Você está na página 1de 11

1

O problema do estatuto onto-axiológico do feto e o seu lugar na


comunidade moral.
Marconi Pequeno (UFPB)

A questão do direito do feto, além de nos remeter aos dilemas gerados pelos
experimentos com embriões, transplante de tecidos fetais ou coleta de material genético
embrionário para fins de reprodução, nos coloca em face do problema referente ao aborto
deliberadamente provocado. A discussão acerca do aborto, por sua vez, tende a gravitar
em torno de algumas questões: o embrião humano ainda invisível e inerte se constitui
como um membro da comunidade moral? Que tipo de ser é um feto? Seria ele um sujeito
de direitos? Ou ainda: qual a nossa obrigação moral face às gerações futuras inexistentes?
As pessoas chamadas a opinar sobre este tema são muitas vezes conduzidas por intuições
ou por visões obscuras e preconceituosas do fenômeno. A maior parte das respostas se
traduz sob a forma de posições liberais, conservadoras e moderadas a respeito do estatuto
do feto, dos seus direitos e das obrigações morais que teríamos ou não em relação aos
mesmos. Noutra direção, pode-se abordar o problema do feto em termos de pessoa ou,
mais particularmente, em termos de pessoa em potencial. Para tanto, seria necessário
distinguir as categorias de ser humano e pessoa. Tal questão, porém, pressupõe uma
outra: qual o estatuto onto-axiológico do feto e como a sua condição de ser é capaz de
engendrar um dever-ser, ou seja, um compromisso moral dos membros efetivos da
comunidade moral?
As respostas a tais questões quase sempre se afiguram incompletas ou eivadas de
paradoxos. A vertente liberal, ao afirmar o inalienável direito do homem à propriedade,
considera natural o fato de o indivíduo exercer um controle sobre seu corpo e sobre seus
atos. O direito à propriedade, nesse caso, se apresenta como absoluto, sendo os demais
direitos derivados deste. Disso resulta que a mulher, titular de um direito absoluto sobre
seu corpo, poderia conceber o feto como um intruso ou como um apêndice que lhe está
aderido. Com base nesses pressupostos, nenhum ser humano teria o direito de impor a um
outro um gesto positivo em seu favor se este não for livremente consentido. Significa
2

dizer que o destino do embrião e, mais tardiamente, do feto, poderia ser decidido pela
progenitora em qualquer momento da gravidez.
No entanto, tal concepção suscita alguns problemas. Ora, ninguém duvida que o
feto situa-se no interior do corpo da mulher, porém parece exagerado compará-lo a um de
seus órgãos. Com efeito, no momento da fecundação, dois gametas haplóides fusionam-
se para dar origem a um zigoto diplóide. Assim, do ponto de vista genético, e levando-se
em conta as vias tradicionais de fecundação (copulação homem-mulher), o feto é, em sua
metade, produto ou genuíno herdeiro do patrimônio genético do pai. Se se aceita que o
ser humano é legitimamente possuidor disto que ele elaborou ou transformou, a situação
fica ainda mais complexa, posto que o homem tornar-se-ia também proprietário do ser
que se aloja no ventre da mulher. Por outro lado, se se parte do pressuposto de que o feto
é desde sempre um ser humano, as dificuldades ampliam-se consideravelmente, pois o
feto e a mucosa uterina participam conjuntamente da formação da placenta e isto o
tornaria, pelo menos em parte, possuidor da mesma. O aborto provocado o privaria,
assim, de uma propriedade que poderíamos reputar, a partir de então, como sendo
legítima. Eis alguns impasses enfrentados por algumas teorias liberais que fazem do
direito de propriedade a base dos demais direitos.
Por outro lado, as concepções de tendência conservadora, notadamente contrárias
às práticas abortivas, afirmam que existe no zigoto já constituído a identidade biológica
de um novo indivíduo humano e, por conseguinte, de uma pessoa. Mas isto também não
contribui para superar o impasse. Primeiramente porque a idéia segundo a qual ser
humano, personalidade e individualidade biológica se identificam desde o instante da
concepção se mostra insuficiente. Além disso, a noção de identidade, quando aplicada
aos elementos do processo biológico, vai de encontro ao sentido mesmo da idéia de
evolução, cujo percurso é sujeito a intempéries e recuos, isto é, sofre reveses e
vicissitudes imprevisíveis. Noutra direção, pode-se abordar o problema do feto em termos
de pessoa ou, mais particularmente, em termos de pessoa em potencial, mas, para tanto,
seria necessário definir o que se entende por ser humano e pessoa.
O temo pessoa não está livre de equívocos: a pessoa (entidade dotada de valor e
fim em si mesma) opõe-se evidentemente à coisa (aquilo do qual podemos dispor). Do
ponto de vista jurídico, uma pessoa é um ser titular de direitos e de obrigações que tem,
3

por isso mesmo, um papel juridicamente reconhecido (uma pessoa pode ser proprietária
de um bem, assinar um contrato, recorrer à justiça, etc.). Também sabemos que grupos de
pessoas podem ter uma personalidade jurídica: os seres humanos podem ser pessoas
jurídicas, mas nem toda pessoa jurídica é um ser humano (por exemplo: uma empresa, o
Estado, um clube social.). Com efeito, se às pessoas podemos atribuir direitos plenos, a
partir de quais critérios podemos julgar se um feto é pessoa?
Considera-se pessoa todo ser capaz de perceber, sentir, ter conhecimento do
mundo exterior, raciocinar, agir de maneira independente, se comunicar e ter consciência
de si. Enfim, trata-se de qualidades pertinentes àqueles indivíduos que podemos chamar
de agentes. Nesse sentido, a posse em potencial dos sinais característicos do ser pessoa,
não confere ao feto um direito à vida. A possessão em potencial dessas capacidades faria
dele apenas um titular potencial de direitos. Mas direitos potenciais, ao que parece, não
criam obrigações efetivas.
Poder-se-ia afirmar, com base nessas considerações, que o feto não é uma pessoa,
nem, tampouco, faz parte da comunidade moral. Porém, seria correto pensar que outros
seres humanos que carecem de tais atributos como os velhos senis, os doentes em estado
de coma, os deficientes mentais agudos, os altistas, são também destituídos de
pessoalidade? A resposta é não, posto que os indivíduos acima mencionados ainda
gozem do estatuto de membros da comunidade moral, o que lhes garante direitos
jurídicos e prerrogativas inquestionáveis. Por outro lado, se a esta noção de pessoa forem
acrescentadas outras qualidades, como, por exemplo, a racionalidade, o poder criativo e a
autonomia de escolha e decisão, tornar-se-ia mais difícil encontrar exemplares na espécie
que façam jus à designação de pessoas detentoras de direito. Em razão de tais
dificuldades, a maioria dos autores que insistem sobre a idéia de que o feto é uma não-
pessoa considera que é somente com o nascimento que o mesmo adquire seu estatuto de
membro da comunidade moral. Mas por que o nascimento constitui um fato crucial ao
tratamento deste problema?
Sabe-se que existe uma diferença moralmente significativa entre um feto
momentos antes de vir ao mundo e um recém-nascido pouco depois de nele surgir.
Raciocinar deste modo significa também reconhecer o princípio de justiça que garante ao
recém-nascido prematuro, apesar de seu surgimento precoce, um estatuto de membro da
4

comunidade moral, titular do direito à vida. Todavia, um feto, mesmo que plenamente
desenvolvido, mas ainda alojado no útero materno, não tem existência assegurada, já que
continua à mercê de um aborto espontâneo tardio ou mesmo da morte súbita da
progenitora. Eis por que, depois do nascimento, a mãe, assim como os demais membros
da comunidade moral, não têm o direito de suprimir sua existência.
Ademais, quando se elege o ser humano adulto como paradigma de pessoa, surge
inevitavelmente a questão do infanticídio, pois dificilmente podemos dizer que o recém-
nascido manifesta o comportamento de uma pessoa. Ora, se o aborto é, em certas
situações e culturas, moralmente admitido sob o argumento de que o feto não é uma
pessoa, por que o infanticídio não seria também moralmente permitido? Não obstante o
mal-estar causado por esta indagação, ela parece-nos suficiente para demonstrar as
dificuldades enfrentadas pelas teorias que pensam o direito à vida a partir da idéia de
pessoa. Tais dificuldades continuam a ser embaladas pelo problema fundamental que
resta, para muitos, irresolúvel: quando o ser humano começa a viver?
Sobre este assunto, a ciência tem muito a dizer e pouco a nos convencer. Mesmo
considerando a gravidez um processo contínuo, há definições reputadas arbitrárias que
tentam determinar o ponto considerado como o mais significativo para elucidar esse
enigma. Segundo se confere maior ou menor importância ao enraizamento biológico da
pessoa, ou, ao contrário, ao seu reconhecimento social, pode-se instituir como origem da
vida humana: a nidação do blastocisto, a aparição da linha primitiva no plano mediano da
face dorsal do disco embrionário, o início da atividade cerebral do feto, os primeiros
movimentos do mesmo quando perceptíveis pela mulher gestante, à viabilidade, a
completude do seu ser, etc..
Desconsiderando este fato, outras concepções, não menos problemáticas, alegam,
a partir do argumento de pertinência específica, que o feto deve ser respeitado e protegido
por se tratar de uma criatura cuja natureza é ser racional, ou seja, pelo fato de o mesmo
pertencer a uma espécie natural cujos membros são agentes tipicamente racionais. Há
ainda, é claro, os argumentos de caráter teológico que defendem a inexorabilidade da
vida por ser esta resultado da vontade de uma evidência absoluta. A vida é uma dádiva
divina que a ninguém compete eliminar. Outros postulados assentam-se sobre o terreno
do probabilismo: se existe a perspectiva de uma vida no futuro, esta vida deve ser
5

preservada. Mas aqui somos também confrontados à evidência de que, como nos havia
mostrado Mendel ao indicar que as variações genéticas são aleatórias, bruscas,
descontínuas, imprevisíveis, o feto pode ser a garantia necessária, mas não suficiente de
que um ser humano vivo vingará. A previsibilidade, nesse caso, não basta para fundar um
direito, até porque o princípio da possessão potencial como gerador de direitos é bastante
simplista para dar conta da complexidade do problema.
Próximo a esta idéia, tem-se o utilitarismo hedonista que postula o direito à
proteção do feto em função de sua vulnerabilidade ou fragilidade. Mas não se sabe ainda
de que modo este princípio fundamentaria algum direito e se este geraria um mais
essencial, como é o caso do direito à vida. Ao lado de tais teorias, existem também
aquelas particularmente conhecidas por sua moderação.
Estas consideram que o feto adquire apenas gradualmente um direito à vida. Esta
é uma idéia defendida por Callahan (1970), para quem devemos respeitar o direito à vida,
sem, no entanto, negligenciar o direito das mulheres à autodeterminação em matéria de
procriação. Com isso, Callahan confere às mulheres gestantes o poder de formular as
regras que irão arbitrar tais conflitos de acordo com sua consciência. Nessa mesma
direção, J. English (1978) destaca o princípio de autodefesa para afirmar que, mesmo não
sendo o feto uma pessoa, não se deve julgar o aborto como moralmente permitido. Com
isso, ela recorre aos sentimentos morais gerados pela simpatia, compaixão e
culpabilidade para garantir o direito de decisão das gestantes. Trata-se, segundo a autora,
de deixar que tais sentimentos possam reger as decisões, pois a relação mulher-gestante-
feto é mais importante para a questão do aborto do que a discussão sobre o estatuto do
feto. Esta visão tem sido adotada, com variações ou nuanças pouco significativas, pela
maior parte dos países que adotaram uma legislação permitindo certos tipos de
interrupção de gravidez.
Todavia, ao que parece, tais legisladores raciocinam mais em termos de saúde
pública do que em termos, por assim dizer, morais. Trata-se quase sempre de limitar a
prática de abortos clandestinos suscetíveis de colocar em perigo a vida das mulheres. É
certo que tais leis podem chocar ou desagradar tanto os liberais quanto os conservadores.
Mas é, sem dúvida, o contingente conservador que reage com mais virulência contra tais
dispositivos legais, como demonstram os comandos anti-aborto nos países da Europa ou
6

ainda alguns fundamentalistas religiosos que destilam um ódio mortal contra os


profissionais que atuam nas clínicas abortivas.
Quem considera aceitável que uma mulher possa recorrer ao aborto, talvez choque
a consciência dos seus concidadãos, mas não é essa reprovação que irá persuadir ou
induzir alguém à interrupção da gravidez. Quem pensa que uma mulher não deve jamais
poder recorrer ao aborto pode ser tentado a impor, pela força, sua concepção de vida boa
a alguém que a recusa. Para muitos, é melhor apostar numa posição liberal, ainda que esta
seja eivada de dilemas deônticos e dramas psicológicos, do que deixar tudo sob a égide
do que eles chamam de conservadorismo obtuso. Foi isso que fez uma parte dos países
que legalizaram certas práticas abortivas como forma de assegurar o direito das mulheres
à autodeterminação. E esse decisão pode ser melhor assegurada porque, na outra ponta, a
questão referente ao direito do feto permanece confusa, controvertida e de difícil solução.
Um dos argumentos utilizados baseia-se no princípio de que o feto ainda não
possui as condições suficientes para se tornar uma pessoa de direito. Uma outra alegação
apresentada pelos defensores da interrupção da gravidez sugere que o utilitarismo, ao
defender o interesse e a vantagem que representaria a continuação da existência para o
feto, também se mostra insuficiente. Assim, tanto o princípio de potencialidade se mostra
duvidoso quanto o critério de otimização em matéria de política populacional se afigura
questionável para a defesa do direito inalienável do feto à vida.
O direito que se postula para o feto está muitas vezes condicionado ao seu
nascimento, porém este é, como vimos, incerto. Da mesma forma, sabe-se que o direito
retroativo aplicado a uma situação pré-natal não pode ser invocado a não ser depois do
nascimento. O direito legal do feto à assistência pré-natal somente poderia ser legalmente
instituído se o feto fosse considerado uma pessoa, o que não é o caso. A postulação de
um tal direito com base na idéia de interesse ou necessidade (Feinberg, 1980), não possui
plausibilidade, pois, para que se possa definir interesses, é preciso associá-los a desejos e,
quanto a isso, nós já sabemos, fetos, embora tenham necessidades, não têm desejos.
Da mesma forma, para adquirir direitos por intermédio de alguém que o
representasse, o feto teria de fazer esta reivindicação. Evidentemente isto foge ao seu
alcance. A obrigação para com o feto seria uma maneira de concebê-lo como uma
entidade que gozaria de benefícios por estar num estado de feto. A questão é recolocada:
7

em que sentido um estado de feto pode gerar direitos? As obrigações que dizem respeito
ao feto são aquelas concernentes aos humanos adultos: planejamento familiar, direito das
gestantes ao aborto, acesso ao diagnóstico pré-natal, etc. Todavia, é certo que continuar a
existir representa para o feto uma vantagem ligada ao seu interesse. Mas ter interesses
implica em ter desejos e, com isso, voltamos ao ponto de partida: se fetos têm desejos,
como podemos saber?
O princípio de utilidade das pessoas possíveis, defendido por Hare (1993),
também não é suficiente para solucionar o impasse, já que não temos obrigações morais
de procriar, de perpetuar a espécie humana, nem de multiplicá-la indefinidamente. Além
do que, a ampliação ilimitada do número de seres humanos vivos tende a agravar o
problema acerca da qualidade de população atual, bem como das gerações futuras.
O problema concernente aos interesses de pessoas em potencial diz respeito à
sociedade ou aos membros de uma comunidade. Trata-se não apenas de um problema de
“genética”, mas também de ética, haja vista as variáveis envolvidas: qualidade de vida,
crescimento demográfico, recursos disponíveis, o nível de bem-estar de cada um, dentre
outros. Mas como garantir a realização de todos esses interesses no contexto de uma
sociedade plural, complexa e marcada pelo conflito de cosmovisões? Como garantir o
direito à vida do feto se, em muitos países, a dignidade do homem e, consequentemente,
da mulher ainda está longe de ser conquistada? Enfim, o que significa a expressão
“preferências sociais” como meio de melhorar a qualidade de vida dos indivíduos e o
nível de bem-estar de cada um, se o papel dos sujeitos sociais ainda se mostra difuso
quanto ao grau de liberdade que lhe é permitido ter em relação ao seu corpo e ao seu
modo de viver? Por outro lado, como não reconhecer que os valores religiosos devem
também ser levados em conta quando falamos em constituição do ethos social?
Não obstante todo esse esforço de elucidação, a questão permanece: em que
momento o embrião ou o feto em desenvolvimento deve ser considerado humano? A
propósito deste impasse sobre o começo da nossa existência biológica, convém lembrar
um dos paradoxos do grego Zenão de Eléia (século V a. C.) que afirmava ser impossível
fixar com exatidão o momento em que Aquiles ultrapassou a tartaruga com quem
competia, ainda que saibamos que ele o fez. Sobre isto, parece sensato falar de vários
8

pontos ou etapas na evolução progressiva do embrião e do feto em direção ao homem


completo.
Portanto, trata-se de investigar se existe uma ontologia progressiva, se o embrião
evolui por zonas intermediárias entre o ser coisa e o ser pessoa. Se isto é verdade,
teríamos obrigações morais crescentes e diferenciadas para com a célula, o embrião e o
feto. Convém imaginar, a partir daí, situações de conflito entre os interesses (ou direitos)
do embrião ou do feto e os dos membros efetivos da comunidade moral. Podemos pensar
evidentemente na mulher gestante, mas também, como vimos, no progenitor, nos
membros da família ou mesmo da sociedade civil. Teríamos então deveres para como
aquilo que não se completou plenamente. Um dever imposto pelo direito de um ser em
formação.
Peter Kemp (1987) recusa esta idéia ao afirmar que só podemos edificar uma
ética a partir da concepção de homem completo, realizado, e isto não é uma tarefa da
biologia, mas da filosofia. Para Kemp, o homem está plenamente completo quanto toma
consciência de si e compreende o outro como um ser igualmente consciente dele mesmo.
Trata-se de saber se devemos respeitar momentos preliminares que antecedem a vida
consciente e, sobretudo, se temos a obrigação de preservá-la da mesma forma como
fazemos em relação ao homem realizado. Mas o indivíduo realizado, completo, é sempre
titular de direitos e obrigações. Noutros termos, trata-se já de uma pessoa.
Convém lembrar que a figura do sujeito de direitos está ligada à autonomia do
sujeito e não à natureza do ser vivo. Com este propósito, Lucien Sève (1994) indica que a
categoria de indivíduo faz parte dos conceitos da ciência biológica, mas pessoa não. Por
isso, quando designamos um ser humano de pessoa estamos nos referindo a algo de
ordem incorpórea. O problema, diz ele, não reside no fato de a pessoa humana recusar
uma definição, mas sim no fato de que existem múltiplas definições capazes de designá-
la, muitas das quais imprecisas ou insuficientes. A própria expressão ser uma pessoa traz
em si inúmeras ambigüidades, pois pode implicar, de um lado um fato real e, de outro,
uma postulação ou um valor.
Ademais, o problema da dimensão moral do ato abortivo nos remete, num certo
sentido, à questão já exposta por Hume acerca da distinção e irredutibilidade da ordem do
fato ao do valor, do ser ao dever-ser. Em seu Tratado da natureza humana, Hume mostra
9

que a distinção entre o vício e a virtude não se funda sobre as relações entre os objetos.
Esta confusão entre o que é um bem moral e o que é uma coisa natural acarreta aquilo
que Moore (1993) designou de naturalistic fallacy ou sofisma naturalista. O bem não
pode torna-se um objeto aos olhos da ciência, seja ela física, psicológica, sociológica ou
médica. Para Moore, se tudo que é natural fosse igualmente bom, a ética estaria
condenada a desaparecer. Se a saúde, por exemplo, é algo natural, em que sentido
podemos concebê-la como um bem moral? Ou ainda, se ela traduz o estado normal do
indivíduo, em que sentido o normal é forçosamente bom? Moore deseja com isso afirmar
que a essência do bem escapa a toda definição científica da natureza humana. Como
lembra Sève (1994), não são as ciências da vida que fundam o respeito aos mortos, nem é
a embriologia que fundamenta a idéia de que os homens nascem livres e iguais em
direitos.
Certamente Hume e Moore têm razão quando afirmam que é impossível fundar a
ética sobre um princípio científico. Noutra esfera, sabemos que a ética se inscreve na
vida, tornando-se, pois, impossível desconsiderar que, subjacente a toda ética, pulsa uma
bioética. Até porque a moral repousa sobre uma concepção de vida humana, de modo que
o ethos não pode constituir-se sem uma idéia de vida que implique a noção de valor do
outro. Mas para bem realizar esse princípio, deve-se ultrapassar toda consideração
biológica sobre o valor e o sentido da existência. Afinal, como vimos, do ponto de vista
biológico tem sido impossível fornecer uma indicação precisa e consensual sobre o
começo da existência: ela depende de certos valores ou daquilo que consideramos vida
humana propriamente dita.
Em torno da questão do aborto orbitam dois fenômenos cruciais: o que significa
nascer e morrer? Por isso, antes de tudo, convém indagar: como afirmar a necessidade da
existência se, como nos lembra Sartre (1943), o nascimento é contingente e a morte é
nossa condição de ser-no-mundo? Sendo o homem um ser que nasce sem que sua vontade
tenha concorrido para isso, só nos resta aceitar o veredicto do filósofo francês: nascemos
sem razão, existimos por fraqueza e somos susceptíveis de morrer por acaso. Ademais, a
morte do ser vivo, como afirma François Jacob (1970), já está biologicamente inscrita em
seu patrimônio genético. A biologia, enfim, alia-se à filosofia para confirmar uma das
10

suspeitas fundamentais da nossa época: a questão da existência envolve também a


liberdade que temos de afirmá-la ou negá-la.

REFERÊNCIAS

CALLAHAN, David. L’éthique biomédicale aujourd’hui, in Éthique et biologie, Cahiers


STS, Paris, p, 46 a 59, 1970.

FEINBERG, J. The child’s right to an open future. In: AIKEN, W.; LAFOLLETTE, H.
Whose child? Children’s rights, parental authority, and State power. New Jersey:
Rowman & Littlefield, 1980, p. 124-153.

ENGLISH, J. O aborto e o conceito de pessoa, Porto: Rés Editora, 1978.

HARE, Richard. Essays on Bioethics, Oxford : Claredon Press, 1996.

HUME, David. Treatise of Human Natures (1739-1741), Oxford University Press, Book
III, 1967.

JACOB, François. La logique du vivant. Une histoire de l´hérédité, Paris : Gallimard,


1970.

KEMP, Peter. Éthique et médicine, Paris : Éditions Tierce, 1987.

MOORE, George. Principia Ethica (1903), Cambridge University Press, 1993.

SARTRE, Jean-Paul. L’ être et le néant, Paris: Gallimard, 1943.

SÈVE, Lucien. Pour une critique de la raison bioéthique, Paris : Odile Jacob, 1987.
11

Você também pode gostar