Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Uma publicação do
Instituto de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
© Gestão e Tecnologia de Projetos
Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o
conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento
Periodicidade Semestral
Tiragem
Revista eletrônica
Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo [IAU-USP]
Avenida Trabalhador São-Carlense, 400 - Centro
13566-590, São Carlos - SP, Brasil
Telefone: +55 16 3373-9311 Fax:
+55 16 3373-9310
www.iau.usp.br
Ficha Catalográfica
Semestral
ISSN 1981-1543
Apoio
Diagramação e laiaute
EDITORIAL V15 | N3
EDIÇÃO ESPECIAL: TECNOPOLÍTICAS
Esta edição especial da revista Gestão & Tecnologia de Projetos (GTP) faz parte de uma colaboração que se
consolida cada vez mais, ano após ano, com a Sociedade Ibero-americana de Gráfica Digital (SIGraDi). Neste
número, o foco é a Tecnopolítica, tema central da XXII Conferência SIGraDi, realizada de 7 a 9 de novembro de
2018, na Universidade de São Paulo, na cidade de São Carlos, no Brasil.
Hoje, os avanços da tecnologia e a evolução da digitalização e da mídia cobrem todos os aspectos da vida diária;
no mundo, a criatividade em todos os seus aspectos, o impacto da Revolução da Informática e Digital continua
avançando diariamente, abrangendo cada vez mais a vida do ser humano e o meio em que vive.
Em geral, muita atenção é dada aos aspectos específicos do desenvolvimento da tecnologia, o que implica
ferramentas, metodologias e consequentes artefatos; mas, nas últimas décadas e com o avanço exponencial, tem
sido desenvolvida outra face que surge das possibilidades de comunicação que não são mais limitadas aos
relacionamentos entre os indivíduos, mas mostram seu maior potencial quando se trata de interações
colaborativas entre grandes números de pessoas. A força desse fenômeno é que a capacidade de colaboração tem
desencadeado uma infinidade de novas ferramentas, métodos e processos que permitem resultados de grande
impacto social, não somente inatingíveis, mas também inimagináveis.
Graças a essas novas conotações, “o comum” adquire um poder nunca antes alcançado, que engloba a vida
urbana, o acesso e a troca de informações e os modos de fazer, as formas de participação e autogestão cidadã, os
processos de decisão, o desenho e produção das cidades e promoção de práticas criativas, entre outros.
É dentro desse panorama que, com o tema Tecnopolíticas, o Congresso XXII da SIGraDI convidou pesquisadores a
uma profunda reflexão sobre a face colaborativa da tecnologia, por meio de seus trabalhos, seus projetos, suas
investigações, seus estudos e suas teorias, a fim de explorar plenamente o grande potencial de transformação
social do nosso tempo.
Pesquisadores de todo o mundo foram convidados a enviar trabalhos teóricos, práticos e experimentais,
resultantes de atividades de pesquisa, ensino e extensão, vinculados aos seguintes temas: Teorias e práticas do
design em contextos digitais, Morfogênese, síntese e análise da forma, Fabricação e construção digital,
Informação, modelos e simulações, Interfaces e dispositivos, Ensino, investigação e extensão em contextos digitais,
Indústrias criativas e práticas artísticas, Tecnologias digitais e sociedade, tudo sob a perspectiva da Tecnopolítica.
Os trabalhos apresentados no congresso mostraram como a Tecnopolítica pode ser tratada tanto de forma geral,
por meio de reflexões que abrangem o conceito de design em todas as suas escalas, quanto de forma específica,
por meio de projetos e experiências aplicadas a casos reais – além de mostrar ferramentas e plataformas
existentes ou em desenvolvimento – oferecendo, assim, um grande panorama que enriquece o debate sobre o
potencial e o impacto do design.
Após a conferência, foram selecionados 30 trabalhos considerados os mais representativos e expressivos sobre a
temática Tecnopolíticas, os quais já haviam sido submetidos a uma primeira validação pelo Comitê Científico
Internacional da SIGraDi. Os autores dos artigos foram convidados a participar de uma nova redação de seus
escritos, finalizando com um aprofundamento de suas obras dirigidas especialmente a este número da revista
GTP. Os novos trabalhos foram submetidos à revisão por pares e, ao final, foram escolhidos os 8 artigos, que estão
apresentados a seguir.
O primeiro artigo convida-nos a uma reflexão profunda sobre as mudanças geradas pela tecnologia no mundo da
criatividade, devido à capacidade de desenvolver e utilizar processos de trabalho colaborativos. No artigo “Open
design: compartilhamento e democratização nas práticas de projeto”, Camilo Simão de Lima e Bruno Massara
Rocha descrevem o open design como um conceito e fenômeno em relação a todas as áreas da criatividade,
englobando arte, arquitetura e design em geral e em todas as escalas. O trabalho convida ao debate sobre o seu
impacto nas práticas de design e suas consequências ou implicações socioculturais, lançando novos desafios que
vão além do design puro.
No artigo “Plataformas digitais de mobilidade urbana: tipos e modos de atuação”, Luísa da Cunha Teixeira e
Rodrigo Cury Paraizo falam sobre o uso de plataformas digitais relacionadas à mobilidade urbana. O trabalho visa
analisar um conjunto de plataformas existentes através de uma catalogação temática e do estudo das
potencialidades e limitações de cada uma. Oferecendo um compêndio, além de mostrar as próprias plataformas,
os autores convidam à reflexão sobre o desenvolvimento e a utilização dessas ferramentas e seu impacto na
sociedade.
3
Gestão & Tecnologia de Projetos
Com o texto “Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e velhos problemas”,
Vítor Domício de Meneses e Daniel Ribeiro Cardoso apresentam o uso de processos participativos para o
planejamento urbano e a resolução de problemas existentes relacionados às cidades e aos cidadãos, por meio do
desenvolvimento e da utilização da tecnologia como condição sine qua non para realizar tal participação. Com
especial enfoque nas tecnologias de informação e comunicação (TIC), os autores apresentam as oportunidades,
vantagens e potencialidades da sua implementação sob uma visão abrangente de pontos de vista, que abarcam
desde o humano a todas as fases de análise e implementação, tanto teóricas como práticas.
Com a apresentação do artigo “Adição gradual de informação sobre um patrimônio arquitetônico: produção de
modelos e de sentidos”, Adriane Borda Almeida da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart e
Bethina Harter Silva propõem a utilização do método AGI, adição gradual de informação. Esse é um método de
representação usado em um contexto de pesquisa arquitetônica em um laboratório de fabricação digital. O
objetivo do trabalho é a produção de maquetes táteis para apoiar ações culturais inclusivas relacionadas a um
conjunto arquitetônico de interesse histórico e patrimonial. Neste trabalho, a estruturação do método é descrita
em detalhes, com foco nas dinâmicas que relacionam ensino, pesquisa e extensão, contando com a produção de
alunos do primeiro ano de arquitetura e a validação dos modelos por pessoas com deficiência visual.
Com a obra “Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas digitais”, Caio Augusto Rabite
Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato César Ferreira Souza e Marcos Martins Borges demonstram a
necessidade de desenvolver novas ferramentas e recursos de modelagem e análise que permitam aos projetistas
urbanos compreender a importância das seleções de projeto relacionadas à cidade; com especial enfoque na
atribuição de serviços, densidades e transformações do tecido urbano, que tendem a facilitar a concepção de
habitats urbanos saudáveis que promovam a diversidade de atividades e a mobilidade. O artigo contempla a
complexidade da cidade e os fatores que a compõem. Os resultados buscam demonstrar como a aplicação de
ferramentas digitais pode permitir um entendimento da distribuição da vitalidade urbana, na qual possíveis
transformações locais podem se beneficiar, resultando em transformações sociais significativas.
No artigo “Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação
tecnológica e adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul”, Rodrigo Scheeren e David Moreno
Sperling apresentam uma taxonomia completa de projetos relacionados à aplicação de tecnologias de fabricação
digital em arquitetura, design e construção, desenvolvidas no contexto específico da América do Sul. O trabalho
aborda os temas de capacitação tecnológica, adaptação sociotécnica e inovação social. O objetivo geral é produzir
um compêndio das experiências e projetos identificados, a partir do estudo da história dos casos e de suas análises,
mostrando as implicações sociais e o impacto da transformação por eles gerada.
Com a obra “Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP”,
Ana Carolina C. Farias e Alexandra Paio apresentam um trabalho sobre as possibilidades de melhorar a organização
coletiva e a ação política através de meios de interação que permitam o desenvolvimento da participação cidadã
através da tecnologia digital. O artigo descreve o levantamento e análise de dispositivos tecnopolíticos criados na
modalidade bottom up, no âmbito do programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária (BIP / ZIP) do Município
de Lisboa. Além de permitir uma reflexão crítica sobre o papel da dimensão digital na articulação e ampliação da
participação nos territórios, entre entidades e comunidades associadas, o trabalho destaca a relevância do
desenho de um observatório capaz de monitorar o impacto do programa aplicado ao um contexto urbano.
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino e Julia Dutra, em “Habitação de pequeno porte generativa. A gramática da
forma como instrumento de projeto”, propõem a utilização de um sistema generativo de projeto constituído por
uma gramática da forma para a geração de projetos de habitação de interesse social customizadas. As autoras
desenvolveram este sistema para poder contornar os problemas relacionados com o processo de projeto e
construção de pequenos espaços que, devido à sua natureza de recursos econômicos escassos, costumam ser
negligenciados, ocasionando projetos inadequados às expectativas e aumento de custos. A partir disso, é proposto
um novo paradigma para o projeto e construção de habitações, com ampla possibilidade de aplicação em vários
contextos e escalas.
Por fim, desejamos às leitoras e aos leitores que este número da Revista Gestão & Tecnologia de Projetos possa
alimentar suas ideias e fomentar suas pesquisas futuras. Ainda, em nome do Comitê Executivo Internacional da
SIGraDi, agradecemos a todas autoras e a todos os autores que participaram com seus artigos e ao editor-chefe
Dr. Marcio Minto Fabricio por dar-nos a oportunidade de realizar esta colaboração.
4
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166815
RESUMO:
O Open Design pode ser considerado uma concepção recente de trabalho decorrente de uma sociedade
amplamente informatizada, cuja crescente tendência do compartilhamento de informação e de ações 1Universidade de Lisboa
colaborativas vêm trazendo desafios e possibilidades para os processos criativos contemporâneos, 2Universidade Federal do
principalmente no que se refere à produção e distribuição de serviços de projeto. O objetivo deste artigo é
Espírito Santo
investigar os efeitos desta concepção de trabalho no campo de atuação de arquitetos e designers. Além
disso, iremos analisar como a noção de abertura que a elas se encontram nomeadamente atreladas vêm se
revelando na realidade projetual. Uma questão chave para conduzir esta investigação é: qual o real sentido e
aplicação do conceito de abertura seja no desenvolvimento dos projetos, na interação entre os envolvidos
ou na produção do conhecimento sobre o processo criativo como um todo? Este artigo realiza uma revisão
bibliográfica detalhada sobre o tema Open Design em autores como (Anderson, 2012), (Bauwens, 2005), (De
Masi, 2001), (Greenfield, 2017), (Lessig, 2005), (Schneider, 2017), (Stallman, 2015), (Von Hippel, 2005) e
sugere quatro abordagens possíveis para a abertura: disciplinar, cognitiva, econômica e produtiva.
ABSTRACT:
Open Design can be considered a recent work conception resulting from a broadly computerized society,
Fonte de Financiamento:
whose growing trend of collaborative actions and sharing information has brought new challenges and
Fundação de Amparo à
possibilities for contemporary creative processes, especially with regard to the production and distribution of
Pesquisa do Espírito Santo –
design services. The aim of this article is to investigate the effects of this recent work conception in the design
FAPES
process of architects and designers. We will also analyze how is the namely notion of openness in the reality
of projects. Key questions to conduct this investigation are: what is the real meaning and application of the
Conflito de Interesse:
concept of openness in the design process? How it affects the interaction between those involved? And how is
Declara não haver.
helps the production of knowledge about the creative process as a whole? This article performs a detailed
bibliographic review on the Open Design theme in authors such as (Anderson, 2012), (Bauwens, 2005), (De
Submetido em: 172/02/2020
Masi, 2001), (Greenfield, 2017), (Lessig, 2005), (Schneider, 2017 ), (Stallman, 2015), (Von Hippel, 2005) and
Aceito em: 08/07/2020
suggests four possible approaches to openness: disciplinary, cognitive, economic and productive
LIMA, C. S.; ROCHA, B. M. Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas de projeto. Gestão &
Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.6-17, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166815
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
CONTEXTUALIZAÇÃO
6
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha
referenciais como John Thackara (2011), Richard Stallman (2015), Lawrence Lessig (2005),
Michael Bauwens (2005), Chris Anderson (2012), Nigel Cross (2011), Adam Greenfield
(2017), dentre outros.
O código aberto vem ampliando seu alcance nos regimes de trabalho atuais e instalando-se de
forma definitiva no cotidiano de toda uma comunidade de desenvolvedores e programadores
de diferentes áreas. Historicamente, a ampliação excessiva do contingente de iniciativas ditas
abertas por parte de diferentes setores, especialmente os corporativos, fez com que uma
parte desta comunidade de desenvolvedores, liderada por Eric Raymond, cunhasse a
proposta free software que enfatizava não apenas a abertura das práticas de programação
mas, principalmente, a liberdade como princípio fundamental. A despeito da existência de
ambas denominações, opensource e free software, Stallman (2015) entende que elas são
referentes a um mesmo movimento tecnopolítico.
Com a evolução das práticas e discursos orientados pela noção de abertura no contexto das
redes digitais, dois posicionamentos tecnopolíticos fundamentais se manifestaram: um deles
de origem conceitual, como é o caso de Erik Raymond, e outro de base operacional que, nos
termos de Lakhani & Von Hippel (2003), emerge em função dos benefícios que a ajuda
coletiva oferece para a consolidação de um projeto de exigente complexidade. Seja no campo
da produção de conhecimentos ou na produção de sistemas, o conceito de abertura foi sendo
incorporado pelos mais diferentes campos, dando origem a iniciativas como: Open Data, Open
Science, Open Education e Open University. Diante da necessidade de consolidar os valores
de abertura no cenário político-cultural, a organização sem fins lucrativos Open Knowledge
Foundation, sediada no Reino Unido, definiu que:
o conhecimento aberto se refere a qualquer conteúdo, informação ou dado
que as pessoas estejam livre para usar, re-utilizar e redistribuir sem
nenhuma restrição legal, tecnológica ou social (OPEN..., 2015).
Avital (2011) considera que o conceito de abertura evoluiu com o tempo e se cristalizou em
três arquétipos: a) Inovação Aberta (Open Innovation), b) Código Aberto (Open Source) e c)
Design Aberto (Open Design). O primeiro arquétipo, da inovação aberta, se articula à criação
e disponibilizaçaão de iniciativas e projetos; o segundo está orientado para sua modelagem
7
Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
imaterial por meio de dados e informações; e o terceiro para sua materialização via processos
de fabricação digital. Há um horizonte para que a abertura nos processos de fabricação digital
da arquitetura possam se desdobrar em algo configurável, extensível e que possa ser gerado a
partir de modelos comerciais distribuíveis e escalonáveis, fora das prateleiras, em meios de
produção multiuso (Avital , 2011).
Grosso modo, o Open Design pode ser visto como a vertente da abertura dos códigos de
informação no contexto de projeto de arquitetura, design, artes e práticas afins. O conceito
apareceu pela primeira vez na literatura acadêmica no final do século XX, momento em que a
Open Design Foundation se posicionou politicamente e formalmente favorável aos projetos
cujos criadores permitissem a distribuição e documentação gratuitas, bem como
modificações e derivações. A pesquisadora Heloisa Neves (2014), membro do grupo de
discussão Open Design Definition da plataforma GitHub, afirma que para uma abertura plena,
o projeto deve disponibilizar sua documentação completa via atribuição de licenças para
modificar, distribuir, fabricar, prototipar e comercializar. Há uma clara aproximação com os
princípios do código aberto, incluindo-se a produção material que, por si só, responde por
uma nova e complexa etapa no projeto. Apesar disso, são ínumeras as questões que devem
ser averiguadas e distinguidas dentro da complexa rede de possibilidades de reflexão e ação
presentes no Open Design. Ao nosso ver, é essencial considerar uma abordagem que leva em
conta os efeitos do compartilhamento de informações nas relações de trabalho e na produção
democrática de conhecimentos, tendo como recorte principal o contexto dos bens e serviços
de arquitetura e design.
8
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha
a autoria original esteja sempre junto a ela ou a suas derivações. Há ainda licenças não-
comerciais, licenças de compartilhamento de obras derivadas sob a mesma condição e
licenças sem derivação, que permitem apenas a exibição, reprodução e distribuição. Tais
licenças visam a identificação das produções de modo seguro e variável, deixando a cargo do
criador a atribuição do modo de compartilhamento mais adequado à sua obra. Para Lessig
(2005) a atribuição de licenças Creative Commons é uma garantia de liberdade democrática e
politicamente expressa um ideal de superação da dicotomia proprietária “todos” versus
“nenhum”. A importância política do Creative Commons é evitar que o próprio sistema de
propriedade capture as produções abertas redirecionando-as novamente ao campo
mercantil. Malini (2007) adverte que, sem uma proteção como a que se propõe realizar a CC,
os princípios do comum caminhariam para a tragédia e correriam o risco de ter seu
excedente mantido sob a tutela do capital. A regulação jurídica tem efeito complementar à
produção em pares e garante liberdade e segurança para a publicização das produções,
fortalecendo o processo democrático e combatendo possíveis tentativas de atuação do capital
sobre a construção coletiva. Podemos reconhecer claramente uma intenção política na
garantia da liberdade do movimento copyleft que não se coloca em posição de competição
com o copyright, mas de uma complementação tática necessária para criar condições para a
evolução de uma cultura livre e aberta.
ABERTURA DISCIPLINAR
A abertura disciplinar tem relação direta com a produção de conhecimento de projeto. Seu
teor transgressivo e tecnopolítico em defesa da liberdade de apropriação de informações deu
origem ao Open Design Manifesto publicado em 2011, que considerava a abertura:
uma escolha, não uma predefinição. Caso fosse uma predefinição, não
haveria necessidade de instruções, ideológicas ou não. Esforços
ideológicos necessitam regras, códigos de conduta, manuais, por vezes
excessivamente dogmáticos (KADUSHIN, 2010).
11
Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
ABERTURA COGNITIVA
A abertura cognitiva está diretamente relacionada com a disciplinar, embora ela se faça
presente na forma como a liberdade de trânsito entre categorias formais e disciplinares
produz uma nova forma de aprendizado calcado no coletivo. Se na abertura disciplinar
qualquer um pode fazer, na cognitiva qualquer um pode aprender. A descompartimentação
dos conhecimentos não elimina sua importância, mas redefine sua forma de criação por meio
de redes digitais dinâmicas de troca. Essa abertura para o aprendizado via redes digitais
coletivas já foi prevista por Lévy (1998) sob a terminologia ecologia cognitiva. Nos termos do
autor, a formação dessa ecologia é fluida, dinâmica e distribuída, e define uma condição plural
de difusão de saberes gerenciada por singularidades associadas. Nos processos projetuais
atuais, muitas das respostas, referências, blocos, especificações, componentes necessários
para o desenvolvimento de um projeto estão acessíveis digitalmente. Não é raro encontrar
pessoas de formações diversas desenvolvendo trajetórias de aprendizado de projeto
individualizadas e integralmente mediadas por redes digitais. As temáticas são variadas, e
capazes de atingir um nível de competência surpreendentemente viável.
Um desdobramento visível é a proliferação de canais de aprendizado digital dedicados a um
público interessado em projetos, desenvolvimento de produtos, autoconstrução, reformas,
organização, cultivo de plantas, de forma totalmente autônoma. Esse tipo de aprendizado tem
alcance limitado, mas atende plenamente problemas de menor complexidade, como é o caso
da redução de custos que será abordada na abertura do nível econômico.
Os trabalhos realizados por Thomaz Lommée, Ronen Kadushin, Santiago Cirugeda e Jens
Dyvik, embora tenham objetivos distintos, são exemplos importantes de serem mencionados
em função da abertura dos projetos ao envolvimento cognitivo das pessoas. No projeto Open
Structures este envolvimento é proposto por meio da disponibilização de informações legais,
técnicas e administrativas sobre como construir ou desenvolver um projeto, incluindo
especificações gerais, orientações, mecanismos de busca, bancos de dados de produtos, redes
de contato, etc. Em um suporte digital de fácil acesso, Thomas Lommée disponibiliza um
conjunto de componentes modulares, conectores, juntas e adaptadores que podem ser
utilizados na restauração de móveis e equipamentos domésticos. Os componentes respeitam
um sistema métrico unificado no formato de um grid de pontos e linhas de referência de
12
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha
ABERTURA ECONÔMICA
ABERTURA PRODUTIVA
Uma última interpretação das aberturas oferecidas pelo Open Design tem teor operativo e
está diretamente ligada à revolução da robótica e dos mecanismos de fabricação digital. As
máquinas de fabricação digital podem ser consideradas a espinha dorsal do Open Design e
seu elemento de diferenciação produtiva frente às outras áreas da construção e da indústria.
A abertura produtiva tem como principal manifestação física as fábricas robotizadas de
pequeno porte e alta complexidade. Os recursos de fabricação digital tornaram realidade um
conceito postulado pelo ciberneticista John von Newman em 1966: o do construtor universal.
A máquina idealizada pelo matemático húngaro se manteve no universo das possibilidades
até poucas décadas atrás. Ela foi concebida a partir da aplicação da teoria dos sistemas no
contexto operacional do setor produtivo e teria a capacidade de extrair os recursos naturais,
13
Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
14
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha
distorcem o sentido do movimento. Temos clareza de que o Open Design não pode ser
vinculado a uma única definição bem como não convém estar associado a uma metodologia
específica. Além disso, autores como Lima & Rocha (2018) e Lima (2018) nos mostram que o
Open Design pode se fazer presente simplesmente em uma escolha, uma opção pessoal, que
poderíamos considerar como tecnopolítica no sentido de que respeita determinados
procedimentos democráticos no uso dos recursos sociotécnicos. Nos parece importante
ressaltar que há muitas formas de se “abrir” um projeto e muitas estratégias para
desenvolver conteúdos compartilhados. O que buscamos fazer neste artigo é pavimentar
caminhos de interpretação que tornem mais claro aos arquitetos “o que está aberto”, “por que
isso é importante” e “como podemos aplicar em nossos projetos”.
Mesmo compreendendo que a evolução do conceito de abertura sempre esteve de alguma
maneira atrelada ao movimento Open Source, existem distinções importantes quando
tratamos do Open Design no âmbito da arquitetura. A materialidade da arquitetura envolve,
invariavelmente, custos na produção, na fabricação, na mão-de-obra e na manutenção, e esse
é um aspecto importante em termos de complexidade na sua aplicação em projetos desta
natureza. Edifícios são radicalmente diferentes dos softwares quando olhados sob a ótica de
sua realidade tangível e isso incorre em uma distinção primal do tempo e forma como a
abertura atua no campo arquitetural.
Há também muitas escalas de aplicação do Open Design. Ele pode transitar desde pequenos
objetos de design, equipamentos de uso cotidiano, projetos de arquitetura ou mesmo
propostas de urbanismo. Em cada uma delas existem inúmeras particularidades. Quando se
compra um mobiliário hoje em dia em lojas especializadas, ele geralmente encontra-se
desmontado e armazenado fora da cidade e chega até o local solicitado através de uma
transportadora, para que seja então montado e instalado por mão-de-obra especializada ou
pelo próprio comprador. Numa ótica de abertura do processo produtivo, seria mais desejável
que as próprias pudessem ser auxiliadas a projetar seus próprios móveis e os produzissem
em pequenas fábricas localizadas próximas às suas casas. Haveria assim uma redução
potencial do custo de armazenamento, de transporte, além de um ganho de valor de uso em
função da sua personalização.
Em termos urbanos, é de extrema importância que o poder público comece a repensar nossas
cidades como entidades compartilhadas, pertencentes a todos, fomentando novas formas de
experienciá-las e usá-las. É necessária a retomada da cidade como um bem comum que,
mesmo estando globalmente conectada, seja localmente produtiva. O governo Catalão vem
adotando desde 2016 esse tipo de abordagem por meio da iniciativa CatLabs (Laboratórios
Catalães), uma tentativa de inserção dos cidadãos em uma rede de reflexão e ação urbana
organizada como um modelo de cidade laboratório. Esse tentativa de criar um ecossistema
urbano laboratorial é parte integrante de um processo de renovação democrática que
entende a participação dos cidadãos como algo que deva ir além da participação em
audiências públicas e eleição de representantes. Para o governo catalão, o poder de “co-criar
e co-construir a cidade” é indispensável para a sua retomada enquanto lugar da democracia.
Para que isso ocorra, há uma necessidade de transferência de parte da responsabilidade de
decisão para os usuários-cidadãos, e isso demanda um amplo repertório de interfaces
acessíveis, adaptadas à linguagem popular, fáceis de usar e de consultar. Schneider (2017)
alerta que muitas plataformas ditas abertas ainda são desenvolvidas com enormes limitações
de interface, tornando-as assíncronas em termos de troca de informações entre usuários e
entidades envolvidas. Ainda há uma deficiência na maneira como as plataformas permitem a
colaboração simultânea entre usuários, de forma a permitir que a troca de conhecimentos e
ideias ocorra em tempo real. Isso faz com que, em muitas situações, seja limitada a
participação dos usuários no desenvolvimento real do processo, manifestando-se um claro
prejuízo para a fluidez do envolvimento compartilhado. É indispensável que se diminuam as
barreiras instrumentais para potencializar dinâmicas de participação em projetos, permitir a
15
Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
criação de contextos sociais engajados, mesmo que seja mais custoso manter o controle de
aptidões descentralizadas.
Para que haja uma evolução nos processos de compartilhamento no contexto da cidade, é
necessário que haja um investimento maior desenvolvimento de estratégias de metadesign,
produzindo ambientes digitais estruturados para a participação dialógica coletiva.
Plataformas digitais bem projetadas podem promover arranjos coordenados de
singularidades visando mobilizar competências e, consequentemente, descentralizar o
conhecimento sobre a cidade.
É desejável o envolvimento de profissionais de design, artes e arquitetura com um profundo
processo de autocrítica reconhecendo a realidade de um mundo conectado e articulado em
rede. Estamos vivendo uma transformação na forma como as pessoas se relacionam, criam,
produzem e negociam, e o Open Design parece trazer tanto contribuições quanto
questionamentos que somente poderão ser assimilados a partir de participações efetivas dos
arquitetos neste processo. Essa participação é essencial para que continuemos explorando e
implementando interfaces técnicas coerentes com nossa sociedade em rede. Nesse caminho
teremos chances de, como recomenda Anderson (2012), transformar democraticamente para
melhor o mundo real com processos inéditos.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Chris. Makers: the new industrial revolution. NewYork: Crown Publishing Group, 2012.
ATKINSON, P. Orchestral Manoeuvres In Design. In: Open design now: Why Design Cannot Remain
Exclusive. Amsterdam, The Netherlands: BIS publishers, 2011. p. 24-31.
AVITAL, Michel. The Generative Bedrock of Open Design. In: VAN ABEL, B. et al. Open design now:
Why Design Cannot Remain Exclusive. Amsterdam: BIS publishers, 2011. p. 48-58.
BAUWENS, Michel. The Political Economy of Peer Production. 2005. Disponível em:
https://www.informatik.uni-leipzig.de/~graebe/Texte/Bauwens-06.pdf. Acessado em: 15/02/2020.
BENKLER, Yochai. The wealth of networks: how social production transforms markets and freedom.
2006. Disponível em: http://www.benkler.org/Benkler_Wealth_Of_Networks.pdf. Acessado em:
15/02/2020.
BOURRIAUD, N. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
CASTELLS, M. A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
COCCO, Giuseppe; VILARIM, Gilvan. Trabalho imaterial e produção de software no capitalismo
cognitivo. In: Liinc em Revista, v.5, n.2, setembro 2009, Rio de Janeiro, p. 173-190. DOI:
https://doi.org/10.18617/liinc.v5i2.315.
CROSS, N. Design Thinking: understanding how designers think and work. London: Bloomsbury
Academic, 2011.
DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro,
RJ: José Olympio, 2001.
16
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha
DE MUL, J. Redesigning Design. In: Open design now: Why Design Cannot Remain Exclusive.
Amsterdam, The Netherlands: BIS publishers, 2011. p. 34-39.
FILHO, João B. M. T; CRUZ Mariana M. O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à
cidade como comum? In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. V.21, N.3, 2019. DOI:
https://doi.org/10.22296/2317-1529.2019v21n3p487.
GIDDENS, A. Novas regras do método sociológico: uma crítica positiva às sociologias
interpretativas. 2a ed. Lisboa: Gradiva, 1996.
GREENFIELD, Adam. Radical Technologies: the design of everyday life. Brooklyn, NY: Verso, 2017.
HIPPEL, E. V. Democratizing Innovation. Cambridge: The MIT Press, 2005.
JONES, J. C. Design Methods. 2nd. ed. New York: John Wiley & Sons, 1992.
KADUSHIN, Ronen. Open Design Manifesto. 2010. Disponível em: https://www.ronen-
kadushin.com/open-design-manifesto. Acessado em: 15/02/2020.
LAKHANI, Karin R.; VON HIPPEL, Eric. How open source software Works: “free” user-to-user
assistance. In: Research policy, v. 32, n. 6, 2003, p. 923-943. DOI: https://doi.org/10.1016/S0048-
7333(02)00095-1.
LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a
cultura e controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1998.
LIMA, Camilo S. Open Design: compartilhamento e democratização nas práticas de projeto.
Dissertação de Mestrado. Orient. Prof. Dr. Bruno Massara Rocha, Março 2018. Vitória:
PPGAU/UFES, 2018.
MALINI, Fábio. O valor no capitalismo cognitivo e a cultura hacker. In: Liinc em Revista, v.5, n.2,
setembro, 2009, Rio de Janeiro, p.191-205. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v5i2.311.
MALINI, Fábio. O comunismo das redes: sistema midiático p2p, colaboração em rede e novas
políticas de comunicação na internet. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007..
NEGRI, Antonio. A constituição do comum. Conferência Inaugural do II Seminário Internacional
Capitalismo Cognitivo – Economia do Conhecimento e a Constituição do Comum. Rio de Janeiro,
outubro, 2005.
NEVES, Heloisa. Maker innovation: do open design e fab labs...às estratégias inspiradas no
movimento maker. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2014.
OPEN KNOWLEDGE FOUNDATION. 2015. Disponível em: http://opendefinition.org.
PAPANEK, V. J. Design for the real world: Human ecology and social change. 2. ed. Chicago:
Academy Chicago, 2009.
ROCHA, Bruno M. Complexidade e improvisação em arquitetura. Orientador: Carlos Roberto Zibel
Costa. 2015. 256 f. Tese de Doutorado São Paulo: FAUUSP, 2015.
17
Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto
ROCHA, Bruno M.; LIMA, Camilo S., Open Design: Principles, Interfaces and Values Analysis. XXII
Congresso Internacional da Sociedade Iberoamericana de Gráfica Digital, Blucher Design
Proceedings, Volume 5, 2018, Pages 1241-1249, ISSN 2318-6968. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1016/sigradi2018-1451
SCHNEIDER, Christoph. Transforming TechKnowledgies: the case of open digital fabrication. Tese
de Doutorado. Munique: Technische Universität München, 2017.
SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2012.
Camilo Simão de Lima STALLMAN, Richard. Free Software, Free Society: Selected Essays of Richard M. Stallman. Boston:
camiloslima@gmail.com
Free Software Foundation, 2015.
Bruno Massara Rocha THACKARA, John. Into The Open. In: VAN ABEL, B. et al. Open Design Now: Why Design Cannot
bmassara@gmail.com
Remain Exclusive. Amsterdam: BIS publishers, 2011. p. 42-45.
VON HIPPEL, Eric. Democratizing Innovation. Cambridge: The MIT Press, 2005.
WARGER, Thomas. The Open-Source Movement. Educause Quarterly, n. 3, 2002, p. 18-20.
18
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166299
RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo analisar o uso de plataformas digitais na mobilidade urbana. Descreve
exemplos de aplicativos e plataformas agrupadas de acordo com a função que exercem sobre a mobilidade,
1Universidade Federal do
ou seja, como elas influenciam os deslocamentos no espaço urbano. Foram catalogadas 25 plataformas em
quatro categorias principais: orientação de mobilidade, transporte sob demanda, compartilhamento de Rio de Janeiro - UFRJ
veículos e compartilhamento de viagens. O uso da tecnologia digital revela algumas potencialidades e
limitações de arranjos, usos e apropriações que merecem ser analisados com o intuito de compreender as
possibilidades de ação para enfrentar os desafios que se colocam para a mobilidade urbana.
ABSTRACT:
This work aims to analyze the use of digital platforms in urban mobility. It describes examples of applications Fonte de Financiamento:
and platforms grouped by their function, as the way they assist physical displacements in the urban Conselho Nacional de
environment. 25 platforms were catalogued in four main categories: mobility orientation, on-demand Desenvolvimento Científico e
transport, vehicle sharing and ride-sharing. The use of digital technologies reveals some potentialities and Tecnológico - CNPq
limitations of arrangements, uses and appropriations that deserve to be analyzed in order to understand the
possibilities of action facing the challenges posed for urban mobility. Conflito de Interesse:
Declara não haver.
KEYWORDS: Urban Mobility, Digital Platforms, Mobile Applications. Submetido em: 06/02/2020
Aceito em: 26/10/2020
TEIXEIRA, L. C.; PARAIZO, R. C. Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação. Gestão
& Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166299
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
INTRODUÇÃO
20
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
MOBILIDADE URBANA
Os deslocamentos na cidade são parte fundamental da urbanidade. Por toda parte, foram
sentidos os impactos de um planejamento urbano voltado ao automóvel particular, e com
poucos investimentos em transporte público – contribuindo, no Brasil, para o espraiamento
das cidades e a segregação urbana (VASCONCELOS, 2012). Esse modelo produziu e ainda
produz diversos efeitos sobre a vida cotidiana, como o aumento do tempo dos deslocamentos,
com engarrafamentos cada vez mais longos e frequentes, e o aumento da emissão de poluentes,
que impactam diretamente a saúde dos habitantes, além da questão ambiental e climática
(ANDRADE; LINKE, 2018).
Nos últimos dez anos, diversos autores apontam para uma mudança no modelo clássico do
planejamento de transporte das cidades, quando se passa a observar a questão não mais sob o
ponto de vista da oferta, mas sim da demanda (AMAR, 2016; BALASSIANO; ANDRADE;
SANTOS, 2005; BANISTER, 2008; IZAGA, 2009). Esse novo paradigma adota a noção de
mobilidade, trazendo maior amplitude e complexidade para a compreensão das dinâmicas dos
deslocamentos urbanos, bem como a incorporação da sustentabilidade como valor
fundamental.
O conceito de mobilidade ao qual nos referimos neste artigo diz respeito aos deslocamentos
físicos realizados no espaço urbano, portanto, à mobilidade dentro do espaço da cidade. Além
disso, nosso recorte diz respeito à mobilidade de passageiros, deixando de lado toda a logística
de transporte e distribuição de produtos e serviços.
No âmbito do planejamento de transportes, o termo mobilidade começa a ser mais utilizado
com o surgimento do conceito de Gerenciamento da Mobilidade, nos EUA na década de 1980,
buscando soluções e alternativas mais adequadas para a utilização do automóvel. O
Gerenciamento da Mobilidade é considerado um “conjunto de técnicas de planejamento de
transportes” (FERREIRA; BALASSIANO, 2012) que promovem meios mais sustentáveis de
deslocamento de forma a tornar o sistema de transporte mais eficiente, com o objetivo de
“racionalizar o uso indiscriminado do automóvel particular e estimular a utilização de formas
mais sustentáveis de locomoção” (BALASSIANO; ANDRADE; SANTOS, 2005).
No Brasil, a expressão “mobilidade urbana” começa a aparecer oficialmente em 2003, com a
criação da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana – SeMOB, dentro do
também recém-criado Ministério das Cidades, nos primeiros anos do governo Lula da Silva.
Renato Boareto (2003), então diretor de Mobilidade Urbana da SeMOB, chama a atenção para
a “crise de mobilidade das cidades”, causada principalmente pelo modelo de circulação
centrado nos automóveis, pela ineficiência dos sistemas de transporte público e pela
“abordagem fragmentada desses problemas, que dificultam sua solução”. Boareto indica alguns
dos desafios a serem superados no caminho para a construção de políticas públicas de
mobilidade mais inclusivas e sustentáveis, definindo a Política Nacional de Mobilidade Urbana
Sustentável como:
(…) o resultado de um conjunto de políticas de transporte e circulação que visa
proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, através da
priorização dos modos não-motorizados e coletivos de transporte, de forma
efetiva, que não gere segregações espaciais, socialmente inclusiva e
ecologicamente sustentável. Ou seja: baseado nas pessoas e não nos veículos
(“Política nacional de mobilidade urbana sustentável”, 2004).
A expressão se populariza ainda mais com a lei 12.587/12, sancionada em 2012, no governo
Dilma Roussef, que passou a exigir que os municípios com mais de 20 mil habitantes “elaborem
e apresentem um plano de mobilidade urbana, com a intenção de planejar o crescimento das
cidades de forma ordenada”. A Lei determina ainda que estes planos priorizem o modo de
21
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
22
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS
23
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
ORIENTAÇÃO DE MOBILIDADE
Essa categoria agrupa plataformas e aplicativos que atuam no auxílio à orientação para os
deslocamentos na cidade. São usadas indistintamente, portanto, por motoristas a serviço de
outros ou pelos próprios indivíduos em deslocamento. Os exemplos mais conhecidos são o
Google Maps e o Waze Mobile, ambos presentes em vários países. Como se baseiam no sinal de
GPS, que tem abrangência mundial, aplicativos desse tipo são frequentemente escalonáveis
para corresponder a essa abrangência, dependendo apenas do efetivo mapeamento de ruas.
Portanto, ainda que possam ter origem local, se tornam de abrangência internacional
rapidamente.
A empresa Waze, originalmente LinQmap, foi fundada em 2008 em Israel, e em 2011 já
empregava 80 pessoas. Seu diferencial, se comparada aos sistemas de navegação por GPS
tradicionais, vem do fato de ser a primeira plataforma a se basear em informações fornecidas
em tempo real por uma comunidade de usuários, aproveitando-se da localização fornecida por
cada usuário através de seus smartphones e das informações ativamente enviadas sobre o
tráfego, como acidentes ou presença de radares, para alimentar seu banco de dados.
Em 2013, a Waze foi comprada pela Google, e seus dados passaram a integrar um banco ainda
maior, com os dados fornecidos pelo aplicativo Google Maps. Criado em 2005, o Google Maps
era inicialmente uma plataforma web de mapeamento e navegação em geral, em conjunto com
a Google Earth, que fornece as imagens de satélite. O serviço se baseia na pesquisa e
visualização de mapas, com traçado de rotas e informações cartográficas que foram ficando
cada vez mais precisas; atualmente, são fornecidos mapas de mais de 220 países, e informações
24
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
de transporte público de mais de 15.000 cidades. Com o surgimento dos smartphones com
função GPS, foi lançado, em 2008, a versão móvel do Google Maps para Android. A plataforma
passou a ser alimentada também das informações de localização de seus usuários, como o
Waze. O Google Maps, além do mapeamento, prevê o auxílio ao deslocamento usando outros
modais. É possível, por exemplo, traçar uma rota a pé, ou de bicicleta, ou inclusive de transporte
público, pois ele integra dados das empresas de transportes das principais cidades onde atua.
Daí inferimos outra categoria de classificação importante, do ponto de vista da mobilidade
urbana: aplicativos uni ou multimodais. O Waze, desse ponto de vista, por ser uni-modal – e o
modal em questão ser o carro particular – pode melhorar as escolhas de trajetos dos
motoristas, aliviando o tráfego; o Google Maps, ao permitir a visualização de diferentes tempos
de deslocamento segundo cada modal (de carro, de ônibus, a pé, de bicicleta ou mesmo de
avião, quando o trajeto permite), estimula a exploração dos diferentes modais, o que pode
acabar levando a escolhas mais sustentáveis, em especial para deslocamentos menores.
Um exemplo com grande eficiência na combinação de modais é a plataforma da RATP (Régie
Autonome des Transports Parisiens), empresa de transporte público de Paris. Baseado nos
horários de partida e/ou chegada do usuário, o aplicativo calcula a rota mais rápida, podendo-
se escolher pelos modais a serem utilizados, trajeto mais curto, com menos trocas de
transportes, entre outras opções. A plataforma integra os sistemas de metrô, ônibus, trens
intermunicipais, VLT, e bicicletas públicas compartilhadas (Velib’), o que resulta em uma
grande variedade de combinações possíveis para cada trajeto. O sistema de informações
oferecido no aplicativo reflete a grande integração do sistema de transporte de Paris, que se
deve, em grande parte, ao fato da RATP ser a empresa pública gestora de todos os transportes
públicos na região metropolitana parisiense. Isso possibilita, além da eficiência do sistema de
transporte público em si, eliminar boa parte da mediação necessária para compatibilizar os
dados de diferentes sistemas.
Quando isso não é possível, as plataformas dependem das prefeituras ou órgãos gestores e
empresas de transporte de cada cidade para conseguir coletar os dados, o que pode prejudicar
a eficiência e confiabilidade das informações. É o caso de aplicativos como o Moovit, que
pretendem ser grandes sistemas integradores de informação de transportes para quaisquer
cidades. O Moovit é o maior aplicativo de transporte público do mundo, com mais de 150
milhões de usuários em 2200 cidades de 80 países. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
a plataforma oferece um sistema de informações de diversos modais do transporte público a
partir de dados de GPS repassados pelas empresas concessionárias; no entanto, sua
usabilidade é bastante questionada pela população carioca, que aponta a falta de precisão dos
itinerários.
Visando oferecer um sistema mais confiável, a própria Fetranspor lançou, em 2014, o aplicativo
Vá de Ônibus (que já existia como plataforma web desde 2007), que oferece a possibilidade de
pesquisar as rotas e horários, além de fornecer a localização, via GPS, de todas as linhas de
ônibus municipais de seu banco de dados. Mesmo assim, o sistema é ainda pouco preciso com
relação à localização dos ônibus em tempo real, além de não apresentar integração com outros
modais.
Da mesma forma que o aplicativo RATP reflete a eficiência do sistema de transporte público de
Paris, parte das falhas da Moovit ou do Vá de Ônibus pode ser atribuída à pouca integração do
sistema de transportes como um todo e também às falhas das próprias empresas no controle e
monitoramento dos horários e rotas dos diferentes modais da cidade. A dificuldade em
compatibilizar diferentes estruturas de dados, latências no envio das informações, e políticas
de disponibilização e dos dados entre as diferentes empresas, para citarmos apenas algumas
das questões envolvidas, levam a que cada empresa gestora tenha sua própria plataforma (Vá
de Ônibus, Metrô Rio, Trens da Supervia, Bike Rio, etc), a ser acessada separadamente pelo
25
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
usuário, e são uma evidência importante da influência das questões sociais e políticas, por
exemplo, na adoção e evolução das proposições tecnológicas.
Essas dificuldades vêm tentando ser superadas no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, foi
lançado em 2016, o Leve-me, aplicativo de mobilidade urbana para locomoção na cidade de
São Paulo (www.leve-me.com.br). A plataforma foi desenvolvida pela Ótima, Concessionária
de Exploração de Mobiliário Urbano de São Paulo, e permite ao usuário escolher o destino e
visualizar as melhores opções de rotas seja de ônibus, metrô, trem, bicicleta ou táxi, podendo
optar pela mais rápida, confortável ou saudável. Além das opções de rota, o usuário pode
interagir via realidade aumentada com campanhas publicitárias veiculadas nos painéis de
pontos de ônibus. Conta também com recursos de gamificação, similares aos do Waze: neste, o
usuário acumula pontos para customizar seu avatar e competir em um ranking com seus
amigos do Facebook que também usam o aplicativo.
Em 2017, acompanhando ainda mais as novas tendências de mobilidade urbana foi lançado,
em Berlim, o aplicativo Urbi, que integra diversas opções de mobilidade. A plataforma busca
integrar os serviços de mobilidade compartilhada (bicicletas, carros e motos) e os serviços de
transporte sob demanda (táxis e motorista particular), além dos modais de transporte público
(https://www.urbi.co/).
Podemos perceber que os diversos aplicativos de orientação de mobilidade se atualizam para
incluir novos modais e novas formas de deslocamento de seus usuários na cidade. Como mostra
o exemplo da integração de transportes, mais do que uma “cidade inteligente” abstrata, é
preciso que haja uma política de mobilidade urbana inteligente, presente no próprio
planejamento e gestão do transporte urbano, contando com a anuência e apoio dos criadores,
dos proprietários e dos mantenedores dos diferentes sistemas.
Em inglês, a palavra hail denomina o ato de se chamar um táxi fazendo um sinal; no recente
contexto das tecnologias digitais emergentes, e-hailing denomina o “processo de chamada de
um serviço de transporte individual como táxis, carros particulares ou outros veículos, por
meio de um dispositivo móvel ou computador” (GONÇALVES, 2016). Os serviços de transporte
sob demanda conectam de forma direta, e em tempo real, passageiros e motoristas; as
empresas funcionam como plataformas mediadoras, que otimizam a comunicação entre
passageiros e prestadores de serviços.
A empresa Uber é uma das maiores e mais conhecidas empresas nessa área; tão inovadora
quanto polêmica, foi também a primeira empresa do tipo a oferecer seus serviços no Brasil, em
2014. Fundada em 2009, em São Francisco, EUA, sua proposta inicial era o oferecimento de um
serviço de táxis de luxo, com veículos especialmente selecionados. A plataforma expandiu-se
rapidamente, passou a oferecer diversas faixas de serviço, e hoje está presente em mais de 600
cidades no mundo. Plataformas concorrentes incluem a Cabify, também presente no Brasil, e a
Lyft, maior concorrente da Uber nos Estados Unidos. O serviço opera em uma zona ainda não
muito bem definida de licenciamento – não é necessário ter uma autorização pública específica,
como no caso dos táxis – e de relações trabalhistas; que levou à criação do termo “uberização”
para caracterizar a situação de precariedade de direitos associada a esse tipo de trabalho
(SLEE, 2017).
Em 2017, a Uber lançou a modalidade “Juntos” (“Pool” em inglês), que possibilita compartilhar
o carro com outros usuários com trajetos em comum, reduzindo também o valor da corrida.
Embora se aproxime da definição de compartilhamento de veículos e viagens, o serviço na
verdade trata de um subtipo de transporte sob demanda, caracterizado pelo compartilhamento
de viagem no qual o veículo não pertence a nenhum dos passageiros, ou seja, envolve
necessariamente alguém contratado para conduzir o veículo ao destino.
26
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
Em junho de 2017, foi criada a Buser, que leva essa modalidade de serviço a uma escala ainda
maior, através do fretamento compartilhado de viagens de ônibus entre grandes cidades do
país. Seu funcionamento é baseado na criação de grupos de usuários que desejam realizar o
mesmo trajeto. Ao atingir um número mínimo de passageiros, um ônibus é fretado e a viagem
é realizada. O aplicativo faz a intermediação de todo o processo de reserva e pagamento; o
embarque é realizado por meio de um documento de identificação, em locais normalmente
mais acessíveis do que as rodoviárias comuns. Atualmente a Buser realiza por mês cerca de
duas mil viagens entre 20 cidades, nas categorias semi-leito, leito ou cama. No entanto, a
plataforma vem gerando atritos com as empresas de ônibus intermunicipais, que vem tentando
suspender o funcionamento do aplicativo na justiça. De fato, a lógica é inversa à das
companhias de ônibus tradicionais, que são contratualmente obrigadas a manter trajetos
previamente combinados (beneficiando aqueles que precisam se deslocar para destinos menos
populares, por exemplo), e opera os ônibus de forma dinâmica e mais eficiente, do ponto de
vista da lotação.
Reagindo ao crescimento da Uber, surgiram startups visando atuar de forma similar, voltadas
para o mercado de motoristas de táxi. Algumas delas cresceram e se destacam por sua
abrangência cada vez maior, como é o caso da Easy Taxi, empresa brasileira fundada em 2012
no Rio de Janeiro, presente em mais de 30 países e 420 cidades. É interessante notar que um
dos conceitos originais da empresa é a priorização de mercados com problemas de mobilidade
urbana e sistemas de transporte deficientes, constituindo até hoje sua estratégia de expansão,
com quase todos os países onde atua sendo de economias emergentes.
Outro caso de sucesso é a 99, nascida também no Brasil, que cresceu a ponto de ser comprada
por 1 bilhão de reais pelo grupo Didi Chuxing, uma das gigantes chinesas de transporte e
tecnologia e grande concorrente da Uber. A grande inovação da 99 foi o fato de eventualmente
passar a oferecer também o serviço de motorista particular, o “99POP”, permitindo tanto que
motoristas de táxi licenciados quanto motoristas particulares se registrassem no mesmo
sistema.
Podemos identificar ainda muitas outras iniciativas difusas, que atuam de forma local. Os
serviços de táxi, com suas centrais telefônicas, precedem em muito as plataformas de e-hailing,
e hoje chegam a possuir plataformas digitais próprias. Na verdade, muitas dessas plataformas
são criadas pelas mesmas empresas de tecnologia, como a Smartsis, que desenvolveu mais de
60 aplicativos de táxi publicados na Google Play Store. Recentemente, diante da competição
com o Uber, a Prefeitura do Rio de Janeiro, lançou a plataforma Táxi Rio, buscando oferecer um
sistema unificado, além de mais seguro e moderno, para o serviço de táxi da cidade.
Duas questões principais emergem: a primeira é que, do ponto de vista trabalhista, há diversas
questões legais criadas a partir da chegada da tecnologia, mas que não são intrínsecas a ela: é
sempre possível legislar em função de mais regulação tanto das relações de trabalho quanto
das taxas e impostos incidentes sobre o serviço. A segunda está ligada ao impacto relativo à
mobilidade: a política de preços praticada (malgrado seu impacto sobre os motoristas
profissionais), por exemplo, serve como desestímulo para a posse individual de um carro, ou,
pelo menos, à sua utilização diária – o que, se não reduz o número de veículos efetivamente nas
ruas (LEBLANC, 2018), ao menos tende a tornar o uso dos automóveis e as viagens em si mais
eficientes.
COMPARTILHAMENTO DE VEICULOS
27
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
Sistemas de bicicletas compartilhadas são atualmente muito comuns nos ambientes urbanos,
e mais de 400 cidades no mundo já têm seus próprios sistemas. O primeiro sistema, na verdade,
data da 1965, e foi criado em Amsterdam, bem antes de boa parte das inovações digitais. O
sistema de bicicletas compartilhadas de Rennes, na França, foi o primeiro a usar a tecnologia
de cartão inteligente (“smart-card”), em 1998, para possibilitar a liberação das bicicletas nas
estações. Em 2001, foi inaugurado o sistema Velo’v de Lyon, no qual se baseou mais tarde o
sistema Vélib’, de Paris. Ambos se tornaram modelos para os chamados sistemas de terceira
geração (ITDP, 2014), em que a tecnologia é usada para identificar e controlar o uso em tempo
real, permitindo o monitoramento da capacidade da estação e do número de usuários ativos.
No Brasil, a primeira cidade a implementar um sistema do tipo foi o Rio de Janeiro, em 2011,
com o BikeRio, expandido para outras cidades a partir de 2013. Atualmente, o Rio de Janeiro
possui 2.600 bicicletas disponibilizadas em 260 estações pela cidade. Recentemente, startups
chinesas e estadunidenses criaram plataformas de compartilhamento de bicicletas sem
estações em seus respectivos países (em inglês, dockless bike-share systems), em que as
bicicletas possuem trancas individuais destravadas por QR-code e podem ser estacionadas
livremente pela cidade. A Ofo, primeira plataforma desse tipo, foi fundada em 2014, seguida
pela Mobike, em 2015, ambas com sede em Pequim. A Limebike, de 2017, é a versão
estadunidense, com sede na Califórnia.
O compartilhamento de automóveis (carsharing, em inglês; autopartage, em francês) permite
utilizar o transporte individual de forma mais racional, usando o carro apenas quando
realmente necessário, e muitas vezes como um complemento a outros transportes como a
bicicleta, o ônibus e o metrô. Bem menos comuns, se comparados aos de bicicletas, eles também
estão cada vez mais presentes em diversas cidades do mundo. Na mesma lógica do Velib’, Paris
inaugurou, 10 anos depois, o sistema de compartilhamento de carros elétricos denominado
Autolib’, o primeiro desse tipo a ser lançado no mundo, também baseado em estações fixas, que
serviam como postos de abastecimento de energia. Com os avanços tecnológicos dos carros
elétricos e dos dispositivos móveis, o serviço foi desativado em julho de 2018.
O serviço Car2Go, nascido em Ulm, na Alemanha, visa o compartilhamento de automóveis com
motor a combustão tradicional. Isso libera os carros do sistema de estações pré-definidas,
permitindo aos usuários estacioná-los em qualquer lugar na cidade, onde podem ser
encontrados pelos próximos usuários a partir do GPS de cada carro do sistema. No Car2Go, a
localização dos veículos e todo o processo de reserva, abertura da porta, ignição do motor e
pagamento são feitos por meio da plataforma móvel. A Car2Go é atualmente a maior empresa
de compartilhamento de carro do mundo, presente em mais de 26 cidades na Europa, América
do Norte e Ásia.
Uma das grandes inovações no campo da mobilidade compartilhada é a combinação da
ausência de estações pré-definidas (o chamado free-floating, em inglês, ou libre-service, em
francês), e a realização de todo o processo pelo smartphone com o uso de carros elétricos,
misturando as vantagens do Car2Go com as do Autolib’. É o caso da Share’nGo, startup italiana
fundada em Milão em 2016, que disponibiliza carros elétricos nas regiões de Milão, Florença,
Roma, entre outras; da Emov, lançada em Madrid em 2017; e da Moov’in Paris (2018), lançada
pela Renault. Como os carros são híbridos, podem ser parados livremente dentro de um
determinado perímetro, para serem recarregados pontualmente pela empresa.
Além do compartilhamento de bicicletas e automóveis, existem plataformas que apostam no
compartilhamento de outros tipos de veículos, como motos, caso de empresas como a Mimoto
(2018) e a Coup (2017), ou mesmo patinetes, um dos serviços providos pela Lime (2017). No
Rio de Janeiro, o serviço de patinetes elétricos começou a ser oferecido em dezembro de 2018,
pela Grin (2018), com um perímetro de atuação limitado inicialmente a alguns bairros da Zona
Sul. Em 2019, seu uso cresceu, tornando-se comum e até polêmico, no que se refere à segurança
e à regulamentação do sistema com relação às leis de transito.
28
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
Há uma tendência de os sistemas atuais priorizarem o uso de veículos elétricos, seja pelo apelo
da sustentabilidade, seja pelo apelo do acesso a veículos elétricos, ainda comparativamente
mais caros, de forma compartilhada. Já existem, fora do Brasil, sistemas de compartilhamento
de bicicletas que, além de não terem estações pré-definidas, utilizam modelos elétricos, como
a plataforma francesa Oribiky (2018), que oferece as bicicletas elétricas de forma
complementar às tradicionais.
Apesar dos aplicativos pertencerem a uma mesma categoria, ao se examinar possíveis efeitos,
é preciso considerar o tipo de modal envolvido. No caso das bicicletas, podemos inferir um
estímulo ao uso da bicicleta não apenas porque o sistema dispensa a propriedade de uma, mas
porque o sistema de estações acaba permitindo uma combinação eficiente da bicicleta com
trechos a pé e de metrô, liberando o usuário da necessidade de estacionar a bicicleta ou de
transportá-la em trens e metrôs, o que nem sempre é simples.
No que se refere aos carros, a questão da posse envolve tanto uma indústria quanto políticas
de desenvolvimento econômico que seriam bastante afetadas por uma mudança cultural dessa
ordem, já que a própria estrutura do negócio se alteraria – ainda que não necessariamente com
menos número de viagens ou com aproveitamento mais eficiente dos veículos, já que o
compartilhamento de veículos não necessariamente significa o compartilhamento das viagens
em si, como veremos adiante. De todo modo, o compartilhamento de veículos é atualmente
encarado como uma das grandes tendências em direção à mobilidade sustentável. Além da
ressignificação do sentido da posse, que tende a reduzir o consumo, a mobilidade
compartilhada permite também maior flexibilidade, possibilitando mais combinações entre
transporte público e diferentes modais de uso individual, que podem ser usados em casos mais
específicos e de forma complementar.
COMPARTILHAMENTO DE VIAGENS
29
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
30
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos perceber que há uma grande quantidade de serviços digitais oferecidos atualmente
no campo da mobilidade. Desde sistemas de orientação e oferta de transporte público, que
visam auxiliar o usuário a encontrar as melhores rotas, linhas de ônibus, metrô e trens, aos de
transporte sob demanda, que incluem os serviços de táxi e, mais recentemente, os de motorista
particular.
Muitas dessas alternativas nascem da observação de uma realidade marcada por um
transporte público ineficiente, precário e custoso, e acabam por modificar a própria maneira
de agir dos transportes tradicionais, mesmo quando complementam a oferta regular desses
transportes. A aplicação das tecnologias de informação e comunicação na cidade vem sendo
pensada por diversos atores e elas podem representar tanto interesses corporativos de
grandes atores econômicos quanto alternativas inovadoras de baixo custo, feitas de forma
colaborativa e “de baixo para cima”. As plataformas e aplicativos aqui analisados devem ser
enxergados sob essa lente, evitando um olhar descolado da realidade econômica e política da
qual faz parte a dinâmica das plataformas digitais.
As questões que se colocam para a mobilidade urbana atualmente são um dos maiores
problemas das grandes cidades do mundo. A busca por soluções que possibilitem ao menos
mitigar os efeitos causados pelo excesso de veículos motorizados pode ser observada nos
exemplos estudados, em diferentes níveis, e elas passam principalmente pela ideia do
compartilhamento. Algumas das plataformas que atuam no campo da mobilidade urbana
nasceram de uma associação cooperativa entre pessoas de uma comunidade, buscando solução
para problemas locais, outras são fruto das pesquisas e investimentos do Vale do Silício. A
coexistência de apropriações das tecnologias digitais com distintas ênfases reforça a dicotomia
existente. Ao mesmo tempo que fornecem ferramentas para a conexão entre as pessoas de
forma direta e horizontalizada, também permitem a criação de grandes empresas-plataforma
que centralizam e exploram economicamente os serviços.
Um exemplo claro da necessidade de observar as interações sociais com a tecnologia surgiu
recentemente com a pandemia de COVID-19 no Brasil e no mundo em 2020. Nesse período,
podemos observar algumas mudanças significativas no uso da maioria dos exemplos aqui
analisados. O distanciamento social impõe restrições e condições para os deslocamentos
realizados na cidade, nesse sentido, fica dificultado o acontecimento de caronas, e mesmo, o
transporte por taxi e carros de aplicativos, mas principalmente o transporte público coletivo.
Podemos dizer que há uma diminuição do uso de aplicativos para transporte de passageiros,
aqui analisados, e um aumento significativo do transporte de bens - como comida - por
aplicativo, os aplicativos de entrega, que já vinham crescendo, mas ganham outra proporção e
importância com o início do isolamento social.
31
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.
O discurso de valorização do compartilhamento não pode ser tomado como valor absoluto.
Antes, é preciso examinar o que exatamente está sendo compartilhado, e como. Existe grande
diferença entre compartilhamento de viagens e de veículos, por exemplo, em termos de
emissão de poluentes ou mesmo de carros nas ruas. Por outro lado, a eficiência de
compartilhamento, ligada ao conceito de gerenciamento de banco de dados das chamadas
smart cities, também tem seus efeitos colaterais, na forma da perda de privacidade dos dados,
algo que sempre merece ser examinado mais a fundo, sopesando o quanto devemos, ou
queremos, abrir mão da privacidade individual para permitir o gerenciamento mais eficiente
de informações e recursos.
Agradecimentos
Este estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código Financeiro 001; e também pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que concedeu a bolsa de estudos para o
Mestrado em Urbanismo do PROURB/UFRJ. Os autores agradecem aos colegas do Laboratório
de Análise Urbana e Representação Digital - LAURD/PROURB pelas contribuições e ao
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB/UFRJ pelo apoio.
Referências Bibliográficas
AMAR, G. Homo mobilis: une civilization du mouvement. Paris: FYP Editions, 2016.
ANDRADE, V.; LINKE, C. C. Cidades de pedestres: a caminhabilidade no Brasil e no mundo. Rio de
Janeiro: Babilônia Cultura Editorial. , 2018
BALASSIANO, R.; ANDRADE, A. R.; SANTOS, M. P. Gerenciamento da mobilidade: princípios para a
sua aplicação com base na informação. Revista Cetrama, v. 02, 2005.
BANISTER, D. The sustainable mobility paradigm. v. 15, p. 73–80, 2008.
BEIGUELMAN, G. Cidades de código aberto: arte, arquitetura e design no espaço informacional. In:
ROZESTRATEN, A. S. et al. (Org.). Atas do 1o Colóquio Internacional ICHT 2016 - Imaginário:
construir e habitar a terra. Cidades “inteligentes” e poéticas urbanas. São Paulo: [s.n.], 2016. p.
650.
BOARETO, R. A mobilidade urbana sustentável. Revista dos Transportes Públicos - ANTP, v. 25, n. 3,
2003.
BRUNO, F. et al. (Org.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo,
2018.
FERREIRA, A. F.; BALASSIANO, R. Gerenciamento da mobilidade em Pólos Geradores de Tráfego: o
caso das Instituições de Ensino. 2012, Joinville: ANPET - Associação Nacional de Pesquisa e Ensino
em Transportes, 2012. p. 364–376.
GONÇALVES, C. L. R. As plataformas de e-hailing presentes no ecossistema de mobilidade urbana
no Brasil: um estudo de múltiplos casos. 2016. Instituto COPPEAD de Administração - UFRJ, Rio de
Janeiro, 2016.
HARTLEY, S. The fuzzy and the techie : why the liberal arts will rule the digital world. 1. ed. New
York: Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company, 2017.
IZAGA, F. G. DE. Mobilidade e centralidade no Rio de Janeiro. 2009. 310 f. Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, Rio de Janeiro, 2009.
32
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo
33
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166833
RESUMO:
O planejamento da cidade contempla uma reflexão sobre quais caminhos de desenvolvimento são desejados
e como os problemas existentes podem ser resolvidos, tendo como condição essencial a participação popular.
1
As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) apresentam grandes transformações em diversos setores Universidade Federal
da sociedade e, sobretudo, inauguram novos canais de comunicação e novas formas de participação através do Ceará - UFC
de ambientes virtuais. Este trabalho tem como objetivos realizar um levantamento de dispositivos virtuais de
participação para analisar sua utilização nos processos participativos contemporâneos e identificar e
sistematizar os principais problemas destes processos. Para atingir os objetivos propostos, são analisados e
classificados seis dispositivos virtuais de participação mediante os tipos de conexão que estabelecem com os
usuários e, para refletir sobre sua utilização, são investigadas os entraves dos processos participativos
contemporâneos, sistematizando-os como problemas da ferramenta, problemas do processo e problemas do
cidadão. Entre as problemáticas apontadas estão a exclusão digital, a falta de legitimidade das redes, a vontade
política, a desigualdade social e a falta de engajamento político dos cidadãos. Os resultados da pesquisa
demonstram que os dispositivos de participação constituem novos processos, mas não solucionam os
problemas dos processos tradicionais, trazem novas possibilidades para participação ao mesmo tempo que
adicionam maior complexidade ao processo.
ABSTRACT:
The planning of the city includes a reflection on which development paths are desired and how existing
problems can be solved, with popular participation as an essential condition. Information and Communication
Technologies (ICTs) have undergone major changes in various sectors of society and, above all, have opened
new communication channels and new forms of participation through virtual environments. This work aims to
Fonte de Financiamento:
carry out a survey of virtual participation devices to analyze their use in contemporary participatory processes
Fundação Cearense de Apoio
and to identify and systematize the main problems of contemporary participatory processes. To achieve the ao Desenvolvimento
proposed objectives, six virtual participation devices are analyzed and classified through the types of Científico e Tecnológico -
connection they establish with users and, to reflect on their use, the barriers of contemporary participatory FUNCAP
processes are investigated, systematizing them as problems of the tool, process problems and citizen problems.
Among the issues pointed out are the digital exclusion, the lack of legitimacy of networks, political will, social Conflito de Interesse:
inequality and the lack of political engagement by citizens. The results of the research demonstrate that the Declara não haver.
participation devices constitute new processes, but do not solve the problems of traditional processes, they
bring new possibilities for participation while adding more complexity to the process. Submetido em: 17/02/2020
Aceito em: 08/07/2020
KEYWORDS: Information and Communication Technologies; Participatory processes; Urban planning
MENESES, V. D.; CARDOSO, D.R. Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166833
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
METODOLOGIA DE TRABALHO
37
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
Figura 1: Escada da
Participação.
2011), noção que atesta a relevância e a potência da participação dos cidadãos na construção
da cidade, compreendida como produto coletivo.
É preciso considerar, portanto, que os dispositivos de comunicação contemporâneos de fato
permitem novas formas de participação, porém, a internet e suas ferramentas, bem como os
aparelhos conectados através da rede, não constituem, sozinhos, uma garantia de participação.
E ainda, quando esta participação de fato pode ser verificada, não é possível ter certeza da sua
qualidade ou dos seus impactos. Segundo Gomes (2011), apesar disto, é possível que existam
alternativas de auxílio e incremento para a participação através da internet, dividindo-a em
instrumental e essencial a partir do seu uso específico (GOMES, 2011. p 20). O usuário, por
exemplo, que utiliza um e-mail para fazer contatos políticos, apenas trocou a carta pelo e-mail,
substituindo a forma de comunicar-se e fazendo com que, neste caso, a internet seja somente
instrumental. Porém, quando o usuário lança mão de ferramentas como blogs, Facebook,
Twitter, ocorre que a internet – tal como especificou Gomes (2011) – é essencial pois estes
recursos, embora sejam também formas de comunicação tal qual as formas tradicionais,
guardam possibilidades de comunicação e interação desenvolvidas especificamente para estas
ferramentas. A questão mais relevante levantada por essas definições reside no debate sobre
os novos mecanismos de interação trazidos pela Internet e pelos novos meios de comunicação
e as suas possibilidades para a participação.
Entretanto, em um estudo sobre as redes sociais virtuais enquanto espaços de participação,
Rocha e Pereira (2011) atestam que as mídias sociais “não vêm sendo predominantemente
utilizadas para constituir espaços virtuais de interação capazes de incluir o cidadão como ator
ativo na tomada de decisões. Pelo contrário, em geral, elas têm sido utilizadas pelo Estado para
um tipo de comunicação unidirecional” (ROCHA e PEREIRA, 2011). A condição de subutilização
dessas ferramentas por parte do Estado é um reflexo do que ocorre, grande parte das vezes,
com as ferramentas de participação tradicionais – ou que não utilizam tecnologias de base
digital. Conforme observado no estudo de Arnstein (1969), os diversos tipos de participação
demonstram que nem sempre as “rotinas participativas” (SOUZA, 2006) vão além da fase de
informação. No entanto, a divulgação de informações relativas à gestão e suas ações é um passo
importante para conquistar um patamar de controle social.
Para analisar alternativas de participação por meio das TICs, as iniciativas aqui apresentadas
foram definidas como Dispositivos Virtuais de Participação. Segundo o dicionário Michaelis
On-line, dispositivo é “aquilo que determina, que ordena”, e “Aquilo que contém ordem; norma,
preceito, prescrição”, portanto, compreende-se aqui os sites, aplicativos, plataformas, blogs
como dispositivos que operam através de dimensões virtuais (a partir de tecnologias de
informação e comunicação de base digital) e cujo objetivo é a participação popular em
processos de interesse público e coletivo.
A partir do levantamento realizado e analisando a origem, os objetivos e as ferramentas de
cada dispositivo, foi adotada a seguinte classificação em três tipologias: Dispositivos de
Informação, Dispositivos de Mobilização e Ativismo e Dispositivos Didáticos e de Pesquisa
(MENESES, 2017).
Os Dispositivos de Informação representam a tipologia mais tradicional e tem como exemplo
os portais de informação governamentais, cujo objetivo principal é fornecer informações sobre
o território (cidade, estado, país). Neste caso, são sites criados para divulgar informações da
gestão municipal, estadual ou federal e funcionam, na maior parte das vezes, apenas como
ambientes de marketing político, exibindo dados previamente selecionados para construir a
imagem desejada sobre a gestão pública. No caso de serem mantidos por iniciativas da
sociedade sem vínculos governamentais, assumem um papel de apoio ao controle social
39
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
40
Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso
Minha Sampa, Meu Recife) se mobilizem e atuem prol das causas locais com uma rede de
voluntários. O Nossas, através das suas redes municipais criou e geriu algumas ferramentas,
tais como a Panela de Pressão (para fazer pressão popular nos tomadores de decisão), a
Legislando (para apoiar e promover projetos de lei de iniciativa popular) e a De Guarda (para
possibilitar “vigílias” virtuais em edificações ou locais ameaçados de demolição ou ocupação
indevida pelo poder público). Uma característica diferenciada do Nossas é a prestação de
contas aberta que é realizada na seção “Transparência” mediante o compartilhamento de
auditorias contábeis e do relatório anual para livre conferência.
Outro caso de Dispositivo de Mobilização e Ativismo é o Change.org
(http://www.change.org/), uma plataforma virtual de construção de abaixo-assinados sobre
diversos temas de interesse público que apoia iniciativas em várias partes do mundo. O sistema
funciona na forma tradicional de um abaixo-assinado, porém, com o auxílio da internet e da
inteligência artificial, a plataforma faz com que o abaixo-assinado seja visto por um público
específico de pessoas que possuem interesse no tema e também contribui para que o resultado
chegue aos tomadores de decisão, pressionando-os e influenciando sua conduta.
A terceira e última tipologia de dispositivo, os Dispositivos Didáticos e de Pesquisa, assemelha-
se à tipologia Dispositivos de Informação, porém, inserindo mecanismos de interatividade e
permitindo análises, comparações e configurações na exibição dos dados. É importante
observar que, a partir do levantamento realizado, esta tipologia de dispositivo, na maioria das
vezes, possui uma atuação de caráter interescalar, diferente das outras tipologias que
geralmente se concentram na escala local. Muitas vezes criados através da associação de
empresas e instituições particulares, esses dispositivos, embora promovam compartilhamento
de informações para os cidadãos, também possuem uma preocupação didática e de pesquisa.
Além de fornecer dados para o usuário, esses portais oferecem mecanismos interativos de
organização e análise desses dados, adicionando mais complexidade na construção de cenários
e no agrupamento de informações.
Um exemplo desta tipologia é a Alerta Democrática (http://alertademocratica.org/), uma
plataforma criada em 2014 a partir do emergente contexto político mundial mediante a
reunião de líderes de todos os países da América Latina para a criação de cenários, prevendo
transformações na democracia até o ano de 2030. Iniciativa do Instituto Reos e apoiada por
instituições internacionais como Fundação Ford e Fundação Avina, a Alerta Democrática
constrói previsões baseadas em fatos e destaca possibilidades e desafios democráticos para o
futuro. Esse contexto é apresentado em um exercício de construção de quatro cenários
distintos: “Democracia em Transformação”, “Democracia em Tensão”, “Democracia em
Mobilização” e “Democracia em Agonia”. Utilizando-se da metodologia de Planejamento de
Cenários Transformadores, a plataforma apresenta questões como a falta de
representatividade, descrença da população nas instituições, conflitos socioespaciais, novos
canais de mobilização por meio da tecnologia, corrupção e repressão policial e
desenvolvimento de novas formas de participação e colaboração. A intenção da plataforma é
apresentar os cenários como produto provocativo e em tom de alerta para que os cidadãos
tenham consciência e se mobilizem sobre os caminhos possíveis da democracia
latinoamericana e para embasar a construção de agendas e condutas nos âmbitos políticos,
acadêmicos e sociais.
Outra iniciativa classificada como Dispositivo Didático e de Pesquisa é o Instituto Update –
Laboratório de Inovação Política na América Latina (https://www.institutoupdate.org.br/). É
fruto da sociedade civil e trabalha com pesquisa e fomento de iniciativas de inovação política,
mobilização e participação na América Latina – geralmente com uso da internet – utilizando
como background o contexto sociopolítico do continente. O resultado é um panorama de
projetos que a plataforma pesquisa e fomenta, tais como: Emergência política de mulheres
(pesquisa realizada com mulheres eleitas para cargos públicos), Formação Democrática
41
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
42
Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso
Figura 2: Caracterização e
classificação dos dispositivos
virtuais de participação.
Pode ser observado que todos os dispositivos analisados trazem algum tipo de contribuição
em diferentes etapas do processo participativo dado que apresentam possibilidades de
interação (conectividade) entre governantes e governados ou permitem a criação de espaços
de debate sobre questões importantes relativas a população. Porém, é preciso considerar que,
assim como definido por Arnstein (1969) sobre processos de cooptação ou terapia, os espaços
virtuais de participação também podem ser corrompidos. Como o formato foi transformado
(do espaço físico para o espaço virtual), o processo parece diferente e, muitas vezes, idôneo,
mas permanece com problemáticas muito semelhantes às verificadas nas metodologias
tradicionais. Por esse motivo, como dito anteriormente, é essencial refletir sobre a qualidade
da conexão estabelecida.
Este panorama demonstra, ao estudar sobre as novas possibilidades trazidas pelas TICs, a
exigência de permanecer com uma visão crítica sob pena de aderir a uma perspectiva
enviesada sobre o assunto. Não se pode ignorar a falibilidade dos dispositivos estudados, bem
como o largo conjunto de fatores que influenciam opiniões e ações nos espaços virtuais. São
constantes os questionamentos sobre a legitimidade da democracia exercida nos espaços
virtuais, por isso, processos desta natureza devem considerar as limitações impostas pelo
próprio espaço virtual, tais como a falsa identidade, a manipulação e falsificação de dados e
mídias (MENESES et al, 2019; REGATTIERI, 2019).
44
Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso
processo lento, complexo, oneroso e ineficiente para a escala da cidade, principalmente pela
quantidade de atores participantes e a dificuldade de estabelecer acordos.
Também é preciso considerar como problema do processo a adequação das ferramentas
digitais no âmbito institucional, sua aderência no sistema de planejamento adotado e sua
eficiência na resolução dos problemas existentes (MENESES, 2017). Este fator atesta a
importância da dimensão institucional, seja no comprometimento da gestão pública com o
processo participativo, seja no desenvolvimento de ferramentas para possibilitar processos
mais dinâmicos com feedback contínuo da população (ASCHER, 2010).
Segundo Souza (2006), podem ser identificados três tipos de obstáculos à participação
popular. O primeiro deles é a cooptação, prática que transforma o processo participativo em
“um instrumento de domesticação da sociedade civil por parte das forças políticas à frente do
aparelho de Estado.” (SOUZA, 2006. p. 410). O segundo obstáculo é definido pelo autor como a
problemática da implementação (do processo), reunindo todas as dificuldades logísticas
enfrentadas para a realização de um processo como esse, tais como incompetências gerenciais,
conflitos políticos e ideológicos, pressão de grupos sociais influentes (SOUZA, 2006. p. 410).
Sobre os problemas dos cidadãos, compreende-se principalmente as dificuldades
socioeconômicas, fator que impede a população de ter tempo livre para participar dos
processos (MENESES, 2017). Esta mesma questão também é apontada por Souza (2006) como
a problemática da desigualdade, referente as dificuldades enfrentadas pelas populações de
baixa renda para participar voluntariamente de reuniões e assembléias promovidas em prol
de questões coletivas. Essas dificuldades vão desde as privações financeiras até os problemas
de disponibilidade de horários que não concorram com o expediente de trabalho. O autor cita
ainda dificuldades ligadas a autoconfiança dos cidadãos envolvidos, que nem sempre
acreditam no potencial de sua participação no processo (SOUZA, 2006. p. 411). Além disso, é
preciso considerar também como problema dos cidadãos a falta de engajamento político, em
grande parte motivada pelo contexto atual de descrédito das instituições, falta de confiança
nos processo políticos e participativos (MENESES, 2017). Abaixo está um quadro síntese com
os problemas apontados pelos diversos autores.
45
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, retoma-se aqui o questionamento inicial: como as TICs estão sendo apropriadas
em processos participativos contemporâneos no contexto brasileiro? Para responder a esta
questão foi realizado um levantamento bibliográfico que apresentou um panorama mais
aprofundado sobre a ubiquidade das TICs não só nos processos participativos, mas em todos
os setores da sociedade, demonstrando a abrangência destes recursos e expondo seus
conflitos, tais como a exclusão digital. A base teórica selecionada para amparar o estudo aqui
apresentado aponta para novos paradigmas socioeconômicos, políticos e culturais que passam
a influenciar também no planejamento urbano. Esta percepção inicia-se com o reconhecimento
de novas possibilidades para a participação, debate essencial para a construção de cidades
mais democráticas.
Sobre este tema, a partir da análise dos dispositivos pesquisados e da sistematização proposta
para os problemas dos processos participativos contemporâneos, fica claro que os novos
métodos guardam problemas muito semelhantes aos encontrados nos processos participativos
tradicionais. Essa conclusão representa um grande desafio (ou a renovação do desafio seminal)
para o planejamento urbano: Como construir cidades mais democráticas considerando o
contexto de desigualdades e entraves políticos da sociedade? Mais do que compreender o
desafio, é importante ter consciência da influência e do potencial das tecnologias neste
processo e também das ameaças que elas podem representar.
Nesse sentido, é essencial admitir que, refutando uma perspectiva de determinismo
tecnológico, as TICs não são responsáveis pela transformação e pelo engajamento das
populações em prol de questões coletivas. Esse engajamento é provocado por fatores de ordem
política e social que apenas são reproduzidos com fidelidade nos espaços virtuais. Ou seja, o
espaço é o meio para que as transformações ocorram, influenciando de forma positiva ou
negativa a depender do contexto. As Tecnologias de Informação e Comunicação não
representam, portanto, a solução para os problemas encontrados nos processos participativos
– e talvez adicionem mais complexidade a eles – mas devem ser encaradas como uma
alternativa aos métodos tradicionais em busca de um urbanismo de dispositivos (ASCHER,
2010), objetivando monitorar o desenvolvimento da cidade em tempo real para planejar
intervenções mais dinâmicas e construir espaços mais democráticos.
Referências Bibliográficas
47
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas
48
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168715
Adriane Borda A. da Silva1, Cristiane dos Santos Nunes 1, Stefani Curth Goulart1, Bethina
Harter Silva1
RESUMO:
Este estudo relata a estruturação de um método de representação utilizado em um contexto de investigação
em arquitetura, especificamente envolvendo a produção em um laboratório de fabricação digital. O método 1Universidade Federal de
Adição Gradual da Informação - AGI, está dirigido à produção de modelos táteis para apoiar ações culturais Pelotas - UFPEL
inclusivas relativas a um conjunto arquitetônico de interesse histórico e patrimonial da cidade de Pelotas. A
partir da teoria da escalada da abstração, de Vilém Flusser, este método é problematizado, observando-se a
lógica de associar a variável dimensional das representações envolvidas com os níveis abstracionais exigidos
para produzi-las e compreendê-las como meios de comunicação. A dinâmica de estruturação do método,
apoiada em processos de co-design, entre universidade e sociedade, atribui sentidos ao uso dos modelos e ao
potencial das tecnologias digitais empregadas, promovendo a continuidade na produção e ampliação das
narrativas táteis sobre o patrimônio pelotense.
ABSTRACT:
This study reports the structuring of a representation method used in a context of architectural research, Fonte de Financiamento:
involving production in a digital manufacturing lab. The GAI method, an acronym for Gradual Addition of FAPERGS, CNPq e
Information, aims at the production of tactile models to support inclusive cultural actions concerning an PREC/PROEXT/UFPel
architectural set of historical and patrimonial interest in the city of Pelotas. From Vilém Flusser's theory of (bolsas de estudantes)
escalation of abstraction, this method is problematized, observing the logic of associating the dimentional Infraestrutura física
variable of the employed means to make and comprehend them. The dynamic of the methods structuring, (máquinas): FINEP, PROEXT,
supported by co-design processes between university and society, assigns meaning to the usage of the models Programa ALFA/CE.
and to the potential of the employed digital technologies, promoting continuity in the production and Insumos: PROEXT.
enlargement of the tactile narratives of Pelotas' patrimony.
Conflito de Interesse:
KEYWORDS: Representation; Architectural Patrimony; Digital Manufacturing; Tactile Models; Flusser Declara não haver.
BORDA, A. B. A.; NUNES, C. S..; GOULART, S. C.; SILVA, B. H. Adição gradual da informação sobre um patrimônio
arquitetônico: produção de modelos e sentidos. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-,
2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168715
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
INTRODUÇÃO
50
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva
51
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
A INFRAESTRUTURA PRÉ-EXISTENTE
Figura 3: Ilustrações do
folder sobre a Praça Coronel
Pedro Osório: capa; mapa do
entorno; exemplo de
descrição de uma edificação
Os modelos digitais deste entorno urbano foram executados a partir das seguintes fontes:
documentação arquitetônica disponibilizada pelo NEAB/FAUrb/UFPel e pela Prefeitura
Municipal de Pelotas (PMP); imagens obtidas no Google Maps
(https://www.google.com.br/maps/), através da ferramenta Street View; imagem em alta
resolução da área, disponibilizada pela PMP; mapa vetorizado do lugar com a marcação dos
lotes; modelos geométricos (digitais) disponíveis no Armazém 3D
(https://3dwarehouse.sketchup.com), relativos à produção do Projeto MODELA Pelotas,
conforme consta no registro junto a esta plataforma de modelos. Contou-se também com dados
54
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva
obtidos por meio de tecnologias de fotogrametria digital e escaneamento 3D a laser, para uma
das edificações, caso registrado em Borda et al. (2016, 2017). Desta maneira, as fontes de dados
foram diversas, confrontando-se as informações para avançar em termos de precisão para a
representação. Entretanto, este aspecto (precisão de medidas) não chega a adquirir relevância
frente às escalas de representação, aos objetivos e às tecnologias empregadas. Conforme
Pereira et al. (2017), modelos táteis precisam ter formas simples, ampliando-se detalhes
relevantes e eliminando-se aqueles que produzem ruídos à percepção tátil. Com isto, mesmo
partindo-se de representações anteriormente executadas, sob outros propósitos de
representação, foi necessária uma remodelagem, conforme o caso e a escala. A Figura 4 ilustra
um processo de simplificação de fachada. A imagem (A) refere-se a uma fotografia retificada
da fachada principal do Casarão da Família Assumpção, edificado em 1887. Esta fotografia foi
utilizada como textura sobre um modelo digital simplificado, o qual não contém a geometria
dos elementos ornamentais. Este tipo de modelo facilita a sua disponibilização na plataforma
Google Earth em 3D, sendo possível informar, visualmente, a complexidade formal, sem
sobrecarregar o modelo digital. A imagem (B) refere-se ao modelo da mesma fachada,
produzido para ser impresso em 3D, na escala 1:75, e representar, de maneira simplificada, a
geometria dos ornamentos. Este modelo seguiu as orientações dos colaboradores com
deficiência visual, de controle do grau de rugosidade para ser possível perceber cada elemento
individualmente pela ponta dos dedos. A imagem (C) mostra uma simplificação maior da
fachada para a impressão na escala da maquete da Praça (1:500), com o propósito de informar
tipologias das edificações e proporções entre elas, para a percepção da configuração de todo o
entorno em questão.
O critério para a seleção dos elementos a serem representados neste processo de simplificação
da geometria das fachadas foi conduzido essencialmente pelos textos relativos às
características arquitetônicas que particularizam cada edificação, constantes no folder de
referência. Para o caso do Casarão relativo às fachadas da Figura 4, por exemplo, a descrição
textual ressalta o tipo de edificação e a situação em relação ao quarteirão: “casarão de esquina
e de partido de corredor lateral”. Esta localização pode ser observada junto à representação de
toda a praça e seu entorno, na Figura 5, cujo formato da edificação parece a letra E refletida,
situada no canto superior esquerdo da fotografia.
Figura 4: Simplificações de
uma fachada: A) para a
disponibilização no Armazém
3D (fotografia retificada como
textura); B) para impressão
3D, na escala 1:75; C) idem,
na 1:500
Prosseguindo sobre a narrativa da mesma fachada, o modelo tátil enfatiza o que está destacado
textualmente, sobre a presença de um porão alto, habitável e com aberturas em formato
elíptico, denominadas gateiras. O texto também descreve a existência de pilastras, marcando o
ritmo da fachada, assim como outras volumetrias representadas para ilustrar a seguinte
descrição: “[...] corpo com vãos de sacada de púlpito em ferro, esquadrias com bandeira de
verga reta e com ornamentos, de massa, na parte superior [...]”. Todos os adornos, incluindo os
dos elementos que sustentam o coroamento da fachada, aparecem particularizados na escala
de 1:75. Nesta escala promove-se a tradução tátil do seguinte texto “[...] cimalha com cornija,
55
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
Figura 5: Fotografia da
maquete tátil da Praça
Coronel Pedro Osório e de
seu entorno
escalas, variando de 1:500 a 1:10, já apoia uma narrativa tátil sobre a cúpula do Grande Hotel,
processo descrito em Dalla Vecchia et al. (2015). Esta cúpula se sobressai no entorno da praça,
coroando a edificação de maior porte em altura para a época, concluída em 1928. Além disto,
o método tem sido aplicado de maneira mais sistemática junto ao Casarão 8 (Museu do Doce),
conforme descrito em Borda et al. (2016) e Borda (2017), contando-se com uma representação
precisa, por nuvem de pontos, obtida pelo escaneamento a laser do edifício, interna e
externamente. Este edifício oportuniza visitas públicas, tendo assim um suporte para o acervo
dos recursos assistivos juntamente com a infraestrutura de mediação. Existem, para este caso,
narrativas que se apoiam desde a escala urbana na 1:500 até à escala de 1:1, usada, por
exemplo, para descrever uma figura do estuque do teto deste casarão.
A tabela 1 registra o estágio de aplicação do método AGI. Valores quantitativos, relativos ao
número de estudantes e de horas envolvidos, ao longo da produção, são imprecisos,
especialmente por compreender uma diversidade de perfis de habilidades com as tecnologias
de representação, do início da graduação à pós-graduação.
Tabela 1: Registro do
estágio de aplicação do
método AGI, nas
edificações destacadas
no folder de referência,
relativo à Praça Coronel
Pedro Osório, Pelotas,
RS
As sistematizações em relação à eficácia dos recursos, tem envolvido toda a equipe de co-
design, dependentes assim de observações advindas de diferentes áreas, como por exemplo,
terapia ocupacional, museologia, turismo, história e teoria da arquitetura, gestores das
instituições envolvidas, mediadores dos museus, usuários em geral. Estas reflexões estão em
processo, dependentes da contínua revisão dos recursos, a partir da experiência em cada ação,
sendo estes ajustados, seja na forma ou em número de camadas, para estruturar e ampliar as
narrativas táteis. Quanto às reflexões advindas de usuários com deficiência visual, contou-se,
em um primeiro momento, com a participação de um estudante de Museologia, com limitação
total do sentido de visão, porém com memória visual recente, inclusive tendo um repertório
necessário para o reconhecimento da arquitetura representada. E, ao longo do processo,
conta-se com a parceria da Escola Louis Braille, por meio do uso dos recursos por estudantes,
cujos perfis abarcam uma grande diversidade em termos de: grau de deficiência visual, idade,
gênero, nível de escolaridade e capacidade cognitiva. Neste caso o uso tem sido realizado de
57
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
Figura 6: Registro
fotográfico do uso dos
modelos táteis junto a
uma ação realizada na
Escola Louis Braille de
Pelotas em junho/2018
Todo este esforço constitui as atividades formativas que integram saberes próprios da prática
de arquitetura. Para cada uma das edificações e em particular para aquelas que estão de portas
abertas para a recepção cultural e de educação patrimonial, como a sede dos museus
universitários já mencionados, faz-se oportuno investir na produção de novas camadas de
informação, envolvendo diferentes abordagens, escalas e tecnologias. Esta diversidade facilita
contemplar um desenho universal.
58
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva
Figura 7: Estudos de
geometria gráfica sobre
nuvens de pontos dos
elementos do patrimônio:
um detalhe do estuque e da
fachada do Casarão 8
A Figura 8 ilustra uma narrativa que objetiva conectar a escala urbana a de um edifício em
particular. O caso exemplificado, indicado sobre a escala urbana (A), e ainda representado de
maneira simplificada, refere-se às “casas gêmeas” (B), como reconhecidas pelo senso comum
pelotense, situadas em uma das esquinas do entorno da Praça. A parte exatamente da esquina,
abriga o Museu de Ciências Naturais Carlos Ritter. Na escala 1:100, nos moldes mais próximos
de maquetes tradicionais (C), integra-se outra camada de informação sobre a distribuição dos
cômodos nos diferentes níveis que compõem a edificação. São disponibilizados mapas táteis
portáteis, relativos as plantas baixas, removíveis da maquete em um sistema de gavetas (D),
apoiando-se no método configurado em Sperling et al. (2015). Este tipo de produção
exemplifica uma das atividades realizadas no âmbito da curricularização da extensão, efetivada
recentemente na FAUrb/UFPel. Este tipo de recurso encontra-se já disponível também no
Museu do Doce (E), sendo utilizado para ser validado pelos visitantes, conforme descrito em
Boyle et al. (2019).
A linguagem arquitetônica dos demais edifícios do entorno (não inventariados/
patrimoniados), está sendo representada pela aplicação de texturas, configuradas por
fotografias retificadas de suas fachadas, sobre os modelos simplificados (em MDF na maquete
do espaço urbano) na escala 1:500. E, paulatinamente, no ritmo das atividades de investigação,
59
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
ensino e extensão, o método AGI também será aplicado, para oferecer uma infraestrutura que
facilite a compreensão do todo deste entorno.
A PRODUÇÃO DE SENTIDOS
Os resultados esperados para este estudo referem-se à reflexão sobre os sentidos atribuídos
ao processo, de representação do patrimônio, aqui descrito. Trata-se, mais especificamente, de
problematizar o emprego das tecnologias de fabricação digital, utilizadas para produção dos
modelos que estruturam o método da adição gradual da informação. Como anunciado
anteriormente, utiliza-se para esta problematização a teoria da escalada da abstração de Vilém
Flusser (1998), observando-se assim a relação das variáveis dimensionais dos modelos
empregados com os níveis de abstração necessários para produzi-los e/ou compreendê-los.
Esta produção refere-se ao ato de representar, nos termos piagetianos, de construção de
conhecimento. A interação com o objeto (paisagem urbana) se dá inicialmente na vivência do
espaço, no tridimensional, proposta a ser intensificada por um roteiro turístico com o apoio de
um conjunto de representações caracterizados como recursos assistivos. Nesta primeira
interação, pode haver o envolvimento de vários sentidos (visão, audição, olfato e tato),
incluindo a proposta de complementação da informação para as pessoas com deficiência visual,
tratando de exigir um nível de abstração menor possível em termos comunicacionais em
relação à forma desta paisagem.
A representação pelo desenho (bidimensional), nos termos flusserianos, ao eliminar uma das
dimensões, exige um maior nível de abstração. O desenho a mão, produzido por estudantes de
arquitetura e utilizado no folder de referência, foi substituído, junto ao método AGI, pelo
exercício de vetorização de imagens (processo digital). Esta vetorização se faz necessária para
o desenvolvimento dos modelos tridimensionais dos elementos que compõem as fachadas dos
edifícios, sobre as fotografias retificadas ou sobre a visualização ortogonal das nuvens de
pontos, especialmente para a produção de desenhos para o corte a laser. Este processo
abstracional/interacional envolve uma maior atenção sobre a forma e seu significado no
âmbito das linguagens de arquitetura envolvidas, para que as imagens mentais provocadas
pelo tato auxiliem na apropriação do conhecimento a ser construído por cada usuário. O
exercício de reconhecer e traduzir as representações unidimensionais (descrições textuais das
edificações), por parte da equipe de mediação exige a apropriação efetiva do discurso sobre o
objeto representado como um todo (paisagem urbana). Os depoimentos orais dos usuários têm
demonstrado também tal apropriação, embora não tenha sido oportunizada a expressão
escrita, a qual terá que envolver o sistema estruturado pelo pedagogo francês
Louis Braille (1809-1852), sistema tátil formado por pequenos pontos salientes para serem
decifrados pela ponta dos dedos. Destaca-se que a Escola Louis Braille, envolvida nas ações,
tem adicionado paulatinamente este sistema de escrita ao recurso. A associação do discurso ao
modelo tem se constituído como uma ação lúdica de perceber tatilmente a narrativa traduzida
em forma arquitetônica. Por fim, compreende-se o uso de imagens técnicas, incluindo a
fotografia, a fotogrametria digital, o escaneamento 3D a laser, a modelagem geométrica e visual
e a fabricação digital, todos computáveis, envolvendo um alto nível de abstração. Para o
contexto acadêmico, por meio da trajetória de aprendizado proposta, cada uma delas está
guiada por uma consciente intenção de uso e controle de um tipo específico de produção. Desta
maneira, não se trata de uma prática representacional que atribui autonomia ao aparelho. Ao
contrário, foge da postura “proletária” associada ao tipo de relação a ser evitada, do usuário
com tais tecnologias, alertada por Flusser (1998).
As informações contidas no folder de referência, bi e unidimensionais (desenhos e textos)
foram assim ampliadas, partindo e retornando à tridimensionalidade, utilizando-se da
trajetória de uso das imagens técnicas, nulodimensionais.
60
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de representação aqui referido, por um lado, constitui-se como infraestrutura para
promover a inclusão cultural de pessoas com deficiências visuais. Por outro, como
oportunidade para promover uma formação profissional em arquitetura, sensível e apta ao
Desenho Universal e à interação com a sociedade, tendo em vista a experiência de caráter
extensionista.
O exercício de realizar uma leitura dos meios de comunicação envolvidos em todo o processo,
apoiado nas reflexões flusserianas tem induzido ao estabelecimento de um ambiente
acadêmico reflexivo especialmente quanto à postura de uso das tecnologias digitais de
representação. E, mais do que isto, desloca o objetivo didático centrado no tempo tecnológico
atual para a construção de uma postura atenta a qualquer tempo.
Partiu-se de um resultado concreto, o “maquetão”, como tem sido tratado no contexto do
estudo, avançando-se para resultados essencialmente qualitativos. Estes expressados pelo
afeto das pessoas que vivenciam a experiência, tanto por parte dos usuários dos modelos como
por parte da equipe de desenvolvimento das representações. Tal experiência, a todo momento
transita pelos diferentes níveis de abstração. As representações, produzidas por fabricação
digital, estão carregadas de sentidos: social, formativo, cultural e profissional. Podem ser
reproduzidas em série, pelos aparelhos, entretanto, são os momentos de interação com estas
representações que possibilitam a transgressão ou a criatividade para avançar com a inclusão
cultural e com o aperfeiçoamento do processo formativo para o projeto. Desta interação é
possível que surjam outras representações ainda impensadas, avançando em todo o processo
comunicacional.
Agradecimentos
61
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos
Referências Bibliográficas
BORDA, A.; VEIGA, M.; NICOLETTI, L.; MICHELON, F. Descrição de fotografias a partir de modelos
táteis: ensaios didáticos e tecnológicos. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E
ARQUITETURA DE MUSEUS, 3, 2012, Rio de Janeiro. Conservação e Técnicas sensoriais. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2012. v. 1. p. 01-15
BORDA, A.; SILVEIRA, D.; MEDINA, A.; VECCHIA, L. Pontos (de vista) sobre o patrimônio: entre o
escaneamento e a fotogrametria In: XX CONGRESO INTERNACIONAL DE LA SOCIEDAD
IBEROAMERICANA DE GRÁFICA DIGITAL, Buenos Aires. Blucher Design Proceedings. São Paulo:
Editora Blucher, 2016. v.3. p.651-556
BORDA, A. Tactile narratives about an architecture’s ornaments In: XXI CONGRESO INTERNACIONAL
DE LA SOCIEDAD IBEROAMERICANA DE GRÁFICA DIGITAL, 2017, Concepción. Blucher Design
Proceedings. São Paulo: Editora Blucher, 2017. v.3. p.439-444
BORDA, A.; NUNES, C.; GOULART, S.; HARTER, B. Impressions of a touristic route: between the null-
dimensional and the three-dimensional In: XXII CONGRESSO INTERNACIONAL DA SOCIEDADE
IBEROAMERICANA DE GRÁFICA DIGITAL, 2018, São Carlos. Blucher Design Proceedings. São Paulo:
Editora Blucher, 2018. p.345-350
BOYLE, L.; TEIXEIRA, A.; SANTOS, E.; KNORR, I.; BRAGA, K.; BORDA, A. Representações das Casas
Gêmeas por tecnologias de fabricação digital: uma contribuição para o acervo tátil do entorno da
praça Cel. Pedro Osório, Pelotas In: CONGRESSO DE EXTENSÃO E CULTURA DA UFPEL, 6, 2019,
Pelotas. Tecnologia e Produção. Pelotas: UFPel, 2019. v. 1. p. 109-112
COOK, A.; POLGAR, J. Cook and Hussey’s assistive technologies: principles and practice. 3. ed.
Philadelphia: Mosby Elsevier, 2008.
DALLA VECCHIA, L.; BORDA, A.; PIRES, J.; VEIGA, M.; VASCONSELOS, T.; BORGES, L. Tactile models of
elements of architectural heritage: from the building scale to the detail. In: CAAD FUTURES
CONFERENCE, 16, 2015, São Paulo. The next city - New technologies and the future of the built
environment. p. 434-446.
FLUSSER, V. Ensaio sobre a Fotografia: para uma filosofia da técnica. 1 ed. Lisboa: Relógio d’ Água,
1998.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
GUTIERREZ, E. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: Ed.
Universitária, 1993.
GUTIERREZ, E. O monte bonito cobriu-se de sangue: história do sítio charqueador Pelotense. In:
SEMINÁRIO DE PATRIMÔNIO AGROINDUSTRIAL LUGARES DE MEMÓRIA, 2, 2010, São Carlos. O
patrimônio material da agroindústria: arquitetura, espaços de produção e configuração espacial. p.
1-14.
MICHELON, F. (org.). Entre o sal e o açúcar: o doce através dos sentidos: catálogo do projeto Os
Museus do Conhecimento para Todos. Bagé: Bühring, 2016.
ORNSTEIN, S. (org.). Desenho universal: caminhos da acessibilidade no Brasil. São Paulo: Annablume,
2010.
PALLASMAA, J. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.
62
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva
63
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166737
Caio Augusto Rabite Almeida1, Guilherme Valle Loures Brandão2, Renato César Ferreira
Souza1, Marcos Martins Borges3
RESUMO:
Segundo Edward Hall, Proxêmica é o termo que designa a inter-relação entre observação e teoria de uso que
o homem faz do espaço e na interação destes com o mesmo, observadas à partir de quatro de quatro esferas
diferentes de relacionamentos: íntimo, pessoal, social e público. Apropriando-se do conceito de Hall, a 1Uversidade Federal de
pesquisa tem como objetivo o delineamento de um método de investigação que parta do princípio das Minas Gerais – UFMG
categorias de classificação do espaço introduzindo os conceitos de distância social, estudando o
relacionamento entre os “nós da cidade” e as relações interpessoais com a abrangência de benefícios sociais 2SecretariaMunicipal de
diversos como: segurança, comunicação, áreas livres, habitação, engajamento e serviços. Este trabalho busca Atividades Urbanas –
entender as possibilidades de utilização de relações socioespaciais na investigação de fatores que tendem cada SMPU/PBH
vez mais a incorporar atributos de ação humanos não-explícitos, auxiliando na geração de parâmetros e
grandezas que possam ser instrumentalizados em ferramentas de modelagem digital para análise e simulação 3Universidade Federal de
de recintos urbanos. Para tanto, são aplicadas ferramentas digitais na construção de um modelo da cidade de Juiz de Fora - UFJF
Juiz de Fora – MG – que permite a inserção de dados socioespaciais, bem como a análise das interrelações e
retroalimentação de dados. Conclui-se que o maior desafio na aplicação ao planejamento urbano está em
como lidar com esses parâmetros e buscar soluções dentro de organizações maiores e mais abertas visando
melhor adaptabilidade dos sistemas urbanos frente às transformações latentes, incorporando nos novos
agentes, sejam instrumentais ou de ações participativas, numa mudança projetual - da probabilidade e da
prescrição - para a possibilidade e descrição em, sobretudo, reformas e ampliações urbanas.
ABSTRACT:
According to Edward Hall, proxemics is the term that designates the interrelationship between observation and Fonte de Financiamento:
theory of the use men makes of space and in their interaction with it, observed from four different relationship Coordenação de
spheres: intimate, personal, social and public. Appropriating Hall’s concept, this research aims to design a Aperfeiçoamento de Pessoal
survey method that begins from the principle of space classification categories introducing social distance de Nível Superior - CAPES
concepts, studying the relationship between the city nodes; and interpersonal relationships with the scope of
diverse social benefits such as: security, communication, free areas, housing, engagement and services. This Conflito de Interesse:
work seeks, thus, to understand the possibilities of using socio-spatial relationships in the investigation of Declara não haver.
factors that increasingly tend to incorporate non-explicit attributes, assisting in the generation of parameters
and values that can be used in digital modeling tools for urban environment analysis and simulation. To this Submetido em: 14/02/2020
end, digital tools are applied in the construction of a model of Juiz de Fora city that allows the insertion of a Aceito em: 08/07/2020
wide range of socio-spatial data, as well as the interrelation analysis and data feedback. It is concluded that
the greatest challenge in applying proxemics into urban planning is how to deal with these uncertainties and
seek solutions within more open organizations and better adaptability of urban systems in the face of latent
transformations, incorporating in new agents, whether instrumental or participatory actions, in a change - of
probability and prescription - for possibility and description especially in urban expansion and renovation.
INTRODUÇÃO
As Proxêmicas são um neologismo criado pelo antropólogo e sociólogo Edward T. Hall, em uma
de suas principais obras intitulada “A Dimensão Oculta” (1966). Segundo Hall (1966, p. 01),
“Proxêmica é o termo que designa a inter-relação entre observações e teoria de uso que o
homem faz do espaço e na interação destes com o mesmo”. Sua definição pode ser resumida
como as relações não verbais inseridas em determinado espaço e cotidiano, usadas para
descrever o espaço pessoal de indivíduos em um meio social.
Hall (1966) propõe a existência de quatro esferas diferentes de relacionamentos: íntimo,
pessoal, social e público, de forma que a distância entre estes espaços pode variar de uma
cultura para outra, conforme ilustrado na figura 1. Segundo ele, “Os humanos são seres
territoriais, as pessoas cotidianas reivindicam o espaço, constroem sobre ele e, assim, marcam
seu território” (HALL, 1989; p. 59).
Figura 1. Distância e
correlação dos espaços
proxêmicos segundo Hall.
66
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
Ao longo do tempo vários autores como Jane Jacobs (1961), Michael Batty (1971) Christopher
Alexander (1977), Christian Norberg Schulz (1980), Bill Hillier (1984), Pierre Frankhauser
(1994) e Jan Gehl (2010) propuseram formas de se analisar as características espaciais
relacionadas a aspectos sociais, geográficos, paisagísticos, simbólicos e de desenho, com alguns
destes inclusive propondo uma sistematização dessas relações. O desenvolvimento de
ferramentas e métodos computacionais incorpora parte dessas teorias e agrega novas
interpretações, principalmente na formação de parâmetros.
O geógrafo John Agnew (2013) defende que é impossível compreender os lugares a partir das
dimensões limitadas da arquitetura ou da geografia física, já que as variáveis que caracterizam
os lugares são polivalentes. Uma das variáveis apontadas por Agnew (2013) seria o
“sentimento de lugar”, que poderia ser compreendida como uma medida que inclui as
realidades intersubjetivas que lhe conferem o que a linguagem convencional descreveria como
“caráter” ou “qualidade de vida”.
Situada entre a localização objetiva e o sentimento subjetivo do lugar, Moore (2013) estabelece
um território intermediário ou “localidade”. Essa qualidade do lugar é o cenário em que as
68
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
relações sociais se desenvolvem, o que inclui a escala de vida institucional à qual a arquitetura
dá tantas contribuições: a cidade, a praça pública, o quarteirão e a vizinhança.
Na tentativa de relacionar aspectos materiais com aspectos imateriais, físicos com subjetivos,
além de aspectos qualitativos e quantitativos, é necessário entender as relações e as dinâmicas
que ocorrem entre as várias partes do sistema urbano. Dogan et al (2018) demonstram que
algumas pesquisas focam no entendimento das diferenças de qualidade e quantidade das
interações que tornam uma cidade ou bairro mais atraente que um outro, possibilitando
análises e características personalizadas, como demonstrado pela figura 2, para determinados
indivíduos com interesses distintos.
Figura 2. Utilização de
métricas para análise de
preferências pessoais.
Fonte: Adaptado de
Dogan et al (2018).
Há um debate no campo de estudo que ambientes urbanos mais densos tendem a gerar níveis
maiores de interação entre pessoas e oferta de usos e serviços do que ambientes urbanos
espraiados (SEVTSUK, 2014). O argumento é que a densidade influi no aumento das
possibilidades de encontros planejados e aleatórios, permitindo que os usuários de uma área
façam mais atividades em menos tempo.
Neste âmbito, é importante a definição da densidade urbana e a relação com a intensidade local
de nós de distribuição: entende-se que a densidade toma como referência a quantidade de
pessoas ou elementos de forma urbana em uma área específica, e a intensidade está ligada à
concentração e distribuição de atividades no plano das ruas da cidade. A densidade adotada
neste trabalho toma como parâmetros os aspectos construtivos e de usos, considerando as
distâncias e a diversidade de determinados serviços em uma área.
Para Panerai (2008) a densidade tende a fortalecer centros existentes, redistribuir usos,
equipamentos, espaços públicos e privados, aproximar habitantes dos transportes e dos
serviços, que possam favorecer a qualidade de determinado lugar em sua apropriação por
usuários.
De acordo com Sevtsuk e Kalvo (2016), as três principais qualidades da forma urbana que
afetam a intensidade de um determinado espaço e influenciam suas métricas são:
• Escala: refere-se ao tamanho dos edifícios. Se os edifícios de destino forem maiores
em volume, eles poderão acomodar mais estabelecimentos.
• Frequência: refere-se à quantidade de edifícios em um espaço urbano. Se o número
de prédios vizinhos for alto, ou seja, se o espaçamento entre os prédios for menor, mais
destinos serão encontrados na mesma faixa de caminhada.
69
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
Fonte: Elaboração
própria.
Essa seletividade e atribuição de maior grau de importância aos efeitos negativos gera uma
lacuna que pode ser verificada na insuficiência de trabalhos que lidem com a caracterização
destes efeitos positivos do espaço. Holanda (2003) complementa relatando que a urbanidade
pode ser edificada a partir de características como vitalidade urbana – entendida como muitas
pessoas, percebidas por um observador social, utilizando o espaço – diversidade e interação
social, acessibilidade e mobilidade urbana, existência de serviços e presença de hábitos
cotidianos.
Para Dogan et al (2018) e Sevtsuk e Kalvo (2016), metodologias emergentes de planejamento
urbano apoiadas por ferramentas digitais específicas podem contribuir não apenas nos
estudos relacionados à mobilidade ativa, mas também na intensidade das interações que são
influenciadas por parâmetros espaciais – como escala de construção, localização, diversidade
de usos, permeabilidade e acessibilidade.
Quando os dados desses parâmetros são analisados por um longo período de observação,
permitem a identificação de padrões de comportamento que podem auxiliar o planejamento
de novos edifícios, espaços públicos ou mesmo ruas e bairros inteiros. Embora ainda seja
precoce a relação causal sobre a eficácia de diferentes métodos de design e análise que
correlacionem aspectos sociais e econômicos com configurações urbanas, o desenvolvimento
de métricas que possam capturar aspectos qualitativos dos lugares é um passo importante para
o desenvolvimento e melhor compreensão do funcionamento de bons ambientes urbanos.
MÉTODO DE ESTUDO
Esta seção do artigo propõe uma abordagem metodológica que busca correlacionar algumas
considerações teóricas e instrumentais tratadas até aqui nesta pesquisa de caráter
exploratório. Como o contexto urbano é composto por diversas variáveis que estão em
constante interação e transformação, criar uma síntese de análise urbana implica em combinar
e associar vários dados e propor uma interpretação apropriada.
As ferramentas utilizadas foram o software Rhinoceros®, seu add-on de programação visual
Grasshopper®, e duas extensões dentro destes aplicativos, sendo elas UNA Toolbox (SEVTSUK,
2018) e Urbano. Ambas as ferramentas direcionadas ao planejamento e análise urbana,
70
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
Fonte: Elaboração
própria.
71
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
Figura 6. Métricas
disponíveis pelo plugin
Urbano e adotadas na
metodologia do trabalho.
Disponível em:
www.urbano.io. Acesso
realizado em: 14/01/2020.
72
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
A figura 7 resume as etapas que foram adotadas para a realização do método sob o viés
instrumental proposto:
Figura 7. Metodologia
instrumental proposta pelo
trabalho.
As contribuições analíticas por ambas as ferramentas usadas neste trabalho estão diretamente
relacionadas à distribuição de comodidades, intensidade de deslocamento e de acesso a
serviços.
O termo amenity (comodidade) é utilizado no setor imobiliário e de hotelaria, e leva em
consideração os benefícios que determinada propriedade pode fornecer, aumentando assim o
seu valor. As comodidades físicas podem incluir desde a facilidade de acesso e qualidade dos
serviços como restaurantes, parques, áreas comuns, bares, centros comerciais.
As comodidades são os pontos inseridos nos polígonos que representam atividades e serviços
disponíveis em determinada área. Esses pontos podem possuir um maior ou menor fator de
relevância local. Os fatores não explícitos incluem as questões de infraestrutura e aspectos
sociais, como transporte público integrado, baixas taxas de criminalidade, ou qualquer outro
que possa aumentar o bem-estar dos residentes.
Pode-se posteriormente gerar agrupamentos (clusters) de preferências positivas, e alimentar
os dados e metadados de outras fontes empíricas como: entrevistas com usuários, valor do
metro quadrado e aluguel, notas recebidas pelos serviços disponíveis e IDH (índice de
desenvolvimento humano) local. Tal como as observações sociais, tais métodos encarecem
bastante a pesquisa, mas é necessário que se tenha acesso a estes dados para gerar resultados
mais significativos e reduzir o tempo de elaboração e inserção destes no modelo. O diálogo
entre as duas ferramentas foi facilitado já que ambas operam no mesmo software,
possibilitando o uso do mesmo modelo e a interoperabilidade entre os resultados e
complementação de análises.
CASO DE ESTUDO
Para o caso de estudo deste trabalho utilizou-se o município de Juiz de Fora, localizado na Zona
da mata de Minas Gerais (figura 8), com população estimada de 568.873 habitantes em 2019.
Juiz de Fora foi escolhida para aplicação dos modelos de estudo devido a sua configuração
urbana espraiada, à disponibilidade de dados necessários e conhecimento prévio dos autores
sobre as dinâmicas urbanas locais (pesquisas exploratórias), como indicação de possíveis
pontos de maior atratividade.
73
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
74
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
A escolha das áreas para aplicação do plugin Urbano foi realizada a partir dos resultados
demonstrados pela Ferramenta UNA nas análises de alcance e gravidade, comparando os
índices obtidos e a sua relação com a facilidade de serviços e de acessibilidade e uso destes nas
áreas investigadas. A área escolhida é caracterizada por ser de uma região de oferta baixa de
serviços diversificados e de malha regular.
75
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
Foram, então, realizadas simulações para a situação existente e uma situação projetada, com o
intuito de verificar se haveria mudanças sensíveis nos valores de streetscore e walkscore para
a área a partir da inserção de alguns pontos de interesse comerciais de peso de vetor 1 nas
áreas que apresentavam menor walkscore. A inserção – para ambas as simulações – seguiu o
procedimento indicado na figura 12 e a simulação das situações existente e projetada é
apresentada nas figuras 13 e 14.
A figura 14a apresenta a situação existente e pode-se verificar que os polígonos com melhor
walkscore são os localizados próximos à avenida principal, que apresenta maior número de
serviços e concentração de atividades. Os valores ficam mais baixos à medida em que se afasta
da concentração de atividades. A figura 14b traz os resultados para a situação projetada, após
76
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
DISCUSSÃO
A elaboração das simulações de alcance e gravidade a partir da malha urbana de Juiz de Fora
possibilitaram perceber as áreas da cidade que, embora próximas às centralidades indicadas
pelo parâmetro gravidade, possuíam baixos valores do parâmetro alcance, indicando a
necessidade de maiores deslocamentos para realização de atividades cotidianas. Os resultados
streetscore e walkscore apresentados no estudo de caso demonstram que a proposição da
distribuição mais homogênea de pontos de interesse melhora os parâmetros analisados.
Embora tenha sido realizada apenas uma proposição de forma ilustrativa juntamente com o
método exploratório, os métodos permitiram a inserção e avaliação de diversas propostas de
modificação, possibilitando simular a antever os resultados de possíveis intervenções físicas.
Nota-se que a coleta de dados é importante, mas a sua relevância está diretamente relacionada
a conexão dentro de um contexto específico que possa revelar redes de interdependências. O
maior empecilho na execução do método reside na dificuldade de encontrar uma ampla gama
de dados socioespaciais digitalizados em bancos compatíveis com os softwares e plugins
utilizados. A inserção manual dos dados para cada edificação dificulta a elaboração do modelo
e reduz a confiabilidade dos resultados, já que informações importantes podem não ter sido
consideradas. Quanto maior a disponibilidade de dados oficiais digitalizados, mais precisas as
simulações e resultados, de forma que a análise das propostas projetuais e a retroalimentação
do modelo tendem a ter maior sucesso.
A proposta metodológica e os resultados podem induzir à ideia de que os espaços com os
melhores índices de intensidade são aqueles que dispõem de maior oferta e qualidade de
serviços. Sendo assim é importante compreender as especificidades de cada lugar – não se
situando apenas em fatores econômicos e sociais – relativizando possíveis dinâmicas que
ocorrem em regiões periféricas ou que possuam outras formas de urbanidade, como por
exemplo a sazonalidade de eventos e serviços.
Embora a forma urbana e a conectividade estejam associadas a melhores resultados, como
demonstrado no estudo de caso, não são os únicos fatores que podem influenciar as
discrepâncias socioespaciais das cidades. Incorporar as proxêmicas do espaço como agente na
77
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
estruturação e planejamento de uma cidade e de seus espaços, torna-se instrumento que pode
ser utilizado para visualização e formação de estratégias de projeto que considere a
importância das dimensões sociais presentes em um espaço construído de maneira a fortalecê-
lo.
Para futuros trabalhos, buscaremos gerar possíveis comparações entre recortes urbanos,
identificando suas potencialidades, qualidades e debilidades, fornecendo análises de como
estes contextos se adaptam e transformam-se alterando padrões ao longo do tempo.
Considera-se também a busca por métricas que consigam capturar a intensidade urbana
levando em consideração não apenas os aspectos socioeconômicos, como valor da terra ou
disponibilidade de serviços em uma área, com especial atenção à variabilidade dos pesos e
categorizações como faixa etária, necessidades e classe social local, entre outros fatores que
possam agregar vitalidade a ruas e lugares.
CONCLUSÃO
Referências Bibliográficas
AGNEW, J. Representing space: space, scale and culture in social science. In: DUNCAN, J.; LEY, D.
(org.) Place/Culture/Representation. Londres: Routledge, 2013. DOI: 10.4324/9780203714034.
ALEXANDER, C.; ISHIKAWA, S.; SILVERSTEIN, M. Uma Linguagem de Padrões. Porto Alegre: Editora
Bookman, 2012.
ASHBY, R. W. Introduction to Cybernetics (1956). Eastford: Martino Fine Books, 2015.
BATTY, M. Modelling cities as dynamic systems. Journal Nature, v. 231, p. 425-428, 1971. DOI:
<http://dx.doi.org/10.1038/231425a0>.
78
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges
BATTY, M. The new science of cities. Cambridge: The MIT Press, 2013. DOI:
<http://dx.doi.org/10.1080/13658816.2014.937717>.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano (1980). São Paulo: Editora Vozes, 2013.
DEVRIES, B.; TABAK, V.; ACHTEN, H. Interactive urban design using integrated planning requirements
control. Automation in Construction, v. 14, n. 2, p. 207–213, 2005. DOI:
<http://dx.doi.org/10.1016/j.autcon.2004.07.006>.
DOGAN, T.; SAMARANAYAKE, S.; SARAF, N. Urbano – A New Tool to Promote Mobility-Aware Urban
Design Active Transportation Modeling and Access Analysis for Amenities and Public Transport. In:
SimAUD ‘18 Conference, 2018, Delft, Holanda. Anais... San Diego: SCSI, 2018. DOI:
10.22360/simaud.2018.simaud.028.
ECO, H. A estrutura ausente – Introdução a pesquisa semiológica. São Paulo: Editora Perspectiva,
1976.
FRANKHAUSER, P. La Fractalité des structures urbaines. Paris: Antrophos, 1994.
GEHL, J. Cidades Para Pessoas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2013.
HALL, E. T. The Hidden Dimension. Chicago: University of Chicago, 1966.
HALL, E. T. Beyond Culture. New York: Anchor Books, 1989.
HILLIER, B.; HANSON, J. The Social Logic of Space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
HOLANDA, F. Arquitetura & Urbanidade. São Paulo: ProEditores Associados, 2003.
JACOBS, J. Morte e Vida nas Grandes Cidades (1961). São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
LEFEBVRE, H. Writings on Cities. Oxford: Blackwell, 1996.
MCCULLOUGH, M. Digital Ground: architecture, pervasive computing and environmental knowing.
Cambridge: MIT Press, 2004.
MOORE, S. A. Technology, Place, and the Nonmodern Thesis. Journal of Architectural Education, v.
54, n.3, p. 130-139, 2013. DOI: <http://dx.doi.org/10.1162/10464880152632442>.
NORBERG-SCHULZ, C. Genius Loci: Towards a Phenomenology of Architecture. Londres: Ed. John
Wiley & Sons ,1980.
PANERAI, P. Paris Métropole – Formes et échelles du Grand-Paris. Paris: Éditions
La Villette, 2008.
PANGAROO, P. Cybernetics as phoenix: why ashes, what new life? Cybernetics: State of Art, v. 1, p.
16-33, Germany, 2017. DOI: <http://dx.doi.org/10.14279/depositonce-6121>.
PORTAS, N. A. Cidade como Arquitectura. Lisboa: Livros Horizonte, 2007.
SEVTSUK, A. Urban Network Analysis for Rhinoceros 3D - Tools for Modelling Pedestrian and Bicycle
Trips in Cities. City Form Lab, Harvard, 2018. Disponível em: <http://cityform.mit.edu/papers>.
Acesso realizado em: 22/01/2020.
SEVTSUK, A. Networks of the built environment. In: OFENHUBER, D.; RATTI, C. (Org.). Decoding the
City: Urbanism in the Age of Big Data. Basel: Birkhäuser, 2014.
79
Gestão & Tecnologia de Projetos
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais
SEVTSUK, A.; KALVO, R. Urban Network Analysis Toolbox for Rhinoceros 3D.
Planning and Technology Today, n. 112, p. 4–5, 2016. Caio Augusto Rabite Almeida
caio.rabite@gmail.com
SEVTSUK, A.; MEKONNEN, M. Urban Network Analysis: A new toolbox for
ArcGis. Revue International de Géomatique, v. 2, n. 2, p. 287-305, 2012. DOI: Guilherme Valle Loures
Brandão
<http://dx.doi.org/10.3166/rig.22.287-305>. guilherme.loures@engenharia.u
fjf.br
80
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166255
RESUMO:
Conforme o avanço e a disseminação das tecnologias de fabricação digital nos campos da arquitetura, design e
construção, torna-se oportuno sistematizar os laboratórios que as implementam e compreender como estão 1Universidade de São
ocorrendo as suas dinâmicas de uso no contexto da América do Sul. Como parte de um projeto de pesquisa em Paulo. Instituto de
andamento, o objetivo do artigo é elencar alguns dos experimentos projetuais identificados durante a investigação Arquitetura e Urbanismo
e apresentá-los por meio de categorias baseadas em similaridades de propostas temáticas e conceitos, além de suas – IAU USP
relações com as tecnologias. Os métodos utilizados abrangem a revisão da literatura e revisão sistemática de
publicações, mapeamento de informações, questionários semiestruturados e estudos de caso. Os artefatos
selecionados são analisados conforme os temas da apropriação tecnológica, adequação sociotécnica e inovação
social, manifestando uma perspectiva local de estratégias de produção frente a demandas e necessidades, a partir
do emprego de técnicas e tecnologias digitais. O contexto recente de instalação dos laboratórios de fabricação digital
foi se ampliando nas instituições por meio do ensino e da pesquisa, além da consolidação do modelo Fab Lab na
região. Os resultados práticos são muito heterogêneos em seus temas, concebidos com prazo de durabilidade curto,
ainda limitados em escala e fortemente baseados na articulação formal híbrida entre o analógico e o digital, devido
aos materiais disponíveis, tipo de maquinário acessível e da especialização técnica necessária para produzi-los, mas
com alguns projetos direcionados à solução de problemas no aspecto social.
PALAVRAS-CHAVE: Fabricação digital; Apropriação tecnológica; Adequação sociotécnica; Inovação social; Design
arquitetônico.
ABSTRACT:
According to the advancement and dissemination of digital fabrication technologies in the fields of architecture, Fonte de Financiamento:
design and construction, it becomes opportune to systematize the laboratories that implement them and understand Fundação de Amparo à
how their dynamics of use are occurring in the context of South America. As part of an ongoing research project, the Pesquisa do Estado de São
objective of the article is to list some of the design experiments identified during the investigation and to present Paulo - FAPESP e Conselho
them through categories based on similarities of thematic proposals and concepts, in addition to their relationship Nacional de
with technologies. The methods used include a literature review and systematic review of publications, information Desenvolvimento Científico e
mapping, semi-structured questionnaires and case studies. The selected artifacts are analyzed according to the Tecnológico - CNPq
themes of technological appropriation, socio-technical adequacy and social innovation, showing a local perspective
of production strategies in the face of demands and needs, based on the use of digital techniques and technologies. Conflito de Interesse:
The recent context of the implementation of digital fabrication laboratories has been expanding in institutions Declara não haver.
through teaching and research, in addition to the consolidation of the Fab Lab model in the region. The practical
results are very heterogeneous in their themes, conceived with a short term of durability, still limited in scale and Submetido em: 11/02/2020
strongly based on the formal hybrid articulation between analog and digital, due to the available materials, the type Aceito em: 08/07/2020
of accessible machinery and the technical specialization necessary for producing them, but with some projects aimed
at solving problems in the social aspect. KEYWORDS: Digital fabrication; Technological appropriation; Socio-technical
adequacy; Social innovation; Architectural design.
SCHEEREN, R.; SPERLING, D. M. Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos
de apropriação tecnológica e adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul. Gestão &
Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166255
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
INTRODUÇÃO
A disciplina da arquitetura foi expandida em suas práticas e formas de atuação nas últimas
décadas devido a uma série de mudanças técnicas e tecnológicas, centradas principalmente na
evolução do paradigma digital (PICON, 2010), com avanços ocorrendo no âmbito dos processos
computacionais de projeto (MENGES AHLQUIST, 2011) e na esfera da fabricação digital
(CANEPARO, 2014). A possibilidade de materializar os conceitos projetados permeia o
interesse dos arquitetos por atividades práticas que se constituem desde a aplicação das
tecnologias por meio da prototipagem rápida (Sass; Oxman, 2006) até em experimentos
materiais utilizando métodos avançados que articulam o estado da arte das tecnologias
industriais em processos para a construção (NABONI, PAOLETTI, 2015). Em paralelo,
laboratórios de investigação se consolidaram em instituições de ensino (CELANI, 2012),
propostas de fabricação pessoal, assim como nos Fab Labs, que indicam um potencial de
“revolução” na área (GERSHENFELD, 2005; 2012). Desse modo, a expansão do vocabulário de
criação, da análise e da simulação de projetos cada vez mais complexos está sendo
materializada por processos de fabricação que investigam a utilização das máquinas de
controle numérico computacional, com a finalidade de automatizar o design para a produção.
De acordo com qualquer contexto sociotécnico, os artefatos produzidos devem ser
compreendidos de forma vinculada aos seus meios de produção, às relações de trabalho, e aos
potenciais de transformação desse mesmo contexto. Em virtude dessas condições, existem
posições críticas em relação ao papel das tecnologias e suas condições de efetivação. As
alterações no processo de produção da construção pelas tecnologias de fabricação digital
decorrem de mudanças fundamentais nas estruturas sociais e de mercado, não como práticas
tecnicamente determinadas, mas que evoluem e são estabelecidas por necessidades e
desenvolvimentos sociais e culturais (MOE, 2010, p. 164-5). Entre a promoção de princípios de
abertura, democratização, empoderamento e compartilhamento de informações, os Fab Labs
e o movimento maker estão suscetíveis a associarem-se a concepções individualizantes e
suprimirem o que há de possibilidade mínima para a construção coletiva na sociedade
(FONSECA DE CAMPOS, 2018). Além disso, a informalidade dos mecanismos de trabalho, a
exclusividade do conhecimento técnico e das práticas enquadram-se em condições sociais,
culturais e econômicas muito específicas (NASCIMENTO; PÓLVORA, 2016), podendo
desdobrar um contexto limitado dos Fab Labs e makerspaces em países periféricos.
O uso das novas tecnologias computacionais tornou-se tópico de interesse global, constituído
segundo uma lógica em que investigações, experimentos e protótipos oriundos de países
desenvolvidos, são divulgados e convertem-se em referências para pesquisas realizadas em
outros países. Frente a esse contexto, muitas vezes centrado na divulgação técnica de
propostas oriundas desses países, há certa escassez de trabalhos mais aprofundados sobre o
assunto na América do Sul. Sendo assim, convém elucidar como as transformações
oportunizadas pela disponibilidade de maquinário e técnicas são capazes de aperfeiçoar e
contribuir para a criação de projetos, desenvolvimento de atividades e sistemas direcionados
à esfera social e seus contextos de realização e seus propósitos. O problema se coloca de duas
formas: a) compreender a situação local dos laboratórios que exploram as tecnologias; b)
fornecer subsídios a partir do contexto da América do Sul para um pensamento crítico em
relação à apropriação situada das técnicas e tecnologias.
O artigo apresenta uma sistematização que torna visível uma perspectiva acerca da aplicação
das tecnologias de fabricação digital em arquitetura, design e construção na América do Sul. A
análise realizada referencia-se nos conceitos de apropriação tecnológica (BONSIEPE, 1983),
adequação sociotécnica (DAGNINO, 2009) e inovação social (MANZINI, 2015). O primeiro, se
refere à compreensão das tecnologias existentes, seus potenciais e limitações, a real
necessidade de sua aquisição e futuras aplicações; o segundo, reflete sobre a conformidade de
82
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
85
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
86
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
Dagnino (2009) discute aspectos similares por meio do tema da adequação sociotécnica,
segundo a qual o dispositivo tecnológico é apropriado e adaptado aos interesses políticos de
grupos sociais relevantes, evitando “a ideia de que se possa simplesmente transferir
tecnologias pré-concebidas” (DAGNINO, 2009, p. 63). Em vez de copiar saberes e técnicas, a
ideia de “reaplicação” é colocada, quando o conhecimento e a tecnologia existentes são
ajustados às particularidades de cada contexto, em que a noção de tecnologia se estabelece
como resultado da ação de um ator social e decisão do coletivo. Além disso, a utilização dos
recursos deve ser direcionada com o objetivo de maximizar o bem-estar da sociedade e do meio
ambiente.
Por sua vez, Manzini (2015), sugere que a inovação social resulta de soluções desassociadas de
modelos instituídos. Nesse sentido, o significado inerente às ações partiria de múltiplas
expectativas e motivações dos atores envolvidos. Para que esse compartilhamento aconteça, é
importante adaptar o conhecimento técnico, os materiais a disposição e integrar os atores com
diferentes níveis de experiência em busca de novas soluções que extrapolem os modelos
econômicos tradicionais, operando com base na multiplicidade de motivações e expectativas
dos atores. Desse modo, “quanto mais pessoas forem expostas a essas tecnologias, maiores
serão suas oportunidades e capacidade de absorvê-las, e entenderão como elas podem ser
usadas ou adaptadas” (MANZINI, 2015, p. 16).
87
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
Fontes:
Identificada abaixo das
Furetsu Casa Nordeste Nudo # Casa Abierta
imagens
Fonte: TaMaCo Fonte: Carlos Alejandro Fonte: Tomás Vivanco, Fonte: David Del Valle
Nome Diego Gajardo
O pavilhão Furetsu (TaMaCo) foi criado pelo estúdio Formosa Design, em 2017, como
instalação para um evento itinerante na Argentina. É composto de um esqueleto estrutural em
madeira, com peças cortadas em fresadora CNC, encaixadas para formar um elemento de dupla
curvatura suportando peças de plástico translúcido, cortadas a laser, dobradas e encaixadas
em módulos customizados. O projeto da Casa Nordeste (LM+P) investiga estratégias digitais
para construir uma residência de baixo custo que contemple a eficiência de conforto e
desempenho térmico para a região, além do uso de materiais e produtos sustentáveis. Utiliza a
fabricação digital para o corte das peças da estrutura de compensado naval, junções estruturais
e princípios de montagem. A técnica Nudo # (FabHaus UC) é um sistema de construção baseado
em uma peça de junção que permite a montagem de módulos habitáveis mínimos com a
capacidade de serem expandidos. As peças de encaixe cortadas com fresadora CNC permitem
facilmente que a estrutura possa ser montada, desmontada e transportada com facilidade. A
Casa Abierta (Tu Taller Design) foi criada como um protótipo experimental para a Feira de
Design de Medellín, como um resultado mais robusto e customizável para o mercado. O projeto
é uma proposta sustentável composta de sistema modular de treliças laminares e chapas de
madeira cortadas com fresadora CNC para serem pré-montadas.
2) “Infraestruturas e suportes” revisita concepções de sistemas e suportes materiais
construtivos, facilitados em seu desenvolvimento e fabricação por ferramentas digitais. Os
projetos envolvem elementos para espaços urbanos ou para a construção, em suas diferentes
escalas e funções, seja como protótipos e testes funcionais ou para futuras aplicações em
projetos. Os artefatos resultantes empregam técnicas industriais que podem ser aplicados em
maior escala, com o intuito de se adaptarem às futuras demandas locais em projetos similares,
suprirem problemas específicos ou se consolidarem como componentes duradouros.
Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Fachada metálica dobrada Forma para calçada drenante Pavilhão Tornado
Fonte: Rodrigo Velasco Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Fonte: Gonçalo Castro Henriques
Campos
A fachada metálica dobrada (Frontis 3d) é um sistema customizado de painéis perfurados que
tem a função de proteção e se adapta aos condicionantes da edificação como iluminação,
ventilação e vista para o exterior. A fabricação utiliza capacidade ociosa da indústria local e que
associa técnicas de suportes metálicos já aplicadas em outros projetos construtivos. A forma
para calçada drenante (Fab Lab SP) é utilizada como molde feito de peças de compensado naval
cortadas com fresadora CNC. As peças são encaixadas para formar canaletas pré-fabricadas em
microconcreto de alto desempenho. Em conjunto, compõem uma galeria subterrânea de
canalização pluvial para aprimoramento da infraestrutura urbana. O Pavilhão Tornado (LAMO
88
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
3D) surgiu de uma atividade didática em que foi concebida uma intervenção temporária no
espaço público, gerando espaço de permanência e descanso. O projeto é composto de
superfícies regradas geradas digitalmente e construídas a partir de peças de madeira serradas,
com demarcações de encaixe efetuadas com cortadora a laser.
3) “Materialidades artificiais” engloba experimentos que convergem formas e o
comportamento dos materiais bioinspirados no âmbito da pesquisa básica, incorporando o
aporte simbólico e conceitual no decorrer do seu processo. Os objetos são desenvolvidos por
ressignificações do conceito de natureza e se utilizam de substâncias orgânicas; adequando o
material ao ambiente no qual estão vinculados. Os elementos resultantes potencializam a
criação de superfícies e recobrimentos adaptáveis às mais diversas estruturas e geometrias.
Figura 4. Imagens dos
artefatos “Materialidades
artificiais”
Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Superfícies bio-inspiradas Tecnologías Expresivas – bioplástico Bio-termoplastic
Fonte: David Andrés Torreblanca Fonte: Gabriela Gonzales Faria Fonte: Pablo Suing
Díaz
Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Jogo de montar ArchBricks ALADA Empatias mapeadas
Fonte: Frederico Braida Fonte: Rodrigo Martn Iglesias Fonte: Guto Requena
89
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
O jogo de montar ArchBricks (LEAUD) reúne componentes utilizados como um kit didático de
ferramentas em que é possível montar simulações em escala reduzida de conjuntos
habitacionais. A proposta parte de um projeto aberto em que as peças podem ser
materializadas e adaptadas por manufatura aditiva. O ALADA (+ID Lab) é um objeto criado em
colaboração com o Laboratório de Morfologia (FADU-UBA) e TaMaCo. A experimentação
investiga relações entre a forma, o material e comportamento estrutural, além de explorar
efeitos tridimensionais e simbólicos com o uso de elementos planos para um resultado
estrutural. Empatias mapeadas (Estúdio Guto Requena) é uma instalação que oferece um
espaço no formato de câmara para descanso e contemplação, informada por sensores que
controlam efeitos de som e luz. As grandes peças de madeira, cortadas por fresadora CNC e
encaixadas, abrigam um sistema interativo que envolve de maneira sensória os usuários.
5) “Artesanias híbridas” configura artefatos e instalações que auxiliam e otimizam a realização
de atividades manuais, aproximando sistemas analógicos de processos de fabricação digital. Os
projetos associam a revisão de técnicas artesanais desenvolvidas em cada região,
considerando-as herança cultural que é incorporada como tema do artefato. Os objetos
resultantes são compostos de materiais simples e procedimentos de montagem que são
potencializados por meio das tecnologias digitais.
Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Telar 1.0 de pedal Estructura-bastidor de Dispositivo têxtil Parabrick
Fonte: Walter Gonzales tejido Fonte: Leo Aravena, Fonte: Julio Diarte, FabLab
Arnao Fonte: Alicia Correa Aconcagua Fablab Universitario CIDI
O Telar 1.0 de pedal (Fab Lab UNI) é um mecanismo portátil de alta performance que facilita
processos de tecelagem para a composição de iconografias andinas. Composto por peças
planas de madeira compensada, pode ser adaptado às necessidades manuais de diferentes
tipos de pessoas e de trabalhos. A Estructura-bastidor de tejido (Nodo39 FabLab) é uma
estrutura de madeira criada digitalmente para apoiar telas e pontos com a finalidade de
constituir um tear de tecido. A instalação temporária foi criada para apresentar e conservar
técnicas têxteis antigas dos indígenas da região central da Argentina, em um evento da
indústria criativa de Mendoza. O Dispositivo têxtil (Aconcagua FabLab) é um artefato que
reproduz um pequeno tear, facilitando a criação de pequenas peças têxteis, levado ao público
a partir da proposta itinerante do laboratório. Composto de peças de madeira e acrílico
cortadas a laser, a fabricação do objeto tem o objetivo de renovar o interesse pelas técnicas
têxteis da região. O Parabrick (FabLab Universitario CIDI) é um dispositivo que fornece suporte
para linhas-guia que funcionam para orientação de diversas composições geométricas de
alvenaria. Fabricado digitalmente com peças de madeira fresadas e encaixadas, a estrutura
pode ser montada no canteiro de obra e assim facilitar o trabalho manual.
6) “Dispositivos recodificados” abrange produções materiais relacionadas à reflexão conceitual
acerca das tecnologias e suas aplicações práticas, criando novas dinâmicas de utilização. Os
artefatos traduzem a subversão ou modificação do aparelho capaz de informar ou fabricar
outros objetos. As máquinas de fabricação digital são designadas como base para reformulação
e utilizadas para facilitar o processo de materialização por meio de técnicas de programação e
montagem analógica ou eletrônica, com aplicações direcionadas a elementos plásticos e na
geração de protótipos customizados.
90
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
O Digital Analogue Machines (FabHaus) é uma série de maquinações criadas por meio de
atividades de ensino que reutilizam partes de dispositivos eletrônicos descartados. O intuito é
criar objetos conceituais que associam manufatura personalizada, processos que se encontram
entre o maquínico e o automatizado. O Less N°1 Catenary Pottery Printer (gt2P) é uma
máquina analógica que funciona por meio de uma estrutura fixa com elementos ajustáveis.
Utilizando parâmetros controlados manualmente e o comportamento dos materiais, gera
objetos cerâmicos não-estandardizados que ressignificam técnicas artesanais no contexto
digital.
Projeto Aplicação Técnica Tecnologia Conceitos associados Tabela 1. Síntese da
1 Furetsu Estande itinerante Encaixe, dobra Fresadora, Corte Adequação sociotécnica identificação dos projetos
Laser
Casa Nordeste Construção resiliente Encaixe Fresadora Inovação social
Nudo # Construção baixo custo Encaixe Fresadora Inovação social
Casa Abierta Habitação modulada Encaixe, pregado Fresadora Adequação sociotécnica Fontes:
2 Fachada metálica Estrutura de proteção Dobra, perfuração Fresadora, Corte Apropriação tecnológica Autores
Laser
Forma para Molde para saneamento Encaixe, colagem Fresadora Inovação social
calçada
Pavilhão Tornado Estrutura em espaço Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
público
3 Superfícies bio- Elementos morfológicos Desbaste, adição Fresadora, Adequação sociotécnica
inspiradas Impressão 3d
Tecnol. Expres. Material de proteção Moldagem Formativa Adequação sociotécnica
bioplástico
Bio-termoplastic Componente de proteção Moldagem Formativa Inovação social
4 Jogo ArchBricks Objeto lúdico/didático Adição, encaixe Impressão 3d Adequação sociotécnica
ALADA Instalação Corte em padrões Corte Laser Apropriação tecnológica
técnico/simbólica
Empatias Instalação sensorial Encaixe Fresadora Apropriação tecnológica
mapeadas
5 Telar 1.0 de pedal Aparelho para tecelagem Encaixe Corte Laser Apropriação tecnológica
Estructura- Instalação para manuseio Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
bastidor técnico têxtil
Dispositivo têxtil Aparelho portátil para Encaixe Corte Laser Apropriação tecnológica
tecelagem
Parabrick Aparato para canteiro Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
6 Digital Analogue Máquina geradora de Montagem Corte Laser, Apropriação tecnológica
Machines elemento artístico Impressão 3d
Less N°1 Catenary Mecanismo artesanal de Montagem Corte Laser, Adequação sociotécnica
controle manual Impressão 3d
Os projetos apresentados caracterizam uma amostra oportuna para demarcar o que está
surgindo nos distintos contextos de nossa região, em termos de técnicas de produção, práticas
situadas, aplicações das tecnologias e adequações sociais. A produção dos laboratórios, de
91
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
maneira geral, ainda está mais direcionada à aplicação das tecnologias para a fabricação de
protótipos e modelos arquitetônicos, peças de mobiliário e objetos de design. A escala dos
projetos limita-se a objetos pequenos e medianos, com poucas articulações na escala da
construção. As distintas dinâmicas de funcionamento dos laboratórios influenciam nos modos
de concepção e de fazer dos artefatos, em que alguns encontram-se em espaços privados e
direcionam a sua produção ao mercado e às exposições de design, outros criam estratégias
colaborativas a partir de demandas de parcerias externas. Os tipos de espaços disponibilizados
pelos laboratórios, são abertos à participação, com propostas de residências, oficinas e
instalações, além dos institucionais, regulados pelo ensino, pesquisa e extensão, com o
potencial de integração conjunta a diversos setores da sociedade. A configuração de boa parte
dos laboratórios está baseada em organizações nucleadas, amparadas na proposta da rede
global Fab Lab, dos quais alguns estão expandindo a sua atuação por meio de unidades móveis.
Os temas selecionados para a escolha dos projetos apresentados nesse artigo contribuem para
delimitar um recorte dos resultados materiais encontrados durante a pesquisa. A articulação
híbrida entre o analógico e o digital destaca-se em muitos projetos, devido à restrição dos
materiais possíveis de serem utilizados no maquinário disponível e pelo domínio técnico
necessário para fazê-lo. Ao mesmo tempo, torna-se um potencial para a criação de resultados
formais e combinações materiais não-usuais. As técnicas mais utilizadas são o seccionamento
para encaixe, seguido do uso de técnicas aditivas, além de técnicas de dobradura e montagem.
Em termos formais, as geometrias retilíneas e planas são mais recorrentes, pois o acesso ao
tipo de maquinário que as produz facilita o processo de fabricação e montagem em maior
escala, Os materiais utilizados são rígidos mas com resistência limitada, como madeira, plástico
e peças flexíveis, em que poucos artefatos incorporam elementos locais.
A escolha do maquinário vem seguindo critérios de custo, facilidade de manipulação e
aprendizado, não baseada em necessidades urgentes de aplicação. Impressoras 3D e
cortadoras a laser são preferidas a equipamentos robustos e industriais, pautados por
tecnologias disponibilizadas por empresas internacionais, dos EUA, Europa e China. É possível
encontrar máquinas sendo criadas em nossa região, com funções e aplicações específicas, mas
poucas e em âmbito experimental. O uso de robôs na automação de processos de fabricação
ainda é uma realidade distanciada, que está em estágio de assimilação técnica em poucas
instituições. À medida que se amplia o controle tecnológico em nosso contexto de restrições
aquisitivas, o domínio técnico passa a ser exigido do profissional em um nível de
superespecialização, o que dificulta um salto no nível de fabricação.
Como alternativa, incorporam-se conceitos, saberes convencionais e práticas analógicas para
um maior grau de liberdade propositiva e de inserção do potencial das interfaces digitais e das
máquinas para se alcançar estratégias híbridas. Os projetos apresentados indicam diferentes
níveis de impacto em termos de inovação social, com apenas alguns deles associando de forma
mais explícita essa estratégia na concepção de projeto. Boa parte deles tangencia fatores de
adequação sociotécnica ao adaptarem técnicas processuais, de controle da fabricação e de
materiais para a produção. A apropriação tecnológica se explicita nos trabalhos ao utilizarem
o maquinário como suporte parcial para a execução dos artefatos. Apesar dessas noções não
estarem explicitamente difundidas, no contexto geral, percebe-se que o interesse de
envolvimento com os temas se mostra crescente.
Baseado na análise dos projetos escolhidos, é possível designar especificidades e limitações do
uso da fabricação digital em nosso contexto. A adaptação de referências técnicas e de projeto
de um panorama global ocorre, geralmente, com baixo grau de complexidade propositiva. O
enfrentamento da escassez e da limitação dos meios e materiais induz a criação de estratégias
particulares para servir necessidades mais urgentes e respostas a requisições eventuais. A
combinação de técnicas e materiais por meio de investigações formalizadas realizam-se, quase
que exclusivamente em instituições de ensino. O potencial de revisão das práticas artesanais
92
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
CONCLUSÃO
Agradecimentos
Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), processo nº 2017/04946-7 e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), processo nº 304071/2019-6.
93
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul
Referências Bibliográficas
ABRAMS, Janet; HALL, Peter (Eds.). Else/where: mapping. New cartographies of networks and
territories. Minneapolis: University of Minnesota, 2006.
BONSIEPE, Gui. A tecnologia da tecnologia. São Paulo: Edgard Blücher, 1983.
CANEPARO, Luca. Digital Fabrication in Architecture, Engineering and Construction. Dordrecht:
Springer, 2014.
CARPO, Mario. The Second Digital Turn: Design Beyond Intelligence. Cambridge: MIT Press, 2017.
CELANI, Gabriela. Digital Fabrication Laboratories: Pedagogy and Impacts on Architectural Education.
Nexus Network Journal, v. 14, 2012, 469-482. DOI: <http://dx.doi.org/10.1007/s00004-012-0120-x>
DAGNINO, Renato (Org.). Tecnologia social: ferramenta para construir outra sociedade. Campinas:
IG/UNICAMP, 2009.
FONSECA DE CAMPOS, Paulo Eduardo; DIAS, Henrique José dos Santos. A insustentável neutralidade
da tecnologia: o dilema do Movimento Maker e dos Fab Labs. Liinc em Revista, v.14, n.1, maio 2018,
p. 33-46. DOI: <http://dx.doi.org/10.18617/liinc.v14i1.4152>.
GERSHENFELD, Neil. Fab: The Coming Revolution on Your Desktop - from Personal Computers to
Personal Fabrication. Cambridge: Basic Books, 2005.
GERSHENFELD, Neil. How to make almost anything: the digital fabrication revolution. Foreign Affairs,
V. 91, n. 43, nov./dez. 2012, p. 43-57.
KOLAREVIC, Branko. Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing. New York: Taylor &
Francis, 2005.
LLACH, Daniel Cardoso. Software Comes to Matter: Toward a Material History of Computational
Design. Design Issues, V. 31, n.3, July 2015, p. 41-54. DOI:
<http://dx.doi.org/10.1162/DESI_a_00337>.
LOMBARDERO, Nuria. Á., DE CANALES, Francisco. G. Política y Fabricación Digital: una discusión en
curso. Sevilla: Vibok Works, 2016.
LUNE, Howard; BERG, Bruce L. Qualitative Research Methods for the Social Sciences. Essex: Pearson,
2017.
MANZINI, Ezio. Design when everybody designs: an introduction to design for social innovation.
Cambridge: MIT Press, 2015.
MENGES, Achim; AHLQUIST, Sean (Ed.). Computational Design Thinking, (AD Reader). Chichester:
Wiley, 2011.
MIGNOLO, Walter D.; WALSH, Catherine E. On decoloniality: concepts, analytics, praxis. Durham:
Duke University Press, 2018.
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
NABONI, Roberto; PAOLETTI, Ingrid. Advanced Customization in architectural design and
construction. Dordrecht: Springer, 2015.
NASCIMENTO, Susana; PÓLVORA, Alexandre. Maker Cultures and the Prospects for Technological
Action. Science and Engineering Ethics, V. 24, n. 3, 2018, p. 927–946.
94
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling
PICON, Antoine. Digital culture in architecture: an introduction for the design profesions. Basel:
Birkhäuser, 2010.
SASS, Larry; OXMAN, Rivka. Materializing design: the implications of rapid prototyping in digital
design. Design Studies, n. 27, 2006, p. 325-355. DOI: 10.1016/j.destud.2005.11.009
SCHEEREN, Rodrigo; HERRERA, Pablo C.; SPERLING, David (eds). Homo Faber 2.0: politics of digital in
Latin America. São Carlos: IAU/USP, 2018.
SCHEEREN, Rodrigo; SPERLING, David M. Technological appropriation and socio-technical adequacy
in South America: applications of digital fabrication in architecture and design. Proceedings of the
21st Congress of the Iberoamerican Society of Digital Graphics, 2018. DOI: 10.5151/sigradi2018-
1802.
SCHODEK, Daniel; BECHTHOLD, Martin; GRIGGS, James Kimo; KAO, Kenneth; STEINBERG, Marco.
Digital Design and Manufacturing: CAD/CAM Applications in Architecture and Design. London: John
Wiley & Sons, 2005.
SPERLING, David M.; HERRERA, Pablo (eds). Homo Faber: Digital Fabrication in Latin America. São
Carlos: Instituto de Arquitetura e Urbanismo USP, 2015.
SPERLING, David M.; HERRERA, Pablo; CELANI, Gabriela, SCHEEREN, Rodrigo. Fabricação digital na
América do Sul: um mapeamento de linhas de ação a partir da arquitetura e urbanismo. Proceedings
of the 19th Congress of the Iberoamerican Society of Digital Graphics. São Paulo: Blucher, 2015, p.
119-125. DOI: 10.5151/despro-sigradi2015-30212
Rodrigo Scheeren
SPERLING, David M.; HERRERA, Pablo; SCHEEREN, Rodrigo. Migratory Movements of Homo Faber: rodrigoscheeren@gmail.com
Mapping Fab Labs in Latin America. In.: Computer-Aided Architectural Design Futures. The Next City
- New Technologies and the Future of the Built Environment: 16th International Conference, CAAD David M. Sperling
Futures 2015, São Paulo - Selected Papers. Heidelberg: Springer Verlag, 2015, p. 405-421. DOI: sperling@sc.usp.br
10.1007/978-3-662-47386-3_22
WANG, David; GROAT, Linda. Architectural research methods (second edition). New Jersey: John
Wiley and Sons, 2015.
95
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166316
RESUMO:
A condição digital levanta novas oportunidades à participação cidadã nos processos de tomada de decisão e
oferece novos meios de interação que potenciam a organização e ação política coletiva. No momento em que
o desenho de políticas públicas para as cidades é crucial, torna-se primordial a inclusão e criação de novas 1Iscte
- Instituto
formas de distribuição de poder entre pessoas e organizações envolvidas nos processos tecnopolíticos. O Universitário de Lisboa
presente artigo analisa um conjunto de dispositivos tecnopolíticos criados via bottom-up, no âmbito do
programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária (BIP/ZIP) do Município de Lisboa. O método de análise
assenta-se num conjunto de critérios de leitura dos atores envolvidos, das redes formadas e dos meios
utilizados. O estudo permite uma reflexão crítica sobre o papel da dimensão digital na articulação e expansão
da participação em territórios prioritários, entre entidades parceiras e comunidades. Os resultados sublinham
a pertinência do desenho de um observatório capaz de monitorizar o impacto do programa BIP/ZIP na cidade
de Lisboa.
ABSTRACT:
The digital condition raises new opportunities for citizen participation in decision-making processes and offers Fonte de Financiamento:
new means of interaction that enhance collective organization and political action. At a time when the design da Bolsa de Mérito de 3º
of public policies for cities is crucial, the inclusion and creation of new forms of power distribution among people Ciclo da Escola de
and organizations involved in technopolitical processes becomes paramount. This article analyses a set of Arquitetura e Tecnologias do
technopolitical devices created via bottom-up, within the scope of the Priority Intervention Neighbourhoods ISCTE- Instituto Universitário
and Zones (BIP/ZIP), a Lisbon Municipality’s program. The analysis method is based on a set of criteria for de Lisboa e do projeto FCT
reading the actors involved, their networks and means. The study allows a critical reflection on the role of the UIDB/04466/2020.
digital dimension in the articulation and expansion of participation in priority territories, between partner
entities and communities. The results underline the pertinence of the design of an observatory capable of Conflito de Interesse:
monitoring the impact of the BIP/ZIP program in the city of Lisbon. Declara não haver.
KEYWORDS: Technopolitics; communities of practice; digital culture; Lisbon. Submetido em: 03/02/2020
Aceito em: 08/07/2020
FARIAS, A. C., PAIO, A. Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório
BIP/ZIP. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166316
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
INTRODUÇÃO
A cultura digital, ao afirmar-se como paradigma no início de século XXI (STALDER, 2018),
reflete importantes alterações nos ecossistemas de processos e métodos colaborativos nas
disciplinas do design e nas relações destas com a participação cívica. O movimento de dados
abertos governamentais e a difusão de plataformas de participação, enquanto respostas top-
down de governos e instituições às exigências cidadãs por transparência (accountability) e
inclusão, trazem consigo desafios e oportunidades para a colaboração entre cidadãos,
organizações públicas, privadas e governos (MAINKA et al., 2015). A Web 2.0 possibilita o
ativismo digital e a produção bottom-up de ferramentas úteis para a comunicação entre pares
e articulação política de indivíduos e grupos (FOTH, et al., 2015).
O uso político da tecnologia, nomeadamente das novas tecnologias digitais de informação e
comunicação, cunhado como tecnopolítica (KELLNER, 2001), prospecta a democratização do
conhecimento através da possibilidade de cada cidadão se tornar criador, editor, distribuidor
e ativista (FOTH, et al., 2015).
Os movimentos rebeldes conhecidos como a Primavera Árabe, o 15M na Espanha, Occupy Wall
Street nos Estados Unidos e alguns de seus ecos, impulsionaram os estudos sobre
tecnopolíticas na última década, devido ao uso que esses grupos fizeram da internet e das redes
sociais para se organizarem e difundirem reivindicações (MEDINA, 2015). Em 2020, durante o
período de isolamento social, imposto pela pandemia de COVID-19, em que o ciberespaço foi
experimentado como único espaço público possível, as tecnopolíticas foram amplamente
utilizadas para a compreensão e ação sobre o problema vivido, e para reconfiguração de
diversas tarefas do cotidiano (HAN, 2020; CASTELLS, 2020).
Diversos estudos referem-se à tecnopolítica de forma mais abrangente, para determinar a
relação intrínseca entre desenvolvimento tecnológico e política, partindo do pressuposto de
que não existe neutralidade nesse desenvolvimento (TRERÉ & BARRANQUERO, 2018).
Segundo Kurban, Peña-Lopez e Haberer (2016), a produção top-down de tecnopolíticas, focada
na eficiência e eficácia das organizações, reforça sistemas de controle, enquanto a produção
bottom-up subverte o uso de ferramentas legais e políticas, cujas consequências ainda carecem
de mais estudos.
A institucionalização da participação, cujo processo acentuou-se a partir da década de 1980
(PATEMAN, 2012), levou ao desenvolvimento de diversas metodologias, ferramentas e, nas
últimas décadas, de plataformas com forte dimensão digital que pretendem oferecer um espaço
de partilha de informações, de colaboração e deliberação. São exemplos, os observatórios, as
plataformas de dados abertos, as plataformas de deliberação, os laboratórios cívicos para a
experimentação de projetos e, ainda, uma grande diversidade de aplicações para
levantamento, processamento e visualização de informações sobre territórios e redes (FARIAS
& PAIO, 2019). Porém, a capacidade de funcionarem de fato como arenas para participação,
como instrumento para a realização do direito à cidade, depende da interação que conseguem
proporcionar entre cidadania, governo e atores não humanos, da distribuição de poder
(ARNSTEIN, 1969) que essa interação reflete, além da superação da desigualdade no acesso às
infraestruturas e literacia digitais.
Perante estes desafios, o município de Lisboa tem sido chamado a supervisionar a sua política
pública de regeneração urbana denominada de Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária
(BIP/ZIP), através da criação de um observatório. O Programa de Parcerias Locais BIP/ZIP
(PPL), criado durante a discussão sobre a política de habitação, em 2011, financia pequenos
projetos promovidos por organizações de base, em 67 territórios carenciados do município,
como estratégia de desenvolvimento local. Compreendendo a habitação enquanto habitat, ou
seja, composta pelas dimensões socio econômicas, urbanísticas e ambientais, o PPL permite
100
98
Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio
um leque muito amplo de atividades financiáveis que vão da reabilitação de espaços públicos
à formação e geração de empregos (CML, 2012). O Observatório BIP/ZIP (OBZ) permitiria a
monitorização dos territórios prioritários e o acompanhamento dos processos participativos
no âmbito do PPL, definindo estratégias baseadas em dados e indicadores de previsão.
Neste contexto, o presente artigo pretende sublinhar a importância da cultura digital na
expansão dos dispositivos tecnopolíticos na participação cidadã e contribuir para o desenho
de um observatório, partindo do levantamento e análise de um conjunto de experiências
BIP/ZIP com tecnopolíticas produzidas por diversos atores locais que fazem parte desse
ecossistema. Ao longo dos anos, vários projetos BIP/ZIP desenvolveram dispositivos
tecnopolíticos para comunicar e organizar suas ações. O próprio município de Lisboa, dispõe
de diversas plataformas digitais para facilitar a participação cidadã, ainda que dispersos em
diferentes canais e com resultados ainda pouco estudados (ALLEGRETTI et al., 2016).
Neste estudo, analisamos os dispositivos tecnopolíticos desenvolvidos via bottom-up pela
iniciativa local, no âmbito do BIP/ZIP que, de diferentes formas, buscaram articular suas ações
nos territórios, através da identificação dos atores, redes e meios utilizados. Complementam
esta reflexão, outros estudos que analisam o desenvolvimento de dispositivos tecnopolíticos
top-down criados pelo município. Deste modo, é possível compreender a cultura de uso de
tecnopolíticas no objeto em estudo, identificando convergências e caminhos a percorrer para
o desenho do observatório. Discute-se, também, os primeiros passos no papel da hibridização
das redes nos processos participativos e colaborativos de regeneração urbana em Lisboa.
REFERENCIAL TEÓRICO
Segundo Felix Stalder (2018), a cultura digital reflete-se na participação de cada vez mais
pessoas nos processos culturais, disputando dimensões de existência através de atividades
sociais cada vez mais intermediadas por dispositivos tecnológicos. O autor identifica duas
tendências políticas que emergiram das relações sociais forjadas sob a condição digital, na crise
da democracia liberal: (1) pós-democracia; e (2) commons. A primeira refere-se às práticas que,
apesar de expandirem a capacidade de comunicação social, limitam a possibilidade de os
participantes tomarem decisões. São exemplos os dispositivos e processos forjados sob o
conceito de smart city que redesenham sistemas operacionais das cidades numa abordagem
tecnocrática, pouco transparente e proprietária, geralmente pautada por grandes empresas
como a IBM, Cisco, Siemens e outras (TOWNSEND, 2014).
Sob a perspectiva do commons está a criação de instituições que combinam a participação com
a tomada de decisões, integrando as dimensões econômica, social e ética das relações
(STALDER, 2018). A difusão das tecnologias digitais, especialmente de informação e
comunicação (TIC), facilita a mobilização de cidadãos em torno de práticas de construção de
comuns urbanos, experimentando a produção e gestão de recursos tangíveis e intangíveis
(STAVRIDES, 2016; BOLLIER & HALFRICH, 2019).
Urbanismo tático, práticas de planejamento urbano colaborativo e a exploração de dados
abertos para a produção de dispositivos tecnológicos com fins cívicos, são alguns dos exemplos
do que Martijn de Waal e Michiel de Lange (2019) definem como hacking cívico, práticas que
ambicionam a criação e o domínio do bem comum. Em oposição à smart city, os autores
sugerem a hackable city, ou seja, a exploração das tecnologias digitais de forma estratégica,
alinhando as iniciativas cívicas a processos democráticos de cogovernança.
Assim, a emergência de novos atores políticos, da ação híbrida (online e offline) mediada por
atores humanos e não humanos, posicionam as tecnopolíticas como ‘espaço de intervenção’ e
‘paisagem de possibilidades’ (TRERÉ & BARRANQUERO, 2018). Nesta paisagem, dão-se
disputas políticas em que, também, emergem forças conservadoras e intensificam a produção
99
101
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
Kurban et al. (2016) propõem um esquema conceitual que é ainda mais claro. Analisando as
tecnopolíticas quanto ao seu propósito, os autores identificam quatro níveis políticos da ação:
(1) comunicativo, quando a tecnologia é usada para difundir informação ou para influenciar
opiniões, muitas vezes através do uso dos media e redes sociais; (2) legal, quando a tecnologia
é usada de forma a ‘digitalizar’ processos existentes do exercício do direito, como na realização
de petições online e criação de plataformas para referendos; (3) organizacional, quando a
tecnologia é usada para a comunicação e organização internas, por exemplo, através de
campanhas de crowdsourcing ou crowdfunding; (4) institucional, quando a tecnologia é
associada a políticas participativas dirigidas no governo e permitem o compartilhamento de
tomadas de decisão, por exemplo, nos orçamentos participativos ou em práticas de codesenho
de políticas públicas.
Além do propósito, o esquema conceitual de Kurban et al. (2016) inclui outras cinco
dimensões: (1) o contexto, relacionado com o nível de liberdade civil em que se dá a produção
tecnopolítica, se no exercício da liberdade, no processo de empoderamento ou na governança;
(2) a escala, referente à estrutura da geografia política em que se dá a ação, podendo ser
comunal (local), regional, estatal ou internacional; (3) a direção, referente à natureza
multiescalar das tecnopolíticas que, assentes na comunidade, aproxima-a às arenas globais
afetando processos e protocolos intermediários; (4) os atores, em sua multiplicidade e
diferentes níveis de participação, podendo ser institucionais, individuais ou coletivos; e (5) o
espaço, multilayer, caracterizado pela sincronização de singularidades antes dispersas, que
encontram no ciberespaço a capacidade de organização e feedback para redefinir o espaço
físico em ‘nós’ de conhecimento. Na figura 2 é possível observar o esquema com as seis
dimensões que servem de base ao presente estudo.
100
102
Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio
Quanto aos novos atores, Stalder (2018) destaca as ‘comunidades de prática’ como os espaços
privilegiados, na cultura digital, para o desenvolvimento de recursos materiais e
organizacionais que moldam a identidade e a ação coletiva dos seus integrantes. Hackers,
makers, ativistas, têm em comum a ação e produção de conhecimento e significados sobre um
campo de prática específico, tendo a comunicação como eixo fundamental de existência.
Os novos meios – internet e Web 2.0, smartphones, recursos de data mining, inteligência
artificial etc. – oferecem capacidade de armazenar maiores quantidades de informação,
organizar processos deliberativos, suportar colaboração e inovação (DE WAAL & DE LANGE,
2019). Desta forma, as tecnopolíticas habilitam, igualmente, redes sociotécnicas construtoras
de contranarrativas e epistemologicamente enriquecedoras (GUTIERREZI & MILANII, 2013).
Mapear as redes tecnopolíticas, conhecer os dispositivos gerados e seu potencial, compreender
a forma como criam identidades e redes de colaboração, quais os interesses que movem as
ações empreendidas, são tarefas estratégicas não só para garantir a inclusão desses novos
atores nos processos do design como, também, para aproveitar o conhecimento produzido
nessas práticas, em processos de inovação aberta.
MATERIAIS E MÉTODOS
A partir das reflexões traçadas acima, tornou-se premente analisar a ação tecnopolítica no
contexto do BIP/ZIP. A análise consiste no levantamento de projetos tecnopolíticos, a partir do
mapa conceitual de Medina (2015), e a classificação de atores, redes e meios, tendo em conta
dois aspetos: (1) as tipologias definidas no PPL, descritas a seguir; e (2) as categorias relativas
aos propósitos assinaladas por Kurban et al. (2016) (Figura 3).
Como fonte de recolha de dados foi utilizada a plataforma do PPL da Câmara Municipal de
Lisboa (CML)i que disponibiliza as fichas de candidaturas de projetos apresentadas em todos
os ciclos de financiamento do programa (2011 a 2019), de onde se extraiu somente os projetos
aprovados. A informação encontrada responde às regras do PPL, que determina que os
projetos sejam realizados em parcerias (mínimo de uma entidade promotora e uma parceira),
com a indicação dos territórios de ação, temáticas e destinatários preferenciais, ser baseados
em diagnósticos, definir objetivos e um plano de sustentabilidade das atividades.
A identificação dos projetos tecnopolíticos fez-se em duas etapas: (1) pesquisa nos textos das
candidaturas pelas palavras-chave “plataforma”, “digital” e “online”, resultando em uma
amostra de projetos que planejaram o uso de ferramentas digitais; e (2) leitura dos objetivos
dos projetos pré-selecionados em busca das propostas que atendessem ao mapa conceitual das
tecnopolíticas, proposto por Medina (2015) e explicado na Fig. 01, isto é, a criação de redes
orientadas para ações coletivas concretas no espaço urbano, articuladas com os propósitos de
suas coletividades.
101
103
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
Para a classificação dos atores, utilizaram-se as categorias definidas no PPL: (1) classificam as
entidades quanto à responsabilidade legal e financeira que assumem sobre os projetos,
podendo ser promotoras ou parceiras; (2) classificam as entidades segundo 18 tipos de
instituiçãoii; (3) classificam os destinatários preferenciais dos projetos em sete tipos: crianças,
jovens, idosos, famílias, comunidades, adultos e outros. Para a análise das redes formadas em
torno dos projetos, utilizou-se a plataforma kumu.io iii , para a visualização das redes de
colaboração de cada projeto e as intersecções entre elas, destacando as entidades promotoras
das parceiras, identificando os tipos de instituições de cada uma, e os destinatários
preferenciais.
Para análise dos meios, procurou-se identificar: (1) os territórios de ação; (2) as tecnologias
aplicadas, destacando os tipos de ferramentas e softwares utilizados; (3) os propósitos
políticos, segundo as categorias do esquema conceitual de Kurban et al. (2016): comunicação,
legalização, organização e institucionalização; e (4) as temáticas dos projetos, que segundo o
PPL podem ser: Melhorar a Vida no Bairro, Promover Competências e Empreendedorismo,
Reabilitar e Requalificar os Espaços, Promover a Inclusão e a Prevenção e Promover a
Dinamização Comunitária e a Cidadania.
Em suma, a leitura analítica (Figura 3) pretende: (1) revelar a utilização de tecnopolíticas no
âmbito do BIP/ZIP; (2) identificar experiências de articulação em rede auto organizadas pelas
comunidades de prática, isto é, as redes de parcerias e destinatários formadas em torno dos
projetos; (3) medir a incidência das tecnopolíticas nos territórios; e (4) aferir as características
das ferramentas produzidas, no sentido de tirar orientações para o desenho do OBZ.
RESULTADOS
O estudo partiu das informações fornecidas nas fichas de candidaturas dos 354 projetos
BIP/ZIP aprovados entre as edições 2011 e 2019 do PPL. Alguns projetos ofereceram maior
dificuldade para a obtenção de informação, uns porque os dispositivos digitais criados já não
estavam mais em utilização, outros porque ainda não haviam sido finalizados.
Do primeiro filtro com as palavras-chave extraiu-se 70 projetos que planejaram, em suas
candidaturas, o uso de ferramentas digitais. Da leitura dos objetivos desses projetos, segundo
o mapa conceitual de Medina (2015), extraiu-se uma amostra de estudo com 19 projetos
tecnopolíticos, relacionados na Tabela 1 com as seguintes informações: ano da edição de
financiamento; nome; as entidades promotoras dos projetos; e os endereços eletrônicos das
plataformas, algumas já descontinuadas.
102
104
Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio
Os projetos BIP/ZIP têm ciclos definidos de ação, no entanto, algumas tecnopolíticas tiveram
desdobramentos em mais de um projeto ou ciclo de financiamento, articulados pelos mesmos
promotores, como é o caso de: DNA Lisboa II e Rede Rés-do-Chão, proposto pelas entidades Rés
do Chão e Praga Associação Cultural para a elaboração faseada de um mapeamento de imóveis
devolutos e redes de serviços; as várias redes profissionais articuladas pelo estúdio de
arquitetura Artéria, a partir de levantamentos, mapeamentos, e sistematização de bancos de
dados; e os projetos realizados no bairro Casal Ventoso pela entidade Projecto Alkantara, com
o objetivo de fortalecer o sentido de comunidade do bairro e sua imagem positiva.
Ano Nome do Projeto Entidades Promotoras Endereço Eletrônico Tabela 1. Amostra de estudo.
2011 Agulhanumpalheiro - Artéria http://www.agulhanumpalheiro.pt/
Portal de Casas
Fonte dos dados: Plataforma
2013 Rede de Carpintarias de Artéria http://redecarpintarias.org/
Lisboa do PPL, http://bipzip.cm-
http://resdochao.org/projectos/plataforma- lisboa.pt/.
2014 DNA Lisboa II Rés Do Chão | Praga
res-do-chao/
Associação Cultural
2014 Operação Skyline Artéria http://lisbonskyline.pt/
http://resdochao.org/projectos/plataforma-
2015 Rede Rés do Chão Rés Do Chão res-do-chao/
Clube Intercultural
2015 Projecto D´Ajuda Europeu | Localsapproach | https://www.yrpri.org/group/684
Associação De Apoio E
Segurança Psico-Social
2016 LXConnect Centro Social Da Musgueira https://www.lxconnect.org/
103
105
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
REDES DE ATORES
O Projecto D’Ajuda, promovido pela Locals Approach, é o que tem a maior rede de entidades
(quase metade são Grupos Informais) e, junto com os projetos C3 e os dois realizados no Casal
Ventoso, formam o maior cluster de colaboração. Somente 6 dos 19 projetos estudados (4
propostos no ano corrente) constituíram redes de colaboração sem nenhuma intersecção com
as demais.
DISPOSITIVOS TECNOPOLÍTICOS
105
107
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
próprias. Como parte da estratégia para ampliar e fortalecer as redes, também são promovidas
rodas de conversa e ações de formação.
Outro projeto realizado pelo atelier Artéria, a Operação Skyline buscou reativar as coberturas
dos edifícios da cidade, apresentando para tal uma solução arquitetônica, jurídica e ambiental.
O projeto, inserido na representação portuguesa da Biennale di Venezia 2014, oferecia um sítio
eletrônico para inserções voluntárias de ‘condomínios’ e ‘investidores’, disponibilizando seus
imóveis ou demonstrando interesse em investir. A plataforma oferecia um arranjo para a
viabilização das coberturas, antecipava questões frequentes e disponibilizava manuais para os
‘condomínios’ e os ‘investidores’.
Os projetos Memórias do Casal Ventoso e Casal Ventoso – Fazemos Acontecer atuam na
comunidade oriunda do realojamento do bairro Casal Ventoso, buscando a transformação
positiva da imagem da comunidade, e a aquisição de novos modelos de cidadania. O primeiro
criou o Núcleo Interpretativo do Casal Ventoso, plataforma digital que disponibiliza vídeos e
fotos com o levantamento das memórias e histórias de vida dos moradores. O segundo está a
criar um Jornal Digital para denunciar as diversas realidades do bairro.
Os outros três projetos do ciclo de 2019, similarmente, tem propósitos comunicativos. A
Associação para o Planeamento da Família pretende implantar em várias instituições o modelo
Escolas Amigas da Igualdade (EAI), em projeto homônimo, discutindo de forma participada a
implementação de políticas de gênero nas escolas. Propõe a utilização de plataforma online
para disseminação do guião EAI além de outros produtos e jogos criados em projetos BIP/ZIP
anteriores. O projeto Germinar um Banco de Sementes propõe a formação de um banco de
sementes que terá catálogo disponibilizado online e acessível a qualquer cidadão, com o
objetivo de promover o consumo responsável e formas de circularidade da economia. O projeto
Redes Sociais Saudáveis – Games 4 All vai promover a conscientização sobre o uso adequado e
saudável das redes sociais utilizando, dentre outras coisas, a produção de material multimídia
e jogos.
Outros quatro projetos tiveram como principal propósito político a organização. LXConnect é
uma aplicação para smartphones (disponível para IOS e Android, também acessível por
desktops) criada pelo Centro Social da Musgueira, que consiste numa rede comunitária para
oferta e pedidos de bens e serviços, cuja navegação dá-se por mapa ou catálogo.
O projeto C3-Centro Comunitário da Curraleira utilizou a plataforma Novo Banco Crowdfunding
para financiamento das novas instalações do centro comunitário.
O projeto Fórum Urbano desenvolveu uma plataforma de partilha de dados sobre os projetos
BIP/ZIP. Tem navegação por mapa e por catálogo com as fichas de cada projeto, com filtros por
localização, entidade, ano, tema, destinatários e modos de fazer. Utiliza dados dos projetos
realizados entre 2011 e 2016 em todos os territórios, cuja fonte é a plataforma do PPL. O
desenvolvimento da plataforma envolveu, igualmente, a realização de eventos e fóruns de
partilha em vários territórios e discutiu a necessidade de criação de ferramentas que
auxiliassem a colaboração entre os projetos. Na ocasião da pandemia de COVID-19, em 2020, a
plataforma ganhou nova camada de mapeamento, com as iniciativas de respostas das
entidades BIP/ZIP à situação pandémica.
O projeto Construir Comunidade propõe a criação de um Banco de Tempo gerido através de
uma plataforma online. No entanto, ainda em construção.
Os últimos dois projetos da amostra desenvolveram tecnopolíticas com o propósito de
digitalizar processos legais, especificamente canais de participação. O Projecto D’Ajuda,
continuação de um outro projeto BIP/ZIP realizado em 2013, o 2 de Maio Todos os Dias, lançou
o Observatório D’Ajuda, consistindo na elaboração de um diagnóstico participado da região,
para a articulação de micro intervenções que viessem ao encontro das observações e ideias
107
109
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
O estudo realizado permite aferir que os dispositivos tecnopolíticos, nos projetos BIP/ZIP, são
ferramentas de apoio à ação das entidades nos territórios e procuram dar respostas a
necessidades práticas como o acesso a um espaço físico de trabalho ou o mapeamento dos
atores, bem como identificação de recursos das redes laborais em que estão envolvidos.
Nos projetos analisados, a dimensão digital revela-se importante no reforço e expansão de uma
articulação que já é feita nos territórios pelas comunidades de prática. O uso de tecnopolíticas
no BIPZIP permite organizar campos de ação, campanhas de comunicação, levantamento de
informações e canais de colaboração, dando maior visibilidade às suas necessidades e novos
meios para resolver problemas e reforçar potencialidades.
A produção bottom-up de ferramentas tecnopolíticas é campo fértil para inovação social, na
medida em que possibilita a aprendizagem de novas competências da cultura digital, tanto
pelos cidadãos quanto pelas entidades, instrumentalizando-os para novas frentes de trabalho
e de ação política. No entanto, a aprendizagem e a inovação possibilitada por essas práticas
dão-se de forma claramente desigual entre os territórios prioritários, conforme demonstrado
na Fig. 05, reforçando a importância da hibridização entre as dimensões física e digital desses
processos, para a expansão da participação cidadã, de forma inclusiva.
Da análise das plataformas online mapeadas, é evidente a dificuldade de manutenção, não só
das mais antigas, algumas das quais já descontinuadas, como de outras mais recentes. Isto
pode-se explicar pelo fato de que os financiamentos obedecem a um cronograma de realização
de um ano, e todo o investimento necessário depois desse período tem de ser sustentado pelo
projeto ou pela rede que o mantém. Por outro lado, criadas para difundirem campanhas ou
para apoiarem ações definidas, findam quando alcançam seus objetivos.
Acresce, a dificuldade de utilização de algumas das ferramentas. Várias das plataformas
estudadas não demonstram grande performance, nem todas estão associadas a páginas em
redes sociais e as que estão não demonstraram campanhas com grande viralidade, o que pode
advir da inadequação da ferramenta aos destinatários ou ação.
108
110
Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio
Os bancos de dados formados nos projetos analisados, bem como os mapeamentos criados são
alimentados por levantamentos in loco ou da colaboração entre os participantes nas
comunidades de práticas. Poucas plataformas estudadas exploram a utilização dos dados
abertos disponibilizados pelo município de Lisboa ou por outras organizações, o que também
pode refletir uma falta de competência técnica para tal. Por um lado, isso demonstra a
necessidade de as comunidades de prática obterem novos dados além daqueles que compõem
os bancos oficiais; por outro, demonstra o potencial a explorar na combinação dessas duas
formas de levantamento e produção de informações. Estudos futuros poderão indicar, ainda, a
adequação à utilização pela iniciativa local, das plataformas de dados abertos disponibilizadas
pela CML, por exemplo, em relação aos tipos de dados fornecidos e às formas de
disponibilização.
A produção de informação pelas tecnopolíticas analisadas, bem como a experimentação que
fazem de arranjos colaborativos e canais de deliberação, são fatores que devem ser explorados
no desenho do OBZ. A necessidade de garantir o funcionamento das ferramentas e sua
manutenção ao longo do tempo deve ser avaliada em alinhamento com as comunidades que a
vão utilizar, duração das atividades ou campanhas de comunicação e etapas na perseguição
dos objetivos traçados pela ação coletiva.
Enquanto comunidades de práticas (STALDER, 2011), a partilha de experiências e capacidades
de inovação e mobilização são de grande importância para o desenvolvimento das entidades,
que encontram nas tecnopolíticas meios potentes para tal. Deve-se ter em atenção que o PPL
foi lançado numa altura de grande crise econômica em Portugal, sendo percebido por muitas
entidades, destacadamente ateliers de arquitetura e associações culturais, como oportunidade
de financiamento para suas atividades. Estudos futuros poderão demonstrar se as alterações
que a cidade sofreu nos últimos anos – primeiro a crise e depois os grandes investimentos para
a reabilitação de espaços públicos e para a indústria do turismo, ainda que em doses desiguais
para as diferentes zonas da cidade (SEIXAS et al., 2019) - também, interferiram nas redes de
colaboração forjadas nos territórios BIP/ZIP.
No contexto abrangente de regeneração urbana do PPL, as temáticas mais frequentes na
amostra de estudo referem-se à formação de competências e ao exercício da cidadania. O OBZ
poderia ajudar a construir uma análise que cruzasse os investimentos públicos destinados aos
territórios BIP/ZIP e as temáticas adotadas pelos projetos, evidenciando se eles estão a
contribuir para a solução dos problemas, somente desfrutando dos investimentos injetados ou
se estão totalmente alheios às dinâmicas territoriais de macroescala.
A análise das redes de colaboração é útil para o desenho do OBZ, no sentido de identificar os
atores com maior proximidade aos territórios e às comunidades de prática, com maior
capacidade de difundir informações para o resto da rede e estimular o seu engajamento. No
entanto, o estudo limita-se à interpretação dos projetos conforme apresentados em
candidatura ao PPL. Novos estudos, através de métodos etnográficos, poderiam averiguar
melhor, nos territórios, a influência dessas comunidades de prática, não só nos projetos
BIP/ZIP, como também em outras práticas importantes para o desenvolvimento local.
Em suma, o presente estudo pode orientar o desenho de metodologias e dispositivos de
participação e colaboração, trazendo a identificação de discussões que são consideradas
urgentes pelas comunidades de prática, a expertise que já desenvolveram na manipulação
tecnológica dos dispositivos criados e as dificuldades que encontram na realização e avaliação
de suas ações, no atual contexto de abertura à contribuição de atores tão diversos.
Os resultados permitem discutir o panorama das tecnopolíticas utilizadas nos projetos
BIP/ZIP, as quais desvelam camadas de informações sobre os territórios e comunidades,
fortalecem redes de colaboração, afirmam identidades e desenvolvem competências
sociotécnicas. A compreensão aprofundada dessas práticas é ponto de partida para o desenho
109
111
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP
Referências Bibliográficas
ALLEGRETTI, G.; TANG, A.; SECCHI, M. Escalas Híbridas de Engajamento Social: Como a Integração de
Tecnologias Pode Ampliar os Processos Participativos. In: BALBIM, Renato (org.). Geopolítica das
cidades: velhos desafios, novos problemas. Brasília: Ipea, 2016.
ARNSTEIN, Sherry R. A ladder of citizen participation. AIP Journal, 1969, p. 216 a 215.
BOLLIER, David; HELFRICH, Silke. Free, fair, and alive: the insurgent power of the commons. Gabriola
Island, Canada: New Society Publishers, 2019. ISBN 9781550927146
CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA (CML). O PLH em Acção - Programa Local de Habitação de Lisboa.
Relatório da 3ª Fase: Concretizar. Lisboa, 2012. Recuperado de: https://bit.ly/2rX83SS
CASTELLS, M. Digital. La Vanguardia. Opinión, 25 Abr. 2020. Recuperado de: https://bit.ly/2MKgBqf
DE LANGE, M.; DE WAAL, M. (Ed.). The Hackable City. Digital Media and Collaborative City-Making in
the Network Society. Singapore: Springer, Open, 2019.
FARIAS, A. C. C.; PAIO, A. OBZ em Lisboa: Contribuição das plataformas informacionais e interativas
para potencializar os observatórios. Anais do Congresso Observatório das Metrópoles 20 Anos | As
Metrópoles e o Direito à Cidade: dilemas, desafios e esperanças. Eixo 2: Gestão e Governança
Urbana. Sessão 2.3 Regimes Urbanos. P. 1874-1890. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano Regional / Observatório das Metrópoles, 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/2RN9ejy>
FOTH, M.; BRYNSKOV, M., OJALA, T. (eds.). Citizen’s Right to the Digital City. Singapore: Springer
Science+Business Media, 2015. DOI http://dx.doi.org/10.1007/978-981-287-919-6_11.
GUTIERREZI, Miren; MILANII, Stefania. Technopolitics in the Age of Big Data: The Rise of Proactive
Data Activism in Latin America. In: CABALLERO, F. Sierra; GRAVANTE, Tommaso (Ed.). Networks,
Movements & Technopolitics in Latin America: Critical Analysis and Current Challenges. Palgrave
Macmillan, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1007/978-3-319-65560-4_5
HAN, Byung-Chul. La emergencia viral y el mundo de mañana. In: Sopa de Wuhan. ASPO-Aislamiento
Social Preventivo y Obligatorio, s.l. Mar. 2020.
KELLNER, D. Globalisation, Technopolitics and Revolution. Theoria: A Journal of Social and Political
Theory, 2001, (98), 14-34.
KURBAN, H. C.; PEÑA-LÓPEZ, I.; HABERER, M. What is technopolitics? A conceptual scheme for
understanding politics in the digital age. Proceedings of the 12th International Conference on
Internet, Law & Politics, Building a European digital space, 499-519, 2016.
MAINKA, A.; HARTMANN, S.; MESCHEDE, C.; STOCK, W. G. Open Government: Transforming Data
into Value-Added City Services. In: FOTH et al. (eds.) Citizen’s Right to the Digital City. Singapore:
Springer Science+Business Media, 2015.
PATEMAN, Carole. Participatory Democracy Revisited. APSA Presidential Address. March 2012, Vol.
10, N. 1. doi: http://dx.doi.org/10.1017/S1537592711004877.
SEIXAS, João; TULUMELLO, Simone; ALLEGRETTI, Giovanni. Lisboa em transição profunda e
desequilibrada. Habitação, imobiliário e política urbana no sul da Europa e na era digital. Caderno
Metrópoles, São Paulo, v. 21, n. 44, pp. 221-251, jan/abr 2019.
STALDER, Felix. The Digital Condition. Cambridge, Medford: Polity Press, 2018.
110
112
Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio
STAVRIDES, Stavros. Common Space. The City as Commons. London: Zed Books, 2016.
MEDINA, J. T. (coord.). Tecnopolítica Y 15M: La potencia de las multitudes conectadas. Un estudio
sobre la gestación y explosión del 15M. Barcelona: UOC Ediciones, 2015.
TOWNSEND, A. M. Smart Cities. Big data, civic hackers, and the quest for a new utopia. New York, Ana Carolina C. Farias
London: W. W. Norton & Company, 2014. carol@sobreurbana.com
TRERÉ, E.; BARRANQUERO, A. Tracing the roots of technopolitics: towards a North-South dialogue.
Alexandra Paio
In: Francisco Sierra; Gravante, Tommaso (ed.) Networks, Movements and Technopolitics in Latin
alexandra.paio@iscte-iul.pt
America. Critical Analysis and Current Challenges. N.l.: Palgrave Macmillan, 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.1007/978-3-319-65560-4.
Notas
i
Disponível em: http://bipzip.cm-lisboa.pt/
ii
São eles: Junta de Freguesia, Associação de Desenvolvimento Local, Associação de Moradores,
Associação Religiosa, Associação Cultural, Associação Desportiva, Associação de Jovens/Estudantes,
Associação de Pais e Encarregados de Educação, Fundação, IPSS-Instituição Particular de
Solidariedade Social, Grupo Informal, Outra, ONG-Organização Não Governamental, Santa Casa da
Misericórdia, Agrupamento de Escolas, Cooperativa sem fins lucrativos, Associação Recreativa,
Instituição de Ensino Superior.
iii
Plataforma digital de livre acesso para a organização, visualização e análise de dados, de forma
interativa. Disponível em: https://kumu.io/
iv
Mais informações em: https://citizens.is/
111
113
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168933
RESUMO:
Este artigo mostra a primeira etapa do desenvolvimento de um sistema generativo para conceber projetos de
habitação de interesse social customizadas. O processo de construção de habitações geralmente envolve
1
investimento para o desenvolvimento do projeto e para o gerenciamento do processo de construção. Em Universidade Federal de
habitações desse tipo, muitas vezes o investimento é deixado de lado por razões econômicas. No entanto, Pernambuco - UFPE
devido à falta dele, o projeto pode não ser adequado e sua construção pode ser ainda mais onerosa e com
baixa qualidade. Com o objetivo de contribuir para esta questão, este artigo apresenta a criação de um sistema
generativo de projeto, uma gramática da forma, que possibilita desenvolver projetos de habitação de interesse
social customizadas e que possa auxiliar na construção otimizada da edificação. O sistema segue os
fundamentos e métodos descritos no formalismo da gramática da forma e é desenvolvido com base nas
análises de projetos de reconhecido valor técnico, bem como em recomendações sobre projetos de habitação
de interesse social de qualidade. Os resultados, ainda que parciais - referentes a primeira etapa do
desenvolvimento da gramática, revelam a eficácia de sistemas generativos para a concepção de projetos
customizados, e contribui para a busca da reinterpretação do processo tradicional de projeto / construção de
habitações de interesse social.
ABSTRACT:
This paper shows the first stage of the development of a generative system to design customized social housing. Fonte de Financiamento:
The construction process of housings generally involves investment for the design’s development and for the FACEPE
construction’s management process. In this type of housing, investment is often neglected for economic
reasons. However, due to the lack of it, the design may not be adequate and its construction may be even more Conflito de Interesse:
expensive and with low quality. In order to contribute to this issue, this paper presents the creation of a Declara não haver.
generative design system, a shape grammar, which develops customized housing designs and that assists in
the building’s optimized construction. The system follows the fundamentals and methods described in the Submetido em: 20/04/2020
formalism of shape grammar and is developed based on the analysis of recognized technical value design, as Aceito em: 08/07/2020
well as recommendations on quality social housing designs. The results, even if partial - referring to the first
stage of grammar development, reveal the effectiveness of generative design systems for the conception of
customized design, and contribute to the search for the reinterpretation of the traditional process of design /
construction of social housing.
GRIZ, C.; BELARMINO, T. DUTRA, J. Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como
instrumento. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168933
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
INTRODUÇÃO
Esse artigo apresenta uma investigação que visa desenvolver um sistema generativo de projeto
que sirva de base para a customização de projetos de habitação de interesse social. O foco é
voltado à questão de projetos e construção de qualidade de algumas dessas habitações e
contribui para o aperfeiçoamento de métodos que reinterpretem o tradicional processo de
projeto.
O processo de projeto e construção de habitações, independente do seu tamanho, geralmente
envolve altos investimentos para o desenvolvimento do projeto e para o gerenciamento e
execução da obra. Na sua própria definição, a habitação de interesse social é justamente aquela
voltada à população que carece de recursos econômicos para ter acesso à moradia formal ou
para contratar os serviços de técnicos profissionais da área. Esse investimento para o
desenvolvimento e execução de tais projetos, que, na maioria dos casos, são duvidosos quanto
a sua qualidade (BONDUKI, 2008; PINTO, PINTO, BERNARDO, FEIJÃO, 2017;FIM et al, 2019),
acontece mais frequentemente no caso da criação de conjuntos habitacionais, seja por
iniciativa pública, seja através de empresa privada. Quando a construção dessas habitações é
feita de maneira isolada e a responsabilidade fica a cargo do seu próprio dono – a chamada
autoconstrução (FIM et al, 2019), o investimento em projeto é, muitas vezes, deixado de lado
por razões econômicas.
Entretanto, justamente pela falta de investimento e assessoria técnica especializada, o projeto
pode não ser adequado, comprometendo sua qualidade e a construção pode resultar ainda
mais onerosa. Segundo Amorim e Telles (2016), a autoconstrução é frequentemente
encontrada em zonas urbanas e rurais de baixa renda, podendo resultar em projetos de
habitações subdimensionadas, insalubre e sem os requisitos mínimos para uma moradia de
qualidade. Sendo assim, grande parte das pessoas que conseguem adquirir um terreno nessas
condições começam a construir suas habitações sem planejamento, sem o auxílio de um técnico
que possa desenvolver um projeto adequado e, portanto, diminuindo a qualidade da
construção, do ponto de vista técnico, estético e econômico.
Várias investigações são desenvolvidas com o objetivo de aumentar a qualidade de habitações
de interesse social (MITCHELL 2008; BONDUKI, 2008; BUZZAR, FABRICIO, 2010; BRANDÃO
2011; MIRON, MONTEIRO, SILVA, 2019), principalmente aquelas produzidas pelo Programa
Minha Casa Minha Vida (MCMV). Implementado em março de 2009, o MCMV foi criado com o
objetivo de possibilitar que a população com rendimentos de até 10 salários mínimos
pudessem ter acesso à moradia (NARDELLI, 2010; RANGEL, 2011). Sendo pensado
principalmente para reduzir o déficit habitacional, ao final de um ano o programa também
incentivou o crescimento da construção civil e o aquecimento do mercado imobiliário.
Entretanto, um dos recursos que o programa possibilita é pouco explorado por seus usuários.
Além de financiar moradias já construídas por terceiros, o MCMV, na modalidade que ficou
conhecida como “Entidade” ,também destina parte dos seus financiamentos para a construção
de habitações para aqueles que adquirem um terreno em loteamento urbano. Para isso, a
principal exigência é ter um projeto arquitetônico aprovado na prefeitura local – requisito
importante e que faz com que as assessorias técnicas exerçam um papel fundamental para a
construção de habitações de qualidade.
Como nessa camada da população poucos tem acesso a esse tipo de serviço, em 2008 foi criada
a Lei nº 11.888/2008, que assegura assistência técnica pública e gratuita para projeto e
construção de habitação de interesse social. Contudo, como argumentam Fim e seus colegas
(2019), depois de mais de dez anos da vigência da lei, poucos indícios de sua aplicação são
114
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
verificados. Essa falta de acesso à assessoria técnica para a maioria dessa camada da população
faz com que o de financiamento proposto pelo MCMV – Entidade fique ocioso.
Assim, tendo em vista esse nicho de mercado, e buscando contribuir com a qualidade desse
tipo de habitação, a startup PopBIM do ramo da construção civil (incubada em 2018 no Porto
Digital, Recife) buscou parceria com pesquisadores do Laboratório de Estudos Avançados em
Arquitetura (lA2) e do Grupo de Estudos Modelagem da Informação do Ambiente Construído,
ambos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para juntos, pensarem em um sistema
que conceba projetos de alguns tipos de habitação de interesse social (ver características,
descritas na Tabelas 1). O objetivo é desenvolver projetos de maneira generativa e que esse
mesmo sistema auxilie na construção otimizada da edificação. O sistema é, portanto, centrado
nos princípios do design generativo, mais especificamente a gramática da forma (descritos a
seguir), que servirá de base para a geração customizada de projetos de habitação.
Tendo esta problemática como base, a investigação desenvolvida com parceria entre a PopBIM
e a UFPE busca desenvolver e executar projetos de habitação de interesse social de qualidade
de maneira otimizada. Isso será feito através do desenvolvimento de um sistema que vai
facilitar o acesso a um projeto arquitetônico por essa camada da população, possibilitando a
geração de projetos desenvolvidos dentro do princípio da gramática da forma. Além disso, ao
final, pretende-se que esse sistema auxilie, também, a construção da habitação, através da
mediação entre o proprietário e fornecedores de material e mão de obra da construção civil
local.
De uma maneira geral, a gramática proposta é desenvolvida em três estágios:
1. O estágio 1 diz respeito à organização espacial da habitação. Aqui, são definidas regras
que dizem respeito à funcionalidade e resultam em diversas maneiras de organizar
espacialmente os ambientes da habitação, de acordo com dados de entrada específicos,
fornecidos pelo proprietário, como o número de ambientes, o tipo de interação entre eles (se
mais restritivo ou mais interativo, como cozinhas abertas para a sala, por exemplo).
2. O estágio 2 trata da volumetria do projeto. É desenvolvido necessariamente a partir da
solução espacial selecionada no estágio anterior e guiado por outro conjunto de dados de
entrada – altura do pé-direito, tipo de coberta, etc. Nesta fase, a mediação entre fornecedores
já deve estar prevista e, de acordo as especificidades dos materiais, as regras de definição da
volumetria serão inferidas.
3. O estágio 3 é responsável pela definição dos elementos construtivos da habitação.
Nesta fase são definidas as regras que irão decompor a volumetria definida no estágio anterior
nos elementos construtivos da habitação – paredes, pisos, tetos, cobertas, esquadrias, etc. Aqui,
pressupostos da fabricação digital serão levados em conta para a definição das regras.
Cada estágio, por sua vez, é desenvolvido em duas etapas: a parte analógica e a parte digital. A
primeira mostra o processo de inferência de regras da gramática e o teste de aplicação dessas
regras, através da derivação feita manualmente, regra por regra (como é visto a seguir) . A
segunda faz uso de tecnologias digitais para implementar as regras de maneira que as soluções
geradas pela gramática sejam obtidas de maneira automatizada e otimizada.
Este artigo apresenta a parte analógica do estágio 1 em um estudo piloto, onde é descrito o
desenvolvimento da parte da gramática responsável pela distribuição funcional e organização
espacial da habitação.
O século XXI é tido como a era das tecnologias digitais (KOLAREVIC, 2005). No campo da
arquitetura e urbanismo, sua aplicação vai desde a adoção como ferramentas de representação
115
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
– classificadas por Oxman (2006) como interação representacional , até a sua completa
incorporação no processo de concepção do projeto – a chamada interação com o ambiente
virtual (OXMAN, 2006). O nível de interação do projetista com essas tecnologias altera
profundamente a maneira de pensar e o processo necessário para o desenvolvimento de
projetos.
Neste cenário, o Design Generativo (DG), cujas bases conceituais e teóricas remontam da
antiguidade clássica (MITCHELL, 1989), vem se consolidando juntamente com a disseminação
e apropriação de novas tecnologias e ferramentas baseadas no uso do computador. Entretanto,
por ser um termo que ficou mais conhecido devido a maior disseminação das tecnologias
digitais, sua definição, muitas vezes, aparece de maneira confusa na literatura.
Sendo um dos temas do campo conhecido como “computacional design” , o design generativo
pode ser descrito como uma metodologia de projeto onde o projetista não interage
diretamente na representação do projeto, e sim, com um sistema que representa o projeto
(FISCHER; HERR, 2001). Para Celani (2011), um sistema generativo é um método indireto de
projeto no qual o projetista não se preocupa apenas com a solução de um problema em
particular em um contexto específico, mas em criar um projeto genérico, que possibilite
resolver problemas semelhantes em contextos diferentes.
De acordo com o princípio do design generativo, o projetista cria um sistema de regras que,
com sua implementação, digital ou analógica, vários projetos podem ser gerados. Neste
paradigma as informações necessárias para conceber o projeto são organizadas e tratadas de
acordo com os princípios definidos no sistema, que descreve o passo-a-passo para que o
projeto seja desenvolvido. Quando essas regras são implementadas dentro de um sistema
computacional, as soluções geradas são mais otimizadas, automatizadas e variadas. A aplicação
de tecnologias computacionais na implementação é que acrescenta o caráter inovador para o
design generativo. Assim, seu conhecimento e apropriação passa a ser de relevante
importância para o campo de projetos de arquitetura.
Um dos sistemas generativos de projeto é a gramática da forma. Criada por Stiny e Gips (1972),
ela consiste em um sistema de geração de formas baseado em regras que, aplicadas passo a
passo (assim como os algoritmos ), são capazes de gerar uma linguagem de projeto (ELOY,
2012). Ou seja, com a aplicação de uma gramática da forma é possível obter vários projetos
com características distintas, mas que possuem o mesmo princípio compositivo, definido pelas
regras da gramática. É, portanto, um formalismo eficaz para se alcançar a customização em
massa de projetos – principal produto a ser alcançado pela presente investigação.
Segundo Duarte (2007), um dos pioneiros no desenvolvimento de estratégias de
personalização em projeto de habitações, a customização em massa permite oferecer produtos
personalizados, em grandes quantidades, a custos similares aos de produtos padronizados e
disponibilizados por meio da produção em massa. Prática já consolidada nas indústrias
automotiva, aeronáutica e naval, a customização em massa aplicada a projetos unidade
habitacionais pode trazer benefícios financeiros tanto para o cliente – que pode adquirir uma
habitação adequada às suas demandas particulares, quando para o construtor, que passa a
oferecer vários produtos personalizados sem precisar de mais investimentos para isso
(NABONI; PAOLETTI, 2015).
A gramática da forma já vem sendo utilizada em vários projetos de habitações (DUARTE, 2007;
MUSSI, 2014; ELOY, 2012; GRIZ, et al, 2016; LIMA, et al, 2017), evidenciando a mudança de
paradigma no processo de projeto quando se deseja alcançar a customização em massa. Isso
acontece, pois ela é utilizada como estratégia definidora das regras de concepção do projeto
arquitetônico personalizado, como facilitadora da incorporação do usuário na concepção
projetual, sendo, assim, promotora da personalização da unidade habitacional em série.
116
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
Em geral, as gramáticas da forma podem ser classificadas de acordo com: (a) a maneira como
as regras são inferidas e (b) a lógica da aplicação das regras. A primeira define as duas
principais classificações descritas por Duarte (2007) - gramáticas originais e gramáticas
analíticas. As analíticas são concebidas como uma ferramenta para analisar um grupo de
projetos - o corpus, que definem uma única linguagem que os representa. Essa representação
é feita por meio de regras inferidas a partir da análise dos próprios projetos que formam o
corpus. Já as gramáticas originais são aquelas que geram novos projetos e as regras, neste caso,
não são necessariamente criadas a partir da análise de projetos, mas podem, também, ser
baseadas em requisitos pré-estabelecidos e descritos em textos, normas, etc.
Em relação à lógica da aplicação, as gramáticas podem ser de vários tipos (KNIGTH, 1999). As
principais são as básicas (onde apenas as regras de adição são aplicadas), as não
determinísticas (quando as regras da gramática são aplicadas em qualquer ordem), as
sequenciais (onde as regras são aplicadas em uma ordem predefinida) e irrestrito (qualquer
tipo de regra é aplicada em qualquer ordem).
Além dessas, alguns autores também sugerem que as regras podem ser aplicadas pelo método
bottom-up ou top-down (MENDES, 2014). No método de desenvolvimento do sistema bottom-
up a solução é gerada a partir de uma forma inicial e uma lógica incremental, onde tem-se uma
adição progressiva de outras formas agregadas a ela. Já nas gramáticas desenvolvidas segundo
a lógica top-down, a solução formal é resultado da decomposição sucessiva da forma inicial em
partes menores (Figura 1).
Figura 1: Exemplos de
gramática da forma do tipo
Top-Down (acima) e
Bottom-up (abaixo).
Fonte: Os autores.
AS REGRAS DA GRAMÁTICA
Para este estudo piloto foi feita uma parceria com empreendedores de um loteamento cujos
terrenos apresentam área média de 200m2. O terreno padrão do loteamento selecionado para
estudo tem dimensões de 10m x 20m, com frente ora para o Leste, ora para o Oeste.
A aplicação da gramática da habitação de pequeno porte segue basicamente quatro etapas,
cada uma com seu conjunto de regras, que devem ser aplicadas exatamente na ordem
apresenta – daí o caráter sequencial da gramática. São (a) as regras de implantação; (b) as
regras de divisão de ambientes; (c) as regras de atribuição funcional e, (d) as regras de
atribuição dimensional.
De uma maneira geral, uma gramática da forma é constituída por quatro componentes (STINY,
1976): (1) um conjunto de formas; (2) um conjunto de símbolos; (3) um conjunto de regras da
forma e; (4) uma forma inicial. No desenvolvimento desta gramática, para cada etapa tem-se
componentes distintos.
A primeira etapa apresenta um grupo de regras que define as opções de implantação da
habitação no terreno. Como a gramática é top-down e o lote apresenta formato retangular, as
formas utilizadas são retângulos e a forma inicial é aquela que define o formato do terreno, que
será decomposto em retângulos genéricos menores. Já as regras e símbolos, neste caso, dizem
respeito aos parâmetros relativos à orientação do terreno, às normas de afastamento e à área
118
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
da habitação (Figura 2). O resultado dessa etapa apresenta o maior polígono onde a habitação
pode ser locada no terreno: um retângulo com a maior área construída possível do pavimento
térreo.
Como comentado, o loteamento apresenta terrenos voltados para o Leste ou para o Oeste.
Assim, o primeiro conjunto de regras define a orientação do terreno (retângulo maior da Figura
2) através da aplicação da regra L1 ou da regra L2.
Figura 2: Regras de
orientação e afastamentos
do lote.
Fonte: Os autores.
Com isso definido, aplica-se a regra L3 - uma única regra referente ao parâmetro urbanístico
de afastamentos. Entretanto, por ser paramétrica, ela é capaz de gerar uma grande variedade
formal, ao mesmo tempo em que atende às restrições descritas nas condições associadas a ela.
As primeiras restrições, descritas nas condições gerais, são referentes às leis de afastamento
definidas pela prefeitura local para esse tipo de loteamento e que geram uma implantação de
edificação solta no terreno (o terreno é representado pelo retângulo maior e externo da Figura
2, e a projeção da edificação, pelo retângulo menor e interno). Porém, é possível que a
edificação não tenha afastamentos em relação ao limite do terreno, caso atenda as condições
particulares 1. Por fim, as condições particulares 2 definem afastamentos distintos dos
apresentados nas condições gerais. Esses objetivam uma maior flexibilidade para a locação da
edificação no lote, de maneira que esta possa proporcionar maior conforto em termos de
ventilação e/ou insolação, ou mesmo para possibilitar a inclusão itens programáticos
alternativos.
Vale ressaltar que alocação esquemática e provisória da habitação só pode ser definida quando
o proprietário escolher o número de ambientes. Para esse estudo piloto foram definidas oito
opções de programas arquitetônicos (Tabela 1). Estes variam em número de ambientes e
apresentam algumas sugestões de pré-dimensionamentos, resultando na área média da
habitação, que podem variar de 40m2 a 80m2. Com esse dado, e com a aplicação da regra
paramétrica L3, é possível obter cinco possibilidades provisórias de locação da habitação
(Figura 3). A edificação pode não apresentar afastamento na lateral direita ou esquerda do lote,
pode estar solta no terreno ou não apresentar afastamento de fundo, nem nas duas laterais ao
mesmo tempo.
119
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
Fonte: Os autores.
Seis ambientes. Sete ambientes com opção de duas cozinhas e dois
quartos.
Sete ambientes com opção de dois banheiros e dois Sete ambientes com opção de três quartos.
quartos.
Oito ambientes com opção de duas cozinhas e três Oito ambientes com opção de dois banheiros e três
quartos. quartos
A segunda etapa define a partição dos ambientes na habitação. A forma inicial é justamente a
planta de locação esquemática resultante da primeira etapa (Figura 3). As regras e símbolos
(Figura 4) são referentes à dimensão dos lados do retângulo que representa a planta de locação
e ao número e formato das suas partições da forma inicial. Devido ao caráter top-down da
gramática, ela será subdividida em outros retângulos genéricos.
Figura 3: Exemplos de
implantação esquemática
da habitação no terreno,
resultado da aplicação da
regra paramétrica L3.
Fonte: Os autores.
120
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
Como mostra a Tabela 1, as habitações podem variar de 40m2 a 80m2, apresentando de seis a
nove ambientes, com possibilidade de combinação variada de funções. Com exceção da
habitação com seis ambientes, cujos cômodos já são previamente definidos, o morador pode
escolher o programa funcional da sua moradia, com opções de dois ou três dormitórios, com
um ou dois banheiros ou com cozinha com dimensão mínima ou mais ampla. Seguindo esses
critérios, o polígono resultante da implantação pode ser dividido, então, em seis a nove
retângulos menores, cujas regras de subdivisão variam de acordo com o número de ambientes,
a dimensão do polígono resultante da implantação e, em alguns casos, com a orientação do
terreno (Figura 4).
Figura 4: Regras de
divisão do polígono
resultante da implantação
no número de ambientes.
Fonte: Os autores.
A terceira etapa se dedica a atribuir função a cada um desses ambientes. Isso é feito através de
regras que apresentam marcadores. De uma maneira geral, em gramáticas da forma, um
marcador (ou label) é um elemento que visa restringir a maneira que a regra pode ser aplicada
(STINY, 1976). Neste caso, o marcador da gramática da habitação generativa de pequeno porte
atribui a função que cada ambiente deve ter. Assim, as regras dessa etapa são feitas para
modificar os marcadores que foram inseridos nas formas resultantes da etapa anterior, como
mostra a Figura 5.
Distintamente de como sugeriu Mayer (2012), a primeira função que deve ser atribuída é a
cozinha. Essa escolha se deu pela influência que ela exerce na localização dos demais cômodos
da habitação, bem como por ser, juntamente com os banheiros, uns dos ambientes que tem
maior custo de construção por m2. Em seguida vem a locação das salas, que, conforme análise
do corpus, está adjacente à cozinha em 100% dos casos. A locação dos quartos e dos banheiros
vem, respectivamente, logo em seguida.
Figura 5:
[Coluna Esquerda] Regras
de atribuição funcional.
[Coluna Direita]
Possibilidades de locação
para cozinha, sala e
quartos em habitações de
RC: Regra de alocação da cozinha oito ambientes.
RS: Regra de alocação da sala
RQ: Regra de alocação do quarto Fonte: Os autores.
RB: Regra de alocação do banheiro
121
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
Vale destacar que a locação das funções depende não apenas do número de ambientes total da
habitação, mas também (e como em todo projeto de arquitetura) da orientação do terreno.
Nesse sentido, para cada opção de subdivisão de ambientes são definidas as posições possíveis
que a cozinha, sala e quartos podem ser atribuídas (Figura 6). Essa definição facilitará a
implementação computacional da gramática, uma vez que cada orientação apresenta um
número limitado e específico de regras de atribuição de função, restringindo o número de
regras que pode ser aplicado à medida em a gramática é gerada.
Para ilustrar, toma-se como exemplo um terreno cuja frente é voltada para o Leste, com oito
ambientes e cujo polígono resultante da implantação tem largura menor que a profundidade
(Figura 7). Para tal opção, a locação da cozinha, primeiro ambiente que deve ser posicionado,
só pode ser feita nos ambientes número 2, 4 ou 6 (conforme indica a Figura 6). Ou seja, para
esse exemplo, só podem ser aplicadas as regras de atribuição funcional R-C2, R-C4 ou R-C6
(descritas na Figura 5). Já a locação da sala, além de ter que estar adjacente à cozinha, só pode
ser nos ambientes número 1, 3, 5, 7 ou 8. Para atender a esses critérios, apenas as regras de
atribuição funcional R-S1, R-S3, R-S5, R-S7 ou R-S8, podem ser aplicadas, e assim
sucessivamente.
A quarta e última etapa que forma o estágio 1 de desenvolvimento da gramática é responsável
por definir as dimensões de cada um dos ambientes, sem alterar a relação de adjacência pré-
definida. Apesar dessa etapa ainda estar em desenvolvimento, já foi definido que as dimensões
dos ambientes tomarão por base as áreas discriminadas na Tabelas 1 – o que pode resultar
numa infinidade de formatos de habitação, mesmo que, inicialmente, tenha-se como base
apenas um esquema de subdivisão de ambientes, resultado típico do desenvolvimento de uma
gramática da forma genérica.
122
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
Figura 6: Exemplo de
derivação.
Fonte: Os autores.
Esse é um exemplo de derivação que resultou em uma única solução de organização espacial
esquemática da habitação. Entretanto, partindo da mesma forma inicial apresentada na Figura
7 , e com a escolha de regras distintas a cada passo da derivação, é possível obter várias outras
soluções espaciais, como mostra a Figura 8. A partir da escolha do posicionamento da cozinha,
o segundo ambiente a ser atribuído é a sala. Para esta orientação, a sala só é possível ser
localizada nos números 1, 3, 5, 7 ou 8. No entanto, as definições das regras de posicionamento
da sala dependem, também, da posição previamente escolhida para a cozinha, já que outra
restrição é que os dois ambientes sejam adjacentes. Caso a cozinha tenha sido locada na posição
2, a sala só poderá ficar nos 1 ou 3 e apenas as regras R-S1 ou R-S3 podem ser utilizadas. Se a
opção de posicionamento da cozinha tiver sido no número 6, a sala pode ser locada nos 3, 5, 7
ou 8, e, por isso, restringe a aplicação apenas às regras R-S3, R-S5, R-S7 ou R-S8.
E com essa lógica segue-se a sequência de atribuição do segundo ambiente referente à sala
(estar e/ou jantar), dos quartos e dos banheiros – com a escolha da localização de um ambiente
influenciando diretamente a localização do próximo. Como resultado, temos uma espécie de
“árvore” que mostra as possíveis derivações ou os caminhos possíveis para se chegar à
organização espacial da habitação. Para esse tipo de lote e o programa arquitetônico escolhido
(oito ambientes com dois dormitórios e uma suíte), é possível gerar 12 organizações espaciais
esquemáticas de habitações.
123
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
Figura 7: Árvore de
derivações que geram 12
organizações espaciais
esquemáticas de
habitações com oito
ambientes (com dois
dormitórios e uma suíte),
cujo lote é voltado para o
Leste.
Fonte: Os autores.
Como comentado, o resultado da aplicação das etapas até aqui apresentadas define a
organização espacial genérica da habitação. No entanto, essa solução genérica é capaz de gerar
um grande número de plantas distintas, dependendo do contexto das escolhas individuais dos
proprietários feita nas etapas anteriores, mas que guardam as mesmas relações de adjacência.
É por essa razão que as regras da quarta etapa – definição do formato e das dimensões dos
ambientes (ainda em desenvolvimento), precisam ser, necessariamente, paramétricas, envolve
uma grande quantidade de condicionantes e restrições, conforme cada contexto particular.
A Figura 9 ilustra possíveis soluções de plantas baixas esquemáticas que podem ser resultado
da aplicação das regras da quarta etapa. Sobre esse exemplo é preciso fazer duas observações:
primeiro, ele mostra duas soluções em planta com organizações espaciais aparentemente
tradicionais, mas que é fruto da aplicação analógica das regras, o que limita a capacidade da
gramática em gerar organizações mais singulares ; segundo, para se chegar a essas soluções
espaciais é preciso a aplicação das regras dimensionais – etapa ainda em desenvolvimento. No
entanto, sabendo que estes exemplos apresentam um vácuo de informações de como se chegar
a esses resultados, alguns testes já evidenciam que é possível obter diferentes soluções
levando-se em consideração fatores como o formato côncavo ou convexo - tanto do limite da
habitação, quanto do limite dos ambientes, variação média da área de cada ambiente
individualmente, proporção da dimensão entre ambientes adjacentes (se 1/2, 1/3 ou 2/3 da
dimensão total da parede que os separa), tipo de separação (se opaco, transparente ou parcial
– no caso de cozinhas americanas), etc.
124
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
Figura 8: Exemplos de
plantas geradas a partir de
uma mesma organização
espacial esquemática.
Fonte: Os autores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
125
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
Agradecimentos
Referências Bibliográficas
AMORIM, R.; TELLES, R. Reinventar: escritório modelo de arquitetura social. In: Revista Práxis:
saberes da extensão, Paraíba, v.4, n.6, 2016. Disponível em:
<http://periodicos.ifpb.edu.br/index.php/praxis/article/viewFile/576/355>. Acesso em: abr. 2018.
ARAVENA, A.; IACOBELLI, A. Elemental: manual de vivienda incremental y diseño participativo.
Ostfildern: HatjeCantz, 2012.
BONDUKI, N. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas
no governo Lula. In: Arq.urb – Revista eletrônica de arquitetura e urbanismo, 1, 2008. Disponível em:
<http://www.usjt.br/arq.urb/numero_01/artigo_05_180908.pdf>. Acesso em: jun. 2012.
BRANDÃO, D. Disposições técnicas e diretrizes para projeto de habitações sociais evolutivas. In:
Ambiente Construído, v. 11, n. 2, p. 73-96,abr./jun, 2011.
BUZZAR, M.; FABRICIO, M. Metodologia de avaliação do produto habitacional para o programa de
arrendamento residencial. In: Encontro Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído, 13, 2010,
Canela. Anais... 2010.
CELANI, G.; CYPRIANO, D.; GODOI, G.; VAZ, C. A gramática da forma como metodologia de análise e
síntese em arquitetura. In: Conexão - comunicação e cultura / Universidade de Caxias do Sul, Caxias
do Sul, v. 5, n. 10, p. 180-197, 2006.
CELANI, C. Algorithmic Sustainable Design. Vitruvius, v.116, 2011. Disponível em:
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/10.116/3995>. Acesso em: 04 out,
2014.
DUARTE, J. Personalizar a habitação em série: Uma Gramática Discursiva para as Casas da Malagueira
do Siza. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
EILOUTI, B. Shape grammars as a reverse engineering method for the morphogenesis of architectural
façade design. In: Frontiers of Architectural Research, 2019. Disponivel em:
<https://doi.org/10.1016/j.foar>. Acessoem: 06 mar 2019.
ELOY, S. A transformation grammar-based methodology for housing rehabilitation: meeting
contemporary functional and ICT requirements. 2012. Tese (PhD em Arquitetura). Universidade
Técnica de Lisboa, Lisboa, 2012.
FIM, M.; SILVA, A.; BRAGA, B.; OLIVEIRA, H.; PEREIRA, J. H. AssitenciaTecnica Pública e gratuita para
Habitação de Interesse Social: análise das condições arquitetônicas de residências de um bairro em
Nova Venécia – ES. In: RevistaIfesCiência. V. 5. N. 1, p. 11 – 35, 2019.
FISCHER, T.; HERR, C. Teaching Generative Design. In: International Generative Art Conference,
Generative Design, 4., 2015, Milão. Proceedings… Disponível em: <http://www.generativeart.com>.
Acesso em: 14 abr 2015.
GRIZ, C; MENDES, L.; AMORIM, L.; HOLANDA, M. A.; CARVALHO, T.. O meu modo de morar: uma
gramática para reformar projetos de apartamentos. In: XX Congresso Da Sociedade Ibero-Americana
De Gráfica Digital - SIGRADI 2016, 2016, Buenos Aires. Proceedings…, 2016. v. 1. p. 687-693.
126
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
KNIGTH, T. Shape grammars:SixTypes. In: Environment and Planning B: Urban Analytics and City
Science, fev/1999.
KNIGTH, T. Shape grammars: SixTypes. In: Environment and Planning B: Urban Analytics and City
Science, v. 26, n. 1, p. 15-31, fev. 1999.
KOLAREVIC, B. (Ed.). Architecture in the digital age: design and manufacturing. New York: Taylor e
Francis, 2005. 320 p.
KOWALTOWSKI, K.; GRANJA, D.; MOREIRA, D.; PINA, S.; OLIVA, C.; CASTRO, M. The Brazilian Housing
program 'Minha Casa Minha Vida' - A Systematic Literature Review. In: Journal of the Korean housing
association, v. 26, p. 35-42, 2015.
LI, A. A shape grammar for teaching the architectural style of the Yingzaofashi. 2001. Dissertação –
MIT, Cambridge, 2001.
LIMA, E; VIEIRA, A; MENDES, L. T.; GRIZ, C. Houses for everybody? Brazilian competition: an
application of shape grammar and space syntax for analyzing low-income housing. In: 35th eCAADe
Conference - Education and Research in Computer Aided Architectural Design in Europe, 2017,
Roma. Proceedings… Roma, 2017.
MACHADO. A. Customização em Massa na Construção Civil: novas estratégias ou antigas práticas?
In: Encontro de Estudos em Estratégia, 3., 2007, São Paulo. Anais... 2007
MAYER, R. A gramática da habitação mínima. Análise do Projeto Arquitetônico de Interesse Social
em Porto Alegre e Região Metropolitana. 2012. Tese (Doutorado em Arquitetura) - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
MENDES, L. Personalização de Habitação de Interesse Social no Brasil: o caso da implantação urbana
em conjuntos habitacionais. 2014. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de
Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, Campinas, 2014.
MIRON, L.; MONTEIRO, D.; SILVA, M. Territorialidades em Habitação de Interesse Social. Uma
abordagem por meio da Percepção dos Usuários. In: Arquisur Revista. Ano 9. N. 15, p. 66 – 83, 2019.
MITCHELL, W. J. Afterword: The design Studio of The Future. In CAAD Futures Proceedings... p. 479-
494. 1989.
MITCHELL, W. J. A Lógica na arquitetura. Campinas: Ed. Unicamp, 2008.
MUSSI, A. Os Padrões de Ampliação Espontânea de Interesse Social em Porto Alegre, RS, e Região
Metropolitana: Uma Proposta de Aplicação da Gramática da Forma e Sintaxe Espacial. 2014. Tese
(Doutorado em Arquitetura) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012.
NABONI, R; PAOLETTI, I. Advanced Customization in Architectural Design and Construction. Milano:
Springer, 2015.
NARDELLI, E. S. Tecnologia digital avançada na produção de Habitações de Interesse Social – HIS no
Brasil, SIGRADI, 14, 2010, Bogotá. Proceedings… p.403-406.
PINTO, C.; BERNARDO, A.; FEIJÃO, A. Avaliação Pos Ocupação (APO) a qualidade na Habitação de
Interesse Social (HIS). In: Conferencia Internacional da LARES, 17, 2017, São Paulo. Anais... 2017.
RANGEL, J. O Programa “Minha casa minha vida” e seus desdobramentos no local: um estudo da
pequena cidade de Ponta de Pedras, Pará. 2011. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e
Regional) - Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos, 2011.
127
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento
STINY, G.; GIPS, J. Shape grammars and the generative specification of painting and sculpture. In:
IfipCongress, 7, 1976, Amsterdam. Proceedings... Disponível em:
<http://www.shapegrammar.org/ifip/ifip1.html>. Acesso em: 05 nov 2014>.
Cristiana Griz
crisgriz@gmail.com STINY, G. Two exercises in formal composition. In: Environment and Planning B, v. 3, p. 187-210,
1976.
Thaciana Belarmino
thacianabelarminof@gmail.com
Julia Dutra
julialsdutra@hotmail.com
128
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
129
Gestão & Tecnologia de Projetos