pela qual propunha a nomeação de uma
comissão especial para “organizar um Compêndio”. Discutida a proposta, o cô-
nego Januário não lhe foi favorável. Mesmo assim uma comissão foi formada com
aquela finalidade, mas dela nada resultou.
Ora, muito provavelmente a proposta de Justiniano ecoava as preocupa-
ções de Bernardo Pereira de Vasconcelos, o formulador do Regresso Conserva-
dor. Verdadeiro criador do Imperial Colégio de D. Pedro II, preocupava-o a
inexistência de compêndios para uso dos alunos, inclusive de história pátria, quer
fossem redigidos por autores brasileiros, quer fossem a tradução de compêndios
estrangeiros. Às preocupações de Vasconcelos somavam-se os esforços dos diri-
gentes saquaremas no “laboratório” da província fluminense com objetivo idên-
tico e pela mesma época.6
O pernambucano Abreu e Lima muito provavelmente de tudo isso tinha
conhecimento, e a tudo isso não se mostraria indiferente. À sugestão de um plano,
contraporia um livro; às intenções do cônego Januário contrapunha as suas,
materializadas no Compêndio da história do Brasil.
Contudo, talvez valha a pena lembrar que, embora se afastando das inten-
ções de Januário, Abreu se aproximava da proposta de Justiniano. Composto de
um texto principal, complementado por notas e copiosa documentação, esta re-
ferida particularmente ao segundo tomo, o “texto” do Compêndio parecia que-
rer atender mais aos interesses do professor Justiniano (“um bom compêndio da
História do Brasil por onde se pudesse orientar [...] a fim de preparar as suas
lições”) do que às preocupações do ministro Vasconcelos; parecia dirigir-se mais
ao professor do que aos alunos. Todavia, no “Prefácio”, o autor não deixa de
afirmar ser o possível uso pela “mocidade Brasileira” que o teria mobilizado a
“formar” sua obra. Uma intenção que parece ter sido definida não só por decisão
própria, mas sobretudo por sugestão e incentivo de outrem: em suas próprias

6 Mattos, 2000:79-80; e Mattos, 2003:238-265.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 35

palavras, “devo antes declarar que a obra, que dou à luz, não é lembrança
minha”.7 Sugiro, neste ponto, que a lembrança para a formação de um com-
pêndio tenha partido do editor — ou “editores”, isto é, Eduardo e Henrique
Laemmert —, que certamente não tinha seus olhos voltados para o IHGB, como
estavam os do autor.
Parecendo oscilar, pelo menos à primeira vista, entre os professores e a
mocidade brasileira, mas afinal a ambos contemplando, a intenção de Abreu
colocava em posição de destaque uma “lembrança” que atribuo ao editor.8 A
ênfase nas relações entre autor e editor permite destacar outra intenção — a do
editor —, que por sua vez possibilita pôr em evidência um terceiro personagem
— o leitor. Para tanto, avanço um pouco no tempo.
Quando, quase duas décadas após a edição do Compêndio, Joaquim Ma-
nuel de Macedo redigiu as suas Lições de história do Brasil para uso dos alunos do
Imperial Colégio de Pedro II, no próprio título tornava explícito a quem dirigia
o seu texto, destacando o caráter de manual escolar de sua obra. As duas décadas
que separam as obras de Macedo e Abreu e Lima recomendam alguma cautela em
qualquer exercício de comparação entre ambas; todavia, não apagam as diferen-
ças entre os leitores que os dois autores tinham em vista: “alunos”, no caso de
Macedo; “a mocidade Brasileira”, no de Abreu e Lima. Assim, em Macedo, a
identificação dos “alunos” como leitores pressupõe uma relação pedagógica e
uma instituição específica, além de um programa da disciplina fixado pelo estabe-
lecimento padrão do Império, algo aparentemente distante das preocupações e
da prática de Abreu e Lima, que parece muito mais operar com a representação
de uma “idade da vida” — uma mocidade que, se já não era o “menino-diabo”,
caracterizado por Gilberto Freyre,9 ainda não se tornara plenamente adulta, mas
logo deveria se tornar. Contudo, uma mocidade que, em não raras ocasiões,
apresentava-se como a metáfora da nação brasileira, também em sua mocidade:
“...um país que apenas conta vinte anos de existência como nação”. Ora, nesse
caso, o valor simbólico que, então, os componentes da boa sociedade imperial
passaram a atribuir a um livro de história pátria fazia com que o conjunto cons-

7 Abreu e Lima, 1843, t. 1, p. viii.


8Há indícios bem plausíveis que possibilitam tal conclusão, mas os limites deste texto não
permitem sua exploração.
9 Freyre, 1968:68-70.

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36 A história na escola

tituído por determinada “idade da vida” fosse ultrapassado em muito por um


outro, o que se manifesta no caso do Compêndio, conforme pode ser visto, na
lista de subscritores da primeira edição. Ademais, falavam de lugares diversos:
como professor do Colégio de Pedro II, o autor de A moreninha dirige-se a um
leitor-aluno; querendo estar no IHGB, Abreu e Lima dirige-se a um leitor-moço.
Expressavam, assim, intenções distintas, que acabariam por determinar os luga-
res marcadamente diferentes em que se situavam: ao privilegiar um dos elementos
de uma relação específica no estabelecimento escolar, as Lições de Macedo inevi-
tavelmente situavam-se na interseção dos espaços do Estado e da casa, destacando
as sempre tensas relações entre instruir e educar; já o Compêndio, ao reafirmar
para a “mocidade Brasileira” o projeto emancipacionista de seu autor, situava-se
na interseção dos espaços do Estado e da rua.10
A importância, o valor e até mesmo as polêmicas que suscitou garantiriam
uma longa trajetória ao livro de Abreu e Lima. Às razões dessa longa trajetória
devem ser acrescentadas, sem sombra de dúvidas, o papel dos editores, embora
nem sempre lhes tenha sido dado o destaque devido.
Tento recuperar algumas das ações empreendidas pelos Laemmert, come-
çando pela edição inicial, publicada em dois tomos. O segundo tomo chama a
atenção do leitor de imediato e quase inevitavelmente, pois o sétimo e o oitavo
capítulos, dedicados, respectivamente, aos períodos de 1821-1831 e 1831-1841,
abrangem 138 páginas; a eles sucede um “Índice cronológico da história do Bra-
sil”, com cerca de 32 páginas. Em uma espécie de anexo, com numeração própria
de páginas, encontram-se documentos apensos ao Compêndio da história do
Brasil, ocupando 188 páginas, e o “Índice das matérias contidas no segundo volu-
me”. Mas o tomo não se encerra aí! Nas páginas seguintes, também com numera-
ção própria, aparece uma “Lista dos senhores subscritores”; em seguida, o que se
poderia chamar de um anúncio do próximo livro de Abreu e Lima — um Com-
pêndio da história universal: desde a mais remota Antiguidade até aos nossos
dias, com local e data: “Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1843”; e, por fim, um
“Aviso ao encadernador”, referente à “colocação das estampas” em cada um dos
tomos.
Os nomes de mais de mil subscritores apareciam arrolados, em ordem alfa-
bética, ao longo de 31 páginas. Nomes como o de Luiz Pedreira do Couto Ferraz,

10 Mattos, 2003:103-121.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 37

Domingos José Gonçalves de Magalhães, Rafael Tobias de Aguiar, José Maria da


Silva Paranhos, Gonçalves Ledo, Lopes Gama, Paulo Fernandes Vianna, Conrad
Jacob de Niemeyer, José Martiniano de Alencar, Justiniano José da Rocha (pode-
ria ele deixar de ser um “subscritor”?) e quantos mais revelavam o prestígio do
autor e a curiosidade que a obra despertava. Pertenciam todos, certamente, à boa
sociedade imperial e, longe de representar a mocidade brasileira, garantiam ao
autor o sucesso da edição. E também aos editores!
Outra talvez não fosse a expectativa dos editores. Afinal, tinham se esforça-
do para tanto, quer buscando subscritores, quer afirmando enfaticamente as qua-
lidades do autor, ainda que por caminhos indiretos. Ora, naquilo que identifico
como uma espécie de “anúncio” do próximo compêndio de Abreu e Lima, são
destacadas as qualidades de historiador do autor, as quais, evidentemente, não
podiam deixar de estar presentes na formação do Compêndio. Ali vinha dito, a
respeito do próximo Compêndio de história universal, que

nesta obra só o plano de outro autor, o do célebre historiador Bredow, foi inteiramen-
te seguido; todo o mais trabalho e mais custoso é inteiramente novo, e, apesar de
árduo, bem acabado. O autor, ajudado dos dotes de verdadeiro historiador, que
sobejamente possui, extratou dos melhores escritores o bom; verificou o duvidoso;
emendou o errado; e acrescentou muita informação, principalmente sobre a América,
que ele próprio em suas viagens colheu, e guardou com apurada crítica.11

Um recurso inteligente permitia atribuir valores positivos a ambos os com-


pêndios ao se apresentar com destaque a avaliação do autor comum — um “ver-
dadeiro historiador”. Uma avaliação que, no que se refere ao Compêndio, ante-
cipava-se à avaliação do IHGB.
Todavia, o sucesso da primeira edição parecia pouco aos editores, tendo em
vista suas intenções. No mesmo ano de seu lançamento, uma segunda edição do
Compêndio veio à luz. Não era uma simples reimpressão. A primeira edição —
não custa recordar — era apresentada em dois tomos. O texto principal era cons-
tituído de uma “Introdução” e oito capítulos ou “épocas”, complementados por
alentadas notas de pé de página e a transcrição de inúmeros documentos. Sete
“estampas” ou retratos davam relevo a personagens (cinco no primeiro tomo:
“D. Pedro I, no frontispício”, “Cristóvão Colombo, em frente da pág. XVI da

11 Abreu e Lima, 1846-1847.

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38 A história na escola

introdução”, “Cabral, em frente da pág. XX da introdução”, “Camarão, em fren-


te da pág. 170” e “Henrique Dias, em frente da pág. 184”; e outras duas no segun-
do: “D. Pedro II, no frontispício” e “José Bonifácio, em frente da pág. 20”, de
acordo com o “Aviso ao encadernador”), além de um índice cronológico detalha-
do. A segunda edição, por sua vez, aparecia em um único volume, de 359 páginas,
sem muitas das notas da edição anterior (de um total de 99 notas, apenas 17
permaneceram) e sem os documentos. Para assinalar de maneira expressiva as
diferenças entre ambas as edições do mesmo ano, os editores acrescentaram uma
“Advertência”, que não deixava dúvidas sobre suas intenções:

Advertência

Publicamos a presente edição do Compêndio da História do Brasil, pelo General José


Inácio de Abreu e Lima, dedicado a S.M.I., por julgarmos que uma edição em forma
pequena concorrerá muito para vulgarizar a sua literatura, principalmente pela como-
didade do preço, pois formando esta obra dois grossos volumes, pelas muitas Notas
e Documentos, e com sete Estampas muito finas, necessariamente havia de ter um
preço subido e por conseqüência menos acessível; também julgamos mais adequadas
para os COLÉGIOS e para toda a Mocidade Brasileira uma edição que pelo volumoso
não intimidasse os jovens leitores; e assim suprimiram-se nesta todas as Notas não
absolutamente indispensáveis, e todos os Documentos; o que, sem diminuir a profí-
cua instrução que a Mocidade deve colher sobre a História pátria, abrevia um pouco
a leitura, torna o livro mais manual e diminui consideravelmente esta indispensável
despesa.

Os Laemmert

As intenções dos editores eram claras: ampliar o número de leitores de uma


obra que se mostrava promissora. E esperavam alcançá-lo tanto barateando o seu
custo quanto procurando tornar mais acessível e fácil sua leitura por um número
maior de “jovens leitores” — exatamente nessa ordem. Definiam-se nitidamente as
relações entre autor e editor, sob os olhos vigilantes do imperador, a quem a obra
— e os editores não se furtavam de dizê-lo com todas as letras — era dedicada.
A busca, pelos editores, de um público-leitor diverso e até certo ponto
novo constituía tarefa árdua, a começar por seu número ainda extremamente
restrito. De acordo com Laurence Hallewell, em 1847, apenas 1.352 crianças esta-
vam matriculadas nas 25 escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, das quais

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 39

oito eram para meninas, e mais ou menos 4 mil em escolas privadas, de uma
população total em idade escolar de 14.300 crianças. O quadro não era muito
diverso em Minas Gerais: 5.853 crianças em escolas primárias públicas, 233 em
escolas privadas e 345 em escolas secundárias. Já em Pernambuco, existiam 80
professores primários (dos quais 64 eram homens) e apenas sete professores se-
cundários.12 Todavia, a adoção da nova edição no Imperial Colégio de D. Pedro
II parecia compensar os seus esforços de adequação, sobretudo se considerarmos
o valor e o peso simbólicos dessa adoção. Ali, o Compêndio da história do Brasil
só encontraria concorrente nas Lições de história do Brasil de Joaquim Manuel de
Macedo, editadas entre 1861 e 1863. Conscientemente, os editores contribuíam
para a criação de uma nova categoria de livros, no movimento contraditório
daquilo que alguns já denominaram “nascimento da escola moderna” no mundo
ocidental.13 E faziam-no por meio de uma intervenção deliberada, que não deixa-
ria de marcar as relações que entretinham com o autor.
Ora, de acordo com Abreu e Lima, a intervenção dos editores, por ele
acatada, e da qual resultaria a segunda edição da obra no mesmo ano de 1843,
não fora a primeira. Ao responder a uma das críticas feitas por Varnhagen em
“Primeiro juízo”14 a respeito das sete estampas ou retratos que ilustravam a obra,
Abreu e Lima recorda que “a lembrança dos retratos não foi minha, mas dos
editores”. Como é sabido, imagens sob a forma de estampas ou outra qualquer
era coisa pouco comum em livros editados no Império em meados do século XIX,
bastando lembrar que as Lições de Macedo, editadas 19 anos mais tarde e sob os
auspícios do IHGB, não as possuíam.
Embora sustente ter aprovado a introdução das estampas, havia ficado
desgostoso com o anacronismo produzido pelo desenhista: “só senti que no ves-
tuário se não tivesse guardado a verossimilhança pelo daquela época e não de um
século depois”.15 Todavia, a insatisfação do autor não fora suficiente para que
fosse efetuada a correção da indumentária dos personagens.

12Hallewell, 1985:144. O autor retirou seus dados do Annuário político histórico e estatístico
do Brasil para 1847, de Firmin Didot. Ao observar que aqueles eram os dados mais antigos
por ele obtidos sobre a educação brasileira, não deixa de constatar que eram, “infelizmente,
muito incompletos”.
13
Cf., entre muitas outras possibilidades, Lehembre, 1989.
14 Varnhagen, 1844:60-83.
15 Abreu e Lima, 1844:36.

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40 A história na escola

Assim, os retratos para a edição em dois tomos foram propostos pelos


editores; e por eles também retirados da edição seguinte, conforme visto há pou-
co. De qualquer modo, não é improvável que o autor não apenas tenha aprovado
a ideia dos Laemmert, mas também participado da escolha dos personagens a
serem representados, os quais deveriam compor um panteão nacional.
É interessante observar que alguns dos retratos — como é o caso daquele de
Henrique Dias — continuariam sendo considerados, pelos tempos afora, repre-
sentações historicamente adequadas e escolhidas pelo autor e, assim, “verdadei-
ros”. Em “Governador dos negros, crioulos e mulatos”, Hebe Mattos ressalta o
fato de Abreu e Lima antecipar, no que a autora julga ser o “primeiro Manual de
história do Brasil”, a “representação do comandante negro que se tornaria pre-
dominante até bem avançado o século XX”. Uma antecipação que escapava ao
silêncio então prevalecente, “já que durante o período monárquico a presença
africana na formação do povo brasileiro foi preferencialmente silenciada na maio-
ria das representações oficiais”.16
O papel representado pelos Laemmert pode ser avaliado ainda pela leitura
da parte final da Resposta ao primeiro juízo, redigida por Abreu e Lima. Nela, ao
responder ao questionamento irônico feito por Varnhagen sobre uma possível
contribuição do Compêndio para a melhoria “[d]o estado (nem por isso tão
feio) em que nos achávamos”, Abreu e Lima argumenta também com ironia,
recorrendo a uma recordação:

Não sei se melhoramos, nem a mim cabe dizê-lo; porém o que posso asseverar-lhe é
que os editores disseram uma verdade, que o mesmo Sr. Varnhagem acaba de confir-
mar. Era doloroso ver, dizem os editores, que a História do Brasil se tivesse tornado
uma especulação estrangeira.17

Ironias à parte (não é possível esquecer que, por ser filho de estrangeiros,
Varnhagen era considerado por muitos um estrangeiro), os indícios a respeito da
participação dos editores em diferentes momentos da história do Compêndio
permitem perceber uma faceta de Abreu e Lima nem sempre valorizada por seus
contemporâneos: a abertura ao diálogo, reveladora de uma cordialidade. Ainda
assim talvez seja importante não esquecer que o acréscimo das estampas proposto

16 Hebe Mattos, 2006:72-76.


17 Abreu e Lima, 1844:117.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 41

pelos editores em nada alterava a intenção de Abreu e Lima, talvez mesmo a


reforçasse, uma vez que a obra permanecia guardando, antes de tudo, o caráter
de “epítome, resumo do mais substancial, ou das noções elementares de alguma
arte, ciência, ou preceitos”, de acordo com a definição de Moraes e Silva,18 o que
permitiria a seu autor estar no IHGB. Já as subtrações levadas a cabo pelos
Laemmert na segunda edição, dando ao livro, por metonímia, o caráter de “livro,
esp. escolar, que enfeixa tal resumo <um c. de geografia>”, de acordo com Houaiss,
iam ao encontro das intenções destes — isto é, dos editores — , que passavam a
“estar mais próximos dos colégios”. Ora, desse jogo de intenções a um só tempo
complementares e contraditórias resultaria algo incomum: tendo tido duas edi-
ções no ano de seu lançamento, ao Compêndio eram atribuídas intenções diver-
sas em cada uma delas. Se aos editores interessava um livro escolar — ou um
“compêndio para a instrução pública”, como algum tempo depois tornar-se-ia
comum dizer, que pressupunha um leitor específico, o aluno —, essa não era a
intenção ou preocupação do autor, razão pela qual talvez seja necessário guardar
certa cautela ao se atribuir a Abreu e Lima a autoria do primeiro livro didático de
história do Brasil!
Ainda que Abreu e Lima afirme que “antes quis passar por simples cronista
do que por historiador”, o Compêndio e seu autor tiveram reconhecidos o seu
lugar por um avaliador rigoroso e insuspeito. Ao fazer o necrológio de Francisco
Adolfo de Varnhagen, o cearense Capistrano de Abreu afirmou que a História
geral do Brasil do sorocabano só era inferior à História do Brasil de Southey, e
acrescentou logo em seguida: “nenhum brasileiro lhe pode atualmente ser com-
parado”. Assim, abaixo de Varnhagen situavam-se Pereira da Silva, Melo Morais
e Abreu e Lima no panteão dos formadores dos “estudos históricos” no Brasil. Do
último diria Capistrano de Abreu: “Abreu e Lima é um compilador, inteligente, é
verdade, mas já antiquado quando apareceu sua obra, muito mais agora que
sobre ela passaram mais de quarenta anos de estudos históricos”.19
Mas quem eram esses editores que, com suas intenções, atribuíram valor
diverso a um livro? Dos dois irmãos Laemmert, Eduard foi o primeiro a chegar ao
Brasil, enviado pelo editor Bossange, com quem trabalhava em Paris havia mais

18 Moraes e Silva, 1813.


19Abreu, 1975 (artigo publicado originariamente no Jornal do Commercio, de 16 a 20 de
dezembro de 1878).

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42 A história na escola

ou menos dois anos. Aos 21 anos de idade, o jovem natural do grão-ducado de


Baden chegou ao Rio de Janeiro com a incumbência de estabelecer uma filial.
“Esta viria a ser uma sociedade entre Eduard Laemmert, representando Bossange,
e um português chamado Souza, representando J. P. Aillaud”,20 outro editor-
livreiro francês. Desde então, e até o término do contrato, em 1833, ele foi o
responsável pelo andamento dos negócios daquela editora na Corte. Interessado
em continuar a viver no Brasil, Eduard resolveu se casar e fixar residência na
capital do Império, iniciando seu próprio negócio: a Livraria Universal, situada
na rua da Quitanda, no 77. Ao mesmo tempo, passou a insistir com o irmão para
que também viesse para o Brasil, o que teria acontecido por volta de 1835. Três
anos depois, ambos inauguravam uma nova sociedade — “Eduard e Heinrich,
mercadores de livros e música” e, ainda em 1838, a tipografia — a Typographia
Universal —, na rua do Lavradio, no 53.
O sucesso do empreendimento foi quase imediato, a maioridade da firma
quase coincidindo com a maioridade do segundo imperador. Os Laemmert ga-
nharam fama e dinheiro como livreiros e editores. Além de publicar livros, “guias
de bolso e outras publicações semelhantes, produzidas rapidamente para atender
à demanda do mercado”, de acordo com Hallewell, eles passaram a editar, a
partir de 1839, uma folhinha anual e, a partir de 1844, o Almanack administrati-
vo, mercantil e industrial da corte e província do Rio de Janeiro, que muito rapi-
damente passou a conter informações de todo o Império, tornando-se o famoso
Almanack Laemmert.21
Durante o denominado “apogeu do Império”, os Laemmert só encontrariam
rival em outro editor e livreiro: Baptiste Louis Garnier. Em fins dos anos 1870, as
livrarias de ambos situavam-se na rua do Ouvidor, uma quase em frente da ou-
tra.22 Se recupero aqui a figura de B. L. Garnier — “o Bom Ladrão Garnier”,
como gostavam de brincar os contemporâneos — é porque um episódio de sua
vida contribuiu para a minha argumentação. Ao requerer ao governo do Impé-
rio a concessão do título de oficial da Ordem Imperial da Rosa, que acabou por
obter em 1867, aquele que já era não só o mais importante editor do Império do

20 Hallewell, 1985:161.

21 Ibid., p. 162-163.
22Em fins dos anos 1860 a Livraria Universal foi transferida para esse novo endereço, ao passo
que a tipografia do mesmo nome mudou-se para a rua dos Inválidos.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 43

Brasil mas também o principal editor de livros escolares sublinhou em sua peti-
ção, entre outros serviços, que “muitos autores de diversas obras, e compêndios
para a instrução pública [...] têm encontrado no peticionário auxílio eficaz para
a realização de suas publicações”.23
Destaco o fato de Garnier apresentar-se como editor de compêndios para a
instrução pública. Ora, por sua função com um adjunto restritivo, a expressão
“instrução pública” demarcava, naquela oportunidade, um sentido diverso para
a palavra “compêndio”, entrevisto já nas intenções dos Laemmert em 1843, em-
bora não enunciado. Ela indicava algo novo, que ultrapassava a constatação da
existência de uma mercadoria nova. E o indicava ao mesmo tempo que revelava
como os compêndios para a instrução pública eram também um dos fatores
constitutivos de um movimento fundamental.24 À semelhança das “nações civili-
zadas”, também no Império do Brasil a constituição de um corpo político moder-
no, assim como dos sujeitos que ele contém pressupunham a “escola moderna”, e
tudo aquilo que lhe diz respeito, aí incluídos os manuais escolares — ou seja, os
compêndios para a instrução pública.
Um movimento que revelava sujeitos, representações e práticas novos, ao
mesmo tempo que transformava outros mais antigos — professores, alunos, ins-
petores; prédios e manuais escolares; autores, editores e leitores. Um movimento
que forjava palavras e expressões novas, e ressignificava outras. É o caso de didá-
tica: derivada do francês didactique — “que visa a instruir, que se relaciona ao
ensino”, da qual derivaram os termos didactiquement e didactisme em 1754 e
1860, respectivamente, de acordo com o Robert —, teria sido incorporada à lín-
gua portuguesa entre o final do Primeiro Reinado e o início do governo pessoal
do segundo imperador.25 O certo é que a palavra que designava a “ciência ou a
arte de ensinar” não era ainda suficientemente forte, nem se encontrava vulgari-
zada entre os letrados do Império do Brasil, ao tempo da petição de B. L. Garnier,

23 Hallewell, 1985:125 (grifo meu).


24 Koselleck, 1993:136. “Defendo a hipótese de que todo conceito é sempre concomitantemente

Fator (Faktor) e Indicador (Indikator). Todo conceito não é apenas efetivo enquanto fenô-
meno lingüístico; é também imediatamente indicativo de algo que se situa para além da
língua.”
25Le nouveau petit Robert, 1993:640. Houaiss e Villar, 2001:1036. Segundo Houaiss, em 1828
é que a palavra foi incorporada à língua portuguesa; segundo Antonio Geraldo da Cunha
(1986:263), tal teria ocorrido em 1844.

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44 A história na escola

para caracterizar ou denominar um produto novo: havia compêndios para a


instrução pública; não existiam ainda livros didáticos, pelo menos não como os
designamos e entendemos hoje.26
A nova “arte de ensinar” só seria assimilada pelos editores do Compêndio
em sua quinta edição, em 1882. Feita após a morte de seu autor, tal assimilação
tardia talvez fale também a respeito do próprio autor.27
Trinta e nove anos depois da primeira edição, apareceria aquela que seria a
última edição do Compêndio. Tudo leva a crer que os responsáveis pela editora
avaliassem que, na pior das hipóteses, pelo menos na província de Pernambuco a
obra de Abreu e Lima alcançaria público significativo. Uma outra “Advertência”
consta da quinta edição, cujo título foi adaptado para Compêndio da história do
Brasil pelo general José Inácio de Abreu e Lima; nova edição mais correta e conti-
nuada até nossos dias.28

26 Chopin (2004:549-566) observa que, “se hoje consideramos o livro didático um objeto
banal, um objeto tão familiar que parece inútil tentar defini-lo, o historiador que se interessa
pela evolução dos livros escolares — ou das edições escolares — depara, logo de início, com
um problema de definição”. Ainda que considere pertinentes as instigantes considerações do
autor, não me preocupa definir o que é um “livro didático”, hoje ou ontem. Parto do princípio
de que os autores que se dispõem a produzir um texto didático sabem o que pretendem fazer
e como devem fazê-lo, o mesmo podendo ser dito a respeito dos professores que se dispõem
a adotar um livro didático. Em outras palavras, proponho que se busque nas intenções de
autores e professores, evidentemente com pontos em comum e diferenciados, os elementos
que permitem identificar uma obra como didática, e o que se entende por tal em determinado
momento e circunstância. Assim, o surgimento da palavra “didática” entre nós não significa
o surgimento de livros didáticos de imediato, necessariamente. Conforme ensina Febvre
(1998:29), “não, a definição teórica não é de grande ajuda para nós, historiadores. Ela só
existe, a bem dizer, fora de nossos estudos. O que vale para nós é a história da palavra, e feita
com precaução. Saber se tal palavra é antiga na língua ou que, ao contrário, ela só surgiu
recentemente [...] uma palavra não data sempre, não data necessariamente de sua primeira
aparição em um texto [...] toda língua conta com palavras, numerosas e importantes, que
precisaram de décadas, se não de séculos, para carregar-se de sentido”.
27 Guiando-me pelas informações fornecidas pelos biógrafos de Abreu e Lima, assim como
por aquelas oferecidas por pesquisadores dedicados ao estudo do ensino da história no
Brasil, concluo que foram cinco as edições do Compêndio, das quais quatro ainda em vida do
autor. Todas foram feitas pelos mesmos editores, no século XIX. Todavia, nenhum traz a data
da terceira edição, sendo a quarta de 1852: ambas teriam mantido o mesmo formato in-8o e
um só volume. Talvez seja importante dizer que não encontrei qualquer evidência documental
da participação ativa de Abreu e Lima após as duas edições iniciais, o que me faz crer terem
sido elas de responsabilidade exclusiva dos editores.
28 A “nova edição mais correta e continuada até nossos dias” tem 431 páginas.

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 45

Advertência

Oferecemos ao público uma nova edição do Compêndio de História do Brasil, do


general José Inácio de Abreu e Lima dedicada a S. M. o Imperador.

Era primeiramente este Compêndio uma obra em 2 volumes, ornada de 7 estampas


finas e repleta de notas e documentos destinados a corroborar as asserções contidas
no texto, e não podia, quer por causa do tamanho, quer por causa do preço, aspirar à
circulação que tínhamos em vista conciliar em proveito da divulgação da história
pátria.

Como desejássemos tornar o conhecimento do passado do Brasil acessível ao público


em geral, e principalmente à mocidade estudiosa, tratamos de organizar, sob o ponto
de vista didático, o livro atual, que sem omitir fato algum importante torna-se reco-
mendável pela exposição clara e concisa de todos os acontecimentos que se deram no
Brasil. Reduzindo o formato pela supressão dos documentos e notas, que não afetam
a exposição da doutrina, foi-nos possível realizar uma extraordinária redução do
preço, que sobremodo aproveita aos pais de família e aos colégios.

Uma outra circunstância, para a qual chamamos a atenção do público, é a continua-


ção da exposição histórica até os nossos dias, confeccionada por um distinto literato
nacional. Era uma lacuna geralmente observada em todos os Compêndios de história
pátria que quando muito atingiram o período regencial e a inauguração do reinado
atual. Podemos afirmar que é a 1a vez que um livro escolástico se depara com a
narração breve e concisa dos feitos memoráveis que assinalam o longo e próspero
reinado de S. M. o Sr. D. Pedro II.

Os editores

Se, à primeira vista, a nova “Advertência” parece apenas reproduzir os


argumentos mais significativos da segunda edição, uma leitura mais atenta per-
mite constatar algo mais.
A palavra surgida recentemente na língua portuguesa — didática — mar-
cava sua presença de modo contundente na edição de 1882, sob a forma de uma
pretendida associação entre um “livro escolástico” e a apresentação da narrativa
histórica “sob o ponto de vista didático”. É difícil saber se, interessados em reali-
zar uma atualização e uma adequação, os editores percebiam a incompatibilida-
de entre aquele que, de acordo com as intenções e ações mencionadas, se tornara

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46 A história na escola

um compêndio para a instrução pública e a nova intenção de apresentá-lo como


um texto organizado “sob o ponto de vista didático”. Por certo outras razões
podem ser identificadas, mas nessa incompatibilidade reside, em larga medida, a
razão pela qual o Compêndio da história do Brasil de Abreu e Lima foi abando-
nando a companhia da “mocidade Brasileira” para se juntar aos textos formado-
res da história pátria, de acordo com o juízo de Capistrano de Abreu, no final do
século XIX. Após uma longa trajetória, a intenção original do autor do Compên-
dio parecia ter sido restaurada.
Mas é chegada a hora de falar de outro personagem: o encadernador. O
“Aviso ao encadernador” que aparece no final do segundo tomo do Compêndio
revela uma circunstância completamente estranha a nós, hoje: nos livros de en-
tão, as estampas e gravuras não eram impressas ao lado do texto e, sim,
reproduzidas em folhas individuais e soltas, que deveriam ser inseridas no livro
pelo encadernador posteriormente, não raro após a venda. O “Aviso” do editor
revela não só o ofício do encadernador, mas também sua situação entre as inten-
ções do autor e do editor, expressas aqui no local indicado para cada uma das
estampas. E ainda algo mais.
As pesquisas no IHGB, no Núcleo de Documentação e Memória do Colé-
gio Pedro II (Nudom) e na Biblioteca Nacional, assim como um volume recebido
como presente, acrescentaram novas informações a respeito das edições, permi-
tindo algumas correções dos dados existentes, além de proporem uma espécie de
enigma.
Sob a forma de um presente ofertado por uma colega de ofício, chegou-me
às mãos um exemplar do primeiro tomo, também datado de 1843. Ele logo des-
pertou minha atenção por apresentar no frontispício d. Pedro II, no lugar que
deveria ser ocupado por seu pai, e por não apresentar qualquer outro dos cinco
retratos no corpo do texto. E mais do que isso: o retrato do segundo imperador já
não era o do jovem de 18 anos que figurava na abertura do segundo tomo da
edição princeps e, sim, a de um d. Pedro já homem maduro, muito provavelmen-
te às vésperas da Guerra do Paraguai. Ao que se apresentava como um enigma,
duas possibilidades de resolução pelo menos se ofereciam: ou a data da edição não
era exata, reproduzindo simplesmente a presumível nova edição a folha de rosto
da edição original, algo pouco provável porque somente naquele ano fora feita
uma edição em dois tomos, ou o novo retrato fora acrescentado posteriormente,
na encadernação da edição original. Se enigmas existem para serem resolvidos,
decidi-me por cotejar cuidadosamente o exemplar que me fora presenteado com

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As relações entre autor e editor no jogo entre memória e história 47

os existentes no IHGB, no Nudom e na Biblioteca Nacional, tendo concluído


serem todos idênticos no que refere ao texto principal, sem qualquer alteração
quer nas edições em um ou dois volumes, quer em 1843 ou em 1852. Se a segunda
hipótese parece se impor, a situação do encadernador se desloca, pondo em rele-
vo agora a relação entre o texto (isto é, o autor) e o leitor. Fora deste muito
provavelmente a decisão de proceder a uma substituição, por certo não no mo-
mento da edição do texto em 1843 e, sim, em outro bem posterior, quando o
triunfo da ordem imperial talvez já se mostrasse de modo pleno, expressando-se
na entronização da imagem serena de “O Senhor D. Pedro II. Imperador Consti-
tucional e Defensor Perpétuo do Brasil”, conforme a legenda. A homenagem ao
imperador não partia nem do autor nem do editor, mas de um leitor. No funda-
mental, a homenagem prestada sob a forma de uma estampa colocada em posi-
ção de destaque por decisão de um súdito brasileiro de d. Pedro II indicava o
triunfo de uma expansão para dentro, ao mesmo tempo em que dela permanecia
sendo um fator constituinte.
Tive em mãos outros exemplares da edição em dois tomos. Tendo exami-
nado cada um deles cuidadosamente, posso afirmar serem todos da mesma edi-
ção original: o texto é o mesmo, página a página; como não poderia deixar de ser,
são os mesmos os cadernos gráficos, cuja numeração aparece de modo quase
imperceptível ao pé da primeira página de cada um deles; e são os mesmos os
endereços da editora e da tipografia, anteriores às mudanças de local já referidas.
Mas há diferenças entre eles, instigando a imaginação. Em um dos exemplares, o
retrato de d. Pedro II, que deveria abrir o segundo tomo da primeira edição, foi
deslocado para a abertura do primeiro tomo e o seu lugar original preenchido
por outro retrato do imperador, já idoso, com longa barba branca. Nele ainda,
as demais imagens e a dedicatória ao segundo imperador foram suprimidas. Dife-
renças que dão destaque ao ofício do encadernador; todavia, é pouco provável
que este agisse por decisão própria. Instrumento também de uma censura, pois
era contrariada a intenção do autor de homenagear o primeiro imperador, o
encadernador revelava muito provavelmente a intenção de um leitor, que, ao
determinar a reordenação e/ou exclusão das estampas, demonstrava plenamen-
te, também nesse caso, o alcance de uma expansão para dentro.
Mas o que não deixa de chamar a atenção é que o resultado de uma expan-
são para dentro não implicava, pelo menos no caso particular da escrita e do
ensino da história pátria, a adoção irrestrita dos pressupostos estabelecidos pelo
IHGB. Afinal, como é sabido, as sucessivas edições do Compêndio não incorpo-

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48 A história na escola

raram as críticas feitas por Francisco Adolfo de Varnhagen no Primeiro juízo


redigido por solicitação do IHGB.
A recepção do Compêndio evidencia, assim, as idiossincrasias e tensões
existentes na boa sociedade imperial, não só no início dos anos 1840. Bastaria
lembrar que, pelo menos até o surgimento das Lições de Macedo, o Compêndio
obteve uma aceitação bem mais expressiva do que considera grande parte dos
pesquisadores. E ainda que a última edição do livro de Abreu e Lima ocorreu 21
anos após a primeira edição das Lições.
Assinalada por aplausos e censuras, a trajetória do Compêndio revela o
prestígio de seu autor e o público-leitor que cativava. A muitos o Compêndio se
apresentava talvez como uma compreensão alternativa da história do Brasil em
produção e divulgação pelo IHGB. Como que numa espécie de prova do que
insinuo, apareceu a Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da
história do Brasil, também de autoria de Abreu e Lima, editada em 1845. Ela
consta da lista dos livros aprovados pelo presidente da província de Pernambuco,
no edital do diretor-geral da Instrução Pública, publicado em 5 de agosto de
1851 no Diário de Pernambuco. Ou seja, após a derrota dos praieiros!

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Coração 49

Capítulo 2

Coração: um diário, vários tempos e algumas


histórias*

Rebeca Gontijo* *

Em 1891, a Livraria e Editores Alves & C. publicou Coração: diário de um meni-


no, uma edição brasileira do livro Cuore: libro per i ragazzi (1886), do escritor
italiano Edmondo De Amicis (1846-1908).1 Partindo da Itália, o livro viajou por

* Este texto foi elaborado a partir de estudo desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa
Oficinas de História, ligado ao Departamento de Ciências Humanas da Uerj e do Pronex —
Culturas Políticas e Usos do Passado, coordenado por Daniel Aarão Reis Filho (UFF). Agra-
deço a Angela de Castro Gomes por ter me sugerido a leitura do livro Coração. Uma primeira
versão foi apresentada no seminário Os Livros de História na Escola: Trajetórias e Usos,
ocorrido na PUC-Rio, nos dias 12 e 13 de abril de 2007. Uma versão reduzida foi apresentada
no seminário nacional Ensino de História: Memória e Historiografia, realizado na UFF (2 a 4
de junho de 2008), e no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (Porto, 19 a
23 de junho de 2008), onde foi incluída em seus anais.
** Professora do Departamento de História da UFF, com o apoio do Programa de Apoio a
Projetos Institucionais com a Participação de Recém-Doutores (Prodoc), da Capes; doutora
em história social pela UFF; membro do Núcleo de Pesquisas em História Cultural da UFF e
do grupo Oficinas de História, da Uerj.
1 O levantamento das edições brasileiras identificou o seguinte: 1891 (1a ed.), 1894 (4a ed.),
1920 (31a ed.), 1936 (36a ed.), 1940 (42a ed.), 1949 (44a ed.), 1954 (46a ed.), 1956 (47a ed.) e 1968
(53a ed.). A partir de 1892, as edições italianas ganharam ilustrações de Ferraguti, Nardi e
Sartorio. As edições da Francisco Alves não trazem ilustrações, a não ser na capa. Outro dado
sobre as edições é que o subtítulo original — libro per i ragazzi — não figura nas edições
brasileiras do século XX que foram localizadas. Ao longo da pesquisa utilizei duas edições: a
47a, tradução brasileira autorizada, feita a partir da 101a edição italiana por João Ribeiro,
lançada pela Editora Francisco Alves em 1956, e a edição francesa ilustrada, com tradução
de Piero Caracciolo, Marielle Mace, Lucie Marignac e Gille Pécout, além de notas e posfácio
de Gilles Pécout e dois ensaios de Umberto Eco, lançada em 2001.

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50 A história na escola

todo o mundo, sendo traduzido em mais de 10 idiomas e alcançando mais de 500


edições. Também inspirou filmes, novela televisiva, quadrinhos, esculturas etc.,
além de estar presente na memória de muitos leitores, como Manuel Bandeira,
Humberto de Campos, Paulo Mendes Campos, José Lins do Rego, Pedro Nava e
Zélia Gattai.2 Trata-se de um clássico do chamado romance de formação, 3
direcionado às crianças em idade escolar. Pretendendo “educar pelo coração”, o
livro é composto como o diário de um menino na escola, em que cada caso conta-
do corresponde a uma lição de vida, por meio da qual o pequeno narrador se
confronta com valores opostos. Simultaneamente, há os contos patrióticos, que
narram, de modo peculiar, a história da Itália no momento da Unificação (1859-
1871), além de um conjunto de cartas enviadas ao estudante por seus parentes.
No fim do século XIX e início do XX, a expressão livro de leitura servia para
designar as obras destinadas ao aprendizado da língua nacional e à aquisição de
conhecimentos e regras de moral considerados úteis à socialização do indivíduo.
Fundamentalmente, o livro de leitura dá ênfase à transmissão de valores, ideias e
concepções de mundo. Sua leitura deve ser, sobretudo, prazerosa, de modo a
despertar na criança o gosto pelo ato de ler.4 Ao lado dos compêndios dedicados
ao ensino dos conteúdos específicos de cada disciplina, constituíam o conjunto da
chamada literatura escolar nacional. Nas palavras de Manoel Bomfim e Olavo
Bilac, dois importantes autores de livros escolares da época:

Geralmente, os livros de leitura não passam de compilações de conhecimentos úteis, de


lições de coisas e de regras de moral. São um repositório, um indicador dos assuntos
que a criança deve aprender na escola e que o professor precisa ensinar. E assim deve

2 Sobre Coração, ver Bastos, 1998:31-50; Eco, 2001a e 2001b; e Pécout, 2001:357-483.
3 O romance de formação — tradução brasileira do termo alemão Bildungsroman — é um
gênero de narrativa que discorre sobre o processo de formação do indivíduo, compreendido
como o desenvolvimento gradativo de suas predisposições, paralelamente a sua socialização.
O livro Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1796), de J. W. Goethe (1749-1832), é um
dos principais exemplares do gênero. Georg Lukács (1885-1971) indica que a questão funda-
mental do romance de formação (ou de educação, conforme a tradução brasileira) é a crença
na possibilidade do desenvolvimento pleno da personalidade humana, no sentido da realiza-
ção dos ideais humanistas, no contexto da sociedade burguesa, caracterizada pela crescente
divisão social do trabalho. Seu conteúdo visa “a educação dos homens para a compreensão
prática da realidade”. Ver Luckács, 2006:592.
4 Sobre os livros de leitura, ver, por exemplo: Batista, Galvão e Klinke, 2002:27-47; e Oliveira

e Souza, 2000:28-32.

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Coração 51

ser — para os cursos elementar e médio. Aí, esse livro resume todos os outros: é o livro
único. Nos tempos atuais, nenhum professor digno desse nome põe nas mãos de um
aluno de qualquer desses cursos um compêndio de história [...]. O livro de leitura não
é um livro de consulta filológica, mas sim um modelo de elocução que ela imita, sobre
o qual calca a sua linguagem.5

O trecho citado afirma a importância do livro de leitura destinado a crian-


ças em idade escolar no início da República, quando a educação passou a ser vista
como meio privilegiado para o desenvolvimento da ideia de nação, contribuindo
para deslocar o debate sobre a formação da nacionalidade do plano dos
determinismos naturalistas para o plano histórico-social.6
Algumas obras, como Coração, contribuíram para a formação de gera-
ções de leitores, fornecendo elementos importantes para a construção daquilo
que André Botelho definiu — em seu estudo sobre um dos mais conhecidos livros
de leitura brasileiros, Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bomfim
— como “um léxico do Brasil nação”, assim como, supõe-se aqui, contribuíram
para a construção de uma chave de leitura acerca das relações sociais, do lugar
dos indivíduos na história (dos “grandes homens” aos homens anônimos, traba-
lhadores e crianças) e do papel do Estado na organização da sociedade, difundin-
do um ideário burguês. Tal chave de leitura mobilizou tanto sentimentos quanto
argumentos racionais. Razão e emoção conjugados por meio de uma escrita que
mistura realidade e ficção.7
A partir dessas considerações, o objetivo é compreender como um livro
italiano, na origem e nos conteúdos, contribuiu para a construção desse léxico e
dessa chave de leitura, vistos aqui como parte essencial de uma consciência histó-
rica, se, como propõe Jörn Rüsen, essa for entendida como “a soma das operações

5 Bomfim e Bilac, 1910:ix-xii.


6 Botelho, 2002; e Hansen, 2007.
7 Concordando com Botelho, defendo aqui a perspectiva de que a interpretação da literatura
escolar nacional na Primeira República como um meio de manipulação do imaginário social
e de difusão de um catecismo cívico em consonância com os valores da nova ordem política
do país não permite compreender esse produto cultural na sua complexidade. Nas palavras
de Botelho (2002:85), “ao enfatizar exclusivamente as funções sociais de produção e reprodu-
ção simbólica dos valores cívicos do Estado republicano, acaba obscurecendo seu caráter de
veículo do ideário burguês que, naquele momento histórico, estava associado às próprias
exigências práticas do Estado-nação”.

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52 A história na escola

mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução tempo-


ral de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencional-
mente, sua vida prática no tempo”.8 No caso do livro de De Amicis, as “operações
mentais” não são o único fator mobilizado na interpretação do mundo, da expe-
riência temporal e, consequentemente, na construção dessa consciência histórica.
O elemento principal parece ser aquele que simbolicamente está associado ao
órgão do corpo que dá nome ao livro, ou seja, o sentimento.
O texto a seguir está dividido em duas partes principais: a primeira procu-
ra situar o livro em múltiplos tempos e espaços, seguindo sua trajetória da Itália
ao Brasil; a segunda propõe seguir viagem livro adentro, buscando compreender
seus múltiplos usos do tempo e do espaço.

Um livro em vários tempos e espaços


Edmondo De Amicis nasceu em outubro de 1846, em Oneglia, na Ligúria, reino
do Piemonte-Sardenha, berço da unidade italiana. Viveu o processo de constru-
ção do Estado-nação — a chamada Unificação (em italiano, Risorgimento —
ressurreição) italiana —, marcado pelas guerras de independência contra a Áus-
tria e pelo esforço em promover a unidade territorial entre diferentes reinos, por
meio de movimentos revolucionários.9 Imerso no clima patriótico e nacionalista
de sua juventude, entrou na Escola Militar de Modena em 1863. A carreira militar
— sobretudo aquela dos suboficiais e dos oficiais subalternos — e o magistério no
ensino elementar e secundário eram vistos como os dois pilares da nação em
construção. Menos opção que necessidade, eram carreiras comumente valoriza-
das, sobretudo pelas famílias pobres.10
De acordo com Gilles Pécout, a trajetória de De Amicis foi marcada por
sua atuação como combatente do Risorgimento e por sua entrada no mundo
literário. Seus primeiros escritos versam sobre a vida militar, com ênfase na ques-
tão da honra do Exército em meio a batalhas perdidas.11

8 Rüsen, 2001:57.
9 Sobre o processo de construção da Itália como Estado nacional, ver Hobsbawm, 1998.
10 Pécout, 2001:361, 363.
11Pécout (2001:363-367) observa que a narrativa das derrotas militares ocupava lugar de
destaque na literatura do período, sendo possível identificar uma estética da derrota gloriosa,
dotada de força política e pedagógica. Era um evento doloroso, que, no entanto, não retinha

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Coração 53

Na década de 1870, De Amicis deu baixa no Exército (1871) e tornou-se


figura constante nos salões literários da aristocracia toscana. Dedicava-se ao jor-
nalismo e investia na carreira de novelista, escrevendo impressões de viagem. Foi
recebido como um autor dotado de estilo “simples, puro e imaginativo”, numa
época em que as descrições eram desvalorizadas como exemplos de escritos pro-
duzidos por quem não sabia inventar, imaginar, contar (narrar) ou pensar. Nes-
sa mesma época escreveu seus primeiros romances, colocando a infância e a escola
como temas principais. Associou-se ao editor Giuseppe Treves (1838-1904), em-
penhado na publicação de grandes coleções destinadas à educação popular, ins-
piradas por uma literatura inglesa que enfatizava o voluntarismo e o espírito de
iniciativa, por meio de fórmulas de autoajuda.12
Em 1878, De Amicis comunicou a seu editor o plano de escrever um livro
sobre a infância, guiado pela principal qualidade que ele mesmo julgava possuir:
o coração. Em 1883 publicou Os amigos (Gli Amici) e, três anos depois, Coração
(Cuore, 1886), redigido simultaneamente a outros dois livros: Il romanzo d’un
maestro (1890) e Sull’Oceano (1889).13
Defensor de várias causas — da pátria italiana à causa dos operários — e
guiado por várias fontes de inspiração, De Amicis, monarquista moderado, tor-
nou-se partidário de um “socialismo solidarista”. Na década de 1890, frequenta-
va o grupo em torno de Filippo Turati (1857-1932) — jornalista e político mar-
xista, defensor da utilização democrática das instituições surgidas com a Unificação
— e, em 1896, tornou-se membro do Partido Socialista Italiano, fundado em

a marcha da história. Nessa perspectiva, o Exército desempenhava uma missão pedagógica: a


difusão de uma imagem interclassista e solidária da sociedade nacional, construindo um
paralelo entre os valores militares e os patrióticos, entre os valores individuais e os familiares.
12 Pécout, 2001:368-378. A literatura de autoajuda chegou à Itália no fim do século XIX, por

meio de uma série de títulos que promoviam a associação entre um modo de vida anglo-
americano e um modo de vida nacional. Difundiam a ideia de construir a si mesmos e a
própria nação.
13 Em 1889, De Amicis embarcou no porto de Gênova rumo à América. Fez a viagem dos

imigrantes que serviu de base para a construção de um minucioso relato: Sull’Oceano (1889).
Sobre esse livro, ver Gambini (2006:264-296), que chama a atenção para a capacidade obser-
vadora de De Amicis, que, segundo ele, “reproduz com exatidão sociológica a estrutura social
italiana”, dividida entre a burguesia proprietária situada na primeira classe do navio, o estrato
médio (artesãos, pequenos comerciantes, trabalhadores qualificados) na segunda, e o
campesinato pobre na terceira.

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54 A história na escola

1892. Embora não fosse reconhecido como militante ativo, dedicava-se a produ-
zir textos de propaganda, divulgados no jornal Avanti! Critica sociale et lotta di
classe, que reunia intelectuais do partido. Nunca foi considerado um teórico do
socialismo, apesar de sua intensa atividade como propagandista e conferencista.
Seu nome aparecia entre os numerosos autores de literatura social envolvidos
com o PSI que defendiam a causa socialista sem abdicar de suas opções artísticas
ou abandonar temas sentimentais e valores familiares, vistos como pequenos-
burgueses.14
É possível afirmar que Cuore representa o apogeu da carreira literária de
De Amicis e também assinala a incorporação da temática social em seus escritos.
A partir de então, sua obra passou a ser marcada pela presença de três temas
interligados: a infância, a escola (a instrução) e o engajamento socialista, obser-
vando-se o empenho em associar textos de ficção e literatura de propaganda po-
lítica (ou “pedagogia política”).15
Concordando com a interpretação de Pécout, é possível dizer que a vida e
a obra do autor de Coração são representativas de uma trajetória política e in-
telectual coerente com o contexto da Itália do Risorgimento e de seu futuro imediato,
marcado pela crítica aos rumos do liberalismo.16
É difícil medir a fortuna crítica de qualquer livro. É certo que Coração,
lançado no início do ano letivo italiano de 1886 como um “livro de leitura para as
crianças”, contou com o apoio de uma revista muito popular, cujo dono era
Treves, seu editor: a revista L’Illustrazione Italiana, responsável por seu lança-
mento comercial. Desde então, teve várias reedições na Itália, sendo lembrado
como uma das primeiras obras destinadas à criança que a colocou como protago-
nista e também como narradora.
Cabe lembrar que a literatura infantil floresceu entre os séculos XVII e
XIX, em concomitância com a construção da noção de infância e de um modelo
de família que atribuía grande valor à privacidade e aos laços afetivos entre seus
membros. Cresceu também na medida da afirmação do indivíduo como ser autô-

14 Pécout (2001:372, 377) lembra que os funerais de De Amicis, em Turim, em 1908, reuniram
grande multidão, contando com a participação dos socialistas vestidos com camisas verme-
lhas. Na opinião de Maurizio Ridolfi, seus funerais representam “a apoteose do socialismo
italiano que assume um caráter nacional” (apud Pécout, 2001:377).
15 Ibid., p. 371-372.
16 Ibid., p. 378.

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Coração 55

nomo, consciente e empenhado na construção de si. Daí a compreensão de que


esse indivíduo-sujeito deve ser formado mediante o desenvolvimento de uma
interioridade, base para a construção de uma identidade individual e social, as-
sim como para a construção de um projeto de vida.17
Outro aspecto a ser destacado é que a instituição escolar começou a se
instalar na Europa ocidental dos séculos XVIII e XIX, difundindo a ideia de ensi-
no obrigatório e criando a demanda por livros destinados à educação de crianças
e jovens.18 A literatura destinada às crianças também se afirmou em meio à ex-
pansão dos nacionalismos do século XIX, sendo notável a associação entre a edu-
cação infantil e a construção de identidades nacionais. Em um contexto marcado
pela difusão de uma pedagogia cívica voltada para a formação de cidadãos, os
escritos destinados a crianças e jovens conquistaram espaço em jornais, revistas e
editoras.
Como foi dito no início, Coração chegou ao Brasil em 1891, ou seja, cinco
anos após a primeira edição italiana. Foi recebido e apresentado como uma “obra-
prima dos livros de leitura”, sendo notável sua influência sobre a literatura infanto-
juvenil brasileira produzida ao longo da Primeira República e sua presença entre
os livros mais vendidos do país nas décadas de 1920 e 1940.19
O início da literatura infanto-juvenil no Brasil, no fim do século XIX, é
caracterizado pela prática de adaptar textos europeus à linguagem brasileira. O
mesmo ocorria com as obras destinadas à escola, que até então eram, em grande
parte, resultado da tradução de manuais estrangeiros.20 É possível afirmar que,
até meados do século XIX, os livros de leitura inexistiam nas escolas brasileiras. A
base do ensino e da prática de leitura eram os relatos de viajantes, as autobiogra-
fias e romances, além de manuscritos (documentos de cartório, por exemplo).
Por vezes, a Constituição do Império, o Código Criminal e a Bíblia eram utiliza-
dos como manuais de leitura. Somente a partir da segunda metade do Oitocentos
é que livros de leitura destinados às séries iniciais começaram a circular no país.21

17 Sobre o individualismo, ver, por exemplo, Corbin, 1991:413-614.


18 Ariès, 1978.
19
Bastos, 1998:2; e Hansen, 2007:16-17.
20 Arroyo, 1968; e Zilberman e Lajolo, 1986.
21 Ver Batista, Galvão e Klinke, 2002:28. E ainda Pfromm Neto et al., 1974.

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56 A história na escola

Os anos 1870 e 1880 foram marcados pela expansão da escola e do ensino


elementar, com a entrada em cena de escritores provenientes de esferas sociais
distintas daquela que até então se destacava na produção didática, por seu estrei-
to vínculo com o poder institucional, responsável pela política educacional do
Estado. Esses novos autores atuavam nos cursos primário e secundário, ou nas
escolas normais, destinadas à formação de professores. Criticavam a prática cor-
rente de traduzir ou adaptar textos estrangeiros, seguindo o modelo dos compên-
dios endereçados ao público de outros países. Almejavam elaborar livros ade-
quados ao público infantil brasileiro.22 Paralelamente aos investimentos dessa
nova geração de escritores dedicados à produção de materiais didáticos, ocorreu
a difusão dos livros de leitura, em meio à expansão de uma cultura cívica republi-
cana, que valorizava o aprendizado da língua, da geografia e da história pátri-
as.23 Além disso, tal difusão ocorria no momento mesmo em que se observava a
construção de uma noção de infância brasileira, elemento importante na cons-
trução da ideia de “país novo”, cuja base seria a criança, compreendida como
uma espécie de “raiz” do novo homem nacional.24
Coração chegou ao Brasil no início da primeira década republicana.25
No mesmo ano de 1891, a obra foi traduzida por Valentim Magalhães (1859-
1903),26 para a Gráfica Teixeira & Irmão, e por João Ribeiro (1860-1934),27 para

22 Bittencourt, 2004:475-491.
23
Gomes, 2003:116-133.
24 Hansen, 2007; Cordeiro, 2004.
25 No ano seguinte, o livro de De Amicis foi indicado para receber o primeiro prêmio entre os
livros de leitura, durante a exposição escolar anual de 1891. Ver o parecer do prof. Luiz
Augusto dos Reis na Revista Pedagógica (v. 3, n. 16/17, 15 fev. 1892, p. 286). O trabalho de
Batista, Galvão e Klinke (2002:35) observa a presença de Coração no Brasil em memórias,
programas de ensino e publicações destinadas a docentes, como um livro utilizado no cotidiano
escolar por professores e alunos, individual e coletivamente.
26 Jornalista, contista, poeta, romancista e conhecido polemista, Valentim Magalhães foi um
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (1896). Dirigiu o periódico A Semana,
espaço importante para divulgação dos trabalhos de novos escritores no fim do século XIX.
27João Ribeiro era professor de colégios particulares desde 1881 e, em 1887, prestou concurso
para a cadeira de língua portuguesa do Colégio Pedro II, porém só foi nomeado três anos
depois para a cadeira de história universal. A partir de 1895 fez várias viagens à Europa por
motivos pessoais ou a serviço do governo. Estudioso da filologia e da história, destacou-se

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Coração 57

o Livreiro e Editores Alves & C. Foi esta última edição que serviu de base para as
posteriores.
Cabe observar que De Amicis já era conhecido no Brasil por sua colabora-
ção no Jornal do Brasil, que publicara sua novela A mestra dos operários (1895).28
Além disso, alguns extratos de Coração foram publicados na Gazeta de Notícias,
traduzidos pelo escritor português Ramalho Ortigão (1836-1915),29 antes da
publicação da primeira edição brasileira. Na opinião da Gazeta, João Ribeiro,
“conhecedor profundo das duas línguas e hoje o mais autorizado mestre da nossa
no Brasil, temperamento delicado de artista”, fez um trabalho superior ao dos
que o precederam, sendo a sua a única tradução autorizada pelo autor.30
Coração suscitou uma série de resenhas elogiosas por parte de um dos mais
renomados críticos literários da época: José Veríssimo.31 Em 1892, pouco tempo
após a publicação da primeira edição brasileira de Coração, Veríssimo publicou
um artigo sobre a obra de De Amicis intitulado “Educação nacional (a propósito
de um livro italiano)”.32 Segundo o autor, o sucesso do livro tinha relação com o
fato de:

falar à criança, aos escolares, de si próprios, de seus camaradas e colegas, de seus


mestres, de seus pais, de seus jogos e brinquedos, de suas lições, de seus castigos e dos

como autor de vários livros para o ensino primário e secundário. Consagrou-se historiador
a partir da publicação de uma obra destinada ao uso escolar: a História do Brasil — curso
superior (1900). Sobre João Ribeiro, ver Hansen, 2000.
28 ARevista Pedagógica (n. 7, 15 abr. 1891), por exemplo, publicou um capítulo de outro livro
de De Amicis, Il romanzo d’un maestro (1890), intitulado “Os pais de alunos”. Em 1907, uma
versão do conto O tamborzinho sardo (incluído em Coração) foi publicada na revista infantil
O Tico-Tico, n. 69, com o título de O tamborzinho valente.
29Ramalho Ortigão traduziu alguns trechos da obra publicados no Brasil e em Portugal, onde
o livro foi traduzido na íntegra por Miguel de Novais. Essas informações estão em Gregorin
Filho, 2006:185-194.
30 Revista Pedagógica, v. 3, n. 16/17, fev. 1892.
31 Em A educação nacional (1890), o autor denuncia a “pobreza do nosso sentimento nacio-

nal” e sugere a generalização da educação cívica, como condição necessária para a formação
da cultura moral e intelectual. Além disso, apresenta a literatura e a leitura como dispositivos
fundamentais para a educação cívica e moral, argumentando que o livro de leitura deveria ser
brasileiro, não tanto por ser escrito por brasileiros (o que não considerava fundamental),
mas pelos assuntos e pela capacidade de animar o sentimento nacional. Cf. Veríssimo, 1985:55.
32 Veríssimo, 1892.

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58 A história na escola

seus prêmios, da vida escolar, enfim, com todas as suas cenas e todos os seus episódios
[...]; ser um livro original e que de nenhum modo se parece com o comum dos livros
didáticos: não tem deles nem o aspecto pedantesco e doutrinário, nem tampouco o ar
piegas, amaneirado e fútil com que outros querem disfarçar, sob a aparência de sim-
plicidade, a incapacidade para fazer simples e bom; é realmente um livro singelo,
verdadeiro, sombrio e eloqüente, porque, sem artifício de nenhuma sorte, fala ao
sentimento e toca o coração que lhe deu o título e que, segundo a ingênua filosofia
popular, que é a de nós todos, é a sede de todas as nossas emoções.33

Outro importante escritor, Raul Pompéia, comentou a obra na coluna


Lembranças da Semana, publicada no Jornal do Commercio. Criticando a injus-
tiça social a que são submetidos os operários do mundo, Pompéia observa que a
tradução da obra de De Amicis é um incentivo ao cumprimento do dever de
justiça para com os trabalhadores. Além disso, apresenta a obra como “um
epítome de amor filial, de amor maternal, de respeito aos mestres, de ardente
patriotismo, de singela abnegação para o bem, esse precioso resumo exemplar de
um coração, que é Cuore”.34
A obra de De Amicis tornou-se objeto de análises no início do século XX,
sendo notável a proliferação de estudos sobre o livro e seu autor nas décadas de
1970 e 80.35 A interpretação mais notória talvez seja a de Umberto Eco, que a
definiu certa vez como “um exemplo abjeto da pedagogia pequeno-burguesa,
marcada por interesses de classe, paternalista, sádica e fim de século”. Posterior-
mente, o autor reviu sua interpretação, observando que “a ideologia de um livro
não coincide necessariamente com aquela do seu autor” e que o livro merecia
inspirar leituras mais construtivas.36
No Brasil, o mais recente estudo localizado — um artigo de Maria Helena
Câmara Bastos — ressalta as características do livro relativas à literatura de for-
mação, bem como, à educação moral e cívica, com destaque para as seguintes
problemáticas: a produção de ordenamento e a afirmação das divisões sociais; a

33 Veríssimo, 1892.
34
Ver Pompéia, 1891. Em 1892, a Revista Pedagógica (v. 3, n. 16/17, fev. 1892) apresentou a
“Opinião da imprensa sobre Coração”, reunindo excertos de notícias de vários jornais.
35 Dos 12 estudos sobre a obra de De Amicis citados por Pécout, sete foram produzidos entre
os anos 1970 e 80.
36 Eco, 2001a:337-350 e 2001b:351.

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Coração 59

difusão dos valores da ilustração brasileira relativos ao trabalho e à educação,


com o objetivo de formar o cidadão republicano; a educação do caráter através
de sentimentos como a compaixão, a solidariedade, entre outras.37 Resumida-
mente, a análise de Bastos compartilha a interpretação de que a literatura infantil
brasileira, de modo geral, e o livro Coração, em particular, coadunam-se com
um projeto educacional ideologicamente conservador do início da República.38
Não se trata aqui de polemizar com tais interpretações, mas de submeter o
livro e seu autor a outras questões. Como foi dito antes, este texto visa investigar
o papel de um livro na construção de um léxico acerca da nação, das relações
sociais e do papel dos indivíduos na história, de modo a compreender parte do
processo de construção de uma consciência histórica, elemento fundamental na
composição daquilo que tem sido definido por alguns historiadores como cultu-
ra histórica.39
Após percorrer a trajetória do livro e localizar alguns de seus leitores, em
diferentes momentos e locais, a seção a seguir dedica-se a pensar os vários tempos
e espaços presentes no livro.

Um livro com múltiplos tempos e espaços

Coração é apresentado por De Amicis como a “história de um ano escolar, escrita


por um aluno do terceiro [ano] elementar de uma escola comunal da Itália”. Ao
dizer isso, o autor também afirma que o livro registra “tudo o que ele [o menino]

37
Bastos (1998:3, grifos da autora) parte da premissa de que, na Primeira República, a educa-
ção moral, cívica e religiosa era o eixo das preocupações daqueles que almejavam o controle
das relações e das estruturas sociais, como forma de regenerar o país. Sua hipótese principal
é de que a obra de De Amicis constitui “uma unidade discursiva produtora de ordenamento,
de afirmação de distâncias, de divisões e é representativa dos valores da ilustração brasileira
quanto ao projeto pedagógico republicano de formação do novo homem para o novo
regime : crença ilustrada nas virtudes da instrução moral e cívica, como forma de manter a
ordem social”.
38 Bastos, 1998:4.
39Sobre a noção de cultura histórica, ver Rüsen, 2007:121-133. Também são importantes
as considerações de Jacques Le Goff, que apresenta um breve plano de pesquisa sobre a
cultura histórica, ao considerar que a história da história não deve se ocupar apenas da
produção histórica profissional, mas de todo um conjunto de fenômenos que constituem a
cultura histórica, incluindo o estudo da literatura, da arte e dos manuais escolares de história.
Ver Le Goff, 1990:22, 47-48.

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60 A história na escola

viu, entendeu, pensou na classe e no exterior da classe”. Indo além, busca corro-
borar a ideia de que o livro é, na realidade, o diário, submetido à correção do
pai do aluno — que, segundo De Amicis, se esforçou para preservar as palavras
de seu filho — ao fim do ano letivo e, quatro anos mais tarde, revisto pelo
próprio aluno-narrador, com a memória ainda fresca acerca dos acontecimen-
tos passados.40
Assim, observam-se três tempos: o tempo da escrita do diário pelo menino-
narrador; o tempo da correção feita pelo pai ao término do ano letivo, quando o
presente acompanhado pelo diário torna-se passado; o tempo da releitura (qua-
tro anos depois) pelo autor do diário, agora um jovem que recorre à memória
para preencher possíveis lacunas. Esse é também o tempo do autor De Amicis, que
se deixa ver como aquele que oferece e dedica o livro aos pequenos leitores, crian-
ças entre nove e 13 anos. É esse livro que ele atesta chegar às mãos do leitor: um
livro para crianças, escrito por uma criança, revisto por seu pai e, posteriormen-
te, pelo próprio autor do diário, ainda jovem.41
Essa opção do autor de apresentar o livro como um diário que chegou às
suas mãos tal como foi construído pelo autor-menino pode ser interpretada como
um empenho no sentido de garantir a autenticidade e a sinceridade da obra,
valores caros no mundo moderno. A escrita de si propiciada pelo diário utiliza o
argumento da sinceridade, que é individual e subjetiva, atribuindo-lhe o valor de
verdade. Ao apresentar a obra como o diário de um menino, De Amicis parece
querer atestar a veracidade daquilo que está escrito, convidando o leitor a entrar
na intimidade do menino-narrador.42
Mas, além do diário, o livro é composto por outros tipos de narrativa: as
cartas e os contos patrióticos. Tais narrativas remetem a três temporalidades
distintas, como se verá a seguir.

40 De Amicis, 2001:5. O trecho citado foi extraído de uma nota de advertência, presente nas
edições italianas e na edição francesa aqui utilizada, reproduzida na primeira edição brasileira
e, posteriormente, excluída.
41
Ibid., p. 5.
42 A noção de sinceridade está diretamente vinculada à emergência do indivíduo moderno. Ela
surgiu a partir de uma preocupação com a não sinceridade nas relações sociais, em um
contexto em que a tradição e os costumes perderam o poder de constranger e regular as
relações, agora administradas pelo indivíduo. Dessa forma, a sinceridade diz respeito a como
o indivíduo se apresenta nas relações com o outro. A esse respeito, ver Gonçalves, 1988:264-
275.

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Coração 61

O diário
Como foi dito, Coração é o diário de Henrique (no original, Enrico), escrito ao
longo do ano letivo de 1881/1882. O personagem principal é também o narrador
da história, sendo através de seus olhos que a experiência da leitura ocorre. Em
outras palavras, é pelos olhos de Henrique que conhecemos os outros persona-
gens e lemos o mundo a seu redor. Curioso é que pouco sabemos sobre o próprio
Henrique, o que permite ao leitor acompanhar suas percepções e sentimentos, de
modo que, ao final, seja possível conhecer um pouco dele e de nós mesmos.
Henrique transita por três espaços distintos: a escola, a casa e a rua. Luga-
res de aprendizado. No primeiro, predominam os mestres, referência de afeto,
compreensão e sabedoria. No segundo espaço reina a família, destacando-se as
figuras do pai e da mãe, fontes de afeição e também de orientação na vida. Na rua,
a vida que passa, com seus personagens anônimos e espaços compartilhados, onde
as virtudes são constantemente testadas. São ruas cheias de meninos, trabalhado-
res e pobres, sendo possível observar adversidades e desigualdades, geralmente
apresentadas como algo natural, ou não explicadas.
A narrativa começa com a breve lembrança de um passado recente — as
férias no campo — para, em seguida, dar lugar a um encontro de Henrique com
seu antigo mestre e a visão de sua sala no ano anterior. O diário registra a saudade
de um tempo que passou. Os antigos mestres reclamam que não o encontrarão
mais. Ao ver o diretor, nota que sua barba parecia estar “mais branca do que no
ano passado”; além disso, os meninos como ele, estavam “mais altos e com mais
corpo”. Mas o tempo passa e a saudade dá lugar a novos sentimentos e relações.
Provavelmente inspirado pelos estudos fisionômicos em voga no fim do
século XIX,43 De Amicis (o autor) — através de Henrique (o narrador) — apre-
senta os personagens relacionando aparência e caráter. Os colegas de classe são
apresentados um a um, com suas qualidades e defeitos. Seu amigo favorito é
Garrone, filho de um maquinista da estrada de ferro, que é “o mais alto, o mais
forte” e também generoso. Tudo o que lhe pedem empresta ou dá. Além disso,
protege os menores, que buscam sua companhia. O que mais detesta é Franti,
“cara feia e estúpida”, que vive a rir dos outros e a provocar.
Ao longo do livro, o narrador-menino é confrontado por situações que
contrastam o bem e o mal. Um exemplo é o caso do menino Robetti, seu colega de

43 Sobre a fisionomia, ver Bolle, 1994.

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62 A história na escola

escola, que arriscou a própria vida para salvar uma criança prestes a ser atropela-
da; ou ainda, o caso do menino pobre cujo trabalho é limpar chaminés. O peque-
no perdera o dinheiro que ganhara trabalhando e, com medo de apanhar do
patrão, pôs-se a chorar. Piedosamente, um grupo de meninas da escola decide
recolher contribuições para saldar a dívida.
Incorporando o presente à narrativa, o livro exalta as transformações atri-
buídas ao Estado italiano, tais como: a ampliação das escolas públicas, a implan-
tação de escolas noturnas para operários, a criação de instituições para cegos, a
manutenção de asilos infantis etc. O objetivo é exaltar o progresso e valorizar os
pilares de sua sustentação — o Exército, a família, a escola e o trabalho —, afir-
mando a importância dos trabalhadores na construção do país. Atribuindo grande
valor ao estudo e ao trabalho, o livro difunde um sentimento cívico capaz de
congregar nacionalismo e valores universais. A exaltação do mundo do trabalho,
povoado por homens, mulheres e crianças, é constante, havendo diferenças entre a
representação do trabalho e a da pobreza, ambos dignos de respeito. Enquanto a
pobreza remete à caridade e à solidariedade, o trabalho dignifica e enobrece. Os
personagens a ele associados — como o trabalhador Coretti, filho de um vende-
dor de lenha, ou Precossi, filho do ferreiro —, são vistos em situações que dignifi-
cam sua condição, enquanto Nobis, um menino rico, é associado à vaidade e à
presunção.
Mas, além do diário, outro tipo de escrita compõe o Coração.

As cartas
De Amicis pouco informa sobre o narrador principal, que pode ser entrevisto
pelas cartas de seus pais. Por meio delas, Henrique é alvo de algumas reprimendas,
embora haja também elogios e afeto. A vigilância e o controle exercido sobre suas
atitudes e pensamentos são constantes. Sobretudo por parte do pai, cujas cartas
estão repletas de exortações, na forma de incentivos, conselhos ou advertências.
Um dos melhores exemplos é a carta intitulada Os amigos operários. O
trecho é longo, mas bastante ilustrativo:

Acabada a 4a classe, irás para o ginásio; eles [seus colegas de classe] serão operários,
mas ficarás na mesma cidade e talvez por muitos anos. E por que então os não verás
mais? Quando estiveres na universidade ou no liceu poderás procurá-los nas suas
lojas e nas suas oficinas, e sentirás grande prazer tornando a ver os teus companheiros
de infância, já homens, a trabalhar. [...] Hás de ir lá e hás de passar muitas horas em
sua companhia, estudando a vida e o mundo, aprendendo com eles muitas coisas que

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Coração 63

outros não te saberiam ensinar, a respeito das suas artes, da sua sociedade e do teu
país. E nota que, se não conservares estas amizades, será difícil que adquiras outras
semelhantes no futuro; amizades, quero dizer, fora da classe a que pertences; viverás
assim numa classe só, e o homem que freqüenta uma só classe social é como o estudioso
que não lê senão um livro. [...] começa desde já a preferi-los, por isso mesmo que são
filhos de operários. Os homens das classes superiores são os oficiais, e são os operários
os soldados do trabalho; mas assim na sociedade como no exército, o soldado não é
menos nobre do que o oficial, porque a nobreza está no trabalho e não no dinheiro; no
valor e não nos galões; mas se há uma superioridade no mérito, pertence esta ao
soldado e ao operário, porque tiram menor proveito da própria obra. Ama, pois, e
respeita, entre todos os teus companheiros, os filhos dos soldados do trabalho; honra
neles as fadigas, os sacrifícios de seus pais, despreza diferenças de fortuna e de classe,
pelas quais só os homens vis regulam os sentimentos e a cortesia, e pensa que o sangue
abençoado que resgatou a nossa pátria saiu quase todo das veias dos operários das
oficinas e dos trabalhadores dos campos. [...]44

O trecho é exemplar como lição que ensina o valor do trabalho e do respei-


to ao próximo, pregando as virtudes da generosidade e do desprezo pelas desi-
gualdades de fortuna e de classe. Além disso, a sociedade é compreendida a partir
da hierarquia militar, observando-se a diferença entre soldados e oficiais, assim
como, entre as classes sociais, o soldado sendo associado ao operário, visto como
“soldado do trabalho”.
Marisa Lajolo destacou que a literatura costuma ser utilizada na escola como
meio de educar, de modo que o texto é valorizado por sua dimensão retórica e
persuasiva e, não, por razões estéticas. Trata-se, em suma, de um veículo para a
transmissão de valores.45 Nesse sentido, Coração, assim como outros livros de lei-
tura escolar, pode ser lido como obra representativa dos valores caros a um projeto
pedagógico que visava à formação de cidadãos. Na Itália, essa formação se dava em
meio ao processo de Unificação, marcado pela guerra e pela difusão dos ideários
solidarista e socialista. No Brasil, vivia-se o contexto pós-Abolição e o início da
República. O objetivo era formar cidadãos republicanos, dotados de virtudes mo-
rais e cívicas, dedicados ao trabalho e dispostos a manter a ordem social.46

44
De Amicis, 1956:229-230.
45 Lajolo, 1982:15.
46 Bastos, 2004.

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64 A história na escola

No livro de De Amicis, as virtudes morais e cívicas são exaltadas, sobretudo


por meio dos contos lidos na escola.

Os contos patrióticos
O foco principal dos contos mensais — O patriotazinho de Pádua, O pequeno
vigia lombardo, O pequeno escrevente florentino, O tamborzinho sardo, O en-
fermeiro de tata, Sangue romanholo, Valor cívico, Dos Apeninos aos Andes e
Naufrágio — e dos temas das aulas — Os funerais de Victor-Emmanuel II, O
conde Cavour, O rei Humberto, José Mazzini, Garibaldi etc. — são os valores
cívicos. No caso dos temas das aulas, destacam-se as personagens da história po-
lítica italiana recente.
Os contos mensais, com local e data nem sempre explicitados, trazem
histórias exemplares e edificantes. O objetivo é fornecer exemplos de conduta
universais, expressos pelos feitos gloriosos daqueles que lutaram em defesa da
unidade italiana. Indivíduos cuja ação é apresentada como decisiva para a
construção da unidade do país. Dá-se destaque aos acontecimentos e perso-
nagens da história política e militar, bem ao gosto de certa historiografia
oitocentista, cujo foco recaía sobre os “grandes homens” e seus feitos. Esse
modelo de escrita da história como história-memória da nação esteve em
voga tanto na Europa quanto no Brasil, encontrando seus críticos, sobretudo
no fim do século XIX.47
Além do apelo à história dos “grandes homens”, também é interessante
observar, como fez Pécout, que De Amicis foi buscar inspiração para sua obra,
com o objetivo de definir uma “estética do coração”,48 na leitura de um livro
intitulado O amor, publicado na Itália em 1877. O autor desse livro é visto como
símbolo de uma historiografia considerada vitalista e sentimental: o francês Jules
de Michelet (1798-1874). Para esse historiador, o postulado de todas as virtudes
individuais e sociais é o amor, definido como a base da própria sociedade. Somen-
te uma reforma coletiva seria capaz de promover algo além do progresso material
e intelectual, que são alvos de sua crítica. Michelet almeja um progresso moral,
que acredita ser possível por meio da educação. Uma educação para a “cidade

47 Para uma introdução à historiografia oitocentista, ver, por exemplo, Carbonell, [s.d.]:91-
110.
48 Essa expressão é utilizada por Mimi Mosso, apud Pécout, 2001:382, nota 2.

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Coração 65

ideal”, que atribui importante papel à família, vista como uma espécie de ensaio
para a formação patriótica e, mesmo, democrática.49
Segundo Pécout, De Amicis era um leitor atento de Michelet. Contudo, na
aplicação de sua “pedagogia do sentimento”, o italiano teria optado pela criança
como principal agente da história, diferentemente de Michelet, que escolhera a
mulher50 e também o povo, seu herói por excelência. De acordo com Bourdé e
Martin, Michelet “foi o primeiro a atribuir uma importância decisiva à interven-
ção das massas na história”.51 Mas, além dessa diferença, cabe destacar a distância
que os separa quanto aos temas escolhidos: de um lado, De Amicis e sua história
política e militar, o cotidiano da escola e da vida familiar; de outro, Michelet,
interessado na “ressurreição do passado integral”. Em comum, o desejo de uma
reforma moral coletiva. No caso do livro de De Amicis, as crianças atuam como
uma espécie de embrião da progressiva transformação da sociedade. Entre outras
coisas, é por meio delas que essa transformação é apresentada como possível.

Conclusão

Para Maria Helena Câmara Bastos, assim como para Umberto Eco, De Amicis
apresenta uma visão idealista da sociedade, que minimiza as tensões, as injustiças
e as diferenças sociais, naturalizando a pobreza e omitindo conflitos de classe.52
Mesmo concordando em parte com essa interpretação, é possível ir além na leitu-
ra de Coração, sem perder de vista sua historicidade.
Se, por um lado, De Amicis idealiza a sociedade e os atores sociais,
minimizando conflitos, trata-se de um livro que, inegavelmente, desenvolve uma
temática social em consonância com as demandas de sua época, situando a crian-
ça como protagonista da história (algo raro até então) e atribuindo um lugar
especial aos trabalhadores na construção da nacionalidade e na difusão de um

49 Sobre Michelet, ver por exemplo Hartog, 2005:13-29; e Bourdé e Martin, s.d.:82-96. Cabe

lembrar que Michelet foi professor da Escola Normal francesa e autor de manuais de história.
50 Para Pécout (2001:382-384), a verdadeira inovação do livro de De Amicis é a centralidade
atribuída às crianças na história. Diga-se de passagem que, ao longo da segunda metade do
século XIX e início do XX, observa-se a construção do “sentimento da infância”, acompanha-
do pela difusão de saberes sobre a criança. Ver Ariès, 1978.
51 Bourdé e Martin, s.d.:82, 90-91.
52 Bastos, 2004:12-13; e Eco, 2001a.

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66 A história na escola

ideal de sociedade pautado na solidariedade. De um modo particular, o livro


recria ideais humanistas em meio à ordem social competitiva então emergente,
sobrepondo tais ideais aos conflitos de classe. O objetivo de De Amicis não é
analisar a origem da riqueza ou propor explicação para as desigualdades sociais,
mas promover o sentimento solidário como algo capaz de romper barreiras sociais
e de classe, promovendo a regeneração social.
Georg Luckács observa algo semelhante ao analisar Os anos de aprendiza-
do de Wilhem Meister (1796), de Goethe. De acordo com o autor, o desenvolvi-
mento pleno do indivíduo, no sentido da realização dos ideais humanistas, no
contexto de uma sociedade marcada pela crescente divisão social do trabalho,
aparece na obra de Goethe como condicionado à suposição da nulidade dos con-
flitos de classe característicos da ordem social competitiva que emergia na Alema-
nha em fins do século XVIII. Naquele contexto, os ideais humanistas eram neces-
sariamente utópicos. Daí a ideia de “sociedade da torre” descrita na segunda parte
do romance: um tipo de “ilha” formada por indivíduos intelectual e moralmente
superiores e socialmente qualificados a converter os ideais humanistas em prática
cotidiana. Tal sociedade seria o embrião de uma progressiva transformação da
própria sociedade capitalista. O desenvolvimento pleno do indivíduo pressupu-
nha, no limite, a existência de uma nova ordem social. O autor também alerta que
seria simplificador ver essa “ilha” como uma espécie de fuga. Em suas palavras, “a
configuração de um ideal como o do humanismo, que, na sociedade burguesa,
permanece necessariamente utópico, há de necessariamente apresentar um cará-
ter fugidio”.53
Não se trata aqui de afirmar uma influência direta da obra de Goethe sobre
o livro de De Amicis, mas de aventar que suas obras possuem afinidades, sobretu-
do no que diz respeito à defesa de valores humanistas num contexto de transfor-
mação rápida das relações sociais, em decorrência da industrialização e da divi-
são social do trabalho.
Como foi visto, o livro de De Amicis foi traduzido no Brasil no início da
década de 1890, período em que se observa a existência de discursos empenhados
na construção de uma imagem positiva do trabalho e do trabalhador, pouco
tempo após a abolição e a proclamação da República. Como demonstra Angela
de Castro Gomes, foi no contexto marcado pela instabilidade política e pelo em-
bate entre diferentes projetos de república que surgiram vozes mais articuladas

53 Ver Luckács, 2006:588-589.

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Coração 67

acerca das possibilidades de participação política daqueles que trabalham. O


mundo do trabalho urbano nem era substancial, considerando o tamanho da
população, nem apresentava grandes facilidades de mobilização. No entanto,
alerta a autora que não se deve nem superestimar nem subestimar a possibilidade
de participação política dos trabalhadores como fator determinante para a
construção do novo regime. O país vivia o início de um processo de expansão in-
dustrial, sob a égide de um recente passado escravista.54
O que interessa aqui é que, naquele momento, foram criadas condições
capazes de propiciar a inclusão de novos atores no sistema político e redefinir os
instrumentos formais de participação. Em meio ao que Gomes identifica como
um “clima verdadeiramente disruptivo”, as fronteiras sociais se tornaram mais
fluidas. Nas suas palavras, “a sensação era a de que a sociedade estava aberta a
novos e insuspeitos experimentos, da mesma maneira como o poder estava aber-
to a novas ideias e propostas de organização”. Diante desse clima, surgiram as
primeiras vozes, algumas delas bastante efêmeras, em defesa da possibilidade e da
legitimidade de o trabalhador figurar como ator social e político. Assim, a déca-
da de 1890 pode ser lida como um momento em que imperava a esperança acerca
do novo regime.55
A república era vista como o regime da ordem e do progresso, por oposi-
ção à monarquia, associada ao atraso e à escravidão, que consolidara a compre-
ensão do trabalho como algo degradante. Para alguns, como aqueles que se apre-
sentavam como socialistas, a base desse progresso era o trabalho, podendo sua
positividade ser associada à função de regeneração social — destinando-se aos
que deveriam ser recuperados (desocupados, órfãos, asilados) ou às classes po-
bres — ou à busca da felicidade, quando o trabalho era visto como sinônimo de
grandeza e dignidade. É diante de tais opções que um contingente heterogêneo e
disperso de homens inseridos no mundo do trabalho deveria adquirir contornos
mais definidos para si e para a sociedade.56
O diário do menino Henrique remete a tais questões, ainda que digam
respeito ao contexto italiano do fim do século XIX. Como já foi dito, remete ao

54
Essa proposta de revalorização do trabalho e do trabalhador não nasceu com a República.
Ela se articulava há pelo menos duas décadas e tinha relação direta com o enfrentamento da
questão servil. Ver, por exemplo, Gomes, 1988:36, 41.
55 Gomes, 1988:37.
56 Ibid., p. 37 e 41.

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68 A história na escola

esforço de reconstrução da Itália após as guerras de Unificação e ao papel funda-


mental atribuído aos trabalhadores e às crianças nesse processo. Sendo assim, é
possível compreender a calorosa recepção do livro no Brasil, considerando os pro-
blemas enfrentados após o fim da escravidão e também o amplo campo de debates
acerca da educação, vista por muitos como solução para o atraso brasileiro.
Para compreender a entusiástica recepção do livro por parte de alguns impor-
tantes intelectuais, como José Veríssimo e Raul Pompéia, é importante considerar que
a intelectualidade do fim do século XIX e início do XX, mesmo desiludida com os
rumos da República, não deixou de defender uma ação educativa ampla, a princípio
vinculada a um projeto de república democrática, posteriormente vinculada a
projetos de nação.57 Tal recepção é indício da perspectiva pragmática de muitos
intelectuais, que apostaram na literatura e na educação como meios privilegiados
para a reforma social. Além disso, a proposta de educação como reforma moral da
sociedade era uma alternativa para o determinismo racial então vigente, que conde-
nava o Brasil ao atraso e, no limite, impunha obstáculos à existência da própria
nação. Em outras palavras, a defesa da educação permitia refutar a homologia traçada
entre a sociedade e os organismos biológicos. Nas palavras de André Botelho, “o tema
da reforma moral deslocou o debate da formação do povo e, conseqüentemente,
da organização da sociedade brasileira do âmbito dos diferentes determinismos
naturalistas para o plano histórico-social”.58
Propondo educar por meio de uma “pedagogia dos sentimentos” — a ser
desenvolvida pela família e pela escola pública, dois pilares da nação, segundo
Pécout mais ideais que reais —, Coração elogia os valores familiares e exalta o
Exército, pregando a harmonia entre as classes e omitindo conflitos, ainda que
não deixe de apontar as duras condições de vida dos trabalhadores (incluindo as
crianças). Desse modo, o livro de De Amicis tornou-se exemplo de literatura
infantil conservadora. Mas, além disso, também representou um sopro de espe-
rança, apontando a articulação entre um passado marcado pelas guerras da Uni-
ficação, um presente caracterizado pela “diversidade de forças políticas, ideológi-
cas e sociais do Risorgimento” e um futuro repleto de possibilidades, visto que
aponta soluções para os conflitos sociais.59

57 Gomes, 2003:122.
58 Botelho, 2002:34.
59 Pécout, 2001:378, 384, 388, 482-483.

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Coração 69

Para José Veríssimo, por exemplo, o caso italiano oferecia um exemplo


“eloqüente e memorável” da importância da educação pública para a “regenera-
ção nacional”. Na opinião do autor, a unificação da Itália era obra, sobretudo, de
escritores, poetas, publicistas, oradores e professores.60 Em suma, o livro de De
Amicis apresentava afinidades com as propostas de diversos intelectuais brasilei-
ros, que defendiam a educação como meio de formação de um novo homem.
Mas, qual a importância desse e de outros livros de leitura para pensar o
ensino de história? Ao focalizar os materiais destinados ao uso escolar, as pesqui-
sas sobre história do ensino de história têm se dedicado, sobretudo, ao estudo dos
compêndios e livros didáticos.61 Os livros de leitura têm sido objeto de estudo
principalmente no âmbito da história da educação, bem como no campo da his-
tória do livro e da leitura.
Coração é um exemplo de que o processo de ensino-aprendizagem da his-
tória não passa apenas pelo aprendizado dos conteúdos relativos à disciplina
escolar, considerando os muitos usos da história e da temporalidade vigentes em
uma dada sociedade. Nesse sentido, a história do ensino da história se enriquece
ao focalizar os múltiplos modos de lidar com o tempo (passado, presente e futu-
ro), as formas de pensar o papel dos indivíduos e o lugar dos acontecimentos na
história, por exemplo. Esses usos são expressos por meio de materiais diversos,
como os livros de leitura, a literatura, os programas televisivos, os filmes, os
museus etc. Os seja, tudo aquilo que ajuda a compor a cultura história de uma
época.62
Composto por uma narrativa que conjuga diferentes temporalidades — o
tempo do cotidiano, registrado pelo diário, demarcado pelos dias na escola e
também pela vida fora dela, em casa, com os amigos ou na rua; o tempo do
passado recente, que compõe a história político-militar italiana; e o tempo do
futuro, entrevisto pela mensagem esperançosa de um futuro melhor, potencial-

60 Nas palavras do autor: “O risorgimento, como a esta fase da sua vida nacional chamam
os italianos, é propriamente uma resultante do trabalho gigante de uma nova educação,
não feita somente nas escolas, porém nas universidades, na imprensa, nos livros e na
tribuna”. Outro país citado pelo autor como inspirador para o Brasil era a França. Ver
Veríssimo, 1985:50.
61 Exemplos de estudos sobre história do ensino de história, que analisam compêndios e livros
didáticos: Mattos, 2000; Hansen, 2000; Reznik, 1992; Munakata, 2003; e Gasparello, 2004.
62
Rüsen, 2007:121-133; e Le Goff, 1990:22, 47-48.

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70 A história na escola

mente representado pelas crianças — Coração, como outros livros de leitura,


pode ser lido como um objeto cultural que contribui para a construção da cons-
ciência histórica,63 promovendo o aprendizado do tempo e das relações sociais,
que informam a vida prática. Ele é parte da cultura histórica. Cultura tecida pelos
muitos modos pelos quais uma sociedade representa seu passado, seu presente e seu
futuro, expõe seus medos e aspirações, elabora projetos, compõe memórias e
define identidades.

63 Rüsen, 2001:57.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 71

Capítulo 3

Formar cidadãos republicanos fluminenses:


a Terra fluminense de Coelho Neto e Olavo Bilac

Rui Aniceto Nascimento Fernandes*

Publicado em 1898, Terra fluminense: educação cívica foi concebido e editado


antes que o regime republicano completasse sua primeira década de instaura-
ção no Brasil.1 Nesse momento, o ambiente intelectual ainda respirava um cli-
ma que demandava da República profundas transformações na sociedade bra-
sileira. Eram depositadas na escola grandes expectativas de intervenção nesse
processo.2
Terra fluminense objetivava formar o sentimento cívico-republicano entre
os escolares naturais do estado do Rio de Janeiro no contexto do novo regime
político que o país vivia. Durante o período imperial, a então província fluminense
fora um dos bastiões do regime monárquico. Seus políticos ocuparam postos-
chave na administração imperial, e o café do vale do Paraíba tornou-se o verda-
deiro ouro negro, sustentáculo da economia do país. Com o advento da abolição
da escravatura e da proclamação da República, o Rio de Janeiro passou a ser um
estado de segunda grandeza, perdendo seu status político para Minas Gerais e São
Paulo.3 Era importante, nesse quadro, fomentar o republicanismo e construir
uma identidade cívica entre os fluminenses.

* Doutorando em história social da cultura na PUC-Rio e pesquisador do grupo Oficinas de


História, sediado na Uerj.
1
Coelho Neto e Bilac, 1898.
2 Carvalho, 1989.
3 Ferreira, 1994. Consultar também Ferreira, 1989.

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72 A história na escola

Um livro para formar o cidadão fluminense republicano

Terra fluminense: educação cívica foi publicado pela Imprensa Nacional, na cida-
de do Rio de Janeiro, em 1898. Seu formato, que nos lembra os atuais pocket
books, facilitava o manuseio e a circulação por vários espaços extraescolares. O
livro mede 16 cm de altura e 11,5 cm de largura. A única gravura presente na obra
encontra-se na capa. Em primeiro plano, ao centro, um globo terrestre escolar é
ladeado, à direita, por um livro aberto e, à esquerda, por uma folha de papel
escrita, um tinteiro e uma pena. Ao fundo, há representações da natureza: folha-
gens e plantas. Representa-se, assim, que o conhecimento sobre um lugar deve
unir os saberes dos letrados, formalizados pelos livros, e a realidade geográfica.
Como analisarei mais adiante, essa relação foi desenvolvida ao longo das 74 pági-
nas que compõem o livro.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 73

Na capa consta a aprovação oficial do governo fluminense: “livro unanime-


mente aprovado pelo Conselho Superior de Instrucção do Estado do Rio de Janei-
ro”. Pode-se levantar três hipóteses — não excludentes — sobre a questão da chan-
cela oficial a essa publicação. Em finais do século XIX eram escassos os trabalhos que
interpretassem a história e a situação fluminense da época.4 Essa carência de estudos
sobre o Rio de Janeiro que viabilizassem os trabalhos escolares pode ter sido um dos
fatores que levaram à sua aprovação oficial. Por outro lado, há que se supor que
possíveis relações pessoais estabelecidas pelos autores com a administração estadual
também tenham lhes facilitado o aceite do governo fluminense. Por fim, o livro em
questão inseria-se em um gênero que ganhava repercussão no período: a literatura
de formação, os livros de leitura. Estes se voltavam para a criança em idade escolar
e associavam à educação moral e cívica a formação do cidadão republicano e, nesse
caso, fluminense. André Botelho bem caracterizou essa produção:

Compreendendo o conjunto diversificado de obras designadas genericamente pela


expressão livros de leitura, em função de uso didático a que então se destinavam, este
gênero floresceu não por acaso nos primeiros anos republicanos no Brasil. Preocupa-
dos com a plasticidade da juventude nos anos de formação, os artífices do gênero —
entre os quais constavam intelectuais dos mais notáveis — procurando tirar
conseqüências da novela histórica romântica, apostavam na combinação entre ficção
e história para a constituição de, como diziam, um novo sentimento nacional via
juventude alfabetizada.5

Terra fluminense foi o primeiro fruto da parceria dos dois autores, que se
estendeu pela primeira década do século XX.6 Abrindo o livro há uma nota apre-
sentando os objetivos que pretendiam alcançar:

4 Nos levantamentos bibliográficos sobre historiografia fluminense que venho realizando


para a elaboração de minha tese de doutoramento localizei apenas um estudo referente a
finais do século XIX que inventariava a situação sociopolítica e econômica do estado e de suas
municipalidades. Ver Silva, 1906:263-396.
5 Botelho, 2002:22-23 (grifo do autor).
6 Entre 1904 e 1909 ambos assinaram mais três trabalhos: Contos pátrios (1904), Teatro
infantil (1905) e Pátria brasileira (1909). No mesmo período, Olavo Bilac e Manoel Bomfim
estabeleceram outra parceria, que gerou frutos para a escola primária: Livro de composição
para o curso complementar das escolas primárias (1899), Livro de leitura para o curso com-
plementar das escolas primárias (1901) e o best-seller Através do Brasil (1910), que contou
com mais de 60 edições até a primeira década do século XXI.

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74 A história na escola

não poupamos esforços para escrever um livro original, em que a criança encontrará,
sumariamente indicadas, toda a vida política, toda a vida moral e toda a vida comer-
cial da Terra Fluminense. Neste livro, a História e a Fantasia andam unidas; e procu-
ramos aproveitar os assuntos de maneira que pudessem eles interessar não somente à
inteligência, mas também ao coração das crianças. A grande e a pequena lavoura, as
origens da civilização e do trabalho, as indústrias, os aspectos da natureza, o comércio,
a formação dos núcleos geradores do progresso, a evolução política, o passado, o
presente e o futuro do Estado do Rio de Janeiro estão, parece-nos, resumida e clara-
mente contidos nesta obra. Quisemos fugir da aridez, da forma complicada e da
banalidade, ao mesmo tempo dirão os competentes se nos saímos bem da empresa. E
se nestas poucas páginas sinceras a criança aprender a amar a sua pátria, estarão
satisfeitos os desejos de Coelho Neto e Olavo Bilac.7

Um livro que visava apresentar uma visão panorâmica, de conjunto, do


estado do Rio de Janeiro, não era um manual de história nos moldes vigentes. Nos
livros didáticos de então a história política, ou a biografia de homens ilustres,
aparecia como fio condutor da narrativa.8 Este seria um livro de leitura, em que o
professor poderia aproveitar as descrições e situações apresentadas para inserir o
conteúdo formal de vários campos disciplinares. A introdução não é tão rica
quanto o texto de “Advertência e explicação” escrito por Olavo Bilac e Manoel
Bomfim em Através do Brasil. Neste, a apresentação tem um caráter metodológico;
os autores orientam os professores a utilizar as ideias, os conceitos e as histórias
apresentados para explorar os conteúdos de história, geografia, cosmografia etc.9
Em Terra fluminense há apenas uma indicação: “O professor chamará a atenção
dos alunos para as palavras em grifo, explicando-as”. As palavras grifadas ao
longo do texto não eram apenas expressões idiomáticas desconhecidas das crian-
ças, que serviriam para enriquecer-lhes o vocabulário. Eram, na verdade, chaves
para que os mestres-escolas pudessem desenvolver os conhecimentos formais de
geografia, história, língua portuguesa, entre outros.
Logo no início, os autores delimitam as fronteiras do estado:

O estado do Rio de Janeiro é esta imensa faixa de terra que, posta ao longo do Oceano
Atlântico, em uma extensão de setecentos quilômetros, vem desde as margens férteis

7
Coelho Neto e Bilac, 1898:1.
8 Seguindo o modelo biográfico de Romero, 1890.
9 Bilac e Bomfim, 1962:v-xi.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 75

do rio Itabapoana até o verde sopé da serra de Paraty — confinando de um lado com
Espírito Santo, Minas e S. Paulo, e do outro lado abraçado pelo mar, caminho largo e
franco que a põe em comunicação com o resto do mundo.10

Observam-se destacados conceitos da geografia física (serra, mar), da geo-


grafia política (Espírito Santo, Minas, São Paulo), uma unidade de medida mate-
mática (quilômetro) e um vocábulo possivelmente desconhecido pelos alunos
(sopé), entre outros.
“História e Fantasia andam unidas...” para que os assuntos pudessem inte-
ressar não só ao intelecto, mas também à sensibilidade dos alunos. O estilo descri-
tivo do texto objetivava envolver as crianças. Os autores, num tom de testemu-
nho, de experiência vivida, descrevem personagens que teriam conhecido,
paisagens por onde transitaram e histórias ouvidas e guardadas como exempla-
res. Essa era a estratégia para aproximar o texto de seus futuros leitores. Narran-
do experiências e elementos do cotidiano seria mais fácil atingir um alvo maior, o
de “aprender a amar a pátria”.
Os intelectuais que participaram do movimento republicano e da instau-
ração do novo regime político no país acreditavam que esse era um momento-
chave na constituição da nacionalidade brasileira. Além disso, atribuíam-se pa-
pel de destaque nesse processo. Teriam eles uma “missão” a ser realizada, para
muitos pela instrução formal, pela escola. Marisa Lajolo destaca essa questão em
sua análise da literatura escolar produzida por Olavo Bilac:

Definiu-se, então, uma verdadeira tarefa ideológica de elaborar uma literatura escolar
carregada de valores nacionais, que desse ao mesmo tempo o modelo culto da língua
tradicional e o modelo adequado à jovem nação. Essa tarefa foi desenvolvida de ma-
neira marcante pela geração de escritores cuja maturidade coincidiu com a República.
Foi uma espécie de grande tarefa ideológica, ligada ao esforço educacional do novo
regime; e ela manifesta, de forma curiosa, as contradições de uma elite dominante que
precisava atingir a totalidade da nação, quando atingia os setores limitados em que se
recrutavam os seus quadros e respectivos auxiliares.11

A república era considerada, segundo André Botelho, o regime capaz de


realizar a “redenção do atraso brasileiro”. Essa crença está expressa em Terra

10 Coelho Neto e Bilac, 1898:5 (grifos dos autores).


11 Lajolo, 1982:32.

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76 A história na escola

fluminense. O penúltimo capítulo do livro é dedicado à recepção da notícia do


fim do regime imperial na capital fluminense:

Capítulo XVI — A República

Era o dia 15 de novembro de 1889.

Em Niterói, na ponte das barcas Ferry, aglomerava-se a multidão ansiosa. Sabia-se


que o exército nacional, obedecendo às ordens do glorioso marechal Deodoro da
Fonseca, estava no Campo da Aclamação, em linha de batalha, cercando o quartel-
general.

Dizia-se que a República havia sido proclamada, e de instante em instante crescia a


ansiedade dos que esperavam notícias. As barcas que partiam iam cheias de gentes; os
comentários se multiplicavam; havia incrédulos que achavam absurdo o boato; mas
havia também quem achasse natural a confirmação daquilo que os bons patriotas
esperavam havia tanto tempo.

Às três horas da tarde, de uma barca que chegava, saltou um moço dando vivas à
República, a Deodoro e a Benjamim Constant. E foi dos seus lábios que todos ouvi-
ram a grande notícia. O governo do Império capitulara. Deodoro, aclamado pelo
povo e pela tropa, era vencedor; e os populares, reunidos no Paço da Câmara Muni-
cipal, acabavam de declarar estabelecido o regimen republicano. Ouvindo isso, a mul-
tidão se agitou com entusiasmo, e um só grito delirante saiu de todas as bocas:

— Viva a República!
Então, um menino, que acompanhando o pai assistia àquela cena, perguntou:

— Que é isto, papai? Que é República?

O pai tomou-o nos braços, beijou-o, e disse-lhe com as faces coradas de júbilo e os
olhos flamejantes de orgulho:

— A República, meu filho, é a liberdade! A República é a felicidade do povo. Agora, a tua


terra não é mais governada por um senhor [...] Agora, a tua pátria não é mais a
propriedade de uma família real [...] Agora, o Brasil é verdadeiramente uma nação
digna de estar ao lado das suas irmãs americanas [...] A República vem acabar com os
privilégios do trono. Agora vamos ser governados por um de nós, livremente escolhi-
do por nós! A República, meu filho, é o governo do povo pelo povo [...] Grita também,
meu filho, grita também — Viva a República!

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 77

E a criança, batendo as mãos no ar, gritou com alegria:

— Viva a República!12

Era importante investir na construção do republicanismo no estado do


Rio de Janeiro. Apesar de o Partido Republicano do Rio de Janeiro ter sido funda-
do em 1870 e de muitos “republicanos históricos” serem fluminenses, as ideias
republicanas não tinham fortes raízes na região. A “velha província” — imagem
constantemente retomada por homens de letras e políticos do novo estado —
fora o bastião do regime monárquico e perdera poder e prestígio com o fim da
escravidão e com a proclamação da República. Entre políticos e letrados do novo
estado construía-se uma imagem de decadência e a nostalgia pelos tempos de
outrora, como se pode perceber nas palavras de Cipriano de Carvalho, secretário
de Obras do estado em seu relatório de 1897:

O Estado do Rio de Janeiro, produtor e florescente outrora, atravessa hoje a crise que
avassala o país inteiro. A sua grande lavoura tem desaparecido quase inteiramente,
jazendo abandonadas importantes fazendas, com os seus edifícios em ruína, e que
apresentam, na região de serra abaixo, o aspecto de desolação que me foi dado, dolo-
rosamente, sentir, por ocasião de minha excursão, logo depois de empossado do
cargo de Secretário de Estado, e realizada com o fim de estudar e verificar as nossas
principais necessidades materiais.13

As primeiras lições para formar o cidadão republicano


fluminense: conhecer a terra e o homem

E como agir nesse quadro? Como formar o novo homem do novo regime?
Para tanto eram necessárias duas primeiras lições: conhecer a terra e o ho-
mem.
O capítulo inaugural do livro foi dedicado ao primeiro tema: a terra. Bem
conhecê-la era o princípio básico para amar a pátria:

Para bem amar a pátria é preciso conhecê-la bem. Só quem já estudou todos os seus
recursos, só quem já admirou todas as suas belezas [é] que pode ter o coração cheio de

12 Coelho Neto e Bilac, 1898:65-66.


13 Relatório do secretário de Obras (1897) Cipriano de Carvalho, apud Vasconcelos, 1907:117.

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78 A história na escola

sua imagem e ser capaz de por ela dar a própria vida. A pátria é mais do que a família,
porque a felicidade de todas as famílias depende da bondade com que a terra alimenta
os seus filhos, e da sua segurança, que é a segurança de todos, e da sua paz, que permite
o trabalho calmo e produtivo.14

Identifica-se pátria à terra e, para amá-la, é necessário conhecê-la, pois


ela é que institui as condições básicas para a vida do homem e da sociedade.
Assim os autores passaram a descrever a geografia fluminense. Inicialmente
definiram os limites político-administrativos do estado. Estabelecidas as fron-
teiras, fez-se necessário apresentar os aspectos físicos que permitiram a constru-
ção das cidades, “onde a vida civilizada se aperfeiçoa de dia a dia”. Descre-
vem-se as belezas do litoral, base do comércio marítimo e que abre as portas
para o interior — “ainda mais belo é o aspecto deste encantado pedaço do
continente americano”.15 Apresentam-se aí as serras, os rios, a flora e a fauna,
estimulando os leitores a imaginar “que infinita palpitação de vidas, que
inenarrável desdobramento de existências várias há no seio de toda essa natu-
reza opulenta”. 16
No entanto, de nada serviria essa terra “perpétuo manancial inesgotável de
riquezas” se não houvesse o homem:

Para explorar a sua riqueza, para a amar, para aproveitar — há o homem, seu filho —
não já o homem selvagem que os navegantes de Portugal vieram encontrar, nem o
homem escravo que o sentimento do cativeiro oprimia e desmoralizava, mas o ho-
mem livre e inteligente, aparelhado para a luta e tendo a consciência do seu valor moral
e a presciência do futuro grandioso da terra que lhe foi berço.17

O homem formado a partir do contato dos “intrépidos navegadores” com


os nativos de várias tribos, entre elas os tamoios, os goitacases e os guaianases. É
um homem que se formou na luta contra a tentativa de fundação de uma colônia
calvinista sobre o solo fluminense. Vencem os franceses e os tamoios, seus aliados,
e “assim o aborígine, senhor absoluto das terras verdes, foi recuando de campo

14 Vasconcelos, 1907:5.
15
Ibid., p. 6-7.
16 Ibid., p. 8.
17 Ibid.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 79

em campo, de monte em monte e, arrancadas as caiçaras das suas tabas, alveja-


ram os primeiros muros, e os campos bravos, sulcados pelo arado, receberam dos
semeadores as primeiras sementes”.18
Livres dos franceses e dos tamoios, o fluminense pôde dedicar-se à agricul-
tura. Nas palavras de Oliveira Vianna, a atividade proporcionaria ao estado a
formação de uma “civilização agrária”.19 Olavo Bilac e Coelho Neto demonstram
que a experiência agropastoril conformou a vida e a identidade local, marcando
as paisagens e a gente desse rincão brasileiro.
Quanto à paisagem, era caracteristicamente rural. A vida ocorria nas fa-
zendas e nas vilas interioranas.20 As estradas de terra batida eram cruzadas pelos
carros de bois, “primitivo veículo da família humana” que convivia com as estra-
das de ferro que cortavam o estado. Ele “persiste [...] forte bastante para afron-
tar” as mudanças do tempo. É ele que, “rodando pelas estradas, chia, como anun-
ciando-se, e dá uma vida poética à paisagem”. Esse é o veículo de transporte da
produção agrícola e da população para as vilas:

É ele que traz da roça para os paióis as riquezas da terra, é ele que vai despejar nos
armazéns das estradas a colheita do lavrador, é ele que conduz os noivos ao templo, ao
alarido festivo da boda, por entre descantes e tangeres; nele também vai a criança
levada ao batismo, e não raro, a hora roxa da tarde, com um triste e calado cortejo de
rústicos, desce nele o esquife de um lavrador pobre, o mesmo carreiro às vezes dono
dos bois que outro leva para caminhos fragrantes.

Não é somente um condutor dos presentes do outono, é também um veículo sagrado


que leva as almas para os sacramentos, esse carro rural que parece uma relíquia
conservada no campo pelo homem.21

Era a vida agrícola que dava estabilidade ao homem. No capítulo dedicado


ao café, Olavo Bilac e Coelho Neto fazem uma rápida digressão sobre as ativida-
des econômicas realizadas no Brasil desde o descobrimento. No início, houve

18 Vasconcelos, 1907:13.
19 Vianna, 1987.
20Há no livro um capítulo dedicado a descrever um dia de trabalho numa fazenda. Coelho
Neto e Bilac, 1898:41-43.
21 Ibid., p. 15-16.

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80 A história na escola

pouco interesse em explorar a terra, devido ao fato de os portugueses não terem


encontrado nenhuma riqueza de fácil extração, como, por exemplo, o ouro. Só
com a exploração do sertão é que foram encontradas as jazidas do precioso metal
e houve “uma verdadeira loucura coletiva”. Os exploradores “iam deixando o
conhecido e estudando o território”, à procura do ouro. A localização das minas
gerou um afluxo populacional para o interior e “todos os outros trabalhos esta-
vam abandonados; e sem cultivo estas riquíssimas terras ficavam improdutivas”.
A terra fluminense não fora exceção; vizinha que é de São Paulo, onde as primei-
ras jazidas foram descobertas, sofrera com o esvaziamento para o interior. Tal
quadro só mudaria com a produção cafeeira.

Uma nova fonte de vida se abria no Brasil: ao trabalho incerto e aventuroso das
caçadas do ouro e dos diamantes, ia suceder o trabalho pertinaz e remunerador da
lavoura; a sede imoderada dos lucros imensos e rápidos cedia o passo à nobre ambi-
ção de enriquecer pelo esforço honesto e contínuo, pela gloriosa luta de todos os dias
com a terra, pela paciente cultura do solo.

[...] o café subiu as serras que se alteiam no seio da Terra Fluminense, desceu as
encostas, alastrou-se pelos vales, tomou conta de todo este solo abençoado, onde a
vida se agita numa exuberância prodigiosa. Foi ele que fundou a vida rural do Estado,
congregou os seus filhos nos pontos em que mais ativa a cultura prosperava, criou as
cidades, e atraiu os colonos que, deixando as terras do velho mundo cansadas e
ingratas, vieram dar o esforço dos seus braços às virgens terras generosas.22

Para reafirmar que era apenas pelo trabalho que o homem conseguia a
verdadeira riqueza, os autores reproduziram a história dos “Três grãos de mi-
lho”. Essa história teria sido contada por uma velha rezadeira andarilha, que
cruzava os rincões fluminenses confortando as famílias, pois “alentava as
criancinhas que o quebranto abatia” e “rezava sobre as terras semeadas e o gado
enfermo”. De certa feita, reunidas as crianças, a velha narrara essa história.
Houve, em um momento indeterminado, um rapaz que fora criado com
todo o conforto pelos pais sitiantes. Com o falecimento dos progenitores, herda-
ra o sítio com o celeiro abarrotado de milho e não se preocupou em dar continui-
dade aos trabalhos da lavoura. Fartava-se e, indolente que era, passava os dias na

22 Coelho Neto e Bilac, 1898:38.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 81

rede a dormir. Ainda no tempo de fartura, passou por ali um homem pobre
pedindo esmolas, pois possuía apenas uma cabana e dois palmos de terra. O rapaz
atirou-lhe três grãos de milho e o pobre retomou sua peregrinação. Correram os
tempos... O mato tomou o roçado e o paiol esvaziara-se. O rapaz, já homem feito,
pôs-se a esbravejar por seu destino de miséria, quando passou por ali um homem
“corado e forte, em um formoso cavalo”, que se deteve para o auxiliar:

— Que tendes? Por que assim vos desesperais?

— Morro à fome! Soluçou o infeliz. Morro à fome! Tinha um sítio fértil e as ervas más
o tomaram! Tinha um paiol de milho, e foi-se!... Nada mais tenho!23

O garboso homem do cavalo formoso então dispara: “A culpa é vossa porque,


julgando que nunca acabaria a herança dos vossos pais, abandonastes a terra que
antes não negava frutos”. Propõe-lhe, então, a venda do sítio. Acertado o negó-
cio, o homem revela: “Sabeis com que dinheiro vos pago as terras que dos vossos
herdastes? Com o que me deram os três grãos de milho que desprezivelmente me
atirastes”. Aqueles grãos foram plantados e seus frutos investidos e reinvestidos
na terra que possuía. Seu esforço tornara-o um homem rico. E concluiu a velha
rezadeira:

Vede bem, meus filhos, vede bem não vos fieis na fortuna — o ouro foge e a terra é um
cofre que devolve centuplicado o que se lhe confia. Com três grãos de milho, trabalho
e perseverança, o pobre conseguiu fortuna; e o rico, porque abriu todas as comportas,
ficando em preguiçoso abandono, não viu escoar-se a fortuna, e achou-se repentina-
mente com a miséria. Aproveitai o exemplo da história que me contaram quando eu
era bem mocinha e vivia feliz como uma garça, à margem da água serena da lagoa de
Araruama...24

Uma identidade alicerçada na experiência agrária

Uma estratégia para a construção de uma identidade rural fluminense era a nar-
ração de pequenas histórias de personagens que tinham sua vida a ela ligada,

23 Coelho Neto e Bilac, 1898:32.


24 Ibid., p. 34.

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82 A história na escola

como a velha rezadeira. Há, no entanto, mais cinco personagens. Detenhamo-


nos, nesse momento, em mais dois deles: um “velho trabalhador” e “o colono”.
Pai João, um africano quase centenário, era o “velho trabalhador”. Quan-
do jovem, o então escravo tornou-se o homem de confiança do seu senhor e obte-
ve a liberdade. Constituiu família e auxiliou o ex-senhor em suas terras. Resistin-
do ao tempo, viu os antigos senhores desaparecerem; sua família também já tinha
se ido quando um dos autores o encontrou e perguntou:

— Você, em toda essa vida tão comprida, deve ter sofrido muito, hein, pai João?

Ele levantou para mim os olhos quase apagados, e teve um sorriso. Depois começou a
falar, como um pobre preto ignorante que era. Não guardei na memória as suas
palavras, mas guardei o sentido do que elas queriam dizer:

— Toda a gente sofre neste mundo, moço! Mas eu não tenho muita razão de queixa...
É verdade que, nos primeiros tempos, tive de chorar bastante, com saudade da minha
terra... e, depois, o cativeiro, no tempo que havia isso, era uma grande maldade. [...]
Que saudade eu poderia ter agora da África, de onde vim criança? A minha terra é esta,
onde me fiz homem, esta que conheço bem, que lavrei enquanto tive forças e que ainda
hoje, para me pagar o bem que lhe fiz, me dá a sombra das suas árvores e a comida que
me sustenta...25

Esta era sua terra e, não, a África. Fora aqui que ele construíra a vida e, por
isso, a amava como seu verdadeiro torrão.
Outro imigrante que aqui reconstruiu a vida foi um colono napolitano.
Em certa manhã de domingo, após a missa, estava o “quase velho” napolitano
com o olhar perdido na melancolia da saudade de sua terra natal. Fazia, exata-
mente naquele dia, 10 anos que havia deixado a Itália, terra de seus ancestrais e
onde sua esposa jazia no túmulo da família. Sua filha, vendo-o desse modo, inqui-
riu o porquê da melancolia.

— É por causa justamente do dia de hoje que me vês triste, filha! É possível que não te
tenhas lembrado de que foi neste dia, há dez anos, que saímos da nossa terra?

Exortando-o a deixar a saudade de lado, responde-lhe a filha:

25 Coelho Neto e Bilac, 1898:26-27.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 83

— Mas escute, pai! Por que há de ficar triste? Mais vale esquecer, e viver feliz, gozando
a fortuna que Deus e o seu trabalho lhe estão dando aqui. Olhe! Eu, por mim, estou
disposta a não pensar mais nisso: foi aqui que vi felizes todos os meus, foi aqui que
nasceu o meu filho, o seu neto... porque é que não hei de amar esta terra, como se ela
fosse a minha.

— Tens razão, filha! Esta é a terra do teu filho, esta é a pátria do meu neto... porque é
que não há de ser também a nossa?

E alegre, levantando e abaixando a criança, fazendo-a sacudir pelo ar as perninhas


papudas, começou a brincar com ela e a dizer-lhe com o seu acento napolitano

— Bravo brasileirinho! Bravo, brasileirinho!26

Ambos, o preto velho e o colono italiano, adotaram a terra fluminense


como sua e nela reconstruíram suas vidas. Tomaram-na como sua verdadeira
pequena pátria. Fora ela que lhes dera os meios necessários à subsistência; fora
nela que eles constituíram suas famílias.
Os outros três personagens eram nativos, que tinham em comum suas ex-
periências de guerra.

A defesa da pátria: as experiências de guerra

O velho Amâncio, um lenhador, teria sido visitado por Olavo Bilac e Coelho
Neto já ao anoitecer. Viveria ele no alto de um morro e, na simplicidade do seu
casebre, esforçou-se para lhes oferecer o maior conforto possível. A sala da casa
“tinha um triste aspecto, mas a pobreza era largamente compensada pelo escru-
puloso asseio”. Em uma das paredes, “perto de vários registros de santos”, um
retrato chamou-lhes a atenção. Era o general Osório.

— Vosmecês estão olhando — disse o lenhador sorrindo. Aquele é o homem que nos
defendeu nos campos da guerra; está perto de Nosso Senhor. A gente acostuma-se a
adorar esses patrícios e acaba fazendo assim como eu faço. Lívia [esposa de Amâncio]
já quis tirar o retrato para outro lugar, porque diz que não é santo. Oh! Mas fez tanto
como se o fosse! Porque salvou a honra do povo, pois não foi? Essa é a verdade,
vosmecês não acham? Deus Nosso Senhor no céu há de aprovar o meu pensamento.

26 Coelho Neto e Bilac, 1898:31-32.

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84 A história na escola

Eu sou assim: tudo por minha terra e pelos homens que fazem bem a minha terra, pois
não é assim?27

O general Osório, marquês do Herval, foi um dos principais comandantes


das tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai. Um herói cívico colocado
lado a lado com os heróis religiosos, os santos. Um santo cívico, que deveria ser
cultuado por ser um valoroso homem que defendeu a grande pátria contra o
inimigo externo.
A Guerra do Paraguai era considerada um momento-chave na constitui-
ção da identidade nacional, pois colocara as diversas províncias em contato —
por meio dos seus soldados —, unidas por um mesmo ideal: defender a pátria
contra o inimigo invasor. Era um símbolo de patriotismo em que muitos deram
sua vida e outros tantos tinham adquirido sequelas permanentes.
A história do “velho soldado paralítico” ilustra bem essa imagem da guerra
como formadora da nacionalidade. O soldado aleijado de quando em vez narra-
va suas histórias de guerra para os filhos e netos. Reunindo-os certa noite passou
a contar-lhes como foi obrigado a tomar parte no conflito:

Nunca fui medroso, graças a Deus! Mas era moço, era rústico, mal sabia ler e escrever,
e nunca tinha saído da minha província, e amava muito estes sítios... Desde pequeno
que os conhecia a todos de cor: descalço, logo ao romper da manhã saía com sol por
esses campos fora, e assaltava as árvores e subia as serras, e metia-me nas águas do rio,
e deitava abaixo os ninhos, e colhia frutas, e deixava-me ficar dormindo sobre o chão
cheiroso do mato, ouvindo a cantiga dos passarinhos.

Depois, quando tive de trabalhar, ainda senti com mais força crescer no coração o amor
do lugar em que nasci. Vi quanto era boa a terra que nos dava o alimento; e quando,
dado à lavoura, comecei a cultivá-la, adorei-a, vendo-a abrir-se em plantações ricas,
para pagar com tresdobradas recompensas o esforço de que sobre ela suava.

Quando apareceram por aqui os homens encarregados de arranjar soldados, eu quis


fugir... diziam-me que era preciso defender a minha terra, e eu pensava comigo mes-
mo: A minha terra é esta, pequena e amiga, de onde nunca saí, e onde vive a minha
gente!... que tenho eu com o resto do Brasil? — Mas não houve remédio: foi necessário
assentar praça e partir.28

27 Coelho Neto e Bilac, 1898:46.


28 Ibid., p. 50-51.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 85

No entanto, aquartelado, recebendo treinamento, ouviu muitas histórias


da guerra e “quando embarcamos, já todos nós pensávamos somente na glória de
ir honrar aquela bandeira que levávamos, flutuando, saudada pelas músicas”.29
A experiência da Guerra do Paraguai é tida como um momento de
integração nacional. Esse episódio colocou em contato pessoas diferentes, unidas
sob a mesma bandeira, demonstrando que, apesar das diferenças, todos faziam
parte de uma irmandade que não deveria ser destruída de forma alguma. Esse é o
motivo de a Revolta da Armada ser censurada no último capítulo. Este apresenta
a história de um velho campônio que morava com a esposa em um casebre no alto
de um morro nas cercanias de uma cidade na região da Guanabara, que sofria
com os bombardeios dos revoltosos. Sua aflição era justificada pelo fato de ser um
conflito que gerava mortandade entre irmãos e de seu filho fazer parte do Exérci-
to legalista e estar em serviço. Seus pensamentos foram interrompidos ao obser-
var a silhueta longínqua de um homem que se aproximava da casa. Mais do que
rapidamente, ele retirou da parede a velha espingarda que usara na Guerra do
Paraguai e mirou o soldado que se aproximava com uma arma em uma das mãos.
Pensando exclusivamente na defesa da esposa, atirou no homem. Sua consciência,
no entanto, ficou atormentada por ter atirado em um dos seus irmãos brasileiros.
Ambos, marido e mulher, ouviram os gemidos do ferido e foram tentar ajudá-lo.
Ao chegar perto do soldado abatido constataram que ele era na verdade seu filho.
A guerra interna era aquela que promovia o fim das famílias. No entanto, seu
consolo era que o fizera em defesa de sua casa, de sua esposa e de sua terra, que
estava ameaçada.

Considerações finais
A guerra era tida, nesse livro, como um dos meios possíveis para se construir a
identidade de um grupo. Ela era citada como exemplo de formação do patri-
otismo. A guerra expressava o amor pela terra que tudo fornecia para seus habitan-
tes. Essa era uma das ideias desenvolvidas por Olavo Bilac e Coelho Neto. O amor
pela terra, por sua pequena pátria, expressão da grande pátria. Formar o cida-
dão fluminense era uma estratégia para a formação do cidadão brasileiro, mem-
bro da nova ordem que se instaurara no país e na qual se depositavam tantas
esperanças.

29 Coelho Neto e Bilac, 1898:51.

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86 A história na escola

Os personagens que permeiam o texto bem expressam esse ideal. Eles eram
exemplares, transmitiam, por meio de suas histórias e experiências de vida, o
amor pela terra; um amor natural ou construído com a passagem do tempo. É
interessante destacar que todos os personagens são idosos, significando que eram
guardiões da experiência que só o tempo pode propiciar aos homens. E quase
todos transmitiam seus ensinamentos às crianças e aos jovens. Dessa forma os
literatos procuravam dar uma grande lição aos educandos. Os personagens re-
presentam a experiência positiva, que pode ser ensinada pelas histórias. Já os
jovens são os representantes do novo regime, que devem aprender as boas expe-
riências da história, mas são aqueles nos quais se depositam as expectativas do
futuro.
Outra questão a se destacar é a da formação de uma identidade agrária para
o fluminense. A ligação histórica da região com as atividades agropastoris lhe con-
fere uma identidade peculiar. No caso do livro de Olavo Bilac e Coelho Neto, essa
identidade forma um homem trabalhador que conhece sua terra e a ama por ser ela
o seu meio de vida. O agrarismo é temática presente entre aqueles que se dedicaram
a pensar a identidade fluminense, e gerou interpretações variadas.
No início da década de 1930, Oliveira Vianna, prefaciando a obra de estreia
de Alberto Ribeiro Lamego, A planície do solar e da senzala, retomou reflexões
dos anos anteriores e idealizou o perfil do fluminense.30 Em sua análise, o sociólo-
go criou uma identidade em contraponto aos outros grupos regionais brasilei-
ros. Ao contrário de paulistas, gaúchos e nordestinos, que, em tempos coloniais,
tiveram que conquistar, à força da guerra, suas terras dos nativos, “nós, os
fluminenses, nunca tivemos necessidade de manejar armas”. O fluminense teve
sempre “as duas mãos inteiramente livres, e as pôde aplicar, exclusivamente, no
pastoreio dos seus gados, no desbaste das suas florestas, na sementeira dos seus
campos, na ceifa dos seus canaviais, na colheita dos seus cafezais”. Construiu,
assim, “uma civilização de estrutura essencialmente agrária”, que lhe conferiu
uma especificidade, uma identidade, no conjunto das sociedades regionais que
compunham o Brasil. E essa civilização, “no sentido mais espiritual da expres-
são”, era caracterizada pela “expressão de polimento, de boas maneiras, [...] da
suntuosidade, da predileção pelas coisas do espírito, pelas belas-artes, pelas boas

30 Vianna, 1991:75-82. As citações que se seguem são desse texto, em que Oliveira Vianna
retoma argumentos de um de seus livros da década de 1920: Populações meridionais do
Brasil.

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 87

letras, pela sociabilidade amável e requintada dos salões”. Era o “mais europeizado
dos nossos tipos”, o que mais havia sofrido influência dos europeus. Algo que
permitiu que compartilhasse o fausto deles. Compartilhamento de valores que
agiu de “maneira nociva sobre as suas características etnográficas”. Uma civiliza-
ção que conheceu seu apogeu durante o Império, com a aristocracia de Vassou-
ras, e que, com a desorganização da sociedade escravocrata, entrou em declínio.
Declínio não só econômico, mas também identitário, pois

o seu folclore é pobre, os seus “complexos culturais” instabilíssimos. Faltava-lhe a


caracterização viva e nítida, a estabilidade etnográfica do grupo nordestino e do grupo
gaúcho, por exemplo. O seu excesso de civilização como que o despersonaliza sobre
este aspecto e torna-o, de certo modo, incaracterístico e flutuante.

A desestruturação da civilização agrária desestabilizou os valores que a


sustentavam.

Destruídos com a abolição do trabalho servil, os centros aristocráticos de elaboração


e fixação folclórica, essas nossas antigas tradições, costumes, superstições, crenças,
cantares e danças populares, etc., não encontraram na massa popular nova base que
lhe pudesse assegurar condições de permanência e vitalidade.

[...] e, assim, o fluminense perdera sua identidade.

Era da elite aristocrática que vinha a base de sustentação da civilização


agrária, e, com sua desagregação, a população fluminense teria perdido sua iden-
tidade, segundo Oliveira Vianna. O poeta Antônio Lamego inverteu essa perspec-
tiva. Em 1935, Lamego iria proferir uma conferência na Academia Fluminense de
Letras sobre “O íncola da Baixada”. Tal não aconteceu, mas seu texto foi publica-
do no primeiro volume da revista da instituição.31
Diferente do sociólogo Oliveira Vianna, Antônio Lamego considerou que,
após a abolição, a “civilização agrária” se reestruturou.

A lavoura, após o grande colapso, pouco a pouco se foi reanimando, graças ao braço
do foreiro adventício, que, espontaneamente e de boa vontade, deu-lhe o que antes lhe
era dado com constrangimento e por obrigação. A disseminação do novo elemento [o
liberto] colaborador, pelo vasto território da província, fortaleceu a luta para novas

31 Lamego, 1949:145-154. As citações que se seguem são desse texto.

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88 A história na escola

conquistas, contra a agressividade e aspereza da terra dominada pelas tipueiras e


carrascais. As dificuldades das primeiras iniciativas não levaram o liberto à inação.

Sua opinião sobre o íncola unia um sentimento de admiração por seu estilo
de vida e o estranhamento de um homem “urbano/civilizado”, que não vivia
naquele mundo. Em vários momentos, observa-se o uso de termos preconceituosos,
como “rude”, “ingênuo” e “supersticioso”, para caracterizar o campônio do esta-
do do Rio.
O homem fluminense não era indolente para o trabalho. Pelo contrário,
reunia seus companheiros num “mutirão ou muxirão” para preparar o solo para
o plantio. E, na lida, cantava versos em defesa do trabalho: “o pão que há de vir da
terra e o fruto que há de brotar das árvores”. Lamego batia-se contra a imagem
do Jeca Tatu, indolente e preguiçoso. O fluminense do pós-abolição era o liberto
“tão radicado no solo como aos usos e costumes, é bem um homem rude, mas de
qualidades apreciáveis: é prestativo, trabalhador e honesto. Não é o jeca que
modelaram em tipo amolentado, incapaz de uma iniciativa [...]”. Trabalhava o
suficiente para obter o sustento e o mínimo de conforto para si e para sua família.
Lutava para obter seu teto “tão desejado e ordinariamente por ele construído” de
pau-a-pique. Era um homem ligado ao seu mundo rural, “alheado inteiramente
ao que se passa fora do rincão em que vive, só interessam os afazeres a que se
dedica com pertinácia”.
E foi nesse mundo que ele construiu seus valores. Era, segundo Lamego,
“supersticioso”, acreditando em mulas-sem-cabeça, lobisomem, saci-pererê,
curupira etc. Era religioso, de uma religiosidade tipicamente rural, que unia os
símbolos católicos às práticas da medicina popular:

ingênuo e crédulo, aceita a terapêutica do empirismo e as práticas das rezas e benzedu-


ras. Possuindo o instinto religioso, respeita Deus e é um convencido da influência
milagrosa dos santos com os que se apega, quando se faz mister a sua intervenção
para alcançar alguma graça.

Para Lamego, o fluminense era cantador. “Para encher as horas com algu-
ma alegria”, buscava a viola, “que lhe conhece e que em harmoniosos acordes o
acompanha nas canções que improvisa e que, no momento, tão bem lhe expri-
mem o seu estado d’alma”, ou, então, que servia para manter os cantos usuais das
festas costumeiras: as bandeiras do Divino, a mana-chica, o samba rural.
Se, por um lado, há Oliveira Vianna, que interpreta a identidade popular a
partir de um corte aristocrático, constituída pelos barões do café do vale do Paraíba,

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Formar cidadãos republicanos fluminenses 89

por outro, os literatos a constroem alicerçada nos trabalhadores rurais, no campô-


nio, naqueles que retiravam da terra o meio de sua sobrevivência. Pela projeção que
o sociólogo fluminense alcançou a partir da década de 1910, sua interpretação se
tornou hegemônica durante o século XX, o que não excluiu outros literatos, como
Antônio Lamego, a pensar a identidade local alicerçada no popular e nos estudos
sobre o folclore local empreendidos nas décadas de 1940 e 70.32

32 Sobre os estudos folclóricos fluminenses desse período, ver Fernandes, 2004.

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Capítulo 4

Imagens recortadas: os protagonistas da história do


Brasil na narrativa didática de Jonathas Serrano

Maria Cristina Fonseca Ribeiro Vidal*

O tempo presente nos convida a repensar não só o que estamos ensinando, mas
como estamos ensinando, para apresentar possíveis soluções às demandas de uma
sociedade que precisa ser cada vez mais democrática e inclusiva. Seria possível
resolver os problemas da prática docente de história tendo ainda como modelo a
criatividade das instituições do século XIX, assim como as demandas e recursos
desse século? Por outro lado, não podemos esquecer que “os saberes acumulados
numa tradição de conhecimento foram histórica e socialmente constituídos e,
portanto, exprimem as soluções inteligentes que as gerações, ao longo dos tem-
pos, souberam e puderam encontrar”.1 Não se pode considerar o que foi realiza-
do no campo do ensino de história como algo descartável. Torna-se fundamental
revisitar esse campo para apontar caminhos ou para refletir sobre possíveis
descaminhos no presente.
De modo geral, as abordagens sobre o ensino de história nos grupos de
pesquisa, seminários e congressos revelam que, em quase dois séculos, a história
do Brasil permaneceu, em nossa cultura escolar, centrada na perspectiva linear
eurocêntrica. Nossa história é narrada sob o ponto de vista europeu. A explica-
ção para essa constatação nos remete a duas instituições criadas no governo
monárquico e responsáveis pela geração de tal vertente: o Imperial Colégio Pedro
II (1837) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838). Enquanto o IHGB
propunha modelos para construir a história do Brasil, o Colégio Pedro II elabo-

* Professora de história na EEEF Henrique Lage (Faetec-RJ) e C. E. Pandiá Calógeras (SEE-


RJ) e mestre em história social pela UFF.
1 Côrte et al., 2006:37.

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92 A história na escola

rava os programas de ensino de história do Brasil comprometido com tais mode-


los. Para consolidar as ideias veiculadas por essas instituições, os compêndios
didáticos eram produzidos por catedráticos que a elas pertenciam. Cabe ainda
lembrar que a cátedra era uma titulação significativa para a ascensão social, as-
sim como ser membro do IHGB. Não é por acaso que tais informações apareciam
nos compêndios escolares.
Ao olhar o passado e analisar a trajetória da disciplina, não se pode deixar de
destacar o percurso de um educador, Jonathas Serrano (1885-1944), professor de
história do Colégio Pedro II (1926) e do Instituto de Educação do Rio de Janeiro
(entre 1919 e 1937), membro do IHGB e da Academia Carioca de Letras, e autor
de diversos livros didáticos.
De 1928 a 1930, foi subdiretor técnico da instrução do Distrito Federal.
Nomeado membro do Conselho Nacional de Educação em 1937, integrou a Co-
missão de Ensino Secundário do Plano Nacional de Educação, criada pelo Conse-
lho Nacional de Educação naquele mesmo ano. Pertencia à Comissão Nacional
do Livro Didático, na qual ingressou em 1939, e exerceu ainda os cargos de mem-
bro do Conselho de Ensino do Estado do Rio de Janeiro e do Conselho de Educa-
ção do Distrito Federal. Foi também membro da Comissão Nacional de Censura
Cinematográfica (1932) e juiz do Tribunal Eleitoral do Distrito Federal em 1932
e 1933.
Nas décadas de 1920 e 30, Jonathas Serrano foi um professor-autor que
produziu e difundiu muitas obras. Entre seus opúsculos e ensaios históricos, figu-
ram: “Capitanias hereditárias”, publicado na Revista do IHGB em 1914; O pre-
cursor de Tiradentes, publicado pela Imprensa Nacional em 1920; e “Da Indepen-
dência à República”.2 Para concorrer à cátedra de história universal do Colégio
Pedro II, Serrano escreveu as teses: A idéia de independência na América e O
movimento corporativo na França medieval, publicadas pela Tipografia O Pharol,
do Rio de Janeiro, em 1926.
O IHGB, instituição considerada celeiro da intelectualidade da Corte a
partir de meados do século XIX, foi organizado segundo modelos europeus. Sua
missão era preservar a história brasileira, “estabelecendo padrões muito defini-
dos sobre o que devia ser ou não ser histórico ou historicizado”.3 Serrano afirma-
va: “quem quiser conhecer a história do Brasil não pode ignorar a obra ingente e

2 Cardoso, 1933, v. 3, p. 149-150.


3 Melo, 1997:20.

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Imagens recortadas 93

benemérita do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”.4 Referiu-se à revista


do Instituto Histórico como imprescindível ao estudo da nossa história.
O Colégio Pedro II, criado em 1837 para ser modelo nacional de ensino
secundário, inseriu a história em seu programa curricular como disciplina obri-
gatória. Inicialmente, a história estudada no país foi a história da Europa ociden-
tal. A história pátria apareceria no final do curso ginasial. Num número reduzido
de aulas, estudavam-se biografias de homens considerados ilustres. Dessa forma,
muitos mitos foram construídos na história pátria.
No período republicano, acentuou-se a preocupação com a constituição
da nacionalidade e a formação da nação. O Colégio Pedro II permaneceu como
estabelecimento de ensino de excelência na formação da consciência nacional,
conferindo-se à disciplina de história a responsabilidade de formar os cidadãos.
Para o governo republicano construir o panteão dos heróis nacionais, além de
selecionar os personagens que deveriam ser cultuados, tornava-se importante
instituir festas cívicas e feriados nacionais da nova República. O livro didático era
visto, assim, como um instrumento fundamental na transmissão dos valores na-
cionais.
Segundo Jonathas Serrano, a disciplina história do Brasil carecia, contu-
do, da carga horária necessária para desempenhar um papel importante na edu-
cação nacional, se estudada e ensinada com base em métodos racionais. Como
partidário do ensino da história pátria, Serrano advertia sobre a necessidade de
se conhecer bem o passado para melhor compreender a nação no presente.
Kathryn Woodward afirma que “a redescoberta do passado é parte do
processo de construção de identidade”. Para legitimar a identidade, geralmente
busca-se um “suposto e autêntico passado”, “um passado glorioso” que possa
validar a identidade requerida. Dessa forma, as identidades estão em constante
mutação, são fluidas, cambiantes, porque, ao longo do tempo, passam por
ressignificações e se adequam aos interesses de quem as reivindica. As identidades
nacionais apelam para os mitos fundadores.5
Este texto busca analisar como Serrano encaminhou o discurso didático
acerca dos construtores da nação brasileira em seu compêndio História do Brasil
(1931). Preocupado em não escrever uma história do Brasil exaustiva, mas que

4 Serrano, 1968:21.
5 Woodward, 2000:85.

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94 A história na escola

atingisse o público secundarista, Jonathas Serrano deixou transparecer seu nacio-


nalismo ao priorizar a história pátria como um dos instrumentos imprescindí-
veis à construção da nação. Sua missão era evocar e cultuar os grandes vultos
nacionais, ressaltando “o que fizeram de bom e útil para o progresso do Brasil”.
Era, portanto, de esperar que em sua obra alguns personagens se destacassem,
com suas respectivas contribuições para a nação. O papel desempenhado pelos
intelectuais brasileiros na formulação e veiculação de projetos de construção da
identidade nacional foi fundamental, revelando-se como os verdadeiros “artífi-
ces” nesse “jogo de construção simbólica”.6
A preocupação de Serrano em traçar a genealogia da nação alicerçada na
civilização ocidental cristã está presente em toda a sua narrativa didática, daí a
necessidade de “buscar um suposto passado”, recortá-lo e recriá-lo, dando-lhe
legitimidade. Vejamos, portanto, o que o autor desejou ensinar com sua História
do Brasil, cujos conteúdos selecionados seguem de certa forma os programas de
ensino de história do Brasil de 1926 e 1929 do Colégio Pedro II, com poucas
alterações feitas por ele.7
A década de 1920 foi caracterizada por intensa mobilização na discussão de
projetos de (re)construção da nação brasileira. Tratava-se de “buscar as raízes”,
desmascarar a “ilustração”. O Brasil precisava ser “redescoberto”, e compreender
a realidade brasileira era fundamental para os intelectuais que assumiam o com-
promisso de “criar a nação”, de “republicanizar ou abrasileirar a república”, de,
enfim, “construir uma consciência nacional”.8
O livro didático de Serrano, História do Brasil, foi escrito no auge dessas dis-
cussões, o que tornou imprescindível a abordagem de temas como: (a) o descobri-
mento; (b) um povo mestiço sob o domínio do branco/português; (c) o papel dos
jesuítas; (d) a emancipação política e a construção do Estado monárquico; (e) mitos
e símbolos; (f) abolição e república. Defensor do ensino da história pátria, acredi-
tando que a missão da disciplina era contribuir para a educação nacional, pregava
a necessidade de se conhecer com afinco o presente e o passado do Brasil, devendo
este último ser conservado e transmitido “com maior ufania à geração vindoura”.9

6 Ortiz, 1994:139-140.
7
Cf. Vechia e Lorenz, 1998:304.
8 Oliveira et al., 1980:38.
9 Serrano, 1941:54.

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É certo que o descobrimento do Brasil tornou-se um marco periodizador


de nossa história a partir do século XIX, quando se iniciou o projeto de constru-
ção da nação, fruto de um movimento intelectual romântico que desejava traçar
a identidade nacional e definir o povo brasileiro e sua história. Fica claro, portan-
to, que esse marco periodizador foi uma “invenção” a posteriori.
Segundo Serrano, o “Novo Mundo não era desconhecido, antes mesmo
de Colombo”. Adepto da hipótese de que a “descoberta do Brasil” fora intencio-
nal, afirmou: “Várias circunstâncias também levam a crer que a descoberta do
Brasil foi propositada” e que, apesar do Tratado de Tordesilhas (1494), era
prudente que a posse das novas terras por Portugal fosse feita “em segredo para
não alvoroçar os espanhóis”.10 Ao tratar do tópico “descobrimento”, tema bas-
tante tradicional no ensino de história, Serrano desejou apresentar novas abor-
dagens, ao questionar se o descobrimento fora uma descoberta acidental ou
intencional.
A concepção de que o descobrimento foi o marco inicial da nação revela a
perspectiva segundo a qual, a partir de então, a colônia passou a fazer parte da
história da civilização ocidental. Tal visão eurocêntrica anula os acontecimentos
que antecederam tal fato.

O Brasil, este nosso Brasil que nasceu, em sincronismo dos mais dignos de registro,
com o ciclo mesmo da Modernidade. Sabemos perfeitamente que os Tempos Moder-
nos começaram com um vasto e complexo conjunto de grandes acontecimentos:
invenção da imprensa, Renascimento, descobrimentos marítimos portugueses e
castelhanos — lutas religiosas da Reforma e da Reação Católica. Com eles, entre eles,
na alvorada rubra de um mundo novo e num novo mundo, nascia o Brasil — nascia
para a cristandade e nascia para a civilização e para a História propriamente dita.11

É perceptível que, no texto escrito por Serrano, há a valorização do fato de


o Brasil ter “nascido” no contexto dos tempos modernos. Apesar de ser domina-
do por uma civilização cristã europeia, isso não era sinônimo de inferioridade,
mas, antes, orgulho de ser herdeiro da “cultura heleno-latina”, tal qual afirmara
Afrânio Peixoto, citado por Serrano.12

10
Serrano, 1968:41.
11 Serrano, 1941:57.
12 Serrano, 1930:40.

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96 A história na escola

Ao refletir sobre a constituição étnica da nação brasileira, que registro foi


narrado no livro didático de Serrano? Qual era a cara da nação brasileira?
A “geração de 1870” entendia que a modernização brasileira deveria ocor-
rer tendo como modelo a civilização europeia. Já nos anos 1920-1930, a moderni-
zação se daria por meio da busca de uma “identidade nacional” amparada pela
afirmação da “força nativa”. Era necessário descobrir as especificidades brasilei-
ras para romper com o modelo europeu; tornava-se fundamental olhar para o
que distinguia o Brasil da Europa, ou seja, era preciso olhar para a mestiçagem.
Na concepção de Herschmann e Pereira, os anos 1920-1930 configuraram um
momento de redefinição não só no campo político-econômico, mas principal-
mente no cultural. O Brasil tinha uma cara mestiça.13
Para Serrano, o Brasil era formado por um povo mestiço sob o domínio do
branco/português. Ao se folhear as páginas de seu livro didático que tratavam
dos elementos formadores da nação brasileira, fica claro que o Brasil era marca-
do pela miscigenação. No entanto, a ótica adotada afirmava que a linha evolutiva
da história do Brasil fora traçada pelo branco colonizador, que representava o
elemento nacional mais qualificado na composição da nação. A nova nação esta-
va fadada ao sucesso devido à colonização portuguesa. As teorias raciais da época
influenciaram o autor no que tange à hierarquização dos elementos formadores
da nação.
Na concepção de Sílvio Romero, segundo Renato Ortiz, o meio e a raça
são “fatores internos” que explicam a realidade brasileira, sendo “imprescindí-
veis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular”.
Sílvio Romero entendia que era necessário fazer um estudo mais acurado do
meio e relacioná-lo à questão racial. Para ele, o determinismo da raça “é a base
fundamental de toda a história, de toda política, de toda estrutura social, de
toda vida estética e moral das nações”. Havia uma disparidade racial e, para
afirmar uma identidade nacional positiva, tornava-se imprescindível encon-
trar um ponto de equilíbrio, já que tínhamos duas raças vistas como inferiores
(índio e negro).14 Uma das posições veiculadas pela intelectualidade da época,
e defendida por Sílvio Romero em algumas de suas reflexões, era a de que a
inferioridade racial revelava o atraso brasileiro e só por meio da mestiçagem e do

13 Serrano, 1930: 33.


14 Ortiz, 1985:17-18, 30.

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consequente branqueamento da população seria possível formar uma unidade


nacional.
Em relação ao negro, este aparece em Serrano como figura importantíssi-
ma na construção da nacionalidade devido a sua contribuição através do traba-
lho. Contudo, em sua narrativa, procurou assegurar a ideia de que tanto negros
quanto índios, não respeitados por suas singularidades culturais, foram apenas
coadjuvantes na colonização conduzida pelo branco. Para Serrano, negros e ín-
dios “retemperaram a raça branca e produziram, pelo caldeamento, uma popu-
lação feita e aclimada ao novo meio”.15 Apesar de essas três raças proporciona-
rem a fisionomia do brasileiro, não havia entre elas união, “[...] era uma geração
heterogênea de mestiços que entre si nada tinham de semelhante e que nutriam,
uns para com os outros, certa hostilidade irritadiça”.16 E isso, para uma nação em
formação, não era bom. O autor parece ser, assim, partidário de uma perspectiva
negativa da miscigenação, embora reconhecendo as contribuições das “três ra-
ças” na constituição do Brasil.
O século XVI foi retratado por Serrano como “um século de incertezas”: na
esfera administrativa, oscilações entre o sistema de capitanias e o de governo
geral; incerteza na “fusão das raças”; incerteza na “permanência dos fidalgos”,
que muitas vezes abandonavam a terra que lhes dera riquezas e voltavam para a
metrópole; incerteza no comércio. No entanto, aos poucos Serrano ia deixando
expressa a supremacia do europeu sobre “a gente da terra”, com a ocupação do
território e o domínio sobre os nativos. Havia, no século XVI, uma certa preocu-
pação com a unidade da colônia, ameaçada pelo sistema de capitanias, mas asse-
gurada com o governo geral, que já garantia o começo da vitória portuguesa no
Brasil. Os fatos ocorridos até então apontavam para um Brasil português. O
cenário de dominação portuguesa assegurava, segundo Serrano, o progresso para
a nação que estava em formação. A unidade era garantida à força pelos portugue-
ses, que ocupavam, povoavam, miscigenavam e expulsavam.

15 Ortiz, 1985:168. É interessante observar a permanência de uma tradição que se iniciou na


virada do século XIX para o XX, “a ideologia do Brasil-cadinho” e que atingiu seu “ápice” com
Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (1933), que “reedita a temática racial, para consti-
tuí-la, como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave para a compre-
ensão do Brasil”, mas sob a ótica da cultura. Na visão de Renato Ortiz, seria mais preciso falar
em “mito das três raças”. Ortiz (1985:38) afirma “que a ideologia do Brasil-cadinho relata a
epopéia das três raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropicais”.
16 Serrano, 1968:129.

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98 A história na escola

O século XVII foi analisado pelo autor como um século de guerras: guerra
contra índios, contra os franceses, contra os holandeses, contra os negros. No
entanto, foi nesse contexto turbulento que o sentimento nativista cresceu, impul-
sionando o embrionário desejo de liberdade. No bojo dessa “luta sem tréguas, do
choque de tantos elementos, nasceu, já vitorioso desde seu berço, o sentimento
nativista. Pode-se dizer que a raça brasileira e o próprio Brasil nasceram em meados
do século XVII”.17 A nova raça brasileira, resultado da mestiçagem, tivera “a
consciência de sua força em 1640, quando, apesar das ordens do rei de Portugal,
apesar do abandono das forças da Metrópole, que se retiraram do campo de
batalha, não hesitou em continuar a luta sozinha, pois já então aspirava à liber-
dade”.18 Como defensor da ideia de que a linha evolutiva da história do Brasil
deveria ser traçada pelo branco colonizador, via este como o elemento nacional
qualificado para compor a nação.
No capítulo nove de seu livro, sobre os jesuítas, Serrano destaca a ação de
d. João III de enviar os jesuítas como “grande benefício”, pois foram os mentores
que possibilitaram a chegada à nossa pátria “da luz da civilização cristã”. Na
concepção do autor, os jesuítas foram instrumentos difusores da religião entre os
“selvagens” e ainda “ensinaram as verdades austeras da moral no meio desregra-
do dos colonos”.19 O jesuíta é visto como o “elemento moral” que dava sentido a
uma sociedade que despontava. O autor destacou os mais preeminentes jesuítas,
entre eles Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Estes foram vistos como instru-
mentos valiosíssimos na catequese dos índios, constituindo-se no mais “impor-
tante dos elementos que concorreram para a formação do Brasil”.20
Vale dizer que havia em Serrano um sentimento de gratidão em relação à
colonização portuguesa pela herança cristã e católica. A nação brasileira deveria
ser grata por ser “em grande parte um produto da vontade pertinaz e do sacrifício
contínuo e superior dos discípulos da Companhia de Jesus”.21 A Companhia de
Jesus era vista, pois, como uma das bases da construção da nação. Os padres
teriam tido, segundo sua avaliação, um papel relevante na educação brasileira.

17 Serrano, 1968:205.
18 Ibid.
19
Ibid., p. 103.
20 Ibid., p. 110.
21 Serrano, 1930:40.

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As escolas jesuíticas eram gratuitas e consideradas de bom nível, cabendo aos


mestres jesuítas regenerar os costumes e moralizar a sociedade que se formava.
A narrativa de Serrano sobre o processo histórico brasileiro parece prepa-
rar os leitores para um momento especial, o da emancipação política. Fato que
consolidou de uma vez por todas a existência da nação brasileira, não importan-
do que esta estivesse sob a égide de um regime monárquico ou republicano.
O ar de liberdade pairava, nas primeiras décadas do século XIX, nas colô-
nias ibéricas na América, principalmente nas colônias espanholas, onde os res-
ponsáveis por conduzir o processo de emancipação agiam de acordo com os inte-
resses de uma elite agrária — os criollos. No que tange aos movimentos de
emancipação da América portuguesa, a Conjuração Mineira, no final do século
XVIII, denunciou “as medidas opressivas e ineptas do governo português”,22
assinalando o desejo latente de libertar o Brasil do jugo opressor da metrópole.
A Conjuração Mineira, assim como o movimento liderado por Filipe dos San-
tos, “fora uma reação da colônia oprimida contra a excessiva cobiça dos repre-
sentantes da metrópole”.23 Esse movimento, segundo Serrano, recebera forte
influência dos pensadores franceses, tais como Rousseau e os enciclopedistas.
Na abordagem do tema, o autor refere-se à emancipação das colônias inglesas
em 1776, destacando vultos como Washington e Franklin, que “provocavam
admiração entre os jovens”. Cita também as colônias espanholas, que realiza-
ram uma “súbita passagem de um regime de sujeição à total independência sob
a forma republicana, que foi causa de graves perturbações e até de anarquias”.24
Para justificar a situação brasileira diante desse cenário internacional de signi-
ficativas mudanças, comenta a “lenta” e “natural transição de colônia a sede
provisória da monarquia portuguesa [...] de reino unido a império autônomo,
e só ao cabo de um século, após o sonho dos Conjurados, logramos enfim pro-
clamar a república”.25 Ao chegar ao Brasil em 1808, a família real encontrou
esse cenário em que os brasileiros aspiravam à independência. Promovendo
mudanças na esfera política, administrativa e econômica, o príncipe d. João
contribuiu para dar à colônia ares de emancipação.

22 Serrano, 1968:255.
23
Ibid.
24 Ibid., p. 253.
25 Ibid., p. 253-254.

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100 A história na escola

Aos poucos, a emancipação estava se consolidando, mas sob a égide do


governo português. A partir daí, o desenrolar do processo histórico é narrado
destacando-se as ações dos dirigentes da nação: imperadores, regentes, ministros
e presidentes. Considerados os protagonistas da história, enquanto condutores
da nação, seus nomes seriam imortalizados não só na obra de Serrano, mas tam-
bém nas páginas de diversos outros compêndios escolares.
No momento, interessa-me destacar o enfoque de Serrano ao criar uma
imagem favorável do príncipe regente, ressaltando os melhoramentos e o pro-
gresso que teriam conduzido o Brasil a uma posição privilegiada. O autor ressalta
ainda a importância da abertura dos portos tanto na esfera econômica (circula-
ção de mercadorias) quanto na cultural (preocupação com o progresso da ins-
trução). Em suma, a imagem positiva de d. João como regente e, posteriormente,
como rei foi cristalizada no discurso do livro didático como benfeitor do Brasil.
Na concepção de Serrano, o caso brasileiro no processo de emancipação
fora singular. Apesar das manifestações da corrente republicana, a presença de
“D. João no Brasil inverteu as relações de colônia e metrópole”. Ao tomar diver-
sas medidas no âmbito político, administrativo, econômico e cultural, d. João
acabou por assegurar a independência brasileira pelos “lábios de um herdeiro do
trono português”, garantindo que “a nossa emancipação” não tivesse “o carácter
trágico das outras colônias”.26 No que se refere à primeira fase da monarquia, o
texto didático prioriza a figura do imperador d. Pedro I. Em torno dele cons-
truiu-se a imagem de alguém que defendeu os interesses dos brasileiros no mo-
mento da independência. Para Luís Reznik,27 o enfoque dado na narrativa relati-
va ao período do Brasil independente é o da “manutenção da ordem política”. A
partir desse momento, parece que os fatos políticos se sobrepõem aos da esfera
econômica ou cultural. Reznik pontua ainda que o personalismo dos dirigentes
da nação “se acentua agora em relação aos dirigentes máximos: imperador, mi-
nistros, regentes e presidentes”.28 Estes foram considerados os protagonistas da
história por terem desempenhado a missão de estabelecer a ordem estatal, tor-
nando-se os responsáveis pelo destino da nação.
Com o golpe da maioridade, iniciou-se a segunda fase do Império, com d.
Pedro II instaurando o período de “pacificação”, e com Caxias como agente indis-

26 Serrano, [s.d.]:20.
27 Reznik, 1992:211.
28 Ibid., p. 211.

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pensável da restauração da ordem. Serrano refere-se ao governo de d. Pedro II


com apreço e orgulho. Fazendo um balanço do seu reinado em um artigo
intitulado “O Brasil”, considerou esse período o “mais notável do passado brasi-
leiro em certos aspectos de sua história. Foi grande o progresso realizado en-
tão”.29 É recorrente em seu texto didático a caracterização desse período como
uma “nova fase”, marcada por um “grande progresso”, apesar das guerras exter-
nas.30
O século XIX é representado como o século das emancipações para o Bra-
sil, por ter sido marcado por fatos como: a abertura dos portos (1808), o rompi-
mento com Portugal (1822) e a independência literária, com a publicação dos
Suspiros poéticos. Os governos monárquicos (de d. João VI a d. Pedro II) foram
todos vistos como benéficos para o crescimento da nação, já que

realizaram uma obra notável de construção, permitindo que, em pouco mais de meio
século de existência, o Brasil se tornasse apto a governar-se por si mesmo, não obstante
a sua extensão imensa e o seu imenso atraso, comparada a sua vida econômica,
intelectual e política com a das outras nações livres. Vertiginoso foi o progresso reali-
zado na segunda década do século XIX — finda a agitação interna do povo e realizada,
graças a Caxias, a unificação estável e definitiva da nacionalidade. O intercâmbio
intenso com a Europa implantou logo nos grandes centros brasileiros os requintes da
Civilização. A indústria, com Mauá, tomou extraordinário incremento. No domínio
da literatura floresceu o Romantismo fecundo e livre. Foram abandonados de vez os
modelos portugueses e a França passou a exercer influência, não só em nossas letras,
como também em nosso meio de viver.31

Na concepção de Serrano, o Brasil, no fim do século XVIII, ainda não


estava preparado para realizar “a sua emancipação política sob a forma republi-
cana”.32 O motivo dessa constatação explicava-se, principalmente, pelo fato de a
população brasileira não ser instruída: “Faltava ao povo a necessária instrução,
apanágio de um escol brilhante, mas reduzido. Faltava ainda à grande maioria a
capacidade administrativa, a educação política exigida pelo regime democráti-

29 O Brasil (Arquivo Nacional, Arquivo Privado de Jonathas Serrano, caixa 13), p. 6.


30 Serrano, 1968:348.
31
Ibid., p. 405.
32 Ibid., p. 253.

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102 A história na escola

co”.33 Apesar de no Brasil haver homens cultos e de responsabilidade, o autor


entendia que o povo carecia de instrução que o instrumentalizasse adequada-
mente para essa nova realidade.
No projeto de construção da nação, a criação de mitos e símbolos é funda-
mental para evocar uma identidade nacional. Vejamos primeiramente como Ser-
rano abordou o valor histórico do 7 de Setembro, elencando como figuras cen-
trais do movimento de independência o príncipe d. Pedro I (que depois seria,
contudo, desqualificado, devido ao seu autoritaritarismo e incompetência para
governar) e José Bonifácio.
É oportuno lembrar a relação estabelecida por Hobsbawm entre memória
e nacionalidade, ao destacar o papel imprescindível da “tradição inventada” na
construção da nação.34 Nesse sentido, tornava-se necessário estabelecer uma data
para a independência do Brasil na memória nacional, marcando a conquista da
liberdade e da autonomia, categorias consideradas essenciais para a consolidação
da nação.
O destaque dado por Serrano a José Bonifácio no processo de independên-
cia explica-se pelo fato de que, no início dos anos 1920, houve uma tentativa de
recuperação histórica desse personagem. A comemoração do centenário da Inde-
pendência colocara em evidência a “história pátria”, destacando figuras escolhi-
das como principais. José Bonifácio foi nesse contexto eleito o “patriarca da Inde-
pendência”.35 A mitificação de Bonifácio nesse momento decorre do fato de ele ser
visto como “o efetivo construtor da pátria livre e soberana”, devido ao “seu pacien-
te trabalho em prol do rompimento com a Corte”.36 Sua entronização definitiva,
segundo Marly Motta, deveu-se à “mobilização da intelectualidade paulista no
intuito de garantir para São Paulo a iniciativa dos momentos fundamentais da
Independência, como a lembrar que não era de hoje que os paulistas governavam
o Brasil”.37
Na narrativa de Jonathas Serrano, tal mitificação é feita em oposição à
figura de d. Pedro, que, segundo o autor, “absoluto, incoerente, inábil, vive a

33 Serrano, 1968:253
34 Hobsbawm e Ranger, 1984:9.
35
Motta, 1992:22.
36 Ibid., p. 20-21.
37 Ibid., p. 22.

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desagradar a todos cedendo às vezes, como na confecção da Constituição do Im-


pério, retratando-se outras, como na recusa de mudar o ministério 5 de abril”.38
A incompatibilidade de José Bonifácio com o absolutismo exacerbado de d. Pedro
levou-o a demitir-se do cargo de ministro e, a partir daí, a compor com seus
irmãos a ala de oposição.
Na síntese introdutória do capítulo XXX, dedicado ao período regencial,
Serrano aborda a abdicação de d. Pedro como um fato que trouxera perplexida-
de ao Brasil e que propiciara o aparecimento de “homens de altíssimo valor polí-
tico”, que demonstraram que o Brasil “estava apto para receber um governo mais
democrático”. A literatura didática apresentou o interregno regencial como um
turbulento período, marcado por muitas lutas incessantes e pela ameaça de “anar-
quia” em diversos locais do país. Na visão de Serrano, esse cenário apontava para
“o espírito nacional que rebentava as comportas da liberdade”.39
Afirmando que “basta, para dar a significação do século XIX, citar três
nomes: Pedro II, Caxias e Mauá”,40 Serrano desenvolve a narrativa sobre a histó-
ria desse período, destacando o que tais personalidades teriam feito de útil para a
nação brasileira. A figura de Caxias aparece quando é abordada a repressão da
“Balaiada”: “só com a intervenção de Luís Alves de Lima, posteriormente duque
de Caxias, é que terá fim, em janeiro de 1841, essa luta que ameaçou a integridade
do território nacional”.41 Caxias começou a ser idealizado como o salvador da
pátria. Foi “um dos vultos maiores da história brasileira pelo seu valor moral”.42
Caxias seria cultuado como herói, afinal era visto como o “grande pacificador”, o
responsável pela unidade do Império.
Todo regime político elege os seus heróis a serviço de sua legitimação; a
escolha e a promoção de Luís Alves de Lima deveram-se, pois, aos serviços que
prestou em prol da nação idealizada no projeto saquarema vitorioso. É evidente
que suas ações no âmbito da segurança nacional para assegurar a unidade do
Império corresponderam à expectativa do governo imperial. Isso favoreceu a
heroicização desse vulto. O esforço de mitificação da figura política de Caxias não

38 Serrano, 1968:309.
39 Ibid., p. 325.
40
Ibid., p. 405.
41 Ibid., p. 330.
42 O Brasil (Arquivo Nacional, Arquivo Privado de Jonathas Serrano, caixa 13), p. 6.

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104 A história na escola

foi em vão.43 Sua imagem como “pacificador do Império” se cristalizaria no dis-


curso do livro didático, fato observável no capítulo XXXI, quando Serrano narra
as revoltas sob a ótica das ações do protagonista Caxias, que interferiu nos movi-
mentos revolucionários do período imperial como “figura de especial relevo — o
grande Pacificador”.44
Serrano privilegiou em seu texto os antecedentes familiares de Caxias, que
pertencia “a uma família ilustre de militares e servidores da pátria”. Após apre-
sentar o currículo de Caxias, dedicou-se à construção de argumentos que ressal-
tassem o papel desse “ilustre vulto” no período imperial. O texto raramente não
enveredou pelos atos heroicos de Caxias, por suas estratégias militares eficientes
(“dotes excepcionais”), por sua conduta ética apreciável (“era mais militar do
que político”). Ao tratar de sua convocação para intervir, em 1842, no Rio Gran-
de do Sul, Serrano registrou: “árdua era a tarefa, sem dúvida; Caxias, porém já
demonstrara seu valor e do que era capaz”.45 Na conclusão do capítulo, a ideia de
sacralização da imagem de Caxias é visível:

Encerra-se, com a Praieira, o ciclo das revoluções, que assinala o primeiro decênio do
segundo reinado. Em todas — excetuando a última — o vulto de Caxias se impõe ao
respeito e à gratidão nacional pelo valor inestimável de sua obra de Pacificador, sal-
vando a unidade da Pátria.46

Para Bittencourt, o herói duque de Caxias sempre foi uma figura presente
no discurso do livro didático como “representante da unidade nacional”. Entre-
tanto, só a partir de 1937, no Estado Novo, Caxias passou a fazer parte das come-
morações nacionais. No calendário escolar havia um dia dedicado ao defensor
“da segurança nacional”. Em meados da década de 1930, os compêndios escolares
começaram a destacar os feitos desse soldado como “cidadão defensor da Pá-
tria”.47 Há uma valorização de Caxias como combatente dos inimigos internos,
os considerados rebeldes ou perturbadores da ordem estabelecida, mas também
dos externos, por suas atuações na Guerra do Paraguai.

43 Carvalho, 1995:51-56.
44 Serrano, 1968:335.
45 Ibid., p. 341.
46 Ibid., p. 344.
47 Bittencourt, 2000:60.

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Ao encerrar o capítulo em que destacou o acentuado progresso da nação


brasileira no século XIX, não poderia deixar de registrar a transformação da
capital, a cidade do Rio de Janeiro, que “mudou o seu aspecto ao longo desse
século”. Entre as mudanças ocorridas, foram citadas: a iluminação a gás, o policia-
mento reforçado, o crescimento dos bairros do Catete, de Laranjeiras e de
Botafogo, que, no primeiro reinado, eram simples chácaras. Medidas como a
construção, pelo visconde de Mauá, da estrada de ferro Pedro II, inaugurada em
1858; a inovação dos bondes em 1863, sobre trilhos de ferro e tração muar, depois
substituída pela tração elétrica e trilhos de aço, são alvos privilegiados na narra-
tiva.48 É perceptível a associação entre o personagem Mauá e a ideia de progresso.
Para Serrano, ele era “o tipo do grande homem de ação, promotor dos mais
variados empreendimentos. Inúmeras são as iniciativas e obras de utilidade pú-
blica ‘a que’ ligou seu nome”.49
Na concepção de José Murilo de Carvalho, os heróis “são instrumentos
eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação
dos regimes políticos”.50 Portanto, todo regime elege os seus heróis e elabora o seu
panteão cívico. A ideia de nação proposta por Serrano resgata do Império perso-
nagens como Caxias, d. Pedro II e Mauá. No advento da República, muitos desses
heróis foram revitalizados. Percebe-se dessa forma a necessidade de resgatar per-
sonalidades que “correspondam a um modo coletivamente valorizado” e que
atendam aos interesses do novo regime implantado, que carecia de legitimidade.
Afinal, a proclamação da República parecia ter sido um golpe militar, pois os
deodoristas não tinham uma “visão elaborada de república, almejavam apenas
posição de maior prestígio e poder para o Exército”,51 após o desfecho da Guerra
do Paraguai.
Para Serrano, o crescente progresso da nação ao longo do século XIX tor-
nou cada vez mais urgente que a abolição fosse consumada, pois a escravidão era
incompatível com a modernidade, representando o atraso. A propaganda
abolicionista se intensificou, diversos projetos emancipadores se disseminaram
pela Europa e na América no século XIX. Países como França, Inglaterra, Holanda,

48 Bittencourt, 2000:412.
49
Serrano, 1968:383.
50 Carvalho, 1995:55.
51 Ibid., p. 39.

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106 A história na escola

Portugal, Estados Unidos proclamaram a liberdade de seus escravos, e tais ideias


exerceram “influência no espírito do povo brasileiro” até culminar na Lei Áu-
rea.52 A abolição é vista como produto da ação exclusiva dos setores dirigentes:
“Desde 1852, começaram vários representantes da nação a trabalhar persistente-
mente a fim de obter do governo a emancipação gradual dos africanos”.53
Para o autor, a abolição de certa forma contribuíra para acelerar a procla-
mação da República, mas havia outras questões que também pressionavam o
regime monárquico, entre elas a “questão militar”. O Exército brasileiro voltara
da Guerra do Paraguai fortalecido como instituição, pois até então não existia
um exército moderno e profissional. Os oficiais brasileiros perceberam a função
secundária a que estavam submetidos no Império e passaram a reivindicar o reco-
nhecimento profissional e a ascensão política. O descontentamento dos militares
desencadeou uma série de ações contra o governo monárquico, que reagiu com
punições severas, como demissões, prisões ou transferências. Insatisfeitos, os mi-
litares passaram a encabeçar a campanha republicana, que conquistou diversos
adeptos entre as camadas médias urbanas. Afinal, a proclamação resultaria de
um levante de soldados apoiados por grupos políticos da capital.
O desejo de diversos setores da elite de instaurar um governo republicano
era crescente, embora não houvesse consenso sobre que modelo republicano de-
veria ser adotado. No entanto, algo era comum: a ideia de que a opção pela
república significava acertar o passo rumo à modernidade, ou seja, o sonho de
uma nação moderna e civilizada, de acordo com os padrões burgueses ocidentais,
não poderia ser mais adiado.
A partir da Constituição de 24 de fevereiro de 1891, o Brasil entrou numa
“fase política definitiva”. As bases do novo regime estavam assentadas no modelo
norte-americano, o Brasil transformara-se numa Federação de estados autôno-
mos, dirigidos por um governante escolhido por eleição direta. As primeiras pre-
sidências foram acometidas por revoltas e lutas civis; depois de controladas, ini-
ciou-se um período de relativa “calma e reconstrução”. Serrano ressaltou o governo
de Campos Sales como um dos “melhores” por ter proporcionado um período de
“calma e prosperidade econômica”. Em relação a Rodrigues Alves, destacou a
tarefa árdua de extinguir a febre amarela, fato alcançado graças à atuação de

52 Serrano, 1968:394.
53 Ibid., p. 395.

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Imagens recortadas 107

Oswaldo Cruz. Citou ainda a reforma Pereira Passos, que muito contribuiu para
o embelezamento da cidade do Rio de Janeiro.54
Segundo José Murilo de Carvalho, o modelo americano de república im-
plantado no Brasil diferenciou-se de forma marcante em relação ao dos Estados
Unidos. A nossa versão de república era de viés positivista; em nome do progres-
so, condenava-se a monarquia. Na linha dessa corrente, era imprescindível ocor-
rer a separação oficial entre Estado e Igreja, com “a imposição de um Executivo
forte e intervencionista”. Ora, a viabilização do “progresso” estava atrelada à
concepção de “ditadura” e isso só ocorreria mediante a ação estatal.55 Para Serra-
no, a república significava progresso para a nação, parecendo-lhe natural a esco-
lha de Deodoro da Fonseca para presidente, pois “fora ele o fundador do novo
regime, o chefe do Governo Provisório e, além disso, gozava de prestígio sem
igual entre os militares que o estremeciam como a um ídolo. Imprudente era até
uma oposição à sua candidatura”.56 O autor não questiona a viabilização do
“progresso” pela via autoritária.
Em linhas gerais, o conteúdo apresentado no período republicano tam-
bém baseou-se nas ações presidenciais e em seus feitos em prol da nação, ou ainda
nos acontecimentos considerados pelo autor como marcantes e mais representa-
tivos da época. De Deodoro da Fonseca até Washington Luís, Serrano dedicou-se
a destacar os atos presidenciais considerados por ele importantes; afinal, estes
brasileiros, dirigentes do Estado, estavam comprometidos com a construção da
ordem e do progresso. Isso não quer dizer que não houvesse conflitos. Diversas
revoltas e lutas civis foram relatadas, mas o que prevalecia era um sentimento
comum de preservação da paz nacional.
No discurso didático de Serrano, pode-se observar uma certa preocupação
em resgatar uma memória histórica que promovesse determinados personagens
a modelos de brasilidade, servindo como exemplos para os jovens estudantes, que
deveriam conhecer bem o passado para defender os interesses da pátria. Voltar ao
passado e reescrever a história significava criar uma tradição, categoria essencial
na construção da nacionalidade.57 Parece-me que Serrano secundarizou os con-

54 Serrano, 1968:454.
55
Carvalho, 1995:27-29.
56 Serrano, 1968:431.
57 Oliveira, 1987:65.

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108 A história na escola

flitos sociais, privilegiando as ações dos líderes estatais. Apesar de o nosso povo
ter se constituído pela miscigenação entre as “três raças”, não se configurou um
perfil homogêneo, e sua unidade só foi garantida pela dominação do branco/
português sobre as demais (a indígena e a negra). Enfim, para o autor, nossa
história foi protagonizada pelos dirigentes da nação.

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Imagens recortadas 109

Capítulo 5

Uma história de cruzamentos providenciais: o manual


didático de Octávio Tarquínio de Sousa e
Sérgio Buarque de Holanda

Márcia de Almeida Gonçalves *

O título deste capítulo é, por um lado, uma alusão a uma ideia forte presente no
texto didático eleito como objeto de investigação e, por outro, quer materializar,
como metáfora, parte dos percursos que informam e circunscrevem a construção
do que desejamos estudar. Os cruzamentos providenciais referem-se não só ao
inesperado que a própria prática de pesquisa pode ocasionar, como também à
dimensão circunstancial das histórias de trajetórias de autores e livros.
Em setembro de 2000, em pesquisa na biblioteca particular de Octávio
Tarquínio de Sousa e Lúcia Miguel Pereira, ao manusear o livro História do
Brasil, de autoria de Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda, publicado
em 1944 pela José Olympio Editora, tive uma grata surpresa: um envelope con-
tendo duas cartas jazia esquecido entre as páginas 180 e 181.

Eis a primeira carta, datilografada, datada de 28 de setembro de 1946:

Gilberto

Folheando, no escritório do nosso amigo José Olympio, a quinta edição de Casa-


grande e senzala, deparei, na página 464, com a nota seguinte: “O Sr. Sérgio Buarque de
Holanda, em sua História do Brasil, escrita de colaboração com o Sr. Octávio Tarquínio
de Sousa, parece concordar plenamente com a interpretação dos fatos da colonização

* Professora da Uerj e da PUC-Rio. Pesquisadora do grupo Oficinas da História e do Pronex


— Culturas Políticas e Usos do Passado: Memórias, Historiografia e Ensino da História.

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110 A história na escola

agrícola do Brasil oferecida neste ensaio desde 1933 (Veja-se na mesma História o
capítulo “Desenvolvimento econômico”, Seção I — “A vida rural: desenvolvimento da
agricultura”, especialmente p. 139-143).

A maneira pela qual você redigiu essa nota fere menos a minha vaidade do que a minha
dignidade intelectual, visto que a História do Brasil foi publicada como de autoria
minha e do Sérgio, sem discriminação das partes feitas por ele ou por mim. Uma obra
assim, não se pode, sem amesquinhar um dos autores, atribuir ao outro qualquer prima-
zia. Acresce que o meu nome, graças à exemplar modéstia do Sérgio, figura em primeiro
lugar. Ninguém entre nós admira e respeita mais do que eu o Sérgio, hoje um dos meus
mais íntimos e queridos amigos. O mais curioso, entretanto, é que todo o capítulo a que
você se reporta é de minha inteira e exclusiva autoria, embora de responsabilidade comum.
Tenho em meu arquivo os originais manuscritos que provam essa asserção.

Sou seu amigo e admirador


Octávio Tarquínio de Sousa

A segunda carta, manuscrita, datada de 1o de outubro de 1946:

Meu caro Octávio

Não imagina você com que espanto li sua carta. Pois não se concebe que consciente-
mente eu escrevesse uma palavra capaz de ferir a “dignidade intelectual” de um amigo
tão do meu afeto e da minha admiração. Examinei(narei) calmamente o caso. O
trecho citado de História do Brasil — sua e de Sérgio — refere-se à História Colonial
do nosso país, especialidade de Sérgio. Mais do que isso: sobre colonização agrícola ou
agrária do Brasil, assunto muito de Sérgio. Era assim natural que eu atribuísse aquele
trecho a Sérgio. Foi o que fiz. De modo nenhum concordo — outro ponto — em que
dizer-se do autor de um livro — de um dos autores — que o escreveu de colaboração
com outro, importe em diminuição para qualquer dos autores. [...] Não atribuo a
Sérgio a primazia como autor da História do Brasil. Apenas julguei-o — no que errei
— autor de um trecho do capítulo que, pelo assunto, interpretei como sendo dele,
mais especializado do que você em história colonial do Brasil. Esta é a explicação
franca e honesta. Julgo o autor do excelente livro que é José Bonifácio capaz de escrever
não só o capítulo em questão, como trabalhos de importância ainda maior.

Com a melhor amizade e admiração


Gilberto Freyre

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Uma história de cruzamentos providenciais 111

Dignidades autorais à parte, sem dúvida um sinal que guarda seu quinhão
de relevância, as cartas transcritas permitem afirmar que a história de um livro,
em especial os destinados ao mundo escolar, é, em certa medida, a história de seus
usos e apropriações sociais, no tempo presente de sua elaboração e nos tempos
outros, aqueles que, para nós, e para o caso específico do manual em questão,
apontam para seus “futuros passados”.1 Na procura destes, uma biblioteca particu-
lar, para além do lugar de coleção construída e expressão de identidades intelectuais,
pode se tornar o sítio arqueológico no qual vestígios os mais inusitados venham a
surpreender o pesquisador-leitor e alertá-lo: há aqui sinais de vida! Em outras pala-
vras, cruzamentos existenciais e providenciais que nos interessam situar.
Octávio Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda, amigos íntimos
pelos idos da década de 1940, só assinaram conjuntamente um único texto: Histó-
ria do Brasil, manual didático destinado, nos termos da época, à 3a série do curso
secundário, ciclo ginasial, volume integrante da coleção Livro Escolar Brasileiro,
lançada pela José Olympio Editora.2
Restrito a uma única edição, o manual em análise se afigura como sintoma
de algumas características do ambiente intelectual onde atuavam, entre outros,
os missivistas-autores, todos, a despeito das diferenças, envolvidos com a pers-
pectiva de fundar e fazer circular novas interpretações do Brasil, em tempos de
intensas formulações acerca do moderno e da modernidade, nessa sociedade.
Nesses termos, a investida na produção de narrativa didática, destinada a
alunos do ciclo ginasial, parece-me, na qualidade de projeto intelectual, iniciativa
relevante e que merece alguma reflexão. Objetivo, nos limites deste texto, realizá-la
a partir de três eixos: i) a identificação da trajetória e da inserção dos autores do
manual nas sociabilidades de uma comunidade interpretativa e intelectual; ii) a
caracterização sucinta das políticas governamentais de controle sobre livros e pro-
gramas escolares na época; e, especialmente, iii) a análise da narrativa didática em
foco, no que se refere à centralidade do uso de alguns argumentos e conceitos.

Trajetórias e sociabilidades

Em 1944, Octávio Tarquínio de Sousa, aos 55 anos de idade, ainda um dos minis-
tros do Tribunal de Contas da União, era o diretor da coleção Documentos Bra-

1 A expressão refere-se ao título de Koselleck, 2006.


2 Cf. Sousa e Holanda, 1944.

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112 A história na escola

sileiros, editada pela José Olympio, e autor de biografias históricas de estadistas


do Império — Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo, Evaristo da Veiga e
Diogo Antônio Feijó.3 Sérgio Buarque de Holanda, aos 42 anos, era, entre outras
atividades, crítico literário e o autor de Raízes do Brasil e de Cobra de vidro.4 Por
caminhos distintos, Octávio Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda
assumiram papéis de intelectuais comprometidos com as reflexões sobre o país.
Suas produções letradas, nos anos 1930 e no alvorecer da década de 40, compuse-
ram o conjunto de obras variadas, dispostas, na sua diversidade, a configurar,
rever e ampliar os estudos sobre as experiências históricas da nação brasileira.
Cumpre lembrar que Raízes do Brasil foi o título inaugural da coleção
Documentos Brasileiros, lançada em 1936, integrando, por parte do editor José
Olympio, mais um esforço, entre tantos, de expandir e circunscrever os estudos
brasileiros. Entre 1936 e 1939, a coleção foi dirigida por Gilberto Freyre. A partir
dessa data até 1959, ano do falecimento de Octávio Tarquínio de Sousa, esteve sob
sua responsabilidade.5
Os estudos brasileiros constituíram-se em campo de conhecimento, com
fronteiras pouco definidas, desde o decorrer da década de 1920 aos anos 50. Nos
quadros da época, tal campo englobou um amplo espectro de autores e obras,
que, por caminhos, temáticas e escolhas ideológicas variadas, vieram a eleger
como objeto maior de suas reflexões tudo o que fosse pertinente à análise da
cultura e da sociedade brasileiras.6
A emergência desse campo de estudos esteve intimamente imbricada com o
crescimento editorial no decorrer da década de 1930. Tal crescimento foi caracte-
rizado, entre outros aspectos, pelo aumento considerável da publicação de obras
de autores brasileiros, incluindo-se, entre elas, com números expressivos, os ma-
nuais escolares.7

3 Sousa, 1937, 1939 e 1942.


4 Holanda, 1936 e 1944.
5
Sobre a coleção Documentos Brasileiros, ver Franzini, 2007.
6 Sobre o projeto de constituir os estudos brasileiros em campo de conhecimento, ver Gonçal-
ves, 2003, em especial o capítulo intitulado “Retratos poliédricos do Brasil”.
7 Sobre a expansão da indústria de livros nos anos 1930, ver especialmente o capítulo II — “A
expansão do mercado do livro e a gênese de um grupo de romancistas profissionais” — de
Miceli, 1979:69-128. E também Hallewell, 1985:309-430.

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Uma história de cruzamentos providenciais 113

Destaca-se, pela longevidade e pela monumentalidade adquiridas, um


conjunto de coleções como a Brasiliana, dirigida por Fernando de Azevedo e
publicada pela Companhia Editora Nacional a partir de 1931; a já mencionada
Documentos Brasileiros, lançada pela José Olympio Editora em 1936, e a Biblio-
teca Histórica Brasileira, publicada pela Livraria Martins Editora a partir de
1940.8 Na avaliação de Monteiro Lobato, por ocasião do lançamento do centé-
simo volume da Brasiliana, em 1938, produziram-se “retratos poliédricos do
Brasil”.
Tanto as biografias assinadas por Octávio Tarquínio, quanto o ensaio de
Sérgio Buarque de Holanda — Raízes do Brasil — figuraram em coleções com-
prometidas com a análise da realidade nacional por meio da interpretação histó-
rica. No alvorecer da década de 1940, Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque já
haviam se tornado dois letrados renomados entre aqueles empenhados em
redimensionar a escrita da história do Brasil, nos termos suscitados pelas inquie-
tações modernistas e pelos questionamentos acerca da brasilidade.
Os autores partilharam igualmente outras sociabilidades intelectuais, en-
tre as quais cabe destacar a atuação, como membros fundadores, da Associação
Brasileira de Escritores (ABDE), em 1942. A criação da ABDE simbolizou uma
das primeiras iniciativas, por parte de alguns intelectuais, de usar o associativismo
corporativista, tão em voga na década de 1930, contra os excessos do autoritarismo
do Estado Novo. Entre os fundadores figuraram: Octávio Tarquínio de Sousa,
Sérgio Buarque de Holanda, Astrojildo Pereira, Graciliano Ramos, José Lins do
Rego, Sérgio Milliet, Mário Neme, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Abguar
Bastos, Lourival Machado, Paulo Emílio Sales Gomes, Antônio Cândido Melo e
Souza, Dionélio Machado, Érico Veríssimo, Reinaldo Moura e Raul Riff. Entre
algumas das iniciativas da ABDE, destacaram-se, quanto às reivindicações profis-
sionais, a elaboração do projeto de reconhecimento e regulamentação dos direi-
tos autorais, encaminhado à Assembleia Nacional Constituinte em 1946; e, quan-
to a certo ativismo político, a realização do I Congresso Brasileiro de Escritores,
em janeiro de 1945, em São Paulo. Em especial, esse congresso, por suas dimensões
e desdobramentos, representou uma das manifestações do processo de democra-
tização que então se iniciara.9

8 Para a análise comparativa dessas três coleções, ver Pontes, 1988:56-89.


9 Cf. Abreu et al., 2001, v. 1, p. 1535-1536.

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114 A história na escola

Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque de Holanda estiveram também pre-


sentes, no que se refere à história, entre os que contribuíram para a elaboração do
Manual bibliográfico de estudos brasileiros, gestado entre 1939 e 1949. Encon-
tram-se nessa publicação avaliações interessantes de determinados intelectuais,
entre os quais nossos autores, em tudo preocupados em assinalar uma espécie de
“estado-da-arte” no que se referia à escrita da história do Brasil.
Dirigido por Rubens Borba de Moraes e William Berrien, o Manual foi
apresentado como uma bibliografia crítica e seletiva, que pudesse servir de guia
introdutório aos estudos brasileiros.10 Programado, a princípio, para ser publi-
cado em inglês sob o título de Handbook of Brazilian studies, o Manual, ao longo
de imprevistos, entre 1939 e 1949, chegou aos afeitos e interessados pelas coisas do
Brasil em língua pátria com uma maioria de colaboradores de nacionalidade
brasileira.
O tópico relativo à história foi subdividido em: “Obras gerais — bibliogra-
fia”, de autoria de Rubens Borba de Moraes e Alice Canabrava; “Período coloni-
al”, de Sérgio Buarque de Holanda; “Independência — Primeiro Reinado — Re-
gência”, escrito por Octávio Tarquínio de Sousa; “Segundo Reinado”, de Caio
Prado Júnior; “República”, assinado por Gilberto Freyre; “Bandeiras”, de Alice
Canabrava; “Os holandeses no Brasil”, de José Honório Rodrigues; “Viagens —
bibliografia”, de Rubens Borba de Moraes; “Assuntos especiais — bibliografia”,
organizado por Caio Prado Júnior, que, nessa entrada, listou os seguintes tópi-
cos: escravidão africana, indígenas, Igreja, história econômica, história constitu-
cional, administrativa e jurídica. A bibliografia de cada uma dessas partes foi
sistematizada por Alice Canabrava e Rubens Borba de Moraes.
Cada autor que respondeu por textos introdutórios, a despeito das dife-
renças e das livres apropriações, buscou esboçar as fisionomias da sociedade bra-
sileira no curso de suas temporalidades históricas. Tentaram, assim, decifrar as
caras do Brasil, numa prospecção analítica que fazia da experiência e do conheci-
mento históricos os mananciais de resposta para muitos dos impasses que afeta-
vam a modernidade, um tanto capenga, de sua respectiva contemporaneidade.
Posaram, nas suas autoimagens, tanto como redescobridores do país, na pele de
eruditos que desbravavam tradições bibliográficas, monumentos e documentos,
quanto como reinventores da nação, na qualidade de mentores dos temas e das

10 Cf. Moraes e Berrien, 1949:iii.

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Uma história de cruzamentos providenciais 115

questões imprescindíveis para a elaboração de novas interpretações críticas da


cultura e da sociedade brasileiras.
Mesmo sintéticos, por vezes fugindo da função de comentar mais detida-
mente a seleção bibliográfica que se dispuseram a apresentar, os textos de Caio
Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Octávio Tarquínio de Sousa
ilustraram a tentativa de demarcar uma historiografia brasileira que se pretendia
moderna, naquilo que esse adjetivo carregava das implicações, ambiguidades e
controvérsias do movimento modernista, entre intelectuais brasileiros.
Segundo Elias Thomé Saliba, entre os que se dedicaram a uma análise mais
cuidadosa do que conformava nossa brasilidade, houve, ao lado de pesquisas
mais aprofundadas sobre a história brasileira, a substituição do uso recorrente
do conceito de raça pelo de cultura. Nas palavras de Elias Saliba, um culturalismo
de difusas raízes antropológicas conduziu reinterpretações do passado brasileiro
e reinvenções da história: Franz Boas em Gilberto Freyre, Lèvy-Bruhl e Frazer em
Mário de Andrade, historistas alemães em Sérgio Buarque.11
Nesses termos, talvez se possa compreender e situar o que as duas cartas
mencionadas anteriormente poderiam significar nos idos daquele segundo se-
mestre de 1946. Gilberto Freyre, na quinta edição de seu Casa-grande e senzala,
incluía, em nota, menção ao manual didático recém-publicado (1944) e destaca-
va o quanto esse se aproximava da “interpretação dos fatos da colonização agrí-
cola do Brasil” presente em seu livro, cuja primeira edição remontava a 1933. Ao
demonstrar conhecimento do que então se publicava e, acima de tudo, ao valori-
zar certa interpretação das experiências da colonização brasileira, Gilberto Freyre
não só a reificava, como, principalmente, destacava seu lugar, junto a outros,
entre eles Sérgio Buarque de Holanda, na qualidade de novos intérpretes a fazer
circular, na forma de livros, tais formulações.
Não espanta que Octávio Tarquínio de Sousa, pelas posições que então
ocupava como intelectual, se visse incomodado com a forma pela qual Gilberto
Freyre identificara, na mencionada nota, as possíveis colaborações específicas
para um texto assinado em coautoria. Sentira-se, arriscaria dizer, excluído da
construção de ideias para as quais havia contribuído enormemente.
História do Brasil, destinado à 3a série do curso secundário, ciclo ginasial,
lançado pela José Olympio em 1944, não parece ser apenas mais uma investida do

11 Cf. Saliba, 2000:47.

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116 A história na escola

perspicaz editor, qual seja, a aposta no mercado dos “manuais escolares”. A meu
ver, algo mais ali se corporificava no que respeita ao jogo de interesses e motiva-
ções entre editores, autores e leitores, a saber: a aposta em fazer circular novas
interpretações sobre a formação histórica do Brasil.
Assim, no caudal das releituras do passado brasileiro, firmaram-se e
retroalimentaram-se identidades intelectuais que, como as cartas citadas pontu-
almente registraram, não vieram apenas suscitar enfrentamentos entre dignida-
des autorais, mas também contribuíram para a formação de uma comunidade
interpretativa empenhada nas ressignificações da escrita da história.

Políticas governamentais para livros e programas escolares

História do Brasil seria o veículo para atingir o público escolar, em tempos em


que este passara a ser objeto privilegiado de políticas do Estado. Tanto quanto as
ambiências intelectuais nas quais se inseriu a elaboração do texto em análise, é
importante não perder de vista a relação desse mesmo manual com os que vieram
a ser produzidos no contexto de modificações ocasionadas pelas políticas educa-
cionais do governo varguista, em especial durante a gestão de Gustavo Capanema
no Ministério da Educação e da Saúde (MES), entre 1934 e 1945, com destaque
para o período de vigência de práticas intervencionistas e autoritárias do Estado
Novo (1937-1945).
Entre algumas mudanças, destacaram-se medidas de natureza centralizadora
e reguladora por parte do MES, no sentido de homogeneizar e controlar os currí-
culos escolares, legislando inclusive sobre os conteúdos e a seriação dos progra-
mas. Tais iniciativas dialogaram com o intenso debate sobre reformas no ensino
brasileiro, potencializado no decorrer dos anos 1920 e associado às iniciativas de
intelectuais e educadores que atuaram na Associação Brasileira de Educação. Na
década de 1930, as condições políticas vigentes viabilizaram práticas interven-
cionistas por parte de novos organismos estatais e a implementação de duas im-
portantes reformas do ensino secundário: a promovida por Francisco Campos,
em 1931, e a efetivada por Gustavo Capanema, em 1942.
A reforma Capanema, entre outras transformações, instituiu a divisão do
curso secundário em duas partes: o ciclo ginasial, composto de quatro séries, e o
ciclo colegial, com três séries. Promoveu também mudanças curriculares, entre as
quais interessa destacar a separação da disciplina “história do Brasil” da discipli-
na “história da civilização”, sendo o ensino da primeira circunscrito às 3a e 4a
séries do ciclo ginasial, mediante a divisão de conteúdos programáticos estabele-

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Uma história de cruzamentos providenciais 117

cidos pela própria deliberação ministerial. A reforma Capanema estabeleceu um


lugar privilegiado para o ensino da história do Brasil, e mais, uma rígida determi-
nação de seu currículo.12
O manual didático assinado por Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque de
Holanda obedecia a essas determinações curriculares, seguindo, como explicitado
em sua folha de rosto, o programa oficial. O sumário dos capítulos, seus títulos e
subdivisões,13 repetia, palavra por palavra, o programa de história do Brasil
para a terceira série do ciclo ginasial constante do texto da lei que instituiu a
reforma do ensino secundário de 1942. Tamanha obediência ao programa oficial
não era uma questão da alçada do livre arbítrio autoral. A partir de 1938, a
Comissão Nacional do Livro Didático passou a analisar e a autorizar a publica-
ção de manuais escolares, velando, em particular, pelo cumprimento dos progra-
mas oficiais.
A obediência às determinações do Ministério da Educação não deve, toda-
via, ser tomada como um elemento de homogeneização integral da forma como
certas temáticas, questões e escolhas conceituais foram abordadas nos manuais
publicados a partir de 1942. Por mais que possam existir ênfases em comum,
como a relação entre história e a formação do sentimento e da unidade nacionais,
houve especificidades no tocante ao uso de certos conceitos. Passemos, então, a
essas considerações.

Cruzamentos providenciais

No caso do livro de Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque de Holanda, os autores


pareceram querer investir num veículo precioso de divulgação de enfoque
culturalista na maneira de narrar a formação da sociedade e da nação brasileira.
Os elementos constitutivos de uma nação moderna — o território, o povo, o
Estado — não deixaram, como conceitos, de estar presentes na narrativa didática

12 Para uma interessante discussão sobre essas transformações, ver Reznik, 1992, em especial
o capítulo II: “O lugar da história do Brasil”, p. 45-149.
13 Os capítulos correspondiam a uma ordenação das temáticas a serem abordadas na série
em questão, a saber: I — O descobrimento; II — Os primórdios da colonização; III — A
formação étnica; IV — A expansão geográfica; V — Defesa do território; VI — Desenvolvi-
mento econômico; VII — Desenvolvimento espiritual; VIII — O sentimento nacional; IX — A
independência. Cf. Sousa e Holanda, 1944:7-8.

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118 A história na escola

de Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio. Ocuparam, entretanto, uma triangulação


cujo eixo centrou-se no processo de constituição dos valores que regeram (e re-
gem) comportamentos, hábitos, práticas políticas e relações sociais, a urdir iden-
tidades, entre elas a que levou à constituição da nação.
Nesses termos, a fisionomia da sociedade brasileira era desenhada por sua
cultura, gestada no curso das experiências históricas que formaram o povo/etnia
brasileira. Cumpre, nesse sentido, assinalar o quanto o território, nas suas deter-
minações climáticas e naturais, ocupou, em alguns aspectos, lugar secundário em
ponderações marcadas por certo historismo valorizador das ações únicas e parti-
culares de sujeitos humanos individuais e/ou coletivos.14
Se o título dos capítulos, como visto na nota 13, e também suas subdivisões
em itens registravam o cumprimento integral do programa oficial proposto e
fiscalizado pelo MES, algumas características da narrativa ofertada aos leitores
demarcavam escolhas e ênfases autorais. Assim, misturaram-se às descrições o
ensaísmo de algumas análises, como as que, no capítulo I, situaram o valor da
carta de Pero Vaz de Caminha.15 Em algumas passagens, como as que apresenta-
ram as lutas de expulsão dos holandeses do Nordeste, no capítulo V, algo muito
próximo ao tom épico transformou o episódio quase em uma saga sangrenta e
vitoriosa dos que pugnaram pela defesa do território brasileiro.16
Entre as cerca de 20 imagens que figuram ao longo do texto, pode-se iden-
tificar o gosto dos autores por fotos de ruínas, vestígios e monumentos
arquitetônicos do passado colonial brasileiro, com destaque para um conjunto
expressivo das que compunham o acervo do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Para além da mensagem subliminar de que o passado se fazia
presente, o Serviço do Patrimônio Histórico parecia ter sua função social devida-
mente registrada como valor para as novas gerações de brasileiros.
Cada capítulo trazia, ao fim, uma leitura complementar retirada tanto de
documentos de época quanto de obras outras da história do Brasil. No capítulo
II, sobre os primórdios da colonização, utilizaram-se nessa qualidade fragmentos
dos Diálogos das grandezas do Brasil e de uma carta do padre Manuel da
Nóbrega.17 Trecho de Vida e morte do bandeirante, de Alcântara Machado, fina-

14 Sobre o conceito de historismo, ver Holanda, 1979:7-62.


15
Cf. Sousa e Holanda, 1944:26-30.
16 Ibid., p. 125-135.
17 Ibid., p. 72-75.

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Uma história de cruzamentos providenciais 119

lizava o capítulo IV, sobre a expansão geográfica.18 Capistrano de Abreu e seus


Capítulos de história colonial, Eduardo Prado, em uma de suas conferências, e
Oliveira Lima, em seu O movimento da independência, apareceram, respectiva-
mente, nos capítulos V (Defesa do território), VII (Desenvolvimento espiritual)
e IX (A independência). A presença desses textos sugeria ao leitor que havia mais
a ser pensado sobre as experiências históricas abordadas em cada um dos capítu-
los e, ao fazê-lo, identificava alguma ênfase entre essas possíveis outras reflexões.
O capítulo citado por Gilberto Freyre, em nota da quinta edição de Casa-
grande e senzala, alvo, como caracterizei, de pontuais tensões entre amigos, era
na verdade o item inicial das análises sobre o desenvolvimento econômico,
intitulado “A vida rural: desenvolvimento da agricultura”. Para compreender-
mos o quanto algumas considerações desse capítulo corroboraram a chave
freyriana de que nele havia algo de comum na interpretação dos fatos da coloni-
zação do Brasil, vale a citação de uma de suas passagens:

A sociedade brasileira durante o período colonial — e em larga parte ao tempo do


Império e ainda mais tarde — assentou suas bases na vida rural, eixo de todas as
atividades econômicas e sociais. A exploração agrícola foi a forma característica da
produção e só se tornou possível por meio do latifúndio ou grande propriedade
territorial, concentrada num só produto e tendo a seu serviço o trabalho escravo.
Constituiu-se assim no Brasil colonial uma sociedade agrária de senhores e escravos,
que se prolongaria até o final do século XIX e cujas influências na nossa fisionomia e
nosso íntimo são ainda evidentes.19

Sem entrar no mérito da maior ou menor novidade desse tipo de interpre-


tação, hoje inegavelmente banalizada em tantos textos historiográficos acadêmi-
cos ou didáticos, cabe destacar o quanto algumas ênfases merecem o devido des-
taque, entre elas a de que as heranças de práticas econômicas e sociais ainda estariam
presentes “na nossa fisionomia e nosso íntimo”.
Antes de qualquer descrição dessas práticas, objeto maior do capítulo de-
dicado ao desenvolvimento econômico, ao leitor se punha uma questão na forma
de um atavismo, a lhe sugerir que, no caso do Brasil, o passado ainda se fazia
presente e que a compreensão deste último dependia do primeiro, em particular

18
Sousa e Holanda, 1944:116-117.
19 Ibid., p. 139.

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120 A história na escola

quando se refletia sobre o desenvolvimento e a formação da sociedade e da nação.


Diferenças, divergências, dignidades à parte, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque,
Octávio Tarquínio e tantos outros, entre contemporâneos e seguidores, viram
nessa perspectiva uma espécie de razão prática para se estudar e escrever a história
do Brasil.
Avalio que algumas ênfases analíticas que informaram essa razão práti-
ca, base do que inicialmente denominei perspectiva culturalista e historista,
possam ser verificadas no capítulo dedicado à formação étnica. Neste, por sua
própria temática, os autores condensaram abordagens sobre a formação do
povo e da fisionomia da sociedade brasileira, focando, entre outros, o conceito de
mestiçagem.
O texto não fugiu da receita de identificar e relacionar as contribuições
específicas dos três elementos formadores de uma “etnia brasileira”; o fez, contu-
do, designando as características intrínsecas a cada um dos grupos mencionados
— o elemento branco, o indígena, o negro —, e mais, diversificando suas respec-
tivas composições internas.
O “elemento branco” era, em larga medida, o “povo português”, de “for-
mação complexa”, tendo sido, contudo, essa mais “homogênea”, se comparada a
outros europeus.20 Vale acrescentar que, no capítulo inicial, intitulado “O desco-
brimento”, na parte referente às origens de Portugal, os autores configuraram a
formação do reino em estreita articulação com a mistura de povos distintos
na ocupação das terras da península Ibérica, numa abordagem em sintonia
com a percepção de entender essa região como uma fronteira da Europa, na
maneira como essa questão foi tratada em Raízes do Brasil.21
Na caracterização do “elemento branco”, os autores foram enfáticos quan-
to à insuficiência de fatores raciais ou biológicos na explicação de certos aconteci-
mentos da história de Portugal. Mais do que esses, transformações econômicas e
políticas deveriam compor o feixe de causalidades para se entender a expansão
marítima portuguesa e a ação colonizadora dos que aportaram nas terras ameri-
canas.22
Segundo os narradores, os portugueses que para a América se deslocaram
foram portadores de um “espírito mercantil”, de um “amor ao lucro fácil”, e

20
Sousa e Holanda, 1944:76.
21 Ibid., p. 11-30; Holanda, 1995:29-40.
22 Cf. Sousa e Holanda, 1944:76.

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Uma história de cruzamentos providenciais 121

buscaram “aventuras”, sem medir “riscos e perdas”. Nas palavras do texto, os


portugueses colonizadores, “no aproveitamento das riquezas do solo, agiram
sem prudência e parcimônia, movidos antes por uma espécie de instinto predató-
rio do que por uma energia realmente produtiva”.23 O cronista Fernão Cardim
era citado, em socorro ao argumento dos autores, para acrescentar uma conclu-
são interessante, qual seja, a de que “em Pernambuco se achava mais vaidade do
que em Lisboa”.24
Os povoadores dos primeiros séculos, na ótica dos autores, foram, em sua
maioria, aventureiros ávidos por riquezas e ganhos fáceis, dispostos a se transfor-
mar em fidalgos à custa de uma relação predatória com as novas terras. Há que se
verificar nessa interpretação a presença de argumentos de Raízes do Brasil, em
especial o capítulo sobre os conceitos de trabalho e aventura.25
O tom aparentemente desqualificador do caráter dos portugueses coloni-
zadores foi atenuado por uma conjectura que justificava os fins pelos meios:

É possível que para a conquista e desbravamento das nossas terras, esses homens mais
ousados do que previdentes fossem em verdade os melhor indicados. Em país tropical
e cheio de problemas imprevistos, não existia, talvez, lugar para o trabalho tenaz e
paciente do lavrador europeu.26

Ao discutirem o elemento indígena, os autores buscaram identificar e dife-


renciar os principais grupos encontrados e contatados pelos elementos brancos
no decorrer da conquista e da colonização. Destacaram a importância dos gru-
pos tupis, especificando costumes, hábitos, situando o valor ritual da guerra e da
antropofagia para essas tribos, avaliando a relevância da língua geral para a obra
colonizadora. As migrações tupis foram mencionadas e entendidas como fator
favorável à conquista portuguesa em áreas litorâneas. Segundo os autores:

A importância singular dos povos tupis no estudo da história do Brasil está em que, de
todos os grupos indígenas, foi esse o que verdadeiramente se incorporou à população
de origem européia, transmitindo-lhe muitos dos seus costumes e de seu temperamento e

23 Sousa e Holanda, 1944: 77-78.


24
Ibid., p. 78.
25 Cf. Holanda, 1995:41-70.
26 Cf. Sousa e Holanda, 1944:78.

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122 A história na escola

caráter. O fato de terem encontrado a maior parte de nosso litoral povoado de gente de
estirpe comum, falando do Norte ao Sul o mesmo idioma, foi certamente providencial
para os colonos. Pode-se quase dizer que as migrações tupis prepararam terreno para a
conquista do Brasil pelos portugueses. Onde surgiam claros na dispersão dos tupis,
também se interrompia, não raro, a obra colonizadora. Assim sucedeu, por exemplo,
em vários pontos do sul do atual Estado da Bahia e do norte do Espírito Santo.27

A despeito do diagnóstico sobre a importância das tribos tupis para a obra


da colonização, os autores cuidaram também de caracterizar os grupos abriga-
dos pela designação genérica de tapuias, particularizando nomes de tribos e tron-
cos linguísticos. Todos, enquanto personagens coletivos, haviam participado de
alguma forma na composição da etnia brasileira.
A caracterização do elemento negro esteve, por um lado, associada ao
mapeamento dos grupos étnicos africanos trazidos pelo tráfico intercontinental;
por outro, e isso nos parece ser mais significativo, “os africanos” foram apresenta-
dos como “parte inseparável da paisagem econômico-social nascida no Brasil
com o latifúndio açucareiro”.28 Nesse aspecto, toda a ênfase dos autores recaiu
sobre a discussão do trabalho escravo e das relações entre este e seus senhores.
Pode-se afirmar que, em certa medida, no texto em análise, a condição escrava
tornou-se uma espécie de determinante, a guiar a vida e os valores dos africanos
que vieram a ser trasladados para as possessões portuguesas na América.

Nas palavras dos autores:

Muitos escritores observam que, sendo os portugueses, tradicionalmente, dos mais


ferozes escravagistas, comparados a outros povos, eram, contudo, amos suaves e
complacentes. Não obstante essa informação, que é preciso aceitar com reservas,
muitos negros não suportavam facilmente o cativeiro nas grandes propriedades ru-
rais. Recorriam por vezes ao suicídio ou evadiam-se para os matos, onde iam viver em
liberdade, praticando seus costumes ancestrais. Inúmeros foram, em todo [o] Brasil,
os núcleos de negros fugidos, os quilombos, como se chamavam. O mais célebre
desses quilombos, o dos Palmares, ofereceu aos brancos uma resistência heróica, de
longos anos, e só pôde ser definitivamente aniquilado em fins do século XVII.29

27 Sousa e Holanda, 1944:84-85.


28
Ibid., p. 87-88.
29 Ibid., p. 89-90.

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Uma história de cruzamentos providenciais 123

As passagens referentes ao “elemento negro” trataram ainda, sinteticamente,


dos libertos e dos negros de ganho. Um tópico conclusivo foi dedicado à “influência
africana”, perceptível, segundo os autores, na música, nas danças, na culinária,
nas crenças de camadas mais humildes da população brasileira, na língua, em
função do influxo de dialetos africanos. Para Octávio Tarquínio e Sérgio Buarque
de Holanda, “em muitos outros aspectos de nossa vida social, a influência dos
escravos exerceu-se efetivamente, sem que se possa, em certos casos, medir sua
exata contribuição”.30
O último tópico do capítulo sobre a formação étnica foi dedicado à “etnia
brasileira”, entendida, em linhas gerais, como a “população atual” do Brasil.
Feitas algumas relativizações sobre graus e proporções das misturas entre bran-
cos, negros e índios, nas diversas regiões do Brasil, em função de localismos e
particularidades dos processos de conquista e colonização, os autores cuidaram
de grifar, mais uma vez, o valor positivo da mestiçagem como fator constitutivo
da própria colonização. Segundo eles:

graças sobretudo ao caldeamento com raças longamente habituadas ao meio tropical,


puderam os portugueses desenvolver amplamente seu esforço colonizador. A
mestiçagem veio a tornar-se entre eles um elemento positivo de aclimação e adaptação
às formas de existência peculiares à zona tórrida.

A raça branca pura — disse Couto de Magalhães — na terceira ou quarta geração,


sobretudo nas cidades do litoral, dá apenas descendentes magros e nervosos, ou gor-
dos, de carnes e musculações flácidas e de temperamento linfático […] Prosseguindo,
afirma, talvez sem exagero, que a raça branca não pode conservar sua superioridade
sem esses cruzamentos providenciais.31

O valor desses cruzamentos providenciais era reiterado nos tópicos finais


do capítulo, ambos a situar menos o providencialismo e mais os resultados, pou-
co controláveis e previsíveis, das experiências históricas de uma sociedade. Assim,
seguiram-se a valorização da contribuição dos mamelucos, tomados como mesti-
ços de índios e brancos, e avaliações sobre a composição da população brasileira
na atualidade dos autores, década de 1940, momento em que se julgava serem

30 Sousa e Holanda, 1944:91.


31 Ibid., p. 93.

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124 A história na escola

mais numerosos os brancos. Cuidaram os autores, contudo, de acrescentar que


nem sempre tal situação se manifestara. Frisaram, então, como última informa-
ção para os leitores, que, na época da independência, a maioria da população era
de cor (negros, índios e mestiços). Para corroborar tais formulações, o texto
complementar ao capítulo, de autoria de Nina Rodrigues, retirado de Os africa-
nos no Brasil, apresentava dados em que figuravam estatísticas reveladoras desses
outros tempos.32

À guisa de conclusão

Muito mais poderia ser dito sobre o manual didático aqui tomado como objeto
de reflexão. Espero que os eixos inicialmente propostos — “a identificação da
trajetória e da inserção dos autores nas sociabilidades de uma comunidade
interpretativa e intelectual, a caracterização sucinta das políticas governamen-
tais de controle sobre livros e programas escolares e a análise da narrativa didáti-
ca em foco” — tenham, em alguma medida, nos seus cruzamentos, configurado
uma interpretação sobre alguns dos valores e significados da História do Brasil de
Octávio Tarquínio Sousa e Sérgio Buarque de Holanda.
Se os cruzamentos providenciais que informaram chaves interpretativas
do texto e dos autores em questão me motivaram a pensar sobre estes, acredito
que ainda há o que investigar. Se isso é o álibi, como estratégia retórica, para fazer
do ponto final uma possibilidade de novas indagações, que assim seja, arrisco.
De todo, entretanto, nessa lógica, vale uma última consideração: a de que,
nos tempos de produção daquele manual escolar — décadas de 1930 e 40 —,
tempos de apostas numa possível reinvenção da escrita da história do Brasil, as
conexões e intercâmbios entre as interpretações do que hoje conceituamos como
historiografia acadêmica e historiografia didática, tratadas por vezes como sea-
ras distintas, fossem de outra natureza, com fronteiras mais porosas, ao estilo de
cruzamentos providenciais. Ao nos debruçarmos sobre essa hipótese, comprova-
da ou não, quiçá tenhamos muito a aprender.

32 Sousa e Holanda, 1944:93-96.

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Capítulo 6

História da liberdade no Brasil, ou quando uma


história acaba em samba*

Angela de Castro Gomes **


Vanessa Matheus Cavalcante ***

Quem por acaso folhear a História do Brasil verá um povo cheio de esperança.
Desde criança, lutando para ser livre varonil.

Aurinho da Ilha, 1967

O brasileiro sempre teve a vocação da liberdade.


Não quis nunca ter dono. Não quis nunca ser escravo.

Viriato Corrêa, 1962

Era 11 de abril de 1967. No salão da Academia Brasileira de Letras (ABL) havia


especial movimento, pois falecera, no dia anterior, aos 83 anos, um de seus
imortais: Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho. Longo nome e longa
vida, pois nascera em janeiro de 1884, em Pirapemas, Maranhão, vindo ainda
jovem para o Rio de Janeiro, onde construiu sua carreira no mundo das letras.
Como muitos outros intelectuais de seu tempo, pode-se dizer que fora um

* Este texto faz parte de projeto de pesquisa Viriato Corrêa: História, Memória e Ensino de
História, em início de desenvolvimento.
** Pesquisadora sênior do Cpdoc/FGV e professora titular de história do Brasil da UFF.
*** Graduanda de história na UFF e bolsista de iniciação científica da Faperj (2006/2007) no
Cpdoc/FGV.

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126 A história na escola

polígrafo, combinando a literatura com o jornalismo e, no seu caso, com o


teatro. Mas sua atuação de há muito tinha uma forte marca: ele era, antes de
tudo, um grande nome da literatura infantil brasileira, superado apenas, se-
gundo inúmeras avaliações, por Monteiro Lobato. Assim, na também longa
lista de livros de sua autoria, por volta de 40 títulos, destacavam-se aqueles
voltados para um público infanto-juvenil, entre os quais o mais famoso era
Cazuza, cuja primeira edição datava de 1938, mesmo ano em que seu autor
entrara para a ABL como tanto desejara.
Como membro dessa prestigiosa instituição havia 30 anos, seu corpo nela
estava sendo velado em câmara ardente. De lá, sairia para o mausoléu do Cemité-
rio São João Batista, onde seria enterrado ao lado de tantos outros acadêmicos,
que receberam esse mesmo tipo de consagração fúnebre, a começar pelo funda-
dor da Casa, Machado de Assis. Mas o velório de Viriato Corrêa guardava algu-
mas especificidades, como destacaram as várias matérias de jornal que o noticia-
ram.1 Entre os muitos presentes que deixaram registro na lista de condolências
mantida nos arquivos da ABL estavam literatos, artistas, políticos e amigos, al-
guns chamando a atenção:2 Apollo Corrêa, pela família; Josué Montello, tam-
bém maranhense e imortal da ABL, o grande, talvez o maior de todos os amigos;
Tarso de Moraes Dutra, ministro da Educação e Cultura do governo do general
presidente Costa e Silva; Dercy Gonçalves e Eva Todor, damas do teatro brasilei-
ro, especialmente de um teatro muito aplaudido e popular; Alberico Melo, que,
em nome da Casa dos Artistas, registrava a perda de um de seus criadores; João
Paiva dos Santos, que se identificou como o “Rei do Samba”, e toda a diretoria da
junta governativa do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Sal-
gueiro. Aliás, um dos aspectos mencionados pelos jornais era o fato de o corpo
estar coberto com o estandarte do Salgueiro, uma vez que, no último Carnaval, o
último livro de Viriato, História da liberdade no Brasil, fora escolhido como
enredo dessa agremiação. Nessa oportunidade, o autor, já muito idoso e doente,
mas perfeitamente lúcido, tornara-se também um “acadêmico do Salgueiro”, ou

1 “Enterro de Viriato sai da Academia”, manchete de primeira página, e “Escritor Viriato


Corrêa morre no Rio aos 83 anos”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 abr. 1967. Primeiro
Caderno, p. 1. “Crianças perderam ontem grande intérprete”. Diário de Notícias, Rio de
Janeiro, 11 abr. 1967. p. 6.
2
Academia Brasileira de Letras (ABL), Arquivo Privado Viriato Corrêa, pasta Homenagens,
ano: 1967, 120-H.

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História da liberdade no Brasil 127

seja, alcançara, se isso é possível, uma dupla imortalidade, pelo menos aos olhos
dos amantes do Carnaval, a grande festa do povo brasileiro. Outro fato destaca-
do fora o discurso emocionado do presidente da ABL, Austregésilo de Ataíde,
apontando para a perda inestimável do “guia da formação espiritual das gera-
ções, nas quais infundiu o sentido do livre exercício da democracia, o primeiro e
mais honroso dever do cidadão”.3
É bom então recordar que a ABL, desde sua organização no fim do século
XIX, estabelecera como norma diretiva o não envolvimento de seus imortais com
a política, assunto perigoso e claramente do gosto dos mortais, como se sabe.
Além disso, desde 1964, quando se instalara o regime militar no Brasil, a ABL
sofrera certos estremecimentos em função da conjuntura política, o que envolve-
ra, inclusive e diretamente, o próprio Viriato Corrêa. Isso porque, pelo menos
segundo notícias de jornal, aventara-se a apresentação do nome do general presi-
dente Castelo Branco a uma cadeira na Casa, o que motivara uma declaração
sintética e incisiva do autor de literatura infantil: “A ABL não é para militares”.
Até que ponto a “candidatura” tinha fundamento ou era um mero boato talvez
jamais se saiba, mas muito provavelmente Viriato não tenha falado apenas por si,
embora assumisse, pessoalmente, a responsabilidade por suas declarações.4 De
toda forma, a saudação de Austregésilo de Ataíde alguns anos depois desse episó-
dio, destacando o exercício da democracia como o primeiro e mais honroso dever
do cidadão brasileiro, não deve ser encarada como ingênua. Afinal, profissionais
da palavra e profissionais em se esquivar da política, os acadêmicos da ABL (e
também os das escolas de samba) sabiam fazer política à sua maneira. Breve e
certeiro, o presidente apontava o significado que a ABL queria dar à obra de
Viriato Corrêa em 1967: ela devia ser compreendida como uma contribuição
fundamental ao aprendizado da democracia; ela materializava a preocupação e a
contribuição dos intelectuais brasileiros com a formação das novas gerações no
respeito e amor à liberdade. Este seria o legado de Viriato Corrêa à literatura e à
cultura do país. Esta seria a memória a ser cultivada por todos, no exato momen-
to em que o velho acadêmico, não apenas metaforicamente, tornava-se imortal.
Portanto, vale igualmente notar que não era tão frequente e natural ver os
salões da ABL repletos de personalidades tão distintas, e distintas em vários senti-

3 Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 12 abr. 1967.


4 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 dez. 1964.

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128 A história na escola

dos. O clima político era difícil, embora ainda não se soubesse o quão mais difícil
se tornaria após dezembro de 1968, quando desabaria sobre o país e suas manifes-
tações políticas e culturais o Ato Institucional no 5, que acabou pondo fim às
esperanças de retorno à democracia, tão decantada em discursos no Congresso
e tão demandada em passeatas nas ruas de várias cidades durante os anos de 1967
e 1968. De certa forma, visto a posteriori, o ano de 1967 foi um ano liminar. Mas
também foi agitado e surpreendentemente glorioso, pelo menos para Viriato
Corrêa.
A razão principal, como já antecipamos, foi ter sido homenageado com a
escolha de seu livro, História da liberdade no Brasil, para tema do enredo do
Salgueiro, com tudo o que se tem direito: cenário, fantasia, canto, dança, aplausos
etc. Para um homem de teatro, como Viriato, tornar-se tema do desfile de uma
escola de samba, e de uma grande escola, era mais ou menos como encenar uma
peça de sua autoria no palco mais cobiçado e iluminado do Brasil. No caso, o
palco da avenida Getúlio Vargas, com o enorme elenco do Salgueiro. Não é pou-
co, razão pela qual a junta governativa do referido grêmio compareceu em bloco
quando seu homenageado faleceu.
O objetivo deste texto é justamente acompanhar a evolução (no sentido
carnavalesco e, não, cientificista) dos movimentos que permitiram o encontro
dessa escola de samba com Viriato Corrêa, nesse período tão tenso e denso da
história do Brasil. Com isso, desejamos dar maior destaque a esse intelectual, hoje
pouco conhecido e reconhecido, valorando a função dos “mediadores” culturais
e chamando a atenção do leitor para as múltiplas e inusitadas formas de apropria-
ção de um texto.

Quando as academias se encontram, dá samba

O encontro do imortal da ABL com os acadêmicos do Salgueiro se deu por causa


de um livro. Seu título era História da liberdade no Brasil e ele foi publicado pela
Editora Civilização Brasileira, uma das mais importantes do Brasil, em 1962.
Nesse ano, o presidente da República era João Goulart, mas ele governava sob um
regime parlamentarista, condição que lhe fora imposta por uma junta militar
para diminuir seus poderes e permitir que assumisse, legalmente, o cargo a que
tinha direito como vice-presidente. O presidente Jânio Quadros, eleito de forma
estrondosa pela União Democrática Nacional (UDN) e que tomara posse em
janeiro de 1961, renunciara poucos meses depois, em agosto, mergulhando o país
em uma crise gravíssima, que a “solução” parlamentarista contornara. Jango,

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História da liberdade no Brasil 129

como era conhecido, aceitara a fórmula, mas, desde que assumira o cargo, traba-
lhava pelo retorno ao presidencialismo, o que de fato ocorreria, em janeiro de
1963.
Os anos 1960, especialmente nesse espaço de tempo que interessa à história
aqui contada — 1962-1967 —, são dignos de um narrador treinado em deslindar
conspirações, golpes, rebeliões, resistências etc. Tudo que Viriato gostava de fazer
e fazia havia décadas. História da liberdade no Brasil pode ser considerado o
último de seus inúmeros trabalhos, que alcançavam boas vendagens, como ele
mesmo reconheceu em entrevista realizada em 1966. Estamos há 15 anos inteira-
mente dedicado à literatura infantil, explicara que fazia isso “primeiro porque dá
dinheiro e, segundo, porque as crianças prestam muita atenção aos livros a elas
dedicados e a seus autores”.5 Mas, embora voltado especialmente para um públi-
co infantil, seu último livro também interessou aos adultos, como o desfile do
Salgueiro atestou tão bem. Uma recepção em tudo excepcional, que teve inúme-
ras razões, desde as editoriais, como se verá a seguir, até as que se relacionavam à
situação política de grande instabilidade.
O livro teve, portanto, uma boa trajetória e foi um lindo fecho de carreira,
pois, além de virar enredo de escola de samba com o literato ainda vivo, ganhou
uma segunda edição, em 1974, já sob o governo do general presidente Ernesto
Geisel. É importante ressaltar, portanto, que essa foi uma coedição, feita em par-
ceria com o Instituto Nacional do Livro e com o selo oficial do Ministério da
Educação e Cultura. Nesse caso, o que se visava ressaltar na obra, da ótica do
regime militar, era certamente seu conteúdo patriótico, que foi então considera-
do adequado ao público infanto-juvenil de um país que iniciava um processo de
abertura “lenta e gradual”, caso contrário sua reedição não teria o patrocínio do
INL. Um contexto bem distinto e talvez mesmo inverso do que marcara seu lança-
mento em 1962, e sua transformação em enredo de escola de samba em 1966.
Nesses anos, o que se percebia era um processo de crescente movimentação popu-
lar, a que se seguiriam eventos que, quebrando as normas da legalidade, aponta-
vam para o fechamento da participação política: primeiro, o movimento civil e
militar de 1964 e, depois, o Ato Institucional no 5, de 1968.
Contextos distintos, que evidenciam práticas de leitura e de apropriação
de um mesmo texto por atores políticos bem diversos, para fins muito dife-

5 “A Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro se inspira no livro História da liberdade no


Brasil para o desfile do Carnaval de 1967”. Diário de Notícias, 19 ago. 1966.

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130 A história na escola

renciados. Isso porque, certamente, o que o desfile do Salgueiro queria destacar


no livro de Viriato Corrêa não era exatamente o mesmo tipo de aspectos que os
leitores do INL, em 1974, desejavam. Mas a aproximação entre esses dois mundos
de acadêmicos seguiu cerimoniais cuidadosos, que a cobertura dos jornais, espe-
cialmente do Diário de Notícias, nos permite acompanhar. Em agosto de 1966, o
jornal noticiou que o Salgueiro já tinha seu novo enredo e, usando foto do escri-
tor, explicava que “Viriato Corrêa vai cair no samba com seu livro”. Nos termos
do jornal, “Cazuza” encontrava-se acamado há mais de um mês, e fora visitado
pelo cenógrafo Fernando Pamplona, que lhe transmitiu a notícia e o convidou
para assistir aos ensaios da escola.6 O literato prometera comparecimento, o que
parece ter ocorrido uma única vez, já às vésperas do desfile, em fevereiro de 1967.
Foi então que Viriato visitou a quadra Calça Larga e se emocionou ao ouvir o
samba cantado e dançado pelos salgueirenses, sendo também apresentado ao
compositor Aurinho da Ilha.7
Finalmente, fica-se sabendo, pela matéria, que o Salgueiro preparava uma
festa para seu homenageado: uma noite de autógrafos para o livro, no clima de
um grande show carnavalesco. O evento se realizou de fato, em setembro de 1966,
tendo como palco o Café Teatro Casa Grande, local conhecido por reunir mani-
festações de intelectuais e de público (mesas, palestras etc.) que se opunham aos
rumos do regime militar. O caráter “resistente” da noite de samba contou tam-
bém com o apoio de outras escolas, como a Mangueira, a Portela e o Império
Serrano, além da presença de artistas da TV-Rio, então a grande campeã de audiên-
cia. Mas não contou com a presença de Viriato, que, muito certamente, não havia
se recuperado de problemas de saúde.8 Nesse momento, por conseguinte, Viriato
vivia uma situação de clara consagração entre pares e de amplo reconhecimento
público, quando já muito idoso e doente. Uma consagração que se fortaleceu

6 “Viriato vai ver sua História da liberdade no samba do Salgueiro”. Diário de Notícias, 19

ago. 1966. p. 6.
7 “Enterro de Viriato sai da Academia”. Correio da Manhã, 11 abr. 1967. Primeiro Caderno, p. 1.
8 “Viriato será também acadêmico do samba”. Diário de Notícias, 2 set. 1966, p. 6. A primeira
edição de História da liberdade no Brasil, com a qual trabalhamos neste texto, foi-nos gentil-
mente cedida por Mônica de Almeida Kornis, que compareceu com seus pais a essa festa,
quando o livro foi adquirido. Ela se lembrou do livro e da ocasião, mas não da presença de
Viriato Corrêa, ao saber do desenvolvimento dessa pesquisa, dispondo-se a conosco colabo-
rar. A ela, nossos agradecimentos sinceros e públicos. Possuímos também uma edição de
1974, mas as indicações de página serão da primeira edição, alvo desta análise.

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História da liberdade no Brasil 131

com o lançamento de uma biografia, escrita por Hércules Pinto, único trabalho
até hoje existente nesse gênero sobre o autor.9
Mas, para que esse evento seja devidamente dimensionado, é aconselhável
um olhar mais amplo sobre o panorama cultural de meados dos anos 1960, para
que se possa ter ideia dos significados que a temática da liberdade ganhava naque-
le contexto. Assim, entende-se melhor a aproximação que vinha ocorrendo entre
os mundos do samba e da arte brasileira, bem como a operação de apropriação,
realizada pelos acadêmicos do Salgueiro, do livro do acadêmico Viriato, lançado
pouco antes do movimento civil e militar de 1964. Sendo muito breve, pode-se
assinalar, por exemplo, a encenação de duas peças teatrais marcantes: Liberdade,
liberdade, de Millor Fernandes e Flávio Rangel, no Teatro de Arena, e Arena
contra Zumbi, de Guarnieri e Augusto Boal, com música de Edu Lobo, ambas de
1965. Ou seja, no teatro, na música popular brasileira — a MPB —, no cinema e
nas artes em geral, a palavra liberdade passava a ser preenchida de sentidos espe-
cíficos àquele momento, simbolizando a ideia de resistência à opressão. Tal resis-
tência, tomada em sua dimensão histórica, podia aprofundar o sentimento de
denúncia ao regime militar que acabava de se estabelecer. Liberdade, palavra,
tornava-se categoria síntese, a simbolizar, por que não, a luta do povo brasileiro.
Não por acaso, esse foi um momento-chave de aproximação entre artistas “popu-
lares”, em especial sambistas — compositores e/ou cantores — do “morro”, e
artistas de teatro, de cinema, de rádio e TV. Exemplos paradigmáticos são os dos
espetáculos Opinião, reunindo Zé Kéti e Nara Leão, e Rosa de Ouro, com a pre-
sença da grande dama Clementina de Jesus. O Teatro de Arena era um palco
preferencial para esses encontros, mas havia outros, até porque essa também foi
uma época áurea de apresentação de trabalhos do Centro Popular de Cultura, o
CPC, da União Nacional de Estudantes, a UNE. Então, os desfiles das escolas de
samba, na avenida Getúlio Vargas, e ainda sem uma parafernália midiática, co-
meçavam a ganhar a participação de jovens e não jovens do “asfalto”. Assim, os
ensaios realizados antes do Carnaval tornavam-se novos espaços para essa nova
sociabilidade, que se fortalecia com a dimensão político-cultural de “luta pela
liberdade” que orientava corações e mentes.10

9 Diário de Notícias, 2 set. 1966; ver Pinto, 1966.


10 Agradecemos, mais uma vez, a Mônica de Almeida Kornis por ter nos chamado a atenção
para essas conexões e, na impossibilidade de aprofundar tal questão, remetemos a dois textos:
Kornis, [2002?]; e Napolitano, 2001.

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132 A história na escola

Porém, se a escolha dos sambistas do Salgueiro foi certamente muito bem-


pensada, estando perfeitamente afinada com o clima do momento, não foi de fácil
execução. Primeiro, porque após amargar um quinto lugar em 1966, a escola,
buscando se recuperar, passou a ser dirigida por uma junta governativa,11 chefiada
por Jesus de Oliveira. Uma de suas importantes decisões foi justamente chamar os
carnavalescos Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona para retornar ao Sal-
gueiro e dirigir seu novo enredo. Foram eles os principais responsáveis pela esco-
lha do tema, bem-aceito na escola, mas que lhe traria um clima tenso durante
toda a preparação para o Carnaval, até o momento do desfile.12 Segundo, porque
como a memória da própria escola de samba assinala, o carnavalesco Fernando
Pamplona e sua equipe eram constantemente questionados e constrangidos, em
função do tema enredo, por autoridades policiais.13 Nos ensaios técnicos, por
exemplo, estavam sempre presentes membros do Departamento de Ordem Polí-
tica e Social (Dops), que pareciam esperar qualquer atitude suspeita ou “subver-
siva”, por parte dos integrantes da escola, que justificasse uma medida repressiva.
Somava-se a esse clima desagradável a incerteza em relação à concretização do
desfile, pois havia sempre uma ameaça de proibição pela censura, na última hora,
o que inviabilizaria, na prática, a apresentação da escola. Além disso, havia a real
possibilidade da prisão de seus principais dirigentes, também em momento estra-
tégico para uma boa realização do desfile. Devido a tudo isso, estabeleceu-se um
acordo entre os membros da escola: caso fossem efetuadas prisões, todos os inte-
grantes desfilariam e, em protesto, colocariam um esparadrapo na boca. Ou seja,
estava muito claro, quer para a direção e para os membros da escola, quer para os
órgãos de repressão, que o enredo que cantava as lutas pela liberdade no Brasil,
naquele momento, seria, para os populares, uma denúncia política e, para o regi-
me, uma sabida provocação.
Contudo, a esperada represália por parte do governo felizmente não che-
gou a acontecer, e a escola conseguiu desfilar, alcançando resultados bastante
satisfatórios. Assim, embora não se tenha sagrado campeã do Carnaval, encon-

11
A crise vivida pelo Salgueiro está ligada à figura de seu presidente em 1965, Osmar Valença.
12 Costa, 2003.
13 “Salgueiro canta a liberdade: em plena ditadura militar, Salgueiro mostra as revoluções do
povo brasileiro”, de Paulo Barros — matéria fornecida pelo autor às pesquisadoras, com
base em Costa, 2003.

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História da liberdade no Brasil 133

trou grande receptividade por parte do público e dos jurados, pois foi muito
aplaudida na avenida, conseguindo a terceira colocação. Além disso, e também
importante do ponto de vista político, a escola conseguiu transmitir sua mensa-
gem, cantando a luta dos brasileiros pela liberdade em momento extremamente
adverso. Mas, afinal, que livro é esse que inspirou os sambistas? E quem foi seu
autor?

Viriato Corrêa: um autor em desfile

Maranhense, nascido no século XIX, em 1964 Viriato Corrêa completara 80 anos


de idade, sendo então retratado por seu grande amigo e conterrâneo, Josué
Montello, como um homem pequeno, de cabeça de algodão, alegre e vivíssimo,
como sempre fora: “Já o comparei a um ponteiro de segundo. E a comparação
se ajusta à sua inquietação e à sua pressa”.14 Com tanta idade, continuava a
trabalhar, fazendo o que mais gostava: escrevendo para crianças. Desde os anos
1930-1940, vinha sendo identificado e consagrado como um autor que se dedi-
cava à literatura infanto-juvenil, destacando-se por torná-la um instrumento
de ensino da história pátria, embora também praticasse outros gêneros literá-
rios. De fato, o exame de sua vasta obra atesta o quão profícuo e popular foi esse
autor durante o largo período que se estende dos anos 1910 aos anos 1960,
embora se possa considerar que seu momento áureo de produção e divulgação
de trabalhos tenha sido as décadas de 1920, 30 e 40. Apenas para se ter uma ideia
do que estamos querendo registrar, vale a indicação de alguns números. So-
mente nessas três décadas, ele escreveu 11 livros de crônicas históricas para adul-
tos e 20 livros de literatura infanto-juvenil, sendo nove deles caracterizados
como narrativas cívico-patrióticas.
Já era um autor bastante conhecido quando, em 1938, publicou Cazuza,
pela Companhia Editora Nacional, sediada em São Paulo e então a maior do país.
Esse livro, considerado um clássico da literatura infantil, foi um sucesso imenso e
imediato de crítica e de público, conduzindo seu autor à tão almejada Academia
Brasileira de Letras. Nela, ocuparia a cadeira de número 32, pertencente anterior-
mente a Ramiz Galvão, nome de peso do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro. Nesse sentido, é bom ressaltar que Viriato nunca se tornou membro da
Casa dos historiadores, o que nos remete a reflexões sobre as relações entre litera-

14 Diário da Tarde, 23 jan. 1964.

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134 A história na escola

tura e história e, mais especificamente, entre uma escrita da história (como saber/
ciência) e uma escrita da história ensinável, seja explicitamente voltada para a
escola (como os manuais) ou não, como é o caso das crônicas e contos históricos
de Viriato Corrêa.
Segundo seu biógrafo e também amigo, Hércules Pinto, esse gosto pela
escrita se mostrou desde cedo.15 Ainda na época em que era menino e estudava na
capital maranhense, publicou alguns textos no periódico de seu colégio, o Liceu
São Luiz, O Estudante, assinando com o pseudônimo de Milton Larebel. Foi tam-
bém no fim da década de 1890 que escreveu sua primeira peça teatral, intitulada O
delegado da roça, e seguiu para Pernambuco, onde cursou a Faculdade de Direito
do Recife. Publicou seu primeiro conto no jornal da faculdade: A espera de um
homem — uma historieta largamente influenciada pelo estilo naturalista, então
muito em voga. Como desdobramento, conseguiu publicar alguns contos em
periódicos locais, como o Diário de Pernambuco e o Jornal do Recife. Nessa opor-
tunidade, investiu firmemente no que projetava como sua carreira literária:

Com a pensão e os estudos garantidos, Viriato escrevia cada vez mais, porque o que ele
perseguia era a fama. Queria ser um nome neste país de literatos. Não lhe pagavam o
que escrevia? Isso era o que menos importava. Que o deixassem publicar seus contos,
porque o resto, certamente viria depois. O que não desejava era perder a oportunidade
de ver sempre seu nome nas colunas dos jornais.16

Ficou pouco tempo em Recife, indo viver no Rio de Janeiro com a finalida-
de não só de concluir a faculdade de direito, como também de escrever na capital
federal. Chegou a se formar, mas nunca a exercer a carreira jurídica. Por interfe-
rência do já prestigioso jornalista Medeiros de Albuquerque,17 de quem se tornou
amigo, ingressou na Gazeta de Notícias, onde publicou alguns de seus contos,
começando efetivamente a construir uma carreira como jornalista e literato. Na
Gazeta trabalhou primeiro como colaborador, tornando-se pouco tempo
depois redator, escrevendo contos para a sétima coluna do jornal, vista como de

15 Pinto, 1966.
16 Ibid., p.37.
17 O pernambucano Medeiros e Albuquerque (1867-1934) foi jornalista, professor, político,
teatrólogo e fundador da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira no 22. Teve
essencial importância para a inserção de Viriato Corrêa na vida jornalística do Rio de Janeiro,
sobretudo em sua carreira no jornal Gazeta de Notícias.

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História da liberdade no Brasil 135

grande importância na época. Além dessa coluna, em pouco tempo Viriato tam-
bém estaria escrevendo para a seção infantil do jornal, intitulada “Fafazinho”, em
função do apelido carinhoso dado ao redator responsável, Rafael Pinheiro. A
entrada de Viriato, longe de abalar a coluna, cujo nome foi mantido após a saída
de Rafael, tornou-a um sucesso no gênero, ainda raro no início dos anos 1900.
Sua atividade jornalística, sem dúvida a grande responsável por sua sociali-
zação nos meios intelectuais e artísticos cariocas, incluiu também colaborações
em muitos outros jornais, como Correio da Manhã, Jornal do Brasil e A Rua ; e
em revistas das mais famosas e populares, como O Malho, Tico-Tico, Kosmos,
Noite Ilustrada, Careta, Para Todos, entre outras. Nessa atividade, destacou-se
particularmente pela redação de contos ou crônicas, com temas chamados de
folclóricos e/ou históricos.
Bases da circulação de ideias, os jornais e as revistas eram os principais
canais de divulgação da produção cultural da época. Por isso, as histórias da
literatura e do pensamento social brasileiro vêm cada vez mais reconhecendo e
valorizando essa escrita, a despeito de ela assumir um suporte de característica
efêmera e mais difícil de localizar com o passar do tempo. A importância da
imprensa como meio de divulgação cultural, portanto, tem sido crescentemente
destacada, evidenciando-se o grande número de autores que escreveram para esse
tipo de veículo, bem como a variedade de romances e ensaios que apareceram
primeiro em jornais ou revistas, para só depois ganharem o suporte do livro.
Como registra Brito Broca, em seu já clássico livro:

não se pode negar que os jornais, proporcionando trabalho aos intelectuais, mesmo
quando se tratava de simples rotina de redação, sem nenhum cunho literário, facilita-
vam a vida deles, dando-lhes um second métier condigno, no qual podiam, certamen-
te, criar ambiente para as atividades do escritor. Lembremo-nos de que a imprensa
propiciara, como continua a propiciar, a mudança para a metrópole de grande núme-
ro de intelectuais, que não conseguiriam realizar-se literariamente se permanecessem
no recanto nativo da província.18

Viriato Corrêa foi um desses literatos que viu na capital federal uma espe-
rança de realização intelectual. Dessa forma, a Gazeta de Notícias e a amizade
com Medeiros de Albuquerque foram fundamentais, mas um desentendimento

18 Broca, 2005:286.

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136 A história na escola

com Salvador Santos, um dos diretores do periódico, levou Viriato a abandoná-


lo. Contudo, de acordo com Hércules Pinto, o escritor não ficaria desempregado
por muito tempo. Sua saída do jornal “se deu às seis horas da tarde. Às oito da
noite, começava a fazer parte do corpo de redatores do Correio da Manhã, o que
mostrava o prestígio de que já gozava”.19
O trabalho no Correio da Manhã também parece ter sido de grande rele-
vância para a afirmação de Viriato Corrêa nos meios jornalísticos e literários.
Mas foi igualmente um período conturbado e de grande instabilidade financeira
para o escritor. Devido ao grande sucesso alcançado pela já mencionada coluna
“Fafazinho”, Viriato Corrêa resolveu transformá-la em revista. Assim, em socie-
dade com Osmundo Pimentel20 e com a promessa (nunca cumprida) de ajuda
financeira de Edmundo Bittencourt, proprietário do Correio da Manhã, a revista
infantil chegou a ser publicada, com muitas dificuldades, por dois anos (de 1905
a 1907). Uma iniciativa que revela a sensibilidade do autor para um tipo de públi-
co e de meio de comunicação que despontava com muito sucesso. Isto é, as revis-
tas voltadas especificamente para crianças, das quais o almanaque Tico-Tico é o
maior e melhor exemplo.21
Uma sensibilidade que também se evidenciou quando foi trabalhar como
redator em A Noite. Foi por sua iniciativa que essa folha abriu uma coluna para
os chamados novos escritores. Durante 30 dias, sob o título de “O mês modernis-
ta”, o jornal publicou a colaboração de Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Oswald de Andrade. Esse gesto, contudo, segundo Josué Montello, não deve ser
entendido como uma adesão ao modernismo. Ao abrir o jornal aos jovens, ele
queria aproveitar a onda de curiosidade suscitada no país pelo escândalo da con-
ferência de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras, intitulada Espírito
moderno: “No íntimo, achava-os uns pândegos”.22

19 Pinto, 1966:59.
20
Segundo Hércules Pinto, biográfo de Viriato Corrêa, Osmundo Pimentel era o represen-
tante do Correio da Manhã no Ministério da Guerra.
21 Sobre a revista, ver Rosa, 2002.
22 Josué Montello, no Diário da Tarde, 8 jun. 1967. Graça Aranha, patrono da Semana de Arte
Moderna, escandalizara a ABL com seu discurso Espírito moderno , em 19 de junho de 1924,
trazendo polêmica ao campo intelectual. Na oportunidade e em combate ao passadismo da
ABL, ele declarara: “A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro”.

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História da liberdade no Brasil 137

Concomitantemente ao trabalho nas redações de jornais, Viriato investia


em outro tipo de gênero literário e artístico, o teatro. Autor de nada menos que
19 peças teatrais, havia estreado em 1915 com Sertaneja. Foi então identificado
como um inovador da linguagem teatral, tendo integrado um grupo de novos
comediógrafos que se propunha criar uma dramaturgia voltada para assuntos
brasileiros. Em 1921, promoveu o chamado movimento Trianon, ao lado de
Oduvaldo Viana, Abigail Maia e Nicola Viggiani, criando a Companhia de Co-
médias Brasileiras. Sua produção teatral pode e deve ser entendida como parte de
um projeto maior, associado à sua produção de jornalista e de literato, até por-
que também tinha a mesma dimensão: era nitidamente comprometida com as
“coisas brasileiras”, com a pátria brasileira. Entre suas peças — e vale atentar
para os títulos —, estão, por exemplo, Juriti (1919) e Nossa gente (1924). Sua
produção foi sistemática, estendendo-se e refinando-se no pós-1930, sendo ele um
autor que marcou a fase de peças históricas típicas do Estado Novo: A marquesa
de Santos, de 1938, encenada por Dulcina; Tiradentes, de 1941, com música de
Villa-Lobos; e ainda O caçador de esmeraldas, em 1940, e o Príncipe encantador,
em 1943.
Assim, toda a ação desse intelectual estava voltada para um grande públi-
co, fosse infantil ou adulto, tendo como intenção fundamental construir uma
“arte brasileira”, com claros objetivos de educar e divertir, e priorizando a di-
mensão do ensino da história pátria. Mas para além dessa clara atuação, ele escre-
veu também diversas operetas e comédias de grande sucesso, como Morena, de
1917, e Sol do sertão, de 1918.
Muitas décadas mais tarde, nos anos 1950, trabalharia em programas de
rádio. Um deles foi uma rádio-novela, baseada em seu romance A Balaiada,23
que, não logrando o desejado sucesso, foi rapidamente abandonado. Outro pro-
grama, chamado Histórias de Chinelos, consistia na leitura de crônicas em lin-
guagem fácil e acessível, e agradou bem mais. Começou a ir ao ar na Rádio Nacional
e, em 1966, encontrava-se na Rádio Ministério da Educação.24 De toda forma, tais
episódios evidenciam como Viriato Corrêa apostava nos meios de comunicação
de sua época, como jornais, periódicos, revistas infantis, teatro e depois rádio,

23 Corrêa, 1996.
24 Diário de Notícias, 19 ago. 1966. O programa teria ficado no ar por pelo menos oito anos,

de 1958 a 1966.

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138 A história na escola

como instrumental fundamental para se alcançar um grande público, fosse adul-


to, fosse infantil.
Nesse sentido, pode-se dizer que a parte mais relevante de sua obra é o
conjunto de livros infantis e infanto-juvenis, dos quais o mais famoso é Cazuza. Já
a partir da década de 1900 começara a se dedicar a esse tipo de escrita, concen-
trando-se cada vez mais nela com o passar dos anos. Era uma vez... contos infan-
tis, de 1908, foi escrito em parceria com Paulo Barreto, o João do Rio, e logo
alcançou sucesso, apontando esse caminho para o autor.25 A partir daí, diversos
livros com as características que se tornariam suas marcas registradas aparece-
ram. Eles se utilizavam de uma linguagem simples, motivadora e adaptada às
crianças. Eram ilustrados e versavam sobre a história do Brasil, compondo o que
então se denominavam narrativas cívico-patrióticas.
O grande número de livros publicados por Viriato Corrêa — não sendo ele
uma exceção — pode ser entendido pelo fato de que esse era um tipo de literatura que
vendia muito bem, tendo editores sempre interessados em publicar. Isso porque
alguns desses livros eram espécies de encomendas de professores ou de escolas,
sendo utilizados em sala de aula, como é o caso de Contos da história do Brasil, de
1921, e de Bandeira das esmeraldas, de 1945. A História da liberdade no Brasil é o
último desses livros, evidenciando um grande investimento da Editora Civiliza-
ção Brasileira e de seu editor, o intelectual Ênio Silveira.26

História da liberdade no Brasil : revoluções no conteúdo e na


forma de um livro

Este livro é escrito com uma única intenção: mostrar a índole da gente brasileira. [...]
A história do Brasil, desde os primeiros dias da colonização até os dias presentes, é o

25 O livro era composto por diferentes contos infantis de autoria de ambos os autores. Os de
autoria de Viriato Corrêa foram escritos em dois momentos: quando era responsável pela
coluna infantil intitulada “Fafazinho”, entre os anos de 1904 e 1905, no jornal Gazeta de
Notícias, e à época da efêmera publicação da revista infantil que tinha o mesmo nome, entre
os anos de 1905 e 1907.
26 Ênio Silveira, editor e sociólogo paulista, trabalhou na Companhia Editora Nacional,
chegando a assumir o cargo de diretor editorial. A partir de 1951, tornou-se diretor da Editora
Civilização Brasileira, onde ficou até seu falecimento em 1996. Era reconhecido como homem
de esquerda que tinha ligações com o Partido Comunista e, nessa condição, foi importante
intelectual na luta contra a ditadura militar.

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História da liberdade no Brasil 139

constante esbravejar de um povo para ser senhor de si mesmo. É a agitação feroz do


animal prisioneiro lutando para quebrar as grades da jaula que o escraviza.

Essas são as primeiras palavras da “Introdução” do livro História da liber-


dade no Brasil e não deixam dúvidas quanto às explícitas intenções do autor. O
livro quer ser uma ode à liberdade, e a história por ele narrada, uma afirmação de
que a história do Brasil é uma grande aventura que tem como maior objetivo a
sua conquista. O livro desde logo deixa claro que a história do Brasil é a história
de “sua gente”, cuja índole, instinto e vocação são a liberdade. Portanto, os qua-
tro séculos de nossa história têm um único sentido, entendido quer como signifi-
cado, quer como direção: a luta pela liberdade. E, uma vez que, como afirmado
pelo autor, ela é instinto, índole e vocação do povo brasileiro, nossa história só
poderia chegar a um termo: a conquista da liberdade. Portanto, vista por esse
prisma, a história do Brasil é uma história de lutas, vivida por um povo guerrei-
ro, pois amante da liberdade.
A narrativa também explicita uma concepção de história conformada, con-
sagrada e amplamente compartilhada internacionalmente no século XIX: uma
história-memória da nação. Tal concepção ganhou vulto no Brasil a partir de
meados do século XIX, fortalecendo-se após a proclamação da República, justa-
mente quando Viriato Corrêa experimentava seu processo de socialização políti-
ca e intelectual. Mas essa escrita da história já começaria a disputar espaços com
outras propostas nos anos 1910-1920, especialmente após a maior divulgação dos
trabalhos de Capistrano de Abreu e, nos anos 1930, com a criação das faculdades
de filosofia, ciências e letras, destinadas à formação de professores. Entretanto,
isso não significou, de forma alguma, que tal concepção tenha sido abandonada,
sobretudo por intelectuais que se dedicavam a uma escrita de história ensinável,
como Viriato Corrêa e muitos outros. Nesse tipo de narrativa, com marcas claras
de oralidade, que lhe dão facilidade para a leitura, a história pátria é a “mestra da
vida”, guardando as lições que podem e devem ser aprendidas pelas novas gera-
ções. Lições que são sintetizadas em valores, experimentados e arduamente con-
quistados pelos personagens da trama histórico-literária. Por isso, os grandes
homens e os grandes fatos, ao lado de episódios “pequenos”, que evidenciam a
presença e o valor do povo (um coletivo de homens “comuns”) na história, devem
ser ressaltados de forma complementar. As emoções suscitadas — e elas são mui-
tas — devem-se aos obstáculos quase permanentes encontrados pelo caminho, o
que dá à história um percurso ziguezagueante, não necessariamente linear e pro-
gressivo, como se poderia imaginar. Nela há fracassos, há recuos. Mas, a despeito

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140 A história na escola

disso, há uma promessa, contida na “vocação” da gente/povo brasileiro e de seus


“heróis”, que resume sua história, que é a da luta pela “liberdade”.
Uma concepção de história que, nos anos 1960, certamente estava muito
distante do que se aprendia nos já numerosos cursos superiores de história do
país, mas que, em 1974, continuou a interessar o INL, tanto que a segunda edição
do livro teve 20 mil exemplares. De toda forma, e esse é o ponto, uma concepção
de história e um enredo de livro que permitiam apropriações interessantes, parti-
cularmente considerando-se o ano de 1967. Falar da luta por liberdade como
motor da história de um povo, de um povo brasileiro que não se deixava vencer,
apesar dos obstáculos encontrados ao longo do percurso, era certamente algo
politicamente alentador. Por isso, o livro pode ser caracterizado como desafiador.
Por um lado, porque evidencia a convivência de concepções do fazer história e a
importância e duração de uma escrita de história ensinável, como história-me-
mória da nação praticada desde inícios do século XX. Por outro, porque ilustra
as múltiplas e sempre existentes práticas de leitura, como chaves para a interpre-
tação de um texto, que pode ser muitos textos, dependendo da situação dos leito-
res no tempo e no espaço.
Mas é bom que nos aproximemos desse livro, em sua primeira edição, que é a
que nos interessa. Nesse caso, é preciso fazê-lo em duas dimensões fundamentais e
complementares: a de sua materialidade, ou seja, de sua feitura enquanto objeto de
consumo comercial; e a da estruturação de sua narrativa em capítulos, que eviden-
cia os “conteúdos” que quer transmitir e a linguagem que quer utilizar. No caso da
produção do objeto-livro, Viriato Corrêa teve parceiros de primeira linha, que
certamente foram absolutamente centrais, influindo nas formas de leitura e de apro-
priação que ele teve ao longo do tempo, entre as quais, a sua recriação carnavalesca
por Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona. Os parceiros de Viriato Corrêa fo-
ram, em primeiro lugar, seu editor, Ênio Silveira, homem culto, respeitado e iden-
tificado como de “esquerda” nos idos de 1960. A Editora Civilização Brasileira, sob
seu comando, transformou-se, reconhecidamente, em um dos lugares de sociabili-
dade intelectual mais importantes para a circulação de ideias que enfrentavam o
perceptível e crescente fechamento político do país, especialmente após 1964.
A seu lado e também “escrevendo” o livro, estavam Augusto Iriarte Gironaz,
nas ilustrações, e principalmente Eugênio Hirsch, capista, diagramador e tam-
bém ilustrador.27 Impossível entender o sucesso do livro, perceptível pelas nu-

27
As informações que se seguem sobre Hirsch estão em “Eugênio Hirsch: um perfil especial
entre os fundadores do design brasileiro”, em Horcades e Thees, 2002:5-9.

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História da liberdade no Brasil 141

merosas matérias de jornal que anunciaram seu lançamento em outubro de 1962,


sem a participação, em particular, desse artista do design brasileiro, um campo
de ação que então começava a se afirmar, bafejado pelo projeto desenvolvimentista
dos anos 1950.
Hirsch viera para o Brasil em 1955, pois nascera austríaco, em 1923, sen-
do trazido por sua família, em fuga do nazismo ascendente, para a Argentina
no ano de 1938. Vivendo nesse país e visitando vários outros, tornou-se conhe-
cido por seu talento criativo, encantando editores brasileiros como Monteiro
Lobato, que chegou a tentar trazê-lo para o Brasil em 1946, após o fim do
Estado Novo. Ele o desejava como ilustrador de seus livros para crianças, par-
ticularmente o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não teve sucesso, alcançado final-
mente por Ênio Silveira, que o convenceu a trabalhar na Civilização Brasileira,
assegurando-lhe ampla liberdade. Sua atuação como artista gráfico é tão
marcante que é considerado, pela literatura da área de design, como o respon-
sável pela grande mudança no padrão das capas dos livros brasileiros, sendo
um ponto de inflexão na maneira de se pensar graficamente um livro. Combi-
nando influências do movimento concretista e do expressionismo abstrato, ele
usava em suas ilustrações desde “uma linguagem geométrica até soluções mais
expressivas, passando por trabalhos com forte cunho realista”.28 Outra de suas
características era o manuseio das letras, que podiam ser decompostas e recom-
postas, ganhando movimento e tornando-se, elas mesmas, elementos compositivos
em diálogo com as ilustrações e o texto do livro. Nesse sentido, pode-se dizer
que História da liberdade no Brasil é um excelente exemplo da atuação de Hirsch,
não tendo sido por acaso que foi saudado pela imprensa como “o mais belo
livro para crianças feito no Brasil”.29
O formato do livro é grande (26,5 cm x 21 cm) e ele é todo impresso em
papel de ótima qualidade.30 A capa, com predominância do vermelho e do rosa,
traz a figura de Tiradentes com uma das mãos acorrentada e a outra sobre o

28 Horcades e Thees, 2002:5.


29 Viana, 1962:8. Várias outras notícias de jornal destacaram o lançamento do livro, além

dessa: O Jornal, Rio de Janeiro, 25 out. 1962; Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 31 out. 1962;
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 nov. 1962, entre outras.
30 O livro foi impresso nas oficinas da Compositora Gráfica Lux Ltda., rua Frei Caneca, 224,

no Rio de Janeiro, com tiragem de 20 mil exemplares.

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142 A história na escola

coração.31 A contracapa é inteiramente branca, enquanto as guardas do livro


dão continuidade às formas gráficas que dominam a capa. A apresentação do
título e do nome do autor, no interior do livro, também ganham formas e cores;
são também imagens a serem retidas visualmente pelo leitor. O livro é diagramado
em duas colunas e, nele, Viriato usa o procedimento muito comum de elaboração
de um vocabulário para o leitor mirim. Só que, no caso desse livro, trabalha com
a inserção de notas numeradas, colocadas ao final de cada capítulo, como é a
prática de textos acadêmicos.

Para uma aproximação do “conteúdo” da narrativa do livro, o interessan-


te é começar por seu próprio tema/título: a história da liberdade no Brasil. Tema
amplo, que envolvia diversas controvérsias. Assim, ao longo do texto, verifica-
mos que o autor destaca o que acredita serem diferentes paradigmas de liberdade,
recorrendo, inclusive, a exemplos internacionais. Para tanto, no capítulo 8, men-
ciona a luta dos americanos do norte e dos franceses por sua “independência” e

31
A edição de 1974 tem na capa a cabeça de Tiradentes, símbolo maior da luta pela liberdade.
A imagem do herói é a mais conhecida — Tiradentes mártir —, e o restante do livro não tem
ilustrações, sendo incomparável à beleza da primeira edição.

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História da liberdade no Brasil 143

pelo estabelecimento dos “direitos humanos”, que tiraram os homens da “escra-


vidão”, tornando-os donos de seu destino.

A independência dos Estados Unidos vem mostrar a todos os países das três Américas
que poderá cada um deles, com sacrifícios de sangue e de vida, ser também indepen-
dente. A Revolução Francesa, destruindo a Bastilha, criou e estabeleceu os direitos
humanos. O homem, até então escravo, passou a ser dono de sua vontade e dos seus
direitos. Está chegando a hora de o Brasil também fazer a sua independência. É neces-
sário que sejamos senhores do nosso país, porque, na verdade, nada do que existe no
Brasil pertence aos brasileiros. É tudo dos portugueses.32

Dessa forma, a grande questão a ser enfrentada no livro é a da luta pela


“independência dos portugueses”, e acrescentaríamos (e o Salgueiro também acres-
centou) a de seja lá quem for...
O livro está dividido em 15 capítulos, precedidos por uma pequena e
esclarecedora introdução. Cada um deles narra episódios relevantes da história
brasileira, na visão do autor, para demonstrar o amor à liberdade e a busca
incessante por ela ao longo do tempo. Por essa razão, Viriato Corrêa, com o claro
objetivo de exaltar a pátria, reúne uma espécie de conjunto de diferentes movi-
mentos, que são por ele entendidos como de “libertação”, não importando se, à
sua época, tiveram êxito ou não. Dessa forma, é bom reforçar, fica evidente que,
ao retratar tais episódios, deseja evidenciar a existência de um processo de luta
pela liberdade, empreendido por grandes homens e também por homens “co-
muns”, ao longo da história brasileira, que portanto não é uma história pacífica,
como tanto se apregoava.
Os fatos e os personagens apresentados e, em alguma medida, problema-
tizados são absolutamente conhecidos. Eles fazem parte de livros anteriores escri-
tos pelo próprio Viriato e por inúmeros outros historiadores. São eles: Ama-
dor Bueno, caracterizado pelo autor como “aquele que não queria ser rei”;
Bequimão; Zumbi dos Palmares; os heróis das guerras dos Emboabas e dos
Mascates; Felipe dos Santos; a Revolta dos Alfaiates; a Inconfidência Mineira; os
liberais de 1817 em Pernambuco; a Independência; a Confederação do Equador;
o Sete de Abril; a abolição da escravatura e, finalmente, a República.33 Uma história

32 Corrêa, 1962, cap. 8, p. 74.


33 Os temas apresentados pelo Salgueiro no desfile foram os mesmos abordados no livro de

Viriato Corrêa; exceto o 10o capitulo, denominado “O Fico”, que não fez parte do desfile.

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144 A história na escola

do Brasil que “começava” no século XVII e “acabava” com a proclamação da


República, portanto antes do início do século XX.
Os capítulos têm tamanhos bem desiguais, quatro podendo ser considera-
dos pequenos, seis de tamanho médio e cinco grandes, o que revela uma certa
hierarquia de importância entre eles. Os episódios maiores referem-se à Inconfi-
dência Mineira, à Independência e ao Sete de Abril, ao 13 de Maio e à República.
Como se trata de uma história das lutas pela liberdade no Brasil, eventos como a
chegada de d. João VI e o próprio descobrimento não são tratados. Portanto, há
uma seleção de fatos que retratam “rebeliões, revoluções e conspirações”. Apesar
ou justamente por isso, pode-se dizer que são absolutamente conhecidos e estão
presentes nos programas curriculares. Mas, nesse caso, sua novidade e riqueza
estão ligadas à forma literária do texto, além, evidentemente, da forma gráfica de
sua apresentação.
No que se refere à narrativa do autor, embora deixando claro que seu público-
alvo são as crianças, pois se dirige aos leitores chamando-os de “meus meninos” ou
“meus pequenos leitores”, ele constrói uma estrutura sempre envolta em um forte
sentimento patriótico. Talvez por isso, acabou por atingir um público de todas as
idades. Cada capítulo é escrito como uma espécie de historieta, com início, meio e fim,
utilizando estratégias de motivação variadas. Trata-se de uma história da história do
Brasil feita para interessar e instruir o leitor, mas principalmente convencê-lo, e
convencê-lo moralmente do valor da liberdade. As ilustrações, em número de 30,
ajudam muito nessa tarefa, sendo grandes e muito bonitas (ocupam duas páginas
abertas do livro). Elas são bastante diferenciadas entre si e, sem dúvida, inovam na
composição visual de eventos e personagens, dando asas à imaginação. São tão belas
que o desejo seria reproduzi-las todas para o leitor deste capítulo. Na impossibilida-
de, ficaremos com alguns exemplos, representativos da presença de elementos do
concretismo, do abstracionismo e do “realismo” de Hirsch e Gironaz.
Além das ilustrações, em cores fortes, cada capítulo se abre com um pequeno
desenho em preto e branco, alusivo ao título, recebendo uma forma de inserção
original. O próprio título não vem destacado e separado, no alto, como é comum,
mas inserido no texto do capítulo, “misturado” a ele, sendo numerado em algaris-
mos arábicos. As primeiras frases de cada capítulo também são elementos decorati-
vos do texto, pois ganham movimentos aludindo à leitura. Dois exemplos podem
ajudar muito. No “Capítulo 4 — Emboabas e paulistas”, vemos um grilhão aberto
de onde saem as primeiras frases do texto, todas referidas a movimentos “liberais”,
isto é, de luta em prol da liberdade. No “Capítulo 5 — A Guerra dos Mascates”, as

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História da liberdade no Brasil 145

figuras de um português e um brasileiro estabelecem um diálogo entre si pela pró-


pria colocação das palavras. As letras são assim elementos da composição gráfica,
significando o texto e, elas mesmas, incitando a leituras possíveis.
Nesse sentido, trabalhar com o exemplo de um dos capítulos pode ser útil,
na medida em que demonstra como o convencional pode ser desconvencio-
nalizado e, talvez por isso, virar enredo de escola de samba nas mãos de um bom

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146 A história na escola

carnavalesco. Um episódio central da história pátria é certamente o da Inconfi-


dência Mineira, que ocupa o oitavo capítulo do livro. Ele, como todos os demais,
é subdividido em itens, cada um com um subtítulo. Logo, o autor é cioso com o
uso de marcadores de leitura, que a orientam com segurança ao longo do texto.
Nesse capítulo, os leitores são introduzidos à Inconfidência por uma escrivaninha
antiga, vendida em um leilão e apregoada dessa forma:

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História da liberdade no Brasil 147

Esta escrivaninha é móvel de grande antiguidade. Veio de Vila Rica. É peça de alto valor
histórico. Fez parte do mobiliário de um inconfidente mineiro, não sei se Alvarenga
Peixoto, se Cláudio Manuel da Costa ou Paula Freire de Andrade. Esta escrivaninha
assistiu ao drama da Inconfidência.34

Poucas linhas depois, ficamos sabendo que, por 40 mil cruzeiros, ela foi arre-
matada pelo próprio narrador do livro. O móvel era sólido, de jacarandá e, em
casa, o novo proprietário se apercebe que, além de muitos escaninhos, a escrivani-
nha tinha uma gaveta secreta. Surpresa e mistério em doses historicamente bem
adequadas e próprias ao gênero do conto. Continuando. Aberta a gaveta, desco-
brimos, junto com o narrador, que ela continha maços de cartas amareladas! To-
das elas datavam das últimas décadas do século XVIII e foram trocadas por dois
primos, ambos “brasileiros da gema” e “preocupados com a situação política que
dominava o Brasil da época”. O leiloeiro não mentira: a escrivaninha “assistira”
mesmo ao drama da Inconfidência, pois os primos patriotas contavam nas cartas o
desenrolar do movimento. Eles haviam sido “testemunhas oculares” da história.
A partir daí, nós, leitores do livro, somos também leitores das cartas escondi-
das e recém-descobertas na escrivaninha colonial. Elas têm como principais autores
os dois primos, mas não apenas eles, pois também havia, na gaveta secreta, cartas dos
inconfidentes, de Joaquim Silvério dos Reis (o traidor) e até — é de pasmar — de
Tiradentes. E as cartas eram muitas, pois este é um evento/capítulo dos mais impor-
tantes dessa luta/história/livro/desfile. Por isso, vale atentar para os títulos que nos
conduzem através da leitura/aventura da Inconfidência: A triste situação da Capita-
nia das Minas Gerais, A vaca leiteira, A sociedade de Vila Rica, A figura de Tiradentes,
O encontro de dois patriotas, A conspiração, A figura de Joaquim Silvério dos Reis,
Os planos e as forças dos inconfidentes, As esperanças de Joaquim Silvério, A traição
de Joaquim Silvério, Tiradentes parte para o Rio de Janeiro, Tiradentes chega ao
Rio de Janeiro, Embaraços no caminho de Tiradentes, Tiradentes sente necessidade
de esconder-se, As agonias do traidor, Os inconfidentes são presos.
A partir do momento da prisão, compreensivelmente, não há mais cartas e
quem toma a narrativa é um professor de primeiras letras de Vila Rica. É ele que
nos conta o restante dos “fatos”: o suicídio de Cláudio Manuel da Costa, o que
ficou de pé, os inquéritos, o julgamento e as sentenças, a comutação das penas, o
dia 21 de abril de 1792, a partida dos degredados. Como se vê/lê o percurso é
longo, mas não é cansativo, pois é misto de descrição e narração, mobilizando a
curiosidade e a emoção do leitor.

34 Corrêa, 1962:69.

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148 A história na escola

De forma mais ou menos bem-sucedida, no livro e na história do Brasil, os


fatos são vividos pelos personagens, individuais ou coletivos, históricos ou fictícios.
Há, assim, uma permanente ação de sujeitos construindo a história: pensan-
do, conspirando, resistindo, ganhando e perdendo vários tipos de luta. Mas há,
na história, um sentido ancestral: a liberdade. E, provavelmente, em 1967, isso
não era pouco e cabia bem em um desfile de Carnaval.

A História da liberdade no Brasil deixa a avenida

Em uma matéria da revista O Cruzeiro de 28 de janeiro de 1967, assinada por


Rainha Sarda, apreende-se a expectativa em torno do desfile da escola vermelho e
branco:

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História da liberdade no Brasil 149

Para este ano, o Salgueiro está preparando “aquele” carnaval. E promete dar uma aula
na Avenida, ensinando em ritmo de samba a difícil “História da Liberdade no Brasil”.
Com o enredo baseado num livro de Viriato Correia, do mesmo nome, o samba de
Aurinho da Ilha exalta, em 14 capítulos, os grandes nomes que lutaram pela nossa
liberdade.35

Como o trecho ressalta, o enredo escolhido pelo Salgueiro para o Carnaval


de 1967 não era fácil, pois queria ensinar, em ritmo de samba, a História da
liberdade no Brasil. Provavelmente, intento que só se tornou possível pela media-
ção de Viriato Corrêa. O samba, de Aurinho da Ilha, foi considerado bom, com
letra “bem feita e fácil de guardar”.36 Imaginava-se que conquistaria o público e o
faria aprender a história da liberdade no Brasil com o Salgueiro.
Ao escolher esse enredo, a escola, como Viriato em seu livro, tinha o obje-
tivo de levar para o desfile fatos e personagens históricos que traduzissem a ânsia
de liberdade do povo brasileiro em seu processo histórico, o que não estava em
voga no contexto brasileiro naquele momento. Para alcançar seu objetivo, o des-
file esteve dividido em 14 alas, marcadas por estandartes, cada uma retratando
um episódio de luta pela liberdade no Brasil. Os personagens e os fatos históricos
destacados foram escolhidos no elenco disponibilizado por Viriato, sendo todos
recriados pela escrita dos carnavalescos.
Segundo relatos da época, a Presidente Vargas37 recebeu o Salgueiro com
muito entusiasmo. Apesar da chuva, a escola entrou na avenida, na madrugada
de 5 de fevereiro de 1967, confiante na conquista do título. Tal otimismo era
fruto do fato de importantes títulos terem sido conquistados antes mesmo do
desfile: o de Cidadão-Samba e o de Rainha do Carnaval, respectivamente por
Tião e Érika Simone. Mas não somente o Cidadão-Samba e a Rainha do Carna-
val eram destaques da performance. A porta-bandeira, Maria de Lourdes, e o
mestre-sala, Agostinho, foram muito aplaudidos, ao lado das irmãs Marinho,

35 O Cruzeiro, n. 20, p. 84.


36 Ibid., p. 84.
37 Local onde desfilavam as maiores escolas de samba do Rio de Janeiro. Estavam entre elas,

além da Acadêmicos do Salgueiro, Imperatriz Leopoldinense, São Clemente, Império da Tijuca,


Portela, Unidos de Lucas, Unidos de Vila Isabel, Império Serrano, Mangueira e Mocidade
Independente de Padre Miguel.

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150 A história na escola

passistas da escola que desfilaram na ala “Felipe dos Santos”. Além disso, havia
Isabel Valença, que encarnou a princesa Isabel com toda a majestade, e Narcisa,
passista recentemente lançada, que marcaria a história do Carnaval, entre mui-
tos outros destaques.
Porém, as críticas feitas ao desfile não foram poucas. Entre elas, a mais
veiculada pelos jornais e revistas foi a de que a bateria da escola teria saído apres-
sada. Por estar localizada no meio do desfile da agremiação, acabou prejudican-
do a harmonia, levando seus integrantes a perder o ritmo do samba e abrindo um
grande espaço entre os participantes e a bateria. Além disso, vários comentadores
consideraram os adereços, os carros alegóricos e a letra do samba pobres e
repetitivos em relação aos anos anteriores. Um bom exemplo é o texto do Cader-
no B do Jornal do Brasil, de 9 de fevereiro de 1967, escrito por Juvenal Portela:

O tema História da Liberdade no Brasil, teoricamente muito bom, foi pouco explora-
do e quem conhece a escola sabe que ela usou retalhos de carnavais passados para
compor o grupo. Das alegorias, apenas a que mostrava a bandeira da Inconfidência
Mineira, trabalhada de modo a mostrar numa das suas faces uma das fontes de Ouro
Preto, foi a que melhor impressionou. Seu samba possuía uma boa melodia, mas a
letra não teve grandes méritos. Em matéria de fantasias os Acadêmicos do Salgueiro se
repetiram, pois os originais já eram conhecidos.

Soma-se a essas observações a existência de uma especulação de que, na


mesma manhã em que ocorreria a apuração dos votos, a comissão julgadora teria
sido modificada. De toda forma, a grande campeã do Carnaval de 1967 acabou
sendo a Mangueira. A verde e rosa apresentou um belíssimo desfile e o seu enredo
— O mundo encantado de Monteiro Lobato — homenageava também um escri-
tor de livros infantis. O Império Serrano, com o enredo São Paulo, Chapadão de
Glórias, acabou por ocupar o segundo lugar. Mas, na verdade, essa escola empa-
tou com Salgueiro, que perdeu a colocação pela nota do quesito bateria. Por isso,
a vermelho e branco ficou com o terceiro lugar. Mas o Carnaval foi bom e alegre,
como sempre costuma ser. A avenida viu em desfile dois dos maiores autores da
literatura infantil brasileira. Coincidências... Eles se conheciam, e Viriato admi-
rava muito Lobato, tanto que lhe dedicou um de seus livros: Meu torrão: contos
da história pátria, de 1935. Lobato estava morto, mas Viriato, com cabeça de
algodão e animação de um ponteiro de segundos, mesmo doente, deve ter assisti-
do e gostado do desfile; inclusive do terceiro lugar. Alguns meses depois morreria,
sem vivenciar os novos percalços que a liberdade enfrentaria. Mas isso fazia parte
da história, diria ele, que era de lutas a serem lutadas, escritas e cantadas.

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História da liberdade no Brasil 151

Capítulo 7

Livro didático e Estado: explorando possibilidades


interpretativas

Tania Regina de Luca*

As investigações acerca dos livros didáticos têm se adensado de modo muito


significativo nas últimas décadas e, além do crescimento quantitativo das pes-
quisas, por si só notável, há que se destacar a diversidade de abordagens e
perspectivas analíticas. Registre-se que tal fato está em consonância com a
complexidade do objeto cultural livro didático, como bem atestam os resul-
tados do seminário Os Livros de História na Escola: Trajetórias e Usos. De
fato, a análise dos livros escolares, além de permitir que se trace uma história
das práticas pedagógicas, pode fornecer informações sobre as expectativas,
valores e crenças vigentes na sociedade em que foram produzidos, o grau de
desenvolvimento científico, que delimita as trajetórias e as concepções das
disciplinas escolares num dado momento, e as circunstâncias econômicas e
materiais de sua produção.
Não menos estimulantes têm sido as questões provenientes da análise da
materialidade das obras, das formas de diagramação e apresentação, cujos senti-
dos e efeitos estão longe de se circunscreverem à problemática da produção e dos
avanços nas técnicas de impressão, ainda que também se constituam numa opor-
tunidade para reconstruir a história da indústria gráfica no país. Já os aportes
provenientes da história da leitura e da recepção ensejaram novas indagações
sobre autores, editores, leitores e usuários.
O livro que por suas características é chamado de didático particulariza-se
de múltiplas formas — conteúdo, linguagem, natureza da edição e do editor,
autoria, características físicas, público a que se destina, espaço de circulação, en-

* Professora da Unesp-Assis e pesquisadora de produtividade do CNPq.

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152 A história na escola

fim tudo o que se quiser derivar dessa condição. Contudo, isso não altera a sua
condição de livro e, enquanto tal, pressupõe algum tipo de autoria, existência
física e leitores.
A menção à tríade escritor (autor), obra (livro) e público (leitor) remete
ao tripé proposto por Antonio Candido no seu clássico Formação da literatura
brasileira (1959). Segundo o crítico, é a interação dinâmica desses três elementos
que possibilita a formação de um sistema literário, condição essencial para que se
possa falar em literatura — postura que esclarece e justifica o título da obra. A
proposta é plena de consequências e, por seu intermédio, pode-se distinguir, por
exemplo, entre manifestações literárias e literatura, esta última entendida não só
como um atributo intrínseco ao texto (grau de literalidade), mas também como
“[...] uma prática social chamada de literatura [e articulada] à existência consci-
ente e socialmente reconhecida de autores e leitores, tornando-se a obra um dos
veículos de diálogo entre o escritor e seu público”.1 O triângulo autor-obra-pú-
blico pressupõe, portanto, um complexo jogo de interações, que desemboca na
configuração (século XVIII) e na consolidação (século XIX) de uma literatura
denominada brasileira.
Num texto instigante, Marisa Lajolo discute o significado do conceito de
sistema literário para o trabalho crítico de Antonio Candido e ressalta a pertinência
epistemológica dessa interpretação num país como o Brasil, por séculos apartado
do objeto livro, da imprensa, com poucas escolas e altas taxas de analfabetismo.
Lajolo insiste na historicidade do tripé autor-obra-público, cujas partes não pos-
suem atributos fixos e nem atuam ou interagem sempre da mesma forma, pois
assumem diferentes configurações, que devem ser remetidas a situações sociais
concretas. Noutros termos, a condição de escritor não é estática, seu papel e suas
formas de inserção social, seus meios de sobrevivência, autopercepção e redes de
sociabilidade precisam ser remetidos a contextos específicos. O mesmo se aplica
ao objeto livro, mercadoria que se insere no circuito da produção e da circulação
capitalistas, com seus agentes específicos, como os editores. Já o ato de ler, confor-
me insistem os estudiosos do assunto, remete a práticas muito diversas no tempo
e no espaço.
A análise evidencia não só quão complexas se tornam cada vez mais as
mediações entre os elementos da tríade, mas também as mutações e peculiarida-

1
Lajolo, 2003:63 (grifos da autora). As referências subsequentes dizem respeito a esse texto.

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Livro didático e Estado 153

des de cada um dos vértices do triângulo, num trabalho que ao mesmo tempo
precisa, amplia e atualiza o sentido da proposta de Candido. Esse modelo
interpretativo, concebido para os escritos literários e aqui apresentado de forma
bastante esquemática, pode ser estimulante para pensar outras circunstâncias,
como a que envolve a produção do livro didático.
É patente que a formação de uma comunidade de leitores constitui um pré-
requisito para a existência de um sistema literário, que pressupõe instituições ou
práticas de ensino capazes de difundir o letramento. Além do mais, a definição de
um conjunto de autores e obras reconhecidos como parte de um dado cânone, ou
seja, de uma tradição valorizada, cultuada, que se quer perpetuar e com a qual
diferentes gerações de escritores e leitores interagem, garante a importância da
escola na constituição, transmissão e legitimação de uma certa herança literária.
Sem negar a relevância desses aspectos, no presente texto pretendo propor um
exercício para verificar a possibilidade de se inserir o livro didático num sistema
de produção de obras que, a exemplo do que ocorre com a literatura, tem condi-
ções específicas para se instituir.

Do triângulo ao quadrilátero

Pode-se perguntar se a produção didática também não conheceu um processo de


formação que supõe a articulação do tripé autor-obra-público. De saída, é preciso
reconhecer que os espaços de circulação dos livros didáticos são, pelo menos em
tese, bem mais específicos que os literários,2 e que neles o Estado desempenha papel
essencial, pois é da sua competência definir os contornos do aparato escolar, sobre
o qual tem o poder de legislar, formular propostas pedagógicas, impor conteúdos,
programas curriculares e normas para os profissionais que nele atuam. E é justa-
mente a existência de uma política educacional que cria um público cativo (os
alunos), que demanda livros específicos (escolares), que devem ser escritos (auto-
res) e produzidos (editores) de acordo com os programas e objetivos prescritos e
reconhecidos como relevantes (Estado) pelo menos por parte da sociedade.
A vasta bibliografia que analisa as relações entre escola e poder público já
sublinhou o papel central que o interesse em assegurar a lealdade à nação moder-
na — artefato político forjado no decorrer do século XIX e que demanda a adesão

2 Vale mencionar que uma possível exceção é a ampla categoria dos paradidáticos, nem
sempre produzida com o intuito de se circunscrever ao universo escolar, mas que ganhou
espaço no mercado a partir do último quartel do século XX.

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154 A história na escola

emocional dos cidadãos — desempenhou no processo de propagação do ensino,


e os novos sentidos que, nesse contexto, adquiriram os materiais didáticos, cuja
origem é muito anterior ao momento considerado. Essa circunstância, que parti-
culariza a instituição escola e as obras que nela circulam, alerta para a distância
que separa o texto literário do didático, ainda que o primeiro possa desempenhar
o papel do segundo — basta lembrar os livros de leitura. As especificidades do
universo da produção didática são de tal ordem que o tripé escritor-livro-leitor
não basta para dar lugar à configuração da produção didática, que depende de
um quarto polo, o Estado.
Caberia, portanto, perguntar se não seria possível divisar a formação de um
sistema no qual obras que passam a ser definidas, apreendidas e lidas como didáti-
cas assumem uma função social e, a exemplo da literatura, tecem os fios de uma
certa tradição. A diferença, que está longe de ser pequena, ficaria por conta da
existência de um novo elemento, o Estado, ator que concebe, regulamenta, controla e
mesmo institui o sistema educacional moderno, desde o início criado com a aspira-
ção universalizante de abarcar o conjunto da população. E sem diminuir a relevân-
cia dessa ação normatizadora e de seus efeitos, sempre tão destacados, trata-se de
tentar dirigir o foco para o papel igualmente central que, no Brasil, o Executivo tem
desempenhado ao se imiscuir de forma decisiva na realização do negócio venda,
compra e distribuição de livros didáticos, aspecto nem sempre ressaltado.
É certo que a validação do exercício exigiria extensas pesquisas sobre as
relações entre autores, editores e poder público em diferentes tempos e espaços.
Embora sem ainda atingir a abrangência necessária, alguns trabalhos recentes
fornecem indícios a respeito das potencialidades dessa abordagem. Pode-se argu-
mentar que os exemplos apresentados não cobrem de forma harmônica os sécu-
los XIX e XX, que são de natureza diversa, numericamente modestos e que dei-
xam de fora editoras tradicionalmente associadas ao ramo didático, o que
comprometeria a abrangência e as possibilidades de comparação. Apesar dessas
inegáveis limitações, derivadas do fato de se tratar de uma hipótese construída a
partir dos dados disponíveis na bibliografia e, não, de uma pesquisa sistemática,
o rol parece significativo a ponto de justificar a sugestão (impertinente?) de que se
tenha em conta essa possibilidade interpretativa.

Estado e livros didáticos no século XIX

A maior parte do que apresento a seguir provém de teses de doutoramento re-


cém-defendidas que, apesar de não terem entre seus objetivos específicos o estudo

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Livro didático e Estado 155

de livros escolares, fornecem dados que convidam a pensar num possível quadri-
látero (autor-obra-público-poder público) subjacente à formação e ao percurso
da produção didática brasileira.
O primeiro exemplo foi extraído do trabalho de Marisa Midore Deaecto,
que estudou o espaço ocupado pelo livro na São Paulo do século XIX. Para
tanto, não pôde deixar de se referir à criação, em 1827, da Faculdade de Direito,
que tantas consequências trouxe para a vida da pacata cidade. A elaboração
dos estatutos da instituição, assunto debatido na Assembleia Geral, esbarrou
na questão dos compêndios que seriam utilizados pelos estudantes. A decisão
prescrevia que

Os lentes fizessem a escolha dos compêndios, ou os arranjassem, não existindo já


feitos, contanto que as doutrinas estivessem de acordo com o sistema jurado pela
nação; e que esses compêndios, depois de aprovados pela congregação, serviriam
interinamente, submetendo-se, porém, à aprovação da Assembléia Geral e, impressos
e distribuídos, competiria aos seus autores o privilégio exclusivo da obra por dez
anos.3

O trecho é importante por várias razões: reconhecia o direito autoral, num


momento em que não havia leis específicas sobre o assunto, estipulava o que
podia e não podia chegar ao mercado e, ainda, determinava o exclusivismo por
10 anos, o que atesta a forte injunção do Estado nesse momento inaugural do
ensino superior da nação recém-independente. As determinações, porém, não
resolviam o problema efetivo da falta de livros. Em carta de 20 de novembro de
1827, o diretor José Arouche de Toledo Rendon, depois de informar os possíveis
locais de instalação do curso e anunciar que as aulas poderiam ter início em prin-
cípios do ano seguinte, alertava ao visconde de São Leopoldo:

Não posso deixar de lembrar que, pelo menos o lente do primeiro ano deve trazer os
seus compêndios das matérias que vai ensinar, sendo-lhe indispensável compor um
abreviado da análise da Constituição do Império. Esses compêndios devem ser im-
pressos em número suficiente e taxados, para serem vendidos aos estudantes.4

3 Deaecto, 2005:104-105.
4 Martins e Barbuy (1998:20-21) reproduzem a carta na íntegra. Deaecto (2005:106) traz
excerto desta.

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156 A história na escola

A justificativa para tal situação encontra-se, como destacou Deaecto, no fato


de a biblioteca carecer de obras jurídicas modernas, ainda que os contemporâneos
destacassem a importância do seu acervo de mais de 6 mil volumes. A situação
parecia propícia à produção de obras destinadas aos estudantes, tanto por sua
efetiva inexistência quanto pelas garantias que o governo assegurava aos autores. O
primeiro a se aventurar foi José Maria Avelar Brotero, professor de direito natural
e direito público, disciplinas do primeiro ano, autor de um compêndio intitulado
Princípios de direito natural. Na tese, Deaecto reproduz as advertências nas quais o
professor justificava o formato da obra e a presença de “imensas notas” em francês.
De forma pedagógica, Brotero antecipava objeções e as justificava:

E não bastava apontar as mesmas notas? — Decerto, se fosse possível obrigar os


estudantes a ter os autores citados. E por que elas vêm em francês? Para poupar
trabalho, ou, para melhor dizer, por falta de tempo. — O leitor deve saber que estas
lições eram prontas à noite, para servir de manhã, e que estas notas eram parte, ou
fundamento, da explicação, que diz na aula, e a qual não se escreveu nas apostilas.
Recebi do Governo ordem para remeter este compêndio o quanto antes, e por isso,
muito à pressa, mandei tirar uma cópia da minuta, e como a experiência me tinha
mostrado a necessidade de pôr estas notas no compêndio, as fiz copiar dos mesmos
autores, e dos lugares já marcados, isto é, segundo as marcas, que tinha posto nos
mesmos livros.5

O excerto esclarece quanto à natureza do trabalho: tratava-se de um con-


junto de notas, escritas para guiar o professor no decurso de sua aula, espécie de
roteiro rascunhado à noite — o que sugere que a docência não era a principal
atividade de Brotero —, a partir da bibliografia que o autor pôde mobilizar e que
fez questão de incorporar diante da escassez de livros de texto disponíveis. Ainda
segundo seu testemunho, o resultado foi enviado às pressas para análise e não
parece surpreendente que o tal compêndio acabasse reprovado pela Comissão de
Instrução Pública, sob a alegação de que “não apresentava ligação harmônica
entre as matérias, nem uniformidade no estilo, sendo uma verdadeira compila-
ção de diferentes autores, que não seguiram os mesmos princípios, nem se expri-
miram no mesmo estilo [...]”.6 O fato não interferiu na sua carreira docente,

5 Apud Deaecto, 2005:107.


6 Apud Deaecto, 2005:107. Nessa mesma página a autora cita a lista de obras publicadas pelo
professor, que, inclusive, seria o autor de um dos primeiros livros impressos em São Paulo,
Questões sobre as presas marítimas (1838).

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Livro didático e Estado 157

tampouco impediu que ele publicasse várias obras no campo do direito e até
mesmo um drama histórico em três atos.
Para os nossos objetivos, o exemplo da implantação do curso jurídico em
São Paulo enseja a oportunidade de destacar o papel do poder público enquanto
mediador fundamental no percurso de realização de obras destinadas ao nascen-
te sistema de ensino superior. Nessa oportunidade, o Estado apresentou-se inves-
tido do direito de reconhecer autoria, permitir ou não a publicação e assegurar o
monopólio do mercado por anos. Note-se, contudo, que seria preciso investigar
se essa foi uma ação circunstancial e localizada ou se a referida mediação também
vigorou para as demais escolas superiores do período.
Pelo menos no que diz respeito à aprovação do trabalho, a exigência parece
ter sido necessária também para os autores que se aventuravam a produzir livros
destinados a outros níveis de escolarização, como atesta o fato de os volumes
trazerem na capa ou na folha de rosto a informação de que uma comissão, conse-
lho ou diretoria aprovou a obra, isso tanto no Império quanto no começo da
República. E aqui se abre outro caminho de pesquisa, uma vez que ainda pouco se
sabe acerca do ordenamento jurídico, da composição, do funcionamento e das
formas de atuação desses órgãos, em perspectiva sincrônica ou diacrônica.
A literatura especializada indica que a exigência de ungir o trabalho uma
espécie de certificação oficial repercutia em diferentes aspectos da obra. Num
artigo em que discute a questão da autoria dos primeiros livros escolares brasilei-
ros, Circe Bittencourt destaca que o perfil daqueles que assinavam essa produção
nas principais editoras da época — Laemmert, Garnier e Alves — pode ser apre-
endido como parte de um esforço de aproximação com o poder, uma vez que

Compêndios, cartilhas eram textos que precisavam da aprovação institucional para


que pudessem circular nas escolas, o que acabava por direcionar as opções dos edito-
res na seleção dos autores. Entende-se, portanto, a preferência por autores oriundos
do Colégio Pedro II ou da Academia Militar. Além de assegurarem uma vendagem,
dificilmente seus nomes seriam vetados pelos conselhos educacionais que avaliavam
as obras, inclusive porque vários membros do IHGB compunham as comissões de
avaliação das obras didáticas. A figura do autor era assim realçada, sua biografia
geralmente exposta na página de rosto, e os editores esmeravam-se em valorizar sua
posição social.

A escolha do autor e sua apresentação configuravam, portanto, uma estra-


tégia para assegurar que o volume não seria vetado, uma vez que a legitimidade

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158 A história na escola

das páginas subsequentes estava assegurada, de antemão, pela biografia do autor,


que deveria expressar claramente sua formação, competência técnica, pertinência
a agremiações de cunho científico e literário, trajetória profissional e, não raro,
política.
Estudos sistemáticos sobre os órgãos incumbidos de avaliar as obras —
como eram compostos, os critérios de seleção que utilizavam, suas formas de
atuação, percentagem de aprovação e reprovação, relação de proximidade ou
distanciamento com editores etc. — poderiam esclarecer o significado efetivo da
frase impressa na capa ou na folha de rosto: “aprovado pela Inspetoria, Direto-
ria, Conselho tal...”.
Em seu artigo, Circe fornece exemplo direto de alocação de dinheiro públi-
co na compra de livros didáticos, caso de Abílio César Borges, diretor-geral de
Instrução Pública na Bahia, fundador e proprietário, na segunda metade do sécu-
lo XIX, de colégios, em diferentes províncias do Império, tidos como pedagogica-
mente inovadores, autor de dezenas de obras, editadas às suas expensas e “distri-
buídas gratuitamente”. E as aspas, como destaca Circe, são necessárias, pois a tal
gratuidade era assegurada com verbas públicas, obtidas graças à proximidade
com o imperador... O caso chama a atenção e pode-se perguntar se era algo ex-
cepcional ou se outros autores/editores também não teriam obtido favores seme-
lhantes.7

Monteiro Lobato e a edição de livros escolares

É importante tomar um exemplo de outra época e contexto para verificar a per-


sistência de certos traços e práticas. O papel de Monteiro Lobato como editor
inovador tem sido destacado por aqueles que se dedicam à história das editoras
brasileiras, o que o torna uma figura importante para o argumento aqui deli-
neado. Muito do que se sabe sobre suas práticas provém de sua correspondência,
especialmente de A barca de Gleyre, que reproduz as cartas trocadas, por décadas
a fio, com o amigo Godofredo Rangel, bem como de depoimentos e entrevistas.
Numa delas, concedida a Silveira Peixoto para Vamos ler em 1943, Lobato expli-
ca como conseguiu vender a edição de Narizinho arrebitado (1921). Apesar de
longo, o excerto é importante para que se compreenda como Lobato investia
para construir uma dada imagem de sua atividade editorial:

7 Bittencourt, 2004:482. Sobre Abílio César Borges, ver p. 485-486.

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Livro didático e Estado 159

— Cheguei a tirar uma edição de 50.500 exemplares de Narizinho arrebitado, isto,


é claro, por mera inexperiência, pois um editor, por maior confiança que tenha
num livro, nunca se arrisca a tamanha loucura; vai fazendo tiragens sucessivas de
dez mil, para economia de espaço no depósito, para evitar empate de capital, por
mil coisas. Mas a nossa inexperiência nos levou a esse absurdo, que nunca mais foi
repetido, nem por nós nem por outro editor. Há, todavia, um deus para os bêba-
dos e outro para os inocentes. O deus dos inocentes premiou a nossa inocência
com um autêntico milagre: a tal edição-monstro esgotou-se em oito ou nove
meses!

— Apenas?
— Pois só o governo de São Paulo adquiriu trinta mil narizes...
— Como foi isso?

— O Dr. Washington Luiz estava na presidência de São Paulo. Um belo dia saiu a
correr os grupos escolares em companhia do secretário Alarico Silveira. De escola
em escola, notou que em todas elas havia um livrinho de leitura, extraprograma,
muito sujinho e surrado. Era justamente o meu Narizinho. Os quinhentos exempla-
res a mais dos 50 mil eu os havia tirado em papel melhor e mandado de presente a
todos os grupos e escolas do Estado. E como fossem absoluta novidade, a criançada
atirou-se a eles e os leu à moda das crianças — escangalhadamente. O Dr. Washing-
ton fez ao seu secretário a seguinte observação: “Se este livro anda assim em tantos
grupos, é sinal de que as crianças gostam dele. Indague de quem é e faça uma compra
grande, para uso em todas as escolas”. No dia seguinte Alarico me telefonou pedin-
do que passasse na Secretaria. Lá me contou das visitas da véspera e da opinião do
presidente. Depois: “quantos exemplares deste livro pode você vender ao governo?”
Uma pergunta assim à queima-roupa a um editor que está atrapalhado com a
maior avalanche nasal da sua vida é coisa de estontear. “Quantos quiser...” Alarico
pensou que fosse brincadeira e, para pilhar-me, disse: “pois mande trinta mil ao
almoxarifado”. Veio nesse momento o café, mudamos de assunto e logo depois saí.
Quando no dia seguinte o almoxarifado recebeu os trinta mil narizes, houve alarme
por lá. Telefonaram ao secretário, o qual também me telefonou. “Lobato então era
verdade a história dos trinta mil?” “Claro, Alarico! Onde se viu blefar para cima de
um secretário de estado como você?” E ele: “Pois só agora depois da telefonada do
almoxarifado é que estou acreditando...

— Resultado?

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160 A história na escola

— Em oito meses lá se foi toda a edição e deixou um grande lucro. Esse dinheiro caído
do céu muito contribuiu para o reforço do capital da nossa editora, a qual nunca mais
parou de crescer.8

Embora o editor insista na ideia da inocência e mesmo imprevidência co-


mercial, é pouco provável que a situação tenha se passado exatamente dessa for-
ma. Vale mencionar que o secretário do Interior era amigo pessoal de Lobato,
assim como seu irmão, o escritor Valdomiro Silveira, de quem publicou várias
obras. Já a Washington Luís, próximo a seu avô, o visconde de Tremembé, o
autor de Urupês devia a nomeação para a promotoria de Areias (1907) e, anos
depois, a sua indicação, pelo presidente da República, para o cargo de adido
comercial junto ao consulado brasileiro em Nova York (1927).
De outra parte, é bom ter presente que, no início da década de 1920, Lobato
acumulava significativa experiência no mercado — iniciara suas atividades edito-
riais em 1918 — e havia se tornado um nome de dimensões nacionais, consagrado
não só como escritor e defensor da língua nacional, mas também como militante
da campanha em prol do saneamento dos sertões, membro destacado do grupo
que se aglutinava em torno da redação do jornal O Estado de S. Paulo, do qual era
colaborador assíduo, proprietário da prestigiada Revista do Brasil e de uma edi-
tora que vinha alterando os padrões vigentes no mundo do livro.9
A versão apresentada pelo editor é integralmente endossada por seu prin-
cipal biógrafo, Edgard Cavalheiro, com o importante acréscimo de uma carta
datada de 18 de dezembro de 1920, na qual a Cia. Paulista de Papéis e Artes

8 Lobato, 1950:213-215. A Revista do Brasil, então nas mãos de Lobato, publicou artigo
elogiando a decisão da Diretoria Geral de Instrução Pública de introduzir Narizinho nas
escolas. Ver Bruschini, 1923:64-67. Notícia não assinada sobre a versão escolar dos contos de
Lobato, adotada, entre outros, pelo Colégio Mackenzie, encontra-se na Revista do Brasil (São
Paulo, v. 25, n. 104, ago. 1924), p. 338. Em dezembro desse mesmo ano, a Revista do Brasil
estampava propaganda da Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato relativa ao volume
Contos escolhidos, na qual se lê: “Magnífico volume em que o escritor Monteiro Lobato
reuniu, para a juventude, os melhores contos dos livros que já publicou. Nele se encontra o
que de melhor se contém em Urupês, Cidades mortas e Negrinha”, ao que se seguia o sumário
do livro e, como arremate, a informação: “Para recomendar a obra, basta dizer que a direção
do Colégio Mackenzie de S. Paulo já a aprovou para leitura de suas classes secundárias, no que
foi acompanhado por vários outros estabelecimentos de ensino do Estado”. O preço do
volume era 4$000.
9 Luca, 2004:139-161.

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Livro didático e Estado 161

Gráficas, empresa encarregada de imprimir a obra, reiterava os termos do con-


trato: “Pela presente confirmamos a encomenda que V. Sas nos confiaram de 50
mil exemplares de um livro escolar, impresso em papel jornal, no formato e enca-
dernação mais ou menos igual ao Primeiro livro de leitura de João Kopke, edição
de 1920, cujo exemplar V. Sas nos entregaram para amostra...”, o que torna pa-
tente que, desde o início, a obra foi concebida como livro didático, tanto assim
que na capa, reproduzida por Cavalheiro, lê-se: “Narizinho arrebitado. Segundo
livro de leitura para uso das escolas primárias. 1a edição, desenhos de Voltolino”,
com a chancela “Monteiro Lobato & C. Editores — São Paulo, 1921”.10
Pode-se perguntar se a contratação da tal edição deu-se antes ou depois do
encontro de Lobato com Silveira... Mas é possível encontrar outros indícios de
que Lobato entabulou negócios com o governo, como ele mesmo indica ao refe-
rir-se à impressão do álbum O Brasil de outrora, de Assis Cintra, que contou com
subvenção da Câmara Municipal de São Paulo e deu margens a dissabores e acu-
sações.11
Contribuições novas e fundamentais acerca das atividades editoriais do
escritor foram aportadas pela tese de Cilza Carla Bignotto. Além de consultar de
forma sistemática um amplo rol de livros com o selo editorial Monteiro Lobato,
a pesquisadora trabalhou com os catálogos das sucessivas editoras que ele organi-
zou entre 1918 e 1925, obteve informações comerciais sobre estas e localizou o
processo de falência, o que, por seu turno, abriu possibilidades para o estudo dos
contratos firmados com os autores da casa.12

10 Cavalheiro, 1962, v. 2, p. 146-148, para a versão da venda; p. 182 para o contrato de edição
da obra, e p. 194 para a capa do livro.
11 Em carta de 15 de novembro de 1923, Lobato parece responder a indagações do amigo
sobre subvenções recebidas: “Tudo calúnias, Rangel. Fui ao Rio e a Belo Horizonte apenas a
passeio, para descanso. Não fui cavar coisa nenhuma. Bem sabes do meu horror à cavação e
da minha orgânica antipatia para com todos os governos. Apenas tratamos de um álbum
histórico, de luxo, com o Assis Cintra e ele, por conta dele, andou a cavar subvenções. Os
jornais atacaram-me quando viram a Câmara daqui [SP] destinar 30 contos para 300 exem-
plares do Brasil de outrora. Era cavação do Cintra, só dele [...]”. Lobato, 1964, v. II, p. 258-259
(grifo do autor).
12 Bignotto, 2007. Num país em que o público é frequentemente privatizado e os arquivos são

colocados à disposição depois que os diretamente envolvidos na sua organização e guarda já


extraíram tudo o que lhes interessava, o ato de divulgar, num CD que acompanha a tese, a
íntegra da documentação citada e que, por sua própria extensão, só poderia ser parcialmente
analisada pela autora, constitui um raro gesto de generosidade intelectual, que merece ser
destacado e aplaudido.

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162 A história na escola

Graças à revelação desse amplo universo, pode-se perceber o movimento


interno dos catálogos e o peso crescente que os livros técnicos de diversas áreas, os
destinados ao ensino superior e os didáticos, aí incluídos os de leitura, passaram
a desempenhar. Assim, por exemplo, nos catálogos de 1923 e 1924, a rubrica
Literatura Infantil não existia, e as obras de Lobato destinadas aos pequenos eram
apresentadas junto com a obra adulta, situação que muda no ano seguinte, quando
o item aparece de forma autônoma, englobando não só títulos de Lobato — A
menina do narizinho arrebitado (1920), Narizinho arrebitado (1921) edição esco-
lar, O saci (1921), O marquês de Rabicó (1924), A caçada da onça (1924), Jeca
Tatuzinho (1924), Fábulas de Narizinho (1921) e Fábulas (1922) — mas também
os de outros autores. Pelo processo de falência, sabe-se da existência da série
Shakespeare dos Meninos, da qual foi publicado apenas o primeiro volume, A tem-
pestade, enquanto na correspondência do escritor e editor há menção a um aparen-
temente vasto projeto de adaptação dos clássicos da literatura para crianças.
Outro ponto a ser destacado é o crescimento da rubrica Didática, cujo
montante aumenta de 24 (1924) para 32 livros (1925), muitos dos quais com a
indicação cartonado, forte indício de sua destinação escolar. No catálogo de 1923,
as obras não eram divididas por temas, mas lá já figurava o volume de Miguel
Milano, Ciências físicas, naturais e higiene, oportunidade em que se informa tra-
tar-se de “Obra aprovada pela Diretoria Geral de Instrução Pública do Estado de
São Paulo e que presta aos estudantes destas matérias um serviço relevante”.13 O
catálogo de 1925, por sua vez, fechava-se com a seguinte nota: “Enviam-se, sob
pedido, catálogos especiais de Livros Jurídicos, Livros Didáticos e Livros de Con-
tabilidade”, o que atesta a ênfase crescente nesses setores específicos do mercado
livreiro.
Contudo, esses dados ganham outros sentidos quando se tem a oportuni-
dade de vislumbrar o processo de negociação de alguns títulos, caso de Higiene
para o povo: amarelão e maleita, de Belisário Pena. O trabalho foi escrito por
encomenda do então presidente do estado de São Paulo, Washington Luís, e
publicada em 1924 por Lobato, que, no ano seguinte, propôs sua reedição sob o
seguinte argumento:

Temos recebido vários pedidos do Amarelão e maleita, e não pudemos atendê-los


porque não possuímos o livro. Quase todos os pedidos foram feitos pelas repartições

13
Bignotto, 2007:271-272, 385. Consultar também CD anexo à tese, pasta Catálogos.

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Livro didático e Estado 163

de saneamento de vários estados do Brasil, inda agora recebemos um, de 50 exempla-


res, da Secretaria do Interior do Estado do Rio Grande do Sul.14

Não caberia explorar aqui as várias questões que o exemplo levanta, a


começar pela proximidade de Lobato com o movimento sanitarista, suas relações
com Pena e o papel que este ocupava no cenário da época, seja como inspirador
do Serviço de Profilaxia Rural ou no seu incansável trabalho educativo em confe-
rências pelo país afora,15 ou ainda o próprio fato de Washington Luís aparecer,
mais uma vez, relacionado à editora de Lobato. Importa destacar a aposta certa
da empresa, que cuidava de assegurar a impressão de obras passíveis de serem
adquiridas pelo poder público.
Nessa direção, não é irrelevante que, entre os títulos didáticos com a chan-
cela de Lobato, estivessem vários volumes assinados por Antonio Sampaio Dória
— O que o cidadão deve saber, explicação da Constituição Federal e organização
política do Brasil; Como se aprende a língua, em três diferentes versões, destina-
das aos cursos elementar, médio e complementar; Como se ensina, livro de
metodologia para os cursos normais — além de outros que não eram listados
como tal: A questão social, Questões de ensino e O espírito das democracias.
Dória ocupou o cargo de diretor-geral da Instrução Pública do Estado de São
Paulo (1920), foi responsável pela reorganização do ensino primário e era, ade-
mais, sócio da Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato, conforme se veri-
fica nos estatutos da empresa, localizados por Cilza Bignotto.16
Entre os diversos livros escolares havia cartilhas de alfabetização e de
higiene, gramáticas da língua portuguesa, volumes sobre colocação de prono-
mes, conjunções, conjugação de verbos em italiano, locuções adverbiais france-
sas, livros de leitura, álgebra, fatoração, cálculos mentais, cadernos de proble-
mas, história pátria, corografia, química orgânica, aulas de música, cantigas,
entre outros. Os dados do processo de falência, como bem ressaltou Cilza, indi-
cam que a editora expandia seus projetos nesse gênero. Assim é que Teodoro
Jerônimo Rodrigues de Moraes, consagrado autor de livros didáticos, deve ter
sido contratado para escrever uma coleção destinada às escolas, uma vez que ele

14 Carta a Belisário Pena, de 11 de abril de 1925, apud Bignotto, 2007:186.


15 Sobre a trajetória do sanitarista, consultar Penna, 1999:xlviii-lx; e Abreu et al., 2001, v. IV,
p. 4524-4525.
16Bignotto, 2007:391-392. Consultar também CD anexo à tese, pastas Catálogos e Sampaio
Dória.

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164 A história na escola

apresentou petição reclamando o recebimento de pouco mais de 12 contos de réis


por serviços prestados, quantia bastante significativa para a época. A companhia
também aceitava trabalhos para edição, como se depreende da requisição apre-
sentada por Aprígio de Almeida Gonzaga, que escreveu Minhas lições, Contos
escolares e São Paulo e suas grandezas, que não chegaram a ser impressas e cujos
originais foram devolvidos ao autor.17
O autor que maior crédito tinha junto à massa falida era Eduardo Carlos
Pereira, que não figurou no catálogo de 1923, mas nos relativos a 1924 e 1925
assinou os volumes Gramática expositiva, para os cursos elementar e superior, e
Gramática histórica. Quando do fechamento da empresa, os estoques somavam,
respectivamente, 8.798, 1.398 e 329 exemplares e, fato que pode parecer surpreen-
dente à primeira vista, não consta que Pereira tenha se apresentado para receber
seus direitos.
O vasto conjunto de dados compulsados na tese de Cilza é, de fato, respon-
sável por novas perspectivas em relação às atividades editoriais de Lobato, con-
forme indica o título de seu trabalho. A hipótese de que a falência tenha se dado,
pelo menos em parte, em razão do cancelamento das compras governamentais,
como já aventara em suas memórias Geraldo Ferraz, que na época do fechamento
exercia as funções de revisor, ganha novos elementos. Segundo Ferraz, foi em
1925 que

Monteiro Lobato teve a idéia de dirigir-se ao presidente da República, Artur Bernardes,


pedindo anistia para os rebeldes de 1922 e 1924. A resposta do Palácio do Catete foi
brutal: determinava a suspensão de todas as edições escolares que a editora imprimia e
distribuía, inclusive da recente aquisição dos direitos autorais das Gramáticas de Eduar-
do Carlos Pereira, para cujo barateamento, em numerosas edições, Lobato imaginara
com seus gerentes gráficos, Daiuto e Rossetti, fundir estereotipias... Todo esse trabalho
foi perdido, e o cerceamento das edições escolares, em todo o país, levava a editora a cair
sob o peso do golpe. Monteiro Lobato pediu falência e pôs à venda as máquinas, algu-
mas recentíssimas, como as primeiras monotipos que havia meses tinham chegado e
eram as primeiras que tinham vindo para o Brasil, ao que nos dizia Rossetti. Silenciaram
monotipos e linotipos, silenciou tudo nas vastíssimas instalações, que iam da rua Briga-
deiro Machado ao outro quarteirão, à rua do Hipódromo.18

17 Bignotto, 2007:392-393 e p. 390, respectivamente.


18 Ferraz, 1983:14. É curioso notar que no catálogo de 1924 informa-se que a Gramática para
o curso elementar encontrava-se na 28a edição, a do curso superior na 16a e a histórica na 4a.

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Livro didático e Estado 165

Ainda que esse fator não tenha sido mencionado por Lobato, seja no pedi-
do de falência, seja nas cartas e entrevistas em que tratou do tema, consta no
relatório do advogado Plínio Barreto que a editora havia perdido as encomendas
do seu melhor cliente, o governo.19 Não cabe retomar as causas das desavenças
entre Lobato e Bernardes, que aliás foram detidamente tratadas em Furacão na
Botocúndia,20 mas destacar a consistência da hipótese em vista das opções edito-
riais de Lobato.
No caso dessa editora, cuja vocação inicial não se centrava nos didáticos,
chama atenção o quanto a sua existência passou a depender desse setor, sobretu-
do a partir do momento em que Lobato decidiu entrar no ramo da impressão. Ele
não apenas dispunha de um parque gráfico capaz de produzir enormes tiragens
como precisava fazê-lo a fim de pagar as dívidas contraídas na importação dos
equipamentos. Se os 50 mil exemplares de Narizinho tiveram que ser contratados
junto a terceiros, agora ele mesmo poderia responder prontamente, e com quali-
dade, a qualquer demanda. E não parece demais supor que as motivações para
investir levassem em conta as potencialidades desse mercado.
Ao decidir produzir (como autor, editor e impressor) livros destinados a
estudantes de diferentes níveis, Lobato mobilizou relações de amizade e prestígio,
como atesta a proximidade com autores que ocupavam cargos estratégicos no
sistema de ensino, a realização de edições com o apoio do Executivo e a venda de
grandes montantes para as escolas públicas, o que também indica o quanto a
produção e, sobretudo, a circulação do gênero didático dependia das benesses e
da proteção do poder. Mas ao tentar medir forças com o Executivo, Lobato tam-
bém experimentou a “resposta brutal” do Catete e o quanto, pelo menos para a
sua gráfica-editora, o Estado desempenhou papel decisivo na (in)viabilização do
negócio.
Para testar a hipótese seria importante ter em conta a estratégia adotada
por Lobato na Companhia Editora Nacional, fundada em abril de 1926. Ainda
que não se disponha de dados, cabe registrar que, nos seus primeiros momentos,
o sucesso da nova casa deveu-se justamente à Gramática expositiva, de Eduardo
Carlos Pereira, como ele confidenciou ao cunhado Heitor de Moraes: “Imagina
tu que o capital social da grande empresa é só de 50 contos; no entanto, as 20.000

19 Bignotto, 2007:269.
20 Azevedo, Camargos e Sacchetta, 2001:150-156.

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166 A história na escola

gramáticas que vendemos este mês [março de 1926], só elas, nos dão um líquido
de 55 contos!”,21 o que indica que o investimento de Lobato não se perdeu, como
supôs Ferraz.

Estado Novo: em busca do controle

Se o Estado impõe normas que atingem autores, editores e também o público,


como as práticas de Lobato parecem sugerir, deve-se ter presente que as linhas de
força entre os vértices do quadrilátero configuram interações dinâmicas e confi-
gurações diversificadas. O Estado Novo, regime de exceção que aportou transfor-
mações significativas no aparelho institucional do país e tem merecido revisão
historiográfica importante, oferece outros elementos de reflexão acerca do mer-
cado do livro didático. De fato, inaugurou-se um outro patamar de intervenção,
e se o Poder Executivo era o principal responsável pelo negócio, comprando e,
indiretamente, influenciando decisões mercadológicas dos editores, ou pelo me-
nos de parte deles, no novo regime o Estado passou a ser o incentivador, o
organizador, o controlador e um comprador importante, o que redundou em
forte dependência do setor editorial-didático.
Na gestão de Gustavo Capanema, o Ministério da Educação e Saúde promo-
veu uma série de medidas para incentivar, organizar e controlar a produção desti-
nada ao público escolar, seja de livros propriamente didáticos ou de literatura
infantil. Nesse sentido, destaque-se especialmente a criação da Comissão Nacional
do Livro Infantil (1936),22 a Comissão Nacional do Ensino Primário (1938) e a
Comissão Nacional do Livro Didático (1938). Esta última foi instituída pelo Decre-

21 Lobato, 1959, v. 1, p. 191. A Companhia Editora Nacional comprou os direitos autorais de


todas as obras que haviam passado às mãos do Bank of London & South America, com
exceção das que foram objeto de reivindicação, o que possivelmente explique a não reclama-
ção de Carlos Eduardo Pereira. Para a escritura de compra, consultar Bignotto, 2007:400-401.
22 Segundo informa Gomes (2006), entre as atribuições dessa comissão estava “realizar
levantamentos sobre a situação desse tipo de produção literária; selecionar livros para serem
traduzidos; classificar por idade as obras existentes e censurar as que fossem perniciosas;
organizar um projeto de bibliotecas infantis e, com destaque, promover o desenvolvimento de
uma boa literatura para crianças e jovens”. Composta por nomes de destaque das letras
nacionais — Manuel Bandeira, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Murilo Mendes, Lourenço
Filho e, por um curto período, Cecília Meireles —, a comissão também promoveu concursos
para premiar obras destinadas ao público infantil.

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Livro didático e Estado 167

to-Lei no 1.006, de 30 de dezembro, que, ao longo de 40 artigos, estipulava diretrizes


para a elaboração e a utilização de livros didáticos, instituía a comissão nacional
responsável por sua avaliação, detalhava o processo de autorização e os motivos
que justificavam o seu veto. Estipulava que, a partir de 1o de janeiro de 1940, livros
sem a autorização do ministério não poderiam ser utilizados nas escolas pré-primá-
rias, primárias, normais, profissionais e secundárias de toda a República.
À comissão cabia proceder à análise dos materiais didáticos submetidos
pelos autores e editores, elaborar uma relação oficial para servir de orientação à
escolha dos professores de escolas públicas ou privadas, além de estimular e orien-
tar a produção de livros didáticos, sugerir a abertura de concursos para a produ-
ção de obras inexistentes e organizar exposições nacionais dos livros didáticos
autorizados. Note-se que o Estado não produzia material, nem tampouco impu-
nha a adoção de um livro escolar único, mas limitava o universo de opções, na
medida em que a seleção deveria ser feita a partir da lista oficial, sob a responsabi-
lidade de especialistas nomeados para a tarefa pelo presidente da República.
Entre os ditames legais, que expressam expectativas dos ocupantes do po-
der, e a atuação efetiva da Comissão Nacional do Livro Didático houve conside-
rável distância, como indicam os primeiros resultados de pesquisa ainda em cur-
so, que evidenciam a demora no início dos trabalhos, as constantes dilatações de
“prazos finais”, acrescidos dos modestos resultados a que se chegou, ainda mais
quando confrontados com as prescrições do decreto de 1938.23 Ainda assim, a
preocupação de centralizar as decisões, conduzir uma política unificada para
todo o país e intervir na produção, com a delimitação de diretrizes gerais que
puniam qualquer crítica ao regime político em vigor e ao chefe da nação, assinala
um novo patamar de intervenção na produção didática.
Por certo, seria importante averiguar que tipo de relacionamento foi esta-
belecido entre autores, editores, a comissão nacional e o próprio ministério. Houve
alterações importantes em relação ao decreto de 1938, como o relaxamento da
norma que vedava aos avaliadores manter qualquer ligação comercial com as
editoras, a tal ponto que Capanema acabou dando posse a outro grupo encarre-
gado de avaliar os livros de integrantes da comissão. A lentidão dos trabalhos,
por outro lado, parece ter gerado problemas com autoridades municipais e esta-
duais, que costumavam exercer a função de certificação dos livros.
Deve-se destacar que a criação da comissão não foi um ato isolado, antes se
articulava a um conjunto de mudanças no campo educacional, iniciadas já em

23 Ferreira, 2006.

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168 A história na escola

1931 com a chamada Reforma Francisco Campos, que estabeleceu novas bases
para o sistema de ensino do país como um todo, e que teve continuidade com a
Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942. O regime não apenas interferiu de
forma incisiva no campo educacional, mas levou a cabo, desde a subida de
Vargas ao poder, um processo de centralização e expansão da máquina buro-
crática que, aliado a um ambicioso projeto no âmbito da cultura, alterou as
relações entre intelectualidade e Estado. De fato, diversificaram-se as oportuni-
dades de emprego para a elite letrada, na medida em que o poder público de-
mandava, em diferentes escalões, contingentes crescentes de servidores públicos
qualificados.24
De outra parte, como destacou Sérgio Miceli, houve nesse período uma
vigorosa expansão do mercado editorial, favorecida tanto pelo aumento do
letramento, por reformas no ensino secundário e pela ampliação do segmento
superior, além da própria conjuntura econômica interna e externa, pouco propí-
cia à importação de livros. Esse conjunto complexo de fatores alterou as condi-
ções de exercício da atividade intelectual e chegou mesmo a permitir a existência
do “romancista em tempo integral”.
O próprio governo, por intermédio do Instituto Nacional do Livro (INL),
criado em dezembro de 1937 no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, e
cuja direção foi entregue a Augusto Meyer, constituía-se num comprador bas-
tante significativo.25 O instituto objetivava atender aos ditames da educação
extraescolar, prevista no Plano Nacional de Educação encaminhado ao Congres-
so Nacional em setembro do referido ano, pouco antes do golpe que instaurou o
Estado Novo. Para tanto, o órgão compunha-se de três seções: a responsável pela
publicação da Enciclopédia brasileira e do Dicionário de língua nacional, projeto
no qual Mário de Andrade atuou como consultor técnico;26 a de publicações, que
deveria editar obras raras e preciosas e adotar medidas que melhorassem e bara-
teassem o livro, e que teve a participação de Sérgio Buarque de Holanda; e, final-
mente, a de bibliotecas, que visava incentivar a organização e manutenção de

24
Miceli, 2001:195-237.
25 Para um estudo sistemático do INL, consultar Silva, 1992, trabalho que subsidiou as
informações do parágrafo.
26 O projeto que o escritor apresentou encontra-se em Andrade, 1993. Edição crítica e estudo
de Flávia Camargo Toni.

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Livro didático e Estado 169

bibliotecas públicas em todo o país. Esta última levou a cabo um levantamento


dos acervos e implementou programa de doações, tanto de obras que patrocina-
va quanto de outras, adquiridas no mercado, o que fez do INL um cliente em
potencial bastante disputado pelas editoras, o que por certo mereceria investiga-
ção sistemática.
Mas não era o ministério que, por meio de suas ações, se fazia presente na
produção e no mercado livreiro. A bibliografia especializada tem destacado a
ação cerceadora e persecutória do famigerado Departamento de Imprensa e Pro-
paganda (DIP, 1939), ao que se deve acrescer dimensões que também envolviam
o convencimento, ancoradas em atividades editoriais que pretendiam difundir o
projeto cultural e as realizações do regime e do chefe do Estado. Se a mão forte e
controladora do Estado em relação ao mundo dos impressos tem sido destacada,
convém não perder de vista o interesse e a avidez com que alguns favores — a
exemplo dos empréstimos bancários, cotas de papel, inclusão de livros em listas
recomendadas pelo Ministério da Educação ou financiadas e distribuídas por
órgãos governamentais — eram disputados.
Rastrear o conjunto do que foi publicado ou, em alguma medida, apoiado
pelo DIP e órgãos que o antecederam constitui uma tarefa extremamente difícil,
mas por certo muito fértil para desvendar o intercâmbio mantido por autores,
editores e donos de empresas gráficas com o Estado. O levantamento feito por
Alfredo Wagner e reproduzido por Gustavo Sorá, autor de uma tese sobre a
Editora José Olympio, chegou a 331 títulos, dos quais 107 pertenciam a empresas
privadas e, segundo concluiu o Sorá, 20 traziam o selo do então mais prestigiado
editor nacional.27
É certo que a José Olympio não se concentrava nos livros didáticos, ainda
que os editasse, como atesta a edição do volume História do Brasil (1944), de
Otávio Tarquínio de Sousa e Sérgio Buarque de Holanda, destinado à 3a série do
curso secundário e que, segundo se informa na capa, estava “de acordo com o
programa oficial”. Entretanto, o exemplo, ou melhor, o contraexemplo mostra
como mesmo os que guardam distância de um mercado tão regrado como o dos
didáticos buscavam a sombra do poder. Conforme demonstrou Sorá, Olympio
foi capaz de estabelecer uma rede suficientemente sólida, que lhe possibilitava
editar sem ser gravemente importunado, apesar do regime de exceção, e mesmo

27
Almeida, 1981, apud Sorá, 1998:206-208.

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170 A história na escola

gozar de favores do poder. As relações com o Catete eram cuidadosamente nutri-


das, como ilustra o hábito de remeter livros para Getúlio Vargas e sua filha,
Alzira, devidamente acompanhados de “bilhetes gentis”:

Rio, 10/4/1939

Dona Alzirinha

Esses livros estão chegando da Europa. Vieram sábado. Vão para o nosso presidente
aproveitar as férias que ele puder ter em Caxambu.

Tomei a liberdade de juntar três para a senhora. O romance de Foldes, o volume sobre
o Goethe e o La famille Brontë.
At. José Olympio.28

Nesse sentido, a correspondência de José Olympio, conservada na Funda-


ção Casa de Rui Barbosa, é preciosa. A proximidade com Lourival Fontes, quan-
do este esteve à testa do DIP, e com outras figuras do regime é, por intermédio das
missivas trocadas, claramente explicitada. Veja-se, a título de exemplo, a resposta
que Fontes envia ao editor, em papel timbrado da Presidência da República e sem
indicação de data:

Recebi sua carta e você há de compreender que eu faria tudo para o atender. Mas as
dificuldades orçamentárias no DIP, nesse momento, são inumeráveis e não dão mar-
gem a qualquer nova despesa. A verba que tenho é a mesma do ano passado e os
serviços multiplicaram-se por dez, além de um pesado ônus que me veio do exercício
anterior e que ainda não pude desafogar-me. O pagamento de serviços já prestados,
como de radiodifusão em ondas curtas, estão [sic] atrasados. Só no segundo semes-
tre, e ainda assim realizando um grande esforço, poderei ficar em dia. É esta a maior
razão, por si só definitiva, que me impede de fazer aquisição dos livros que você editou
e de que o regime se tem tanto beneficiado. O José [ilegível] deve entregar-lhe os

28 Apud Soares, 2006:61. Cartas de agradecimento de Getúlio Vargas (2 de fevereiro de


1939) pelo envio de livros de Euclides da Cunha e cinco volumes encadernados, contendo
notícias e artigos sobre A nova política do Brasil, e de Gustavo Capanema (4 de julho de
1936), agraciado com a obra de Antonio de Alcântara Machado, foram reproduzidas por
Sorá, 1998:181-182. À última pode-se acrescer outra do acervo da Casa de Rui Barbosa, de
8 de janeiro de 1935, na qual o ministro agradece o envio da segunda edição de Machado de
Assis, de Alfredo Pujol.

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Livro didático e Estado 171

originais da Nova Política, 6o e 7o volumes. O DIP se responsabilizará, para cada


edição, por mil exemplares.

Infelizmente não se sabe que obras Olympio tentou vender ao DIP, se eram
ou não didáticas, mas a tentativa, bem como a resposta de Fontes atestam a im-
portância que uma relação bem-azeitada com o poder público poderia represen-
tar em termos de oportunidades financeiras.

Editoras e o PNLD

Após a experiência de 1938, a intervenção mais direta do Estado na questão do


livro didático deu-se em 1966, durante a ditadura militar, quando foi criada a
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático, cuja função era coordenar a produção,
edição e distribuição de obras do gênero. Seguiram-se vários outros órgãos, como o
Instituto Nacional do Livro Didático (1971), que administrava e gerenciava os
recursos financeiros destinados à política educacional e desenvolveu o Programa
do Livro Didático para o Ensino Fundamental; a Fundação Nacional do Material
Escolar (1976), incumbida de executar os programas voltados para o livro didá-
tico e sucedida pela Fundação de Assistência ao Estudante (1983), que assumiu as
responsabilidades para com o livro didático.
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), criado em 1985, intro-
duziu modificações na política até então adotada, com destaque para o processo
de avaliação dos livros, iniciado em 1996. A compra e a distribuição de obras
didáticas foram sendo progressivamente aumentadas até se atingir a
universalização das disciplinas e séries do ensino fundamental regular. E, a partir
de 2005, teve início o Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM),
que, a exemplo do anterior, pretende contemplar o conjunto de estudantes desse
nível de ensino.
Não se pretende reabrir, neste momento, as polêmicas sobre a avaliação
em si, seus critérios e procedimentos, nem avaliar os efeitos, positivos ou negati-
vos, que o programa teve (e continua tendo) sobre os materiais didáticos dispo-
níveis, o que, aliás, foi objeto de reflexão em vários momentos no seminário Os
Livros Didáticos na Escola: Trajetórias e Usos. Tampouco se trata de colocar em
discussão o mérito dos milhões de dólares de investimentos naquele que é consi-
derado o maior programa de livros didáticos do mundo. Mais modestamente,
trata-se de afirmar, à luz da trajetória do negócio livro didático, que o PNLD
pode ser encarado como o ápice de um processo que, de forma institucional,

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172 A história na escola

possibilita às empresas envolvidas na edição desse tipo de material um mercado


não apenas seguro e estável, mas em constante crescimento, num contexto em que
a compra e venda de livros didáticos correspondem a mais de 60% do total das
atividades. Essa circunstância, que não deixa de remeter à forma de funcionamen-
to do nosso capitalismo, sempre tão ávido em obter o apoio e as benesses do
Estado, talvez explique a rapidez com que as empresas deixaram de questionar o
direito do comprador de avaliar e passaram a se adequar às suas exigências.
A destinação de recursos para a compra de livros, por mais correta e justa
que seja, não invalida a tarefa de se inquirir sobre os efeitos que a interferência do
Estado na avaliação e compra teve (e tem) sobre as empresas editoriais. O mercado
brasileiro é de tal ordem que atrai o interesse do capital internacional, que, por
seu turno, já se estrutura para lançar livros de alcance suprarregional, o que por si
só já constitui um complexo objeto de reflexão, uma vez que o livro escolar
segue guardando forte relação com a construção de identidades, sobretudo as
nacionais.
Para além da constatação a respeito dos abalos sentidos pelas editoras,
resultado da mais recente interferência do Estado na avaliação e compra de mate-
riais didáticos, é preciso reconhecer a urgência de se investigar como as mudanças
no campo educacional, sobretudo a partir dos anos 1980, repercutiram no pro-
cesso de elaboração, autoria, apresentação, compra e venda de materiais didáti-
cos. Nesse sentido, faltam estudos comparativos que, levando em conta a
especificidade do momento histórico, perscrutem legislações, diretrizes oficiais,
discursos pedagógicos e de especialistas, estratégias editoriais e mercadológicas
relativas ao livro didático, isso para ficar nos aspectos mais evidentes da questão.
Mesmo numa análise superficial como a apresentada, saltam aos olhos as seme-
lhanças entre as normas que orientaram a Comissão Nacional do Livro Didático
(1938) e as que foram seguidas a partir de 1966. Pesquisas com esse foco poderiam
fornecer novos elementos para o conhecimento das interdependências entre pro-
dução didática, processos de escolha e distribuição e o poder público.

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Parte II

LEITURAS

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Capítulo 8

Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no


ensino de história

Ana Maria Monteiro*

Como forma de currículo escrito, os livros didáticos exercem influência sobre a


ação dos professores no ensino?
Expressão de uma transposição didática já iniciada por seus autores, esses
livros apresentam uma seleção de conteúdos a ensinar e matrizes disciplinares
sobre como ensinar, por meio de modelos explicativos, conceitos, analogias e
outros modos de representar esse saber. Considerando, de acordo com
Chevallard,1 que os professores não fazem a transposição didática, mas atuam
numa transposição já iniciada pela noosfera,2 com relativa autonomia e espaço
para fazer escolhas e reinterpretar propostas apresentadas, reconheço que os li-
vros didáticos desempenham importante papel nesse processo, sendo utilizados
pelos docentes em diferentes situações: como fonte de orientação para explicações
desenvolvidas nas aulas, como apoio ao planejamento e sugestões para avalia-
ções, como material de estudo e atualização.
Por outro lado, os autores de livros, ao produzirem suas obras, expressam
leituras, posicionamentos políticos, ideológicos, pedagógicos, “selecionam e pro-
duzem saberes, habilidades, valores, visões de mundo, símbolos, significados,
portanto culturas, de forma a organizá-los para torná-los possíveis de serem en-

* Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da


UFRJ; pesquisadora do Núcleo de Estudos de Currículo (NEC) da FE/UFRJ e do grupo
Oficinas de História, sediado na Uerj; doutora em educação pela PUC-Rio.
1 Chevallard, [s.d.].
2 O conceito de noosfera utilizado aqui é o proposto por Chevallard. A discussão é desenvol-
vida na terceira seção deste capítulo.

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176 A história na escola

sinados”.3 Assim, os autores, ao produzir livros didáticos, interpretam as orien-


tações oficiais, ou seja, as reelaboram segundo suas ideias pedagógicas e, ao mes-
mo tempo, incorporam expectativas dos professores, buscando atraí-los para o
seu consumo. Discursos oficiais e não oficiais são hibridizados,4 entre eles: orien-
tações de diretrizes curriculares oficiais, outras presentes nos exames vestibulares
e tradições sedimentadas sobre conteúdos indispensáveis, bem como formas de
organização curricular, muitas vezes reproduzidas de modo naturalizado pelos
professores no cotidiano de suas aulas.
Nesse sentido, a produção de livros didáticos configura uma produção de
textos que circulam tanto no “contexto de produção de textos” quanto no “con-
texto da prática”,5 incorporando sentidos e significados dos diferentes contextos
— das práticas, dos textos oficiais e da influência internacional — possibilitando
múltiplas leituras e interpretações.
Investigar, por um lado, as relações estabelecidas nas narrativas presentes
nos livros didáticos com as orientações das instâncias oficiais e não oficiais, ex-
pressando processos de recontextualização, e, por outro, as leituras e os usos
realizados pelos professores pode contribuir para melhor compreender práticas
que têm (ou não) no livro didático um elemento estratégico para a atuação dos
professores.
Neste capítulo serão desenvolvidas algumas reflexões sobre relações possí-
veis entre professores e livros didáticos. Na primeira seção, analiso orientações e
expectativas encontradas em documentos oficiais sobre as possibilidades dos li-
vros didáticos para a superação dos problemas da educação básica, com destaque
para questões mais diretamente relacionadas ao ensino de história. Na segunda
seção, apresento um breve histórico das políticas educacionais referentes aos li-
vros didáticos no Brasil, discutindo alguns aspectos relacionados às mudanças
curriculares ocorridas a partir de definições governamentais e com forte impacto
sobre o ensino da história na década de 1970 e o uso dos livros didáticos pelos
professores dessa disciplina. Na terceira seção, desenvolvo algumas reflexões so-
bre as questões envolvidas na elaboração de textos constituintes de livros didáti-

3 Lopes, 2004:111. Para a discussão sobre a produção e a epistemologia do conhecimento


escolar, ver Lopes, 1999.
4 O conceito de hibridismo é utilizado aqui conforme desenvolvido por Canclini, 2006.
5 Ball, 1992:6-23, apud Lopes, 2004:111-112.

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Professores e livros didáticos 177

cos, tendo por base as contribuições de Chevallard6 sobre transposição didática,


as de Ball7 e Lopes8 sobre ciclo de políticas, e as de Canclini9 sobre a hibridização,
e que, no meu entender, possibilitam avançar na compreensão dos processos en-
volvidos na produção dos textos didáticos. Por último, na quarta seção, discuto
o uso dos livros didáticos por professores no contexto da prática, com base no
referencial teórico apresentado e nos subsídios obtidos em pesquisa por mim
realizada sobre livros didáticos de história e sua utilização por professores.

Livros didáticos: instrumentos de políticas educacionais

A década de 1990 caracterizou-se, no Brasil, por um amplo processo de reformas


educacionais que buscavam regulamentar e induzir mudanças e controle, e que
tiveram no currículo e na avaliação seu principal instrumento de ação. Iniciativas
que se apresentavam como desdobramentos “naturais” dos dispositivos presentes
na Lei no 9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — a Lei Darcy Ribei-
ro —, sancionada em 20 de dezembro de 1996, induziram a elaboração de diretri-
zes curriculares para todos os níveis e modalidades de ensino, a implementação de
políticas de avaliação dos sistemas de ensino fundamental e médio, e de avaliação
das instituições de ensino superior.
As diretrizes elaboradas de modo a terem abrangência nacional funda-
mentavam-se na crença da centralidade do currículo como motor das práticas
escolares e universitárias. Nesse sentido, disseminou-se a ideia de que, ao se mu-
dar o currículo por meio de políticas curriculares, mudar-se-iam as práticas, e
os problemas relacionados à qualidade do ensino praticado nas escolas brasi-
leiras seriam superados. Mais ainda, havia a concepção de que, por meio dessa
política, seriam resolvidos os problemas relacionados à formação dos professo-
res, responsabilizados, recorrentemente, pelo fracasso escolar em níveis alarman-
tes que ocorria e ainda ocorre no Brasil.
Essa ideia é encontrada, por exemplo, em uma das publicações do BID:
“o currículo é o núcleo de um empreendimento educacional e nenhuma política

6 Chevallard, [s.d.].
7
Bowe, Ball e Gold, 1992.
8 Lopes, 2004 e 2006.
9 Canclini, 2006.

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178 A história na escola

ou reforma educacional pode ter sucesso se não colocar o currículo no cen-


tro”. 10
Nesse processo, as práticas curriculares anteriores eram negadas e/ou
criticadas como desatualizadas, em favor da implantação das mudanças educacio-
nais desejadas. As escolas eram, por outro lado, limitadas à sua capacidade ou
não de implementar as orientações curriculares oficiais.
Essa política acabou por gerar um impasse e grande perplexidade, ao se
verificar que os resultados esperados não se concretizavam. Cada vez mais o cur-
rículo oficial assumia um caráter prescritivo, e o meio educacional se mostrava
refém de um “diálogo de surdos”. Por um lado, os dirigentes questionavam as
escolas e seus professores por não seguirem devidamente as políticas oficiais; por
outro, os professores criticavam os governos por formularem políticas que as
escolas não conseguiam implantar.11
Lopes argumenta que esse impasse, característico das políticas que visavam
reformas educacionais por meio do currículo nos últimos anos, é resultante de uma
compreensão equivocada de como as políticas curriculares são formuladas e
implementadas. A escola e seus professores não são meros aplicadores das diretrizes e
orientações presentes nos textos oficiais. Com base em Ball12 e em sua concepção do
ciclo de políticas, a autora argumenta que as políticas curriculares são interpreta-
das e recontextualizadas nas diferentes instâncias de sua elaboração e implementação,
ocorrendo processos de reelaboração em virtude da leitura e da apropriação reali-
zada pelos agentes envolvidos e atuantes nos três contextos primários da formula-
ção de políticas: o da influência, o da produção de textos e o da prática.

As políticas curriculares são processos de negociação complexos, nos quais momentos


como a produção dos dispositivos legais, a produção dos documentos curriculares e
o trabalho dos professores devem ser entendidos como associados. Os textos produ-
zidos nesses “momentos”, sejam eles registrados na forma escrita ou não, não são
fechados nem têm sentidos fixos e claros.13

No âmbito das políticas que buscam a regulação e o controle das práticas


escolares, outro instrumento de ação veio a ser considerado estratégico para a

10 Jallade, 2000, apud Lopes, 2002:94.


11 Lopes (2004:110-111) discute o “diálogo de surdos” entre dirigentes e professores.
12 Ball, 1992.
13 Lopes, 2004:112.

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Professores e livros didáticos 179

efetivação das mudanças desejadas: o livro didático. Nessa perspectiva, um bom


livro didático nas mãos dos professores, além de evitar erros no ensino, possibili-
taria a introdução de metodologias inovadoras, a atualização de conteúdos e a
implementação de processos de ensino/aprendizagem criativos e afinados com o
que há de mais novo em termos de pesquisa educacional. Isso tudo por meio de
um instrumento sabidamente utilizado pelos professores de forma sistemática, e
reconhecido por muitos como indispensável para o trabalho com os alunos.
De instrumentos auxiliares do processo de ensino/aprendizagem, os livros
didáticos passaram a ser cada vez mais reconhecidos e indicados, nas políticas
educacionais, como documentos de importância estratégica para viabilizar as
mudanças e melhorias que se fazem necessárias na educação básica dos países em
desenvolvimento, inclusive demonstrando maior efetividade do que a produção
de propostas curriculares inovadoras.

Os textos escolares são a mais importante — se não a única — definição do currículo


na maioria dos países em desenvolvimento [...] A maior parte das reformas curriculares
tentam modificar o currículo proposto concentrando-se nos cursos ministrados e no
número de horas oficialmente dedicadas aos mesmos. Essas mudanças no currículo
proposto são pequenas, ineficazes e enfrentam resistência por parte dos pais e dos
professores.14

Criando uma falsa oposição entre currículo prescrito e currículo em ação,


ou pré-ativo e interativo, orientações emanadas do Banco Mundial na década de
1990, por exemplo, desaconselhavam a realização de reformas curriculares para
modificar o currículo prescrito, argumentando contra a sua complexidade e con-
tra o fato de gerarem muitas expectativas e, finalmente, por não se traduzirem em
melhorias nas salas de aula. Em vez disso, aconselhavam melhorar os textos esco-
lares, já que neles é que se condensam os conteúdos e se orientam as atividades que
guiam tanto os alunos quanto os professores.15 “Se a década de 1960 foi a década
da infraestrutura, a década de 1990 apareceu como a década do texto escolar.”16

14
Lockheed e Verspoor, 1991:46-47, apud Torres, 1996:154.
15 Como resultado dessa política, a dotação orçamentária para “textos escolares” nos proje-
tos de melhoria da qualidade da educação tornou-se o segundo e, em alguns casos, o primeiro
item de prioridade em alocação de fundos dos projetos financiados. Ver Torres, 1996:154.
16 Ibid.

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180 A história na escola

Ao afirmar a importância e a eficácia dos manuais escolares na promoção


de melhorias no ensino/aprendizagem, mediante a possibilidade por eles criada
de indução imediata de ações renovadoras, essas propostas desconsideravam a
importância dos processos de formação inicial e continuada que têm por base
uma crença e uma aposta no processo de desenvolvimento e valorização profissio-
nal dos docentes.
Cabe indagar se essas orientações expressavam uma mudança radical no
enfoque sobre o papel do livro didático na educação escolar ou se apenas represen-
tavam a extensão e ampliação dos mecanismos disponíveis para a implementação
de políticas que o utilizavam como instrumento fundamental.

Livro didático: instrumento didático renovador ou


“vilão da história”?

Considerando o caso brasileiro, verifica-se que o entendimento da importância


estratégica do livro didático nas políticas educacionais remonta à década de 1930,
durante o Estado Novo, quando foi instituída, pelo Decreto-Lei no 1.006, de 30 de
dezembro de 1938, a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), estabele-
cendo a primeira política de legislação e controle de produção e circulação do
livro didático no país.17
Preocupado com a formação da nacionalidade, o Ministério da Educação
e Saúde buscava controlar o material a ser utilizado pelos alunos nas escolas.

A educação constituiu-se em veículo privilegiado para introdução de novos valores e


modelagem de condutas, sobretudo com base nos mecanismos prescritivos do currí-
culo e do material instrucional, dentre os quais o livro didático emergia como peça
ideológica fundamental.18

Ao longo das décadas de 1940 e 50, várias iniciativas foram tomadas bus-
cando dar continuidade e ampliar os mecanismos de produção, importação e
utilização do livro didático. Durante o período militar, essa política foi caracteri-

17
Em 1929, o Estado havia criado um órgão específico para legislar sobre políticas do livro
didático, o Instituto Nacional do Livro (INL), contribuindo para dar maior legitimação ao
livro didático nacional e, consequentemente, auxiliando no aumento de sua produção. Ver
<www.fnde.gov.br/arquivo/livrodidatico>. Acesso em: 23 jan. 2008.
18 Capelato, 1998, apud Miranda e Luca, 2004:125.

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Professores e livros didáticos 181

zada por esforços no sentido de exercer maior controle e censura, ao mesmo tempo
que incentivos fiscais e investimentos no parque gráfico nacional induziam o pro-
cesso de massificação do uso do livro didático no Brasil, a fim de atender à demanda
da população escolar, que aumentou significativamente nesse período.19
Do ponto de vista da promoção de valores e do controle da produção
editorial, o ensino de história e geografia, por exemplo, sofreu fortes pressões
político-ideológicas. A substituição dessas disciplinas no currículo do então 1o
grau pela disciplina escolar “estudos sociais”, e a inclusão das disciplinas “educa-
ção moral e cívica” e “organização política e social do Brasil” (OSPB), acabou por
representar não só sua eliminação do currículo, mas também uma tentativa de
eliminar a dimensão crítica do ensino.20 No caso do estudo da história, uma
versão “oficial”, legitimadora do regime político e dos governos autoritários en-
tão no poder, com forte caráter doutrinário, estava embutida nas novas discipli-
nas criadas.21
Na década de 1980, no bojo do processo de redemocratização do país, uma
reação a essa política oficial teve, nos livros didáticos, um de seus alvos prioritários.
Estes passaram a ser considerados os “vilões” da educação, portadores de ideo-
logias indutoras de processos de reprodução das desigualdades e hierarquias
sociais, em textos conservadores, “oficiais”, muitas vezes repletos de erros ou em
versões ultrapassadas pelas pesquisas científicas.
Essa visão teve grande expressão no âmbito do ensino de história e levou a
um movimento que defendia sua eliminação ou não utilização nas escolas. Os
livros didáticos deviam ser substituídos pelo trabalho com textos extraídos de

19
Sobre esse processo, ver Miranda e Luca, 2004:125.
20 Essa deliberação consta da Lei no 5.692, de 1971, que instituiu no Brasil o ensino de 1o e 2o
graus. O 1o grau, com oito anos de duração, substituiu os antigos cursos primário e ginasial
e implicou uma mudança na organização curricular, que substituiu as disciplinas por áreas de
estudo e atividades. A área de “estudos sociais” previa o ensino, de forma integrada, de
conteúdos de história, geografia, sociologia, em perspectiva que incorporava a tradição norte-
americana, pragmática e integradora.
21 A confusão criada por essa reforma curricular, realizada com pouquíssima ou nenhuma
orientação aos professores, acabou, em muitos casos, por criar situações de redução ou
mesmo omissão do ensino dos conteúdos a ela referentes. Por outro lado, são conhecidas
algumas experiências de professores que utilizavam o tempo das aulas dessas novas discipli-
nas, sobre as quais não se sabia exatamente o que ensinar, para discutir a história e a geografia
em perspectiva crítica, em atitude de resistência ao regime.

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182 A história na escola

publicações recentes, que traziam resultados de pesquisas realizadas com base em


referenciais teóricos de uma historiografia renovada.22
A crítica pertinente feita aos conteúdos e tendências doutrinárias dos livros
didáticos de estudos sociais, OSPB e educação moral e cívica, bem como aos livros
de história geral e do Brasil, portadores da versão da “história oficial”, acabou
resultando na crítica e no descrédito dos livros didáticos em geral. Estes passaram a
ser vistos por muitos como indefensáveis, desatualizados do ponto de vista científi-
co, inevitavelmente portadores de erros, distorções, e instrumentos de uma peda-
gogia autoritária e manipuladora, devendo, portanto, ser banidos das escolas.
Diante de tantos problemas, foi muito comum, no final da década de
1970 e nos anos 1980, que os professores, entre eles os de história, optassem pela
não utilização de livros didáticos e por sua substituição por apostilas e textos
por eles mesmos produzidos ou xerocopiados. Esse movimento, iniciado como
forma de resistência à imposição da disciplina escolar “estudos sociais” no ensi-
no de 1o grau, além das disciplinas “educação moral e cívica” e “OSPB”, de forte
conteúdo doutrinário em favor dos governos militares que estavam no poder,
acabou por definir uma forma de relação dos professores com os livros didáti-
cos em que ficava muito clara a desconfiança em relação a esse instrumento
didático.23
Por outro lado, esse processo levou a uma busca de aproximação com a
produção acadêmica recente, movimento que expressava a concepção de que
quanto mais científico e atualizado, melhor seria o ensino realizado.24 Foram
produzidos, então, livros que apresentavam trechos de obras de referência da

22
Foram muito lidos pelos docentes, e utilizados nos cursos de formação de professores de
história, textos que assumiam essa crítica radical aos livros didáticos, entre eles: Deiró, 1978;
Faria, 1989; Cerqueira Filho e Neder, 1978; Freitag et al., 1989. Essas obras resultavam de
estudos e/ou pesquisas que se debruçavam sobre o livro didático para investigar distorções,
erros, ideologias, e denunciá-los.
23 Esse processo aqui descrito expressa um contexto presente em escolas estaduais e munici-
pais do Rio de Janeiro ao longo da década de 1980 e por mim vivenciado como professora da
educação básica nesse período. Seria preciso realizar estudos para verificar se esse processo
ocorreu em outros estados do país e com outras disciplinas escolares.
24 Esse processo não ficou restrito à área do ensino de história. A busca de aproximação e
incorporação das recentes descobertas do campo científico acabou resultando na produção
de livros didáticos que utilizavam uma linguagem distante e muitas vezes inadequada ao
público a que se destinava. Sobre o ensino de ciências, ver Ferreira e Selles, 2004:63-78.

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Professores e livros didáticos 183

historiografia25 e que tinham por objetivo colocar os alunos em contato direto


com o texto integral, sem passar por um processo de didatização, o que acabou
por gerar uma “pedagogia” que se afastava de preocupações com questões relacio-
nadas, por exemplo, à necessidade de tornar um saber “ensinável” e “possível de
ser aprendido”.26
Por outro lado, traduzindo de certa forma o processo em curso de intenso
debate e ações políticas pela redemocratização do país, uma nova safra de livros
didáticos começou a ser produzida, apresentando uma versão de história engajada,
militante, recorrentemente baseada na interpretação marxista da história, e as-
sumindo uma linguagem que buscava se tornar mais próxima dos alunos, esta-
belecendo relações com o presente e introduzindo charges, letras de música, noticiá-
rio de jornais, para aproximar os temas em estudo da realidade dos alunos e, ao
mesmo tempo, aprofundar a perspectiva crítica.27
Paralelamente, no bojo do processo de redemocratização, foram realiza-
das em diferentes estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Paraíba,
entre outros) reformas curriculares que, no que se refere ao ensino da história,
buscavam atualizar os currículos ao mesmo tempo que essa disciplina e a geogra-
fia eram reimplantadas nas propostas das secretarias estaduais e municipais de
educação.28

25
O livro didático Construindo a história (Faria, Marques e Berutti, 1987), para as quatro
séries finais do 1o grau, mostra claramente essa tendência. A proposta dos autores é que
alunos e professores vão construindo a história através de questões-problemas, que orientam
a leitura de trechos de obras históricas e documentos. Os alunos eram postos diante de textos
de autores como Gordon Childe, Leon Bloch, Glotz, Diakov e Kovalov, Hatzel, Perry Anderson,
Ciro Cardoso e Pérez Brignoli, F. Engels e outros. O contato com a historiografia possibilita-
ria a leitura da “verdadeira” história, por ser científica, e contribuiria para que os alunos se
tornassem sujeitos ativos no processo histórico, porque atuariam como “historiadores”.
26 Sobre esses processos, ver a discussão sobre transposição didática em Chevallard [s.d.];
com referência ao ensino de história, ver Monteiro, 2007, especialmente caps. 2 e 3.
27 Exemplos dessa linha editorial é a obra de Aquino, Franco e Pahl — História das sociedades:

das sociedades modernas às atuais (Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978) —, que em 1999
estava na 37a edição, já então pela Editora Record. Outra obra desse mesmo período, com
características similares, é História da sociedade brasileira (Alencar, Carpi e Ribeiro, 1979).
28 Esse movimento, no que se refere à história e à geografia, veio atender a uma demanda dos

estudantes e professores dessas disciplinas e foi liderada, em grande parte, pelas associações
científicas: Associação Nacional de História (Anpuh) e Associação dos Geógrafos do Brasil
(AGB). Além da reimplantação das disciplinas, possibilitada pela Resolução no 3/79 do CFE,

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184 A história na escola

Em 1985 foi criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que


incluiu novas disciplinas e passou a mobilizar a participação crescente dos profes-
sores no processo de escolha.29
Ao mesmo tempo em que se buscavam alternativas mais eficientes para
definir diretrizes para uma melhor utilização do livro didático como instrumen-
to de política curricular, pode-se perceber nesse processo que os técnicos gover-
namentais procuravam se adequar e atender às expectativas criadas no bojo da
redemocratização do país.
Na década de 1990, continuaram a ser realizadas mudanças com o objetivo
de aperfeiçoar o sistema e, em 1996, paralelamente à promulgação da nova LDB,
foi instituído o sistema de avaliação dos livros didáticos. A aprovação do livro
nesse processo passou a ser exigência para a participação das editoras nas licita-
ções para a compra, pelo FNDE, das obras a serem distribuídas às escolas.30
Esse processo foi sendo aperfeiçoado e desenvolvido. Atualmente, o gover-
no brasileiro executa três programas para distribuição do livro didático, com o
objetivo de fazer chegar às escolas “obras didáticas de qualidade”.31 Essa expres-

que reformulou a Resolução no 8/71, os professores propunham a incorporação das perspec-


tivas teóricas renovadas que eram divulgadas no Brasil, além das contribuições das novas
pesquisas sobre a história e a geografia do Brasil. Sobre esse assunto, ver Fonseca, 1993;
Monteiro, 1990:26-29; Bittencourt, 1997; e Martins, 2002.
29 Com a edição do Decreto no 91.542, de 19 de agosto de 1985, o Plidef deu lugar ao Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), que trouxe diversas mudanças, como: indicação do livro
didático pelos professores; reutilização do livro, implicando a abolição do livro descartável e
o aperfeiçoamento das especificações técnicas para a sua produção, visando maior durabili-
dade e possibilitando a implantação de bancos de livros didáticos; extensão da oferta aos
alunos de 1a e 2a séries das escolas públicas e comunitárias; fim da participação financeira dos
estados, passando o controle do processo decisório para a FAE e garantindo o critério de
escolha do livro pelos professores. Ver <www.fnde.gov.br/arquivo/livrodidático/histórico>.
Acesso em: 23 jan. 2008.
30 Em 1996 foi iniciada a avaliação pedagógica dos livros inscritos no PNLD de 1997. Esse

procedimento foi aperfeiçoado, sendo aplicado até hoje. Os livros que apresentam erros
conceituais, indução a erros, desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo
são excluídos do Guia do livro didático. Ver <www.fnde.gov.br/arquivo/livrodidático/ histó-
rico>. Acesso em: 23 jan. 2008.
31 São eles: Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), Programa Nacional do Livro
Didático para o Ensino Médio (PNLEM) e Programa Nacional do Livro Didático para a
Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA). Seu objetivo é prover as escolas das redes federal,
estadual e municipal e as entidades parceiras do programa Brasil Alfabetizado de obras didá-
ticas de qualidade.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 184 27/3/2009, 16:04


Professores e livros didáticos 185

são simples expressa de alguma forma a política comentada anteriormente, e que


reconhece a centralidade dos textos curriculares e dos livros didáticos na promo-
ção das reformas educacionais. Reconheço a grande complexidade inerente a todo
o processo de avaliação das obras, e que envolve profissionais de reconhecida
atuação profissional nas universidades e nas áreas em análise. Identifico aí a
efetivação de uma intervenção realizada por meio dos processos avaliativos e que
pode representar um mecanismo poderoso para influenciar a prática de professo-
res e alunos. Mas indago: como se dá essa influência? É de forma direta e
verticalizada como parecem pretender tais políticas?
Considerando as características específicas das relações dos professores de
história com os livros didáticos decorrentes das questões envolvidas com o ensino
de estudos sociais, OSPB e educação moral e cívica, como tem se realizado esse
processo? As orientações são lidas antes da escolha do livro didático pelos profes-
sores? Os livros escolhidos são utilizados? Como? E mais: como os autores dos
livros didáticos interpretaram as orientações oficiais? Que orientações foram se-
guidas: as do PNLD e PNLEM, ou as dos PCNs? Ou ambas? Houve influência de
obras e/ou diretrizes de outros países ou órgãos internacionais? Que diretrizes
pedagógicas foram consideradas?
Muitas questões demandam a realização de pesquisas que possam contri-
buir para uma melhor compreensão desse processo. Mas defendo que precisa-
mos de ferramentas teóricas mais refinadas, que possibilitem a análise desse
processo de tanta complexidade sem nos aprisionar em esquemas fechados e
mecanicistas.

Livro didático: objeto cultural complexo

A primeira dificuldade relaciona-se à própria definição do objeto, o que se traduz


muito bem na diversidade do vocabulário e na instabilidade dos usos lexicais. Na
maioria das línguas, o “livro didático” é designado de inúmeras maneiras, e nem
sempre é possível explicitar as características específicas que podem estar relacionadas
a cada uma das denominações, tanto mais que as palavras quase sempre sobrevivem
àquilo que elas designaram por determinado tempo.

Alain Choppin32

32 Choppin, 2004.

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186 A história na escola

Os livros didáticos, expressão utilizada ao longo do século XX no Brasil


para se referir aos livros utilizados para o estudo e o ensino aos estudantes da
educação básica, são referidos em outros idiomas do mundo ocidental por ter-
mos que fazem, de modo geral, referência explícita à escola: manuais escolares
(Portugal), manuels scolaires (França), manuales, libros escolares (Espanha),
textbooks (Inglaterra), school books (EUA) e schulbuch (Alemanha).
O termo manual é também frequente, o que destaca sua finalidade de uso
por estudantes nas tarefas relacionadas ao ensino/aprendizagem escolar. Curio-
samente, no Brasil, o termo “didático”, utilizado como adjetivo para o livro já no
início do século XX, permanece como identificador do tipo e do uso para o qual
é destinado até os dias atuais.
Ao longo do século XIX, o termo compêndio, cuja significação, de acordo
com dicionários da época, relacionava-se ao livro formado por uma compilação
de textos de vários autores, não uma produção original, era o mais utilizado. Esse
caráter estaria mais relacionado ao que alguns países, como França e Inglaterra,
chamam de livro-texto.33
É interessante destacar que o termo “didático” traduz a preocupação e a
intenção que presidem a elaboração desse tipo de livro. Não mais apenas uma
aparente compilação de textos de vários autores, mas o reconhecimento de incor-
poração de uma organização, sequenciação e adequação dos textos e exercícios
aos objetivos do ensino/aprendizagem a que se destina. Mas, a que nos referimos
quando reconhecemos um livro como didático?
Choppin afirma que os livros escolares assumem múltiplas funções. De
acordo com esse autor, o estudo histórico mostra que os livros didáticos exercem
quatro funções essenciais, que podem variar consideravelmente segundo o ambien-
te sociocultural, a época, as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas
de utilização.

1. Função referencial, também chamada de curricular ou programática, desde que


existam programas de ensino: o livro didático é então apenas a fiel tradução do pro-
grama ou, quando se exerce o livre jogo da concorrência, uma de suas possíveis inter-

33 Gasparello (2007) apresenta um histórico sobre o uso dos termos de referência aos livros
escolares no Brasil, oferecendo importante contribuição para a melhor compreensão da com-
plexidade desse instrumento pedagógico e objeto cultural. Para um estudo da definição, fun-
ções e tipos de livros escolares, ver também Choppin, 1991, 1992 e 1993.

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Professores e livros didáticos 187

pretações. Mas, em todo o caso, ele constitui o suporte privilegiado dos conteúdos
educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo
social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações.

2. Função instrumental: o livro didático põe em prática métodos de aprendiza-


gem, propõe exercícios ou atividades que, segundo o contexto, visam a facilitar a
memorização dos conhecimentos, favorecer a aquisição de competências disciplinares
ou transversais, a apropriação de habilidades, de métodos de análise ou de resolução
de problemas etc.

3. Função ideológica e cultural: é a função mais antiga. A partir do século XIX,


com a constituição dos Estados nacionais e com o desenvolvimento, nesse contexto,
dos principais sistemas educativos, o livro didático se afirmou como um dos vetores
essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes. Instrumento privi-
legiado de construção de identidade, geralmente ele é reconhecido, assim como a mo-
eda e a bandeira, como um símbolo da soberania nacional e, nesse sentido, assume um
importante papel político.

4. Função documental: acredita-se que o livro didático pode fornecer, sem que
sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos, textuais ou icônicos, cuja obser-
vação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno.34

Essas diferentes funções, que revelam a complexidade desse objeto, por tan-
to tempo e por tantos pesquisadores desconsiderado como obra de importância
histórica, têm sido estudadas e pesquisadas mais recentemente; e as pesquisas têm
revelado os interesses e recursos financeiros envolvidos, bem como sua importân-
cia do ponto de vista pedagógico e cultural.

A concepção de um livro didático inscreve-se em um ambiente pedagógico específico e


em um contexto regulador que, juntamente com o desenvolvimento dos sistemas
nacionais ou regionais, é, na maioria das vezes, característico das produções escolares
(edições estatais, procedimentos de aprovação prévia, liberdade de produção etc.). Sua
elaboração (documentação, escrita, paginação etc.), realização material (composição,
impressão, encadernação etc.), comercialização e distribuição supõem formas de fi-

34 Choppin nos lembra que o livro didático não é o único instrumento que faz parte da
educação da juventude: a coexistência (e utilização efetiva), no universo escolar, de instrumen-
tos de ensino-aprendizagem que estabelecem com o livro relações de concorrência ou de
complementaridade influi necessariamente em suas funções e usos. Ver Choppin, 2004:553.

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188 A história na escola

nanciamento vultosos, quer sejam públicas ou privadas, e o recurso a técnicas e equi-


pes de trabalho cada vez mais especializadas, portanto cada vez mais numerosas. Por
fim, sua adoção nas classes, seu modo de consumo, sua recepção, seu descarte são
capazes de mobilizar, nas sociedades democráticas sobretudo, numerosos parceiros
(professores, pais, sindicatos, associações, técnicos, bibliotecários etc.) e de produzir
debates e polêmicas.35

Neste capítulo, no entanto, gostaria de ressaltar o aspecto didático, que,


no Brasil, tem sido o adjetivo que o identifica e diferencia dos demais livros, e que
se relaciona com as quatro funções mencionadas por Choppin. Como nos lembra
esse autor, o livro didático “inscreve-se em um ambiente pedagógico específico e
em um contexto regulador” que expressa projetos, concepções e objetivos presen-
tes no processo educacional escolar.
Nesse sentido, considero que os textos — que apresentam a mescla dos
conteúdos selecionados, com a organização textual, o(s) gênero(s) discursivo(s)
utilizado(s), a elaboração didática realizada, as opções feitas quanto a exem-
plos, analogias, ilustrações, comparações, referências temporais e espaciais, entre
outros aspectos — apresentam uma expressão do saber escolar que traz implí-
cita a visão que os autores têm sobre o que e como ensinar, e também sobre os
processos de aprendizagem e as expectativas quanto ao que consideram que
deva ser aprendido.
Pode-se dizer que os livros didáticos são, assim, o resultado de um processo
de transposição didática que, conforme Chevallard, corresponde à “passagem do
saber acadêmico ao saber ensinado e, portanto, à distância eventual, obrigatória
que os separa...”36
Chevallard afirma categoricamente a diferença entre o saber acadêmico
(savoir savant) e o saber ensinado. Para que o ensino seja possível, “o elemento de
saber deve ter sofrido certas deformações37 que o tornarão apto a ser ensinado. O
saber-tal-como-é-ensinado, o saber ensinado, é necessariamente distinto do sa-

35
Choppin, 2004:554.
36 Chevallard, [s.d]:16.
37 O autor utiliza o termo “deformação” que pode denotar uma perspectiva preconceituosa
em relação a este processo. O termo transformação poderia, talvez, expressar melhor este
processo.

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Professores e livros didáticos 189

ber-inicialmente-designado-como-aquele-que-deve-ser-ensinado, o saber a ensi-


nar”.38
A consideração de diferentes saberes — saber acadêmico, saber a ensinar,
saber ensinado, saber aprendido —, além de permitir identificar as diferenças
conceituais entre eles, abre caminho para melhor conhecer o processo de
didatização em análise, que reconheça a pluralidade de saberes e o papel das
diferentes subjetividades e interesses envolvidos.
Chevallard chama a atenção para o fato de que a transposição didática
não é realizada pelos próprios professores. Ela tem início quando técnicos,
representantes de associações, professores militantes, que compõem a noosfera,
definem, a partir do saber acadêmico e por meio de um trabalho de seleção e
estruturação didática, o saber a ensinar, definição esta que será refeita em
outros momentos, quando surgir a necessidade de renovação ou atualização.
“Ao trabalho que transforma um objeto de saber a ensinar em um objeto de
ensino denominamos transposição didática.”39 A definição do saber a ensinar
apresenta, portanto, os caminhos possíveis para a elaboração do saber en-
quanto objeto de ensino. Assim, de acordo com Chevallard, a transposição
didática lato sensu se inicia com a definição dos saberes a ensinar, a partir do
saber acadêmico, realizada pela noosfera, e com a transposição didática in-
terna stricto sensu, realizada pelos professores, e que dá continuidade ao pro-

38
Chevallard, [s.d]:16-17 (grifo meu). O conceito de transposição didática permite que o
campo científico da didática se constitua, pois, além de definir uma ruptura, ele cria um
instrumento de inteligibilidade que possibilita a realização das investigações, abrindo
caminho para que a caixa-preta em que tem estado inserido o ensino comece a ser desven-
dada. As tendências dominantes nas pesquisas educacionais dos anos 1960 e 70 focaliza-
vam os processos de aprendizagem numa perspectiva orientada pelas concepções da
psicologia e da psicogênese. Atualmente, têm sido realizadas pesquisas orientadas pelo
entendimento de que o ensino implica um processo com características próprias que
precisam ser mais bem conhecidas. Como afirma Moniot (1993:5), “a didática de uma
disciplina não é alguma coisa que vem antes dela, a mais ou ao lado, para lhe dar uma
espécie de suplemento pedagógico útil. A didática se ocupa de racionalizar, de muito
perto, o ensino. Ela envolve as operações que se realizam quando se aprende uma discipli-
na, a serviço dessa aprendizagem, para melhor focalizar e dominar os problemas que se
apresentam quando se ensina: em suma, exercer o ofício de ensinar, tanto quanto seja
possível com conhecimento de causa”.
39 Chevallard, [s.d]:45.

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190 A história na escola

cesso mediante a elaboração de algumas das versões possíveis do saber ensina-


do. 40
Para que os saberes possam ser objeto de ensino escolar, Chevallard, citan-
do Verret,41 afirma que vários processos ocorrem, entre eles a dessincretização,
ou seja, “a ‘textualização’ do saber conduz primeiramente à delimitação de sabe-
res ‘parciais’, cada um dos quais se expressando em um discurso (ficticiamente)
autônomo”.42 Uma nova síntese é então criada, a partir de outra racionalidade
que não a que deu origem aos saberes, para dar lugar a práticas de ensino
especializadas, que levam em conta questões relacionadas às necessidades dos pro-
cessos de aprendizagem.43
Esses processos de explicitação do texto do saber, inerentes à transposição
didática, implicam uma descontextualização, tendo em vista as problemáticas do
campo científico. O saber é “desenraizado da rede de problemáticas e problemas
que lhe outorgam seu sentido completo”.44 Sua recontextualização no campo
educacional decorre de constrangimentos próprios à cultura escolar e, segundo
Chevallard, gera saberes originais que precisam da interlocução com o saber
acadêmico, por meio de análise epistemológica, para poderem ser compreendi-
dos.45 De acordo com esse autor, portanto, os livros didáticos expressam um
momento da transposição didática. Cabe perguntar: interna ou externa?
40 A importância atribuída por Chevallard ao saber acadêmico no processo de transposição
tem sido um dos alvos preferenciais das críticas que o autor tem recebido. Essa perspectiva
negaria ou reduziria o papel de outros saberes de referência ou traduziria uma visão ainda
muito hierarquizada na análise da relação entre os saberes. No entanto, reconheço que con-
trastar o saber escolar com o saber acadêmico permite identificar transformações e caracterís-
ticas, principalmente na sociedade atual, onde as ciências constituem um corpo sistematizado
de conhecimentos, elaborados a partir de critérios rigorosos quanto aos aspectos de ordem
teórico-metodológica, e onde o saber escolar vai buscar legitimidade. Considero, porém, que
a teorização de Ball possibilita uma perspectiva potencialmente mais pertinente para explicar
o processo em seus múltiplos contextos e considerando negociações de sentidos.
41
Verret, 1975.
42 Chevallard, [s.d]:69.
43 Outros processos são a despersonalização, a programabilidade, a publicidade e o controle
social das aprendizagens. Ver Verret, 1975:146-147, apud Chevallard, [s.d]:67-68.
44 Chevallard, [s.d]:71.
45 A discussão sobre o processo de transposição didática conforme Chevallard, seus limites e
possibilidades, encontra-se em minha tese de doutorado, Ensino de história: entre saberes e
práticas, defendida em 2002. Ver Monteiro, 2007.

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Professores e livros didáticos 191

Se considerarmos que seus autores são professores das disciplinas abordadas,


os textos desses livros já configuram uma primeira elaboração da transposição
didática interna. O saber a ser ensinado, definido pela noosfera (técnicos de minis-
térios, secretarias), é didatizado, ou seja, “inscreve-se em um ambiente pedagógico
específico e em um ambiente regulador”. Os modelos e matrizes disciplinares são
mesclados com tradições e concepções sobre o ensinar, gerando “textos visíveis”
do “código disciplinar” da história.46 Tornam-se, assim, fontes inspiradoras
atraentes para os professores, que neles encontram referências, modelos, exer-
cícios, explicações já iniciadas de forma geral e que precisariam de adequação
aos contextos da prática em que serão utilizados, nos quais os diferentes alunos
expressam possibilidades diferenciadas de compreensão e aprendizagem.
Mesmo quando escritos por representantes do mundo acadêmico, ou pro-
duzidos em momentos em que a aproximação com o conhecimento científico é
valorizada e estimulada como meio de qualificar as obras didáticas, como foi o caso
já citado de alguns livros de história e ciências na década de 1980, já são resultado de
transposição didática interna, pois alguma mediação é necessária, sob pena de não
serem compreendidos e utilizados. Mas a fronteira é tênue.
As análises referenciadas em Chevallard carregam a marca estruturalista
em sua construção teórica e argumentação. Constituem contribuições relevan-
tes, mas precisam ser ampliadas a partir das contribuições de autores que possibi-
litem a análise do currículo e de seus instrumentos como política cultural e que
permitam considerar as negociações entre os diferentes atores.
Nesse sentido, as contribuições de Canclini47 sobre o conceito de hibridização
revelam-se bastante férteis. Através desse processo, elementos de um contexto ou
coleção são deslocados e misturados a elementos de outras coleções, gerando
textos híbridos, misturas de concepções, perspectivas, que expressam opções, tra-
dições, em suma, uma negociação de sentidos entre os agentes participantes do
processo.48 A recontextualização ganha, então, novos significados e complexida-

46 Cuesta Fernandez afirma que o código disciplinar compreende o que se diz acerca do valor
educativo da história, o que se regula expressamente como conhecimento histórico e o que
realmente se ensina no marco escolar. Discursos, regulamentos, práticas e contextos escolares
impregnam a ação institucionalizada dos profissionais (os professores) e dos destinatários
sociais (os alunos), que vivem e revivem, em sua ação cotidiana, os usos da educação histórica
de cada época. Ver Schmidt, 2004.
47 Canclini, 2006.
48 Lopes, 2006:39.

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192 A história na escola

de. Essa perspectiva nos auxilia a melhor compreender a proposta teórica de


Ball49 sobre os três contextos primários que constituem as políticas curriculares e
que se influenciam mutuamente.
Trabalhando com outro modelo heurístico, Ball oferece uma contribuição
que possibilita compreender a dinâmica das políticas curriculares, nelas incluin-
do o processo de didatização, e que considera a circulação dos textos, as múltiplas
leituras e a negociação de sentidos pelos diferentes sujeitos envolvidos.
Considerando, então, as contribuições de Stephen Ball, defendo que os
livros didáticos fazem parte do contexto de produção de textos, apresentando
definições que são referências para leituras e negociação de sentidos no contexto
da prática, e também incorporando demandas e orientações desse contexto e do
contexto de influência. A didatização é feita, mas em negociações que se realizam
em mão dupla.
A existência de programas como o PNLD e o PNLEM torna os livros reco-
mendados representantes de uma política oficial, uma vez que a avaliação repre-
senta um crivo de “qualidade”, uma indicação da orientação a ser seguida. Mes-
mo que não se imponha um manual ou um modelo único, que teoricamente os
professores tenham a liberdade de escolher entre as várias opções apresentadas,
os livros “recomendados” são os oficialmente “autorizados”. Mas mesmo os que
não recebem esse “selo de qualidade” estão disponíveis no mercado, ou em bibliote-
cas, e apresentam textos que podem ser utilizados das mais diferentes maneiras.
Estes diferenciam-se das propostas curriculares por apresentarem uma “transpo-
sição didática” ou “mediação didática”50 mais desenvolvida e detalhada, com
seleções, explicações, exercícios, orientações explícitas relativas ao ensino. Mas,
em muitos casos, são utilizados pelos professores como se fossem propostas
curriculares.
Na área de história, muitos autores são professores que atuam na educação
básica e que utilizam referenciais de experiências bem-sucedidas de suas práticas
pedagógicas. Assim, já antecipam e introduzem uma possibilidade de trabalho na
prática. Essa característica possibilita que os livros se tornem referências impor-
tantes para o trabalho dos demais professores, apresentando diferentes leituras e

49 Canclini, 2006.
50 Lopes (1999) defende a utilização do conceito “mediação didática” no lugar de transposição
didática.

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Professores e livros didáticos 193

narrativas de seus autores/professores, que são lidas e apropriadas de diferentes


maneiras por seu público leitor: os alunos. Ou os professores? Ou ambos, de
diferentes formas? Afinal, para quem são produzidos os livros didáticos?
É importante reafirmar também que, ao serem elaborados, esses livros
buscam atender a expectativas do público a que se destinam, pois precisam ser
compreendidos por professores e alunos. Caso contrário, correm o risco de
ser rejeitados e esquecidos.51
Assim, vale ressaltar que os processos de didatização envolvidos na ela-
boração de um livro didático são extremamente complexos e não decorrem
exclusivamente de um fluxo oriundo do saber acadêmico. Creio que não se
pode mais afirmar que os livros didáticos são textos reducionistas e simplifica-
dos. Mesmo quando se apresentam como tal, expressam visões e concepções —
das quais se pode discordar, mas que precisam ser identificadas e, se for o caso,
recusadas. Mas essa análise crítica demanda, para a sua realização, instrumen-
tos teóricos que reconheçam a especificidade desse instrumento pedagógico e a
complexidade de sua elaboração e uso. Mesmo um simples compêndio, que
reúna uma coletânea de textos ou fragmentos de textos — expressa uma seleção
cultural e uma afirmação de visões de mundo e valores. Um código disciplinar,
enfim.
Estudos e análises de livros didáticos que se resumem a verificar os conteú-
dos selecionados e os possíveis erros em relação aos resultados mais atualizados
das pesquisas históricas, ou científicas de modo geral, não têm muito a contribuir
do ponto de vista pedagógico. As ferramentas teóricas oferecidas pelos diferentes
autores aqui mencionados abrem perspectivas muito promissoras para os estu-
dos que precisam ser realizados, e que permitam analisar leituras, apropriações,
opções e narrativas dos professores como autores de livros didáticos e como do-
centes, na sua atuação no contexto da prática, e também dos alunos, em seus
processos de aprendizagem.52

51 A perspectiva teórica de Ball permite considerar que não existe uma imposição de diretri-
zes de um contexto a outro. Os contextos dialogam, interagem, se influenciam mutuamen-
te. “A política curricular é uma produção de múltiplos contextos sempre produzindo novos
sentidos e significados para as decisões curriculares nas instituições escolares.” Ver Lopes,
2006:39.
52Na década de 1990, no Brasil, começaram a ser realizados estudos e pesquisas a partir de
novas perspectivas e que traziam para a área do ensino as contribuições teóricas dos estudos

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194 A história na escola

Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no ensino


de história
Vejamos alguns resultados de uma pesquisa por mim coordenada sobre o uso de
livros didáticos por professores de história.53 Realizada em 2005/2006, teve por
objetivo fazer um levantamento dos livros didáticos da área de história publicados
pelas editoras de maior destaque no segmento de livros didáticos no período 1994-
2004 e sua utilização por docentes no nível médio de ensino. Para identificar os
livros mais utilizados, numa primeira etapa, foi efetuado um levantamento, nas
editoras, das edições e reedições publicadas nesse período e dos livros mais vendi-
dos. Posteriormente, foram investigadas as orientações consideradas e citadas nas
obras e se, e de que forma, os autores consideraram as orientações oficiais na elabo-
ração de seus livros. O objetivo era verificar se haviam sido feitas alterações de
conteúdo incorporando as orientações curriculares dos parâmetros curriculares
nacionais para o ensino médio (PCNEM) ou de outras instituições. Numa segunda
etapa, buscou-se investigar se e como esses livros eram utilizados pelos professores,
sujeitos da pesquisa principal em realização,54 e as influências das definições
curriculares presentes nos livros sobre o trabalho dos docentes em análise.

sobre a leitura fundamentada em subsídios da história cultural, social e da nova história


política, e que passaram a tratar o livro didático como objeto cultural, expressão das diferen-
tes visões, valores e significados partilhados por grupos sociais. Essa constatação, feita por
Munakata (1998), é confirmada por Villalta (1998), que, ao realizar um balanço crítico das
perspectivas de abordagem dos estudos sobre livros didáticos, chama a atenção para a neces-
sidade de se avançar em relação aos trabalhos que priorizam a “imposição da ortodoxia do
texto” para pesquisas que tentem compreender as diferentes formas de apropriação dos
livros didáticos por seus leitores primordiais: os alunos e os professores.
53 A pesquisa, intitulada A Produção e Utilização de Livros Didáticos da Área de História no
Nível Médio de Ensino no Estado do Rio de Janeiro, foi realizada no âmbito do Programa de
Iniciação Científica (Pibic) do CNPq/UFRJ, com financiamento de bolsa de pesquisa para a
estudante Jordana Ribeiro Urquiza Rodrigues, que realizou as atividades de busca e produção
dos dados básicos para a análise.
54 A pesquisa, sob minha coordenação, intitula-se A História Ensinada: Saber Escolar e
Saberes Docentes em Narrativas da História Escolar e está sendo realizada no âmbito do
Núcleo de Estudos de Currículos do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade
de Educação da UFRJ. Iniciada em abril de 2005, encontra-se em fase de finalização. O objetivo
da pesquisa é analisar diferentes construções, criadas e utilizadas pelos professores em aulas
de história e em livros didáticos dessa disciplina, ou outros documentos de referência, de
forma a caracterizar a estrutura narrativa configurada nessas construções do saber escolar. Essa
análise será articulada com aquela que permite investigar os saberes docentes enquanto um

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Professores e livros didáticos 195

O período abarcado foi 1994-2004, ou seja, cinco anos antes e cinco


depois da publicação dos PCNEMs em 1999. Para a localização dos livros nas
bibliotecas, a busca foi feita pela entrada de autores e, posteriormente, pelos
títulos.55 Verificou-se a existência de 65 títulos de livros didáticos de história
para o ensino médio no período em pauta. Passou-se, então, à leitura e à
análise das obras de que se dispunha, o que possibilitou elaborar tabelas des-
tacando e organizando as características específicas relacionadas aos objeti-
vos da pesquisa.
A partir das informações fornecidas pelas editoras que publicam os referi-
dos livros — sobre autores, títulos, local de publicação, ano da edição, volume —,
foram verificadas as referências sobre a indicação de terem considerado os
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, a apresentação de questões
do Enem, de questões de vestibulares, e também indicação quanto ao princípio de
seleção e organização dos conteúdos: história geral, história do Brasil e história
integrada. Foram, então, elaboradas tabelas para facilitar a análise dos dados
construídos.56

processo de transformação realizado pelo professor. A pesquisa se realiza em campo de


fronteira que, necessariamente, articula história e educação. A pesquisa com os livros didáti-
cos possibilita identificar as marcas das propostas dos autores dos livros nas construções
desenvolvidas nas aulas.
55 Para o levantamento dos livros didáticos de história destinados ao ensino médio produzi-

dos no Brasil foi empregada, como metodologia, a busca nos catálogos impressos e online
das seguintes editoras: Ática, Moderna, FTD, Saraiva, Atual, Companhia Editora Nacional,
Scipione, Ao Livro Técnico, Nova Geração e Record. Após esse levantamento, procedeu-se a
uma busca na Biblioteca Nacional, no catálogo online, consultando-se também a biblioteca
do Colégio de Aplicação da UFRJ, que dispõe de um grande acervo na área de livros didáticos
de história. Outra biblioteca consultada foi a do Centro Cultural Banco do Brasil, mas esta
não acrescentou elementos à lista de livros didáticos.
56 A primeira tabela apresentava um quadro geral com todas as informações obtidas. Na
segunda tabela, foram organizadas as obras cujas primeiras edições foram lançadas no período
1994-2004. Na terceira, as obras com maior número de edições. Na quarta, os autores com
maior número de obras publicadas no período 1994-2004. A quinta tabela foi elaborada com
base no princípio de organização dos conteúdos (história geral, do Brasil, da América, inte-
grada etc.) e a sexta, agrupando as obras de acordo com a concepção de história expressa no
título. Por último, fez-se uma tabela com as obras que declaravam incorporar os PCNs, mas
verificou-se que isso era feito de forma muito superficial. Havia a informação na capa, mas no
interior da obra não foram identificadas as referências. Foi elaborada também uma tabela
com as obras que apresentavam questões das provas do vestibular.

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196 A história na escola

Quanto à etapa que previa a realização de entrevistas com os autores das


obras que citavam os PCNs e também com os autores dos livros utilizados pelos
professores sujeitos da pesquisa principal sobre a história ensinada, não se obteve
sucesso. Também não foi alcançado o objetivo de procurar compreender as con-
cepções e diretrizes que norteavam seus trabalhos e, no caso daqueles que citavam
os PCNs, as motivações que os levaram a introduzir modificações em seus livros,
e suas apropriações em relação a essas diretrizes.57 No entanto, considero que um
resultado significativo dessa pesquisa foi a possibilidade de construir dados sobre
a produção editorial de livros didáticos de história, no Brasil, no período 1994-
2004.
É de surpreender a quantidade de títulos disponíveis e a existência de um
número expressivo de obras de um mesmo autor, com abordagens voltadas para
diferentes recortes espaciais e temporais e, em alguns casos, revelando a busca de
fundamentação em diferentes perspectivas teóricas e a adequação a tendências
pedagógicas dominantes, expressas em edições “atualizadas” e/ou “revistas”. Al-
gumas edições mantiveram os títulos originais, noutras parece que apenas os
títulos foram modificados, não havendo alterações significativas nos conteúdos
selecionados. Um estudo comparativo dessas publicações com o objetivo de in-
vestigar quais as mudanças efetivamente realizadas nas obras revistas dos mesmos
autores ainda está para ser feito.
Pôde-se verificar também uma outra característica: a grande permanência
de obras, no conjunto das publicações, o que é confirmado pela existência de obra
na 37a edição em 1999 e que está no mercado desde 1978, com revisões.58 O fato de
obras se manterem por cerca de 30 anos num mercado altamente competitivo
como este é, no mínimo, surpreendente, configurando outro objeto a ser
pesquisado. Foi também verificada a entrada no mercado de um pequeno núme-
ro de autores novos, com menos de cinco anos como autores de livros didáticos.
Na produção editorial de 2001 a 2004, verificou-se que, entre as obras con-
sultadas, apenas cinco citavam na capa a incorporação das orientações dos PCNs,
embora não fizessem referências explícitas ao longo do texto, nem se pudesse
identificar de imediato a sua incorporação.

57 O motivo de tais insucessos foi o fato de não se ter obtido acesso aos autores.
58 Trata-se da obra História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais, de
Aquino, Franco e Pahl, editada em 1978 pela Editora Ao Livro Técnico e atualmente publicada
pela Editora Record.

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Professores e livros didáticos 197

Uma análise preliminar faz supor que, mais do que efetivamente seguir
as orientações, os autores ou as editoras buscaram evidenciar um atendimento
das orientações oficiais. Cabe lembrar que as exigências e diretrizes do PNLEM
não foram consideradas, pois esse programa foi lançado em 2005, portanto fora
do período abarcado pela pesquisa.59
Com relação ao uso dos livros pelos professores sujeitos da pesquisa, os
professores entrevistados afirmaram utilizar os livros didáticos nas aulas como
base para o estudo pelos alunos e para consulta.60 Afirmaram também ter o hábi-
to de fazer uso de outras leituras de cunho acadêmico.
Alguns trechos dos depoimentos obtidos nas entrevistas são reveladores do
trabalho realizado com os livros e deixam clara a atuação fundamental desses
professores nas aulas, na prática docente na qual o livro está inserido e subordi-
nado à lógica e à organização didática do professor. Como afirma um deles, o livro
é referência para consulta e estudo, mas “é o caderno que permite que o aluno
realize as conexões”.

Livro didático é fundamental como consulta. E também de resumo de conteúdos. Dar


aulas sobre o Primeiro Reinado, Revolução espanhola, Independência, Revolução France-
sa é impossível sem o uso do livro didático. Uso o livro para passar em revista tudo isso.

Ele tem que estudar o livro didático e usar o meu caderno [...] para que o aluno realize
as conexões. O resumo do caderno é o que normalmente cai nas provas.

Via de regra eu lanço o assunto. Vejo o que eles sabem daquilo. Depois eu digo: vamos
pegar o caderno. Notas no caderno. Define-se feudalismo como sendo e tal. Ou faço

59 Somente em abril de 2006 é que foi publicado o resultado da análise crítica que indicou os

livros didáticos de história recomendados pelo Ministério da Educação para distribuição


gratuita aos alunos da rede de colégios públicos brasileiros de ensino médio, após escolha
realizada pelos professores. A Portaria no 907, de 13 de abril de 2006, do Gabinete do Ministro
da Educação, divulgou o resultado da avaliação dos livros didáticos de história e geografia
apresentados para análise, com os títulos das 18 obras de história, 14 de geografia e uma de
história e geografia recomendadas.
60 Alguns dos livros citados foram: Nova história crítica, de Mario Furley Schmidt, e História
das sociedades: das sociedades modernas às atuais, de Rubens Santos Leão Aquino, Denise de
A. Franco e Oscar G. Pahl. O motivo citado pelos docentes para explicar a opção por Schmidt
foi a facilidade da linguagem, que atrai os alunos; a opção pelo livro de Aquino, Franco e Pahl
se dá pela grande quantidade de informações contidas nessa obra, que o professor utiliza para
consultar e preparar suas aulas.

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198 A história na escola

análise de texto: que é que o autor quer dizer aqui? O que vocês não sabem sobre
estrutura socioeconômica? O que é isso? E conjuntura, o que vocês entendem sobre isso?

Para o pessoal que estuda em casa: façam listinhas do vocabulário. [...] O que vocês
não entenderem. Antes de me perguntar, peguem o dicionário em casa, vocês ganha-
ram dicionário que eu vi a escola distribuindo, ainda tem alguns que sobraram ali. A
escola deu um dicionário para cada um uns dois anos atrás. Peguem o dicionário,
procurem os termos... Aprendam a usar o dicionário. “Eu não sei”. Então a gente
ensina, tá? Usem o dicionário, encontrou a palavra: ótimo. Não encontrou, traz para
a sala de aula e a gente vai discutir o vocabulário. Já tem autor que trabalha assim. [...]
Trabalha com palavras-chaves. Tem exercícios que é palavra-chave, entendeu?

Adoto livro didático. Porque o ponto fica mais... Porque ele tem um apoio em casa.
Nem todos copiam. Você põe um esquema no quadro e sai explicando. História dá
margem para uma explicação que a gente pode pular de Costa e Silva para a Grécia
antiga. Tendo ponto eles ficam com um roteiro.[...]

O livro que eu uso é muito colorido mas é extenso. Usa muitas imagens, mas o aluno
não quer saber. O livro tem 17 capítulos. O aluno chega na 5a série sem saber ler nem
escrever. Dar dois capítulos por bimestre já é uma grande proeza.

Normalmente não uso livro didático. Não trabalho. Eles têm livro. Eu abordo o
assunto, aí eu posso dizer: olha, metade do capítulo 34 [...] Até aqui mais ou menos
vocês têm condição de responder [...] para poder fazer um questionário na próxima
aula, ou: criem dez perguntas sobre esse assunto, assim[...]61

Considerações finais

Instrumento pedagógico, referência sobre conteúdos selecionados, objeto cultu-


ral, documento histórico, mercadoria, o livro didático é certamente um objeto
de grande complexidade.
Ao serem utilizados pelos professores em sua prática docente, tais livros
possibilitam leituras e contribuem para a produção de narrativas na busca da

61
Trechos retirados das entrevistas concedidas por quatro professores de história no âmbito
da pesquisa por mim coordenada, intitulada A História Ensinada: Saber Escolar e Saberes
Docentes em Narrativas da História Escolar, em realização no Núcleo de Estudos de Currícu-
lo da Faculdade de Educação da UFRJ.

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Professores e livros didáticos 199

compreensão, pelos alunos, dos temas em estudo. Utilizados pelos alunos, pro-
piciam leituras e diferentes apropriações, que muitas vezes podem contradizer
certos consensos, como aquele que afirma a importância das imagens para a
compreensão dos textos. Como afirmou um dos professores, “excesso de imagens
pode confundir mais do que esclarecer...”.
A discussão apresentada é uma contribuição à compreensão do papel do
livro didático nas políticas educacionais, de forma a superar as análises mecanicistas,
dicotômicas, que ora superdimensionam e denunciam o poder da ação regulatória
do Estado, ora supervalorizam a instituição escolar como espaço de resistência.
O instrumental teórico aqui apresentado permite, no meu entender, dispor
de ferramentas que refinem as pesquisas e contribuam para desmistificar a visão que
atribui unicamente ao Estado e aos governos a ação política. E reconhecer que o
espaço da prática é também o espaço da ação exercida cotidianamente, não apenas
como resistência de oprimidos, mas também ao serem atribuídos sentidos e signifi-
cados às ações e decisões: lugar de desenvolvimento de política cultural.
As falas dos professores revelam que os livros didáticos certamente não
são mais considerados os vilões da história. Instrumentos de política educacio-
nal, são, no entanto, portadores de narrativas produzidas a partir de expecta-
tivas em relação ao público leitor e propiciadoras de leituras e usos diferencia-
dos.
A pesquisa apresentada, embora de caráter exploratório, possibilitou um
estudo inicial sobre a produção atual dos livros didáticos de história para o ensi-
no médio, com suas características e tendências principais. Foi interessante perce-
ber que a incorporação das diretrizes dos PCNs foi quase nula, fato confirmado
pelos professores, que afirmaram não consultá-los. A grande referência para a
seleção dos conteúdos a serem ensinados continuam sendo os programas e exa-
mes vestibulares. Das 65 obras identificadas, 30 traziam referências e questões de
exames vestibulares. Com a implementação do PNLD no ensino médio provavel-
mente teremos algumas mudanças nesse quadro. Cabe lembrar que as obras ana-
lisadas não tinham sido submetidas a avaliação, que só era feita até então em
livros do ensino fundamental.
É minha intenção dar continuidade a essa pesquisa por meio do estudo das
obras recomendadas pelo PNLEM 2007, a fim de ampliar as informações e estabe-
lecer relações que possibilitem uma melhor compreensão do processo envolvido
na produção de livros didáticos de história para o ensino médio em nosso país no
início do século XXI. Outras narrativas, novas leituras...

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Capítulo 9

Livros didáticos de história: a diversidade de leitores


e de usos

Helenice Aparecida Bastos Rocha *

En suma, desde pequeño, mi relación con las palabras, con la escritura, no se


diferencia de mi relación con el mundo en general. Yo parezco haber nacido para no
aceptar las cosas tal como me son dadas.

Julio Cortázar1

Este capítulo focaliza o contexto entre a produção e a recepção do ensino de


história em que se faz uso do livro didático. Na análise proposta, entende-se o
livro didático como um objeto cultural complexo que vem se transformando na
resposta a demandas colocadas por leitores diversos.2 Os professores são toma-
dos como leitores diferenciados desses livros, em sua ação de usá-los tal como
entendem ser necessário ou possível.3 Desse modo, guardadas as proporções en-
tre a escrita literária e esta, com fins didáticos, os professores se assemelham a
Cortázar no que diz respeito a sua relação com o mundo e a escrita. Tornam-se
autores dos textos escolares que têm diante de si, reestruturando-os na prática do
ensino de história.

* Professora adjunta de prática de ensino e metodologia do ensino de história da FFP/Uerj.


1 Disponível em: <www.juliocortazar.com.ar>. Acesso em: 1 maio 2008.
2 A literatura recente sobre a produção de significados acerca do livro didático contempla as
chaves propostas neste texto. Ver, por exemplo, Munakata, 1999:577-594 e 1998:271-296; e
Batista, 2003:161-188.
3 Aqui me refiro especialmente a Certeau (1994) e Chartier (1994), e à proposta deles de uma
apropriação ativa dos produtos culturais que os transforme.

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202 A história na escola

A partir dessa dupla chave de análise — livros e leitores diferenciados —,


apresento dois usos de livros didáticos de história por professores, repertoriados
em pesquisa sobre o ensino dessa disciplina. A questão principal da pesquisa foi
saber o que professores do ensino fundamental de duas escolas faziam para que
seus alunos adquirissem o conhecimento histórico ministrado em suas aulas.4 O
estabelecimento do campo de pesquisa em duas escolas, uma pública, da rede
estadual do Rio de Janeiro, e uma particular, ambas situadas na Região Metro-
politana do Rio de Janeiro, se deu a partir de um problema levantado pelos
professores da rede pública: a compreensão que seus alunos demonstram (ou
não) do conhecimento histórico. O trabalho de campo iniciou-se em uma esco-
la pública na qual o perfil sociocultural de professores e alunos já foi estabeleci-
do em outras pesquisas, sendo a precariedade uma síntese de suas práticas esco-
lares.5
As observações realizadas ali sugeriram, entre outras condições, um nível
de letramento escolar restrito,6 e a escola pública pesquisada como um espaço
limitado de inserção na cultura escrita,7 pois oferecia condições contraditórias de
apropriação dessa cultura.8 Entendo aqui por letramento a condição daqueles
grupos sociais e sociedades que se utilizam, de fato, da escrita. Essa condição se
atualiza a cada momento da vida do indivíduo ou grupo social, podendo ser
diretamente alterada por sua inserção, ou não, em um ambiente letrado.

4 Para maiores detalhes sobre a pesquisa e as escolas, ver Rocha, 2006.


5 Para um detalhamento da caracterização sociocutural de professores e alunos dessas esco-
las, ver Rocha, 2006. Outra obra que contribui para a caracterização atual de alunos e profes-
sores no Rio de Janeiro é Tura, 2000.
6
A qualificação do letramento como alto ou baixo, pleno ou limitado é tema polêmico entre
os estudiosos, já que ocorre de forma mais ou menos formal ou informal na vivência cotidiana
e escolar. Neste capítulo, refiro-me ao letramento escolar restrito, por não realizar todas as
tarefas esperadas da escola quanto à inserção de seus alunos na cultura escrita.
7 A caracterização do letramento de estudantes brasileiros pode ser encontrada em Bonamino
et al., 2002. Ver a definição utilizada de letramento e sua discussão em Soares, 2001.
8 Entre as condições contraditórias encontradas podem ser apontadas as seguintes: a tentati-
va de fazer um trabalho diferenciado com os alunos de 5a série, visando sua melhor inserção
na nova escola; mas o não funcionamento da biblioteca, o pouco ou nenhum uso da escrita
nas salas de aula e nos espaços de convivência, e a falta de apoio ou recuperação pedagógicos
para os alunos com mais dificuldades de leitura e escrita.

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Livros didáticos de história 203

A pesquisa desdobrou-se em uma escola particular voltada para alunos com


alto nível de letramento, provenientes de segmentos sociais abastados,9 com carac-
terísticas diversas no que se refere à função de inserção de seu público na cultura
escrita. O objetivo era analisar, tendo em vista o possível contraste de condições,
como os professores faziam seus alunos assimilar o conhecimento histórico.
Foi acompanhado o trabalho de cinco professores de história (três da esco-
la pública e dois da particular) em sete turmas do ensino fundamental (quatro da
pública e três da particular) ao longo do ano de 2004, utilizando-se metodologia de
inspiração etnográfica. Nessas turmas foram observadas as condições e as realiza-
ções de aulas de história diferenciadas, estando a leitura entre as práticas de maior
diferenciação. Houve momentos e atividades específicos de utilização desse material
em cada escola, entre outros suportes de leitura e escrita: em leituras comentadas,
estudos dirigidos, na elaboração de resumos que os professores usaram com os
alunos ou, eventualmente, na apreciação das imagens contidas nos livros.
Entre as condições que constituíram esses usos, as mais presentes foram: a
existência ou não de livro didático e outros materiais de leitura para os alunos, a
duração da aula e a disponibilidade pessoal do professor para ela, as ideias dos
docentes sobre a leitura e o texto, as características do conhecimento histórico
escolar e o letramento dos alunos. Uma condição em especial é a percepção que os
professores têm de seus alunos como leitores, o que define suas escolhas didáticas
no limite existente para a ação docente. Apresento aqui a descrição e a análise de
dois momentos de aulas de história, buscando evidenciar as condições e seus efei-
tos nas escolhas de professores do texto do livro didático. O primeiro momento
refere-se ao uso de um resumo do texto do livro didático produzido pela profes-
sora em substituição ao livro propriamente dito; o segundo é a aula produzida a
partir da leitura comentada do início de um capítulo desse material de leitura.

9 Entre as características do perfil social a destacar, tem-se que, na escola pública, os alunos
são originários de famílias pouco ou não escolarizadas (25% dos pais são analfabetos), em
que a ocupação profissional dos pais é predominantemente informal e pertinente ao setor de
serviços (domésticas, faxineiras, zeladores, pedreiros, comerciários). Os alunos são remanes-
centes das séries iniciais de escolas públicas da região, já que o ensino na escola pesquisada tem
início a partir da 5a série. Na escola particular, as famílias são altamente escolarizadas, predo-
minando o nível superior ou a pós-graduação. As ocupações profissionais predominantes
são no setor público (professores, petroleiros, funcionários do Estado) e em profissões libe-
rais e assemelhadas (advogados, médicos, comerciantes). Os alunos são remanescentes, em
sua maioria, da própria escola, que oferece desde a educação infantil vinculada a um projeto
de formação do leitor. Em ambas as escolas os professores têm nível superior de formação.

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204 A história na escola

Advirto que, a partir do enfoque pautado na etnografia, a perspectiva para


a apresentação dessas aulas diversas foi a positividade das escolhas e ações desses
professores. A pesquisa constatou que o trabalho dos professores se volta para a
realização das aulas, ou seja, para que a aula ocorra. Assim, suas estratégias são
bem-sucedidas, pois as aulas acontecem, mesmo que de forma diferenciada. Pre-
tendo descrever e analisar algumas ações voltadas para a compreensão dos alu-
nos, no que se refere à leitura de materiais didáticos. A partir dessa descrição,
pode-se perceber como condições diversas (e adversas) produzem usos também
diferenciados, com resultados para a compreensão que nem sempre são bem-
sucedidos, o que é constatado pelos próprios professores.
Outro ponto a considerar é a natureza do conhecimento histórico escolar.
Este é compreendido na especificidade das condições em que o ensino ocorre na
escola e, não, como simples transposição do conhecimento acadêmico para esse
espaço. Entre essas condições está a organização didática da aula pelo professor,
expressa em diversas ações. A partir dela, o professor constitui em linguagem e
com a linguagem o conhecimento que pretende ensinar a seus alunos.
A partir dessa compreensão, o conhecimento histórico é encarado aqui no
contexto da problemática contemporânea da linguagem e da representação. Tal
problemática implica o estatuto da realidade e da verdade como referências para
o conhecimento histórico, inclusive o escolar. Tais temas — objetividade e subje-
tividade e suas implicações, em sua relação com a linguagem — constituem um
território de debate entre realismo e narrativismo. Nessa polarização, sujeito (e
subjetividade) e conhecimento (e objetividade) teriam uma relação diferenciada
com a linguagem que é diretamente relacionada ao processo em análise aqui.
Incorrendo nos problemas decorrentes da tarefa de síntese, no realismo pode-
se afirmar que existe, entre linguagem e conhecimento, uma relação instrumental,
constativa,10 em que a linguagem seria a transmissora transparente do conheci-
mento já elaborado e consolidado, na relação entre sujeito e mundo. Tal compre-
ensão nos leva à constatação de que o ensino-aprendizagem requer um aluno recep-

10 Segundo Austin (1961), haveria dois tipos de atos de fala: o performativo, em que se realiza
algo, e o constativo, que teria um caráter declarativo, pois se estaria descrevendo e, não,
realizando algo. Em seu estudo, Austin verificou que alguns enunciados precisavam ter valor
de verdade, e os chamou de constativos. Porém, existem outros enunciados que não podem
ser assim classificados por concretizarem uma ação, em vez de somente declararem: esses
enunciados ele chamou de performativos. Neste texto, apresento a denominação do ato de
fala constativo, não compreendendo necessariamente sua oposição a atos de fala performativos,
como características polares da linguagem.

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Livros didáticos de história 205

tor, que saiba ouvir e ler o conhecimento estruturado na linguagem. O foco aqui
está no conhecimento. Já no narrativismo, a linguagem seria ação, constitutiva do
conhecimento, em narrativas diversas, elaboradas a partir da interpretação do
sujeito em sua relação com o mundo. O foco passa para o sujeito produtor de
sentidos, o que supõe a opacidade da linguagem, não sendo mais suficiente um
aluno dotado primordialmente da competência de recepção do conhecimento.11
Buscando a historicidade da linguagem, do sujeito e do conhecimento, o
ponto de vista em que me ancoro considera a linguagem como interação, como
resultado de negociação entre sujeitos. Ela é constitutiva, mas também constituída
historicamente, em processos que antecedem esses sujeitos. Dessa maneira, o co-
nhecimento histórico se constitui na linguagem em gêneros diversos, o que inclui
a narrativa histórica, que pode se diferenciar em gêneros expositivos de perfil
acadêmico ou escolar, em que sujeitos diversos negociam sentidos a partir de
significados já existentes. Assim, a linguagem, em sua opacidade, requer que a
compreensão do conhecimento histórico presente nos livros didáticos e apresen-
tado pelos professores ocorra na interação, nos limites da relação dos sujeitos
entre si e com conhecimentos já constituídos em gêneros de esferas diversas.12

O resumo do livro didático


Na escola pública em que se realizou a pesquisa, naquele ano havia falta de livros do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Por uma opção curricular da escola
e um desacerto entre os professores, os alunos da 6a série ficaram sem livros de história.
Surgiu a necessidade de a professora Claudia13 elaborar materiais de leitura alter-

11 A discussão apresentada implica muitos outros aspectos, mas foi reduzida aos limites deste
texto. Para maior aprofundamento, sugiro a leitura de textos com pontos de vista diversos.
Ver Falcon, 2000:41-79 e também Albuquerque Júnior, 2006:192-215.
12 Segundo Bakhtin, os gêneros se organizam em gêneros primários, ligados à cotidianidade, e
em gêneros secundários, reelaborados, que incluem desde a literatura até os conhecimentos
acadêmicos e jurídicos. Cada gênero tem forma composicional, conteúdo temático e estilo
diferentes, funcionando em contextos também diversos. Tanto a diferenciação proposta para os
gêneros em primários e secundários quanto a variedade de gêneros secundários em sua forma-
lidade podem representar uma contribuição para complexificar o debate sobre a relação entre
linguagem e conhecimento. Gabriele M. Spiegel sustenta um argumento que se aproxima deste,
ao afirmar que a solução para o debate entre o realismo e o narrativismo encontra-se na
diferenciação entre formas de uso da linguagem e espécies de textos — os literários e os docu-
mentais. Apud Falcon, 2000. Sobre a proposta bakhtiniana, ver Bakhtin, 1992a e 1992b.
13 Todos os nomes são fictícios, para preservar a identidade dos participantes da pesquisa.

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206 A história na escola

nativos. A solução encontrada foi apresentar aos alunos um resumo do tema Roma
Antiga e pedir que o copiassem do quadro, aula após aula, durante o mês de março.
Como se deu o uso do resumo produzido a partir do livro didático e escrito
no quadro? Cada aluno copiou o resumo em seu caderno, houve uma leitura indi-
vidual e o uso posterior do texto para responder a exercícios de completar lacunas
e estudo para a prova. A partir desse momento, o circuito didático14 que se es-
tabeleceu nas três aulas seguintes — para a apresentação das três partes do texto —
foi a chegada da professora, a realização da chamada, a escrita do resumo no qua-
dro e a cópia pelos alunos. Ela não explicou, comentou ou fez perguntas. A turma
ficou em silêncio ou conversou entre si. Já no final do mês de março, a professora
passou no quadro exercícios baseados no resumo escrito. Foram exercícios
lacunados, ou de localização de palavras, muitas delas já sublinhadas no texto do
resumo. Sua pretensão era a da aprendizagem através da leitura do resumo.
No início da primeira aula efetiva de história, Cláudia explicou como seria
tratado o primeiro tema — Roma Antiga:

P: Roma nós vamos copiar porque o conteúdo é enorme, eu tenho o resumo pronti-
nho e esqueci de trazer. Muita correria. Esqueci de pegar no outro caderno meu. Mas,
a Idade Média, quando a gente entrar em feudalismo daqui a umas três semanas, eu
não sei, aí nós vamos... aí eu coloco com antecedência lá. Digo a vocês quanto é, dez
centavos, quantas páginas são, vou lá e tiro. [...] Vê se pra vocês fica melhor. Compra
uma pastinha e coloca as folhinhas?

A pesquisadora oferecera um livro de mitos e lendas em que havia o mito


da criação de Roma para a professora. Ela decidiu ler o texto.
P: Olha só, no dia que eu expliquei Roma nessa turma aqui eu não contei a lenda sobre
Roma, a formação da cidade de Roma, a história deles, tá? E a lenda, a Helenice tinha
o livro e trouxe para mim.

A professora lê o texto sem entonação ou pausas especiais, tal como se lesse um


texto expositivo do livro didático. A turma, que permanecera quieta, não reage.

P: Isso aconteceu na península Itálica. Pessoal, isso aqui é uma lenda, tá? O que é uma
lenda, hein? Pode falar.

14 Denomino circuito da aula a trama de atos, atividades ou experiências, em sua maior parte
rotineiras, que se desenvolvem entre o professor, os alunos e o conhecimento histórico escolar
em uma sequência que apresenta princípio, meio e fim, no horário escolar. Para maiores
detalhes e exemplos, ver Rocha, 2006:182.

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Livros didáticos de história 207

A: É uma história.

P: É. É uma história, né? Uma ficção. Não é uma história-realidade, né? Isso aqui fala
dos deuses porque os romanos, do mesmo modo que os gregos, acreditavam em
deuses em forma humana. Então, isso aqui é lógico que é uma lenda. Na idade de
vocês, vocês já sabem que uma lenda é uma história de ficção. Não é a história que nós
estudamos através de documentação, de fontes, tá? É só para ilustrar... [...] Agora
vamos copiar o resumo.

[...] (Fragmento de transcrição de aula, 6a série, Ceim)

A partir do dado “falta do livro didático” e da atuação da professora, o


texto não chega ao seu aparente destino. No seu lugar, Claudia produz uma inter-
venção: a leitura e a produção de uma síntese para os alunos que altera profunda-
mente o texto do livro didático. Em entrevista com a professora, esta informou
que o resumo havia sido produzido a partir de livros didáticos, sem identificá-los,
a fim de tornar o texto mais compreensível para os alunos.15
Parte da preocupação da professora decorria de sua representação do aluno
como alguém mal alfabetizado ou pouco letrado,16 ou seja, com uma inserção pre-
cária no mundo da cultura escrita. Esse pensamento é compartilhado por muitos
professores da escola pública, instigando-os a elaborar estratégias diferenciadas
para enfrentar o problema. Além dessa representação, existe o aspecto prático do
texto para cópia no quadro, habitualmente subentendido. O texto, para ser copia-
do pelo aluno, precisa ser reconfigurado, a partir de suas características no livro
didático. A extensão do texto precisa diminuir para que ele possa ser manuscrito no
tempo de uma aula. No que se refere aos aspectos gráficos do texto, destaco a eli-
minação de fontes variadas nos títulos e subtítulos (que também desaparecem).
Certamente também desaparecem boxes e ilustrações diversas (mapas, pinturas e
fotografias). O único substituto de marcadores especiais do texto efetivamente
incluído pela professora foi o destaque (sublinhado) de trechos que considerou
relevantes para os exercícios posteriores. Observe-se o texto integral da primeira
aula, a cópia do caderno de uma aluna e o texto original do livro didático.

15 Analisando o texto, descobri que a base para o resumo havia sido um livro didático. Ver

Cotrim, 1999.
16 Os professores em geral consideram que os alunos têm problemas de alfabetização, mas,

mesmo sem muita clareza, pode-se detectar aspectos da inserção desses alunos na cultura
escolar e da escrita, o que remete para o seu letramento. Magda Soares (2001) apresenta em
detalhe as características de ambos os processos. Para uma síntese das relações entre alfabeti-
zação e letramento e suas implicações para o ensino, ver Rocha, 2006.

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210 A história na escola

Robert Scholes refere-se ao protocolo de leitura como o “acordo” formal-


mente escrito e explícito entre o autor da obra e seu provável leitor que norteia
como ele deve realizar a leitura.17 Isso ocorre a partir de operações textuais e
extratextuais como as descritas aqui, destacando-se as principais partes do texto
e sinalizando-se o tipo de leitura esperado. No caso pesquisado, os indícios mate-
riais do protocolo de leitura do texto do livro foram eliminados e substituídos
pelos do resumo manuscrito.
Assim, é importante não perder de vista a materialidade do resumo e exami-
nar o que ocorreu com o texto resumido e sua compreensão, desde o livro didático,
passando pela transformação feita pelo professor até chegar ao caderno do aluno.
Tais transformações apontam para as concepções de leitura e de leitor dos autores
do livro didático e da própria professora. Conforme afirma Chartier, não há com-
preensão de um escrito, qualquer que seja ele, que não dependa das formas pelas
quais ele chega ao leitor.18 Ao entrar na cultura escolar e em seus modos de funcio-
namento, um texto é “reconstruído e perde e ganha traços que podem ser reveladores
dos processos sociais que nessa esfera se realizam”. Se muda o suporte e sua forma,
em virtude de fatores que o extrapolam, o texto também se transforma.
Vejamos o que ocorre no polo da produção do resumo pelo professor,
como apropriação de conhecimento histórico escolar apresentado no livro didá-
tico. O objetivo principal aqui é analisar o trabalho da professora sobre o texto
do livro didático e suas escolhas, incluindo operações de substituição e eventual
inclusão vocabular. Como se pode observar em uma primeira comparação visual
entre os trechos do livro e do resumo, no quadro a seguir, ocorre principalmente
a exclusão, ou seja, apagamentos lexicais.
No quadro a seguir, reproduzo os títulos e subtítulos do texto original, vi-
sando recuperar a hierarquização e a organização das informações presentes19 e do
contraponto existente no texto modificado pela professora.20 Nessa reconstituição,
só se mantêm algumas indicações do protocolo de leitura original.

17 Cf. Scholes, 1989; e Chartier, 2001.


18
Ver Chartier, 1990:126-127.
19 A própria reprodução apresentada aqui representa um grande trabalho de transformação
do texto original. Mas atende ao objetivo de aproximar e “emparelhar” o texto original com
o texto modificado pela professora.
20 Conforme propõe Kleiman, 1990:9-48.

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Livros didáticos de história 211

Emparelhamento de texto e resumo de Roma Antiga

Texto do livro didático Texto resumido e adaptado pela


professora

Trecho 1 Parte 1
Roma 21 (dia 12/03)

Das origens à república Roma

Na Antiguidade, a península Itálica era dividida em A cidade de Roma fica situada na


várias regiões, habitadas por diferentes povos. península Itálica, ao sul da
Numa dessas regiões foi fundada Roma, que depois Europa. Seu território lembra o
expandiu seu território, conquistando toda a formato de uma bota.
península e outras áreas do mundo antigo.
Vejamos algumas características geográficas da A península Itálica era habitada desde
península Itálica, os principais povos que a tempos pré-históricos, mas
ocuparam e o surgimento de Roma. posteriormente, em diferentes épocas,
diversos povos instalaram-se na
Elementos geográficos região. Entre eles destacam-se
italiotas, gregos e etruscos.
A península Itálica fica no sul da Europa,
estendendo-se pela parte central do mar Por volta de 2000 a.C., várias
Mediterrâneo. Seu território lembra o aldeias foram fundadas nesta região
formato de uma bota. e entre elas, Roma. Mais tarde, os
etruscos invadiram e conquistaram
Povoadores Roma. A partir de então, Roma
A península Itálica era habitada desde tempos pré- consolidou-se como cidade,
históricos. Posteriormente, em diferentes épocas, expandindo seus domínios por várias
diversos povos instalaram-se na região, entre eles regiões em torno do mar
destacam-se italiotas, etruscos e gregos. Mediterrâneo, chegando ao Oriente
Os italiotas chegaram à península Itálica por volta de e ao continente africano.
2000 a.C. e ocuparam a Itálica central. Subdividiam-se
em diversas tribos, como as dos latinos, dos volcos,
dos équos, dos úmbrios, dos sabinos, dos samnitas etc.

continua

21O livro organiza as informações sobre Roma Antiga em dois capítulos. O capítulo Roma I
apresenta a localização, a origem e os aspectos políticos e sociais da Roma Antiga, desde a
monarquia até o fim do Império romano. Roma II apresenta o legado cultural da Roma
Antiga, subdividido em direito, artes, pão e circo e religião. Ver Cotrim, 1999.

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212 A história na escola

Texto do livro didático Texto resumido e adaptado pela


professora

Os etruscos chegaram à Itália por volta do século


VIII a.C. Ocuparam inicialmente a região central
da Itália. Depois, expandiram seus domínios até
regiões do norte.
Já os gregos chegaram à Itália durante o movimento
de colonização, em época próxima à chegada dos
etruscos. Ocuparam a parte sul da península e
fundaram várias cidades (Nápoles, Siracusa, Tarento
etc.), que ficaram conhecidas em seu conjunto como
Magna Grécia.

Roma: origens
Por volta de 2000 a.C., os latinos — uma das tri-
bos italiotas — chegaram à Itália central e insta-
laram-se na região do Lácio, nas proximidades do
rio Tibre. Fundaram ali várias aldeias, entre elas
Roma.

Posteriormente, os etruscos invadiram e conquis-


taram a região do Lácio. Sob o domínio etrusco,
Roma consolidou-se como cidade. A partir de então,
expandiu seus domínios pela península Itálica e, de-
pois, pelas terras em torno do mar Mediterrâneo, che-
gando até o Oriente Médio.

Legenda: negrito: transcrição sem modificação; itálico: transcrição com alguma modificação; sublinhado: pala-
vras acrescentadas ao texto original; sublinhado e itálico: reestruturação do parágrafo a partir do texto original.

As operações realizadas na produção do resumo


Este é um resumo predominantemente do tipo narrativo, mantendo essa caracte-
rística do gênero de base do livro didático do qual foi apropriado. O livro didáti-
co se propunha a narrar a trajetória de Roma Antiga através dos tempos, desde
seu surgimento, com o povoamento do território da península Itálica, até a que-
da do Império romano, e anuncia esse projeto na introdução, transformada no
texto do primeiro dia de aula.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 212 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 213

O que orienta a professora em seu trabalho de apropriação do texto do


livro didático? O apagamento, uma das operações mais realizadas, evidencia sua
percepção da importância relativa de diversas informações do texto. Essas infor-
mações dizem respeito ao referente, Roma, o que envolve o conteúdo histórico,
ou as relações, materializadas em expressões restritivas ou modificadoras, pre-
sentes na língua.
Analisando essa seleção, deduz-se que a professora estabelece como neces-
sário ou relevante um número reduzido de informações, no que se refere ao co-
nhecimento histórico escolar. Também pode-se inferir sua concepção de sujeito
leitor — o aluno — e o lugar que atribui a si mesma como mediadora e intérprete
na relação entre aluno e texto.
Do resumo inteiro (das três aulas), foram excluídos do texto original dife-
rentes detalhamentos (sobre os povos que ocuparam a península, os poderes da
República, o Império). Também não foram oferecidos: a tensão entre partes ex-
cluídas (entre os poderes da República, entre grupos sociais); os sujeitos de carne
e osso da história. Da estruturação material do texto, foram excluídos diferentes
marcadores de intensidade, expressões restritivas, e especialmente modificadores
relativos ao tempo.
Observe-se que a expressão modificadora de tempo que marcaria a época
— Na Antiguidade (1a linha) — foi retirada juntamente com o parágrafo inicial,
que situaria o leitor no tema da unidade, o que descaracteriza o texto naquilo que
é uma das especificidades mais fortes do discurso histórico, sua inserção no tem-
po. Ao longo do texto, outros marcadores de progressão temporal foram apaga-
dos, possivelmente na tentativa de reduzir o texto, o que acabou por produzir um
efeito de rareamento da temporalidade, ou seja, de sua narratividade. É o caso do
apagamento da expressão “por volta do século VIII a.C.” e “durante o movimen-
to de colonização”. No caso da última expressão, ela está relacionada à chegada
dos gregos à península Itálica, juntamente com os etruscos. Isso acarreta o uso de
uma expressão que carreia a ideia de simultaneidade: “época próxima à chegada
dos etruscos”, que também foi eliminada.
Outra mudança expressiva foi a colocação da cidade de Roma em primeiro
plano desde o início do texto, o que provocou ambiguidade na referência ao “seu
território”, que remeteu à península Itálica, quando no resumo referia-se apenas
à cidade. Não há referência (oral ou escrita) ao fato de a cidade de Roma ter
gradualmente constituído um território, que extrapolou a cidade e passou a ser o
centro de uma República e de um Império. E ainda, Roma foi constituída como

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214 A história na escola

sujeito histórico da narrativa. A estratégia discursiva para obter tais efeitos foi o
uso da metonímia, que substitui um local por outro (a cidade nomeada no lugar
de um território mais amplo) e opera a personificação de Roma, o lugar substituin-
do a sociedade e a República, constituindo-se como sujeito histórico.22
Quem fundou Roma? O uso da voz passiva em textos didáticos de história
foi analisado por Orlandi como um dos recursos para a indeterminação ou apa-
gamento do sujeito histórico concreto.23 Efetivamente, foi o que ocorreu nesse
caso. Como o referente do texto era Roma, os criadores e sujeitos humanos da
cidade se tornaram secundários. A característica de focalizar Roma como sujeito
histórico acima dos sujeitos humanos já estava presente em alguns trechos do
texto do livro didático, mas na adaptação tornou-se quase absoluta.
No plano linguístico, na estrutura dos períodos anteriores e posteriores à
transformação realizada pela professora, pode-se perceber que muitos desses pe-
ríodos passam de períodos compostos a períodos simples, havendo a substituição
de vocábulos por outros supostamente mais simples:

LD: A península Itálica fica no sul da Europa, estendendo-se pela parte central do mar
Mediterrâneo.

Resumo: A cidade de Roma fica situada na península Itálica, ao sul da Europa.

Tal estrutura facilita o trabalho com a relação biunívoca entre informa-


ções. Ou seja, estabelece as perguntas e a parte que falta para completar as lacunas
na oposição entre pares de informações. Assim, na estrutura transformada aci-
ma, surge a dupla relação entre “cidade de Roma” e “península Itálica”, que per-
mite a pergunta que a professora elabora em exercício e prova posterior: “Onde
ficava situada Roma?”
Um texto com tais características se aproxima do formato dos textos de
cartilha ou acartilhados, ainda produzidos para alunos que estão aprendendo a
ler, e que supõem um leitor distanciado da cultura da escrita. Daí o investimento
em uma estrutura frasal reduzida, com a repetição do sujeito Roma (não há subs-
tituição ou anáfora).
Tais elementos na estruturação do resumo, bem como a organização
subsequente do conjunto de aulas dessa professora (exercícios de localização,

22 Burke (1992:331) evoca Huizinga em sua crítica ao uso da personificação no discurso


histórico.
23 Ver Orlandi, 1996.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 214 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 215

cópia, prova no mesmo estilo) sugerem uma concepção de texto transparente,


que não está sujeito a interpretação, pois o que está escrito é o que há a ser dito,
descrito, constatado e repetido (devolvido). Tal procedimento extrapola o tema
do livro didático e encaminha para concepções de ensino e aprendizagem, o que
reafirma o livro didático de história como portador do discurso tanto histo-
riográfico quanto pedagógico.
Pode-se concluir que o texto do resumo, tal como se constituiu na aula
dessa professora, foi esvaziado de marcas típicas da linguagem escrita, entre
elas determinados aspectos gráficos que fazem parte dos protocolos de leitu-
ra, e a referência a conhecimentos anteriores, de muitas noções históricas, de
relações internas e externas. Tal esvaziamento não foi preenchido nem na
oralidade nem no uso de outros recursos durante as aulas. Ocorre que, se o
pressuposto da professora de que seus alunos são pouco letrados ou mal alfa-
betizados for correto, a tendência, pelo esvaziamento do texto didático em
sua forma e conteúdo e do lugar de mediador do professor, é que perseverem
em um letramento com tais características no que se refere ao conhecimento
histórico escolar e a sua relação com a escrita. Parece, entretanto, que sua
concepção de aprendizagem se estabelece a partir de sua visão da linguagem
como “transportadora” do conhecimento. Assim, se o aluno é alfabetizado,
deve aprender o que está escrito.

A leitura como estratégia para contextualizar


Na escola particular pesquisada, os alunos possuem um livro didático que é utili-
zado de forma auxiliar no processo de ensino-aprendizagem. Habitualmente, a
professora solicita que os alunos leiam em casa, sozinhos, partes do capítulo em
estudo para a continuação do trabalho didático feito em sala. A formação do
aluno como leitor é um processo contínuo e faz parte do projeto da escola e das
famílias dos alunos, o que conduz a maioria deles a um alto letramento e leitura
autônoma.
No dia da aula em questão, devido ao atraso de sua entrada em sala e ao
plano de levar um material em outra sala, Adriana decidiu fazer apenas uma
breve introdução ao novo tema, apresentando-o aos alunos da 5a série com o
apoio do livro didático. Para isso, ela destacou índices sobre o tema presentes no
capítulo do livro: títulos, subtítulos, mapas e imagens, que apontavam determi-
nados modos de ler. Assim, ela deu conta de dois objetivos: a introdução ao

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 215 27/3/2009, 16:04


216 A história na escola

assunto e a familiarização com o texto do livro e seu protocolo de leitura.24 Apre-


sento a seguir apenas um trecho da aula.25
A aula contou com a participação de quase toda a turma, apesar de conver-
sas paralelas e certa dispersão dos alunos. A professora pediu que fizessem a leitu-
ra silenciosa de uma parte do capítulo. Logo após, fez perguntas que exploravam
aspectos específicos do novo conteúdo. Destacou alguns detalhes, como títulos e
imagens, antecipando o prosseguimento da leitura.

P: [...] Agora nós vamos nos concentrar num novo assunto: Roma. E vocês coloquem,
então, o título, em letras de forma, assim como vou colocar no quadro.

[...]

P: Roma Antiga. Por que Roma Antiga? Vocês vão colocar Roma Antiga, sabemos que
estamos estudando ainda a Idade Antiga, essa é a última civilização da Idade Antiga
que nós vamos estudar. Portanto, escrevam com letras maiúsculas, né, Roma. Escre-
vam aí “Roma Antiga”. Vai ser o nosso próximo assunto. Em seguida, peguem o livro,
eu vou mostrar pra vocês. É o capítulo 8, tá?

[...]
A: Adriana, eu tenho essa figura. Esse...

P: Nós vamos folhear esse capítulo, tá, pra vocês irem se familiarizando com o que eu
falei.

[...]

P: Olhem bem, gente, presta a atenção. Eu quero que vocês deixem aberto aqui na
página que eu vou explorar esse capítulo agora com vocês, pra vocês irem, né, se
familiarizando com o assunto que nós vamos estudar.

[...]

P: Olha, agora nós vamos, nós vamos analisar as gravuras e o capítulo, na verdade, o
capítulo 8. As gravuras e a divisão, eu quero que vocês observem aí pra vocês se
introduzirem no assunto. O capítulo 8, olha o título “Roma, das origens à República”.

24 Ver Scholes, 1989. O livro didático em questão é Dreguer e Toledo, 2000.


25 O trecho da aula foi transcrito e editado, com a supressão de comentários e orientações não
relacionados diretamente à leitura e ao uso do livro, dado o escopo deste texto.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 216 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 217

Então, como o título está dizendo, nós vamos começar estudando as origens de Roma,
isso quer dizer o quê?

A: De onde vem.

P: Como que Roma...?

Alunos: Surgiu.

P: Surgiu, né. Aí tem um mapa embaixo, na página 110. Vão acompanhando, gente...
[...] Olha, a página 110 tem um mapa, olha o título. Sempre olhando o título se tiver,
tá? Península Itálica. O que é península Itálica?

A: É um país.

P: É o que é hoje...

A: A Itália.

P: [...] O país que é a Itália, chamado Itália?

Luís: Onde tá a península?

P: Aí na sua frente, essa bota aí, tá vendo? A península Itálica, observem aí, tem o feitio
de uma bota. Olha o saltinho da bota. E nessa época que nós estamos vendo...

Antônio: Tem um salto grande.

P: Vamos começar, mas olha só o título “Península Itálica na época da fundação de


Roma”. E quando foi a fundação de Roma?

A: 753 antes de Cristo.

P: a.C. Então, vocês estão vendo. Isso aí é século o quê?

Antônio: Antes de Cristo.

P: Tá, mas que século?

[...]

A: Oito.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 217 27/3/2009, 16:04


218 A história na escola

P: Olha, século VIII a.C. Vamos lembrar aí que século VIII a.C. nós estávamos vendo
Grécia, já tinha, né, já tinham se formado as cidades-Estado. Tão pensando nisso?
Porque a Grécia arcaica é VIII, VII e VI a.C. Então, no VIII já estavam formadas as
cidades-Estado gregas, já existiam os aristois, já existiam os japoneses. Tão localizando?
Agora vamos localizar no tempo agora aqui. Roma. Aí no século VIII foi quando Roma
foi fundada, a cidade de Roma. Ô Luíza, olha bem aí, procura onde que está Roma no
mapa aí. Acharam?

Luíza: Achei.

P: Roma, olha só, tá junto dessa partezinha amarela aí. O que quer dizer isso? A
península Itálica tem várias cores. Uma parte amarela, uma roxa, uma verde, uma
marrom. Vocês estão interpretando isso como o quê? Larissa, você pode me infor-
mar? Por que que tem várias cores aí na península Itálica? [...] Olha, direitinho. Come-
ça olhando lá de baixo, que fica mais fácil. Porque a península Itálica, quando Roma
foi fundada, olha só [...] Então, eles, a península era formada, não tinha um povo só
morando aí. Tinha vários povos, inclusive os gregos, nossos conhecidos. Então olhem
bem. Tinham os gregos — quem quiser faça com lápis, tá gente — faz um círculo em
volta pra chamar a atenção. Gregos e etruscos, tem um povo de nome esquisito lá no
norte, olha, etruscos. Esse povo etrusco aí é um povo que é estudado até hoje, desco-
briram muito pouca coisa...

A: Etrúsculo?

P: Etruscos.

[...]

P: [...] Virando. Agora tem um desenho aí muito sugestivo, que é muito ligado à
história de Roma, lá embaixo, o que que vocês estão vendo aí?

Marcos: Uma loba alimentando duas crianças.

P: Uma loba alimentando duas crianças. Isso aí faz parte da história de Roma de uma
forma muito forte. Porque, pelo que os historiadores falam, Roma foi fundada em
753 a.C. e, pelas pesquisas que os historiadores fizeram é que eles chegaram a essa
conclusão, foi fundada pelos italiotas, ali era uma aldeia pequenininha, primeiro, né,
na formação da cidade e com uma vida bastante simples. Mas os romanos, eles vão

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 218 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 219

criar uma história, uma história mais interessante. Então eles criaram esse mito, gente,
da loba, do Rômulo e do Remo.

A: Quê?

A: Do Rômulo.

P: Rômulo e Remo são esses dois garotinhos que estão aí mamando na loba. Já
ouviram falar?

A: Não.

A: Já.

P: [...] Depois eu vou pedir que vocês leiam a história aí, mas agora não, deixa eu
continuar na história. Os romanos criaram então esse mito de Rômulo e Remo, e depois
eu quero que vocês tomem conhecimento dele, mas continuando, os romanos funda-
ram Roma e vão viver ali numa cidade pequena. Agora continuando onde está escrito
“Os personagens de Roma”. [...] (Fragmento de transcrição de aula 5a série, Emem)

A abordagem de Adriana, em um contexto diferente do apresentado ante-


riormente, também se mostra diversa. A professora considera que seus alunos são
letrados e que os problemas de ensino estão em outros lugares, secundários para
as questões de leitura. Ela assume a centralidade do processo de ensino-aprendi-
zagem, utilizando o livro didático como um recurso auxiliar desse ensino, para
fazer uma leitura comentada de alguns aspectos do conteúdo novo. Consideran-
do os alunos de 5a série iniciantes no segmento e nesse tipo de leitura, ela chama
sua atenção no livro para:

 a importância dos títulos e subtítulos e seu significado, que ela pergunta e


traduz (tanto do livro quanto do caderno);
 o significado de cores em um mapa que mostra a constituição da Roma
Antiga (ela traduz o que significa cada cor e comenta);
 o sentido de haver imagens em um livro de história, como texto não
verbal (ela os induz a interpretar as imagens dos personagens de um
certo modo).

É possível perceber, além desse movimento, o esforço da professora para


que os alunos recuperem as aprendizagens que já fizeram, especialmente em rela-

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220 A história na escola

ção aos gregos, transferindo-as para os romanos. Ou seja, ela procura desenvol-
ver o raciocínio relacional e comparativo dos alunos. Para isso, faz referências,
evoca a cronologia, estabelece analogias, o que significa investir para que se che-
gue ao novo ou desconhecido (Roma) a partir do velho ou conhecido (Grécia). A
professora explicita a pretensão de que os alunos interpretem, mas se coloca per-
manentemente como alguém disponível para colaborar no ato interpretativo.
Pode-se concluir que ela assume o texto em sua opacidade, já que sujeito a inter-
pretação, mesmo que a uma interpretação desejada, e o aluno como leitor capaz
de interpretar, necessitando de orientação.
O conhecimento histórico, para ela, tem uma base, que é a de sua própria
formação e prática, e há um modelo de ciência que organiza esse conhecimento,26
que parece se aproximar do apresentado por Paulo Knauss27 como modelo das
explicações dedutivas, cujo produto é resultado de premissas. O autor o associa à
versão sistêmica da análise social que caracteriza as sociedades estabelecendo
modelos gerais. Tal caracterização apresenta cada sociedade organizada em dife-
rentes aspectos: sociais, econômicos, políticos, culturais. Daí a professora estabe-
lecer paralelismos entre a organização de uma sociedade e de outra e evocar o que
já sabem para estabelecer paralelos. Os alunos, a partir das formas de ensinar e
aprender estabelecidas na aula dessa professora, inferem o uso do modelo, fazen-
do perguntas sobre recorrências entre a Grécia e a Roma antigas.

O que é preciso saber sobre os romanos da Roma Antiga?

No caso das professoras Claudia e Adriana, pode-se observar diferenças no uso


dos livros didáticos e a interação professor-aluno na leitura da transcrição e do
relato, e inferir algumas condições que produzem esse uso diferenciado. Mas,
abstraindo-se todas essas diferenças, vê-se que ambas consideram importantes
alguns conhecimentos tradicionais presentes no livro didático sobre a Roma
Antiga, destacando-os no discurso (oral ou escrito). Devido à exiguidade de
espaço e a possibilidades de análise, represento esquematicamente:

26 Ver Nagel, 1991:17.


27Knauss (2005:279-295) apresenta modelos de teoria social, utilizados na análise da história,
embasados em modelos de lógicas científicas diversas, a partir de paralelismo estabelecido
com proposta de Nagel.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 220 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 221

Análise comparativa entre tópicos da exposição das aulas

Tópicos destacados Claudia Adriana

Localização de Roma Descreve verbalmente a Descreve a localização


localização. Confunde, no verbalmente e usando o mapa.
texto, Roma com a península
Itálica.

Formato da península Compara verbalmente com Compara com uma bota, usando
Itálica uma bota. o mapa como apoio.

Povos formadores O resumo declara a existência Menciona a noção de formação


de povos autóctones, a partir da referência do mapa
afirmando que houve a invasão do livro (operação já realizada
de outros povos, entre os quais com a Grécia Antiga) e dos
etruscos e gregos. Não remete conhecimentos prévios sobre a
essas invasões a informações representação cartográfica,
já conhecidas. conferindo destaque aos
etruscos e gregos. Destaca a
cronologia comparativa.

Mito de fundação A professora lê o mito de O livro oferece o mito, que a


fundação (Rômulo e Remo), professora menciona,
fazendo menção à diferença buscando despertar a
entre lenda e história de curiosidade dos alunos. Afirma
verdade. Não tece relações que eles o lerão posteriormente
entre essa lenda e a origem e que este se relaciona à origem.
de Roma e, sim, afirma a É uma expectativa sua que eles
diferença entre mito e já saibam estabelecer diferença
história. entre mito e história, a partir do
estudo dos mitos da Grécia
Antiga.

Importância da O texto (do resumo) não atribui Tanto o texto do livro didático
cronologia importância à cronologia, quanto a própria professora
fazendo poucas referências aos oferecem algumas datas e
marcadores temporais. referências temporais, que são
exploradas de forma singular e/
ou comparativa, situando os
eventos no tempo e entre si.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 221 27/3/2009, 16:04


222 A história na escola

É importante lembrar que a professora Claudia apresentou o tema da


Roma Antiga a seus alunos durante três semanas e Adriana apenas introduziu o
tema. Assim, não foram trazidos para essa análise, em detalhe, todos os aspec-
tos observados e, sim, os que poderiam ser de alguma forma comparados. É
especialmente no aspecto da configuração do discurso histórico, pela lingua-
gem empregada em sala de aula, que as professoras diferenciam sua relação com
o texto do livro didático, que é mais uma forma específica de constituir esse
discurso histórico.
Evocando novamente as noções sobre a compreensão da linguagem como
instrumento (constativa) ou como forma de agir (performática), essas professo-
ras parecem se aproximar, cada uma, de uma dessas formas de compreender o
lugar da linguagem no ensino de história e do uso do livro didático. Claudia
entende que o resumo apresenta toda a informação necessária, de caráter mais
descritivo, válida por si só. Se o aluno sabe ler, pré-requisito da série, ele compre-
enderá o conhecimento histórico exposto ali. Adriana pretende transmitir infor-
mações, mas vê na linguagem oral um recurso para a melhor compreensão do
conteúdo e das formas de dizer apresentadas no livro. E dá diversas instruções: de
evocação, de comparação, além de utilizar estratégias inclusive de sedução du-
rante a leitura.
A partir da provocação de François Hartog,28 vale pensar que todo discur-
so sobre a história é uma proposta de como circular entre o passado, o presente e
o futuro. Entre as propostas presentes nos textos escritos e a apropriação realiza-
da pelas professoras, há discursos que ora se tangenciam, ora se afastam, a partir
de diferentes condições, como já apontado. As aulas dessas professoras, e sua
forma de elaborar a leitura do livro didático, evidenciam propostas diferenciadas
de relação com o passado e com o conhecimento histórico. Se tais propostas
tematizam os mesmos tópicos, a forma de tratá-los é diferente. E sugerem formas
diversas de dialogar com as temporalidades.
A forma assumida pela mediação de Claudia sugere uma relação com o
passado em que o estudo de cada povo é singular e estanque. Tal estudo requer
essencialmente a memorização, após a leitura. Cada povo do passado está lá para
ser estudado em alguns de seus aspectos já estabelecidos, sem relação necessária
com outros aspectos desse mesmo passado ou com o presente. Sua proposta pare-
ce sugerir que o passado não tem o que dizer ao presente.

28 Ver Hartog, 1996:127-154.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 222 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 223

Já Adriana também apresenta um passado que está lá, mas evidencia um


esforço para que os alunos o compreendam em sua relação com o próprio passa-
do e com alguns aspectos do presente. Para tanto, o estudo dos povos da Antigui-
dade requer não só o acúmulo de informações, mas a competência leitora e ana-
lítica dos alunos, seu raciocínio. Ademais, a professora utiliza os ícones e imagens
presentes no livro para ensinar outras habilidades de leitura, além das já domina-
das pelos alunos Assim, seu letramento se aperfeiçoa, juntamente com seu conhe-
cimento histórico. Minimamente, a partir da aula de Adriana e de sua forma de
ler o livro didático, os alunos desenvolvem habilidades que podem auxiliá-los a
pensar sobre o presente. Se vão utilizar as informações sobre o passado de algum
modo nessa reflexão já é uma outra história.

As condições de uso e a apropriação do texto didático

A partir da descrição apresentada, e da análise de outras aulas com o uso de livros


didáticos, chega-se a uma conclusão preliminar. Os usos e as apropriações do
livro didático são conformados por condições que se interligam de modo com-
plexo. As pesquisas sobre os usos do livro didático apenas começaram, e o diá-
logo entre elas só poderá contribuir para o tratamento cada vez mais cuidado-
so do tema, ao apresentar aspectos diversos dessa complexidade.29
Entre as condições que se pôde perceber como estruturantes do uso do
livro didático e de seus textos, a primeira que se manifesta para a utilização
do texto do livro didático é a posse do livro. Vimos que essa condição determina
o uso do texto didático do próprio livro, e mesmo o rumo da aula, de maneiras
diversas.
A segunda condição parece ser a percepção dos professores sobre o nível de
letramento de seus alunos. A partir dela, os professores encaminham tarefas de
leitura mais ou menos autônomas, interferem na mediação com o texto didático,
seja como intérpretes do texto no diálogo com o aluno, como fez Adriana, seja
como reestruturadores do texto, como fez Claudia quando elaborou seu resumo.
Não foi considerada a condição efetiva de leitura autônoma do aluno, pois não
dispus de material que permitisse avaliar tal condição. Parece que a professora
Claudia, antes mesmo que os alunos manifestassem seu potencial de leitura, já

29 De acordo com proposta de Batista, 2003:161-188.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 223 27/3/2009, 16:04


224 A história na escola

estabeleceu o seu lugar como leitores ou não leitores, definindo que texto de-
veriam ou poderiam ler.
Há ainda que se considerar o tempo de aula e a presença do professor: se o
professor tem o livro a sua disposição, este pode ser uma solução ou um empeci-
lho para sua aula, dependendo de suas pretensões e das condições anteriores. Na
aula da escola particular, a professora pretendia estar ausente da sala de aula
durante certo tempo e considerava possível os alunos fazerem uma primeira lei-
tura com autonomia. Em outras condições, especialmente em escolas públicas, o
“adiantamento de aulas” tem se mostrado uma estratégia muito utilizada por
professores e pela administração da escola para gerenciar a ausência de professo-
res. A posse do livro permite ao docente passar aos alunos a tarefa de copiar, ler
ou responder a exercícios durante sua ausência.30 Não estou avaliando aqui a
eficácia desse procedimento e, sim, registrando a prática em sua efetividade, e
como o livro didático e seu texto podem entrar no circuito da aula.
A quarta condição é a compreensão docente da leitura como um ato de
produção ou de reprodução de sentidos. Isso se relaciona diretamente à segunda
condição, pois contribui para definir a classificação dos alunos como leitores
ativos e produtores, ou passivos e reprodutores, e as escolhas que farão. No bojo
dessa compreensão está a concepção dos professores sobre o texto: se mero con-
dutor do conteúdo da disciplina e, portanto, transparente; ou se opaco, estando
a linguagem sujeita a interpretações diversas pelos alunos. Além do trabalho
interpretativo, esse aspecto acarreta a preocupação (ou não) com os protocolos
de leitura, ou seja, o “destaque” e a aprendizagem relativa a aspectos formais da
escrita, como os índices de leitura presentes no livro didático: títulos, subtítulos,
imagens, mapas, textos de boxes. Ambas as professoras evidenciaram determina-
da expectativa em relação aos protocolos de leitura: o sublinhado no resumo de
Claudia pretendia dizer “informação importante a ser fixada” e as ênfases
de Adriana, ao dizer “olhem aqui, leiam os títulos”, orientavam os alunos para a
relevância e a interpretação do texto, do tema e de suas relações.
Como última e não menos importante condição arrolada para a apropria-
ção, pelo professor, do texto do livro didático de história, destaco suas concep-
ções de história e de ensino-aprendizagem e a relevância que ele atribui aos con-
teúdos na perspectiva que privilegia ensinar as noções históricas que considera
fundamentais para a elaboração de determinada relação com o passado e entre os

30 Ver Rocha, 2006.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 224 27/3/2009, 16:04


Livros didáticos de história 225

tempos. Um exemplo notável nas aulas analisadas é a presença ou não da elabora-


ção discursiva sobre as relações entre os temas em estudo. Nos dois livros didáti-
cos usados, havia o estabelecimento de relações, especialmente entre gregos e ro-
manos. Claudia eliminou as relações no texto resumido que produziu,
evidenciando o tratamento das informações como relevantes por si mesmas e
passíveis apenas de memorização. Adriana enfatizou, como uma habilidade
cognitiva e do discurso histórico a desenvolver em seus alunos, o trabalho com os
conteúdos estabelecidos, percebendo entre eles tais relações. Foi assim ao pergun-
tar aos alunos o que significavam as cores diferentes em um mapa que mostrava a
formação de Roma, pretendendo que eles transferissem, por analogia, o conheci-
mento aprendido antes sobre a Grécia.
Levando em conta essas condições, pode-se afirmar que, no uso do livro
didático, a razão histórica precisa estar em equilíbrio com a razão pedagógica
para a elaboração de um discurso sobre a história que possa ser significativo para
os alunos.31 Afinal, ensinar e aprender são processos de significação. Essas razões
se concretizam em discursos: o do livro e o do professor que se apropria dele nos
usos que lhe confere. Se o professor investe na elaboração e na mediação do co-
nhecimento histórico escolar, ele será um autor não só de resumos ou comentários,
mas da própria aula.32 É a elaboração necessariamente rebelde do leitor que se
torna autor, como Cortázar afirma na epígrafe deste capítulo.
Seguramente, o investimento da professora está diretamente relacionado
às condições de produção da aula e da leitura, mas esse é um aspecto a aprofundar
em outro espaço. Espero ter conseguido evidenciar a positividade das escolhas
dos professores nos usos que fizeram dos textos didáticos em questão. Essa
positividade está menos relacionada ao sucesso didático-pedagógico da ação do-
cente e mais ao uso do que funciona, do que faz a aula acontecer. E essas aulas
aconteceram.
Em uma, os alunos silenciaram sobre suas aprendizagens anteriores e não
conseguiram estabelecer relação entre o que estavam estudando e qualquer outro
tema. Era início do ano e eles já haviam conhecido aspectos da história no ano
anterior, alimentando expectativas sobre o que iriam estudar a partir dali. Mes-
mo sem compreender o conhecimento em torno do qual circulavam, fizeram o

31 Conforme proposta de Carmem Tereza Gabriel (2003).


32 Ver Mattos, 2006:15-26.

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226 A história na escola

que a professora esperava deles: copiaram a matéria, leram o texto resumido,


responderam ao exercício. Pode-se dizer que o texto do resumo baseado no do
livro de história e a aula não os ajudaram a aprender efetivamente história, mas a
ser alunos de um certo modo. A professora lhes ensinou isso, a partir das condi-
ções existentes.
Na outra, os alunos também fizeram o que se esperava deles. Aquele era o
último povo da Antiguidade a ser estudado na 5a série. Além de terem aprendido
coisas sobre diferentes povos da Antiguidade, eles também aprenderam a ler o
livro de história, a entender suas pistas, e aprenderam que ele pode e deve ser
interpretado — uma atividade que eles conseguem fazer. A professora lhes ensi-
nou isso, a partir das condições existentes. Na elaboração do discurso historio-
gráfico escolar presente nos textos de livros didáticos, ambas as professoras ensi-
naram formas diferentes de os alunos pensarem as relações entre os tempos
passado, presente e futuro.

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Capítulo 10

Ensinar a escrever no âmbito do livro didático


de história

Maria Lima *

Ao aprender a língua, aprendem-se ao mesmo tempo outras coisas


através dela: constrói-se uma imagem da realidade exterior e da
própria realidade interior.1

Os livros caracterizam-se por serem objetos culturais típicos das sociedades de


cultura escrita. Têm uma história de produção e de uso determinada pelas formas
de registrar a notação no papel, pelos suportes desse registro, pelas relações entre
o autor e o editor e pelas práticas de leitura. De acordo com Chartier,2 o livro
sempre visou instaurar uma ordem, fosse a ordem de sua decifração, a ordem no
interior da qual deve ser compreendido, ou ainda a ordem desejada pela autori-
dade que o encomendou e permitiu sua publicação. Tal aspecto normativo, ca-
racterística que lhe é intrínseca, ganha contornos específicos quando se enfoca o
livro didático.
Tendo como uma de suas principais funções a promoção da aprendizagem
do estudante que o utiliza, seu caráter cerceador dos modos de apropriação am-

* Bacharel em história, mestre e doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP,


professora da Universidade São Marcos (SP) e componente do Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre Alfabetização e Letramento (Geal-Feusp).
1 Geraldi, 2003:179.
2 Chartier, 1994:8.

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228 A história na escola

plia-se com o incremento dos mecanismos de controle. Os usos da escrita propos-


tos nesse contexto adquirem uma feição peculiar, paralela àqueles da leitura.
Enquanto a esta última fica reservado o espaço da aprendizagem, do deleite, do
contato com o novo, à primeira, devido a sua aparência fixa, imóvel e conserva-
dora, resta o lugar da repetição e do exercício. Por trás dessa visão, encontra-se a
crença pedagógica na correspondência entre utilização da língua escrita e “apro-
priação” do conhecimento, subsidiando a ideia de que ensinar é promover a apre-
ensão o mais exata possível dos conteúdos factuais e conceituais.
Diversas atividades de escrita propostas no espaço do livro didático apre-
sentam técnicas memorísticas “fantasiadas” de convites do tipo “expresse sua opi-
nião” ou “escreva o que você acha”, quando na realidade o que se espera é a
repetição objetiva dos dados e informações fornecidos pelo livro-mestre. Tal ca-
racterística evidencia a concepção empirista3 presente em grande parte dos ma-
nuais, que reforça uma ação do professor calcada no cerceamento das tentativas
de subversão de seus estudantes pela restrição dos usos linguísticos e do desenvol-
vimento temático que os alunos poderiam empreender.
No entanto, assim como a leitura é “rebelde e vadia”, na medida em que são
infinitos os artifícios de que lançam mão os leitores para obter livros proibidos,
ler nas entrelinhas ou subverter as lições impostas, também a escrita o é. Para que
seu potencial mediador do pensamento possa ser ampliado pelo ensino, é necessá-
rio que nos indaguemos sobre o que seria preciso para que a escrita, no espaço do
livro didático de história, especificamente, se coloque a serviço da formação
do sujeito pensante.
Nessa perspectiva, a questão fundamental deste capítulo reside na análise
da escrita e seu papel no processo de desenvolvimento à luz de contribuições
teóricas da psicolinguística, associando-as às pesquisas sobre a necessidade de que
o ensino de história vise ao desenvolvimento da consciência histórica.
Para tanto, enfoco os conceitos de escrita e de consciência histórica
subjacentes às reflexões. Em seguida, examino as características envolvidas na
aprendizagem da língua escrita e suas potencialidades para o ensino de história.

3 De acordo com Weisz (2000:55), a teoria empirista — historicamente a que mais vem
impregnando as representações sobre o que é ensinar, o que e como se deve ensinar, quem é
o aluno e como ele aprende — expressa-se em um modelo de aprendizagem conhecido como
de “estímulo-resposta”. Esse modelo define a aprendizagem como “a substituição de respos-
tas erradas por respostas certas”.

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Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 229

Por último, apresento considerações sobre as possibilidades de uma educação


transformadora, advindas da integração do ensino da língua escrita ao da história,
e que, a meu ver, precisam ser incorporadas aos livros didáticos dessa disciplina.

Língua escrita e consciência histórica

A crença na superioridade da escrita subsidiou a ideia de que essa prática de


linguagem promoveria o desenvolvimento cognitivo por possibilitar maior abs-
tração. Por isso, ela teria permitido o desenvolvimento científico nos patamares
que a era moderna havia visto. No entanto, nenhum trabalho científico identifi-
cou uma relação clara entre o pensamento e a escrita. Ao contrário, estudos re-
centes afirmam que os processos cognitivos — antes entendidos como dependen-
tes da escrita, como a memorização, a reflexão e a composição de textos ou o
pensamento científico — são, na realidade, invenções do discurso oral.4
Alguns estudos psicológicos foram significativos na investigação das rela-
ções entre pensamento e escrita, e contribuíram, a sua maneira, para o avanço e a
superação da concepção civilizatória. Scribner e Cole,5 por exemplo, questiona-
ram a relação direta entre escrita e desenvolvimento cognitivo a partir de testes
empíricos realizados com a população Vai , da Libéria. Concluíram que o dife-
rencial não era a aprendizagem da escrita em si, mas a aquisição de habilidades
metalinguísticas e metacognitivas que ocorria no espaço social e, mais especifica-
mente, na escola. Em síntese, para esses autores, o que favorece a disseminação de
conceitos ou representações e a organização do pensamento é a inserção do sujei-
to na complexidade da vida social e escolar. Tanto nesse quanto em outros estu-
dos realizados posteriormente, tornou-se evidente que, pelo fato de estarmos
inseridos numa sociedade de cultura escrita, não é só a escola que promove o
desenvolvimento de capacidades cognitivas como a generalização ou a abstração,
mas também outras agências de letramento, como o trabalho, a igreja ou as
agremiações.6
Desde muito remotamente, essa modalidade da linguagem tem sido utili-
zada por grupos dominantes para exercer controle, uniformizar diferenças pelo

4
Olson, 1997.
5 Scribner e Cole, 1981.
6 Kleiman, 2003.

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230 A história na escola

estabelecimento de uma norma única, aprisionando assim corações e mentes.


Superioridade, sacralidade, racionalidade. Hoje não é mais possível associar esses
epítetos à escrita sem considerar que eles atendem às demandas dos poderes polí-
tico e econômico.
No entanto, no âmbito desse trabalho, considero fundamental reconhecer
as contribuições da escrita para a sociedade como instrumento mediador que
auxilia nos processos de desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
De acordo com Oliveira,7 a escrita, enquanto sistema simbólico, é um dos
principais fundamentos do modo letrado de pensamento. Essa modalidade
linguística favorece o pensamento descontextualizado e independente da ex-
periência do sujeito por separar o produto escrito de seu autor, do tempo e do
local de sua criação. Favorece também o desenvolvimento de dois tipos de consci-
ência: a metalinguística, por se constituir em suporte material da língua, sobre o
qual o sujeito pode refletir e construir conhecimento explícito; e a consciência
metacognitiva, pela possibilidade de verificação do discurso escrito enquanto
produto de pensamento, de objetivação da experiência pessoal. Além disso, a
escrita fornece ao seu usuário instrumentos externos que facilitam a utilização de
procedimentos de controle cognitivo (listas, calendários, tabelas, instruções es-
critas).
Isso significa dizer que, enquanto mediador interno, a escrita favorece as
possibilidades de pensar, organizar, lembrar, planejar, arquivar etc., cuja ocor-
rência promove uma transformação no modo de o sujeito operar sobre o mundo,
e também em sua autoimagem e em sua maneira de relacionar-se socialmente.
Essa relação mediada entre pensamento e linguagem inclui a palavra como signo,
instrumento convencional de natureza social.
Os signos mediadores tornam a atividade psicológica humana mais sofisti-
cada e menos impulsiva e seu uso evoluiu ao longo da história da espécie humana.
Como meio de contato com o mundo exterior, consigo mesmo e com a própria
consciência,8 os signos possibilitaram que a utilização de marcas externas se trans-
formasse em processos internos de mediação.
O desenvolvimento de sistemas simbólicos permitiu a organização dos sig-
nos de maneira mais complexa em sistemas de representação, os quais, por serem

7 Oliveira, 2003.
8 Freitas, 2002.

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Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 231

socialmente dados, tornaram possível ao indivíduo a apreensão do real de manei-


ra mais sistematizada, potencializando sua ação sobre ele.
Numa perspectiva vygotskiana, os sistemas de signos não são meros
“facilitadores” da atividade psicológica, mas seus formadores. Bakhtin acrescenta
a esse aspecto o fato de que cada signo ideológico9 não é apenas um reflexo da
realidade, mas também um fragmento material da mesma realidade e um fenô-
meno do mundo exterior que se apresenta como a encarnação material da cons-
ciência. Os signos ligam-se a outros signos conhecidos no processo de construção
da compreensão, e esta, por sua vez, pode ser entendida como uma resposta a um
signo por meio de outros signos. A consciência emerge dessas relações, e uma
consciência individual se comunica com outras através de cadeias de signos, sen-
do a própria consciência repleta deles. “A consciência só se torna consciência
quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente,
somente no processo de interação social.” 10 O homem, fora das condições
socioeconômicas objetivas, fora da sociedade, não tem consciência.
Entre esses materiais, num contexto discursivo, a palavra, fenômeno ideo-
lógico por excelência, é o material privilegiado da comunicação na vida cotidia-
na. E a palavra não é importante só por estar vinculada aos processos de produ-
ção, mas também por se constituir em material semiótico da vida interior.
As palavras, materializadas na fala ou na escrita, constituem-se em signos
mediadores na relação do homem com o mundo por serem, em si, generalizações:
“cada palavra refere-se a uma classe de objetos, consistindo num signo, numa
forma de representação dessa categoria de objetos, desse conceito”.11 Tal movi-
mento é o que possibilita à palavra mediar e materializar os processos de análise
(abstração) e de síntese (generalização) dos dados sensoriais, os quais resultam
num modo de os indivíduos refletirem suas experiências.

9
Bakhtin (1986:31-32) afirma que toda relação social é entendida como ideológica, e tudo o
que é ideológico possui um significado e remete a algo material que está fora de si mesmo.
Nesse sentido, tudo o que é ideológico é um signo e, dessa forma, sem signos não existe
ideologia. Pelo fato de os signos estarem sujeitos aos critérios de avaliação ideológica, o
domínio ideológico coincide com o domínio dos signos. Tudo o que é ideológico possui um
valor semiótico. O locutor serve-se, em especial, da palavra, que tem uma característica ideo-
lógica que a torna signo para a consciência.
10 Bakhtin, 1986:34.
11 Oliveira, 1992:28.

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232 A história na escola

Com isso, a escrita tornou-se uma das bases para o desenvolvimento da


ciência formal e provocou algumas transformações culturais no modo de pensa-
mento, tais como: a construção de categorias formalizadas de organização do
real; um processo deliberado de generalização; e a constituição de uma sociedade
pautada por objetivos de predição e controle, oferecendo a possibilidade do pensa-
mento descontextualizado em oposição ao pensamento referenciado na experiên-
cia particular, individual.
Muito embora a escola não seja a única agência de letramento em nossa
sociedade, é certo que ela tem sido a responsável por colocar crianças, jovens e
adultos em contato com a ciência de maneira sistematizada e intencional.
Nesse espaço, a escrita tem favorecido o pensamento descontextualizado e
a ação metacognitiva, além das formas de controle da produção cognitiva. É
nesse lugar também que sua potencialidade surge para um ensino de história que
visa promover o desenvolvimento da consciência histórica.
De acordo com Rüsen,12 a consciência histórica engendra-se numa opera-
ção mental de constituição de sentido, e a competência narrativa configura-se
como sua competência específica e essencial, a qual se manifesta pela função, pelo
conteúdo e pela forma. A função pode ser chamada de “competência para a orien-
tação histórica” (capacidade de compreender que o passado é uma fonte de refe-
rência para o presente); o conteúdo seria a “competência para a experiência his-
tórica” (a possibilidade de entender que pessoas viveram em outro tempo, fizeram
opções, tiveram experiências diferentes das nossas), enquanto a forma se configu-
ra na “competência para a interpretação histórica” (capacidade do ser humano
de atribuir significados às transformações sofridas no tempo).
A perspectiva do autor abre horizontes de análise para o ensino de histó-
ria e amplia o olhar sobre a aprendizagem, na medida em que o estudante não
é tomado a priori como um ser “sem consciência”, mas como alguém que tem
uma maneira própria, socialmente constituída, de enxergar a relação entre o
presente, o passado e o futuro. O ensino de história passa, então, a ter como
principal tarefa criar possibilidades de desenvolvimento da consciência históri-
ca do estudante.
Quando a aprendizagem é compreendida como uma qualidade específica
dos procedimentos mentais da consciência histórica, a quantidade de conheci-

12 Rüsen, 1987, 1992, 1993 e 2001.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 232 27/3/2009, 16:04


Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 233

mentos que o sujeito detém não é o critério considerado mais adequado para
avaliar seu desenvolvimento. Por outro lado, quando o sujeito aprende história
para utilizá-la na análise de aspectos de sua vida prática, compreender a experiên-
cia do tempo, interpretando-a na forma de história, é possível dizer que houve
aprendizagem, pois houve desenvolvimento da consciência histórica.
A competência narrativa é definida como a habilidade de a consciência
humana realizar procedimentos que dão sentido ao passado, tornando efetiva
uma orientação temporal da vida prática no presente através da recordação da
realidade passada. Nessa perspectiva, a possibilidade de narrar é fundamental,
uma vez que a narrativa histórica é mais do que um modo específico da
historiografia. Intérpretes contemporâneos como Ricouer13 apresentam a narra-
tiva histórica como um procedimento mental básico que dá sentido ao passado
com a intenção de orientar a vida prática no tempo.14
As relações entre tempo e narrativa demonstram que a compreensão do
tempo é uma produção linguística. Simultaneamente, há um movimento em
que as operações discursivas presentes na narrativa implicam também um pro-
cesso constitutivo da compreensão do mundo pelo homem, envolvendo ainda a
constituição do próprio ser. Nesse âmbito, escrita e consciência histórica se
encontram.
A escrita, em suas potencialidades metalinguística e metacognitiva, incide
nos processos cognitivos envolvidos na aprendizagem da linguagem escrita, en-
quanto media, concomitantemente, o desenvolvimento da consciência histórica.
Em outras palavras, a língua escrita apoia a constituição da ideia e o desenvolvi-
mento do pensamento, colocando o indivíduo em contato com outras ideias em
meio à apropriação das características do sistema de representação.
Considerar que, no espaço do livro didático, o estudante escreve, priorita-
riamente, para comunicar uma ideia, esperando do leitor uma atitude responsiva
torna-se crucial para a promoção de uma aprendizagem significativa. Por conse-
guinte, é importante conhecer os processos cognitivos envolvidos no ato de escre-
ver como forma de explicitar a importância de um ensino de história comprome-
tido com o desenvolvimento da competência de escrita do estudante.

13 Ricouer, 1994.
14
É importante ressaltar que a compreensão do passado — que se dá na forma de narrativa
e, portanto, se constitui na competência narrativa — está envolta nas deliberações morais que
conectam passado, presente e futuro em torno de uma realidade visível ao sujeito que a
enuncia.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 233 27/3/2009, 16:04


234 A história na escola

Os desafios do escrever no âmbito das aulas de história


De acordo com Teberosky,15 três conceitos são fundamentais para abordar a
temática da escrita: sistema de notação, língua escrita e linguagem escrita. O ter-
mo notação refere-se às formas gráficas usadas para registrar e transmitir infor-
mações (notação musical, notação química) e notacional é o conhecimento gera-
do ao se fazer ou interpretar notações. Algumas notações passaram a compor
sistemas, como o sistema alfabético ou o sistema de algarismos (números), e ser-
vem para calcular, ordenar, registrar, indicar a direção, evocar espíritos etc. Além
disso, o uso das notações permite a separação entre a marca em si e o produtor da
marca, entre a mensagem e o produtor da mensagem, ou seja, possibilita a
objetivação, gerando um novo domínio de conhecimento: o notacional. Conhe-
cimento notacional consiste na capacidade de reconhecer, interpretar e produzir
distintas formas notacionais.
A escrita alfabética é um sistema de notação específico, no qual os elemen-
tos, as letras, identificam segmentos fonológicos (consoantes e vogais). Possui
também um conjunto de caracteres e convenções gráficas não alfabéticas, tais
como sinais de pontuação, maiúsculas, sublinhado etc., que funcionam como
indicadores ou como instruções para o leitor. Por sua vez, a expressão linguagem
escrita refere-se aos efeitos do uso social da escrita, a qual, por ter sido utilizada
em diversas circunstâncias ao longo dos últimos 5 mil anos, multiplicou as formas
de discurso. Essas formas são decisivamente muito mais influenciadas pelas con-
dições de uso do que por sua substância (oral ou escrita).
O livro didático de história insere-se nessa conjuntura, primeiro, enquan-
to objeto cultural, socialmente determinado, que traz em seu bojo referências ao
conhecimento científico sistematizado e pauta-se por valores de humanidade e
cidadania imprescindíveis na formação do indivíduo. Segundo, por se constituir
em um espaço em que são ampliadas as possibilidades de trabalho com a escrita
enquanto sistema de representação e enquanto linguagem.
Considerando esses aspectos, que processos cognitivos envolvidos na pro-
dução da língua escrita no espaço do livro didático a tornam um instrumento
valioso no processo de desenvolvimento da consciência histórica?
De maneira geral, quando o estudante se depara com a tarefa do escrever,
tal produção exige a mobilização de diversas competências linguísticas além do
referencial temático.

15 Teberosky e Tolchinsky, 2002.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 234 27/3/2009, 16:04


Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 235

A esse respeito, Teberosky,16 ao abordar os processos de produção, aponta


a existência de três etapas básicas na composição de textos: a inventio, a compositio
e a scriptio. A inventio é o momento de geração de ideias, no qual a competência
enciclopédica do estudante é acionada, colocando em jogo os diversos conheci-
mentos que possui. Na compositio, o autor depara-se com a transformação do
discurso interior em exterior, num processo de construção verbal das ideias. Por
último tem-se a scriptio, quando se escreve o texto propriamente dito. Para isso,
são mobilizados conhecimentos ortográficos, fonológicos, sobre como dispor o
registro no papel, entre outros. Enquanto as duas primeiras etapas dependem das
experiências do sujeito com a escrita, a última requer a aprendizagem formal da
escrita em seus aspectos técnico-notacionais.
O percurso apontado pela autora evidencia que o sujeito-autor lança
mão de estratégias de compreensão, elaboração e criação. Com base nos
referenciais vygotskyanos, é possível dizer que se trata de um processo em que o
grande objetivo é tornar externo um discurso interno, abreviado e
linguisticamente pouco estruturado. O enunciado escrito, então, é apenas a
ponta de um iceberg que emerge como produto final de um percurso de
exteriorização do eu. Deflagradas a partir de uma intenção ou contexto
motivador, as ideias se condensam no pensamento. Em seguida, passam para o
discurso interior e pela busca de significação das palavras para, finalmente,
chegarem a seu registro convencional.17
O enfrentamento dessa trajetória pode, na prática, ser traduzido pelos mui-
tos desafios inerentes ao momento da produção, tais como compreender a tarefa,
lidar com o tema, exteriorizar as ideias, planejar o texto, estabelecer relações
interlocutivas, obedecer a regras e convenções e cuidar da composição visual.
Somem-se esses desafios ao fato de que a atividade de escrita reflexiva é conflitiva,
caracterizando-se como um longo processo com diferentes graus de envolvimento
e possibilidades de aprender, seja pelas diversas tarefas formais e cognitivas com
as quais o estudante precisa lidar, seja pelo conteúdo da ideia que deseja consti-
tuir e veicular.
O alto grau de complexidade da atividade salienta que, para a escrita efeti-
vamente apoiar o desenvolvimento da consciência histórica, é preciso considerá-

16 Teberosky e Tolchinsky, 2002.


17 Colello, 2004.

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236 A história na escola

la não enquanto vivência (reação a choques), mas como experiência (o vivido


que é pensado, narrado). Kramer,18 tomando por base Benjamin, afirma que,
na vivência, a ação se esgota no momento da sua realização (por isso é finita); na
experiência, a ação é contada a um outro, compartilhada, tornando-se infinita.
Por isso, como oposição a uma escrita que não apoia o sujeito em seu processo,
Kramer destaca a necessidade de uma escrita como experiência. Ou seja, uma
atividade de escrita que permita ao sujeito:

refazer o processo, sistematizá-lo e melhor compreendê-lo, suavizá-lo, vencendo a


dureza da escrita, percebendo as contradições, incoerências e dificuldades existentes.
Escrever significa aqui sempre (re)escrever, interferir no processo, deixar-se marcar
pelos traços do vivido e da escrita. (Re)escrever texto e histórias; ser leitor de textos
escritos e da própria história pessoal e coletiva, marcando-a, mudando-a, inscrevendo
nela novos sentidos.

Esses aspectos deixam claro o quanto a escrita pode favorecer o desenvolvi-


mento da consciência histórica do indivíduo pela possibilidade de contato com a
sua ideia de maneira mediada. Ressaltam também o compromisso que o ensino de
história pode ter com a ampliação do grau de letramento do sujeito, ao promo-
ver reflexões sobre a função social da linguagem e ao fomentar reflexões sobre o
sistema de representação de maneira imbricada com a construção da ideia e com
o desenvolvimento da consciência histórica.
A compreensão de alguns dos aspectos cognitivos envolvidos na atividade
da escrita reflexiva implica, necessariamente, uma revisão nas formas de se traba-
lhar essa modalidade linguística no ensino de história. Nesse sentido, e levando
em consideração seu caráter formativo, as atividades escritas propostas pelo livro
didático precisam colocar-se para além do mero registro de informações apreen-
didas ou da produção de textos que dificilmente são revisitados.

A escrita enquanto processo

Nas aulas de história, as atividades que envolvem a produção escrita do estudante,


na grande maioria das vezes, são extremamente escolarizadas e descontextualizadas,
tendo como único destinatário o professor, que lê para corrigir e, não, para en-
trar em contato com o que o estudante pensa ou com como ele expressa

18 Kramer, 2001:110.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 236 27/3/2009, 16:04


Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 237

linguisticamente o que pensa. Nesse sentido, servem muito mais como vivência do
que como experiência. Tal aspecto é reforçado por quase todos os manuais didá-
ticos, que desconsideram a língua como instrumento que permite ao aluno rela-
cionar, ampliar, contrapor, presumir, argumentar, definir ou problematizar
conteúdos.
Uma das maneiras de se romper com essa lógica é propor atividades em que
o estudante, além de tomar notas, responder a perguntas, elaborar descrições ou
relacionar informações, possa retomar determinadas reflexões em situações de
reescrita em diferentes contextos.
Na atividade de reescrita, o estudante é levado a reler sua produção com o
objetivo de avaliar o que mantém, o que muda, o que acrescenta, o que retira em
função de novos critérios adotados. Embora a constituição do processo interlocutivo
como pressuposto inerente à escrita já esteja presente logo no primeiro texto, na
atividade de reescrita a natureza dialógica da produção textual pode ganhar uma
conotação especial, já que o autor acaba necessariamente tornando-se o leitor de
seu próprio texto. Esse movimento de alternância dos papéis de enunciador/
coenunciador,19 a meu ver, está intrinsecamente ligado àquele do ajustamento da
compreensão dos conteúdos, sejam eles linguísticos, sejam relacionados a fatos,
dados ou conceitos.
Mas essa possibilidade existe tanto em situações em que o estudante revisa
e reescreve seu texto logo após tê-lo produzido quanto, e principalmente, ao ser
convidado a retomar sua produção escrita após atividades de estudo em que
ocorra contato com novas informações e pontos de vista. Promove-se, assim, um
afastamento importante, que potencializa a transformação do olhar sobre as
formas e conteúdos de dizer na expressão do que se tem a dizer a partir do forta-
lecimento do papel coenunciador do sujeito.
Quando a produção escrita pode ser retomada pelo estudante num contex-
to diferenciado, dá-se-lhe a possibilidade de, por um lado, expressar efetivamente
o que já sabe e como sabe o que sabe. E, por outro, de constituir seu saber de
forma mediada, uma vez que a escrita, como instrumento interno, reorganiza as

19 Sautchuk (2003) ressalta que, tendo o texto um caráter sociocomunicativo fundamental, o


ato de escrever torna-se uma atividade interativa entre dois enunciadores que operam
dialogicamente o texto num processo. Assim, a produção de sentido ocorre num movimento
no qual o escritor “bifurca-se” em enunciador (ser que escreve) e em coenunciador (ser que
monitora o que escreve).

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 237 27/3/2009, 16:04


238 A história na escola

maneiras de o estudante se relacionar com o que sabe. A produção em processo


permite que o sujeito lance mão da memória de longo prazo e ainda problematize
as concepções em pauta, trazendo à tona elementos que, numa produção feita de
uma só vez, não poderiam ser acessados. A reelaboração implica um movimento
em que o estudante põe em jogo, gradualmente, elementos significativos e mais
ajustados sobre os diversos aspectos da situação analisada.
Num estudo realizado por mim,20 envolvendo a atividade de reescrita por
alunos da 5a e da 8a séries, intercalada por uma situação de leitura e debates, foi
possível demonstrar que as produções dos estudantes se manifestam como parte
de um longo processo, vivido pelo sujeito, de apropriação das dimensões que
envolvem e condicionam a existência. Num primeiro momento, os estudantes
foram convidados a dar sua opinião por escrito sobre uma situação cotidiana,
apontando seus prováveis condicionantes. Com base nos dados que emergiram
da leitura dessas produções, selecionei cinco textos que, a meu ver, “dialogariam”
com as concepções dos aprendizes. Ao mesmo tempo, considerei que eles deveriam
servir de modelo de estratégias do dizer que potencializariam a expressão de suas
ideias, contribuindo também para sua expansão. Esses textos foram lidos em voz
alta para os estudantes no segundo encontro. Antes da leitura, foi esclarecido que
o objetivo da atividade era colher elementos que pudessem ser acrescentados à
produção escrita elaborada no primeiro encontro, a qual seria reescrita na sessão
seguinte. Sendo assim, sugeriu-se que, caso desejassem, fizessem anotações duran-
te as discussões daquilo que mais lhes chamasse a atenção e que eles achassem ser
possível inserir em seus textos. Acenou-se com a possibilidade de esses registros
servirem para lembrar informações apresentadas no debate no momento da rees-
crita. A cada texto lido, os estudantes opinavam sobre o que haviam ouvido,
comentando novos casos ou posicionando-se em relação ao conteúdo.
O momento do debate tornou-se, simultaneamente, espaço de conversa
sobre o conteúdo dos textos e sobre as formas de dizer que os textos traziam.
Foram comuns nas duas turmas perguntas sobre o significado de determinados
termos ou a solicitação de que se repetisse a leitura de alguns dos textos.
Compreendido como uma preparação para a reescrita, esse momento pri-
vilegiou o debate entre os estudantes a partir do comentário de alguns textos,
incentivando um triplo movimento de compreensão das maneiras de dizer e do
conteúdo daquilo que se diz. Um desses movimentos, relacionado ao conteúdo,

20 Dias, 2007.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 238 27/3/2009, 16:04


Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 239

diz respeito à reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelos estudantes,


categorizando-os, o que implica lidar com a língua num patamar metalinguístico.
Outro elemento refere-se aos conhecimentos de mundo, compostos seja por con-
ceitos disciplinares e dados, seja por “scripts, maneiras de encadear ações de for-
ma adequada a alcançar um certo objetivo” e que se localizam na dimensão de um
savoir-faire.21 Por último, pode ainda relacionar-se às experiências do enunciador,
construídas em um determinado ambiente cultural e social, marcadas por esco-
lhas e determinações.
Na terceira e última sessão, realizada após alguns dias da segunda, os estu-
dantes foram convidados a retomar a produção escrita elaborada no primeiro
encontro e a reescrevê-la à luz de uma nova leitura e daquilo que lhes havia cha-
mado a atenção no debate realizado no segundo encontro. Sugeri que consideras-
sem as anotações, caso as tivessem feito.
A análise comparativa dessas produções, além de evidenciar uma série de
mecanismos pelos quais o sujeito se apropria do conhecimento em história,
demonstrou que a reflexão tem uma base moral22 que vai sofrendo ajustes a partir
da mobilização cada vez mais consciente de elementos de sua experiência do tem-
po23 e de sua capacidade de expressão linguístico-discursiva. Sendo indissociável
a relação entre língua escrita e consciência histórica, percebe-se que a apropria-
ção se dá em dois níveis também inter-relacionados: aquele dos conceitos, noções,
informações e valores; e aquele das maneiras de dizer. Os estudantes lançaram
mão de uma série de recursos, que giraram em torno da busca de sentido, com um
duplo propósito: dar significatividade a seu discurso, instaurado numa relação
interlocutiva, com propósitos definidos; e situar sua existência, através da função
que o tempo assumiu em suas narrativas.

21
Maingueneau, 2002:42.
22 De acordo com Rüsen, a consciência histórica está intimamente relacionada à consciência
moral, pois o relato estrutura-se sempre em torno das crenças desse sujeito no presente e de
suas intenções no que respeita à narrativa, incorrendo em decisões linguísticas que evidenciam
sua competência narrativa.
23 A experiência de tempo pode ser caracterizada pela maneira de o sujeito sentir, pensar e
utilizar o tempo em sua narrativa. A narrativa constitui (especificamente) a consciência histó-
rica, na medida em que recorre a lembranças para interpretar as experiências do tempo. Para
a constituição da consciência histórica, a lembrança é, por conseguinte, a relação determinante
com a experiência de tempo. Ver Rüsen, 2001.

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240 A história na escola

É preciso considerar, portanto, que o contato do indivíduo com o conheci-


mento sistematizado é linguístico, o que significa dizer que aprender história é
aprender e apreender discursos.
Não me refiro, no entanto, apenas ao exercício de desvendamento dos “pos-
tos de observação” a partir dos quais os historiadores constroem suas falas. Con-
sidero também a evidência de que a comunicação do conhecimento está determi-
nada pelas formas linguísticas assumidas em um determinado contexto. O sujeito
só apreende conhecimentos quando se coloca numa relação interlocutiva com o
outro. E, por isso, se ensinam pontos de vista discursivamente manifestados.
Em síntese, pode-se afirmar o quanto aprender a escrever está relacionado
com os conteúdos sobre os quais se fala. Consequentemente, o investimento na
aprendizagem dos procedimentos do escritor e na expansão das práticas de uso
social da escrita no espaço do livro didático é uma estratégia de ensino que
potencializa a aprendizagem em história e o desenvolvimento da consciência his-
tórica. Combatem-se, com isso, as crenças de que a aprendizagem da língua escri-
ta é pré-requisito para o estudo dos conteúdos de história e investe-se na perspec-
tiva de que os processos são paralelos e complementares.

Considerações finais

Como um objeto cultural eminentemente configurado pela língua escrita, o livro


didático pode se tornar um aliado fundamental no trabalho de promoção do
desenvolvimento da consciência histórica e da linguagem escrita do ser pensante.
Estando essas aprendizagens imbricadas, parece-me relevante instaurar
processos de produção textual como mecanismos articulados de pensar, produ-
zir, revisar, planejar, reescrever, editar, ler e interpretar. Convidado a retomar
seu texto no decorrer do trabalho de ensino, o estudante tem a chance de rever
posições, colocar-se num novo lugar, acrescentar ou modificar ideias. Investir na
escrita e na reescrita significa, portanto, potencializar a capacidade do sujeito de
refletir sobre o mundo, apropriando-se dele num movimento constitutivo.
Seja como um conjunto de formas, seja como instância discursiva, o tex-
to torna-se um espaço significativo quando tomado como objeto de saída e de
chegada tanto para o ensino da língua, quanto para o da história. Como parte
de um projeto maior de formação do sujeito crítico e letrado, é preciso combater
um ensino de língua escrita centrado nas estruturas, em favor da riqueza da apre-
ensão de inúmeras possibilidades do dizer. É necessário também enfrentar o

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 240 27/3/2009, 16:04


Ensinar e escrever no âmbito do livro didático de história 241

reducionismo de um ensino de história conteudista em prol das possibilidades de


desenvolvimento da consciência histórica.
Nesse embate, o livro didático pode se tornar um importante aliado em
dois sentidos. Primeiro, investindo no desenvolvimento da consciência histórica
mais do que na memorização de dados, fatos ou definições24 e considerando efeti-
vamente o que o estudante já traz, no que acredita, como vê a história e a relação
que estabelece entre esse campo de conhecimento e a sua vida prática. Tal condi-
ção permite que a escrita se torne um importante aliado, na medida em que,
simultaneamente, apoia e engendra o processo reflexivo. Segundo, o trabalho em
que o texto do aluno se torna um espaço de diálogo potencializa as reflexões sobre
a língua escrita, possibilitando a reflexão sobre o sistema de representação num
contexto discursivo significativo, subordinando a aprendizagem do sistema
notacional à comunicação e ao apoio ao pensamento.
Tal posicionamento cria a necessidade de se romper com a lógica instaura-
da na escola e, infelizmente, no livro didático de que o aluno deve ler para apren-
der e escrever para comprovar o aprendizado, pois um texto escrito não é a im-
pressão da ideia no papel. É uma “conversa mediada” que se dá entre o eu interior
e o exterior, num contexto de produção com características determinadas. As-
sim, a compreensão é muito mais do que repetir para o professor o que foi dito
por ele, ou o que foi lido no livro didático. Ela se relaciona com a capacidade do
indivíduo de apresentar uma reflexão motivada pelo contato com o conhecimen-
to sistematizado. E essa reflexão se torna cada vez mais ajustada, cada vez mais
objetivada, na medida em que o indivíduo tem a oportunidade de se debruçar
sobre sua produção oral ou escrita, apropriando-se, simultaneamente, dos meca-
nismos do dizer e daquilo que se quer dizer. Seu produto, portanto, não pode ser
tratado como algo sem processo, absoluto ou já previsto e projetado segundo
modelos estabelecidos a priori.
O livro didático deve deixar claro para o professor que é preciso ler o texto
do aluno como resultado de um conjunto de saberes, de relações, de valores e

24 Importante ressaltar que não se está defendendo o esvaziamento dos conteúdos nas aulas
de História. Pelo contrário, uma boa formação inclui o domínio de dados, informações,
definições, conceitos. No entanto, acreditamos que a ênfase do ensino deva ser em possibilitar
que o sujeito apreenda esses elementos como parte de um processo reflexivo maior, em que,
a partir de questionamentos sobre o presente, ele possa revisitar o passado em suas múltiplas
temporalidades como sujeito da aprendizagem e não como mero espectador de fatos sem
sentido.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 241 27/3/2009, 16:04


242 A história na escola

conhecimentos, e não se se voltar apenas para problemas linguísticos pontuais


como ortografia, gramática e dificuldades estruturais.25 A leitura dos escritos dos
estudantes deve ser feita com olhos de compreensão, reconhecendo o texto como
uma instância discursiva que demonstra os saberes do sujeito e, ao mesmo tempo,
favorece a negociação de novos sentidos ou o enfrentamento de outros proble-
mas. Isso significa assumir uma atitude responsiva ante produções que esperam o
diálogo.26
Por fim, quero ressaltar que investir na aprendizagem da língua escrita
no espaço do livro didático de história significa potencializar a capacidade do
sujeito de refletir sobre o mundo, apropriando-se dele e constituindo a si pró-
prio nessa relação. Trata-se de configurar o aprender como experiência no sentido
benjaminiano,27 em que a retomada da capacidade de narrar significa operar um
deslocamento em que sua humanidade é compreendida no âmbito do coletivo, e
em que o tempo seja o colo que o recebe, o embala e lhe permite enxergar novos
horizontes. Nesse sentido, língua escrita e consciência histórica não se constituem
prioritariamente em objetos isolados que precisam ser apreendidos para tornar o
indivíduo capaz de algo a posteriori. Sua aprendizagem integrada sobre essas
novas bases já é, em si, o próprio processo de transformação e emancipação. E o
livro didático pode ser um recurso fundamental na efetivação desse projeto.

25
Isso não quer dizer que se deva ignorar essas questões e, sim, que elas precisam ser subor-
dinadas à busca de uma melhor expressão daquilo que se tem a dizer. Assim, o primeiro olhar
do professor deve se voltar para a ideia que está sendo expressa, deixando de julgar o texto do
estudante pela quantidade de “erros” ou por suas “faltas”. É a busca da melhor expressão
de sua ideia para um destinatário que esteja realmente interessado nela que apoiará o
processo de reflexão do sujeito escritor sobre o sistema de representação, e não o contrário.
26 Isso significa ler a fala das crianças dentro de determinada situação, dialogar com elas,
adotando uma postura de compreender o que foi dito. “Estamos reiterando a necessidade de
que aquele que ensina a escrever e que, portanto, é o leitor privilegiado dos textos produzidos
pelos aprendizes, possa fazê-lo com os olhos da compreensão, isto é, reconhecer que os textos,
como instâncias discursivas individualizadas, são atravessados por um conjunto de fatores
determinantes. Consideramos que saber detectar nos textos as marcas desses determinantes
é poder começar a receber a palavra do ‘outro’ (do ‘aprendiz’), para poder realizar a atitude
responsiva ativa” (Leal, 2003:56).
27 Benjamin, 1993.

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Capítulo 11

“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de


história: negociando sentidos da história ensinada na
educação básica

Carmen Teresa Gabriel *

Entrando no debate
Este é mais um texto sobre a disciplina escolar “história”. Mais um que, como
outros, aposta na potencialidade heurística do livro didático para pensar ques-
tões relativas ao conhecimento histórico produzido, socializado, ensinado e apren-
dido nas instâncias em que esse saber específico circula. Como as demais escritas,
esta traz a marca da autoria, do lugar de onde se enuncia. Marca comum, a auto-
ria é, no entanto, o que também o diferencia dos outros, pois só pode ser singular.
Singularidade essa expressa na forma de entrar no debate, “carregando” sentidos
disponíveis e projetando outros em disputa nos espaços discursivos em que a
temática “livro didático de história” é pensada.
Neste texto, a reflexão acerca do livro didático de história se faz do lugar do
“ensino de”, sublinhando a positividade da ambivalência presente nessa expres-
são, quando significada como lugar de fronteira entre saberes e fazeres diferencia-
dos. Falar desse lugar implica reconhecer simultaneamente um espaço híbrido de
entrecruzamento de discursos ou formações discursivas distintas — história e
educação — com o potencial subversivo, do ponto de vista tanto político quanto
epistemológico, que pode carregar esse hibridismo1 para pensar a história ensi-
nada nas escolas em nossa contemporaneidade.

* Professora adjunta de didática e prática de ensino de história e do Programa de Pós-graduação


em Educação da FE/UFRJ; pesquisadora do Núcleo de Estudos de Currículo (NEC/UFRJ).
1 Emprego o conceito de hibridismo na perspectiva de Canclini, 1998.

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244 A história na escola

Ao enfocar desse “entrelugar” o livro didático, este emerge aqui, parado-


xalmente, menos como objeto central de minha reflexão do que como um espaço
discursivo, de enunciação, no qual se materializam disputas que envolvem senti-
dos de conhecimento histórico, de escola, de história ensinada, de aprendizagem
de história, produzidos nessas diferentes formações discursivas, evidenciando os
mecanismos de reprodução e subversão de poder que se manifestam no processo
de produção, classificação e distribuição do conhecimento. Essa abordagem, ao
operar de forma articulada com as diferentes funções e condições de produção
desse gênero discursivo característico da literatura escolar, se alinha às pesquisas
sobre o livro didático que buscam superar posições dicotômicas na apropriação
desse objeto, posições essas ainda presentes em estudos sobre essa temática, como
aponta Alain Choppin em seu estudo sobre o “estado-da-arte” das pesquisas so-
bre o livro e as edições didáticas.2
O livro didático é simultaneamente percebido aqui como fonte e como um
artefato cultural produzido em condições específicas. Como fonte, oferece a pos-
sibilidade de analisar e problematizar seu papel na produção de políticas de cur-
rículo, em particular nas relações assimétricas de poder que se manifestam nas
disputas de sentido sobre a história ensinada e que também se encontram em
outros textos ou práticas discursivas. Como artefato cultural, evoca que esse tipo
de análise não pode desconsiderar as condições de produção, distribuição e con-
sumo desse texto curricular específico — o livro didático —, no qual as relações
assimétricas estudadas são recontextualizadas.
Este texto tem por objetivo evidenciar alguns desses processos de recon-
textualização e hibridização de discursos históricos e pedagógicos, salientando
o jogo de disputas políticas e epistemológicas por meio de alguns sinais ou
marcas textuais encontrados nos livros didáticos de história. Para tanto, os
exercícios de história e, em particular, o trabalho com documentos em sala de
aula surgem como gêneros discursivos fecundos para o tipo de análise a que me
proponho.
Estruturei minha argumentação em três momentos. No primeiro, procuro
explicitar as escolhas teórico-metodológicas no campo do “currículo” que orien-
tam minha leitura no campo do ensino de história. No segundo, discuto a ques-
tão das aprendizagens em história a partir da especificidade epistemológica dessa
área do conhecimento, enfatizando o argumento sobre o lugar ocupado pelos

2
Choppin, 2004.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 244 27/3/2009, 16:04


“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 245

exercícios de história nessa disciplina e nesse texto. Por fim, problematizo um tipo
de exercício específico nessa área disciplinar — o “trabalho com documentos
históricos” a partir da análise de alguns fragmentos de discursos sobre documen-
to que circulam em uma coleção didática avaliada positivamente pelo Plano Na-
cional do Livro Didático (PNLD) do MEC, procurando identificar as tensões e
disputas mencionadas.

Livro didático de história: espaço de hibridização e


didatização cultural

A temática do livro didático, em geral, e de história, em particular, tem alimenta-


do estudos e debates em diferentes campos de pesquisa — história, didática, cur-
rículo —, contribuindo para evidenciar as diferentes perspectivas teórico-
metodológicas entre os pesquisadores que se debruçam sobre esse objeto, bem
como a complexidade de sua natureza discursiva e a multiplicidade de suas fun-
ções.3 Essa constatação explica, pelo menos em parte, a riqueza e a pluralidade de
recortes e enfoques possíveis.
Nesta seção, meu propósito é explicitar, entre os diferentes caminhos de
investigação possíveis, aquele que norteia as reflexões deste texto e que incorpora
as contribuições das teorias curriculares críticas e pós-críticas, em particular as
que assumem as implicações políticas, epistemológicas e pedagógicas da
centralidade da cultura na leitura do mundo contemporâneo.
Trata-se de assumir um entendimento de cultura que vá além das perspec-
tivas essencialistas e reconhecer — juntamente com autores representantes dos
estudos culturais4 — seu sentido como estritamente imbricado a uma concepção
de linguagem em que esta não só representa a realidade social, mas também a
constitui em significados. Desse mesmo modo, importa explicitar a percepção da
dimensão política do cultural, tendo como base as contribuições de autores5 que
problematizam os discursos sobre políticas centradas exclusivamente na ação do
Estado, abrindo assim novas possibilidades para pensar o lugar e o papel do livro

3
Sobre a complexidade e a multiplicidade de funções do livro didático, ver Choppin, 2004.
4 Refiro-me particularmente a autores como Hall, 1997; e Canclini, 2005 e 1998.
5 Ver Ball, 1998 e 2001; e Lopes, 2005, 2006 e 2007.

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246 A história na escola

didático nas políticas de currículo. A compreensão da relação entre essa mudança


paradigmática e as concepções de cultura e de política é importante para compre-
ender o próprio sentido de currículo e de livro didático privilegiados neste texto.
Stuart Hall, em texto publicado no Brasil no final dos anos 1990, nos ajuda
a pensar o papel “constitutivo da cultura em todos os aspectos da vida social” a
partir da segunda metade do século XX, sublinhando o “amplo poder analítico e
explicativo” que esse conceito adquiriu na teorização social, bem como seu po-
tencial político nos tempos presentes. Ele chama a atenção tanto para a
centralidade “substantiva” quanto para o “peso epistemológico” da cultura no
mundo em que vivemos. O significante “cultura”, tal como reinvestido de sentido
por Stuart Hall,6 emerge assim como uma “rede de significados”, como um “con-
junto de sistemas de significação” por meio das quais “lemos”, interpretamos e
significamos o mundo. A assunção da centralidade da cultura no plano do pensa-
mento passa a ser assim uma condição de inteligibilidade, um princípio orientador
da leitura no mundo.
O sentido de cultura defendido por Stuart Hall7 é incorporado e de certa
forma radicalizado por Nestor Garcia Canclini8 quando, tendo por base as con-
tribuições do campo da antropologia nesta última década, aposta no adjetivo
“cultural” em lugar do substantivo “cultura”. Desse modo, em vez de entender
cultura como “rede de significados”,9 Canclini investe no sentido de cultura como
“processo de significação”, defendendo o uso do adjetivo cultural, na medida em
que permite pensá-la “menos como uma propriedade dos indivíduos e dos gru-
pos, mas como um recurso heurístico que podemos usar para falar das diferen-
ças”.10
Nessa perspectiva, o que muda no debate ao se modificar o sentido atribuído
ao significante cultura tal como discutido anteriormente é a própria reflexão
sobre o quadro de significação a partir do qual produzimos discursos sobre o
currículo. Ao optarmos por definir cultura como processos de significação, abri-

6 Hall, 1997.
7 Ibid.
8
Canclini, 2005.
9 Hall, 1997.
10 Appadurai, apud Canclini, 2005:48.

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“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 247

mos novas possibilidades para significar a interface currículo e cultura. O enten-


dimento de currículo aqui defendido como “prática cultural de significação”11 ou
como “espaço de enunciação”12 traz indícios da incorporação dessas contribui-
ções por representantes desse campo.
Nesse mesmo quadro de análise, importa ainda sublinhar que uma nova
ordem política do cultural emerge com força, abrindo novas possibilidades de
análise para pensar as interfaces entre currículo, conhecimento e poder. O que
está em jogo, no recorte que aqui interessa, são as disputas pelos sentidos —
como, por exemplo, de escola, de conhecimento oficial, de processo de ensino-
aprendizagem, de história — produzidos em diferentes contextos, e por sujeitos
com poderes diferenciados, onde a questão do ensino de história é pensada. Dito
de outra forma, falar de política de currículo significa falar de processos sociais de
produção, circulação e consumo de significação na vida social.13
Esse tipo de análise torna-se ainda mais fecundo quando se reconhece que
esses processos sociais — permeados de relações assimétricas, envolvendo dispu-
tas pelo hegemônico e tomadas de decisões, como apontam alguns estudiosos do
campo do currículo14 — ocorrem em diferentes contextos, não se limitando ape-
nas à ação ou às decisões do Estado. Esse tipo de ampliação do sentido de política
cultural permite percebê-la como processos de significação em disputa, perma-
nentemente recontextualizados e hibridizados.
Operar com a noção de recontextualização de discursos,15 articulada às de
circularidade16 e hibridismo,17 que incorporam a crítica à noção de hierarquia —
vista como uma verticalização engessada —, amplia o potencial analítico dessas
noções, oferecendo pistas para pensar as políticas de currículo como políticas cultu-
rais que se manifestam de formas mais fluidas, mais oblíquas, e que, em uma pers-
pectiva anti-hegemônica, tendem a implicar o favorecimento da heterogeneidade

11 Silva, 2000.
12 Macedo, 2003/2004, 2006a e 2006b.
13 Canclini, 1998 e 2005.
14 Ball, 1998; Lopes, 2005 e 2006.
15
Bernstein, 1996 e 1998.
16 Ball, 1998.
17 Canclini, 1998 e 2005.

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248 A história na escola

de discursos e de sujeitos.18 Apreendida como um processo cambiante de signifi-


cação das diferentes práticas sociais, a dimensão política do cultural passa a ser
percebida como “algo que se sucede no conflito”, como choque de significados nas
fronteiras, configurando “modos específicos pelos quais os atores se enfrentam, se
aliam ou negociam” e, portanto, como imaginam o que negociam.19
Ao nos debruçarmos sobre as interfaces entre conhecimento, poder e cul-
tura, a compreensão das estratégias de luta utilizadas nessa arena cultural onde os
significados se enfrentam torna-se uma questão crucial para se obter informações
sobre a produção, a distribuição e a classificação dos saberes. Entender as regras
da produção do discurso pelas quais determinados enunciados/saberes só podem
ser ditos em certos espaços e por certos sujeitos, indagar sobre quem tem legitimi-
dade para estabelecer essas regras, explicitar os mecanismos de reprodução des-
tas, explorar as possibilidades de subvertê-las, analisar os discursos produzidos e
que circulam no âmbito do “ensino de” história, tudo isso constitui, assim, um
vasto programa à espera de um enfrentamento apenas esboçado no campo da
epistemologia social escolar. Essa compreensão me parece importante quando
se afirma que o currículo é um espaço de enunciação, um espaço discursivo
onde se produzem sentidos. Como prática discursiva de significação, o currículo
é produzido e produz um conjunto de condições para que as coisas nele ditas
possam ser ditas tal como são ditas e por quem são ditas. Entender o currículo na
perspectiva da ordem do discurso20 permite apreendê-lo como um espaço de luta,
de disputa pela palavra, vista como alvo do exercício de poder.
Nesse quadro de significância, o livro didático pode ser entendido como

um texto curricular que reinterpreta sentidos e significados de múltiplos contextos e


que constitui uma produção cultural a se efetivar nas diferentes leituras realizadas no
espaço escolar. Tais textos recontextualizam21 orientações oficiais, mas também dis-
cursos das escolas, da academia, do contexto internacional e de produções pedagógi-
cas que penetram no mercado editorial. Nessa recontextualização esses discursos são
hibridizados, visando finalidades distintas.22

18 Lopes, 2005:50-64.
19 Canclini, 2005.
20 Foucault, 1996.
21 Bernstein, 1996 e 1998.
22 Lopes, 2007:214.

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“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 249

É essa possibilidade de olhar sobre o livro didático de história que preten-


do explorar neste texto. Assumi-lo como um produto, um artefato cultural
didatizado, no qual são produzidos, recontextualizados e hibridizados sentidos
sobre o que é legítimo de ser ensinado, para quem e por quem. Nessa perspectiva
e entre as diferentes questões que envolvem a produção do conhecimento históri-
co escolar, interessa-me, neste texto, perceber as vozes, os discursos que estão
presentes nesse processo disputando e legitimando, entre outros, o seu próprio
sentido, isto é, o sentido da história ensinada, do conhecimento histórico que se
recontextualiza na esfera de problematização do saber a ser ensinado e aprendido
na educação básica.
Contexto de produção e recontextualização de políticas de currículo,23
espaço de enunciação,24 o livro didático de história é aqui visto como lugar de
produção, distribuição e consumo de saberes/enunciados híbridos, no qual a
presença de diferentes discursos pedagógicos e históricos é uma de suas marcas
mais evidentes na disputa pelos sentidos da história a ser ensinada na educação
básica. A seguir, destaco algumas dessas marcas a partir de um gênero discursivo
— os exercícios —, recorrente nesse tipo de texto curricular, percebido como um
conjunto de “traços” do processo de produção de sentido25 ou um conjunto de
pistas para o processo de interpretação de significados dos saberes a serem ensina-
dos na disciplina história e sobre os quais se criam expectativas de aprendizagem.

Os exercícios nos livros didáticos de história: terreno de


disputa pelo controle social das aprendizagens

A História acadêmica comporta simplesmente todo o passado humano, ela tem ofícios
e metodologias, ela conflui em permanência com outras ciências do homem, e com
outras figuras de conhecimento [...] A história escolar é uma enorme e polivalente lição
das coisas sociais, morais e intelectuais. Ela veicula ao mesmo tempo a conformidade
e a tomada de distanciamento, a continuidade e a reapreciação. Frágil terreno para a
definição simples de aprendizagens específicas.26

23 Lopes, 2007, 2005:50-64 e 2006:33-52.


24 Macedo, 2003/2004, 2006a e 2006b.
25
Fairclough, 2001.
26 Moniot, 1993:36 (grifos meus).

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250 A história na escola

Como sugere a citação, a complexidade da natureza epistemológica do


conhecimento histórico pode chegar a levantar suspeitas sobre a viabilidade de
se falar em “aprendizagens históricas”. Interessa-me aqui menos verificar a
pertinência dessa suspeita do que explorá-la como um traço específico da histó-
ria ensinada na educação básica para pensar sobre os mecanismos de reprodu-
ção e de subversão das regras do discurso no qual é produzido esse saber. Dito
de outra forma, perceber por meio da análise de um tipo de exercício específico
dessa disciplina o processo de recontextualização e de hibridização de discursos
produzidos em lugares diferenciados e produtores de sentidos ambivalentes
sobre a história ensinada. Buscar, pois, no terreno das aprendizagens, as mar-
cas das disputas em torno do controle social do que deve ser considerado legíti-
mo de ser ensinado.
A hipótese com a qual trabalho neste texto consiste em afirmar que a
“fragilidade” desse terreno apontada por alguns estudiosos dessa disciplina pode
escamotear tanto relações de poder assimétricas quanto a possibilidade de
subvertê-las. No primeiro caso, cabe perguntar: a quem interessa essa indefinição,
ou melhor, a superação dessa indefinição, percebida como fragilidade? Quando
se sabe que o saber oferece uma variável de comando bastante sensível, permi-
tindo, a custo reduzido, efeitos espetaculares, sobre os quais a instância política
assegura seu controle, pela intermediação de programas e pelos comentários
oficiais e manuais que os explicitam,27 a presença dessa dificuldade em definir os
saberes a serem aprendidos pode evocar não falta de controle social sobre as
aprendizagens, mas uma estratégia de controle específica, por meio do controle
de discursos hegemônicos sobre a definição do que deve ser ensinado.
No segundo caso, trata-se de positivar essa indefinição, significá-la como
ambivalência a ser explorada como traço de hibridização e subversão; entender
esse “frágil terreno das aprendizagens” como fecundo não só para perceber as
disputas de sentido, mas para pensar em estratégias e posicionamentos contra-
hegemônicos diretamente relacionados ao acesso ao conhecimento histórico na
educação básica.
Falar, pois, de “fragilidade” do terreno das aprendizagens no âmbito do
ensino dessa disciplina escolar, além de evidenciar a complexidade da natureza

27 Chevallard, 1991:30.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 250 27/3/2009, 16:04


“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 251

epistemológica do conhecimento histórico, traz à tona a complexidade do pro-


cesso de reelaboração didática que recontextualiza esse conhecimento em “saber
a ser ensinado e aprendido”, potencializando outros terrenos de disputa e de
negociação de sentidos sobre esse conhecimento. As polêmicas suscitadas desde os
anos 1980 em torno das propostas de reformas curriculares nessa área, e mais
recentemente em relação à política de avaliação dos livros didáticos desenvolvida
pelo MEC, embora possam ser explicadas por outras variáveis, tendem também a
reforçar essa afirmação.
Com efeito, o duplo registro — ciência/consciência, explicação/compreen-
são — sobre o qual se justifica e se constrói o conhecimento histórico torna bem
mais complexa a apreensão dos mecanismos de didatização mobilizados. Não se
trata mais de buscar identificar a matriz disciplinar que serve de referência ao
saber escolar e, sim, de perceber, entre as diferentes matrizes historiográficas que
disputam a hegemonia no campo em determinado momento, os fatores que são
acionados no processo de transposição e os elementos dessas matrizes — objetos
que lhes são específicos, tarefas que elas permitem efetuar, saberes declarativos dos
quais elas se apropriam e saberes procedimentais de que reclamam o domínio —,
que são reelaborados com o intuito de se adaptar às exigências do texto curricular.
Como nesse processo de recontextualização e de hibridização esses dois registros
aparecem articulados? Como se entrecruzam os discursos sobre o ensino de histó-
ria, o que enfatiza uma forma de pensar historicamente e o que prioriza a trans-
missão de uma memória já acumulada e consagrada pelas gerações precedentes?
Como, nesses discursos, são reelaboradas didaticamente a capacidade crítica e a
necessidade de memória?
Ao contrário dos saberes de muitas das disciplinas escolares, descritíveis em
programas por meio de exercícios que se propõem a verificar a aquisição de conhe-
cimentos e de procedimentos, o saber histórico curricularizado não é de fácil trans-
posição. Como os discursos pedagógicos e históricos recontextualizam e hibridizam
sentidos de aprendizado nessa disciplina no terreno dos exercícios? A aquisição de
saberes em história pode ser avaliada em termos do acúmulo de informações sobre
o passado? Ou em termos do domínio de procedimentos para operar com os ingre-
dientes que compõem a intriga narrativa em foco? Ou ainda, em termos da
pertinência da escolha da matriz historiográfica, em função das pressões do presen-
te no qual esse saber é ensinado? Como programar o ensino e as aprendizagens em
história, tendo em vista as tensões permanentes entre compreensão e explicação,
subjetividade e objetividade, sentidos e verdades, memória e crítica?

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 251 27/3/2009, 16:04


252 A história na escola

Henry Moniot28 identifica diferentes expectativas de aprendizado presen-


tes na trajetória de construção da disciplina “história”. Uma primeira, e talvez
ainda hegemônica, considera aprendizagem a aquisição de conhecimentos factuais.
Uma segunda, ainda muito pouco explorada segundo o autor, consistiria no
entendimento do aprendizado como aprendizado de uma “reflexão histórica”,
isto é, de elementos que estão na base do modo de pensar inerente às proposições
propriamente históricas, como o aprendizado da reflexão no tempo histórico e
com este, ou do uso de fontes históricas na tarefa de significar o passado. Um
terceiro tipo de aprendizado diz respeito aos usos sociais e culturais da história.
Nesse caso, esse tipo de aprendizado, de cunho político e cultural, embora nem
sempre reconhecido como tal, pode ser percebido em diferentes situações de ensi-
no como, por exemplo, numa frase muito citada pelos professores dessa discipli-
na: fazer com que os alunos conheçam o passado para melhor compreenderem o
presente, ou ainda nos compromissos assumidos de comemoração, de entreteni-
mento cultural ou de afirmação de pertencimentos identitários.
Nessa mesma perspectiva de definir o sentido de aprendizado no âmbito do en-
sino da história, pesquisadores da área29 propõem organizar as situações de ensi-
no que favoreçam o desenvolvimento do pensamento histórico em alguns blocos
de operação intelectual que precisam estar garantidos no ensino e no aprendi-
zado da disciplina: o das temporalidades, o controle do raciocínio comparati-
vo, o controle das generalizações e a distinção dos níveis de leitura e de escrita.30
O primeiro bloco, que não se confunde, mas inclui o aprendizado da cronologia e o
exercício da periodização, correspondendo talvez à operação intelectual “clássica”
do fazer história, é atribuir sentido a nossa experiência de vivência no tempo.
Essa pluralidade de questionamentos e tentativas de respostas acerca do
sentido do aprendizado em história contribui para reforçar a hipótese anterior-
mente mencionada que sugere problematizar a ideia de inviabilidade ou fragili-
dade do domínio das aprendizagens nessa disciplina escolar e, simultaneamente,
explorar essa “especificidade” tanto para compreender a complexidade do pro-
cesso de reelaboração didática e textualização curricular da disciplina quanto para
reinvesti-la de um potencial subversivo. Ao permitir que se percebam os exercícios
de história como um gênero de discurso marcado textualmente por ambivalências,

28
Moniot, 1993.
29 Lautier, 1997; e Moniot, 1993.
30 Lautier, 1997:125.

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“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 253

essa proposta de análise evidencia as incompletudes dos discursos hegemônicos e


a necessidade da busca permanente de sentidos negociados. Como esses diferentes
discursos vão sendo associados a posições inovadoras ou conservadoras? Quais
são reinvestidos de sentido de mudança curricular e incorporam discursos con-
tra-hegemônicos que circulam nesse campo recontextualizador? Quais reforçam
as políticas homogeneizadoras de controle social do saber em favor de uma lógica
mercadológica bastante presente quando essas disputas são recontextualizadas
nos livros didáticos? O quadro teórico aqui privilegiado permite evidenciar que
as respostas a essas questões são complexas, e que nem tudo que não se deixa
aprisionar por um pretenso discurso homogeneizador é resistência, nem tudo
que busca sintonia com posições ou matrizes historiográficas e pedagógicas
hegemônicas é submissão ao instituído.
Na seção seguinte explorarei essa possibilidade de análise, tendo como
foco os discursos sobre documentos históricos propostos nos livros didáticos
da disciplina.

Exercícios com documentos históricos nos livros didáticos:


recontextualizando e hibridizando antigos e novos discursos
pedagógicos e históricos

A opção por centrar minha análise nos discursos sobre exercícios com documen-
tos sustenta-se pelo fato de esse tipo de exercício concentrar e potencializar vestí-
gios ou marcas textuais que propiciam a apropriação do livro didático de histó-
ria tanto como fonte para análise do seu papel na política de currículo, quanto
como “produto cultural didatizado”,31 nos remetendo ao campo da epistemologia
social escolar, que oferece elementos de reflexão sobre a especificidade do proces-
so de produção do saber histórico a ser ensinado e aprendido na educação básica.
Entre as marcas textuais presentes nos livros didáticos que permitem perce-
ber o papel por eles desempenhado na produção de políticas de currículo desta-
cam-se os discursos produzidos sobre o sentido de inovação curricular. Nas últi-
mas três décadas da trajetória de construção da disciplina escolar “história”, a
tensão entre antigo e novo, conservador e inovador, referente tanto ao conteúdo
quanto aos procedimentos didáticos recontextualizados e hibridizados nos dis-

31 Lopes, 2007 (grifo meu).

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254 A história na escola

cursos das políticas educacionais e nos discursos acadêmicos, cristalizou-se em


torno do adjetivo “tradicional”, ficando os discursos históricos e pedagógicos
associados a posições epistemológicas e políticas conservadoras e obsoletas.
No que diz respeito à apropriação dos discursos históricos pela matriz da
historiografia escolar, a ideia de mudança, de inovação, tem sido feita muito mais
pela oposição às práticas e aos saberes que possam ser adjetivados como tradicio-
nais do que pela associação a uma matriz teórica bem-definida e consensual na
comunidade epistêmica de historiadores e professores de história. Nesse processo
de recontextualização, a apropriação dos discursos históricos para significar
mudança e inovação curricular tende a caracterizar-se pela afirmação de discur-
sos favoráveis à pluralidade de matrizes historiográficas na história ensinada,
embora uma análise mais acurada aponte nos livros didáticos a permanência de
algumas matrizes em detrimento de outras. De maneira geral, embora seja possí-
vel encontrar expressões como “história crítica” ou “história-problema” para
adjetivar e qualificar a história ensinada, as propostas de mudança em textos
curriculares como o livro didático tendem a se resumir, na maioria das vezes,
à intencionalidade explícita de não ser mais “tradicional”. Já no que se refere à
apropriação dos discursos pedagógicos pela matriz escolar, a ideia de inovação
emerge discursivamente em torno do significante “construtivismo” com preten-
sões homogeneizadoras em relação aos discursos pedagógicos que preconizam a
participação ativa dos alunos no processo de aprendizagem.
No campo da história ensinada, o processo de recontextualização e
hibridização desses discursos nas propostas curriculares e nos livros didáticos
tende a fundi-los e confundi-los, podendo ser visto como uma estratégia discursiva
em busca da aceitação e da legitimação do “novo” pelas comunidades acadêmicas
envolvidas. Esse entrecruzamento de discursos inovadores pode ser facilmente
identificado quando se observa a tendência, nesses textos curriculares, de associar
mecanicamente o desenvolvimento das propostas pedagógicas construtivistas com
uma concepção de história crítica em que os sujeitos são percebidos como agentes
de sua própria história. Esse tipo de associação faz parte do discurso presente em
quase todas as propostas curriculares de ensino de história construídas a partir
da década de 1980. É como se a chamada história tradicional, de base positivista,
correspondesse necessariamente a um método de ensino tradicional pautado pela
memorização e, logo, como se a incorporação do discurso construtivista no cam-
po seguisse “naturalmente” o curso dos acontecimentos, marcado pelo combate
ao paradigma positivista e/ou tradicional.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 254 27/3/2009, 16:04


“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 255

A análise dos discursos produzidos nos livros didáticos, em particular no


texto do Manual do professor, sobre os exercícios com documentos históricos
nesse campo de recontextualização específico pode ajudar a compreender melhor
a dinâmica desses processos de associação entre os discursos de uma história críti-
ca e do construtivismo.
Nicole Lautier,32 ao estudar as disputas pelo sentido da história ensinada
mediante a análise dos exercícios nos exames de história do final do ensino médio
na França, sublinhou o lugar crescente ocupado pelos exercícios com documen-
tos nos instrumentos de avaliação de aprendizagem desse conhecimento. Embora
tivessem ocorrido tentativas de introdução do uso de documentos no ensino de
história, a aceitação e o desenvolvimento desse tipo de exercício na primeira me-
tade do século XX, segundo essa autora, teriam se dado em função de esta ter sido
a forma encontrada pela disciplina “história” de se colocar em sintonia com os
discursos pedagógicos que emergiam naquele momento, e que preconizavam a
necessidade de superação de uma pedagogia retórica, tradicional, em prol de
uma pedagogia ativa, na qual o aluno desempenharia papel central no processo
de ensino/aprendizagem.

Este se tornou o pivô da reflexão pedagógica a ponto de preencher as funções múlti-


plas: não mais apenas o tratamento do arquivo, do traço do passado, mas também o
treino da leitura de jornais, da própria imagem e até mesmo de outros suportes que
possibilitam as novas tecnologias educativas. Hoje, se os professores lidam diferente-
mente com a diversidade de suportes eles não colocam em questão a adequação entre
o documento e a pedagogia ativa.33

No Brasil, essa associação entre uso do documento no ensino de história da


educação básica e pedagogia ativa também pode ser facilmente identificada em
textos curriculares, como aponta Circe Bittencourt,34 ao fazer referência às pro-
postas curriculares que justificam o uso didático do documento pelo fato de estes
serem “materiais mais atrativos e estimulantes para os alunos” e estarem “associa-
dos aos métodos ativos ou ao construtivismo”.35

32 Lautier, 1997.
33 Ibid., p. 113.
34 Bittencourt, 2005.
35 Ibid., p. 327.

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256 A história na escola

No caso dos livros didáticos, a passagem extraída do Manual do professor


de uma coleção avaliada positivamente em diversas edições do PNLD também
não deixa dúvidas de que essa associação discursiva traduz uma forma de
recontextualização e hibridização do significado de inovador no discurso da his-
tória ensinada.

A partir da leitura e interpretação dos documentos, é importante que o aluno se


perceba também como sujeito produtor de um conhecimento e de uma história, visto
que ora a subjetividade, ora a objetividade são características do próprio modo de
construção da história.36

O que me interessa aqui não é questionar a validade ou a pertinência desse


tipo de associação e, sim, explorar os exercícios com documentos históricos nos
livros didáticos como uma zona de ambivalência discursiva na qual são negocia-
dos e disputados os sentidos da história ensinada. Nessa perspectiva, defendo que
a busca do equacionamento da tensão entre antigo e novo não se limite a essas
associações discursivas, que também não dão conta, por si sós, das disputas entre
discursos hegemônicos e contra-hegemônicos. Isso significa que a introdução desse
tipo de exercício nos livros didáticos não garante necessariamente a superação,
na matriz da história ensinada, de discursos históricos ou pedagógicos “tradicio-
nais”, do ponto de vista epistemológico, ou de discursos hegemônicos, do ponto
de vista político, na perspectiva de reforçar as relações assimétricas de poder nos
diferentes campos envolvidos. Do mesmo modo, isso não significa que a ausência
dessa associação ou a presença de outras comprometa ou negue a produção, nessa
arena, de discursos com potenciais inovadores ou transformadores.
Nessa perspectiva de análise, a introdução dos exercícios com documentos
históricos pode permitir uma melhor compreensão da disputa pelo controle
social do sentido da história ensinada que fazem, por meio das negociações de
sentidos de diferentes significantes, como a própria noção de documento históri-
co, os que expressam a relação temporal estabelecida com o passado e/ou o equa-
cionamento dado à tensão entre “dever de memória” e “desenvolvimento da ca-
pacidade crítica” no ensino dessa disciplina. Negociações que podem ser
evidenciadas quando se destacam as ambivalências desses sentidos nesses textos
curriculares, trazendo à tona alguns mecanismos discursivos que permitem que

36 Montelato, Cabrini e Catelli, 2000a:14.

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“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 257

antigos discursos pedagógicos e históricos se mantenham hegemônicos na dispu-


ta, embora tendam a ser classificados como inovadores e progressistas. Do mes-
mo modo, positivar essas ambivalências permite destacar algumas subversões de
sentido possíveis, nas quais talvez valha a pena investir discursivamente.
Refletir sobre a ideia de “problematização”, presente nesses textos curriculares
quando ocorrem essas negociações, pode ajudar a sustentar minha argumenta-
ção. Os discursos favoráveis ao uso de documentos no ensino de história recor-
rem frequentemente a esse termo. Tanto a perspectiva construtivista dos discur-
sos pedagógicos quanto a dos discursos históricos que favorecem o ensino de uma
história crítica, científica, rigorosa do ponto de vista teórico-metodológico valo-
rizam a “problematização” do conhecimento histórico.

O documento será sempre interrogado, problematizado, no sentido de superar suas


informações explícitas e perceber as intenções de seus autores ou criadores, suas con-
tradições internas.37

Falar de problematização, nessa perspectiva, é entrar na discussão da cons-


tituição de “sujeitos de saber”, isto é, a forma pela qual os sujeitos se posicionam
e são posicionados em relação aos saberes/enunciados produzidos nas diferentes
formações discursivas. Significa problematizar como alunos, professores e pes-
quisadores são posicionados e se posicionam como “sujeitos de saber”. Significa
também entender que o investimento no sentido de documento histórico é dife-
renciado em função do contexto em que este é produzido. Entre os diferentes
sentidos possíveis atribuídos à expressão “documento histórico” nos exercícios
propostos nos textos curriculares, em qual investir a fim de fortalecer os discursos
históricos e pedagógicos contra-hegemônicos? Deve-se assumir um sentido que o
aproxime da ideia de fonte, reforçando as tendências que procuram inscrever
deliberadamente a história ensinada na epistemologia da pesquisa histórica, como
sugere o trecho que se segue?

Peça fundamental na estrutura da obra, esta seção valoriza um dos instrumentos


básicos do exercício do historiador: a análise dos documentos. A atividade permite o
acesso a mais de uma interpretação da história e/ou o conhecimento dos diferentes
sujeitos e projetos em conflito num determinado contexto histórico. O resultado são

37 Montelato, Cabrini e Catelli, 2000a:5 (grifo meu).

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258 A história na escola

novas ferramentas para a reelaboração das hipóteses iniciais e conclusões provisórias


surgidas no início dos trabalhos do capítulo.38

Ou, como fazem alguns discursos pedagógicos e históricos, deve-se investir


no sentido de documento como recurso didático, instrumento pedagógico eficiente
e insubstituível por possibilitar o contato com o “real”, com as situações concre-
tas, de um passado abstrato, ou por favorecer o desenvolvimento intelectual?39 A
incorporação das contribuições da epistemologia social escolar pode propiciar
pistas para o enfrentamento desse tipo de questionamento.
Uma primeira pista poderia consistir em pensar o termo “problematização”
como uma metáfora do fluxo dos saberes acadêmicos — históricos e pedagógicos
— que são acionados no movimento de transposição didática com o intuito de
enfrentar a crise do ensino dessa disciplina, cuja superação muitas vezes tende a
ser buscada pela adequação do saber escolar às mudanças, às exigências e às necessi-
dades do saber acadêmico, ou melhor, da(s) matriz(es) histórica(s) e pedagógica(s)
presente(s) na disputa pela hegemonia de seus respectivos campos. Contudo, esse
fluxo do saber acadêmico, uma vez recontextualizado, é confrontado com as exi-
gências da esfera de ensino, entre elas a necessária programabilidade da aquisição
do saber, bem como o controle das aprendizagens que são implementadas no
decorrer do processo de transposição, colocando em evidência relações específi-
cas com o saber a ser ensinado e aprendido. Reconhecer essa especificidade permi-
te problematizar a ideia de problematização associada ao exercício com docu-
mentos históricos, na medida em que “abre pistas” para pensar a diferença do
motor de progressão da construção de saber entre as esferas de pesquisa e de
ensino. Enquanto no processo de pesquisa a mola de progressão são “os proble-
mas que se encadeiam e se reproduzem, produzindo uma história intelectual da
comunidade acadêmica onde eles emergem”,40 no processo de ensino, ela é constituí-
da pela contradição entre o antigo e o novo texto do saber. A não diferenciação
dessa mola propulsora em relação à progressão da construção de saberes acar-
reta discursos diferentes sobre o ensino de história, em geral, e sobre os exercí-
cios com documentos, em particular. Um discurso possível consiste na negação

38
Montelato, Cabrini e Catelli, 2000b, seção “Estrutura dos capítulos”.
39 Bittencourt, 2005:327.
40 Chevallard, 1991:65.

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“Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história 259

da problematização ou no “esquecimento dos problemas” no ensino de história,


contribuindo para reforçar os discursos autoritários presentes no campo. Outro
discurso, atualmente bastante recorrente, corresponde à reação oposta, que procu-
ra restituir um lugar central à problematização no ensino, sem no entanto refletir
sobre as condições específicas do lugar onde essa problematização é pensada.
Vale lembrar que meu objetivo em trazer à tona essas zonas de ambiguidades
é explorá-las como espaço discursivo, no qual se negociam as estratégias para
trabalhar com as diferentes tensões. O que está em jogo são os mecanismos obri-
gatórios de textualização e suas implicações para a reprodução e/ou mudança
discursiva e das práticas sociais envolvidas. Em vez de indicar a fragilidade da
área, defendo que essa ambivalência traz as marcas das disputas internas a cada
uma das áreas de conhecimento envolvidas, bem como aquelas entre as propostas
de equacionamento entre os diferentes discursos políticos e epistemológicos que
estão em jogo no presente. Não se trata de negar o potencial pedagógico, epistemo-
lógico e político dos exercícios com documentos em sala de aula. Ao contrário,
considero que a valorização dessa potencialidade pressuponha compreender as
ambivalências de modo a explorar as dimensões que tomamos como subversivas
nesse contexto.
Com efeito, nessa perspectiva, não cabe disputar a legitimidade científica
entre as esferas de problematização dos saberes diferenciados (produção, trans-
posição, utilização, ensino) e, sim, reconhecer as potencialidades e contribuições
específicas de cada uma dessas esferas, sem reforçar posições hierárquicas entre
elas. Esse deslocamento permite, se não desconstruir, denunciar alguns mitos pre-
sentes no campo pedagógico e historiográfico, como o da conformidade das ne-
cessidades em saberes entre a esfera de produção e do ensino de determinado
saber, que estão na base de muitas reformas curriculares fracassadas. Ao procu-
rar contribuir, neste texto, para dar visibilidade à complexidade da problemática
dos saberes no campo da história, defendo que tal complexidade exige um
estreitamento do diálogo entre os campos da educação e da história, em novas
bases, isto é, a partir de uma relação de equivalência de posições entre os sujeitos
representantes de ambos os campos.

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Parte III

PERSONAGENS: ÍNDIOS E NEGROS

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Capítulo 12

A história, o índio e o livro didático:


apontamentos para uma reflexão sobre o saber
histórico escolar*

Mauro Cesar Coelho**

O objetivo deste capítulo é considerar a presença indígena no livro didático. Não


se trata de questão inédita. A incidência da presença indígena, a representação de
que é objeto e o lugar que lhe é dispensado no conhecimento veiculado sobre o
passado têm sido suficientemente trabalhados, tanto em estudos específicos, quan-
to em obras voltadas para a compreensão da literatura didática.1
A reflexão a seguir pretende destacar, no entanto, a relação existente entre
o conteúdo presente no material didático relativo às populações indígenas e o
saber histórico escolar. Minha intenção é evidenciar que os autores de obras didá-
ticas conjugam duas matrizes na elaboração de seus textos: a cultura histórica e o
saber escolar. Assim, contribuem para a formação/reprodução de uma cultura
histórica relativa ao passado brasileiro, segundo a qual às populações indígenas
cabe o papel de vítima.
O texto está dividido em três momentos. No primeiro, tratarei de cultura
histórica.2 Em seguida, ocupar-me-ei do livro didático enquanto suporte especí-

* Este texto recebeu a contribuição crítica dos componentes do grupo de pesquisa de Oficinas
da História, quando de sua apresentação no seminário Os Livros de História na Escola: Traje-
tórias e Usos. Posteriormente, foi agraciado com considerações pontuais de Helenice Rocha e
Marcelo Magalhães. Wilma de Nazaré Baía Coelho o leu e sugeriu ajustes. Agradeço a todos.
** Professor adjunto da UFPA.
1 Ver, entre outros, Nosella, 1979:181-184; Menezes, 1983:51-58; Faria, 1984:34-37; Guima-
rães, 1989:47-54; Lima, 1995:407-419; Bittencourt, 1997:81-84; e Rodrigues, 2005:287-296.
2 Sobre cultura histórica, ver Le Goff, 1996:47-76.

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264 A história na escola

fico — ressaltando sua condição de produto híbrido, relacionado a diversas ins-


tâncias, destacando o saber escolar. Por fim, analisarei o lugar dispensado às
populações indígenas, em especial a relação desse lugar com a memória histórica
e a historiografia.
Antes de iniciar a reflexão propriamente dita, cabe esclarecer que a análise
a seguir restringir-se-á aos conteúdos relacionados ao chamado “período co-
lonial”. Assim, a presença das populações indígenas será vista por meio de sua
inserção nos conteúdos das 5a e 6a séries do ensino fundamental.3

Populações indígenas e cultura histórica

Penso que qualquer consideração sobre a constituição de uma cultura histórica


relativa ao passado colonial deva partir da gênese da própria historiografia bra-
sileira — o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi nessa instituição que,
segundo Manuel Luís Salgado Guimarães, se deu início à reflexão sobre a formu-
lação de uma história nacional.4 Ali, definiram-se limites e personagens de uma
história do Brasil na qual o índio — tomado como categoria abstrata — ocupava
lugar destacado. Adeptos de uma concepção linear da história e, em certa medi-
da, influenciados pelo romantismo europeu, os acadêmicos do IHGB buscavam
reproduzir no Brasil as narrativas históricas em voga na Europa.
Enquanto lá se produziam histórias nacionais, que percebiam a gênese da
nacionalidade no universo medieval, os acadêmicos do instituto brasileiro trata-
ram de produzir sua versão nativa do mesmo drama. Preocupados em distinguir
— no duplo sentido da palavra — o passado colonial do que projetavam para a
emergente nação imperial, substituíram os heróis medievais europeus por repre-
sentantes das populações indígenas. Traçavam, assim, uma linha evolutiva que
partia daqueles representados e culminava neles próprios.5

3 A escolha se deve ao recorte estabelecido para uma outra pesquisa que realizo, juntamente
com as doutoras Rosa Elizabeth Acevedo Marin e Wilma de Nazaré Baía Coelho, professoras
da Universidade Federal do Pará, e com o doutor Jonas Marçal de Queiroz, da Universidade
Federal de Viçosa. A pesquisa tem por título Etnia e Diferença no Universo Escolar: um Estudo
sobre os Conteúdos Étnico-Culturais na Educação e o recorte busca priorizar as séries que
mais discutem questões relativas à identidade.
4 Guimarães, 1988:6.
5 Ibid., p. 11.

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A história, o índio e o livro didático 265

Fruto desse investimento foi o indigenismo brasileiro. Segundo Oscar


Quintanilha, o indigenismo foi uma estratégia adotada em alguns Estados ame-
ricanos, a qual elegia o índio como um dos apanágios da identidade nacional.6
Esse indigenismo pode ser mais bem percebido por meio de duas importantes
personagens literárias: Iracema e Peri, criadas por José de Alencar.7 Ambas
vivem o mesmo drama: o sacrifício de sua origem — e mesmo de suas vidas —
em favor daqueles a quem amam. Iracema, da obra homônima, e Peri, de O
guarani, anulam-se em favor dos portugueses. Assim, segundo a narrativa ro-
mântica, o lugar das populações indígenas seria, justamente, o de se anularem
em favor daqueles que representavam a civilização — os europeus.8 Na busca
por um símbolo nacional, um herói que reunisse os valores da nação nascente,9
o romantismo acabou por suprimir dele uma de suas características mais im-
portantes, a independência, e, ao fazê-lo, proferiu um veredicto involuntário:
tornou-o um herói sem vontade.
A produção ensaística, levada a cabo pelos intelectuais do último quartel
do século XIX e primeiro do século XX, redimensionou a imagem do índio, não
obstante tenha enfatizado sua condição subserviente. Resultado em larga medida
da adoção de aspectos das teorias raciológicas surgidas no último quartel do
Oitocentos, tais formulações sobre o passado colonial estenderam às populações
indígenas a condenação direcionada ao mestiço e ao negro.10 De heróis valorosos
— ainda que a serviço dos conquistadores — os índios foram relegados à condi-
ção de indolentes, incapazes de realizar tarefas sistemáticas, e responsáveis por
uma malfadada herança para a sociedade brasileira: a preguiça. As análises desse
período enfatizaram o caráter supostamente passivo da índole indígena, retiran-
do definitivamente o índio do panteão dos heróis nacionais.
Mesmo aqueles que realizaram importante inflexão na forma de compre-
ender o passado até o momento em que produziram suas obras não deixaram de
alimentar esta última ideia. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio

6
Quintanilha, 1990:18-33.
7 Ver Alencar, 1964/1965.
8 Sobre essa questão, ver especialmente Bosi, 1992:176-193.
9 Sobre esse aspecto do romantismo brasileiro, ver Silva, 1994:57-60; e Carrizo, 2001:39-43.
10 Sobre a emergência das teorias raciológicas no Brasil e sua apropriação nas análises sobre

o passado, ver Schwarcz, 1993.

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266 A história na escola

Prado Júnior, em suas obras germinais, enfatizaram a incapacidade indígena para


enfrentar o trabalho agrícola. Em que pese à importância que a presença indígena
tem em cada uma daquelas obras — inédita até então —, todas trataram da
substituição da mão-de-obra escrava indígena pela africana como tendo sido
resultado da incapacidade indígena de lidar com a complexidade das tarefas agrí-
colas e de sua pouca resistência física.11
Essa imagem do índio na literatura sobre o passado colonial brasileiro
ultrapassou as fronteiras dos institutos, gabinetes e bibliotecas. O cancioneiro
popular foi generoso em formulações, nas quais a diversidade indígena é resumi-
da a uma representação única, muito próxima dos ícones Iracema e Peri. Desde
Índia, a guarânia que ganhou versão brasileira, introduzida em nosso cancionei-
ro por Cascatinha e Inhana e eternizada por Gal Costa, o índio, no mais das vezes,
é relacionado às sensações, à natureza e, não raro, à barbárie.
Em Índia, ressaltam-se a sensualidade e a paixão. Canta Brasil,12 espécie de
hino informal, irmão dileto de outro samba-canção-entidade-nacional, Aquare-
la do Brasil,13 reitera o mito das três raças formadoras, sugerindo uma versão
sobre a fundação da música popular brasileira: o Brasil teria herdado das flores-
tas seus ritmos bárbaros. Um índio, de Caetano Veloso, apresenta-nos um índio
profeta, sintonizado com as forças da natureza e acusador das violências infligidas
a seus pares. Todo dia era dia de índio, de Jorge Benjor, enaltece a figura do índio
integrado à natureza, ecologicamente correto, vítima da ambição do branco.
Algo muito próximo do conteúdo de Tribo dos carajás. Este samba de Martinho da
Vila relata a história de Ajuricaba e sua tribo, a qual sempre sonhara em viver
da natureza até que o “homem branco chegou/ pra construir, pra progredir, pra
desbravar/ e o índio cantou/ o seu canto de guerra/ não se escravizou/ mas está
sumido da face da terra”.
Como se pode notar, a cultura histórica formulada desde a criação do
IHGB elaborou uma categoria — índio — na qual incorrem certos atributos:
submissão — ao europeu, à natureza —, sensualidade, preguiça e uma valentia
que não serviu para a afirmação de seus valores e, sim, para o seu desaparecimen-
to. Gestada nos meios acadêmicos, ela ganhou o cancioneiro popular e assumiu

11
Freyre, 1996:242-243; Prado Júnior, 1999:26-27; e Holanda, 1979:17.
12 Letra e música de David Nasser e Alcir Pires Vermelho.
13 Letra de Ary Barroso.

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A história, o índio e o livro didático 267

um lugar na cultura: fala-se hoje de programa de índio, indicando-se uma situa-


ção em tudo desfavorável. Índio passou, assim, a denominar uma categoria asso-
ciada à desvantagem, à derrota antecipada. O programa de índio consubstancia
uma relação desigual, na qual o prejuízo, o desconforto, a insatisfação são os
únicos resultados possíveis.
A produção historiográfica em larga medida reproduz e alimenta essa re-
presentação das populações indígenas, ou, mais amiúde, conforma uma concep-
ção de índio em tudo avessa às possibilidades de investigação. Iracema e Índia
sobrevivem em trabalhos que enfatizam a cooperação havida entre ameríndios e
europeus. Neles, o passado colonial é visto como um momento de gênese das
instituições nacionais.14 Tais trabalhos minimizam os conflitos e destacam os
momentos de cooperação, percebidos nas construções de vilas, no desbravamento
de caminhos pelos sertões e no estabelecimento de parcelas das populações indí-
genas em núcleos coloniais.15 Outros trabalhos dão sobrevida àquela representa-
ção ao assumirem as populações indígenas como tábulas rasas, nas quais o euro-
peu pôde inscrever o que bem quis. Destacam-se, aqui, as iniciativas de civilização,
considerando-se os núcleos populacionais resultantes como obras exclusivas de
europeus — missionários, frequentemente. A participação indígena resume-se,
em larga medida, à reação aos estímulos europeus.16
Em grande parte, a produção historiográfica padece ante uma questão de
difícil solução. Os arquivos não dispõem de muitos documentos que viabilizem o
acesso à visão que as populações indígenas formularam sobre o que lhes ocorria,
diante da expansão da presença alienígena. Daí que boa parte da historiografia
acadêmica relativa à presença indígena refira-se às políticas indigenistas. A oferta
de documentos sobre as iniciativas metropolitanas de controle das populações
indígenas é grande e a produção bibliográfica é pródiga em análises sobre os
diversos aspectos desse aparato legislativo.17 O mesmo se dá com documentos que
expressam a visão que os europeus construíram acerca das populações indígenas.

14 Sobre essa perspectiva histórica, ver Gramsci, 2002.


15
Como em Hurley, 1938:6, 11, 13-16; Reis, 1993a, v. 1, p. 20-23 e 1993b:47-58; e Cortezão,
1972:2.
16 Como em Neves, 1978; e Alencastro, 1991:97-119.
17 Como em Kiemen, 1954; Arnaud, 1973; Hemming, 1978; Belloto, 1988; Chaim, 1994; e

Perrone-Moisés, 1992.

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268 A história na escola

Disso resulta significativo volume de trabalhos sobre as representações elabora-


das sobre o índio.18
Só muito recentemente, verifica-se uma inflexão importante na produção
historiográfica, relativa à forma pela qual as populações indígenas têm sido vis-
tas. Estudos realizados desde a década de 1970, inicialmente em língua inglesa,
redimensionaram o lugar do índio no passado colonial, abandonando a ideia de
tábula rasa e considerando-o um agente histórico pleno. Tais trabalhos não re-
correm à categoria índio, formulando uma ideia genérica das populações indíge-
nas. Ressaltam a política indígena, enfatizando o fato de aquelas populações pos-
suírem uma pauta, segundo a qual escolhas eram feitas, de modo que alianças,
guerras, fugas, migrações etc. teriam correspondido a uma percepção do que
ocorria ao seu redor.19

O livro didático e o saber escolar

O livro didático é um recurso de dimensões diversas.20 É um material de formação


escolar, pois informa, instrui e educa. Constitui-se, fundamentalmente, como
instrumento de organização e transmissão de conhecimento, tornando acessíveis
a crianças e adolescentes o saber de caráter acadêmico. É, não obstante, um pro-
duto do mercado editorial, pois obedece a um conjunto de regras do mercado do
livro, de modo a conformar-se como produto aceito e consumido.21
Sua importância no processo educacional brasileiro é inegável. A produ-
ção bibliográfica que lhe é relativa é unânime em afirmar sua preponderância em

18 Como em Franco, [s.d.]; Pinto, 1991:49-72; Belluzo, 1995:47-58; e Raminelli, 1996. Estes
últimos trabalhos estão relacionados a uma forte linha de pesquisa de matriz europeia, com
grande repercussão no Brasil, por meio de dois autores em especial: Gerbi, 1993; e Letringant,
1997.
19 Como em Schwartz, 1999; Monteiro, 1994; e Kern, 1994:32. Sobre a denúncia do etnocídio,
ver Dean, 1984; e Monteiro, 1991a:137-167. Sobre os processos de resistência e a consideração
da política indígena, ver Monteiro, 1991b:130-135; Vainfas, 1990/1991:105, 123-124 e 1995;
Domingues, 2000; Sommer, 2000; Sampaio, 2001; e Dreyfus, 1993:31-36.
20Por livro didático entendo o livro adotado pelo professor, com vistas ao acompanhamento
do conteúdo curricular, de forma sistemática e cotidiana.
21 Oliveira, 1972:14; Franco, 1982:17-19; Lima, 1995:407; Zamboni, 1996:246-248; Villalta,
1996:223-224; e Bittencourt, 1997:71-73.

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A história, o índio e o livro didático 269

relação a outros recursos didáticos,22 por motivos diversos: trata-se do recurso


utilizado pela grande maioria dos professores, não apenas como recurso didáti-
co, mas como material de consulta para a preparação de aulas;23 em função do
encadeamento que faz dos conteúdos, funciona como o currículo adotado em
Estados nos quais os currículos não são entendidos pelos professores;24 e, por fim,
constitui, para larga parcela da população, o único contato com o livro.25
Essa presença quase absoluta faz do livro didático um instrumento pode-
roso, no processo de ensino e aprendizagem, o qual suscita um volume significa-
tivo de trabalhos que analisam sua natureza. Segundo estes, o livro didático deve
ser entendido tanto como um instrumento de apresentação e sistematização de
conteúdos e estratégias didáticas, quanto como um suporte de representações.26
Todavia, a literatura aponta uma inflexão ocorrida em meados da década de
1980, com a introdução da avaliação oficial dos livros a serem oferecidos às redes
públicas de ensino. Considerando a produção didática de história, percebe-se, a
partir de então, a incorporação de temas e perspectivas que demarcaram, desde
50 anos antes, uma renovação do conhecimento histórico.
Confrontar as concepções de ensino de história nos livros produzidos antes
e depois da introdução daquela avaliação ultrapassa os limites que me proponho.
No entanto, devo considerar o que diz literatura, com vistas a pontuar meu
argumento. A produção anterior à instituição da avaliação oficial é caracteriza-
da como submissa às prescrições oficiais, distanciada da realidade do aluno, indi-
ferente às diferenças regionais, afeita à visão esquemática da realidade e com visão
de história limitada à atuação de homens ilustres, ainda que demonstre interesse
na introdução de novos parâmetros explicativos.27 A produção subsequente, a
despeito das inovações, consubstanciadas na atenção dispensada a novos atores,

22 Oliveira, 1972:15-16; e Oliveira, Guimarães e Bomeny, 1984:12-13.


23Franco, 1982:15; Vargas Neto, 1986:2; Silva, 1987:9; Pinsky, 1998:93-94; Caimi, 1999:26; e
Souza, 1999:57-64.
24 Oliveira, Guimarães e Bomeny, 1984:73.
25 Franco, 1982:16; Molina, 1987:18; e Couto et al., 1989:29.
26 Nosella, 1979; Franco, 1982; Abud, 1984; Oliveira, Guimarães e Bomeny, 1984; Höfling,
1986; e Caimi, 1999.
27 Franco, 1982:22; Vesentini, 1984:74; e Höfling, 1986:201.

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270 A história na escola

temáticas e enfoques, perpetua algumas dessas limitações e acrescenta outras:


visão fatalista do processo histórico, recurso excessivo à imaginação, mitificação
de personagens históricas, adoção de sentimentos humanos como parâmetros de
análise, uso indevido de conceitos e cristalização de alguns eventos, constituindo
um repertório restrito de fatos da história.28
A consideração do que diz a literatura analítica do livro didático sugere
que algumas questões não sofreram alteração, a despeito dos avanços consegui-
dos nas duas últimas décadas. Entre elas destaco a natureza do conhecimento
histórico no âmbito da educação básica. Em certa medida, em que pese à renova-
ção refletida nas obras didáticas recentemente editadas, a história permanece
sendo concebida como a disciplina responsável pela formação cívica e moral (o
que às vezes quer dizer a mesma coisa) de crianças e adolescentes.
Uma análise mais detida sobre o que diz a literatura acerca do conhecimen-
to veiculado nos livros didáticos pode nos esclarecer sobre o saber que produzem.
Ao final do Estado Novo, um decreto estabeleceu interdições ao conteúdo: incita-
ção à luta de classes e raças; desrespeito ou desamor à virtude, à escola, às institui-
ções nacionais, à família e ao professor; e, por fim, oposições ao regime político
não poderiam fazer parte do conteúdo, direta ou indiretamente.29 Não obstante,
como nota Maria L. P. Barbosa Franco, na bibliografia didática das décadas
posteriores, o tratamento dado à categoria “povo” suscitava o contrário, ainda
que não incitasse à luta de classes. A simplificação era de tal ordem que a categoria
“povo” era entendida como a classe trabalhadora, explorada por uma classe do-
minante.30 Ou seja, a sociedade era percebida por um viés dicotômico e simplista,
conforme atesta a pesquisa de Kátia Maria Abud, segundo a qual os livros didáti-
cos perpetuavam uma visão de história pautada pela ação dos heróis.31
José Alberto Baldissera, que, ao contrário das autoras citadas no parágra-
fo anterior, tratou de uma produção já construída no contexto do Plano Nacio-
nal para o Livro Didático (PNLD), verificou que muitos conceitos eram apenas
informados aos leitores, sem constituírem objeto de reflexão.32 Em outro traba-

28
Zamboni, 1996; Furtado, 1996:238-242; e Bittencourt, 1997.
29 Franco, 1982:22.
30 Ibid., p. 36-38.
31 Abud, 1984:83.
32 Baldissera, 1997a:82-94, 100-102.

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A história, o índio e o livro didático 271

lho, o mesmo autor considerou que o conteúdo histórico era apresentado como
algo pitoresco, como um conjunto de ideias e fatos inquestionáveis.33 Flávia Eloísa
Caimi indicou que a maior parte dos livros analisados por ela apresentava uma
abordagem isenta de conflitos, na qual a multiplicidade da leitura historiográfica
não tinha lugar; ainda segundo ela, poucos autores apresentavam concepções de
história que permitiam aos alunos e professores se perceberem como sujeitos do
processo de conhecimento.34 O que, por extensão, implica considerar-se como
sujeitos do processo histórico.
Sonia R. Miranda e Tânia R. de Luca apontam para o fato de que, a
despeito das inovações introduzidas desde a instituição das análises dos livros
didáticos, grande parte deles reproduz a cultura histórica posta, com aborda-
gens acontecimentais e informativas.35 A confrontação das análises relativas ao
período anterior à formalização das avaliações oficiais com aquelas realizadas
sobre um material analisado pelo PNLD coloca o problema da permanência de
uma visão de história distanciada do conhecimento histórico produzido nas
últimas décadas.
Para Araci R. Coelho, o descompasso verificado entre abordagens e con-
teúdos presentes nas reflexões acadêmicas e o que se apresenta no livro didático
deve-se à natureza distinta de uma e outra produção. Enquanto a primeira apro-
xima-se do discurso da ciência, a segunda deve “gerar aprendizagem”.36 A primei-
ra promove um saber que não é o saber escolar — aquele formulado para ser
apropriado por crianças e adolescentes em diferentes estágios de formação. Se-
gundo Araci Coelho, o saber escolar seria aquele voltado para a formação
cognitiva do aluno, daí a necessidade de cortes e simplificações, de modo a permi-
tir sua emergência.37
Sobre essa questão, Paulo Knauss elabora crítica importantíssima: ao
desvincular-se do pensamento científico, o ensino de história — e seu livro didá-
tico — viabiliza a permanência de um aporte moral na abordagem da disciplina.

33 Baldissera, 1997b:95-104.
34 Caimi, 1999:86-87.
35
Miranda e Luca, 2004:136.
36 Coelho, 2005:239.
37 Ibid., p. 241.

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272 A história na escola

A própria função histórica do ensino de história — formar o cidadão — fomen-


tou uma pedagogia do civismo, na qual o aprendizado de valores e padrões de
comportamento pontifica absoluto.38 Sugiro, portanto, concordando com os
últimos autores, que o livro didático trabalha uma concepção específica do saber
histórico, a despeito das mudanças ocorridas na última década, percebidas pela
literatura especializada. Uma visão moral permanece operando nos livros didáti-
cos, com o objetivo de inculcar tanto valores cívicos quanto preocupações sociais.
Nesse sentido, o compromisso com a lógica da construção do conhecimento his-
tórico, como bem aponta Knauss, é suplantado pela preocupação em divulgar
preceitos morais — cívicos, culturais e políticos.

O índio e o livro didático

Analisei, para este trabalho, 12 livros didáticos publicados entre 1992 e 2005. A
seleção das obras respeitou duas ordens de problemas: primeiro, terem sido
adotadas em escolas (públicas ou particulares) do município de Belém, no estado
do Pará; segundo, permitirem uma visão inicial sobre as possíveis transformações
das obras didáticas em um processo de consolidação da avaliação instituída pelo
PNLD. Privilegiei os livros destinados à 5a e à 6a séries, notadamente os que mais
fazem referência às populações indígenas.
De imediato, pude perceber uma enorme inflexão no tocante a como as
populações indígenas são introduzidas nas abordagens, caracterizada pelo espa-
ço que lhes era dispensado. Livros produzidos na década de 1990 reservavam
poucos capítulos para a história das populações indígenas. No mais das vezes, o
analista encontra nos volumes destinados à 5a série um único capítulo, relativo
aos impérios americanos — astecas, incas e maias — e/ou à pré-história [sic]
brasileira, e outro relativo aos desdobramentos da conquista.39 Já com relação
aos livros da 6a série, verifica-se que as populações indígenas não eram objeto de
qualquer capítulo, tema ou conteúdo específico; encontravam-se referidas em
meio a outras temáticas, como o comércio do pau-brasil e a expansão bandeiran-
te. Nesta primeira década do século XXI, os espaços destinados às populações

38 Knauss, 2005:281-283, 286-289.


39 “Antes de Colombo: os impérios americanos, os filhos do sol” (Valadares, Ribeiro e
Martins, 1992a); “A pré-história brasileira” (Silva, F., 1994); “A pré-história brasileira” e “O
impacto da conquista” (Cotrim, 1996).

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A história, o índio e o livro didático 273

indígenas aumentaram. Os livros da 5a série trazem seções inteiras sobre os pri-


meiros habitantes da América; e, nos dedicados às séries seguintes, há seções com-
pletas voltadas para a temática indígena.40
Não é o alargamento do espaço destinado às populações indígenas, contu-
do, o que demarca a nova produção bibliográfica didática, mas o aporte pelo
qual o conteúdo a elas referente é apresentado. Com relação a este, verifica-se que
a produção didática oscila entre a reprodução da bibliografia acadêmica e a ma-
nutenção da cultura histórica já existente. Esse comportamento é decorrente de
um outro, que funda a própria relação de ensino e aprendizagem, referente ao
conhecimento histórico: a garantia do saber histórico escolar.
Entendo por saber escolar o saber produzido e trabalhado com vistas ao
desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente, no processo de formação
básica. Assim, ele se distingue do conhecimento acadêmico por não ser seu objeti-
vo produzir ciência e, sim, cognição — tendo aquele conhecimento como base.
Nesse sentido, pode-se dizer que o conteúdo escolar conjuga o conhecimento
acadêmico com as competências e habilidades que a criança e o adolescente de-
vem desenvolver — cognitivas, comportamentais e morais.41
Em relação a isso, a trajetória da história, como disciplina da educação
básica, raramente esteve relacionada ao ensino ou à divulgação dos progressos do
conhecimento histórico. Os procedimentos do ofício do historiador — trato com
fontes primárias, estratégias de investigação, formulação de hipóteses e de mode-
los explicativos — pouco fizeram parte dos conteúdos relacionados à disciplina.
Tradicionalmente, esta última esteve comprometida com o ensino de valores
morais e cívicos (frequentemente vistos como a mesma coisa) e com a construção
da identidade nacional.42 Mesmo desde a abertura, que demarca a distensão da
ditadura militar, a partir de quando a história vem buscando se libertar da sua
vocação inicial, ela assumiu para si a responsabilidade de inculcar um novo
paradigma moral, consubstanciado no aluno/cidadão crítico, atento às desigual-
dades sociais e pronto a agir com vistas à construção de um mundo mais justo.

40 “Os primeiros habitantes da América” (Piletti e Piletti, 2001a); “Europa e América: um

duplo descobrimento” e “Os portugueses na América” (Piletti e Piletti, 2001b); Silva, F., 2001a
e 2001b.
41 Sobre saber escolar há uma imensa produção. Remeto os leitores a dois textos que situam

a discussão que lhe é relativa: Vademarin, 1998; e Valente, 2003.


42
Knauss, 2005.

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274 A história na escola

O que se verifica na análise dos livros selecionados é uma gritante ambiguidade:


enquanto, por um lado, se percebe um processo de redimensionamento do lu-
gar das populações indígenas na composição dos conteúdos, em tudo atento às
pesquisas mais recentes, por outro, nota-se a permanência de aportes que se apro-
ximam daquela antiga vocação: as populações indígenas são representadas con-
forme aquela cultura histórica que as via como ingênuas, vítimas dos colonizado-
res, cujo traço cultural fundamental era, fora a preguiça, a relação com a natureza.
Argumento que a manutenção da cultura histórica, por paradoxal que
pareça, volta-se para a formação daquele aluno/cidadão crítico. A ênfase no cará-
ter ingênuo e na condição de vítima, atribuídos às populações indígenas, corresponde
ao objetivo de desenvolver nos alunos o compromisso com um ideal de justiça social
e um paradigma moral. Em ambos os casos, os ideais de justiça e de moralidade
compreendem um enorme grau de compaixão, obliterando o desenvolvimento
das habilidades relacionadas ao raciocínio analítico.
Um dos pontos que permanecem inalterados, a despeito da inflexão ocor-
rida, é a crença de que as populações indígenas viviam em um mundo idílico,
cujas principais características seriam o uso coletivo da terra e o usufruto comum
de bens.43 Mesmo quando tratam das sociedades dos planaltos mexicano e andino,
todas as relações de poder (e de violência) que submetiam diversos povos a uma
única etnia são amenizadas, ainda que referidas. O que se verifica é o destaque
dado ao grau de desenvolvimento daqueles povos, muitas vezes comparado ao da
Europa.44
Não por outra razão, a literatura didática reitera o mito do idílio anterior à
conquista enfatizando o caráter ingênuo das populações indígenas. Esse caráter é
salientado, em primeiro lugar, pela representação do índio como um ignorante que
não domina a lógica das coisas. Assim, ao tratarem das primeiras relações de troca
envolvendo nativos e europeus, referentes ao pau-brasil, os livros ressaltam o fato
de a troca ser desigual: madeiras preciosas, importantes por suas propriedades
corantes, eram trocadas por pedaços de espelhos, penas, tintas, enfeites — não raro
classificados como bugigangas — e, esporadicamente, algumas ferramentas.45

43Valadares, Ribeiro e Martins, 1992a:55 e 1992b:123, 151-152; Silva, F., 1994:20 e 2001b:150-
151; Cotrim, 1996:55; Schimidt, 1999:141, 192; e Piletti e Piletti, 2001b:82-87 e 2005:124, 126-
127.
44 Valadares, Ribeiro e Martins, 1992a:83-87; e Piletti e Piletti, 2001b:74.
45 Valadares, Ribeiro e Martins, 1992b:126; Silva, F., 1994:34; Schimidt, 1999:154; Silva, F.,
2001a:154; e Piletti e Piletti, 2005:124.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 274 27/3/2009, 16:06


A história, o índio e o livro didático 275

O esquema montado pelos europeus para a extração de pau-brasil dependia muito do


trabalho dos índios. Eram eles que derrubavam as grandes árvores de até 15 m de
altura. Depois cortavam-nas em pequenas toras e, por fim, transportavam-nas ao
local de embarque dos navios (feitorias). No início, o trabalho do índio foi conseguido
de forma amigável, por meio do escambo (troca de trabalho por mercadorias). Em
troca do difícil trabalho, o europeu dava ao índio uma série de bugigangas e quinqui-
lharias: pedaços de tecido, espelhos, às vezes facas e canivetes.46

O fato de espelhos, penas, tintas e enfeites terem sido importantes para as


cerimônias rituais, adquirindo um significado novo no âmbito das culturas nati-
vas, não é considerado, em favor de uma simplificação da vida daquelas popula-
ções. Essa simplificação corresponde ao objetivo de apresentar uma visão
dicotômica e moralizante do plexo de relações havidas entre nativos e europeus.
Não raro, lê-se que a matriz do problema seria a presença da ambição no caráter
europeu e a sua ausência no caráter nativo. Assim, os europeus são caracterizados
como praticantes de um desvio moral e as populações indígenas — destituídas
desse desvio — como suas vítimas.
A vitimização é um segundo momento da representação do índio como
detentor de uma ingenuidade e um desconhecimento, atávicos nos dois casos, que
o tornariam particularmente incapaz de responder à ambição e à violência —
causas da vitimização. Não se trata, evidentemente, de propor-se que os livros
didáticos deixem de mencionar as questões da escravização e do etnocídio, mas de
estranhar que, ao situá-las, suprimam a condição de agente histórico das popula-
ções indígenas. Se não, vejamos.
Nos processos históricos tratados pelos livros didáticos analisados, as po-
pulações indígenas são classificadas como sacrificadas, perdidas,47 massacradas48
e submissas.49 As narrativas que os contêm concentram toda a ação nas mãos
europeias: são os europeus que obrigam os índios a trabalhar, que invadem suas

46 Cotrim, 1996:75.
47
Valadares, Ribeiro e Martins, 1992a:56.
48 Cotrim, 1996:109. Nesta obra, uma seção tem os seguintes subtítulos: “A matança dos
povos da América”, “A conquista sangrenta da América” e “Formas de violência contra o
índio”, p. 47-51.
49 Piletti e Piletti, 2001b:75.

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276 A história na escola

terras e ocasionam a mudança na vida das populações (como se essas populações


não tivessem vivido qualquer outro processo histórico anterior à chegada dos
europeus).50 Em algumas delas, não há qualquer referência ao fato de que o tra-
balho compulsório já era praticado por sociedades indígenas antes da chegada
dos europeus;51 em outras, o princípio mesmo da disciplina é desconsiderado,
por meio de afirmações de que a história das populações indígenas tem sido a
mesma há 500 anos — violência e expropriação.52
Reafirmo meu argumento, diante disso, de que as narrativas são formula-
das assim com vistas à consecução de um objetivo pedagógico claro, relacionado
com a disciplina: desenvolver no aluno o que se convencionou chamar de consci-
ência crítica. Essa consciência crítica está estreitamente vinculada ao desenvolvi-
mento de um paradigma moral, visto como inerente à missão da história. Consi-
deremos o que alguns livros didáticos estabelecem como a matriz e a função do
conhecimento histórico.
Inicialmente, vejamos o que diz a obra com o sugestivo título de História:
assim caminha a humanidade :

Na história de uma pessoa ou de um povo, nada acontece por acaso: tudo tem uma
razão de ser. [...] Compreender o presente e planejar o futuro é parte da missão da
História: quando conhecemos o passado e o reescrevemos, evitamos os erros e valo-
rizamos os acertos, na construção de um futuro melhor, mais justo e mais pacífico
para a humanidade. Por tudo isso, a História é também a investigação das leis de
organização e mudança das sociedades humanas.53

Consideremos também o que oferece a obra História do Brasil 1 — Colô-


nia:

O estudo da história nos proporciona maior capacidade para perceber de que manei-
ra, há milhares de anos, o homem vive da exploração do trabalho de outro homem e,
com isso, vem criando profundas desigualdades sociais. [...] Em síntese, sendo uma
disciplina cuja preocupação fundamental é o desenvolvimento da reflexão, do pensa-

50 Schimidt, 1999:188; Piletti e Piletti, 2001b:88-89; e Silva, F., 2001a:55-63.


51 Silva, F., 2001b:137.
52
Piletti e Piletti, 2005:121.
53 Valadares, Ribeiro e Martins, 1992a:11, 22.

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A história, o índio e o livro didático 277

mento, a história nos ajuda a compreender as origens e causas das desigualdades e


injustiças sociais, do banditismo, da fome, da miséria, do racismo. [...] A reflexão
sobre a história desenvolve nosso senso crítico, o que permite que nos posicionemos
em relação às injustiças sociais que marcam as sociedades contemporâneas. Por fim,
você compreenderá que, como ser social consciente e participante, poderá contribuir
para a criação de uma sociedade mais justa.54

Tenhamos em vista ainda as considerações presentes na obra, oportuna-


mente intitulada História & consciência do Brasil 1: da Conquista à Independên-
cia:

A história serve para interpretar o passado, tendo em vista a compreensão do presen-


te. O objetivo é adquirir consciência do que fomos para transformar o que somos.
Transformar para melhor. Assim, num país como o Brasil, marcado por tantas injus-
tiças sociais, o estudo da história pode servir para ampliar nossa consciência sobre a
imensa e urgente tarefa de construir uma sociedade mais justa, mais digna e mais
fraterna.55

O livro História do homem: abordagem integrada da história geral e do


Brasil assim pontua o conhecimento e a sua função:

Para que o passado da humanidade seja realmente entendido como história, o seu
estudo e a sua interpretação devem ser feitos através de uma análise crítica e reflexiva.
[...] a simples narrativa do passado [...] não é história [...] porque não analisa as
sociedades [...]. E, se não é história [...] deve ser condenada pelos professores e autores
que têm a preocupação de desenvolver no jovem estudante o espírito crítico e reflexivo.
Se usarmos esse espírito crítico e reflexivo ao analisar o passado, poderemos contri-
buir para transformar a sociedade, tornado-a mais humana, mais justa, menos esfo-
meada e miserável.56

O conhecimento histórico, como se pode notar pelos excertos em destaque,


teria como função principal conscientizar o estudante das reais condições de exis-
tência, às quais só poderiam ser entrevistas por meio da crítica e da reflexão.

54
Silva, F., 1994:10.
55 Cotrim, 1996:9.
56 Silva, F., 1996a:24.

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278 A história na escola

Conscientizar, nos excertos apresentados, significa compreender o passado a par-


tir de uma visão que tem como valor principal o estabelecimento de uma socieda-
de sem injustiças. O conhecimento histórico, portanto, está relacionado ao de-
senvolvimento de caracteres morais, está vinculado à edificação de uma economia
moral, que determine os valores do justo e do injusto, não mais da perspectiva
pessoal, mas em relação ao convívio civil e à transformação social.
Não me deterei aqui na consideração dos perigos inerentes à adoção de
uma categoria construída a partir da experiência das sociedades de orientação
democrática, desde finais do século XVIII, para a formulação e o ensino/aprendi-
zagem do conhecimento histórico — o que seria um interessantíssimo objeto de
análise, que poderia lançar luz sobre algumas balizas dos cursos de formação
de professores, em especial das licenciaturas em história. Interessa-me, no mo-
mento, ressaltar o quanto esse paradigma informa a representação das popula-
ções indígenas na literatura didática.
A consideração de que a função da história é a conscientização das reais
condições de existência, por meio da exposição das injustiças cometidas, está pau-
tada em uma visão unilateral do passado. É a preocupação com a conscientização
que organiza a perspectiva adotada. Assim, as representações sobre o índio obe-
decem àquele imperativo: ensinar sobre o passado brasileiro significa expor as
injustiças cometidas e dimensioná-las, evidenciando os males causados por elas e
as razões de terem ocorrido.
É em função desse compromisso que a história perpetua os mitos de forma-
ção do Brasil — com vistas, talvez, a promover o amor à pátria e o convívio
fraterno entre os que a compõem. Assim, o povo brasileiro e sua cultura são
apresentados ainda como resultado da contribuição dos três grupos étnicos for-
madores — brancos, índios e negros —, sem prejuízo da preponderância do pri-
meiro.57 Aquela noção construída no século XIX se vê continuada, posto que a
participação indígena é restrita aos caracteres culturais, aspectos do folclore, al-
guns hábitos domésticos e práticas agrícolas.58
Da mesma forma, é em função da mesma perspectiva que as populações
indígenas são apresentadas como ingênuas, vítimas indefesas da sanha europeia.
Aspectos importantes de suas sociedades — especialmente suas relações

57 Valadares, Ribeiro e Martins, 1992b:151-153; e Silva, F., 1994:55 e 1996b:135, 138.


58 Ibid.; e Silva, F., 1996b:136.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 278 27/3/2009, 16:06


A história, o índio e o livro didático 279

assimétricas e de dominação — são omitidos, em favor de uma representação


idílica da existência anterior ao contato com os conquistadores.
Todavia, como afirmei no início, a literatura didática vive uma relação
ambígua com a literatura e o conhecimento acadêmicos. Em alguns dos livros
didáticos analisados, os bandeirantes não aparecem somente como heróis da
expansão territorial — sua condição de apresadores de indígenas é ressaltada.59
A escravização indígena, durante longo tempo obliterada pela historiografia e
já há alguns anos enfatizada por historiadores preocupados em dimensionar a
escravidão — restrita, frequentemente, à experiência africana — é considera-
da.60 Mas é com relação à incorporação dos avanços introduzidos pela história
indígena e do indigenismo61 que se evidencia, inequivocamente, a ambiguidade
a que me refiro.
As mesmas obras que trabalham com a categoria índio — uma generaliza-
ção que passa ao largo da diversidade das populações indígenas habitantes do
território americano ao tempo da conquista e do território brasileiro atual —
tratam das diversas nações indígenas, de suas perspectivas políticas e lhes restitu-
em — parcialmente, portanto — a condição de agente histórico. Nesse sentido,
verificam-se ressalvas à consideração de que os antigos habitantes viviam em um
mundo perfeito antes da chegada dos europeus.62 A categoria índio é, por vezes,
abandonada, e as populações indígenas são apresentadas ressaltando-se os aspec-
tos que distinguem suas diversas nações.63 Em alguns momentos, as referências a
aspectos de sua cultura buscam fugir dos estereótipos, como, por exemplo, no caso
da indicação do lugar da guerra na economia política de algumas nações indíge-
nas,64 e na referência ao fato de que o estranhamento dos europeus em relação às
populações indígenas foi concomitante ao estranhamento destas em relação

59 Valadares, Ribeiro e Martins, 1992b:140-141; Silva, F., 1994:70; Cotrim, 1996:93-94; Silva,

F., 1996b:114-115; e Schimidt, 1999:265-266.


60 Schimidt, 1999:154, 188, 205-208; e Silva, F., 2001b:154-155, 158.
61 Cunha, 1992.
62
Valadares, Ribeiro e Martins, 1992b:125; e Schimidt, 1999:141.
63 Cotrim, 1996:110-111; Schimidt, 1999:133-137; Silva, F., 2001a:51-52; e Piletti e Piletti,
2001b:84-85 e 2005:122, 131.
64 Silva, F., 1996a:58. Há que se ressalvar, contudo, que, no caso em tela, a remissão ao caráter

sagrado da vingança não dimensiona o caráter histórico da vingança naquelas populações.

A história na escola-2a parte-3prova.pmd 279 27/3/2009, 16:06


280 A história na escola

àqueles65 — duas tentativas de recuperação da condição de agente das popula-


ções indígenas.
A condição de agente histórico — distante da condição de ingênuo passivo
(normalmente atribuída às populações indígenas) — também é recuperada por
meio de referências à resistência indígena às investidas europeias. No mais das
vezes, é verdade, a resistência é apresentada como uma reação apenas, como um
espasmo, livre de vontade. Segundo essa lógica, a resistência seria quase uma
necessidade que se colocava, compulsoriamente, às populações indígenas, que
nada podiam fazer a não ser resistir.66

Palavras finais

A inclusão de perspectivas da história indígena e do indigenismo, a qual recupera


a condição de agente histórico durante muito tempo recusada às populações in-
dígenas, convive com alguns limites, como procurei demonstrar. Tais limites são
colocados pela manutenção do lugar dispensado à história na educação básica —
o desenvolvimento de um paradigma moral, em tudo afeito às orientações for-
muladas no século XIX.
O fato mesmo da inclusão daquelas perspectivas indica que aquele
paradigma não se realiza de forma absoluta. No entanto, a coexistência de ambos
evidencia o impasse no qual o ensino de história se encontra. Reformular o espaço
das populações indígenas — ou de qualquer outro agente histórico — no material
didático é apenas parte de um processo que envolve, ou deve envolver, toda a
disciplina.
Nesse processo, o conhecimento acadêmico e o saber escolar devem assu-
mir posições de compromisso que impeçam a reprodução de imprecisões e a visão
deformada sobre qualquer um dos agentes históricos tratados. Os historiadores
— professores da educação básica ou não — não devem se esquecer de que a
formação do aluno/cidadão crítico implica, também e necessariamente, o desen-
volvimento de capacidades cognitivas e, não, a produção de estereótipos, mitos e
heróis.

65
Piletti e Piletti, 2001b:72.
66Silva, F., 1994:21-22; Cotrim, 1996:96; Schimidt, 1999:156-157; e Piletti e Piletti, 2001b:123 e
2005:116, 143.

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Capítulo 13

Imagens de índios e livros didáticos: uma reflexão


sobre representações, sujeitos e cidadania

Eunícia Barros Barcelos Fernandes *

Creio que a idealização do mundo — “um mundo melhor” — seja motivação,


se não de todos, pelo menos da maioria dos seres humanos, e sem dúvida daque-
les que fazem da reflexão sobre ele seu ofício. Historiadores, não se assustem
com a generalidade dessa abertura, mas preciso, antes de tudo, assumi-la, pois
o que talvez em maior medida me tenha impulsionado tanto para a história
quanto para a temática indígena sedimenta-se numa aspiração de cidadania,
ou seja, justamente numa idealização de mundo. Assumir que o que me condu-
ziu foi a preocupação com o reconhecimento não só dos indivíduos mas das
individualidades que compõem a sociedade brasileira e o desejo de que um tal
reconhecimento viabilize o diálogo entre as diferenças. Observem, a generali-
dade já não é tanta, pois o discurso da individualidade e da diferença tem seu
tempo e espaço, inviabilizando que o meu “mundo melhor” se confunda, por
exemplo, com o dos franceses do fim do século XVIII, ainda que estejamos fa-
lando de cidadania.
A percepção da historicidade de nossas aspirações sociais conduz à lem-
brança de que as referências que compartilhamos são construídas e de que a esco-
la tem um papel fundamental nessa construção. A consciência acerca da socieda-
de em que acreditamos e/ou que desejamos passa inevitavelmente pela escola,
locus de sua existência e reprodução. Nesse sentido, acredito que todos os profis-
sionais de história estejam envolvidos com esse ponto de partida, pois, ao investi-
garmos o livro didático de história, estamos inevitavelmente perguntando “que
escola queremos”, o que nos revela também “que sociedade queremos”.

* Professora do Departamento de História da PUC-Rio.

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282 A história na escola

Nesse ponto, creio que possa expor a conexão que animou a junção dos
conceitos de representação, sujeitos e cidadania, tal como indicado no título, e
que minimamente nos servem de baliza nessa empreitada. Para expressar a cone-
xão, usarei como chave a generalidade que assusta: “a sociedade que queremos”.
A cidadania — o ideal de igualdade, de participação e articulação entre
partes — compõe a sociedade que desejo. Junto com a minha experiência, ela é
um horizonte a ser perseguido. Seguindo Roger Chartier, seja como experiência,
seja como horizonte, minha utopia de sociedade é uma representação: um “es-
quema intelectual incorporado que cria figuras, nas quais o presente pode adqui-
rir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”.1
Se as representações conferem sentido, tornando a vida inteligível, é neces-
sário considerar que é a partir delas que tomamos nossas decisões, consciente-
mente ou não. E aqui está um ponto nodal para este texto, tanto por encaminhar
os conceitos de sujeito e cidadania, quanto por já sugerir papéis para a escola e o
livro didático. Muitas vezes fazemos uso de valores, critérios e conteúdos — nos-
sos modos de ver e pensar o mundo —, sem identificá-los ou refletir sobre eles.
Nossas ações, assim, se fragilizam porque desconhecemos seus sentidos e possíveis
alcances. Somente quando cônscios das representações é que podemos potencializar
nossas ações, pois nos tornamos aptos a escolher.
De modo geral, nomeia-se sujeito àquele que detém a ação, mas aqui estou
nomeando como sujeito aquele que age de modo consciente, compreendendo tal
consciência uma percepção histórica de si e dos outros sujeitos, permitindo a
elaboração de uma perspectiva entre alternativas e a definição de uma para si, ou
seja, o sujeito como aquele que se habilita a identificar e refletir sobre as represen-
tações — suas e alheias — e que, exatamente por isso, qualifica suas decisões. O
sujeito é aquele que se torna senhor de suas ações, não por controlar o resultado
delas, mas por estar alerta aos seus sentidos particulares e/ou compartilhados.
Com tais pressupostos, falar da “sociedade que queremos” é indicar não só
a sociedade como um modo de ver e pensar, mas também os sujeitos que a produ-
zem, assinalando o querer a ação consciente e selecionada. E é aqui que minhas
inquietações começam e certas perguntas podem ser direcionadas para o livro
didático. Como “vemos e pensamos” a sociedade? O que escolhemos? Em que
medida somos sujeitos na sociedade em que vivemos?

1 Chartier, 1990:17.

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Imagens de índios e livros didáticos 283

Essas questões, que têm enorme vigor no direcionamento de vários temas,


são basilares quando pensamos as relações entre índios e não índios na sociedade
brasileira. Vou apresentar algumas tensões com as quais cotidianamente nos de-
paramos nessa relação. Em 2005, numa discussão pública acerca das reservas in-
dígenas, um leitor de jornal assumiu posicionamento e o externou na seção
dedicada às cartas dos leitores. Reproduzo o fragmento.

Reservas indígenas. Creio que a criação das reservas indígenas foi efetuada para
dar sustento e bem-estar aos índios, conservando-os em seu ambiente de origem.
Com a proximidade das cidades, porém, esta ambientação fica prejudicada. Então, a
assistência governamental teria que supri-los de várias necessidades, inclusive orientá-
los tecnicamente, criando projetos agropecuários. Nada disso é feito e o que temos são
terras interditadas se enchendo de mendigos assistidos por cestas básicas. Algo deve
ser repensado; índios convivendo com civilizados têm de ser preparados para se inte-
grarem, e não para viverem miseravelmente isolados. De nada adianta assistência
ocasional e demagógica em horas de crise. Índio não é bicho de estimação, que só
precisa de sossego e floresta. É gente e precisa evoluir.2

Sem dúvida o leitor se coloca como defensor dos índios, criticando aqueles
que os aproximam dos animais, bem como a ausência de ações de governo. Entre-
tanto, o discurso de defesa sentencia que eles são inferiores, tanto por “terem que
evoluir”, como por precisarem “ser preparados”, “orientados” e mesmo “serem
supridos em suas necessidades”, como se não possuíssem autonomia e suas esco-
lhas nunca fossem satisfatórias. Afirma-se que “índio não é bicho”, mas tampouco
é considerado “civilizado”, possui um “ambiente de origem” identificado com a
“floresta”, que o afasta dos não índios habitantes das cidades e, na obrigatoriedade
de uma convivência, o coloca numa situação desclassificada de “mendigo” que
precisa “ser assistido”.
Alguém que escreve para um jornal é alguém alfabetizado e que lê jornal,
conhecendo não só o veículo em si, mas exibindo um envolvimento com as temáticas
por ele apresentadas. Sabendo que a carta foi enviada online, qualifiquei ainda
mais seu autor, restringindo o universo daqueles que poderiam assim se manifes-
tar num rol de pessoas com instrução e acesso, pois o número de excluídos digitais

2 Carta de Iovanda Campos, publicada em 3 de março de 2005 na seção Cartas dos Leitores
do jornal O Globo.

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284 A história na escola

no Brasil ainda é muito grande. Considerando tais distintivos em nossa socie-


dade, há que se supor um cabedal de informação para quem escreveu a carta, o
que me leva a perguntar: de onde surgiram esses referenciais que exibem grande
desconhecimento acerca das sociedades indígenas e alimentam obstáculos à ci-
dadania?
Deveríamos pelo menos saber que, no Brasil do século XXI, inúmeros
índios vivem em cidades, e não é por viverem junto de não índios que deixaram
ou deixarão de ser índios, mesmo estabelecendo contatos e trocas. Também não
deveríamos esperar que eles “evoluíssem”, como se estivessem degraus abaixo de
onde se encontram os “não índios”, ou que precisassem de tutores para orientá-
los ou prepará-los. As representações do leitor do jornal não são exclusivas; várias
pessoas compartilham delas. Para o que nos interessa aqui é importante identifi-
car se tais compreensões podem ter sido mesmo constituídas ou alimentadas pela
escola e pelo livro didático.3
O que teria levado o leitor a escrever exigindo medidas que respeitassem o
indígena? Sem levantar causas particulares, historicamente, vale lembrar que a
visibilidade da questão indígena na mídia e o discurso da participação cidadã
fortaleceram-se no Brasil a partir da década de 1980, através das ações de recons-
trução democrática, do discurso em defesa da bio e da sociodiversidade, incluin-
do o crescimento de movimentos indígenas. De modo muito sumário, devemos
considerar a manifestação do leitor como historicamente articulada.
Esses elementos históricos — que também atingiram a produção de livros
didáticos4 — devem ser somados a outros, como a também histórica construção
dos índios como ícones da nacionalidade, podendo aparecer como estímulo à
manifestação do leitor. Para esclarecer, volto no tempo, quando da estruturação
do Brasil como um Estado-nação independente.
Naquele momento, meios de edificar e legitimar a nacionalidade, insufla-
dos pelo movimento romântico, definiram o indígena como símbolo. O Império
elaborou o índio como figura catalisadora da singularidade brasílica. O índio, no

3 Grupioni, 1995.
4 A democratização não só abriu portas para a crítica da história ensinada, como, pontual-
mente, certas questões foram direcionadas para a escola, como a sociodiversidade. A obra A
temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1o e 2o graus (Silva e Grupioni,
1995) apresenta, na introdução de seus organizadores e no primeiro capítulo, a temática da
diversidade.

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Imagens de índios e livros didáticos 285

singular. Não foram os povos indígenas na sua variedade, mas “o” índio. O Impé-
rio atualizou a homogeneização que o termo dado por Colombo fizera, e sob
penas, arcos e flechas constituiu-se-lhe uma alegorização na murça imperial, em
medalhas, estátuas, litogravuras, pinturas.5
Esse índio alegorizado e genérico povoou os livros didáticos desde aquele
momento. Através de imagens e textos, costurou-se historicamente a compreen-
são dos índios como os ancestrais brasileiros, o que em muito não se alterou:
ainda hoje é comum o primeiro capítulo dos livros de história do Brasil ser desti-
nado a eles, numa mítica de origem. Desse modo consolidado, não seria inade-
quado dizer que a pertinência da manifestação pró-índio do leitor do jornal pode
ter sido fermentada com uma preocupação com essa ancestralidade identificadora
da brasilidade.
E o que teria definido para ele que o índio vive na floresta e é inferior aos
não índios? A escola aqui também pode ter tido um papel preponderante.
Registrados por Circe Bittencourt como “característica marcante dos li-
vros de História do Brasil a partir de 1860”,6 os índios foram apresentados funda-
mentalmente como “selvagens”, valorizando a ação catequética e civilizadora dos
europeus. Se o discurso de selvageria não alimentou necessariamente todas as
obras até o século XXI, por outro lado, a sistemática apresentação dos índios
apenas quando da chegada dos europeus à América ou ao Brasil nos livros de
história define, segundo Luís Donisete Grupioni, duas desclassificações: (a) eles
são assunto do passado; e (b) sua existência depende da sociedade europeia, pois
foi através dela que se tornaram visíveis para o mundo.7 Ser pretérito e coadju-
vante expressa características inferiorizantes, que, somadas a uma perspectiva
evolucionista ainda pujante em nossa sociedade, são facilmente encontradas no
discurso das carências e impossibilidades visto no fragmento.
A maior parte da população brasileira continua falando “índio” no singu-
lar, assim como compreende que só são índios aqueles que vivem nas matas, em
idílica sintonia com a natureza, e rejeita a possibilidade de índios se manterem
como tais vivendo entre não índios. Para o exercício da cidadania, tais pressupos-
tos são fatais, pois a homogeneidade é simplificadora e a proximidade à natureza

5
Cf. Schwarcz, 1998.
6 Bittencourt, 1997:80.
7 Grupioni, 1995:487-488.

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286 A história na escola

animaliza. Quando os grupos indígenas são confrontados por sua alteridade aca-
bam identificados como inferiores em relação ao “nós” de quem fala e, desse modo,
onde se espera igualdade, hierarquias são construídas; onde se espera participa-
ção, uma incapacidade é criada.
Uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2000, solicitada pelo Instituto
Socioambiental — uma ONG dedicada a temas de interface social e ambiental e
com grande atuação junto aos povos indígenas —, evidenciou que a maioria dos
brasileiros seria “pró-índio”, mas essa maioria teria compreensões estereotipadas
e não se consolidaria como força político-institucional, fazendo com que a “mi-
noria aguerrida que contesta [desde a] sua existência ao reconhecimento dos seus
direitos especiais ou originários”8 se tornasse decisiva.
Significativa dessa situação apresentada por Márcio Santilli foi a avaliação
da composição do Congresso Nacional:

Há, no Congresso, parlamentares convictos na defesa dos índios, embora não haja
parlamentares indígenas. Há, também, os que se contrapõem aos seus direitos. Há,
sobretudo, uma maioria parlamentar desinformada e pouco interessada na questão.
Nem sequer os partidos, na sua quase totalidade, dispõem de definições programáticas
claras a respeito dos índios. A depender das circunstâncias, essa maioria parlamentar
disforme pode se posicionar sob maior ou menor influência de cada posição.9

A pesquisa e a observação sobre o Congresso conectam-se ao fragmento de


jornal, mas aqui anunciam de modo grave a correlação entre representação, su-
jeito e cidadania. Entendendo o Congresso como locus privilegiado da experiên-
cia democrática, logo de início é relevante a ausência de parlamentares indígenas.
Como fazer dialogar as diferenças nas decisões do governo se tais “diferenças” não
estão presentes? Além disso, a grande maioria — apresentada como desinformada
e desinteressada — não compreende os indígenas como sujeitos, tal como este
texto propõe, e posso dizer que esses mesmos parlamentares não serão sujeitos
quando instados a votar matéria que diga respeito aos índios, pois a desinformação
e o desinteresse impedem a perspectiva acerca da ação, no caso o voto. A significa-
ção e a extensão do desconhecimento sobre os índios — que é uma representação
historicamente construída — têm, então, sérios desdobramentos na possibilida-
de mesma do exercício cidadão.

8 Santilli, 2000:94.
9 Ibid., p. 95.

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Imagens de índios e livros didáticos 287

Essas questões, compartilhadas com outros pesquisadores, em meu caso se


juntaram a uma outra: as investigações sobre as relações entre história e imagem.
Acreditando ser um poderoso suporte significativo e considerando um
objeto a ser bem mais explorado pela historiografia, aproximei-me do ditado
popular que diz que uma imagem vale por mil palavras. Não entrarei no mérito
de sua legitimidade, mas os historiadores não podem negar que sua existência
alude a um valor que se consagra na sociedade contemporânea: a visualidade.
Memórias que se registram em fotografias e filmes caseiros e não mais em
velhas histórias contadas através de gerações; informações do outro lado do
mundo que chegam pelas imagens televisiva e digital e suplantam as letrinhas
do jornal impresso; o cinema que se apresenta com um líder no entretenimento
ou a arte que sai das galerias e invade os muros das cidades. As imagens nos
rodeiam, dizem para e sobre nós. E as imagens formam, junto com os textos, o
livro didático.
O trabalho de Circe Bittencourt, já citado, alertava sobre a problemática
das imagens em tal suporte e, para minha felicidade, ela escolheu justamente as
imagens de índios para desenvolver sua reflexão. Naquele momento, Bittencourt
afirmou ser o livro didático um “objeto de múltiplas facetas”, tendo assim uma
natureza complexa.10 Na perspectiva de mapear tal complexidade, a autora de-
senvolveu quatro elementos: (a) o livro didático como mercadoria; (b) como
depositário dos conteúdos escolares; (c) como instrumento pedagógico; e (d)
como veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultu-
ra. A meu ver, as reflexões há 10 anos ali apresentadas mantêm-se atuais e funda-
mentais e, mesmo sem lhe seguir exatamente os passos, tratarei de alguns de seus
pontos, começando pelo livro didático como mercadoria.
Ao destacar que o livro didático é um produto, a autora evidenciou que
não podem ser esquecidas desde as técnicas de sua fabricação às regras do merca-
do, o que atinge diretamente o uso das imagens, passando pelo custo e pela quali-
dade delas no livro. Ao nos despertar para o tema, Bittencourt levanta também o
problema da autoria no livro didático, arrolando os profissionais que, muito
além do historiador, acabam compondo o produto final. Creio que, dos quatro
elementos por ela tratados, a ideia do livro como mercadoria é a que mais viabiliza
a percepção do livro como objeto. E é desse “objeto livro” que gostaria de partir.

10 Bittencourt, 1997:71.

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288 A história na escola

Num artigo intitulado “Livros didáticos em dimensões materiais e simbó-


licas”, Antonia Fernandes apresenta pesquisa sobre a memória de seus usuários.
Trabalhando com história oral, ela entrevista alunos e professores de diferentes
localidades brasileiras que interagiram com esse tipo de material entre 1940 e
1970. Seu foco são as reminiscências do livro didático, assim como seu eco na
formação social e cultural dessas pessoas. O que os usuários lembram desses ma-
teriais escolares? Que imagens desses livros foram preservadas? Que conteúdos?
Que identidades sociais eles contribuíram para consolidar? Estas são algumas das
questões que a pesquisa procura investigar.
Seu foco aqui me interessa como observação de que os livros didáticos,
como objetos materiais, referendam percepções e conteúdos que, através da me-
mória, são agenciados e atualizados. Vale uma citação, ainda que um pouco mais
longa, por exibir respostas dos entrevistados:

Como explica Pierre Nora, entre as inúmeras especificidades da memória, ela “se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”. Dessa forma, os
livros também são lembrados por suas materialidades (como seus aspectos físicos
cor, grossura, capa dura etc.), pelas disciplinas a que se referem (português, história,
admissão etc.) e por terem formatos distintos de acordo com a série [...]

E eu me lembro muito bem da escola, da cartilha, tinha uma menina de trança dese-
nhada na capa, não era foto [...] E aí em outubro a gente recebia o primeiro livro de
leitura. Desse eu tenho uma vaga lembrança dele... não sei se era da mesma autora ou
não. As gravuras eram geralmente bico-de-pena, não eram fotografias e não eram
coloridas. Mesmo os do ginásio, que depois você me perguntou, das gravuras. O livro
de ciências era bastante ilustrado, mas geralmente com desenhos mesmo, que eram
feitos com nanquim e depois para editar e tudo. E a gente não tinha essa coisa de livro
colorido de fotografia, nada assim. (Entrevistado 3)

[...] Há lembranças de imagens específicas e do estilo das ilustrações: “O livro de


História Sagrada trazia sugestões. Por exemplo: uma figura que ocupava uma página
inteira, em bico-de-pena, era a fuga de José do Egito. As imagens sagradas dos livros
didáticos se transformavam em painéis do artesanato popular. (Entrevistado 1)

Essa era preto-e-branco... a história de uma família chegando em Porto Alegre, num
navio, pelo Guaíba. Então era a família, você via o navio, a família no convés do navio,
Porto Alegre e a ponte. (Entrevistado 5)11

11 Fernandes, 2004.

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Imagens de índios e livros didáticos 289

Trago essa dimensão da memória para dizer que, além dos conteúdos
textuais, os conteúdos imagéticos alicerçam referências nos sujeitos. As imagens
dos livros didáticos se transformam num repertório ativo de significados possí-
veis.
É interessante perceber que o primeiro depoimento constrói seu sentido na
comparação com um material inexistente em sua época, o atual livro colorido e
com fotografias. Essa comparação materializa um ponto que me inquieta e esti-
mula na compreensão das imagens do livro didático: a consciência de apropria-
ções que não estão regradas pelos conteúdos do livro didático, mas pela experiên-
cia. É fundamental termos em conta que a experiência de um dado momento é
que constrói a lembrança e lhe dá sentido, organizando um julgamento e possi-
velmente uma ação.12
Já o segundo depoimento, falando de atividades que ocorriam em um mes-
mo tempo, materializa o esgarçamento de sentidos e usos, pois o material do livro
didático ganhava o artesanato popular, descolando a imagem de seu propósito
pedagógico e atuando numa percepção estética e de consumo de grupos que não
se resumiam ao grupo escolar.
Pode-se questionar que não se tem como averiguar a suposta simplicidade
das correlações entre “imagem livro” e “imagem artesanato”, como fez supor o
depoimento, e há ainda uma outra inquietação. Considerando a existência de
uma iconosfera — o conjunto de imagens que, num dado contexto, está social-
mente acessível13 —, é imperativo, quando da elaboração e uso do livro didático,
avaliar as correlações entre as imagens, sejam elas as do conjunto do livro ou dele
com a sociedade.
Circe Bittencourt tocou na questão quando recuperou a importância das
imagens como recurso pedagógico, lembrando a proposta de Ernest Lavisse, ain-
da no século XIX, segundo a qual “ver as histórias” serviria à memorização dos

12 Aqui cabe a junção de duas reflexões. A de Henry Rousso, que afirma que a memória “[...]
é reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passa-
do”, e a de Alessandro Portelli, que afirma que “representações e fatos não existem em esferas
isoladas. As representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos são reconhe-
cidos e organizados de acordo com as representações; tanto fatos e representações convergem
na subjetividade dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem”. “A memória não é
mais o que era” e “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito
e política, luto e senso comum” se encontram em Ferreira e Amado, 1996.
13 Meneses, 2003.

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290 A história na escola

conteúdos escritos,14 ou seja, a imagem compreendida como um apêndice do


texto. A autora chamou de “uso ilustrativo” aquele em que as imagens atuam
como repetidoras textuais, esvaziando suas potencialidades de sentido e
viabilizando anacronismos perigosos como aqueles em que os alunos tomam por
evidência de fato do século XVI a tela pintada por Victor Meirelles no século XIX
sobre a Primeira Missa no Brasil, por exemplo. Como alternativa e em oposição
a tal uso, Bittencourt sugere o “uso documental”. Cabe aqui observar que um tal
uso se estabelece na esteira de uma história que procura consolidar “o que real-
mente aconteceu”, dificultando, se não inviabilizando, o entendimento de repre-
sentações sociais.
Disseminado no ambiente escolar um novo paradigma historiográfico, no
qual a história é uma construção que destaca o “lugar de fala”15 de seu produtor,
vê-se um esforço na identificação das imagens que compõem o livro didático,
enunciando autoria, local e temporalidade de sua produção, quando não acresci-
das ainda das condições sociais que circunscreveram a existência de dada imagem.
Tais iniciativas não só limitam apropriações abusivas para a compreensão histó-
rica, mas também qualificam a própria imagem — sem mediação de texto —
como fonte no trabalho do historiador. Desse modo, a imagem deixa de ser uma
simples — ou muito complicada (!) — tradução visível de um indício textual
para se tornar, ela mesma, um indício histórico, autônomo e específico na sua
relação com o texto.
Nada mais afastado de meus pressupostos do que esse referencial de
“memorização de conteúdo”, pois estou justamente indagando acerca da repre-
sentação dessas imagens em outros contextos e sentidos. Entretanto, é importan-
te falar da memória do livro didático quando se toma consciência de que o con-
junto de imagens constitui uma iconosfera.
Deve-se pensar que, para além de um uso ilustrativo ou documental — este
último sendo o sugerido por Bittencourt —, há sempre a imagem. Uma imagem
da índia tapuia de Eckhout, usada como ilustração ou como documento num
livro didático, será sempre o “objeto imagem índia tapuia” e, junto com outros,
irá compor — com seus elementos de cor, forma e ideia — um arsenal a ser
acionado pelos sujeitos. A meu ver, isso não deve ser esquecido pelos historiado-

14 Bittencourt, 1997:75.
15 Certeau, 1982.

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Imagens de índios e livros didáticos 291

res, ao custo de eles abdicarem da compreensão de que, na sala de aula, estão


historicamente construindo sentidos, e da historicidade na visualidade.
Vejamos um exemplo, para encaminhar questões que, em função de a ima-
gem não estar sendo objeto de especial reflexão do historiador,16 podem passar
“despercebidas” quando das articulações para a produção do livro didático, as-
sim como para seu uso. Lembro que o professor-autor17 não está confinado ao
direcionado por seu material, devendo interagir com ele. Nesse caso, na percep-
ção de que o livro didático não é capaz de fomentar um elemento considerado
fundamental pelo professor, ele deveria desenvolver reflexões e materiais capazes
de consolidar tal elemento em seus alunos.
Em Você faz a história, de Márcia Hipólide,18 o uso mais frequente das
imagens é, sem dúvida, como ilustração. Tal uso, entretanto, não deve ser visto
como imediato desqualificador em duas chaves. A primeira, na comparação com
um uso documental: se há vários usos para o “objeto imagem”,19 creio que, sem
incorrer nos equívocos anacrônicos, haja lugar para ele também como ilustração
na história. A segunda, na comparação entre livros de história: não apenas os
livros didáticos, mas todos os livros de história — incluindo os acadêmicos —,
fazem desse uso a sua regra. Sendo assim, minha observação não se faz como
prévia qualificação de equívoco ou problema, ainda que aponte para uma fra-
gilidade da relação entre história e imagem.
Por outro lado, a obra propõe a análise de imagens como fontes históri-
cas, o que a positiva na reflexão de Circe Bittencourt, autora que encerra seu
texto com a proposta pedagógica de usar a imagem como documento. É verdade
que nenhuma das atividades formalmente propostas pelo livro conduz à reflexão
sobre a diagramação da página ou algo equivalente, contemplando a ideia de
que o próprio livro é um objeto construído; porém, ao utilizar o termo repre-
sentação, a obra propõe o que Bittencourt chamou de leitura interna e externa
da imagem.

16 Segundo Ulpiano Meneses (2003), apesar de a década de 1960 ter aproximado os his-
toriadores da imagem como fonte a partir da ampliação da noção de documento, a história
mantém-se à margem no que se refere às fontes visuais e à problemática da visualidade.
17
Monteiro, 2002.
18 Hipólide, 2004.
19 Meneses, 2003:15.

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292 A história na escola

Ao fazer tais leituras, acredito que a autora — ou autores, tendo em vista a


complexidade da produção de um livro, que inclui projeto gráfico, pesquisa e
produção iconográfica, produção cartográfica, todas referendando diferentes
sujeitos envolvidos com o produto final — siga a máxima “ensinar história é
também ensinar seu método”.20 Transformar imagens em documentos a serem
investigados junto com os alunos é um caminho para a autodeterminação e
autonomização objetivadas pelo ensino de história21 e, como tal, um caminho
necessário à formação do sujeito.
Minha primeira observação é que falta a interpretação sobre o próprio
livro ser um objeto construído, como sugere Bittencourt. Exemplifico: na página
92, apesar de o texto falar de índios nos “dias atuais” e exibir uma fotografia —
anunciando sua contemporaneidade —, as ideias são expressas sob o título “Me-
mórias de nossos antepassados” (grifo meu), e isso para desenvolver uma
problematização sobre a memória de povos sem escrita que acaba por associar
tais índios aos povos pré-históricos. Sem discutir se foi ou não uma boa escolha da
autora, penso que o fantasma dos índios como pretéritos poderia “assombrar”
menos, caso se refletisse sobre o porquê da seleção daquelas imagens e de sua
diagramação.
Mas aqui minha preocupação é outra. Examinando a totalidade das ima-
gens referentes a índios no volume destinado à antiga 5a série — atual 6o ano —,
observo que todas são fotografias e a maioria absoluta insere os índios num am-
biente de floresta e destaca especificidades genéricas, como pinturas corporais,
adornos, armas, danças, numa elaboração tradicional e homogeneizadora, a des-
peito das legendas indicarem com precisão os nomes de tribos, locais e momentos
em que as fotos foram tiradas.
Mesmo sem desenvolver, é importante citar a ilusão de realidade promovi-
da pela imagem fotográfica, que mais facilmente oculta do observador ser ela
uma representação e possuir uma autoria, especialmente quando contrastada ao
desenho e à pintura. Se, por um lado, devemos considerar as implicações da ex-
clusividade fotográfica na obra, por outro, ao assumir a ideia de iconosfera, ou

20 Nadai, 1992/1993.
21 “Os objetivos do ensino de História abrangem uma expressividade emancipadora, baseada
na autodeterminação e na autonomização do educando” (Pedro Paulo Funari, apud Nadai,
1992/1993).

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Imagens de índios e livros didáticos 293

seja, de um conjunto de imagens que se torna acessível ao observador para a


elaboração de seus parâmetros particulares, não podemos fechar os olhos —
numa maliciosa metáfora visual — aos citados conteúdos tradicionais. A flores-
ta, as pinturas, arcos e flechas alimentam princípios como os de nosso leitor de
jornal, defensor de reservas indígenas, inviabilizando a suposição de que índios
sejam índios nas cidades, com curso superior e vestidos como não índios.
Esse universo limitado se agrava quando observamos as composições vi-
suais das páginas, nas quais a diferença entre índios e não índios é alimentada
pelo contraste entre ambientes — floresta/cidade — e agentes — eles/nós. Al-
guns exemplos:

 na página 12, a verdejante mata onde crianças indígenas brincam contrasta


com o poste cercado de lixo e pedestres em São Paulo;
 na página 34, as crianças indígenas que pescam sozinhas no rio contrastam
com a criança de uniforme e mochila que, seguindo sob o cuidado de um
adulto, sugere o caminho para a escola;
 na página 35, uma imagem de índios adornados dançando e outra de choca-
lhos indígenas contrastam com a imagem da Companhia Siderúrgica Nacio-
nal. Um elemento a mais para ser pensado é que a imagem da dança é a única
no livro que insere os índios num espaço citadino, mas apresenta especificidades
que não podem ser descartadas: primeiro, o plano fotográfico praticamente
elimina o ambiente onde a cena se realiza, privilegiando os personagens;
depois, se considerarmos o ambiente, a cena intensifica o contraste pelo fato
de a ação dançante ser realizada na Esplanada dos Ministérios;
 ou ainda, na página 87, onde as extremidades opostas fazem dialogar parti-
cularidades de crianças de mesma idade: de um lado, um grupo de estudan-
tes em sala de aula; do outro, um indiozinho solitário, que dança adornado
e com apetrechos, inclusive um arco.

Minha conclusão é que, como elemento de formação de uma iconosfera, a


obra deixa muito a desejar.
História temática: diversidade cultural e conflito, de Conceição Cabrini,
Andréa Montellato e Roberto Catelli Júnior,22 exibe uma atenção à imagem em

22 Cabrini, Montellato e Catelli Júnior, 2004.

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294 A história na escola

chave bastante semelhante àquela proposta por Circe Bittencourt. As imagens


que ilustram dados do texto apresentam sempre referências suficientes para a
desnaturalização de seu uso. Há material visual que não é mera ilustração e traz
conteúdo distinto e complementar ao texto — como um mapa de famílias
linguísticas que é, ele mesmo, o conteúdo a ser lido — e ainda propõe atividades
de interpretação imagética que estimulam a leitura interna e externa. E mais,
o exercício de interpretação imagética formalmente proposto põe em evidên-
cia a questão da autoria e da verdade histórica, sendo possível assim encaminhar
a percepção de o objeto livro ter sido construído: quando diferentes imagens
sustentam a ideia de diferentes versões, pode-se pensar em por que alguém esco-
lheu esta ou aquela para contar sua história.
Comparando esse livro com o outro, há desenhos, pinturas, litogravuras,
mapas, enfim, uma variedade de imagens que amplia as percepções se confronta-
das com o uso exclusivo da fotografia. Quanto ao conteúdo das imagens, encontra-
se um cerimonial na mata, mas também índios vestidos como não índios, índios
vendo televisão e mesmo uma imagem de um conflito armado entre índios e não
índios. A variedade de tipos certamente amplia as habilidades interpretativas das
imagens; já a variedade de conteúdos multiplica o repertório significativo a ser
ativado pelo usuário, fazendo-me crer numa melhor qualidade do processo pe-
dagógico.
Porém, a abertura à variedade não encerra a discussão iniciada pela ideia
de iconosfera. É preciso estar atento não só às reproduções utilizadas no livro
didático, mas também àquelas criações elaboradas especificamente para ele, como
desenhos e charges que costumam adornar títulos e textos, pois estas certamente
também fazem parte da “cultura visual” e constituem objetos a serem articulados
pelos usuários do livro didático. Nesse ponto não se pode descurar da intencio-
nalidade e da potencialidade significativa de charges e caricaturas. Tipicamente
críticas, as charges e caricaturas se qualificam em sua capacidade de sintetizar
relações e problemáticas complexas, trazendo um vigor tanto de reflexão quanto
de emoção, em que o riso passa a ser também um agente. Não aprofundarei o
valor da emoção na experiência de ensino-aprendizagem, mas apenas enunciá-la
certamente levanta uma gama de discursos e experiências ratificadoras.
Para esse tema, lanço mão de uma terceira obra: Nova história crítica, de
Mário Schmidt.23 O livro destaca-se por um uso intenso de recursos visuais, não

23 Schmidt, 1999.

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Imagens de índios e livros didáticos 295

só pela abundância de imagens, mas pela forma de tratar essa abundância:


superposições e ampliações de imagem, faixas ilustradas e temáticas classificando
conteúdos e muita cor. Os recursos são tantos que a obra se prestaria sozinha a
uma reflexão sobre o livro didático e visualidade.
Entre esses recursos, há as charges produzidas para a obra. Esse uso não é
uma exclusividade dessa obra, mas ganha relevo quando se reúne o título —
Nova história “crítica” (destaque meu) — à citada especificidade de charges e
caricaturas. Ganha relevo quando se consideram a proposta do autor e também
as expectativas de seus consumidores, pois, para além de uma forma de ver a
história, o livro didático é material de consumo e, como tal, deve atender à de-
manda do mercado em suas opções de capa e título, por exemplo.
Nos limites deste texto e tendo já evidenciado algumas tensões que a ideia
de iconosfera e a ainda restrita reflexão dos historiadores com as imagens podem
produzir, tratarei apenas de uma das caricaturas. No capítulo “América antes
dos europeus”, na página 141, vemos dois índios, em trajes tradicionalmente iden-
tificados como “de índios”, que riem e apontam para uma terceira figura, numa
clara ridicularização. A imagem é também a de um índio, que, descalço e de
cocar, veste um terno.
Que conteúdos essa charge constrói? Por certo, múltiplos, e não pretendo
esgotá-los aqui, mas na condensação de significados resta a oposição entre índios
“índios” e índios “não índios”, em que os primeiros, mediante a ridicularização,
constroem uma distância. Pergunto: índios vestidos como não índios deixam de
ser índios? Para nosso leitor de jornal, creio que sim, mas não é o que as investiga-
ções acadêmicas concluem; não é o que aqueles que convivem com índios vestidos
de “não índios” concluem, ou mesmo não é o que os índios pensam sobre si mes-
mos. E, sobretudo, para nós que nos predispusemos a pensar o livro didático,
talvez nem seja o pretendido pelo autor.
O trajeto foi longo e repleto de indicações não desenvolvidas, revelando
que muito ainda deve ser realizado no amadurecimento dessas tensões. Desde a
retomada da análise de Circe Bittencourt, que, a meu ver, é crucial para perce-
bermos a fragilidade com que temos lidado com a questão da imagem em livros
didáticos, à compreensão de que existem “regimes de visualidade” agenciando a
ideia de iconosfera e o entendimento de que ela é histórica; e ainda passando
pela especificidade de charges e caricaturas no processo de ensino-aprendiza-
gem ou do valor da emoção para compor sentidos nas imagens, há um mundo
a percorrer.

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296 A história na escola

Mas creio que as inquietações aqui compartilhadas nos permitem, no mí-


nimo, pontuar pragmaticamente que, no livro didático, a carga de visualidade
do “objeto livro” tem significado não só individual — imagem a imagem —, mas
global, como produtora de iconosfera. E considerar a iconosfera é assumir, res-
ponsavelmente, a fragilidade de nossas escolhas como produtores e usuários de
livros didáticos, salientando que não temos controle sobre “o que” e “como” será
lembrado, mas na certeza de que essa lembrança agenciará as ações futuras do
leitor/usuário.
Creio que essas inquietações exigem que não descuremos da historicidade
das culturas visuais e regimes de visualidade. Como contribuir para converter
nossos alunos em sujeitos, se desconhecemos o valor da visualidade na sociedade
atual? Faço uma última provocação, valendo-me do abandono de um “texto
confortável”, que apazigue nossas inquietações, e clamando pela continuidade
delas e, consequentemente, de nossas reflexões.
Em 6 de março de 2007 faleceu o filósofo Jean Baudrillard, reconhecido por
reflexões sobre as imagens e a sociedade do espetáculo, sugerindo mesmo a
“desaparição do real”. Paul Virillio, escritor, fez um comentário sobre o amigo
que me parece significativo para as reflexões que temos que enfrentar.

Ele começou a fazer muitas fotografias. De uma certa forma, abandonou a literatura
pela fotografia. Foi um sinal desta derrota do pensamento diante da globalização e o
que se chama de progresso técnico. A fotografia virou, para ele, a imagem da realidade,
já que esta realidade não é mais descrita por palavras, mas pela imagem.24

Com certeza, Jean Baudrillard não é o conjunto da humanidade e, a des-


peito de toda a globalização, essa “humanidade” definitivamente não é homogê-
nea. Entretanto, o que representa uma declaração como essa? Ou antes, o que
representa a escolha desse filósofo? É preciso pensar, se não em uma fragilização
do sistema logocêntrico, no mínimo em uma concorrência iconocêntrica, e é ne-
cessário agir quanto a isso.
Retomando o meu “mundo melhor”, através da consideração de tais inquie-
tações acerca da imagem no livro didático e com um devido desenvolvimento,
talvez consigamos ir além da perversidade humana ou da inconsequência adoles-
cente e historicamente lidar com ações como a de atear fogo a um índio pataxó,
como vimos acontecer em Brasília em 1997.

24 O Globo, Caderno Prosa e Verso, 10 mar. 2007, p. 1.

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Imagens de índios e livros didáticos 297

Quando penso em representações, sujeitos e cidadania como suportes para


ponderar sobre a questão indígena na sociedade brasileira, não posso fechar os
olhos nem à sentença proferida pela juíza que desclassificou o crime de homicídio
doloso para lesão corporal seguida de morte, o que ratifica a desimportância dos
povos indígenas, nem ao motivo manifestado pelos jovens, que teriam agido “para
se divertir com a cena de um ser humano em chamas”,25 numa alusão direta a um
êxtase visual. Do desconhecimento e da inferiorização dos índios ao privilégio do
espetáculo do corpo em chamas, em detrimento da humanidade e da vida, ainda
acredito que os dois gestos foram historicamente construídos e, como tais, po-
dem ser transformados com a ajuda da escola e do livro didático.

25 Sentença de pronúncia proferida pela juíza do Tribunal do Júri de Brasília, Sandra de Santis

Mello, em 9 de agosto de 1997. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=290>.

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Capítulo 14

Personagens negros e livros didáticos: reflexões


sobre a ação política dos afrodescendentes
e as representações da cultura brasileira

Hebe Mattos *
Martha Abreu **
Carolina Vianna Dantas ***
Renata Moraes ****

Nosso objetivo neste capítulo foi unir reflexões e histórias de pesquisa a partir de
um eixo comum de indagação: como determinados sujeitos históricos — escra-
vos, libertos e afrodescendentes — foram representados em alguns livros didáti-
cos selecionados. Partimos do princípio de que tal presença se relaciona direta-
mente com as mudanças da produção historiográfica e, especialmente, com as
questões políticas que envolveram, ao longo do tempo, a percepção da identida-
de negra no país. Fazer um histórico dessa presença é também historicizar o lugar
do racismo (e do antirracismo) no pensamento social brasileiro.
Para concretizarmos nossa discussão, analisaremos, na primeira seção des-
te trabalho, uma produção didática mais antiga sobre os líderes negros Zumbi e
Henrique Dias, e também sobre a abolição da escravidão. Na segunda seção,
vamos considerar duas coleções didáticas atuais: História temática, de Andréa
Montellato, Roberto Catelli Júnior e Conceição Cabrini, publicada pela Editora

* Professor titular de história do Brasil da UFF.


** Professora associada do Departamento de História da UFF.
*** Professora da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e doutora em história pela UFF.
**** Mestra em história pela UFF e doutoranda em história social da cultura da PUC-Rio.

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300 A história na escola

Scipione, e História e vida integrada, de Nelson e Claudino Piletti, publicada pela


Editora Ática.
A escolha das duas coleções atuais se deu em função de serem livros de
grande circulação e por expressarem diferentes concepções de história no univer-
so dos livros didáticos. Complementarmente, a primeira coleção traz autores
novos e a segunda conta com a presença de autores que já estão no mercado de
livros didáticos há mais tempo.

Sobre heróis negros no passado


Menções positivas a personagens históricos afrodescendentes já podem ser locali-
zadas no primeiro livro didático de história do Brasil, o Compêndio de história
do Brasil (1843), de José Inácio de Abreu e Lima.1 Nesse primeiro manual de
história pátria, dois personagens históricos do século XVII — Henrique Dias
(mestre-de-campo do Regimento dos Negros, Crioulos e Mulatos na guerra con-
tra a presença holandesa no litoral do Nordeste) e Zumbi (último líder do
Quilombo dos Palmares) —, explicitamente construídos como “heróis negros”,
estão surpreendentemente bem-representados.
Essa presença descortina uma faceta antiescravista e antirracista, mas não
abolicionista, do pensamento historiográfico do período, capaz de produzir uma
significação específica para as figuras de Henrique Dias e Zumbi nesse primeiro
compêndio de história do Brasil. Com base nas novas ideias de matriz “liberal” ou
“iluminista” então em voga, a lição a ser ensinada era que a cor não passaria de
um “acidente”, como a “glória” e a “coragem” dos heróis citados bem comprova-
riam. Segundo o Compêndio, ainda que tivessem ingressado como escravos na
sociedade colonial, havia um lugar para os descendentes de africanos na nação em
formação, uma vez superada a condição de escravidão. Nas primeiras décadas
após a independência, a plena incorporação como cidadãos brasileiros dos des-
cendentes de africanos libertos e livres — em associação ao combate ao comércio
transatlântico de escravos — constituía o horizonte socialmente mais alargado
do pensamento político do tempo. A Constituição monárquica de 1824 legitima-
va a continuidade da escravidão em nome do direito de propriedade, mas tam-
bém tornava ilegal a maioria das antigas restrições civis à população livre dita “de
cor”. Como muitos dos liberais exaltados do tempo, Abreu e Lima enfatizava os
sentidos antirracistas dessa perspectiva.

1 Lima, 1843.

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Personagens negros e livros didáticos 301

Ele se integrava ao campo historiográfico que Evaldo Cabral de Mello cha-


mou de nativismo pernambucano oitocentista,2 tradição que se inscrevia no cam-
po político liberal, com vertentes antirracistas bem-definidas e atuantes nas déca-
das que antecederam a publicação do livro. Tal tradição rejeitava justificativas
racializadas para a manutenção da escravidão, acatando apenas as de base histó-
rica e jurídica, bem como qualquer restrição de direitos civis e políticos com base
em características inatas.
Na narrativa de Abreu e Lima, o Quilombo dos Palmares destaca-se por
sua grandeza, civilização e pelos milhares de habitantes que conseguiu reunir.
Henrique Dias se destaca como herói da luta dos pernambucanos contra o domí-
nio holandês, juntamente com a nobreza da terra pernambucana e o chefe das
tropas indígenas, Felipe Camarão. Por sua coragem e pelas condecorações recebi-
das da coroa portuguesa, Henrique Dias evidenciava que a cor era apenas um
“acidente”. Os retratos de Dias e Camarão ilustravam a primeira edição do Com-
pêndio, ao lado de uma seleta galeria de heróis: os dois imperadores, José
Bonifácio, Pedro Álvares Cabral e Cristóvão Colombo.
Quando da edição do Compêndio, seu autor manteve famosa polêmica com
o historiador e diplomata Francisco Adolfo Varnhagen, que o acusou de plágio.
Como o próprio Abreu e Lima reconhecia, ele valeu-se amplamente de trechos do
livro História do Brasil, do inglês Robert Southey, na confecção do manual.3 A
construção do compêndio trazia, porém, uma concepção pedagógica original,
que buscava formar o estudante no sentimento patriótico, identificado a um povo
brasileiro em formação, que incluía os cidadãos brasileiros descendentes de indí-
genas e africanos escravizados.
Talvez por isso tenha feito curta carreira no ensino da história do período
monárquico. O manual escrito por Joaquim Manoel de Macedo, cujo título é
Lições de história do Brasil (1865),4 baseado na história do Brasil escrita por
Varnhagen, teve uma carreira bem mais longa e reservou um lugar bem menos
proeminente para os dois personagens negros. Mas eles ainda estavam lá. O ma-

2
Melo, 1986.
3 O livro de Southey foi publicado na Inglaterra entre 1810 e 1822. Só foi traduzido para o
português e publicado no Brasil em 1862, após a publicação da História geral do Brasil, de
Adolfo Varnhagen, em 1854.
4 Macedo, 1865.

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302 A história na escola

nual foi adotado no Colégio Pedro II, no qual Macedo lecionava — e continuou
sendo adotado e atualizado até pelo menos 1916. Nele, a “Guerra Holandesa”
mereceu seis lições, nas quais Henrique Dias foi rapidamente citado em apenas
duas. De forma ainda mais restrita, o herói só apareceu uma vez no quadro
sinóptico, com a seguinte definição: “Henrique Dias, chefe dos negros”. A abor-
dagem sobre Zumbi acentua ainda mais essa tendência. Na lição XXV, “A destrui-
ção dos Palmares, as guerras civis dos mascates em Pernambuco e dos emboabas
em Minas”, o Quilombo dos Palmares é citado uma única vez, como uma ameaça
à ordem produzida pelos malefícios da escravidão. Numa perspectiva já
abolicionista, Zumbi é definido como um negro que preferiu a morte à escravi-
dão. Mas não havia elogios à civilização de Palmares. Para Macedo, o quilombo
reunia escravos fugidos, bandidos e desertores. Em suas lições de história do Bra-
sil, o herói era Domingos Jorge Velho, bandeirante que destruiu o quilombo.
Essa versão de Macedo dos dois heróis ainda é claramente pautada pelos
parâmetros do liberalismo oitocentista, em versão elitista e racializada. A cor
não significava muita coisa em si mesma, mas a experiência da escravidão sim.
Macedo temia os escravizados e seu potencial desagregador para a sociedade bra-
sileira, do qual a cor era símbolo e estigma.
Contudo, os novos ares trazidos pela abolição da escravidão (1888) e pela
proclamação da República (1889) modificaram o lugar conferido aos afrodes-
cendentes na história nacional do momento. A própria forma de os intelectuais
pensarem a formação do Brasil agregou novas referências: o enfoque cultural e/ou
racial passaria a predominar, em lugar dos termos sociais e políticos das aborda-
gens anteriores. Era a construção de uma raça brasileira, que incorporava negros e
indígenas sob a liderança portuguesa que se afirmava como base das novas aborda-
gens. Assim, junto à predominância do mito das três raças, destacar-se-ia a signifi-
cativa presença de Henrique Dias (um afrodescendente inserido na sociedade colo-
nial). Em alguns importantes livros didáticos (no sentido de que tiveram várias
edições), publicados entre o final do século XIX e início do XX, como A história do
Brasil ensinada pela biografia de seus heróis (1890), de Sílvio Romero,5 e Revolu-
ções brasileiras: resumos históricos (1898), de Gonzaga Duque,6 ele ganharia desta-
que como herói do que se selecionou como a “história pátria”.

5 Romero, 1908.
6 Hardman e Lins, 1998. Ver Mattos, 2007; e Dantas, 2007.

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Personagens negros e livros didáticos 303

A figura de Zumbi como herói negro, contudo, não foi completamente


silenciada durante a Primeira República. Atualmente, é comum encontrarmos,
em livros didáticos de história, Zumbi mencionado como a personificação da
rebeldia escrava ou como um herói na luta pela liberdade no Brasil. Decerto, essa
perspectiva se relaciona ao fortalecimento, na década de 1970, do movimento
negro, que, desde então, investiu na figura de Zumbi como ícone da denúncia do
racismo, do próprio movimento e da sua proposta de resistência e libertação.7
No entanto, a presença de Zumbi em manuais didáticos não foi inaugura-
da nos anos 1970. As disputas em torno de personagens históricos afrodescendentes
e de seu papel no que, em cada momento, se construiu como “a história do Brasil”
podem ser identificadas desde pelo menos o século XVIII, intensificando-se, po-
rém, no século XIX, com o processo de independência, e aflorando novamente em
alguns momentos cruciais em que a história do Brasil foi sistematicamente rees-
crita: na chamada Primeira República, sob o impacto da abolição e da própria
proclamação da República, e na era Vargas.
No manual didático Revoluções brasileiras: resumos históricos (1898),
Gonzaga Duque8 atribuiu a Zumbi características positivas — forte, líder, justo e
corajoso — e lhe conferiu status de herói nacional por seu empenho na luta pela
liberdade. Zumbi também estava presente no panteão instituído por Mario
Behring em 1906,9 na afamada revista Kosmos — periódico que tinha muitos
professores entre seus colaboradores e leitores. Behring ressaltou a coragem de
Zumbi e argumentou contra a premissa de que teria covardemente se suicidado,
dizendo que havia morrido lutando pela liberdade. Essa argumentação, segundo
o autor, justificava que se tomasse Zumbi como um glorioso “herói negro que
resistiu impávido a um exército de 7.000 soldados aguerridos”.10 Assim como
Gonzaga Duque, Mario Behring mencionou a cor (negro) e a origem (africana)
desses homens. Sabemos também que Zumbi ganhou pelo menos uma grande tela
na primeira década do século XX, feita pelo consagrado pintor Antonio Parreiras

7 De acordo com Silvia Lara (1995:9), foi a partir da criação do Movimento Negro Unificado
(MNU), em 1978, que se instituiu o dia da morte de Zumbi — 20 de novembro — como o Dia
Nacional da Consciência Negra.
8
Hardman e Lins, 1998.
9 Behring, 1906.
10 Ibid.

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304 A história na escola

em 1903, retratando-o como uma figura altiva e valente. Curiosamente, essa ima-
gem é encontrada em muitos livros didáticos de história atuais.
Como vimos, durante a Primeira República, Henrique Dias e Zumbi fo-
ram personagens históricos retomados de um passado já distante (o período co-
lonial) e, ainda assim, estiveram envolvidos em várias disputas sobre que papéis
ocupariam na história a ser ensinada. Sem dúvida, a abolição foi crucial para essa
retomada, mas ela própria também teve que ser incorporada à história do Brasil.
Na Primeira República, a abordagem da abolição — processo então recen-
te — envolvia diretamente os afrodescendentes e o estabelecimento de novas rela-
ções entre “populus e plebe”.11 Ao acompanhar as interpretações do 13 de Maio a
partir de alguns dos manuais didáticos mais difundidos nas primeiras décadas do
século XX, pode-se afirmar que seus autores pautaram suas análises pela adesão à
matriz política monarquista ou republicana.
Na obra História do Brasil — curso superior, de João Ribeiro (1900),12 a
ação da princesa Isabel e, principalmente, a contribuição das leis emancipadoras
no fim da escravidão ganharam destaque. Segundo o autor, a lei de 1871 (do
Ventre Livre) representou por si só a abolição definitiva do cativeiro e, por isso
mesmo, não seria necessária qualquer outra lei, uma vez que a escravidão acaba-
ria no prazo breve de duas gerações. Contudo, 17 anos depois, a princesa Isabel,
ao assinar a Lei Áurea, desferiu um grande golpe contra os fazendeiros que ainda
tinham um grande número de escravos, desestruturando o trabalho e trazendo
grandes prejuízos aos agricultores. Ribeiro, assim, acabou privilegiando as leis
emancipadoras, a atuação da princesa no processo da abolição e “os efeitos nega-
tivos da Abolição”, solidarizando-se — em pleno período republicano — com a
perspectiva senhorial do processo.13
Quase 20 anos depois, Osório Duque-Estrada, autor de História do Brasil
(1918),14 destacou em seu manual a participação de outros agentes, minimizando
a ação do governo imperial — principalmente da princesa e de seus ministros —,
diante da pressão que os abolicionistas teriam feito nas discussões em torno das

11 Mattos, 1989.
12
Ribeiro, 1955.
13 Ibid., p. 408.
14 Duque-Estrada, 1918.

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Personagens negros e livros didáticos 305

leis emancipadoras anteriores a 1888. Ao tratar da lei do 13 de Maio, Duque-


Estrada sequer menciona o nome da princesa Isabel, pois para ele a Lei Áurea fora
o reconhecimento da vitória da campanha abolicionista, que teria ido das ruas
para o parlamento.
Assim, a campanha abolicionista foi qualificada como a mais “bela e gene-
rosa”; não uma generosidade vinda do trono e, sim, da luta dos abolicionistas e
do povo — associada às festas em prol da abolição. Nessa abordagem ganharam
destaque os nomes de alguns abolicionistas, como José do Patrocínio, Ruy Barbo-
sa, Joaquim Nabuco, Ciro de Azevedo, Vicente de Souza, Ennes de Souza, entre
outros. Note-se, no entanto, que nenhum desses abolicionistas foi identificado ou
mencionado pelo autor como afrodescendente, nem mesmo quando fez referên-
cia a Luiz Gama e a sua atuação na imprensa antes da campanha abolicionista
propriamente dita.15
Tanto a obra já citada de Duque-Estrada quanto um outro manual impor-
tante no período, escrito por Pedro do Coutto — Pontos de história do Brasil
(1920) —16 fazem parte das reflexões que marcaram os trinta anos da abolição da
escravidão.17 Já na introdução do livro, Pedro do Coutto expôs suas ideias a
respeito da abolição. Segundo o autor, o papel conferido à princesa Isabel no fim
da escravidão seria exagerado, uma vez que a ação determinante teria sido desem-
penhada pela “ardente e perigosa” campanha abolicionista, que ganhou “o apoio
e o auxílio direto do próprio escravo”.18 Para ele, a princesa não pôde conter a
pressão do povo brasileiro, sendo secundária sua ação referente à lei do 13 de
Maio: “o trono [...] apresentou-a como redentora de quem já se havia redimido,
a fim de pôr obstáculos ao complemento natural da abolição da escravidão — a
implantação da República”.19
Portanto, o autor não só valoriza a campanha abolicionista, como inclui o
escravo como agente ativo na luta pela liberdade, ainda que guiado pelas mãos
dos abolicionistas. Ao minimizar o papel da princesa e do governo imperial no

15 Duque-Estrada, 1918:208.
16 Coutto, 1920.
17
Ver Moraes, 2007a e 2007b.
18 Coutto, 1920:216-217.
19 Ibid., p. 224.

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306 A história na escola

fim do cativeiro, o autor desvinculava a abolição da monarquia, ao passo que


associa a abolição à liberdade e ambas à república.
Nessa perspectiva, Duque-Estrada e Pedro do Coutto podem ser aproxi-
mados, na medida em que privilegiaram a atuação do movimento abolicionista.
Em seus livros, o 13 de Maio foi interpretado como o reconhecimento da vitória
da luta abolicionista e da adesão de todas as classes da sociedade à causa. Trinta
anos após a abolição, ainda disputavam a memória daquele processo com a nar-
rativa senhorial e monarquista de João Ribeiro (de finais do século XIX) e sua
avaliação negativa das consequências da Lei Áurea. Divergências à parte, temos
nesses três livros um ponto em comum: nenhum dos autores problematizou o
“pós-abolição”, ou seja, a condição social dos ex-escravos após a libertação ou
suas posteriores lutas políticas.
A era Vargas daria (em parte) esse salto. A partir de então o mito da prin-
cesa Isabel como “a Redentora” se inscreveria com força nos manuais didáticos,
em processo que só seria de fato concluído pela “doação”, por Vargas, da legisla-
ção social, aproximada a uma segunda abolição. Essa segunda abolição afirmaria
também a identidade mestiça do povo brasileiro.20
No novo contexto, Henrique Dias tornou-se, nos livros didáticos, o herói
afrodescendente por excelência. Do ponto de vista historiográfico, a interpreta-
ção de Capistrano de Abreu da guerra holandesa, transformada em “insurreição
pernambucana” e vista como espaço de congraçamento das raças formadoras da
nacionalidade brasileira, apresentada em seus Capítulos de história colonial, está
na matriz da perspectiva incorporada nos livros didáticos a partir de então.21 De
fato, a interpretação já estava presente na celebração de uma nova raça brasileira
em formação no manual didático de Sílvio Romero, citado anteriormente.
A partir da era Vargas, porém, a identidade mestiça brasileira foi incluída
oficialmente nos programas escolares, transformando-se em temática obrigató-
ria nos livros didáticos. Nos manuais mais vendidos do período, o mito das três
raças estava sempre presente, ainda que em (pelo menos) três diferentes versões.
A primeira delas citava estatísticas e premissas racistas, bastante comuns
na primeira metade do século XX, afirmando ser o brasileiro um povo “de sangue

20 Gomes, 1996.
21 Abreu, 1954.

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Personagens negros e livros didáticos 307

predominantemente branco”, mas fruto da mistura de três raças. Nas palavras de


Joaquim Silva, professor do Colégio Andrews e autor dos manuais de história do
Brasil mais vendidos dos anos 1930 aos 50:

A maior vantagem, porém [da insurreição pernambucana], foi melhor aproximar,


pelas necessidades da campanha em que se irmanavam, as três raças que deviam
contribuir para a formação do povo brasileiro: os brancos reinóis e seus descendentes,
como Vieira e Antônio Vidal; os índios como D. Antônio Camarão e os pretos, como
Henrique Dias.

[...]
pode-se dizer com segurança que o negro não africanizou o brasileiro. Deu-se o con-
trário. O português, tronco da raça, abrasileirou o africano que, dia a dia, foi abando-
nando os costumes, envolvendo, melhorando, progredindo.
[...]

As estatísticas mostram que, pela situação estacionária da raça negra e redução do


fator indígena cresce cada vez mais, nos grupos mestiços, a porcentagem de sangue
branco.22

Uma segunda versão valorizava a alma mestiça, como no manual de Vicente


Tapajós, no qual se pode ler, bem ao lado de ilustração com a figura de Henrique
Dias, a seguinte definição de povo brasileiro: “Um povo de cor branca, em plena
maioria, mas povo que não esquece os outros que também o constituíram... Flor
amorosa de 3 raças tristes”.23
Com inspiração em Gilberto Freyre (e palavras de Sílvio Romero), algu-
mas vezes se dava ênfase não apenas à alma, mas também à predominância do
sangue mestiço, como se pode acompanhar no trecho a seguir, extraído da Histó-
ria do Brasil para o colegial (de acordo com os novos programas), de 1953, de
autoria de Alfredo D’Escragnole Taunay:

Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelos louros, traz na alma, quando não na alma e
no corpo [...] a sombra ou, pelo menos, a pinta do negro (segue citação de Gilberto
Freyre).24

22
Cf. Silva, 1950.
23 Cf. Tapajós, 1956.
24 Cf. Taunay, 1953.

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308 A história na escola

Apenas em 1959, desenvolveu-se o primeiro esforço sistemático de elimina-


ção de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros.25

Escravidão, pluralidade cultural e cultura brasileira

A historiografia, a partir dos anos 1960, começou a colocar em relevo a luta dos
escravos e a abandonar a antiga escrita da história assentada na figura do herói.
Mas até recentemente, quase não problematizou o racismo como temática pe-
dagógica.
Com a publicação dos PCNs, em 1996, esse quadro se alterou. Desde
então, ocorreram importantes mudanças nos livros didáticos de história, com
a incorporação do conceito de pluralidade cultural e a denúncia do racismo na
sociedade brasileira. As novas Diretrizes curriculares nacionais para a educa-
ção das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasi-
leira e africana, aprovadas em 2003 e incorporadas rapidamente às reflexões
dos cursos de formação de professores, indicam que os caminhos abertos pelos
PCNs terão vida longa.
As conexões entre esses dois textos-documentos — a pluralidade cultural
dos PCNs e as Diretrizes 26 — produzidos por governos de orientação política
distinta, revelam muito nitidamente como esse tipo de intervenção pode ser visto
como desdobramento de um movimento social evidente e mais amplo. Resultou
principalmente do crescimento da força política dos movimentos negros na socie-
dade brasileira após a redemocratização e da formação de um novo consenso no
campo pedagógico em relação ao chamado “mito da democracia racial” no Bra-
sil. A partir desses documentos, fica evidente que não é mais possível pensar o
Brasil sem uma discussão sobre a questão racial. Essa mudança talvez tenha sido
o maior ganho das coleções didáticas que se declaram seguidoras dos PCNs.
Os livros didáticos que procuraram acompanhar a perspectiva de trabalho
com pluralidade cultural e combate ao racismo sem dúvida se esforçaram para
cumprir os novos objetivos. Introduziram conteúdos e atividades que estimulam
a convivência entre tradições e práticas culturais diferenciadas, sejam elas cultu-

25 Cf. Hollanda, 1957.


26
Podemos acrescentar ainda o decreto sobre o patrimônio imaterial (2004). Para uma refle-
xão sobre a questão, ver Abreu, 2007.

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Personagens negros e livros didáticos 309

rais, linguísticas, étnico-raciais, regionais ou religiosas,27 e articularam reflexões


e debates sobre as desigualdades raciais no país. Entretanto, nas obras consulta-
das, como iremos apresentar, ficam visíveis as dificuldades que encontraram.
Tais obras, ao desenvolverem a ideia de pluralidade e diversidade cultural,
não deixam de abrir mão de determinadas imagens historicamente recorrentes
do Brasil mestiço ou culturalmente integrado, sem conflitos, onde a união das
três raças foi uma importante marca identitária. Em geral, os trabalhos acabam
por justapor as duas perspectivas, privilegiando, em momentos diferentes e até
em capítulos alternados, ora a ideia de uma cultura brasileira mestiça e homogê-
nea, ora a ideia de uma cultura brasileira plural, na qual são valorizadas identi-
dades culturais diversas e por vezes conflitantes. Essa estratégia de incorporar
mais um conteúdo ou temática — e não proceder a uma revisão mais profunda
do conteúdo — é muito comum nas atualizações e novas edições dos livros didá-
ticos.
Como vimos, o mito das três raças foi uma construção fortemente enraizada
na produção de material didático no Brasil e compõe uma das representações
mais divulgadas da chamada identidade brasileira. Ou seja, a uma cultura brasi-
leira mestiça costuma-se fazer corresponder uma identidade brasileira igualmen-
te mestiça, coesa e homogênea. Os textos dos PCNs e das Diretrizes, ao defende-
rem a ideia de pluralidade cultural, entendida também como diversidade cultural,
criticam exatamente o papel homogeneizador dessa formulação, por encobrir uma
realidade de discriminação, hierarquia e conflito, racial e cultural, reproduzida
desde cedo no ambiente escolar.28
Em relação à denúncia do racismo na sociedade brasileira, os livros anali-
sados demonstram, sem dúvida, que a discussão ganhou espaço definitivo no
ensino de história. Mas continuam quase sempre apenas associando os
afrodescendentes com a escravidão, muitas vezes naturalizando tal associação.
Complementarmente, localizaram no período colonial, e em geral na 6a série, a
formação de uma cultura escrava e/ou as marcas de sua influência na identidade
cultural brasileira através da miscigenação, racial e cultural. A escravidão e seu
período respectivo tornam-se passados que não parecem querer passar. Como os
afrodescendentes são quase que exclusivamente associados ao trabalho escravo e

27 Brasil. SEF, 1998:124-125.


28 O próprio texto dos PCNs traz em alguns momentos essas ambiguidades. Para uma
reflexão sobre a ideia de pluralidade cultural, ver Mattos, 2003; e Gontijo, 2003.

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310 A história na escola

à formação da chamada cultura brasileira mestiça no período colonial, isso quase


inviabiliza, nos livros analisados, o reconhecimento do protagonismo político
desses sujeitos sociais para além da luta contra seus senhores. Depois do período
colonial e da escravidão, os afrodescendentes praticamente desaparecem da his-
tória do Brasil ensinada, de alguma forma confirmando a ideia de que somos uma
nação sem problemas raciais. Por que estudar os afrodescendentes depois da abo-
lição, se não existem mais escravos?29
Tais ausências refletem em parte limitações da própria historiografia bra-
sileira. Bastante rica e complexa nas últimas décadas no que se refere à história
social da escravidão, só nos últimos anos a historiografia começa a se adensar no
que se refere aos estudos sobre a história da África pré-colonial e o período pós-
abolição, bem como sobre a presença política dos afrodescendentes livres na soci-
edade colonial e oitocentista.
Passaremos a exemplificar tais tendências e limitações, analisando mais
detidamente as duas coleções escolhidas.

A coleção História temática, de Montellato, Cabrini e Catelli


(São Paulo: Scipione, 2002)
Nessa coleção, os afrodescendentes e a África aparecem fundamentalmente no
volume da 6a série intitulado Diversidade cultural e conflitos.30 Mesmo num vo-
lume em que o título faz referência ao tema “diversidade cultural e conflitos”, os
povos africanos não foram considerados a partir de suas culturas de origem e de
seus encontros e desencontros com europeus e nativos americanos (temas desen-
volvidos nas unidades I e II para índios e portugueses), mas, sobretudo, a partir
de seu papel como força de trabalho.
Na unidade III (A construção da sociedade colonial), logo na abertura do
capítulo 7, os autores deixam clara a intenção de defender a ideia de uma socieda-
de (e cultura) colonial e mestiça em continuum até a “cultura brasileira” dos
nossos dias. O exemplo escolhido, logo de início, foi o “jeitinho brasileiro”, que,
desde o período colonial, marcaria a vida brasileira, através da malandragem na
resolução de problemas do cotidiano e da existência de muitos doutores que se

29
Ver Lara, 1995.
30 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002a.

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Personagens negros e livros didáticos 311

julgam mais cidadãos que o “resto” da população. Outras expressões culturais


destacadas, criadas no período colonial, e que ainda marcariam a chamada cul-
tura brasileira mestiça, seriam as festas (como local de diminuição das diferenças
e negação das regras do dia a dia), a cultura popular, a arte barroca (como sím-
bolo português), a religiosidade colonial, as práticas mágicas e a feitiçaria. Vale
lembrar que esses exemplos precedem qualquer referência às especificidades cul-
turais da presença africana na sociedade colonial que pudesse servir de parâmetro
para o entendimento dos “hibridismos” e “mestiçagens” culturais privilegiados
no texto.
No mesmo capítulo 7, o reforço da ideia de uma cultura brasileira mestiça,
desde os tempos coloniais, ainda aparece através de um texto de Gilberto Freyre
no qual tem destaque a ama de leite, o preto velho que conta histórias e toda uma
série de contatos e violências entre os pequenos senhores e os moleques. Gilberto
Freyre é apresentado como um autor que define a sociedade brasileira pela mistu-
ra de valores entre diferentes culturas: africana, europeia e indígena.31 A referên-
cia ao chamado mito das três raças fundadoras da nacionalidade brasileira tor-
na-se explícita.
A “diversidade cultural e os conflitos” prometidos no título do livro da 6a
série foram alojados em outra parte do livro, na unidade IV — Trabalho e resis-
tência — nos capítulos 9 e 10, respectivamente: “O que é ser escravo e o que é ser
livre” e “As resistências à escravidão”. Nessa unidade, os afrodescendentes ga-
nham destaque e ficam associados, nos textos e nas imagens, aos escravos, embora
haja nesse ponto uma comparação proposta entre a escravidão moderna e a es-
cravidão na Grécia Antiga, intentando tornar evidente que nem só de negros foi
feita a história da escravidão. Contudo, os africanos entram em cena a partir de
sua contribuição para a “construção da história das Américas e brasileira, pelo
seu trabalho, sua cultura e suas lutas por liberdade”. Alguns questionamentos,
bem diferentes daqueles da unidade III, norteiam a abordagem do tema e ajudam
a discussão do racismo e da problemática da pluralidade cultural: “O que terão
trazido os africanos? Mantiveram seus costumes, seus mitos? Modificaram seus
hábitos? Misturaram sua cultura com a de outros povos?”.32

31 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002a:137.


32 Ibid., p. 164.

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312 A história na escola

A perspectiva da resistência dos afrodescendentes à escravidão — e


consequentemente de valorização dos conflitos — é apresentada em várias di-
mensões: fugas, revoltas, sabotagens de ferramentas e do próprio trabalho, o
banzo, o suicídio, o aborto, o infanticídio, o assassinato de senhores e os
quilombos.33 Zumbi aparece, então, como o líder da resistência à expedição que
destruiu o Quilombo de Palmares. Sua morte em combate, em 20 de novembro,
dá ensejo à justificativa do Dia Nacional da Consciência Negra. Há um destaque
especial para as práticas religiosas, especialmente para a religiosidade afro-brasi-
leira — pensadas como importante arma de resistência ao cativeiro, já que eram
proibidos os cultos aos orixás, e as crenças africanas permaneciam clandestinas.34
Entendemos que os conteúdos dessa unidade IV são extremamente rele-
vantes para a compreensão da questão racial no Brasil e no mundo contemporâ-
neo, mas as linhas de conexão históricas traçadas entre a África, a escravidão e a
questão racial contemporânea mostram-se bastante problemáticas. Numa pro-
funda continuidade do passado no presente, os autores articulam a resistência à
escravidão à questão racial no Brasil de hoje através da apresentação do hip-hop
e das comunidades remanescentes de quilombos. É importante perceber que no
capítulo sobre a escravidão, onde se destaca uma quase naturalização da associa-
ção entre africanos/negros e escravidão,35 é que surgem as oportunidades para os
autores discutirem o apartheid na África do Sul e o preconceito racial e a discri-
minação no Brasil, através de um documento do Movimento Negro Unificado,
de 1978, e da Constituição brasileira de 1988.36
Diferentemente da unidade III, a unidade IV destina menos espaço às nego-
ciações culturais, hibridismos e mestiçagens e destaca a ideia da pluralidade cul-
tural, a partir de evidências de uma cultura africana e negra no período colonial,
em conflito com uma outra, europeia e católica. Entretanto, não está ausente a
forte imagem do Brasil mestiço, fruto da mestiçagem cultural e religiosa de ne-
gros e brancos, já que é proposta aos alunos uma pesquisa sobre o que da cultura

33 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002a:171.


34
Ibid., p. 169.
35 A insistência dos estudos historiográficos em associar África, tráfico de escravos e escravi-
dão gerou consequências no ensino de história, que ainda não descartou essa relação ao tratar
dos afrodescendentes. Ver Flores, 2006.
36 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002a:178.

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Personagens negros e livros didáticos 313

africana foi incorporado à cultura brasileira, como a capoeira, o samba, os pra-


tos da culinária e as palavras de origem africana.37 O tratamento dado à cultura
obedece a uma visão que prioriza a busca das origens, o inventário e a descrição
das práticas e expressões culturais, em detrimento de como os grupos sociais usa-
ram (e usam) as diferentes práticas culturais, herdadas e disponíveis, na constru-
ção de suas identidades e lutas políticas.
Após o volume da 6a série, os afrodescendentes só aparecem pontualmente.
São mencionados de forma explícita apenas no volume da 7a série, no capítulo 10
— “O Império brasileiro: revoltas, terra e escravidão” —, na abordagem das leis
que levaram à extinção gradual da escravidão no Brasil (1850, 1871, 1885) e da
Revolta dos Malês (1835), tomada como fruto de condições bastante específicas:
organização de escravos muçulmanos que sabiam ler, diferentemente dos demais
escravos. De acordo com o livro, os revoltosos pretendiam abolir a escravidão,
matar brancos e mulatos e promover a africanização da Bahia.38
No volume da 8a série,39 a Conjuração Baiana (1898), a Guerra do Paraguai
(1864-1871) e o fim da escravidão (note-se, e não a abolição) não fazem referência
à participação de afrodescendentes nesses episódios. No capítulo 7 — “O fim do
Império brasileiro: a República dos coronéis, da ordem e do progresso” —, po-
rém, a única menção a essa participação aparece em um boxe no qual há uma
caricatura do líder abolicionista José do Patrocínio e a afirmação de que ele “rea-
lizava discursos inflamados na defesa do fim da escravidão”.40 Além da imagem, a
partir da qual, seguramente, José do Patrocínio pode ser reconhecido como um
afrodescendente, não há referências (no corpo do texto) a sua cor ou condição.41
Daí em diante, nos capítulos que tratam da Revolta da Vacina (capítulo 7:
“O fim do Império brasileiro: a República dos coronéis, da ordem e do progres-
so”) e da formação do operariado e suas greves (capítulo 8: “Movimento operário
e as conquistas de direitos”), passando pelas duas guerras mundiais (capítulo 9: “As
duas guerras mundiais: nacionalismos e preconceitos”), pela era Vargas (capítu-

37 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002a:177.


38 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002b:176 e 182, respectivamente.
39 Montellato, Cabrini e Catelli Jr., 2002c.
40
Ibid., p. 147.
41 Ibid.

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314 A história na escola

lo 10: “A Era Vargas: retratos de uma nova ordem”), pela ditadura militar e a
abertura política (capítulo 11: “Brasileiros, mostrem suas caras”), os afrodescendentes
desaparecem das temáticas tratadas. Nem uma única palavra sobre racismo, di-
reitos civis e políticos aparece nesse volume, cujo tema é “O mundo dos cidadãos”,
apesar de as relações entre questão racial e direitos terem sido cruciais durante os
séculos XIX e XX no mundo atlântico, em meio às lutas pela libertação das nações
e dos escravos. A organização das novas nações independentes das Américas en-
volveu, ao longo do século XIX, uma série de lutas em torno dos direitos dos
afrodescendentes, escravos ou libertos.42
Os afrodescendentes, portanto, na coleção História temática, como em
várias outras, foram incorporados à história do Brasil majoritariamente no perío-
do colonial, a partir do duro trabalho escravo, da resistência à escravidão e de sua
contribuição cultural para a sociedade brasileira. Nessa perspectiva, a ação polí-
tica desses atores históricos não teria ultrapassado os limites das lutas contra os
senhores, no período colonial.43

A coleção História e vida integrada, de Nelson Piletti e


Claudino Piletti (São Paulo: Ática, 2005)
Da mesma forma que na coleção História temática, é no livro da 6a série que os
afrodescendentes aparecem com maior destaque, uma vez que é nesse volume que
o mundo colonial e a escravidão são tratados. No texto introdutório do capítulo
16 (“A escravidão”), os escravos são destacados como os maiores responsáveis
pela produção de riquezas no Brasil. Ressalta-se também que a história da escra-
vidão no Brasil não foi feita apenas de submissão, mas de lutas e resistência contra
a opressão.44
A ideia de pluralidade cultural está presente nesse capítulo, quando se desta-
cam as diferenças culturais marcantes, resultantes dos conflitos sociais da sociedade
escravista. Mas o capítulo também apresenta uma visão de Brasil culturalmente

42 Ver Mattos, 2004.


43 A esse respeito Elio Chaves Flores observou que os afrodescendentes sofreram uma espécie
de “seleção cultural” e, por isso, não aparecem nos conteúdos e nos currículos de história,
principalmente durante o período republicano, no qual predomina o cânone da mestiçagem.
Ver Flores, 2006:69-70.
44 Piletti e Piletti, 2005a:152.

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Personagens negros e livros didáticos 315

mestiço, no que diz respeito às vestimentas, à culinária, à religião, às línguas, às


moradias. A ideia de mistura cultural e de um Brasil mestiço aparece ao lado de
identidades afro-brasileiras, pois se “os africanos escravizados eram forçados a
abandonar grande parte de seus costumes e a adotar os hábitos impostos pelo seu
dono, conseguiram manter muitas de suas tradições: danças, palavras de suas
línguas, religião etc”.45 Na ótica dos autores, os africanos escravizados no Brasil
aproveitaram as festas religiosas católicas para “relembrar suas tradições nativas
por meio da dança e da música” e, assim, “conseguiam manter parte de sua cultu-
ra”.46 A imposição da dominação senhorial teria gerado misturas que permanece-
ram e que marcam positivamente o Brasil até hoje: “Ao longo dos séculos, foi sobre
essa mescla que se construiu grande parte dos valores de nossa sociedade”.47 O texto
dessa coleção também está repleto de ambiguidades ao trabalhar com questões
culturais. Ou os africanos conseguiram manter suas tradições — parte de sua cultu-
ra — ou teriam aceitado as “misturas”, pela imposição senhorial. Valoradas positi-
vamente, essas misturas teriam construído o Brasil de hoje e estariam presentes
sobretudo na alimentação, na língua, na arte e na religião.
A questão do racismo na atualidade, com textos e atividades que visam
levar o aluno a pensar nas desigualdades sociais entre negros e brancos, é destacada
após a apresentação dos quilombos.48 Apontados como o principal exemplo
de resistência dos africanos à escravidão, os quilombos teriam se tornado locais de
resgate e de preservação de tradições pelos africanos. O Quilombo de Palmares e
Zumbi são tomados como exemplos de resistência e luta pela liberdade no Brasil.

45 Piletti e Piletti, 2005a:154.


46
Ibid., p. 155.
47 Ibid.
48 Vale destacar que, na edição de 2007, o debate mais explícito sobre o racismo deu lugar à
abordagem das comunidades remanescentes de quilombos, a textos e atividades suplementares
— seção Discutindo o Capítulo; seção Oficina de História, com o texto “Como bem castigar os
escravos”; seção Nosso Mundo de Hoje, com o texto “A escravidão que persiste”; seção Fazendo
a Síntese; seção Textos e Contextos, com o texto “Histórias e linguagem no Brasil: a influência
africana” —, que visam aprofundar o estudo da escravidão, da influência e da mistura da
cultura africana no passado e no presente do Brasil. Há também um pequeno boxe, intitulado
“A África e a escravidão”, que traz algumas informações sobre a África pré-colonial e o impacto
causado pela chegada dos portugueses ali. Em seguida, um texto explicativo sobre os principais
grupos étnicos dos escravos trazidos para o Brasil. Ver Piletti e Piletti, 2007:158-161. As demais
citações da coleção História e vida integrada referem-se à edição de 2005.

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316 A história na escola

No restante da coleção, a presença dos afrodescententes ainda é registrada


no volume da 7a série, com a abolição, e no volume da 8a série, quando os autores
tratam da Revolta da Chibata, quando aludem a João Cândido como o líder da
revolta e filho de escravos. A abolição não teria trazido grandes mudanças, pois
não veio acompanhada de reformas na economia que propiciassem condições
dignas de trabalho, nem tampouco de uma reforma agrária. A partir daí, como
em vários outros livros, os afrodescendentes praticamente desaparecem da escri-
ta da história do Brasil.49
Em reedições mais recentes, como as de 2005 e 2007, percebe-se nessa cole-
ção uma significativa preocupação com a temática da pluralidade cultural, que
recebe, inclusive, capítulos específicos nos volumes das 7a e 8a séries. Algumas
questões relativas à história e à cultura africanas aparecem um pouco mais no
volume da 6a série, na 3a edição de 2007. Mas, tomando por base a edição de 2005,
localizamos a afirmação de que a cultura brasileira teria como particularidade a
“heterogeneidade, a mistura de culturas herdadas de diferentes grupos culturais e
étnicos”. Donde os autores concluem que é possível dizer que “há diferentes cultu-
ras no Brasil”, cujas características variam em função das regiões do país e de sua
história. Logo, a cultura brasileira seria formada por singularidades históricas
e peculiaridades regionais, fundamentais de serem estudadas para se “analisar e
compreender as formas de ver o mundo, interpretá-lo e nele atuar”.50
Mesmo reconhecendo a heterogeneidade da cultura brasileira, a forma pela
qual as manifestações culturais são mencionadas reiteram a homogeneidade. As
manifestações culturais ocupam o lugar dos sujeitos sociais e parecem evoluir
independentemente dos protagonistas, dos conflitos sociais e das conjunturas
históricas distintas. O Carnaval, por exemplo, é concebido como uma manifesta-
ção de origem portuguesa, mas que recebeu influências africanas ao longo do
tempo. Essa abordagem é reiterada quando se mencionam, em edições diferentes,
publicadas entre os anos de 2005 e 2007, o maracatu, a capoeira, o bumba meu
boi, o samba, o frevo, a congada, os reisados e a cavalhada. A influência africana
no Brasil é reconhecida pelos autores quando afirmam que, mesmo reprimidos e

49 Outro momento em que os afrodescendentes aparecem nesse volume é na abordagem da


descolonização afro-asiática, em que se faz referência ao apartheid na África do Sul. Ver Piletti
e Piletti, 2005b.
50 Piletti e Piletti, 2005a.

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Personagens negros e livros didáticos 317

forçados a deixar de lado os costumes africanos, os escravos resistiram e mantive-


ram viva a sua cultura, influenciando a nação brasileira. Mas nenhuma dessas
manifestações culturais é vista como local de conflito e formação de identidades
políticas, étnicas ou de classe. Não se problematiza como grupos sociais diferentes
e diversos criaram historicamente suas identidades através de práticas culturais,
sempre híbridas, envoltas em conflitos ou, por vezes, compartilhadas, como o
Carnaval é o melhor exemplo.
Uma recente historiografia sobre a ação política dos afrodescendentes para
além da escravidão e de sua influência nos aspectos culturais da nação brasileira
não foi ainda incorporada aos manuais didáticos, em especial às coleções conside-
radas. Nelas, mesmo a luta pela manutenção de tradições religiosas africanas é
predominantemente vista como resistência e, não, como negociação política.51
Na própria ideia de marcas africanas na cultura brasileira, o caráter político
dessa afirmação não é enfatizado e sua presença é colocada, em geral, a partir de
influências de manifestações específicas, como a dança, a culinária e a língua. A
luta dos afrodescendentes pela valorização de certas práticas culturais e religio-
sas, em meio a intensas trocas culturais ao longo do século XX, é silenciada.
Novas abordagens têm, porém, frutificado nas pesquisas acadêmicas. Como
entender que os escravos conseguiram legar um patrimônio cultural a sucessivas
gerações, por meio de lundus, sambas, capoeiras, maracatus, candomblés e jongos,
sem se levar em consideração um significativo esforço político de agenciamento e
negociação de seus protagonistas? Se há uma série de práticas culturais no Brasil,
ou nas Américas, que podem ser “localizadas” na África, é importante discutir os
significados dessas continuidades e seus significados políticos. Mas não só das
continuidades, já que não é possível pensar a permanência de uma cultura apenas
africana (e/ou negra) nas Américas. Inversamente, também é importante pensar
as descontinuidades, ou o que os descendentes de africanos fazem (ou fizeram) no
Brasil que não se encontra na África. A consagrada ideia de pensar uma cultura
afro-brasileira (ou negra) a partir dos resíduos africanos que permaneceram, se
por um lado pode facilitar as avaliações sobre a resistência, por outro acaba
desprezando o potencial de criatividade e transformação dos escravizados e de
seus descendentes. Os afrodescendentes usaram uma ampla variedade de fontes

51 É claro que muitos outros grupos sociais também não têm reconhecido seu protagonismo

político, como operários, mulheres e camponeses.

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318 A história na escola

culturais — africanas, europeias e indígenas — para criar novas formas identificadas


como “negras” (ou “afro-brasileiras”).52
O mundo cultural é um território de conflitos, hierarquias e poder. Estabe-
lece diferenças e identidades. Por isso é difícil trabalhar, em qualquer nível de
ensino, com a existência de uma cultura brasileira sem conflitos ou hierarquias!
Essa constatação está na base dos PCNs e das Diretrizes. Para que se possa ir além
da justaposição de referências historiográficas, porém, a diversidade cultural bra-
sileira e a sua tão propalada pluriculturalidade precisam ser pensadas levando-se
em consideração os intercâmbios e as trocas culturais (e não apenas raízes e essên-
cias culturais), de forma a colocar em evidência a pluralidade cultural da própria
experiência negra no país.

Conclusão

Da leitura das duas coleções analisadas, as presenças e ausências verificadas nos


levam a confirmar que a escravidão — ou a reação a ela, através, principalmente,
dos quilombos e de Zumbi — continua sendo o “lugar” primordial dos
afrodescendentes na história do Brasil. Embora suas contribuições em termos
culturais e suas lutas pela liberdade e pela manutenção de suas tradições culturais
tenham sido em grande parte positivamente destacadas e incorporadas, bem como
a mistura original surgida desse processo, fica claro que nos capítulos que tratam
do período posterior à abolição da escravidão os afrodescendentes praticamente
desaparecem da história do Brasil. Entre a abolição e o racismo na atualidade, os
afrodescendentes não são mais destacados como portadores de alguma identida-
de especial ou como atores políticos. Até mesmo quando se trata de Zumbi, o
único grande herói negro presente nos livros didáticos mencionados, não há qual-
quer explicação sobre o movimento político dos afrodescendentes que propiciou,
na década de 1970, a consagração do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da
Consciência Negra.
De fato, a ideia de práticas culturais misturadas e partilhadas por todos,
como marcas do Brasil de hoje, também tem história. Foi construída por intelec-
tuais desde o final do século XIX, em geral folcloristas, com objetivo de projeta-
rem, em termos políticos, uma nação integrada e identificada culturalmente pela

52 Mattos e Abreu, 2006:49-59.

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Personagens negros e livros didáticos 319

língua, pela música e pela festa. As presenças e ausências dos afrodescendentes nas
coleções analisadas — e em outras ainda por serem investigadas — revelam mui-
to sobre a construção da história e do passado nacionais nos livros didáticos.53
Os livros didáticos destacados demonstram o quanto as representações
sobre os afrodescendentes estão vinculadas às questões e aos dilemas de seu pró-
prio tempo. Entretanto, em comum, como vimos, reforçam uma determinada
visão, associada à figura do escravo. Quando reconhecem a ação política dos
afrodescententes, esta também é restrita ao período colonial e, consequentemente,
à luta e à resistência contra a escravidão.
A publicação das Diretrizes curriculares nacionais para a educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e afri-
cana demonstra exemplarmente a emergência de uma outra luta política, muito
depois da abolição, que coloca em pauta, entre outras questões, a própria escrita
da história dos afrodescendentes. O documento abre, oficialmente, caminho para
a construção de outras memórias e histórias sobre as lutas políticas dos afrodes-
cendentes para além da escravidão. Estimula que se busque a história dos
afrodescendentes no século XX, suas associações, trajetórias, estratégias políticas
e lutas culturais de combate ao racismo.54
Um caminho promissor, como nos sugere Stuart Hall, é dirigir “a nossa
atenção criativa para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência
negra”, apesar da evidente distinção de um conjunto de experiências negras histo-
ricamente datadas,55 como a diáspora e a escravidão.
Já há munição historiográfica para a tarefa. As relações entre práticas cul-
turais e a criação de identidades políticas negras têm sido problematizadas em
diversos círculos de pesquisa e precisam ser incorporadas ao ambiente do ensino
de história, levando-se em conta as culturas como processo e as identidades cole-
tivas como construções culturais e políticas, por isso históricas e relacionais. Des-
sa forma, as identidades culturais passariam a emergir no texto didático como
literalmente construídas e disputadas no processo histórico. Não existem antes
ou além dele.56

53 Ver Oliveira, 2000.


54 A respeito dos limites e ambiguidades das diretrizes em relação a ideia de raça e cultura
negra, ver Mattos e Abreu, 2006.
55 Hall, 2003:346.
56 Mattos e Abreu, 2006. Nesse sentido, ver, entre outros, Barth, 2000; e Cerutti, 1998.

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320 A história na escola

Assim, ainda durante a escravidão, podem ser mais conhecidas outras lu-
tas, como a dos escravos por direitos, ou dos libertos por representação política.
Mas torna-se importante também construir uma escrita da história que inclua
muitas outras experiências e trajetórias políticas e culturais. Por exemplo, a dos
trabalhadores negros no movimento operário organizado nas primeiras décadas
do século XX; a dos jornais negros, que já na Primeira República buscavam repre-
sentar-se e incluir-se na nação em termos políticos e culturais; a dos movimentos
negros formalizados, como a Frente Negra dos anos 1930, o jornal O Quilombo,
de Abdias do Nascimento, no final dos anos 1940, e o Movimento Negro Unifica-
do (MNU) dos anos 1970; a de diversos músicos do Black Rio e dos carnavais
baianos da década de 1970, que inventaram outras Áfricas e Américas negras; a
das comunidades negras (rurais e urbanas) e sua luta pelo reconhecimento de
suas práticas culturais, como o jongo ou o samba de roda, como patrimônio
cultural do Brasil, além dos variados grupos musicais, de hip-hop, funk e reggae,
que, em vários locais do Brasil, mobilizam jovens e afirmam novas identidades e
culturas políticas negras.
Tais movimentos e associações expressam — e sempre expressaram — lutas
políticas mais amplas, pela liberdade, pela terra, pelo voto, pela tradição e pela
própria identidade negra. Nesse contexto, revisitar as experiências de vida de
personagens históricos negros, alguns já bem conhecidos, como Zumbi, Henrique
Dias, Patrocínio, Tia Ciata e Pixinguinha, outros nem tanto, como o capoeirista
Prata Preta, o deputado Monteiro Lopes, o músico Eduardo das Neves ou o flau-
tista Patápio da Silva, pode ajudar a trazer a tona como, apesar de todos os
limites, homens e mulheres negros encontraram oportunidades de modificar e
romper com os destinos que lhes tentaram impor a história e, principalmente, a
escrita da história,57 para muito além da experiência da escravidão.58

57 Ao lado da importância do ensino da história da África, o trabalho com biografias de


personalidades negras da história do Brasil e do mundo atlântico é uma das orientações das
Diretrizes. Essa orientação, porém, não deve ser tomada como uma iniciativa heroicizante,
como uma espécie de réplica ao que uma historiografia fazia com personagens históricos na
maior parte brancos. Partindo de outro ponto de vista, é certo que uma abordagem crítica
dessas biografias permitiria historicizar, através de exemplos concretos, como o preconceito
racial se manifestou (e se manifesta) na sociedade brasileira.
58 Hall, 2003.

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