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ISSN 19811543

Uma publicação do
Instituto de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
© Gestão e Tecnologia de Projetos
Esta revista oferece acesso livre imediato ao seu conteúdo, seguindo o princípio de que disponibilizar gratuitamente o
conhecimento científico ao público proporciona maior democratização mundial do conhecimento

Periodicidade Semestral

Tiragem
Revista eletrônica
Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo [IAU-USP]
Avenida Trabalhador São-Carlense, 400 - Centro
13566-590, São Carlos - SP, Brasil
Telefone: +55 16 3373-9311 Fax:
+55 16 3373-9310
www.iau.usp.br

Ficha Catalográfica

Gestão e Tecnologia de Projetos / Universidade de São Paulo.


Instituto de Arquitetura e Urbanismo. – v. 15, n. 2 (2020) – .
– São Carlos: USP, 2020 -

Semestral
ISSN 1981-1543

1. Processos e tecnologias de projetos – Periódicos.


Arquitetura. I. Universidade de São Paulo. Instituto de Arquitetura
e Urbanismo.

Apoio

Programa de Apoio às Publicações Científicas Periódicas da USP - SiBI USP

Bases de Indexação e Divulgação

Diagramação e laiaute

Márcio Minto Fabricio


4 EDITORIAL
Frederico Braida, Daniela Frogheri

6 OPEN DESIGN: COMPARTILHAMENTO E DEMOCRATIZAÇÃO NAS


PRÁTICAS DE PROJETO
Camilo Simão de Lima1 , Bruno Massara Rocha

19 PLATAFORMAS DIGITAIS DE MOBILIDADE URBANA:


TIPOS E MODOS
DE ATUAÇÃO
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

35 CONECTIVIDADE E CONEXÃO NOS PROCESSOS PARTICIPATIVOS: NOVAS


TECNOLOGIAS E VELHOS PROBLEMAS
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso 1

49 ADIÇÃO GRADUAL DA INFORMAÇÃO SOBRE UM


PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO: PRODUÇÃO DE
MODELOS E DE SENTIDOS
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

65 PROXÊMICAS DO ESPAÇO – FATORES SÓCIO-


ESPACIAIS E FERRAMENTAS DIGITAIS
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato César
Ferreira Souza, Marcos Martins Borges

81 APLICAÇÕES DA FABRICAÇÃO DIGITAL EM


ARQUITETURA, DESIGN E CONSTRUÇÃO: PROCESSOS
DE APROPRIAÇÃO TECNOLÓGICA E ADEQUAÇÃO
SOCIOTÉCNICA EM EXPERIMENTOS NA AMÉRICA DO
SUL
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

97 TECNOPOLÍTICAS EM LISBOA: REDES HÍBRIDAS COMO


BASE PARA A CRIAÇÃO DE UM OBSERVATÓRIO
BIP/ZIP
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

113 HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL GENERATIVA: A


GRAMÁTICA DA FORMA COMO INSTRUMENTO
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra
EDITORIAL

EDITORIAL V15 | N3
EDIÇÃO ESPECIAL: TECNOPOLÍTICAS

Esta edição especial da revista Gestão & Tecnologia de Projetos (GTP) faz parte de uma colaboração que se
consolida cada vez mais, ano após ano, com a Sociedade Ibero-americana de Gráfica Digital (SIGraDi). Neste
número, o foco é a Tecnopolítica, tema central da XXII Conferência SIGraDi, realizada de 7 a 9 de novembro de
2018, na Universidade de São Paulo, na cidade de São Carlos, no Brasil.
Hoje, os avanços da tecnologia e a evolução da digitalização e da mídia cobrem todos os aspectos da vida diária;
no mundo, a criatividade em todos os seus aspectos, o impacto da Revolução da Informática e Digital continua
avançando diariamente, abrangendo cada vez mais a vida do ser humano e o meio em que vive.
Em geral, muita atenção é dada aos aspectos específicos do desenvolvimento da tecnologia, o que implica
ferramentas, metodologias e consequentes artefatos; mas, nas últimas décadas e com o avanço exponencial, tem
sido desenvolvida outra face que surge das possibilidades de comunicação que não são mais limitadas aos
relacionamentos entre os indivíduos, mas mostram seu maior potencial quando se trata de interações
colaborativas entre grandes números de pessoas. A força desse fenômeno é que a capacidade de colaboração tem
desencadeado uma infinidade de novas ferramentas, métodos e processos que permitem resultados de grande
impacto social, não somente inatingíveis, mas também inimagináveis.
Graças a essas novas conotações, “o comum” adquire um poder nunca antes alcançado, que engloba a vida
urbana, o acesso e a troca de informações e os modos de fazer, as formas de participação e autogestão cidadã, os
processos de decisão, o desenho e produção das cidades e promoção de práticas criativas, entre outros.
É dentro desse panorama que, com o tema Tecnopolíticas, o Congresso XXII da SIGraDI convidou pesquisadores a
uma profunda reflexão sobre a face colaborativa da tecnologia, por meio de seus trabalhos, seus projetos, suas
investigações, seus estudos e suas teorias, a fim de explorar plenamente o grande potencial de transformação
social do nosso tempo.
Pesquisadores de todo o mundo foram convidados a enviar trabalhos teóricos, práticos e experimentais,
resultantes de atividades de pesquisa, ensino e extensão, vinculados aos seguintes temas: Teorias e práticas do
design em contextos digitais, Morfogênese, síntese e análise da forma, Fabricação e construção digital,
Informação, modelos e simulações, Interfaces e dispositivos, Ensino, investigação e extensão em contextos digitais,
Indústrias criativas e práticas artísticas, Tecnologias digitais e sociedade, tudo sob a perspectiva da Tecnopolítica.
Os trabalhos apresentados no congresso mostraram como a Tecnopolítica pode ser tratada tanto de forma geral,
por meio de reflexões que abrangem o conceito de design em todas as suas escalas, quanto de forma específica,
por meio de projetos e experiências aplicadas a casos reais – além de mostrar ferramentas e plataformas
existentes ou em desenvolvimento – oferecendo, assim, um grande panorama que enriquece o debate sobre o
potencial e o impacto do design.
Após a conferência, foram selecionados 30 trabalhos considerados os mais representativos e expressivos sobre a
temática Tecnopolíticas, os quais já haviam sido submetidos a uma primeira validação pelo Comitê Científico
Internacional da SIGraDi. Os autores dos artigos foram convidados a participar de uma nova redação de seus
escritos, finalizando com um aprofundamento de suas obras dirigidas especialmente a este número da revista
GTP. Os novos trabalhos foram submetidos à revisão por pares e, ao final, foram escolhidos os 8 artigos, que estão
apresentados a seguir.
O primeiro artigo convida-nos a uma reflexão profunda sobre as mudanças geradas pela tecnologia no mundo da
criatividade, devido à capacidade de desenvolver e utilizar processos de trabalho colaborativos. No artigo “Open
design: compartilhamento e democratização nas práticas de projeto”, Camilo Simão de Lima e Bruno Massara
Rocha descrevem o open design como um conceito e fenômeno em relação a todas as áreas da criatividade,
englobando arte, arquitetura e design em geral e em todas as escalas. O trabalho convida ao debate sobre o seu
impacto nas práticas de design e suas consequências ou implicações socioculturais, lançando novos desafios que
vão além do design puro.
No artigo “Plataformas digitais de mobilidade urbana: tipos e modos de atuação”, Luísa da Cunha Teixeira e
Rodrigo Cury Paraizo falam sobre o uso de plataformas digitais relacionadas à mobilidade urbana. O trabalho visa
analisar um conjunto de plataformas existentes através de uma catalogação temática e do estudo das
potencialidades e limitações de cada uma. Oferecendo um compêndio, além de mostrar as próprias plataformas,
os autores convidam à reflexão sobre o desenvolvimento e a utilização dessas ferramentas e seu impacto na
sociedade.

3
Gestão & Tecnologia de Projetos
Com o texto “Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e velhos problemas”,
Vítor Domício de Meneses e Daniel Ribeiro Cardoso apresentam o uso de processos participativos para o
planejamento urbano e a resolução de problemas existentes relacionados às cidades e aos cidadãos, por meio do
desenvolvimento e da utilização da tecnologia como condição sine qua non para realizar tal participação. Com
especial enfoque nas tecnologias de informação e comunicação (TIC), os autores apresentam as oportunidades,
vantagens e potencialidades da sua implementação sob uma visão abrangente de pontos de vista, que abarcam
desde o humano a todas as fases de análise e implementação, tanto teóricas como práticas.
Com a apresentação do artigo “Adição gradual de informação sobre um patrimônio arquitetônico: produção de
modelos e de sentidos”, Adriane Borda Almeida da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart e
Bethina Harter Silva propõem a utilização do método AGI, adição gradual de informação. Esse é um método de
representação usado em um contexto de pesquisa arquitetônica em um laboratório de fabricação digital. O
objetivo do trabalho é a produção de maquetes táteis para apoiar ações culturais inclusivas relacionadas a um
conjunto arquitetônico de interesse histórico e patrimonial. Neste trabalho, a estruturação do método é descrita
em detalhes, com foco nas dinâmicas que relacionam ensino, pesquisa e extensão, contando com a produção de
alunos do primeiro ano de arquitetura e a validação dos modelos por pessoas com deficiência visual.
Com a obra “Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas digitais”, Caio Augusto Rabite
Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato César Ferreira Souza e Marcos Martins Borges demonstram a
necessidade de desenvolver novas ferramentas e recursos de modelagem e análise que permitam aos projetistas
urbanos compreender a importância das seleções de projeto relacionadas à cidade; com especial enfoque na
atribuição de serviços, densidades e transformações do tecido urbano, que tendem a facilitar a concepção de
habitats urbanos saudáveis que promovam a diversidade de atividades e a mobilidade. O artigo contempla a
complexidade da cidade e os fatores que a compõem. Os resultados buscam demonstrar como a aplicação de
ferramentas digitais pode permitir um entendimento da distribuição da vitalidade urbana, na qual possíveis
transformações locais podem se beneficiar, resultando em transformações sociais significativas.
No artigo “Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação
tecnológica e adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul”, Rodrigo Scheeren e David Moreno
Sperling apresentam uma taxonomia completa de projetos relacionados à aplicação de tecnologias de fabricação
digital em arquitetura, design e construção, desenvolvidas no contexto específico da América do Sul. O trabalho
aborda os temas de capacitação tecnológica, adaptação sociotécnica e inovação social. O objetivo geral é produzir
um compêndio das experiências e projetos identificados, a partir do estudo da história dos casos e de suas análises,
mostrando as implicações sociais e o impacto da transformação por eles gerada.
Com a obra “Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP”,
Ana Carolina C. Farias e Alexandra Paio apresentam um trabalho sobre as possibilidades de melhorar a organização
coletiva e a ação política através de meios de interação que permitam o desenvolvimento da participação cidadã
através da tecnologia digital. O artigo descreve o levantamento e análise de dispositivos tecnopolíticos criados na
modalidade bottom up, no âmbito do programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária (BIP / ZIP) do Município
de Lisboa. Além de permitir uma reflexão crítica sobre o papel da dimensão digital na articulação e ampliação da
participação nos territórios, entre entidades e comunidades associadas, o trabalho destaca a relevância do
desenho de um observatório capaz de monitorar o impacto do programa aplicado ao um contexto urbano.
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino e Julia Dutra, em “Habitação de pequeno porte generativa. A gramática da
forma como instrumento de projeto”, propõem a utilização de um sistema generativo de projeto constituído por
uma gramática da forma para a geração de projetos de habitação de interesse social customizadas. As autoras
desenvolveram este sistema para poder contornar os problemas relacionados com o processo de projeto e
construção de pequenos espaços que, devido à sua natureza de recursos econômicos escassos, costumam ser
negligenciados, ocasionando projetos inadequados às expectativas e aumento de custos. A partir disso, é proposto
um novo paradigma para o projeto e construção de habitações, com ampla possibilidade de aplicação em vários
contextos e escalas.
Por fim, desejamos às leitoras e aos leitores que este número da Revista Gestão & Tecnologia de Projetos possa
alimentar suas ideias e fomentar suas pesquisas futuras. Ainda, em nome do Comitê Executivo Internacional da
SIGraDi, agradecemos a todas autoras e a todos os autores que participaram com seus artigos e ao editor-chefe
Dr. Marcio Minto Fabricio por dar-nos a oportunidade de realizar esta colaboração.

Editores V15 | N3:


Dr. Frederico Braida, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
Dra. Daniela Frogheri, Universidad de Monterrey, México

4
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166815

OPEN DESIGN: COMPARTILHAMENTO E DEMOCRATIZAÇÃO NAS


PRÁTICAS DE PROJETO
OPEN DESIGN: SHARING AND DEMOCRATIZATION IN DESIGN PRACTICES

Camilo Simão de Lima1, Bruno Massara Rocha2

RESUMO:
O Open Design pode ser considerado uma concepção recente de trabalho decorrente de uma sociedade
amplamente informatizada, cuja crescente tendência do compartilhamento de informação e de ações 1Universidade de Lisboa
colaborativas vêm trazendo desafios e possibilidades para os processos criativos contemporâneos, 2Universidade Federal do
principalmente no que se refere à produção e distribuição de serviços de projeto. O objetivo deste artigo é
Espírito Santo
investigar os efeitos desta concepção de trabalho no campo de atuação de arquitetos e designers. Além
disso, iremos analisar como a noção de abertura que a elas se encontram nomeadamente atreladas vêm se
revelando na realidade projetual. Uma questão chave para conduzir esta investigação é: qual o real sentido e
aplicação do conceito de abertura seja no desenvolvimento dos projetos, na interação entre os envolvidos
ou na produção do conhecimento sobre o processo criativo como um todo? Este artigo realiza uma revisão
bibliográfica detalhada sobre o tema Open Design em autores como (Anderson, 2012), (Bauwens, 2005), (De
Masi, 2001), (Greenfield, 2017), (Lessig, 2005), (Schneider, 2017), (Stallman, 2015), (Von Hippel, 2005) e
sugere quatro abordagens possíveis para a abertura: disciplinar, cognitiva, econômica e produtiva.

PALAVRAS-CHAVE: open design; democratização; compartilhamento; projeto

ABSTRACT:

Open Design can be considered a recent work conception resulting from a broadly computerized society,
Fonte de Financiamento:
whose growing trend of collaborative actions and sharing information has brought new challenges and
Fundação de Amparo à
possibilities for contemporary creative processes, especially with regard to the production and distribution of
Pesquisa do Espírito Santo –
design services. The aim of this article is to investigate the effects of this recent work conception in the design
FAPES
process of architects and designers. We will also analyze how is the namely notion of openness in the reality
of projects. Key questions to conduct this investigation are: what is the real meaning and application of the
Conflito de Interesse:
concept of openness in the design process? How it affects the interaction between those involved? And how is
Declara não haver.
helps the production of knowledge about the creative process as a whole? This article performs a detailed
bibliographic review on the Open Design theme in authors such as (Anderson, 2012), (Bauwens, 2005), (De
Submetido em: 172/02/2020
Masi, 2001), (Greenfield, 2017), (Lessig, 2005), (Schneider, 2017 ), (Stallman, 2015), (Von Hippel, 2005) and
Aceito em: 08/07/2020
suggests four possible approaches to openness: disciplinary, cognitive, economic and productive

KEYWORDS: open design; democratization; sharing; design

How to cite this article:

LIMA, C. S.; ROCHA, B. M. Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas de projeto. Gestão &
Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.6-17, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166815
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

CONTEXTUALIZAÇÃO

Mudanças significativas no contexto produtivo e econômico da arquitetura e do design


contemporâneos podem ser identificadas e relacionadas à difusão e capilaridade dos sistemas
eletrônicos em múltiplos setores da atividade projetual. Em função das inovações trazidas
pelos meios digitais, as concepções de trabalho, a oferta de serviços e os produtos
desenvolvidos vêm se revelando substancialmente distintos do tradicional modelo industrial.
Significa dizer que, de forma diferente a uma produção industrializada racionalizada centrada
em bens materiais, consolida-se o setor terciário, marcado pela prestação de serviços
customizados e pela produção de bens imateriais e informações. O setor terciário opera sob
forte demanda de diversificação de produtos e serviços, exigindo novos posicionamentos
quanto aos modos de se criar, pensar, representar, construir e comercializar a arquitetura e o
design. Domenico De Masi (2001) define a conjunção dessas novas concepções de trabalho
como parte de um corte epistemológico, isto é, uma nova potência organizacional e criativa
cujo formato remete a um sistema aberto e flexível. Essa organização sistêmica define o que o
autor considera ser uma ecologia organizacional composta por inúmeros posicionamentos,
estratégias e abordagens, que abarca, dentre elas, o Open Design.
O Open Design é uma estratégia de trabalho que está intimamente relacionada aos processos
criativos colaborativos e compartilhados impulsionados pelo digital e que tem como uma de
suas características fundamentais a aproximação entre o produto e o usuário final, tendo em
vista maior horizontalidade na oferta dos serviços de criação e produção do projeto. O termo
Open Design é derivado da conjunção entre a palavra design (cuja conotação atende à
definição do ato projetual), associado às práticas Open Source (Código Aberto – termo
originalmente usado para identificar programas de computador cujos códigos podem ser
utilizados, alterados e redistribuídos). A emergência do Open Design enquanto estratégia de
trabalho tem relação direta com a democratização do acesso à informação proporcionada
pelo surgimento da internet na década de 1990. Em paralelo com o progressivo ganho de
fluidez e complexidade das redes eletrônicas, o surgimento e popularização dos
equipamentos de fabricação digital foram determinantes para o amadurecimento do Open
Design no contexto de arquitetos e designers.
Embora este cenário de abertura venha se consolidando como estratégia de trabalho nos
últimos anos, resta saber se a democratização do acesso às informações vem acompanhada
de uma democratização do acesso à prática projetual incluindo saberes, serviços e produtos.
Muito tem sido questionado se os recursos tecnológicos atuais oferecem um repertório de
aplicações criativas e inovadoras que permitam superar processos tradicionalmente fechados
e centralizados pelo controle do projetista-criador ou pelas regras do mercado. É preciso
avaliar se novas condições que têm sido criadas para se compartilhar informações por meio
dos sistemas digitais interativos geram sociedades mais integradas, acessíveis e democráticas
em termos de produção e troca de conhecimentos e acesso a bens e serviços de arquiterura e
design. Nesse sentido, cabe analisar o alcance da abertura promulgada pelas estratégias Open
Design e definir em que contexto e condições elas se instalam.
Este artigo tem como objetivo oferecer uma delimitação conceitual para o Open Design e
identificar abordagens que nos permitam entender suas potencialidades e limitações no
contexto projetual. Acima de tudo, pretende-se com este trabalho contribuir para ampliar o
debate sobre o Open Design, sugerindo uma sistematização do conceito de abertura a partir
de quatro recortes, a saber: cognitivo, disciplinar, econômico e produtivo.
Os procedimentos metodológicos se basearam em uma pesquisa bibliográfica de caráter
qualitativo orientada em explorar, descrever e explicar o Open Design, demonstrando sua
evolução por meio de uma breve genealogia e confrontando os olhares de autores

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha

referenciais como John Thackara (2011), Richard Stallman (2015), Lawrence Lessig (2005),
Michael Bauwens (2005), Chris Anderson (2012), Nigel Cross (2011), Adam Greenfield
(2017), dentre outros.

BREVE GENEALOGIA DA ABERTURA: DO OPEN SOURCE AO OPEN DESIGN

Um dos caminhos iniciais para compreender o conceito de abertura no universo digital é a


análise do sistema operacional GNU Unix idealizado nos anos 80 por Stallman (2015). Esse
projeto surgiu como uma alternativa para o mercado de softwares privados e a
proprietização dos códigos-fonte, desdobrando-se posteriormente na General Public License
(Licença Pública Geral). Em continuidade a esse projeto, o engenheiro de software Linus
Torvalds desenvolveu em 1991 a plataforma Linux, sistema que popularizou a abertura dos
códigos e ampliou significativamente o número de usuários dedicados ao desenvolvimento
compartilhado de um sistema operacional gratuito. O código aberto (opensource) pode ser
fundamentalmente definido como:
uma abordagem para o desenvolvimento de software e propriedade
intelectual em que o código do programa está disponível para todos os
participantes e pode ser modificado por qualquer um deles. Essas
modificações são então distribuídas de volta à comunidade de
desenvolvedores que trabalham com o software. Nessa metodologia, o
licenciamento serve principalmente para divulgar as identidades de todos
os participantes, documentando o desenvolvimento do código e os
originadores de mudanças, aprimoramentos e derivativos (Warger, 2002,
p.18).

O código aberto vem ampliando seu alcance nos regimes de trabalho atuais e instalando-se de
forma definitiva no cotidiano de toda uma comunidade de desenvolvedores e programadores
de diferentes áreas. Historicamente, a ampliação excessiva do contingente de iniciativas ditas
abertas por parte de diferentes setores, especialmente os corporativos, fez com que uma
parte desta comunidade de desenvolvedores, liderada por Eric Raymond, cunhasse a
proposta free software que enfatizava não apenas a abertura das práticas de programação
mas, principalmente, a liberdade como princípio fundamental. A despeito da existência de
ambas denominações, opensource e free software, Stallman (2015) entende que elas são
referentes a um mesmo movimento tecnopolítico.
Com a evolução das práticas e discursos orientados pela noção de abertura no contexto das
redes digitais, dois posicionamentos tecnopolíticos fundamentais se manifestaram: um deles
de origem conceitual, como é o caso de Erik Raymond, e outro de base operacional que, nos
termos de Lakhani & Von Hippel (2003), emerge em função dos benefícios que a ajuda
coletiva oferece para a consolidação de um projeto de exigente complexidade. Seja no campo
da produção de conhecimentos ou na produção de sistemas, o conceito de abertura foi sendo
incorporado pelos mais diferentes campos, dando origem a iniciativas como: Open Data, Open
Science, Open Education e Open University. Diante da necessidade de consolidar os valores
de abertura no cenário político-cultural, a organização sem fins lucrativos Open Knowledge
Foundation, sediada no Reino Unido, definiu que:
o conhecimento aberto se refere a qualquer conteúdo, informação ou dado
que as pessoas estejam livre para usar, re-utilizar e redistribuir sem
nenhuma restrição legal, tecnológica ou social (OPEN..., 2015).

Avital (2011) considera que o conceito de abertura evoluiu com o tempo e se cristalizou em
três arquétipos: a) Inovação Aberta (Open Innovation), b) Código Aberto (Open Source) e c)
Design Aberto (Open Design). O primeiro arquétipo, da inovação aberta, se articula à criação
e disponibilizaçaão de iniciativas e projetos; o segundo está orientado para sua modelagem

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

imaterial por meio de dados e informações; e o terceiro para sua materialização via processos
de fabricação digital. Há um horizonte para que a abertura nos processos de fabricação digital
da arquitetura possam se desdobrar em algo configurável, extensível e que possa ser gerado a
partir de modelos comerciais distribuíveis e escalonáveis, fora das prateleiras, em meios de
produção multiuso (Avital , 2011).
Grosso modo, o Open Design pode ser visto como a vertente da abertura dos códigos de
informação no contexto de projeto de arquitetura, design, artes e práticas afins. O conceito
apareceu pela primeira vez na literatura acadêmica no final do século XX, momento em que a
Open Design Foundation se posicionou politicamente e formalmente favorável aos projetos
cujos criadores permitissem a distribuição e documentação gratuitas, bem como
modificações e derivações. A pesquisadora Heloisa Neves (2014), membro do grupo de
discussão Open Design Definition da plataforma GitHub, afirma que para uma abertura plena,
o projeto deve disponibilizar sua documentação completa via atribuição de licenças para
modificar, distribuir, fabricar, prototipar e comercializar. Há uma clara aproximação com os
princípios do código aberto, incluindo-se a produção material que, por si só, responde por
uma nova e complexa etapa no projeto. Apesar disso, são ínumeras as questões que devem
ser averiguadas e distinguidas dentro da complexa rede de possibilidades de reflexão e ação
presentes no Open Design. Ao nosso ver, é essencial considerar uma abordagem que leva em
conta os efeitos do compartilhamento de informações nas relações de trabalho e na produção
democrática de conhecimentos, tendo como recorte principal o contexto dos bens e serviços
de arquitetura e design.

O COMPARTILHAMENTO E SEUS ELOS COM O CONHECIMENTO E A


DEMOCRACIA

A possibilidade da livre circulação de conteúdos e informações em redes digitais associada ao


modo coletivizado como nos comportamos seguem trazendo alterações profundas na
maneira como administramos nossas ações e nosso tempo dedicados ao trabalho, ao lazer e à
interação social. O que se percebe é uma sobreposição crescente das atividades cotidianas em
temporalidades híbridas sustentadas por suportes e plataformas digitais. As relações de
trabalho vêm se tornando progressivamente mais flexíveis (CASTELLS, 1999) e mais
articuladas em comportamentos abertos que se refletem em processos sob demanda (just in
time, just in place), fragmentação das jornadas, terceirização de serviços e, em especial, a
livre apropriação de dados. Nesse contexto de livre circulação e troca de informações, o
modelo peer-to-peer (BAUWENS, 2005) teve papel determinante para definir a dinâmica das
relações na Web 2.0 e fomentar o surgimento do arcabouço teórico que busca organizar este
regime livre de circulação de conteúdos e bens comuns. A ascensão dos bens comuns
compartilhados criou as bases para uma nova economia (DE MASI, 2011), distinta das
práticas tradicionais de mercado baseada em produtos industrializados e mais em acordo
com a flexibilização dos processos na sociedade digital interconectada e hibridizada (HIPPEL,
2005).
Benkler (2006) acredita que a emergência de uma nova economia baseada na livre
comunicação telemática reflete o relativo ganho de autonomia por parte da sociedade e seu
desejo, pelo menos em parte dela, por um maior envolvimento com os processos que dão
origem aos produtos que elas necessitam. Elas têm em mãos os instrumentos necessários
para buscar e computar dados, alterar conteúdos, aprender e distribuir conhecimentos sobre
os processos que, segundo o autor, fazem com que o regime do capital ganhe uma nova
camada de valor: a cognitiva. Fato é que não é a primeira vez que há um envolvimento da
sociedade com o compartilhamento de conteúdo e conhecimento, embora estejamos numa

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha

fase de sua aceleração ao ponto de redefinir valores, oportunidades, plataformas e modos de


interação com incontestáveis efeitos econômicos.
São inúmeras as alterações que o compartilhamento digital de conteúdos traz para os
domínios do conhecimento e das relações econômicas. John Thackara (2011) enxerga de
forma positiva estas mudanças e menciona o enorme potencial que o sistema peer-to-peer
tem para a regeneração das economias locais. Ao mesmo tempo faz ressalvas quanto ao tipo
de dados e informações que expõem usuários, e ao mercado de fake news. Dentre as
contribuições, o autor destaca: a importante capacidade de integração sistêmica entre
pessoas, lugares, informações; o investimento em atividades criativas e de maior valor
agregado em polos de inovação; o fortalecimento dos elos entre pessoas e empresas como
forma de resiliência e integração em tempos de crise. Para Lessig (2005) a internet tem papel
determinante na constituição da cultura contemporânea. Se por um lado ela permitiu a
criação e a produção de informações em massa, por outro ela também deu origem a um
mercado de dados digitais que nos mapeiam e impõem novos problemas no modo como
decidimos construir e gerir nossa própria cultura. Com o crescimento destas práticas de
captura de dados, que trabalham no sentido de favorecer grandes corporações, gigantes de
mídia, instituições privadas, Lessig (2005) reforça a necessidade de lutar pelo crescimento e
evolução de um sistema de relações e trocas mais livres, mais abertos e baratos, que favoreça
a democratização do acesso. O autor conclui afirmando que o desafio central do século XXI é
configurá-lo um século de trocas, com repertórios legais e instrumentais que deixem claro o
funcionamento dos recursos e instrumentos existentes para que usuários se sintam à vontade
para escolher a maneira como querem criar, produzir e comercializar.
O movimento software livre reconhece que o compartilhamento de descobertas e soluções
fortalecem uma corrente de inovações destinadas ao bem comum e que a contribuição de
agora retornará no futuro sob a forma de um novo e melhorado sistema. Acima de tudo, nota-
se uma associação entre o compartilhamento e a produção de conhecimento, um movimento
contínuo de trocas entre o fazer e o aprendizado. Os resultados são de uma ordem de
atribuição de valor que não se encontram no produto em si, mas na inteligência dos serviços
que ele permite conduzir e na produção do conhecimento que ele gera.
Segundo Malini (2009), o conhecimento é o bem primordial no regime contemporâneo das
trocas digitais. A partir da circulação de saberes e da socialização do conhecimento vemos
emergir um novo regime de valores e trocas ao qual o autor denomina capitalismo cognitivo.
O capitalismo cognitivo está estruturado por uma rede de informações compartilhadas cuja
assimilação por parte de toda a comunidade de usuários produz uma inteligência coletiva
descentralizada que avalia a contribuição de cada dado compartilhado e sua aplicabilidade
nos projetos em desenvolvimento. Quanto maior e mais relevante for o impacto das
informações compartilhadas, maior será sua reprodutibilidade e consequentemente seu
reconhecimento por parte da comunidade de usuários. O que chama atenção neste processo
são as motivações existentes por trás de uma economia de trocas que não se desdobra
diretamente em lucro financeiro. Uma forma de entender tais motivações é considerar as
reflexões de Bowens (2005) quando argumenta que o modo de produção em pares (P2P) de
fato não se estrutura em um modelo de mercado tradicional baseado no lucro financeiro
tampouco em uma produção pública desenvolvida pelo Estado. Segundo o autor, trata-se de
um tipo de produção orientada pelo valor de uso (conhecimento) e não de troca (capital).
Parte do princípio da cooperação entre a comunidade envolvida que administra de forma
autônoma o conteúdo disponibilizado cabendo a ela avaliar e qualificar as contribuições.
Bauwens (2005) define a horizontalidade do processo de disponibilização das informações
como holoptismo, em contraponto ao conceito de panoptismo elaborado por Foucault, cujo
significado faz referência à centralidade do poder e ao controle de suas ramificações. Nesta
concepção do “olho que tudo vê” uma pequena parcela do sistema tem poder de vigilância e
decisão sobre todas as outras derivações. Por outro lado, na concepção holóptica, todos os
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

envolvidos do sistema têm possibilidade de visualizar e acompanhar as ações e reflexões dos


demais e programar sua atuação sobre e a partir do que é produzido em comum. Se não há
uma remuneração diretamente envolvida nas trocas realizadas, o sentido da prática tem
motivações de ordem principalmente cognitiva bem como tecnopolítica, alimentada em
grande medida pelo desconforto com a postura panóptica imposta aos regimes de
propriedades. A concepção holóptica, baseada no modelo voluntário cooperativo, adota a
postura afim aos bens comuns compartilhados, sugerindo novos modos de exercício
democrático.
O tema dos processos cooperativos e compartilhados exige atenção naquilo que diz respeito
aos direitos de propriedade intelectual privada representados pelo copyright. Lessig (2005)
afirma haver um desequilíbrio entre a forma como o copyright é aplicado e o modelo
compartilhado de trabalho sugestivamente denominado copyleft. A rigidez nos pedidos de
permissão para utilização, reprodução e divulgação do copyright são incompatíveis com a
tendência que se forma no âmbito das práticas projetuais de acessar, baixar, editar e
reproduzir conteúdos, enrijecendo o campo de novas oportunidades criativas e inventivas
baseadas no bem comum.
Para Negri (2005), sugerir propriedades comuns é uma forma de resistência biopolítica ao
que alerta ser uma forma de sequestro criativo por parte capital e de produções
exclusivamente privadas que nascem no âmbito de uma sociedade baseada nas trocas. O
conceito de bens comuns, associado à liberdade sobre o direito de propriedade, é central para
sustentar movimentos e discursos que, de modos particulares, se posicionam contra a
hegemonia financeiro-liberal global. Ele encontra nos fundamentos do Open Design uma de
suas manifestações mais relevantes no início do século XX.
Filho & Cruz (2019) sintetizam o comum como um conjunto de prática geridas pelo
compartilhamento e reciprocidade de bens, espaços e produtos, para além do âmbito do
Estado e do mercado e das formas de propriedade públicas e privadas. Dentre muitas
acepções do termo, o Open Design epistemologicamente se encontra no que os autores
definem como comum artificial, ou seja, um conjunto de produções cognitivas, trabalhos
intelectuais, em grande parte resultantes da interação social e cultural. Apoiados na visão de
Michael Hardt e Antonio Negri, os autores destacam os posicionamentos políticos que se
encontram associados a estas produções: o comum como um princípio de ação contra a nova
razão neoliberal que não se restringe a um regime econômico mas um modelo de competição
de mercado engendrado em todas as esferas da nossa vida.
Apesar do discurso do comum já estar em circulação em diferentes áreas do conhecimento,
no contexto do Open Design ainda existem muitas limitações para sua efetiva consolidação
que são apontadas por Atkinson (2011) e De Mul (2011). Dentre elas, a abertura dos direitos
de propriedade de inúmeras produções existentes necessárias para a evolução do
conhecimento projetual como é o caso dos softwares CAD/CAM. Além disso, há necessidade
de alteração do paradigma idealizado do arquiteto como profissional de criação engenhoso,
mas solitário, imerso em suas elucubrações privadas, a ponto de desassociar sua produção de
diversos eventos da realidade do mundo incluindo os usuários, o lugar e os recursos
financeiros.
Em termos práticos, a gestão democrática do Open Design foi objeto de trabalho e estudo de
Lessig na Stanford University, resultando na criação da organização sem fins lucrativos
denominada Creative Commons (CC). Seu objetivo foi elaborar diferentes tipos de licenças de
utilização do trabalho material e intelectual dos criadores ao redor do mundo de modo a
agenciar com clareza qual tipo de concessão, direitos e deveres dos usuários estão atrelados a
cada uma destas produções. A mais ampla de todas é a licença de atribuição, que permite
distribuir, exibir, copiar e realizar trabalhos derivativos de uma determinada obra, desde que
10
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha

a autoria original esteja sempre junto a ela ou a suas derivações. Há ainda licenças não-
comerciais, licenças de compartilhamento de obras derivadas sob a mesma condição e
licenças sem derivação, que permitem apenas a exibição, reprodução e distribuição. Tais
licenças visam a identificação das produções de modo seguro e variável, deixando a cargo do
criador a atribuição do modo de compartilhamento mais adequado à sua obra. Para Lessig
(2005) a atribuição de licenças Creative Commons é uma garantia de liberdade democrática e
politicamente expressa um ideal de superação da dicotomia proprietária “todos” versus
“nenhum”. A importância política do Creative Commons é evitar que o próprio sistema de
propriedade capture as produções abertas redirecionando-as novamente ao campo
mercantil. Malini (2007) adverte que, sem uma proteção como a que se propõe realizar a CC,
os princípios do comum caminhariam para a tragédia e correriam o risco de ter seu
excedente mantido sob a tutela do capital. A regulação jurídica tem efeito complementar à
produção em pares e garante liberdade e segurança para a publicização das produções,
fortalecendo o processo democrático e combatendo possíveis tentativas de atuação do capital
sobre a construção coletiva. Podemos reconhecer claramente uma intenção política na
garantia da liberdade do movimento copyleft que não se coloca em posição de competição
com o copyright, mas de uma complementação tática necessária para criar condições para a
evolução de uma cultura livre e aberta.

A ABORDAGEM DO OPEN DESIGN SEGUNDO QUATRO NÍVEIS DE ABERTURA

No momento em que se faz visível a complexidade de alterações nas relações humanas


advindas do compartilhamento ampliado de conteúdos, surge uma demanda por um
entendimento mais contextualizado dos seus efeitos no campo da arquitetura e do design. Os
desdobramentos tecnopolíticos, comportamentais, legais e operacionais da abertura de dados
vêm exercendo papel decisivo na produção de conhecimento sobre projeto e
desenvolvimento de produtos. Nesta seção trazemos uma interpretação qualitativa e
sistematizada do processo de abertura que toca em quatro níveis específicos de ação do Open
Design: disciplinar, cognitivo, econômico e produtivo. O objetivo é propor apontamentos
estruturados que fazem distinção a determinados níveis de ação identificados na revisão
bibliográfica. Os quatro níveis de ação são resultantes desta interpretação e se colocam como
abordagens distintas e autônomas dedicadas a um tema específico.

ABERTURA DISCIPLINAR

A abertura disciplinar tem relação direta com a produção de conhecimento de projeto. Seu
teor transgressivo e tecnopolítico em defesa da liberdade de apropriação de informações deu
origem ao Open Design Manifesto publicado em 2011, que considerava a abertura:
uma escolha, não uma predefinição. Caso fosse uma predefinição, não
haveria necessidade de instruções, ideológicas ou não. Esforços
ideológicos necessitam regras, códigos de conduta, manuais, por vezes
excessivamente dogmáticos (KADUSHIN, 2010).

Alimentada por um forte ímpeto de experimentação e criação de ideias, a abertura disciplinar


pode ser entendida como a que reconhe e incentiva posturas projetuais de natureza livre,
intuitiva, pública e por que não amadora. Neste caso, a postura amadora não é sinônimo de
falta de qualidade, mas o ímpeto para se buscar meios necessários para se obter um resultado
prático. As fronteiras entre o formal e o informal se borram na abertura disciplinar. Isso
significa que ela contempla procedimentos de origem não acadêmica e profissional, ou
produções resultantes de inúmeras formas e fontes “não autorizadas” de exercício criativo. O
conhecimento mutualizado, sobre o qual se apoia a visão de Giddens (1996), auxilia no

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

entendimento desta informalidade, como uma espécie de conhecimento de base,


configurativo, resultado do enfrentamento dialógico de fatos em aberto e em constante
processo de experimentação e atualização.
O que se entende como mutualização do informal é o processo de combinação de repertórios
disponíveis, ou o que Bourriaud (2009) define como uma prática do híbrido. O exercício
democrático da abertura disciplinar está atrelado à própria liberdade para errar. Num
processo de projeto o erro é necessário, principalmente nas etapas mais fundamentais de
desenvolvimento da ideia, momento em que se requer um conhecimento divergente (JONES,
1992), exploratório e apto a correr riscos. Reflexos desse conhecimento encontram-se no
movimento maker e no agenciamento do do-it-yourself ou do-it-with-others. O movimento
também opera no contexto amador, rústico, informal, fortemente atrelado às soluções
originais e experimentais. Em um cenário de abertura disciplinar valemo-nos do pensamento
de Anderson (2012) que afirma que a grande transformação que vem ocorrendo na sociedade
não está na forma como as coisas estão sendo feitas, mas sim em que as estão fazendo.
Portanto, a abertura disciplinar reconhece que caminhos importantes para a produção do
conhecimento não dependem de categorias acadêmicas necessariamente. Acima destas
categorias encontra-se o inventor, o artífice, que ora se revela como programador, arquiteto,
designer ou cientista.

ABERTURA COGNITIVA
A abertura cognitiva está diretamente relacionada com a disciplinar, embora ela se faça
presente na forma como a liberdade de trânsito entre categorias formais e disciplinares
produz uma nova forma de aprendizado calcado no coletivo. Se na abertura disciplinar
qualquer um pode fazer, na cognitiva qualquer um pode aprender. A descompartimentação
dos conhecimentos não elimina sua importância, mas redefine sua forma de criação por meio
de redes digitais dinâmicas de troca. Essa abertura para o aprendizado via redes digitais
coletivas já foi prevista por Lévy (1998) sob a terminologia ecologia cognitiva. Nos termos do
autor, a formação dessa ecologia é fluida, dinâmica e distribuída, e define uma condição plural
de difusão de saberes gerenciada por singularidades associadas. Nos processos projetuais
atuais, muitas das respostas, referências, blocos, especificações, componentes necessários
para o desenvolvimento de um projeto estão acessíveis digitalmente. Não é raro encontrar
pessoas de formações diversas desenvolvendo trajetórias de aprendizado de projeto
individualizadas e integralmente mediadas por redes digitais. As temáticas são variadas, e
capazes de atingir um nível de competência surpreendentemente viável.
Um desdobramento visível é a proliferação de canais de aprendizado digital dedicados a um
público interessado em projetos, desenvolvimento de produtos, autoconstrução, reformas,
organização, cultivo de plantas, de forma totalmente autônoma. Esse tipo de aprendizado tem
alcance limitado, mas atende plenamente problemas de menor complexidade, como é o caso
da redução de custos que será abordada na abertura do nível econômico.
Os trabalhos realizados por Thomaz Lommée, Ronen Kadushin, Santiago Cirugeda e Jens
Dyvik, embora tenham objetivos distintos, são exemplos importantes de serem mencionados
em função da abertura dos projetos ao envolvimento cognitivo das pessoas. No projeto Open
Structures este envolvimento é proposto por meio da disponibilização de informações legais,
técnicas e administrativas sobre como construir ou desenvolver um projeto, incluindo
especificações gerais, orientações, mecanismos de busca, bancos de dados de produtos, redes
de contato, etc. Em um suporte digital de fácil acesso, Thomas Lommée disponibiliza um
conjunto de componentes modulares, conectores, juntas e adaptadores que podem ser
utilizados na restauração de móveis e equipamentos domésticos. Os componentes respeitam
um sistema métrico unificado no formato de um grid de pontos e linhas de referência de

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha

modo a padronizar os encaixes e as combinações entre as peças. Lommée vislumbra uma


condição de plena autonomia dos usuários em ter o controle sobre o processo criativo e
construtivo. Sua proposta caminha em paralelo com a noção de autores como Rocha (2015),
Cross (2011), Papanek (2009), de que o conhecimento projetual é intrínseco a qualquer ser
humano, assim como a habilidade para criar, transformar, adaptar e improvisar.

ABERTURA ECONÔMICA

Conforme visto anteriormente, há um processo de flexibilização das relações de trabalho que


está relacionada à abertura econômica instaurada pelos sistemas digitais e pelo
compartilhamento de dados. Esta nova economia descrita pelos autores De Masi (2011),
Benkler (2006) e Bauwens (2005) não é alheia ao fato de que ao comprarmos um objeto ou
serviço estamos indiretamente pagando frações de valores distribuídos em toda sua cadeia
produtiva que inclui logística, impostos, pagamento de funcionários, manutenção de
maquinário, juros de bancos, taxas de administração etc. No contexto projetual essa rede
produtiva tradicional também se aplica. Entretanto, novas iniciativa de disponibilização de
pacotes de informação de projeto podem ser identificadas e consideradas reações de
abertura a esta estrutura produtiva. Baseando-se na fabricação digital localizada,
personalizada e mais barata, estas informações incluem modelos gratuitos de peças e
encaixes, bibliotecas para programação, templates de modelos 3d, plataformas online de
criação e configuração de objetos, roteiros de execução de projetos, blocos de equipamentos,
tabelas de orçamentos, arquivos no formato STL para impressão 3d, etc. A abertura
econômica está apoiada na possibilidade de apropriação de dados digitais licenciados sem a
necessidade de pagamento de custos indiretos. No entanto, a abertura econômica traz a
demanda por maior disponibilidade de tempo e dedicação por parte dos usuários para a
produção do projeto. Grande parte destes dados encontram-se em repositórios digitais como
Thingiverse, Instructables, GitHub cujas interfaces se estruturam como verdadeiras redes
sociais de inventores de garagem. Hippel (2005) nos lembra que usuários e pequenos
fabricantes tendem a construir seus protótipos com significativa economia modificando
produtos disponíveis no mercado, adaptando-os a um novo propósito. Em termos
econômicos, cabe ainda retomar a discussão anterior acerca do capitalismo cognitivo cuja
forma de produção é essencialmente imaterial. A abertura econômica ocorre no momento em
que a proliferação de formas de cooperação social produtiva gera uma forma de trabalho que
independe dos meios de produção material e foca na produção do saber (Cocco et al, 2009).
Isso significa uma migração do valor do produto em si para o valor das informações que
podem nos levar a produzir autonomamente a solução que o produto busca resolver. Quanto
maior a diversidade, a credibilidade e a rapidez de acesso a informações que um usuário pode
oferecer, maior a relevância e, consequentemente, o valor do seu trabalho imaterial.

ABERTURA PRODUTIVA

Uma última interpretação das aberturas oferecidas pelo Open Design tem teor operativo e
está diretamente ligada à revolução da robótica e dos mecanismos de fabricação digital. As
máquinas de fabricação digital podem ser consideradas a espinha dorsal do Open Design e
seu elemento de diferenciação produtiva frente às outras áreas da construção e da indústria.
A abertura produtiva tem como principal manifestação física as fábricas robotizadas de
pequeno porte e alta complexidade. Os recursos de fabricação digital tornaram realidade um
conceito postulado pelo ciberneticista John von Newman em 1966: o do construtor universal.
A máquina idealizada pelo matemático húngaro se manteve no universo das possibilidades
até poucas décadas atrás. Ela foi concebida a partir da aplicação da teoria dos sistemas no
contexto operacional do setor produtivo e teria a capacidade de extrair os recursos naturais,
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

processá-los, organizá-los de acordo com uma necessidade específica e produzi-los


autonomamente. Além disso, uma das características mais marcantes do construtor universal
seria a capacidade de realizar inúmeras cópias de si mesmo. Greenfield (2018) explica que a
máquina idealizada por Neumann inspirou inúmeros cientistas, dentre eles Adrian Bowyer,
engenheiro e professor da Universidade de Leeds. Bowyer foi responsável por desenvolver a
primeira máquina replicante (RepRap), de escala reduzida, baseada na técnica da impressão
3d e apta a imprimir grande parte de seus próprios componentes. A RepRap é um projeto de
código aberto que acompanhou até os dias atuais a queda dos custos de produção, o aumento
do interesse, o crescimento do conhecimento sobre os processos por impressão 3d e atinge
atualmente um status de elemento potencialmente transformador de todo o sistema
econômico, produtivo e cultural (Greenfield, 2018). Ainda assim, muitos são os desafios a
serem enfrentados pela abertura produtiva: como lidar com a escassez de recursos naturais
para construção? Como associar robotização e mão-de-obra nos países em desenvolvimento?
Como aproximar a produção das fontes de matéria-prima? Qual a morfologia e metodologia
mais adequada a cada máquina?
Greenfield (2018) alerta que os atuais recursos de fabricação digital ainda estão restritos a
nichos específicos, apresentam custo comparativamente alto e se concentram nos locais que
menos precisam deles. Ademais, o processo de prototipagem gera uma quantidade
considerável de lixo seja ele residual dos processos subtrativos, como o corte a laser ou CNC,
ou derivados de suportes nos processos aditivos, como a impressão 3d.
As fábricas de pequeno porte têm papel fundamental para ampliar as possibilidades de
crescimento do Open Design na prática projetual. Hippel (2005) explica que estes espaços-
fábricas-laboratórios conectam redes de interesse comum e territorializam um processo mais
amplo de democratização da inovação. No entanto, o acesso a uma realidade plenamente
democrática passa pela redução expressiva dos preços dos insumos, equipamentos e
ferramentas, pela força política em defender a manutenção das licenças Creative Commons
para hardware e software, e pelo investimento em conhecimento processual e operacional
localizado e contextualizado.

ANÁLISES E DIRECIONAMENTOS FINAIS

Após extensa verificação de fontes de referência, ratificamos o entendimento do Open Design


enquanto uma concepção de trabalho extremamente complexa, fluida e configurada pela
superposição de muitos atores e muitas técnicas. Sendo complexa, ela tende a se reconfigurar
ao longo do tempo, e evoluir. Para o presente momento, os pontos principais que gostaríamos
de destacar para direcionar futuras reflexões sobre o Open Design são: o seu significado
dinâmico que dá margem para mal-entendidos e concepções pouco aprofundadas; a sua
importância como instrumento de ação tecnopolítica; e as diferentes escalas de sua
integração com os processos de projeto dentre os quais incluindo-se o urbanismo.
Em termos gerais foi verificado que o Open Design é uma concepção de trabalho ampla, mas
que pode ser entendida como uma interação estratégica de indivíduos que, motivados pela
herança do movimento código aberto, têm investido tempo e esforços no compartilhamento
de informações, na personalização de produtos e serviços e na fabricação autônoma. No
entanto, cabe alertar que o uso do termo Open Design pode se apresentar controverso em
setores, por exemplo, de forte orientação comercial. Podem ser encontradas interpretações
que o associam a uma espécie de metodologia empresarial, ou um ramo específico de
negócios, e até mesmo como uma estratégia de branding. No entanto, considerando as
origens do movimento tal qual foram apresentadas aqui e levando em conta seus principais
conceitos de referência, nos parece claro que estas visões excessivamente mercantis

14
Gestão & Tecnologia de Projetos
Camilo Simão de Lima, Bruno Massara Rocha

distorcem o sentido do movimento. Temos clareza de que o Open Design não pode ser
vinculado a uma única definição bem como não convém estar associado a uma metodologia
específica. Além disso, autores como Lima & Rocha (2018) e Lima (2018) nos mostram que o
Open Design pode se fazer presente simplesmente em uma escolha, uma opção pessoal, que
poderíamos considerar como tecnopolítica no sentido de que respeita determinados
procedimentos democráticos no uso dos recursos sociotécnicos. Nos parece importante
ressaltar que há muitas formas de se “abrir” um projeto e muitas estratégias para
desenvolver conteúdos compartilhados. O que buscamos fazer neste artigo é pavimentar
caminhos de interpretação que tornem mais claro aos arquitetos “o que está aberto”, “por que
isso é importante” e “como podemos aplicar em nossos projetos”.
Mesmo compreendendo que a evolução do conceito de abertura sempre esteve de alguma
maneira atrelada ao movimento Open Source, existem distinções importantes quando
tratamos do Open Design no âmbito da arquitetura. A materialidade da arquitetura envolve,
invariavelmente, custos na produção, na fabricação, na mão-de-obra e na manutenção, e esse
é um aspecto importante em termos de complexidade na sua aplicação em projetos desta
natureza. Edifícios são radicalmente diferentes dos softwares quando olhados sob a ótica de
sua realidade tangível e isso incorre em uma distinção primal do tempo e forma como a
abertura atua no campo arquitetural.
Há também muitas escalas de aplicação do Open Design. Ele pode transitar desde pequenos
objetos de design, equipamentos de uso cotidiano, projetos de arquitetura ou mesmo
propostas de urbanismo. Em cada uma delas existem inúmeras particularidades. Quando se
compra um mobiliário hoje em dia em lojas especializadas, ele geralmente encontra-se
desmontado e armazenado fora da cidade e chega até o local solicitado através de uma
transportadora, para que seja então montado e instalado por mão-de-obra especializada ou
pelo próprio comprador. Numa ótica de abertura do processo produtivo, seria mais desejável
que as próprias pudessem ser auxiliadas a projetar seus próprios móveis e os produzissem
em pequenas fábricas localizadas próximas às suas casas. Haveria assim uma redução
potencial do custo de armazenamento, de transporte, além de um ganho de valor de uso em
função da sua personalização.
Em termos urbanos, é de extrema importância que o poder público comece a repensar nossas
cidades como entidades compartilhadas, pertencentes a todos, fomentando novas formas de
experienciá-las e usá-las. É necessária a retomada da cidade como um bem comum que,
mesmo estando globalmente conectada, seja localmente produtiva. O governo Catalão vem
adotando desde 2016 esse tipo de abordagem por meio da iniciativa CatLabs (Laboratórios
Catalães), uma tentativa de inserção dos cidadãos em uma rede de reflexão e ação urbana
organizada como um modelo de cidade laboratório. Esse tentativa de criar um ecossistema
urbano laboratorial é parte integrante de um processo de renovação democrática que
entende a participação dos cidadãos como algo que deva ir além da participação em
audiências públicas e eleição de representantes. Para o governo catalão, o poder de “co-criar
e co-construir a cidade” é indispensável para a sua retomada enquanto lugar da democracia.
Para que isso ocorra, há uma necessidade de transferência de parte da responsabilidade de
decisão para os usuários-cidadãos, e isso demanda um amplo repertório de interfaces
acessíveis, adaptadas à linguagem popular, fáceis de usar e de consultar. Schneider (2017)
alerta que muitas plataformas ditas abertas ainda são desenvolvidas com enormes limitações
de interface, tornando-as assíncronas em termos de troca de informações entre usuários e
entidades envolvidas. Ainda há uma deficiência na maneira como as plataformas permitem a
colaboração simultânea entre usuários, de forma a permitir que a troca de conhecimentos e
ideias ocorra em tempo real. Isso faz com que, em muitas situações, seja limitada a
participação dos usuários no desenvolvimento real do processo, manifestando-se um claro
prejuízo para a fluidez do envolvimento compartilhado. É indispensável que se diminuam as
barreiras instrumentais para potencializar dinâmicas de participação em projetos, permitir a
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Open design: Compartilhamento e democratização nas práticas
de projeto

criação de contextos sociais engajados, mesmo que seja mais custoso manter o controle de
aptidões descentralizadas.
Para que haja uma evolução nos processos de compartilhamento no contexto da cidade, é
necessário que haja um investimento maior desenvolvimento de estratégias de metadesign,
produzindo ambientes digitais estruturados para a participação dialógica coletiva.
Plataformas digitais bem projetadas podem promover arranjos coordenados de
singularidades visando mobilizar competências e, consequentemente, descentralizar o
conhecimento sobre a cidade.
É desejável o envolvimento de profissionais de design, artes e arquitetura com um profundo
processo de autocrítica reconhecendo a realidade de um mundo conectado e articulado em
rede. Estamos vivendo uma transformação na forma como as pessoas se relacionam, criam,
produzem e negociam, e o Open Design parece trazer tanto contribuições quanto
questionamentos que somente poderão ser assimilados a partir de participações efetivas dos
arquitetos neste processo. Essa participação é essencial para que continuemos explorando e
implementando interfaces técnicas coerentes com nossa sociedade em rede. Nesse caminho
teremos chances de, como recomenda Anderson (2012), transformar democraticamente para
melhor o mundo real com processos inéditos.

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PLATAFORMAS DIGITAIS DE MOBILIDADE URBANA: TIPOS E MODOS


DE ATUAÇÃO
TYPES OF DIGITAL PLATFORMS FOR URBAN MOBILITY

Luísa da Cunha Teixeira1, Rodrigo Cury Paraizo1

RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo analisar o uso de plataformas digitais na mobilidade urbana. Descreve
exemplos de aplicativos e plataformas agrupadas de acordo com a função que exercem sobre a mobilidade,
1Universidade Federal do
ou seja, como elas influenciam os deslocamentos no espaço urbano. Foram catalogadas 25 plataformas em
quatro categorias principais: orientação de mobilidade, transporte sob demanda, compartilhamento de Rio de Janeiro - UFRJ
veículos e compartilhamento de viagens. O uso da tecnologia digital revela algumas potencialidades e
limitações de arranjos, usos e apropriações que merecem ser analisados com o intuito de compreender as
possibilidades de ação para enfrentar os desafios que se colocam para a mobilidade urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Mobilidade Urbana, Plataformas Digitais, Aplicativos Móveis.

ABSTRACT:
This work aims to analyze the use of digital platforms in urban mobility. It describes examples of applications Fonte de Financiamento:
and platforms grouped by their function, as the way they assist physical displacements in the urban Conselho Nacional de
environment. 25 platforms were catalogued in four main categories: mobility orientation, on-demand Desenvolvimento Científico e
transport, vehicle sharing and ride-sharing. The use of digital technologies reveals some potentialities and Tecnológico - CNPq
limitations of arrangements, uses and appropriations that deserve to be analyzed in order to understand the
possibilities of action facing the challenges posed for urban mobility. Conflito de Interesse:
Declara não haver.

KEYWORDS: Urban Mobility, Digital Platforms, Mobile Applications. Submetido em: 06/02/2020
Aceito em: 26/10/2020

How to cite this article:

TEIXEIRA, L. C.; PARAIZO, R. C. Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação. Gestão
& Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166299
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

INTRODUÇÃO

As redes de informação e comunicação digitais compõem parte importante da infraestrutura


das grandes cidades atualmente. O sistema de transportes, por sua vez, se configura como outra
rede fundamental ao desenvolvimento urbano. É no encontro entre essas malhas
infraestruturais – informações e transportes - que se baseia este artigo.
Com o avanço das tecnologias digitais de informação e comunicação, especialmente das
tecnologias baseadas em localização e a popularização dos dispositivos móveis conectados à
internet, surgiram diversas plataformas e aplicativos relacionados ao transporte e mobilidade
nas cidades que estão transformando a forma como são realizados os deslocamentos no espaço
urbano.
Dada a natureza das próprias cidades como artefatos de concentração de ideias e recursos,
além de catalisadoras de encontros, não surpreende que os aplicativos tidos como de maior
impacto sobre a vida urbana sejam aqueles que interferem na mobilidade, promovendo maior
eficiência nos deslocamentos.
O debate em torno das plataformas digitais, no contexto das ditas cidades inteligentes, tem
levantado diversas questões, como aquelas relativas à vigilância e controle das populações
(BRUNO et al., 2018; ZUBOFF, 2015), ou as críticas à economia do compartilhamento (RÜSCHE;
SANTINI, 2016; SCHOLZ, 2016; SLEE, 2017), que favorece a concentração de renda e modelos
de negócios pouco regulamentados. Por outro lado, a proliferação de aplicativos móveis para
smartphones possibilita a proposição de novas formas de interagir com a cidade e conectar
seus habitantes e, como defendem outros autores (BEIGUELMAN, 2016; SASSEN, 2011;
TOWNSEND, 2014), esses pequenos aparelhos constituem um importante dispositivo
tecnológico de transformação das grandes cidades atualmente.
A qualidade da mobilidade urbana, no entanto, não é mensurada somente pela quantificação
de tempos e distâncias, ainda que sejam componentes importantes, mas também e
especialmente pela qualidade dos encontros – seja entre pessoas, seja de pessoas com bens,
serviços ou mesmo ideias –, tanto intencionais quanto aleatórios, promovidos pelos
deslocamentos. Buscaremos ressaltar também estes aspectos, visando compreender relações
de interação social presentes nas novas tendências de mobilidade urbana, impulsionadas pelas
redes e plataformas digitais.
Este artigo tem como objetivo analisar exemplos de plataformas digitais e aplicativos que
atuam em relação à mobilidade de passageiros dentro do espaço urbano (ou seja, nos limites
de uma mesma cidade ou de deslocamentos pendulares diários), organizando-os em uma
categorização de acordo com suas funções no auxílio aos deslocamentos na cidade. Os
exemplos foram catalogados entre junho de 2017 e dezembro de 2018, recebendo atualizações
em 2019. Não são examinadas em maior profundidade alternativas que lidem com transporte
de bens e serviços. Nos detemos principalmente na descrição e classificação dos exemplos, e
menos em uma análise aprofundada da mobilidade urbana em si ou os desdobramentos
socioeconômicos do compartilhamento e da perda da privacidade, por exemplo; no entanto, a
construção de um repertório de plataformas digitais de mobilidade urbana nos possibilita
analisar e comparar seus aspectos tecnológicos, sociais, econômicos e políticos, bem como sua
inserção na cidade e sua relação com os produtores e usuários. Um objetivo secundário é o
próprio registro de aspectos de cada um desses serviços. Dada a volatilidade de programas e
plataformas, documentar agentes, históricos e aspectos funcionais contribui para a
compreensão presente e futura da história social dessas tecnologias, ajudando a compreender
as diferentes escolhas políticas de cada sociedade.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

MOBILIDADE URBANA

Os deslocamentos na cidade são parte fundamental da urbanidade. Por toda parte, foram
sentidos os impactos de um planejamento urbano voltado ao automóvel particular, e com
poucos investimentos em transporte público – contribuindo, no Brasil, para o espraiamento
das cidades e a segregação urbana (VASCONCELOS, 2012). Esse modelo produziu e ainda
produz diversos efeitos sobre a vida cotidiana, como o aumento do tempo dos deslocamentos,
com engarrafamentos cada vez mais longos e frequentes, e o aumento da emissão de poluentes,
que impactam diretamente a saúde dos habitantes, além da questão ambiental e climática
(ANDRADE; LINKE, 2018).
Nos últimos dez anos, diversos autores apontam para uma mudança no modelo clássico do
planejamento de transporte das cidades, quando se passa a observar a questão não mais sob o
ponto de vista da oferta, mas sim da demanda (AMAR, 2016; BALASSIANO; ANDRADE;
SANTOS, 2005; BANISTER, 2008; IZAGA, 2009). Esse novo paradigma adota a noção de
mobilidade, trazendo maior amplitude e complexidade para a compreensão das dinâmicas dos
deslocamentos urbanos, bem como a incorporação da sustentabilidade como valor
fundamental.
O conceito de mobilidade ao qual nos referimos neste artigo diz respeito aos deslocamentos
físicos realizados no espaço urbano, portanto, à mobilidade dentro do espaço da cidade. Além
disso, nosso recorte diz respeito à mobilidade de passageiros, deixando de lado toda a logística
de transporte e distribuição de produtos e serviços.
No âmbito do planejamento de transportes, o termo mobilidade começa a ser mais utilizado
com o surgimento do conceito de Gerenciamento da Mobilidade, nos EUA na década de 1980,
buscando soluções e alternativas mais adequadas para a utilização do automóvel. O
Gerenciamento da Mobilidade é considerado um “conjunto de técnicas de planejamento de
transportes” (FERREIRA; BALASSIANO, 2012) que promovem meios mais sustentáveis de
deslocamento de forma a tornar o sistema de transporte mais eficiente, com o objetivo de
“racionalizar o uso indiscriminado do automóvel particular e estimular a utilização de formas
mais sustentáveis de locomoção” (BALASSIANO; ANDRADE; SANTOS, 2005).
No Brasil, a expressão “mobilidade urbana” começa a aparecer oficialmente em 2003, com a
criação da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana – SeMOB, dentro do
também recém-criado Ministério das Cidades, nos primeiros anos do governo Lula da Silva.
Renato Boareto (2003), então diretor de Mobilidade Urbana da SeMOB, chama a atenção para
a “crise de mobilidade das cidades”, causada principalmente pelo modelo de circulação
centrado nos automóveis, pela ineficiência dos sistemas de transporte público e pela
“abordagem fragmentada desses problemas, que dificultam sua solução”. Boareto indica alguns
dos desafios a serem superados no caminho para a construção de políticas públicas de
mobilidade mais inclusivas e sustentáveis, definindo a Política Nacional de Mobilidade Urbana
Sustentável como:
(…) o resultado de um conjunto de políticas de transporte e circulação que visa
proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, através da
priorização dos modos não-motorizados e coletivos de transporte, de forma
efetiva, que não gere segregações espaciais, socialmente inclusiva e
ecologicamente sustentável. Ou seja: baseado nas pessoas e não nos veículos
(“Política nacional de mobilidade urbana sustentável”, 2004).
A expressão se populariza ainda mais com a lei 12.587/12, sancionada em 2012, no governo
Dilma Roussef, que passou a exigir que os municípios com mais de 20 mil habitantes “elaborem
e apresentem um plano de mobilidade urbana, com a intenção de planejar o crescimento das
cidades de forma ordenada”. A Lei determina ainda que estes planos priorizem o modo de

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Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

transporte não motorizado e os serviços de transporte público coletivo (“Política Nacional de


Mobilidade Urbana”, 2013).
Podemos perceber, então, que, nas últimas décadas, a mobilidade urbana se tornou um dos
pontos centrais para o desenvolvimento urbano e o crescimento das cidades no mundo todo.
O autor francês Georges Amar (2016) vem trabalhando com a ideia de mobilidade urbana e
considera que a mobilidade é uma noção que engloba e extrapola a noção de transporte. Para
ele, o transporte urbano vem sofrendo mais recentemente uma mutação de usos, ligada à
inovação e à sustentabilidade, que ultrapassam a dinâmica tradicional do planejamento de
transporte, e a dualidade do “transportado” e do “transportador” (AMAR, 2016, p. 37),
destacando que a ideia de mobilidade pode ser cada vez mais compreendida pela criação de
laços, de oportunidades e de sinergias, do que pela simples eliminação de distâncias.
O termo, portanto, acaba associado a uma visão mais ampla dos deslocamentos, para além da
visão estritamente funcional, e inclui aspectos sociais e econômicos, reconhecendo de maneira
mais clara também a dimensão política dos transportes. Essa mudança de entendimento,
associada às próprias mudanças tecnológicas envolvendo os transportes e a comunicação,
acabam fomentando novos usos e padrões de transportes, muitas vezes mediados pelas
tecnologias digitais. A partir do desenvolvimento das tecnologias de localização incorporadas
aos dispositivos móveis, diversas propostas vêm sendo desenvolvidas com o intuito de
otimizar a mobilidade no território urbano, bem como reduzir os impactos causados nos
ecossistemas local e global.

A QUESTÃO DA MOBILIDADE DIGITALMENTE ASSISTIDA

As novas tecnologias de informação e comunicação digitais vêm transformando as cidades em


que vivemos de diversas formas. Dentre as práticas que agora são fortemente mediadas pelas
redes digitais, uma das que mais se destaca é a mobilidade. Amar (2016) ressalta a importância
da inovação, não só tecnológica, mas também cultural, com relação às novas formas e usos,
para promover a mudança de paradigma do modelo clássico do planejamento de transportes
em prol uma visão mais ampla, que vem se consolidando, como vimos anteriormente, na noção
de mobilidade urbana. Os avanços tecnológicos vividos nas últimas décadas vêm influenciando
o modo de vida do ser urbano, cada vez mais móvel e conectado, configurando o que ele chama
de “vida móvel”, ou seja, um modo de vida cada vez mais ligado à mobilidade (AMAR, 2016, p.
13). Para o autor, a informação, sobre todos os seus aspectos, se tornou um ingrediente
essencial dos sistemas de transporte. De fato, surgem a cada dia novas ferramentas baseadas
na informação para auxiliar na programação e demanda dos deslocamentos na cidade de forma
mais eficiente e sustentável.
Townsend (2014, p. 57), ao conceituar “smart cities/smart urbanism”, comenta o grande
diferencial representado pelo advento dessas tecnologias para a capacidade de resposta e
adaptação quase imediata do transporte de bens e serviços, a partir do sensoriamento remoto
e processamento desses dados. Mais do que isso, há uma crescente preocupação com a
dimensão humana e social intrínseca ao desenvolvimento e uso dessas tecnologias (HARTLEY,
2017; TOWNSEND, 2014). Os novos processos de inovação, privilegiando o software e a
hibridização modal, estão produzindo um número cada vez maior de modos de transporte,
assim como o incentivo ao compartilhamento de veículos e viagens e aos deslocamentos não
motorizados. Além disso, são facilitadores importantes para uma gestão de transportes
públicos melhor e mais eficiente.

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PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS

Aplicativos móveis, ou “apps”, como ficaram popularmente conhecidos, são softwares


desenvolvidos para serem instalados em dispositivos eletrônicos móveis, como smartphones
ou tablets, em dois sistemas operacionais principais: Android (Google) e iOS (Apple), cada qual
com sua própria loja online, onde são disponibilizados os aplicativos. Em dados de novembro
de 2018, a App Store, loja de aplicativos da Apple, lançada em 2008, possuía mais de 1 milhão
de títulos publicados, divididos em 25 categorias que vão desde jogos a saúde e fitness. A
Google Play Store, antes conhecida como Android Market, possuía 3,5 milhões de aplicações
disponíveis para download, em 22 categorias.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, realizou-se, entre junho de 2017 e dezembro de 2018,
uma sistematização e classificação de diversos exemplos de plataformas digitais que atuam
sobre a mobilidade urbana, com o intuito de compreender o contexto geral de aplicação das
plataformas digitais nos sistemas de transporte e mobilidade urbana. A quase totalidade dessas
plataformas, no momento da pesquisa, atuava principalmente a partir da interação do usuário
via aplicativos móveis, ainda que possuíssem algum site para visualização em desktops. Assim,
usaremos os dois termos, “plataformas” e “aplicativos”, ao longo deste texto, para nos
referirmos a esses programas. Em 2019, realizamos uma atualização parcial dos dados, para
efeitos de publicação deste artigo.
Em um primeiro momento, nos baseamos na própria classificação dos aplicativos nas lojas
online, buscando aplicativos que explicitamente falassem de transporte de passageiros e
orientação no trânsito. Na App Store, verificou-se que predominavam duas categorias sobre o
tema: “Viagens” e “Navegação”. Já na Play Store predominavam “Mapas e navegação” e
“Turismo e local”; no entanto, muitas das plataformas classificadas como “Mapas e Navegação”
na Play Store eram classificadas como “Viagens” na App Store, o que dificultou estabelecer
correlações entre as categorias das duas lojas. Além disso, as plataformas foram classificadas
quanto ao ano de lançamento, versão do software (no Android e no iOS), data da última
atualização, local de fundação, abrangência (plataformas específicas de um local, plataformas
de origem local, mas replicados em outros contextos, e plataformas de aplicação geral),
utilização do sinal de GPS, vínculo do condutor, propriedade do veículo, propriedade do código-
fonte e função na mobilidade.
Cabe ressaltar ainda, que plataformas como o Whatsapp e o Facebook, mesmo não sendo
aplicativos específicos para essa finalidade, são frequentemente usados para fins de
mobilidade urbana. Seja pela própria comunicação entre os usuários combinando caronas, seja
pela função de compartilhamento de localização, trata-se mais uma vez da apropriação que as
pessoas fazem das tecnologias, de modo muitas vezes completamente inesperado pelos seus
criadores ou empresas proprietárias. Como afirma Townsend (2014, pos. 290, tradução nossa),
“se a história da construção das cidades no último século nos ensina alguma coisa, é que as
consequências não intencionais das novas tecnologias frequentemente ultrapassam a intenção
do projeto original”.

ANÁLISE DAS CATEGORIAS

Foram catalogados durante a pesquisa 25 plataformas e aplicativos, agrupados em quatro


grandes categorias: 1) orientação de mobilidade; 2) transporte sob demanda; 3)
compartilhamento de veículos e 4) compartilhamento de viagens. As categorias propostas,
algumas compreendendo subdivisões, classificam os exemplos de acordo com a função que
exercem sobre a mobilidade urbana, ou seja, de acordo com a forma que atuam sobre os
deslocamentos nas cidades. A categorização se dá especialmente a partir da perspectiva do
usuário como elemento-chave da mobilidade orientada pela demanda em tempo real, seja

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Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

mapeando rotas, seja facilitando o planejamento individual da utilização de modais diversos


do sistema de transporte público.
Do mesmo modo que os problemas de mobilidade antecedem a tecnologia digital, boa parte de
suas soluções também não surgiu com os smartphones. Com isso, muitas vezes, o que temos é
uma ampliação de sistemas pré-existentes; mas, na escala e resposta imediata permitida pela
tecnologia, essas soluções são significativamente ampliadas, a ponto de se tornarem
qualitativamente distintas.
Apresentamos a seguir, a análise das categorias propostas, a partir dos exemplos encontrados.
A tabela abaixo (fig.1) relaciona os exemplos analisados de acordo com a categoria em que se
encaixam e com seu ano de lançamento. No exame um pouco mais detalhado, veremos
características importantes para o entendimento da mobilidade urbana digitalmente assistida.

Figura 1: Tabela com


exemplos organizados por
categoria e ano de
lançamento.

FONTE: Autores, 2019

ORIENTAÇÃO DE MOBILIDADE

Essa categoria agrupa plataformas e aplicativos que atuam no auxílio à orientação para os
deslocamentos na cidade. São usadas indistintamente, portanto, por motoristas a serviço de
outros ou pelos próprios indivíduos em deslocamento. Os exemplos mais conhecidos são o
Google Maps e o Waze Mobile, ambos presentes em vários países. Como se baseiam no sinal de
GPS, que tem abrangência mundial, aplicativos desse tipo são frequentemente escalonáveis
para corresponder a essa abrangência, dependendo apenas do efetivo mapeamento de ruas.
Portanto, ainda que possam ter origem local, se tornam de abrangência internacional
rapidamente.
A empresa Waze, originalmente LinQmap, foi fundada em 2008 em Israel, e em 2011 já
empregava 80 pessoas. Seu diferencial, se comparada aos sistemas de navegação por GPS
tradicionais, vem do fato de ser a primeira plataforma a se basear em informações fornecidas
em tempo real por uma comunidade de usuários, aproveitando-se da localização fornecida por
cada usuário através de seus smartphones e das informações ativamente enviadas sobre o
tráfego, como acidentes ou presença de radares, para alimentar seu banco de dados.
Em 2013, a Waze foi comprada pela Google, e seus dados passaram a integrar um banco ainda
maior, com os dados fornecidos pelo aplicativo Google Maps. Criado em 2005, o Google Maps
era inicialmente uma plataforma web de mapeamento e navegação em geral, em conjunto com
a Google Earth, que fornece as imagens de satélite. O serviço se baseia na pesquisa e
visualização de mapas, com traçado de rotas e informações cartográficas que foram ficando
cada vez mais precisas; atualmente, são fornecidos mapas de mais de 220 países, e informações
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Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

de transporte público de mais de 15.000 cidades. Com o surgimento dos smartphones com
função GPS, foi lançado, em 2008, a versão móvel do Google Maps para Android. A plataforma
passou a ser alimentada também das informações de localização de seus usuários, como o
Waze. O Google Maps, além do mapeamento, prevê o auxílio ao deslocamento usando outros
modais. É possível, por exemplo, traçar uma rota a pé, ou de bicicleta, ou inclusive de transporte
público, pois ele integra dados das empresas de transportes das principais cidades onde atua.
Daí inferimos outra categoria de classificação importante, do ponto de vista da mobilidade
urbana: aplicativos uni ou multimodais. O Waze, desse ponto de vista, por ser uni-modal – e o
modal em questão ser o carro particular – pode melhorar as escolhas de trajetos dos
motoristas, aliviando o tráfego; o Google Maps, ao permitir a visualização de diferentes tempos
de deslocamento segundo cada modal (de carro, de ônibus, a pé, de bicicleta ou mesmo de
avião, quando o trajeto permite), estimula a exploração dos diferentes modais, o que pode
acabar levando a escolhas mais sustentáveis, em especial para deslocamentos menores.
Um exemplo com grande eficiência na combinação de modais é a plataforma da RATP (Régie
Autonome des Transports Parisiens), empresa de transporte público de Paris. Baseado nos
horários de partida e/ou chegada do usuário, o aplicativo calcula a rota mais rápida, podendo-
se escolher pelos modais a serem utilizados, trajeto mais curto, com menos trocas de
transportes, entre outras opções. A plataforma integra os sistemas de metrô, ônibus, trens
intermunicipais, VLT, e bicicletas públicas compartilhadas (Velib’), o que resulta em uma
grande variedade de combinações possíveis para cada trajeto. O sistema de informações
oferecido no aplicativo reflete a grande integração do sistema de transporte de Paris, que se
deve, em grande parte, ao fato da RATP ser a empresa pública gestora de todos os transportes
públicos na região metropolitana parisiense. Isso possibilita, além da eficiência do sistema de
transporte público em si, eliminar boa parte da mediação necessária para compatibilizar os
dados de diferentes sistemas.
Quando isso não é possível, as plataformas dependem das prefeituras ou órgãos gestores e
empresas de transporte de cada cidade para conseguir coletar os dados, o que pode prejudicar
a eficiência e confiabilidade das informações. É o caso de aplicativos como o Moovit, que
pretendem ser grandes sistemas integradores de informação de transportes para quaisquer
cidades. O Moovit é o maior aplicativo de transporte público do mundo, com mais de 150
milhões de usuários em 2200 cidades de 80 países. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
a plataforma oferece um sistema de informações de diversos modais do transporte público a
partir de dados de GPS repassados pelas empresas concessionárias; no entanto, sua
usabilidade é bastante questionada pela população carioca, que aponta a falta de precisão dos
itinerários.
Visando oferecer um sistema mais confiável, a própria Fetranspor lançou, em 2014, o aplicativo
Vá de Ônibus (que já existia como plataforma web desde 2007), que oferece a possibilidade de
pesquisar as rotas e horários, além de fornecer a localização, via GPS, de todas as linhas de
ônibus municipais de seu banco de dados. Mesmo assim, o sistema é ainda pouco preciso com
relação à localização dos ônibus em tempo real, além de não apresentar integração com outros
modais.
Da mesma forma que o aplicativo RATP reflete a eficiência do sistema de transporte público de
Paris, parte das falhas da Moovit ou do Vá de Ônibus pode ser atribuída à pouca integração do
sistema de transportes como um todo e também às falhas das próprias empresas no controle e
monitoramento dos horários e rotas dos diferentes modais da cidade. A dificuldade em
compatibilizar diferentes estruturas de dados, latências no envio das informações, e políticas
de disponibilização e dos dados entre as diferentes empresas, para citarmos apenas algumas
das questões envolvidas, levam a que cada empresa gestora tenha sua própria plataforma (Vá
de Ônibus, Metrô Rio, Trens da Supervia, Bike Rio, etc), a ser acessada separadamente pelo

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Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

usuário, e são uma evidência importante da influência das questões sociais e políticas, por
exemplo, na adoção e evolução das proposições tecnológicas.
Essas dificuldades vêm tentando ser superadas no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, foi
lançado em 2016, o Leve-me, aplicativo de mobilidade urbana para locomoção na cidade de
São Paulo (www.leve-me.com.br). A plataforma foi desenvolvida pela Ótima, Concessionária
de Exploração de Mobiliário Urbano de São Paulo, e permite ao usuário escolher o destino e
visualizar as melhores opções de rotas seja de ônibus, metrô, trem, bicicleta ou táxi, podendo
optar pela mais rápida, confortável ou saudável. Além das opções de rota, o usuário pode
interagir via realidade aumentada com campanhas publicitárias veiculadas nos painéis de
pontos de ônibus. Conta também com recursos de gamificação, similares aos do Waze: neste, o
usuário acumula pontos para customizar seu avatar e competir em um ranking com seus
amigos do Facebook que também usam o aplicativo.
Em 2017, acompanhando ainda mais as novas tendências de mobilidade urbana foi lançado,
em Berlim, o aplicativo Urbi, que integra diversas opções de mobilidade. A plataforma busca
integrar os serviços de mobilidade compartilhada (bicicletas, carros e motos) e os serviços de
transporte sob demanda (táxis e motorista particular), além dos modais de transporte público
(https://www.urbi.co/).
Podemos perceber que os diversos aplicativos de orientação de mobilidade se atualizam para
incluir novos modais e novas formas de deslocamento de seus usuários na cidade. Como mostra
o exemplo da integração de transportes, mais do que uma “cidade inteligente” abstrata, é
preciso que haja uma política de mobilidade urbana inteligente, presente no próprio
planejamento e gestão do transporte urbano, contando com a anuência e apoio dos criadores,
dos proprietários e dos mantenedores dos diferentes sistemas.

TRANSPORTE SOB DEMANDA

Em inglês, a palavra hail denomina o ato de se chamar um táxi fazendo um sinal; no recente
contexto das tecnologias digitais emergentes, e-hailing denomina o “processo de chamada de
um serviço de transporte individual como táxis, carros particulares ou outros veículos, por
meio de um dispositivo móvel ou computador” (GONÇALVES, 2016). Os serviços de transporte
sob demanda conectam de forma direta, e em tempo real, passageiros e motoristas; as
empresas funcionam como plataformas mediadoras, que otimizam a comunicação entre
passageiros e prestadores de serviços.
A empresa Uber é uma das maiores e mais conhecidas empresas nessa área; tão inovadora
quanto polêmica, foi também a primeira empresa do tipo a oferecer seus serviços no Brasil, em
2014. Fundada em 2009, em São Francisco, EUA, sua proposta inicial era o oferecimento de um
serviço de táxis de luxo, com veículos especialmente selecionados. A plataforma expandiu-se
rapidamente, passou a oferecer diversas faixas de serviço, e hoje está presente em mais de 600
cidades no mundo. Plataformas concorrentes incluem a Cabify, também presente no Brasil, e a
Lyft, maior concorrente da Uber nos Estados Unidos. O serviço opera em uma zona ainda não
muito bem definida de licenciamento – não é necessário ter uma autorização pública específica,
como no caso dos táxis – e de relações trabalhistas; que levou à criação do termo “uberização”
para caracterizar a situação de precariedade de direitos associada a esse tipo de trabalho
(SLEE, 2017).
Em 2017, a Uber lançou a modalidade “Juntos” (“Pool” em inglês), que possibilita compartilhar
o carro com outros usuários com trajetos em comum, reduzindo também o valor da corrida.
Embora se aproxime da definição de compartilhamento de veículos e viagens, o serviço na
verdade trata de um subtipo de transporte sob demanda, caracterizado pelo compartilhamento
de viagem no qual o veículo não pertence a nenhum dos passageiros, ou seja, envolve
necessariamente alguém contratado para conduzir o veículo ao destino.
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

Em junho de 2017, foi criada a Buser, que leva essa modalidade de serviço a uma escala ainda
maior, através do fretamento compartilhado de viagens de ônibus entre grandes cidades do
país. Seu funcionamento é baseado na criação de grupos de usuários que desejam realizar o
mesmo trajeto. Ao atingir um número mínimo de passageiros, um ônibus é fretado e a viagem
é realizada. O aplicativo faz a intermediação de todo o processo de reserva e pagamento; o
embarque é realizado por meio de um documento de identificação, em locais normalmente
mais acessíveis do que as rodoviárias comuns. Atualmente a Buser realiza por mês cerca de
duas mil viagens entre 20 cidades, nas categorias semi-leito, leito ou cama. No entanto, a
plataforma vem gerando atritos com as empresas de ônibus intermunicipais, que vem tentando
suspender o funcionamento do aplicativo na justiça. De fato, a lógica é inversa à das
companhias de ônibus tradicionais, que são contratualmente obrigadas a manter trajetos
previamente combinados (beneficiando aqueles que precisam se deslocar para destinos menos
populares, por exemplo), e opera os ônibus de forma dinâmica e mais eficiente, do ponto de
vista da lotação.
Reagindo ao crescimento da Uber, surgiram startups visando atuar de forma similar, voltadas
para o mercado de motoristas de táxi. Algumas delas cresceram e se destacam por sua
abrangência cada vez maior, como é o caso da Easy Taxi, empresa brasileira fundada em 2012
no Rio de Janeiro, presente em mais de 30 países e 420 cidades. É interessante notar que um
dos conceitos originais da empresa é a priorização de mercados com problemas de mobilidade
urbana e sistemas de transporte deficientes, constituindo até hoje sua estratégia de expansão,
com quase todos os países onde atua sendo de economias emergentes.
Outro caso de sucesso é a 99, nascida também no Brasil, que cresceu a ponto de ser comprada
por 1 bilhão de reais pelo grupo Didi Chuxing, uma das gigantes chinesas de transporte e
tecnologia e grande concorrente da Uber. A grande inovação da 99 foi o fato de eventualmente
passar a oferecer também o serviço de motorista particular, o “99POP”, permitindo tanto que
motoristas de táxi licenciados quanto motoristas particulares se registrassem no mesmo
sistema.
Podemos identificar ainda muitas outras iniciativas difusas, que atuam de forma local. Os
serviços de táxi, com suas centrais telefônicas, precedem em muito as plataformas de e-hailing,
e hoje chegam a possuir plataformas digitais próprias. Na verdade, muitas dessas plataformas
são criadas pelas mesmas empresas de tecnologia, como a Smartsis, que desenvolveu mais de
60 aplicativos de táxi publicados na Google Play Store. Recentemente, diante da competição
com o Uber, a Prefeitura do Rio de Janeiro, lançou a plataforma Táxi Rio, buscando oferecer um
sistema unificado, além de mais seguro e moderno, para o serviço de táxi da cidade.
Duas questões principais emergem: a primeira é que, do ponto de vista trabalhista, há diversas
questões legais criadas a partir da chegada da tecnologia, mas que não são intrínsecas a ela: é
sempre possível legislar em função de mais regulação tanto das relações de trabalho quanto
das taxas e impostos incidentes sobre o serviço. A segunda está ligada ao impacto relativo à
mobilidade: a política de preços praticada (malgrado seu impacto sobre os motoristas
profissionais), por exemplo, serve como desestímulo para a posse individual de um carro, ou,
pelo menos, à sua utilização diária – o que, se não reduz o número de veículos efetivamente nas
ruas (LEBLANC, 2018), ao menos tende a tornar o uso dos automóveis e as viagens em si mais
eficientes.

COMPARTILHAMENTO DE VEICULOS

Esta categoria agrupa plataformas que promovem o compartilhamento de veículos como


bicicletas e automóveis, dentro do limite de um determinado espaço urbano, com ou sem
estações pré-definidas.

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Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

Sistemas de bicicletas compartilhadas são atualmente muito comuns nos ambientes urbanos,
e mais de 400 cidades no mundo já têm seus próprios sistemas. O primeiro sistema, na verdade,
data da 1965, e foi criado em Amsterdam, bem antes de boa parte das inovações digitais. O
sistema de bicicletas compartilhadas de Rennes, na França, foi o primeiro a usar a tecnologia
de cartão inteligente (“smart-card”), em 1998, para possibilitar a liberação das bicicletas nas
estações. Em 2001, foi inaugurado o sistema Velo’v de Lyon, no qual se baseou mais tarde o
sistema Vélib’, de Paris. Ambos se tornaram modelos para os chamados sistemas de terceira
geração (ITDP, 2014), em que a tecnologia é usada para identificar e controlar o uso em tempo
real, permitindo o monitoramento da capacidade da estação e do número de usuários ativos.
No Brasil, a primeira cidade a implementar um sistema do tipo foi o Rio de Janeiro, em 2011,
com o BikeRio, expandido para outras cidades a partir de 2013. Atualmente, o Rio de Janeiro
possui 2.600 bicicletas disponibilizadas em 260 estações pela cidade. Recentemente, startups
chinesas e estadunidenses criaram plataformas de compartilhamento de bicicletas sem
estações em seus respectivos países (em inglês, dockless bike-share systems), em que as
bicicletas possuem trancas individuais destravadas por QR-code e podem ser estacionadas
livremente pela cidade. A Ofo, primeira plataforma desse tipo, foi fundada em 2014, seguida
pela Mobike, em 2015, ambas com sede em Pequim. A Limebike, de 2017, é a versão
estadunidense, com sede na Califórnia.
O compartilhamento de automóveis (carsharing, em inglês; autopartage, em francês) permite
utilizar o transporte individual de forma mais racional, usando o carro apenas quando
realmente necessário, e muitas vezes como um complemento a outros transportes como a
bicicleta, o ônibus e o metrô. Bem menos comuns, se comparados aos de bicicletas, eles também
estão cada vez mais presentes em diversas cidades do mundo. Na mesma lógica do Velib’, Paris
inaugurou, 10 anos depois, o sistema de compartilhamento de carros elétricos denominado
Autolib’, o primeiro desse tipo a ser lançado no mundo, também baseado em estações fixas, que
serviam como postos de abastecimento de energia. Com os avanços tecnológicos dos carros
elétricos e dos dispositivos móveis, o serviço foi desativado em julho de 2018.
O serviço Car2Go, nascido em Ulm, na Alemanha, visa o compartilhamento de automóveis com
motor a combustão tradicional. Isso libera os carros do sistema de estações pré-definidas,
permitindo aos usuários estacioná-los em qualquer lugar na cidade, onde podem ser
encontrados pelos próximos usuários a partir do GPS de cada carro do sistema. No Car2Go, a
localização dos veículos e todo o processo de reserva, abertura da porta, ignição do motor e
pagamento são feitos por meio da plataforma móvel. A Car2Go é atualmente a maior empresa
de compartilhamento de carro do mundo, presente em mais de 26 cidades na Europa, América
do Norte e Ásia.
Uma das grandes inovações no campo da mobilidade compartilhada é a combinação da
ausência de estações pré-definidas (o chamado free-floating, em inglês, ou libre-service, em
francês), e a realização de todo o processo pelo smartphone com o uso de carros elétricos,
misturando as vantagens do Car2Go com as do Autolib’. É o caso da Share’nGo, startup italiana
fundada em Milão em 2016, que disponibiliza carros elétricos nas regiões de Milão, Florença,
Roma, entre outras; da Emov, lançada em Madrid em 2017; e da Moov’in Paris (2018), lançada
pela Renault. Como os carros são híbridos, podem ser parados livremente dentro de um
determinado perímetro, para serem recarregados pontualmente pela empresa.
Além do compartilhamento de bicicletas e automóveis, existem plataformas que apostam no
compartilhamento de outros tipos de veículos, como motos, caso de empresas como a Mimoto
(2018) e a Coup (2017), ou mesmo patinetes, um dos serviços providos pela Lime (2017). No
Rio de Janeiro, o serviço de patinetes elétricos começou a ser oferecido em dezembro de 2018,
pela Grin (2018), com um perímetro de atuação limitado inicialmente a alguns bairros da Zona
Sul. Em 2019, seu uso cresceu, tornando-se comum e até polêmico, no que se refere à segurança
e à regulamentação do sistema com relação às leis de transito.
28
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

Há uma tendência de os sistemas atuais priorizarem o uso de veículos elétricos, seja pelo apelo
da sustentabilidade, seja pelo apelo do acesso a veículos elétricos, ainda comparativamente
mais caros, de forma compartilhada. Já existem, fora do Brasil, sistemas de compartilhamento
de bicicletas que, além de não terem estações pré-definidas, utilizam modelos elétricos, como
a plataforma francesa Oribiky (2018), que oferece as bicicletas elétricas de forma
complementar às tradicionais.
Apesar dos aplicativos pertencerem a uma mesma categoria, ao se examinar possíveis efeitos,
é preciso considerar o tipo de modal envolvido. No caso das bicicletas, podemos inferir um
estímulo ao uso da bicicleta não apenas porque o sistema dispensa a propriedade de uma, mas
porque o sistema de estações acaba permitindo uma combinação eficiente da bicicleta com
trechos a pé e de metrô, liberando o usuário da necessidade de estacionar a bicicleta ou de
transportá-la em trens e metrôs, o que nem sempre é simples.
No que se refere aos carros, a questão da posse envolve tanto uma indústria quanto políticas
de desenvolvimento econômico que seriam bastante afetadas por uma mudança cultural dessa
ordem, já que a própria estrutura do negócio se alteraria – ainda que não necessariamente com
menos número de viagens ou com aproveitamento mais eficiente dos veículos, já que o
compartilhamento de veículos não necessariamente significa o compartilhamento das viagens
em si, como veremos adiante. De todo modo, o compartilhamento de veículos é atualmente
encarado como uma das grandes tendências em direção à mobilidade sustentável. Além da
ressignificação do sentido da posse, que tende a reduzir o consumo, a mobilidade
compartilhada permite também maior flexibilidade, possibilitando mais combinações entre
transporte público e diferentes modais de uso individual, que podem ser usados em casos mais
específicos e de forma complementar.

COMPARTILHAMENTO DE VIAGENS

Essa categoria agrupa plataformas que promovem o compartilhamento de viagens,


normalmente em carros particulares, promovendo uma ocupação mais eficiente. Em inglês
ridesharing, ou covoiturage em francês, no Brasil o ato de compartilhar uma viagem, ocupando
lugares vagos é comumente conhecido pelo termo “carona”, sendo uma prática de colaboração
e compartilhamento antiga, comum a diversas sociedades. Separamos a análise por viagens de
longa distância, realizadas entre duas cidades de forma intermunicipal, e as de curta distância,
realizadas dentro de uma cidade, de forma intraurbana.
Uma das plataformas mais conhecidas atualmente é a BlaBlaCar, que visa ao compartilhamento
de viagens de longa distância, ocupando as vagas ociosas em automóveis particulares. Nascida
na França, em 2004, inicialmente como uma plataforma web de viagens compartilhadas
chamada covoiturage.fr, o sistema se baseava em uma página na internet onde eram
anunciadas as vagas ociosas para viagens de carro entre cidades na França, e os interessados
podiam buscar no site por essas vagas e reservá-las, sem nenhum custo além da divisão das
despesas acordada entre o motorista e os viajantes. Plataformas do mesmo tipo existiam em
outros países na Europa, como Portugal (boleias.pt), Alemanha (mitfahrgelegenheit.de),
Espanha, Itália, Reino Unido, entre outros. Com o aumento do uso da plataforma na França, ela
começa a se expandir para outros países, comprando as plataformas concorrentes. Em 2013, a
plataforma é renomeada BlaBlaCar e continua a se expandir, inclusive para fora do continente
europeu, sendo, atualmente, a maior empresa de compartilhamento de viagens de longa
distância do mundo. Recentemente, implementou em seus mercados na Europa o pagamento
online, através de cartão de crédito, e, com isso, passou a cobrar uma taxa sobre cada reserva,
conquistando um maior rendimento. No Brasil, a plataforma Tripda, com proposta semelhante,
existiu de 2014 até 2016, quando teve suas atividades descontinuadas pelo elevado custo de
manutenção e falta de retorno financeiro.

29
Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

A ideia de compartilhar viagens, ocupando vagas ociosas em carros particulares, não se


restringe a viagens de longa distância. Viagens de curta distância, dentro de uma mesma cidade
ou região metropolitana, são um nicho ainda pouco explorado. A maior dificuldade na
organização de uma plataforma como o BlaBlaCar para viagens curtas dentro da cidade é que
os deslocamentos intraurbanos são relativamente mais dispersos, ou seja, dada a escala desses
deslocamentos, é mais difícil definir pontos de origem e destino. Já houve no Brasil algumas
tentativas de criar esse tipo de plataforma, como o Minha Carona (criada por Guilherme Pim,
em 2014, no Rio de Janeiro), mas que não tiveram continuidade.
Algumas iniciativas trabalham com a noção de polo gerador de viagem (PGV), e assim
conseguem organizar as caronas para um determinado ponto concentrador. Os PGVs são locais
ou instituições de natureza distinta, com porte e escala capazes de atrair uma quantidade
significativa de pessoas e gerar um grande número de viagens, ou seja, que concentram grande
quantidade de deslocamentos pendulares (PORTUGAL; GOLDNER, 2003; REDPGV, 2010)⁠. São
normalmente instituições de ensino, grandes empresas, estádios, hospitais, entre outros. É
possível identificar algumas plataformas que atuam em função desses polos, como, por
exemplo, o Zimride, uma das maiores plataformas de viagens compartilhadas dos Estados
Unidos, criada em 2007, tendo como nicho principal os campi universitários, presente em mais
de 125 campi por todo o país.
No Brasil, podemos identificar algumas iniciativas semelhantes que vêm sendo testadas nos
últimos tempos. A dificuldade de acesso aos campi universitários (pela precariedade de
transporte público, ou a falta de integração com a cidade), além da predominância da ótica
rodoviarista na maior parte dos centros urbanos, faz com que muitas pessoas utilizem carros
particulares para ir e voltar das universidades. Com isso, surge também o desejo de organizar
essas viagens de forma compartilhada, facilitada, hoje, pelos avanços tecnológicos e pela
disseminação das redes sociais digitais. Percebendo esse movimento, algumas iniciativas
surgem na forma de plataformas digitais, inicialmente restritas à web, como o Caronetas,
criado em 2011. No entanto, essas plataformas não funcionaram por muito tempo, face à
popularização das plataformas para dispositivos móveis e dos serviços baseados em
localização. Em 2016, foi lançado na Universidade Federal do Rio de Janeiro o aplicativo
Caronaê, permitindo o compartilhamento de viagens de ida e volta dos campi. Com mais de
16.000 usuários, o sistema criado por estudantes tem código-fonte aberto para permitir sua
replicação em outras instituições de ensino pelo país. Uma das suas características que o
distinguem de outros sistemas de compartilhamento de viagens é que o Caronaê foi pensado
para uso exclusivo pela comunidade acadêmica das universidades, usando a identidade
acadêmica do usuário como filtro de segurança nas viagens.
Entre as iniciativas que promovem o compartilhamento de viagens na cidade, mas que não
trabalham com a noção de “polo concentrador de viagem”, atuando de forma mais dispersa,
temos as plataformas Waze Carpool e Wunder, que começaram a operar no Brasil a partir de
2018. A Wunder (2016), nascida na Alemanha, oferece um sistema de caronas intraurbanas,
mas não possui um controle consistente da comunidade participante, sendo aberto a toda a
população da cidade – o que, num primeiro momento, traz certa desconfiança pois não resolve
a questão da segurança nas viagens. De todo modo, a Wunder deixou de operar no Rio de
Janeiro em meados de 2019. A Waze Carpool (2015), por sua vez, é a plataforma da Waze para
compartilhamento de viagens dentro da cidade. Com relação à segurança, seu diferencial é que
busca relacionar, através de um endereço eletrônico profissional, pessoas que trabalham
juntas e realizam diariamente o mesmo trajeto. As duas plataformas funcionam pela
combinação de rotas oferecidas e buscadas, e a conexão direta entre o motorista e os caronistas
pelo aplicativo, que conta também com sinal de GPS para facilitar o encontro, como acontece
no Uber ou 99. Tanto no Waze Carpool quanto no Wunder, há obrigatoriedade do pagamento
da carona, através do próprio aplicativo.

30
Gestão & Tecnologia de Projetos
Luísa da Cunha Teixeira, Rodrigo Cury Paraizo

O compartilhamento de viagens, em especial no caso do automóvel, traz o benefício da


utilização mais eficiente do modal (mais passageiros por carro). Vale observar, no entanto, que,
ao menos no contexto universitário (e o raciocínio é facilmente extensível a outros PGVs), a
redução de carros nas ruas ocorre apenas quando um proprietário de carro decide pegar uma
carona (ou o transporte público), posto que os outros passageiros estão apenas buscando
alternativas ao transporte público pouco eficiente. Por outro lado, ao forçar a convivência entre
duas pessoas, muitas vezes desconhecidas (mas com a devida salvaguarda de segurança do
cadastro no sistema), a prática pode estimular justamente o tipo de encontro casual vital para
as cidades. Ou seja, o compartilhamento de viagens, mais do que o compartilhamento de
veículos, pode fomentar o encontro entre pessoas na cidade, fortalecendo o contato e a
colaboração entre indivíduos de uma mesma comunidade. Nesse sentido, é uma prática que
incentiva uma maior participação e interação em ações coletivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que há uma grande quantidade de serviços digitais oferecidos atualmente
no campo da mobilidade. Desde sistemas de orientação e oferta de transporte público, que
visam auxiliar o usuário a encontrar as melhores rotas, linhas de ônibus, metrô e trens, aos de
transporte sob demanda, que incluem os serviços de táxi e, mais recentemente, os de motorista
particular.
Muitas dessas alternativas nascem da observação de uma realidade marcada por um
transporte público ineficiente, precário e custoso, e acabam por modificar a própria maneira
de agir dos transportes tradicionais, mesmo quando complementam a oferta regular desses
transportes. A aplicação das tecnologias de informação e comunicação na cidade vem sendo
pensada por diversos atores e elas podem representar tanto interesses corporativos de
grandes atores econômicos quanto alternativas inovadoras de baixo custo, feitas de forma
colaborativa e “de baixo para cima”. As plataformas e aplicativos aqui analisados devem ser
enxergados sob essa lente, evitando um olhar descolado da realidade econômica e política da
qual faz parte a dinâmica das plataformas digitais.
As questões que se colocam para a mobilidade urbana atualmente são um dos maiores
problemas das grandes cidades do mundo. A busca por soluções que possibilitem ao menos
mitigar os efeitos causados pelo excesso de veículos motorizados pode ser observada nos
exemplos estudados, em diferentes níveis, e elas passam principalmente pela ideia do
compartilhamento. Algumas das plataformas que atuam no campo da mobilidade urbana
nasceram de uma associação cooperativa entre pessoas de uma comunidade, buscando solução
para problemas locais, outras são fruto das pesquisas e investimentos do Vale do Silício. A
coexistência de apropriações das tecnologias digitais com distintas ênfases reforça a dicotomia
existente. Ao mesmo tempo que fornecem ferramentas para a conexão entre as pessoas de
forma direta e horizontalizada, também permitem a criação de grandes empresas-plataforma
que centralizam e exploram economicamente os serviços.
Um exemplo claro da necessidade de observar as interações sociais com a tecnologia surgiu
recentemente com a pandemia de COVID-19 no Brasil e no mundo em 2020. Nesse período,
podemos observar algumas mudanças significativas no uso da maioria dos exemplos aqui
analisados. O distanciamento social impõe restrições e condições para os deslocamentos
realizados na cidade, nesse sentido, fica dificultado o acontecimento de caronas, e mesmo, o
transporte por taxi e carros de aplicativos, mas principalmente o transporte público coletivo.
Podemos dizer que há uma diminuição do uso de aplicativos para transporte de passageiros,
aqui analisados, e um aumento significativo do transporte de bens - como comida - por
aplicativo, os aplicativos de entrega, que já vinham crescendo, mas ganham outra proporção e
importância com o início do isolamento social.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Plataformas digitais de mobilidade urbana: Tipos e modos de atuação.

O discurso de valorização do compartilhamento não pode ser tomado como valor absoluto.
Antes, é preciso examinar o que exatamente está sendo compartilhado, e como. Existe grande
diferença entre compartilhamento de viagens e de veículos, por exemplo, em termos de
emissão de poluentes ou mesmo de carros nas ruas. Por outro lado, a eficiência de
compartilhamento, ligada ao conceito de gerenciamento de banco de dados das chamadas
smart cities, também tem seus efeitos colaterais, na forma da perda de privacidade dos dados,
algo que sempre merece ser examinado mais a fundo, sopesando o quanto devemos, ou
queremos, abrir mão da privacidade individual para permitir o gerenciamento mais eficiente
de informações e recursos.

Agradecimentos

Este estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código Financeiro 001; e também pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que concedeu a bolsa de estudos para o
Mestrado em Urbanismo do PROURB/UFRJ. Os autores agradecem aos colegas do Laboratório
de Análise Urbana e Representação Digital - LAURD/PROURB pelas contribuições e ao
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB/UFRJ pelo apoio.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166833

CONECTIVIDADE E CONEXÃO NOS PROCESSOS PARTICIPATIVOS:


NOVAS TECNOLOGIAS E VELHOS PROBLEMAS

CONNECTIVITY AND CONNECTION IN PARTICIPATORY PROCESSES: NEW TECHNOLOGIES


AND OLD PROBLEMS

Vítor Domício de Meneses 1, Daniel Ribeiro Cardoso 1

RESUMO:
O planejamento da cidade contempla uma reflexão sobre quais caminhos de desenvolvimento são desejados
e como os problemas existentes podem ser resolvidos, tendo como condição essencial a participação popular.
1
As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) apresentam grandes transformações em diversos setores Universidade Federal
da sociedade e, sobretudo, inauguram novos canais de comunicação e novas formas de participação através do Ceará - UFC
de ambientes virtuais. Este trabalho tem como objetivos realizar um levantamento de dispositivos virtuais de
participação para analisar sua utilização nos processos participativos contemporâneos e identificar e
sistematizar os principais problemas destes processos. Para atingir os objetivos propostos, são analisados e
classificados seis dispositivos virtuais de participação mediante os tipos de conexão que estabelecem com os
usuários e, para refletir sobre sua utilização, são investigadas os entraves dos processos participativos
contemporâneos, sistematizando-os como problemas da ferramenta, problemas do processo e problemas do
cidadão. Entre as problemáticas apontadas estão a exclusão digital, a falta de legitimidade das redes, a vontade
política, a desigualdade social e a falta de engajamento político dos cidadãos. Os resultados da pesquisa
demonstram que os dispositivos de participação constituem novos processos, mas não solucionam os
problemas dos processos tradicionais, trazem novas possibilidades para participação ao mesmo tempo que
adicionam maior complexidade ao processo.

PALAVRAS-CHAVE: Tecnologias de Informação e Comunicação; Processos Participativos; Planejamento


urbano.

ABSTRACT:
The planning of the city includes a reflection on which development paths are desired and how existing
problems can be solved, with popular participation as an essential condition. Information and Communication
Technologies (ICTs) have undergone major changes in various sectors of society and, above all, have opened
new communication channels and new forms of participation through virtual environments. This work aims to
Fonte de Financiamento:
carry out a survey of virtual participation devices to analyze their use in contemporary participatory processes
Fundação Cearense de Apoio
and to identify and systematize the main problems of contemporary participatory processes. To achieve the ao Desenvolvimento
proposed objectives, six virtual participation devices are analyzed and classified through the types of Científico e Tecnológico -
connection they establish with users and, to reflect on their use, the barriers of contemporary participatory FUNCAP
processes are investigated, systematizing them as problems of the tool, process problems and citizen problems.
Among the issues pointed out are the digital exclusion, the lack of legitimacy of networks, political will, social Conflito de Interesse:
inequality and the lack of political engagement by citizens. The results of the research demonstrate that the Declara não haver.
participation devices constitute new processes, but do not solve the problems of traditional processes, they
bring new possibilities for participation while adding more complexity to the process. Submetido em: 17/02/2020
Aceito em: 08/07/2020
KEYWORDS: Information and Communication Technologies; Participatory processes; Urban planning

How to cite this article:

MENESES, V. D.; CARDOSO, D.R. Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166833
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

INTRODUÇÃO: A PROBLEMÁTICA DA PARTICIPAÇÃO


Desde o surgimento da cidade até os dias atuais, grandes transformações ocorreram para que
os primitivos agrupamentos humanos se convertessem em grandes metrópoles, adicionando
complexidade ao território e acarretando diversos problemas de ordem infraestrutural, social
e política. A ideia de cidade como um produto de todos os cidadãos ampara-se em uma
dimensão coletiva, pressupondo ações que objetivem o bem comum, e que, portanto, devem
ser planejadas em conjunto. Essa reflexão demonstra que a problemática da participação nos
processos políticos e de planejamento urbano está implícita na própria ideia de cidade,
constituindo-se como uma questão central que perpassa as discussões sobre os métodos de
planejamento territorial até hoje.
Planejar é um conceito que remete ao futuro, relacionado à noção de previsão. No
planejamento urbano, é preciso prever cenários e elaborar estratégias para atingir os objetivos
estabelecidos para a cidade (SOUZA, 2006). Como a atividade de planejar envolve o estudo e a
intervenção em um contexto de incerteza, conflitos e disputas, pode-se dizer que a
complexidade do planejamento urbano refere-se diretamente à cidade.
Assim, a cidade configura-se muito mais como um resultado dos conflitos socioeconômicos do
que como um produto democrático que pressupõe a participação. Frente aos conflitos sociais
e, sobretudo, contrariando os métodos tradicionais de planejamento onde geralmente o Estado
é o responsável pela produção de planos e pelas intervenções urbanas (práticas do tipo top-
down, alinhadas com a lógica tecnocrática), diversas iniciativas populares surgem buscando
autonomia e diálogo com o poder público para debater a cidade de maneira colaborativa
(práticas do tipo bottom-up, que emergem dos cidadãos).
Superando barreiras e criando novas possibilidades de atuação (ASCHER, 2010), as
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) criam novos espaços de troca e
compartilhamento, conectando governantes e governados e provocando diversas
transformações na cidade, “ampliando” o seu território (FIRMINO E DUARTE, 2008) a partir
das tecnologias e das novas redes estabelecidas. Para investigar esta temática, este trabalho
parte do seguinte questionamento: como as TICs estão sendo apropriadas em processos
participativos contemporâneos no contexto brasileiro?
No intuito de debater sobre as possibilidades de utilização das TICs nos processos
participativos é preciso considerar pontos positivos e negativos, tanto no modo de operar das
ferramentas como também nas possíveis ameaças existentes nas redes (MENESES et al, 2019;
REGATTIERI, 2019). A possibilidade de existência destas ameaças provoca sérios
questionamentos sobre a validade dos processos participativos contemporâneos, grande parte
realizados em ambientes virtuais. Esta pesquisa admite que as dificuldades enfrentadas nos
processos participativos contemporâneos não são provocadas somente pelas tecnologias e
que, portanto, é preciso investigar como as TICs podem contribuir para resolução desses
problemas no intuito de aumentar a eficiência dos processos. Nesse sentido, os objetivos deste
trabalho são: 1) Realizar um levantamento de dispositivos virtuais de participação para
analisar sua utilização nos processos participativos contemporâneos; 2) Identificar e
sistematizar os principais problemas dos processos participativos contemporâneos.

METODOLOGIA DE TRABALHO

Na intenção de compreender como funciona o processo de interação proporcionado pelos


dispositivos de participação que operam a partir de Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs), esta pesquisa parte de um levantamento bibliográfico sobre processos participativos,
contemplando métodos de participação tradicionais e contemporâneos (BORDENAVE, 1983;
ARNSTEIN, 1969; ALEXANDER, 1998; PEREIRA, 2017; SOUZA, 2006; ROCHA e PEREIRA, 2011;
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso

GOMES, 2011), e sobre cidade contemporânea e tecnologias, buscando compreender as


transformações na cidade e no planejamento a partir do desenvolvimento tecnológico
(ASCHER, 2010; BATTY, 2011; CASTELLS, 1999; FIRMINO, 2011; FIRMINO e DUARTE, 2008;
LEMOS, 2016; LÉVY; 1999; MENESES, 2017; MENESES et al, 2019; MOROZOV, 2019).
A segunda parte do trabalho consiste no levantamento e na classificação de dispositivos
virtuais de participação, baseando-se inicialmente na pesquisa realizada por Meneses (2017).
Foi realizada uma busca em sites, blogs, redes sociais e portais governamentais para selecionar
iniciativas apresentadas como participativas. Da lista de iniciativas pesquisadas, este trabalho
apresenta e analisa seis exemplos. Foram estabelecidos parâmetros de análise para
caracterizar a origem (instituição ou organização mantenedora), o objetivo (intuito maior de
funcionamento), as ferramentas (possibilidades de uso do dispositivo) e o tipo de conexão
estabelecido pelos dispositivos com o usuário (MENESES, 2017; VIEIRA, 2008).
Ao final, no intuito de atingir os objetivos almejados, foi realizada uma reflexão sobre a
contribuição dos dispositivos virtuais nos processos participativos, amparando-se em análises
de outros autores sobre as dificuldades de realização de processos participativos tradicionais
(LUCHMANN, 2003; PEREIRA, 2017; SOUZA, 2006) e contemporâneos (ROCHA e PEREIRA,
2011; GOMES, 2011, MENESES et al, 2019), visando discutir sobre os pontos positivos e
negativos dos dispositivos virtuais nos processos participativos.

DA ESCADA DA PARTICIPAÇÃO ÀS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E


COMUNICAÇÃO

A necessidade de existir participação em processos decisórios sobre o planejamento do espaço


ou sobre o uso de recursos públicos parece ser reconhecida por todos os setores da sociedade,
inclusive como condição essencial para o êxito do planejamento urbano, por exemplo. No
entanto, o atual contexto de elaboração de políticas, projetos e planos diretores no Brasil
demonstra que a falta de participação ainda é um dos maiores obstáculos para a
democratização desses processos (PEREIRA, 2015).
A sociedade está organizada a partir grupos sociais promotores de interação entre seus
membros e, neste sentido, a participação manifesta-se como uma característica intrínseca do
ser humano, uma necessidade de sentir-se parte, de atuar de forma coletiva na construção de
um objetivo comum (BORDENAVE, 1983). O debate sobre a participação adquiriu cada vez
mais importância ao longo da história e, considerando o atual contexto político brasileiro,
tornou-se um debate profundamente influenciado pela crise de representatividade e pelo
descrédito das instituições. A realização de processos de planejamento urbano sem a
participação dos habitantes da cidade enfraquece as dimensões democráticas e prolonga a
situação de segregação presente na sociedade.
Um fato que agrava a contradição presente nos processos de planejamento urbano é que,
segundo o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), a participação é obrigatória na elaboração de
planos diretores municipais. No entanto, estes processos ocorrem sem o conhecimento da
população, ou a partir de ações de cooptação, nas quais ocorre uma participação simulada e o
debate é conduzido para decisões acertadas previamente com base em interesses privados.
Sherry Arnstein propôs uma classificação referente a participação popular chamada de “escada
da participação” (ARNSTEIN, 1969), baseando-se em diversos processos ocorridos nos Estados
Unidos na década de 1970 e descrevendo um contexto bastante semelhante ao brasileiro. A
ideia de Arnstein, que influencia o pensamento de planejadores e estudiosos da cidade até hoje,
é uma crítica aos processos promovidos pelo Estado, que geralmente são rotulados de
participativos mas ocorrem sem uma participação popular genuína. A crítica da autora
permanece atual pois, dada a situação de crise pela qual passa a democracia contemporânea,

37
Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

continuam ocorrendo processos sem nenhum comprometimento com as demandas populares.


A escada da participação é composta, indo do menor para o maior grau de participação, das
seguintes classificações: Manipulação, Terapia, Informação, Consulta, Pacificação, Parceria,
Delegação de poder e Controle cidadão.

Figura 1: Escada da
Participação.

Fonte: Elaborado por


Meneses (2017) a partir de
Arnstein (1969).

Segundo a autora, os dois primeiros degraus (Manipulação e Terapia) são considerados


exemplos de não-participação. Os níveis de informação e consulta abrem um campo maior de
possibilidades, porém ainda com diversas restrições pois, apesar de proporcionar o diálogo,
não há certeza sobre a compreensão do posicionamento da população no processo decisório.
O patamar denominado de Pacificação (entendido também como apaziguamento) consiste em
uma evolução dos dois últimos degraus descritos, com a possibilidade de maior abertura de
diálogo. Somente os três últimos degraus representam casos de participação popular genuína,
onde é expresso o verdadeiro poder cidadão. No primeiro caso, a população pode realizar uma
“parceria que lhes permita negociar de igual para igual com aqueles que tradicionalmente
detém o poder” (ARNSTEIN, 1969). Nos dois últimos degraus, a população detém a maioria do
poder nos processos decisórios ou detém o poder por completo.
O debate sobre novas formas de participação, contando com o esforço de grupos da sociedade
civil e de movimentos sociais, obteve importantes conquistas ao longo do tempo, tais como: a
Constituição Federal de 1988, conhecida como constituição cidadã; o Estatuto da Cidade em
2001, que tornou obrigatória a participação na elaboração de planos diretores; a criação do
Ministério das Cidades em 2003, que trouxe a política urbana para o centro do debate sobre o
desenvolvimento das cidades. Diversas práticas alternativas desenvolveram-se como
consequência da crescente necessidade de engajamento popular, fazendo emergir novas
ferramentas de participação que, mais recentemente, passaram a apresentar-se alinhadas com
as novas possibilidades das Tecnologias de Informação e Comunicação. No entanto, mesmo
utilizando-se de novas ferramentas, os canais de participação contemporâneos permanecem
tendo o objetivo de proporcionar autonomia e cidadania para a população.
Além de proporcionar novas possibilidades de participação, as tecnologias computacionais de
base digital, principalmente através de aplicativos móveis, passaram a proporcionar novas
formas de expressão, novas linguagens que modificam completamente o modo de vida
contemporâneo e produzem um “dilúvio de informações” (LÉVY, 1999).
Esta condição de ubiquidade das Tecnologias de Informação e Comunicação (CASTELLS, 1999)
transforma a cidade e a relação das pessoas com o espaço urbano, e faz emergir conceitos como
o de ciberespaço, definido por Pierre Levy como “rede” (LÉVY, 1999) e por André Lemos como
o ambiente telemático que abriga os aplicativos e as redes sociais, “se confunde com a Internet,
mas não está a ela limitado” (LEMOS, 2016). Rodrigo Firmino interpreta esta situação
defendendo a ideia de uma cidade “ampliada” pelas tecnologias telemáticas, onde o espaço
torna-se híbrido e é necessário “reconceitualizar as relações entre espaço, tempo e tecnologia”
(FIRMINO, 2011. p.8).
Batty explana sobre a evolução da noção de cidade, antes tratada como sistema mecânico
(conjunto de partes que interagem em equilíbrio, organizada de cima para baixo), e atualmente
mais próxima da noção de organismo biológico (não está sempre em equilíbrio), que evolui de
baixo para cima, como “produto de milhões de decisões individuais e em grupo” (BATTY,
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso

2011), noção que atesta a relevância e a potência da participação dos cidadãos na construção
da cidade, compreendida como produto coletivo.
É preciso considerar, portanto, que os dispositivos de comunicação contemporâneos de fato
permitem novas formas de participação, porém, a internet e suas ferramentas, bem como os
aparelhos conectados através da rede, não constituem, sozinhos, uma garantia de participação.
E ainda, quando esta participação de fato pode ser verificada, não é possível ter certeza da sua
qualidade ou dos seus impactos. Segundo Gomes (2011), apesar disto, é possível que existam
alternativas de auxílio e incremento para a participação através da internet, dividindo-a em
instrumental e essencial a partir do seu uso específico (GOMES, 2011. p 20). O usuário, por
exemplo, que utiliza um e-mail para fazer contatos políticos, apenas trocou a carta pelo e-mail,
substituindo a forma de comunicar-se e fazendo com que, neste caso, a internet seja somente
instrumental. Porém, quando o usuário lança mão de ferramentas como blogs, Facebook,
Twitter, ocorre que a internet – tal como especificou Gomes (2011) – é essencial pois estes
recursos, embora sejam também formas de comunicação tal qual as formas tradicionais,
guardam possibilidades de comunicação e interação desenvolvidas especificamente para estas
ferramentas. A questão mais relevante levantada por essas definições reside no debate sobre
os novos mecanismos de interação trazidos pela Internet e pelos novos meios de comunicação
e as suas possibilidades para a participação.
Entretanto, em um estudo sobre as redes sociais virtuais enquanto espaços de participação,
Rocha e Pereira (2011) atestam que as mídias sociais “não vêm sendo predominantemente
utilizadas para constituir espaços virtuais de interação capazes de incluir o cidadão como ator
ativo na tomada de decisões. Pelo contrário, em geral, elas têm sido utilizadas pelo Estado para
um tipo de comunicação unidirecional” (ROCHA e PEREIRA, 2011). A condição de subutilização
dessas ferramentas por parte do Estado é um reflexo do que ocorre, grande parte das vezes,
com as ferramentas de participação tradicionais – ou que não utilizam tecnologias de base
digital. Conforme observado no estudo de Arnstein (1969), os diversos tipos de participação
demonstram que nem sempre as “rotinas participativas” (SOUZA, 2006) vão além da fase de
informação. No entanto, a divulgação de informações relativas à gestão e suas ações é um passo
importante para conquistar um patamar de controle social.

DISPOSITIVOS VIRTUAIS DE PARTICIPAÇÃO: CONECTIVIDADE E CONEXÃO

Para analisar alternativas de participação por meio das TICs, as iniciativas aqui apresentadas
foram definidas como Dispositivos Virtuais de Participação. Segundo o dicionário Michaelis
On-line, dispositivo é “aquilo que determina, que ordena”, e “Aquilo que contém ordem; norma,
preceito, prescrição”, portanto, compreende-se aqui os sites, aplicativos, plataformas, blogs
como dispositivos que operam através de dimensões virtuais (a partir de tecnologias de
informação e comunicação de base digital) e cujo objetivo é a participação popular em
processos de interesse público e coletivo.
A partir do levantamento realizado e analisando a origem, os objetivos e as ferramentas de
cada dispositivo, foi adotada a seguinte classificação em três tipologias: Dispositivos de
Informação, Dispositivos de Mobilização e Ativismo e Dispositivos Didáticos e de Pesquisa
(MENESES, 2017).
Os Dispositivos de Informação representam a tipologia mais tradicional e tem como exemplo
os portais de informação governamentais, cujo objetivo principal é fornecer informações sobre
o território (cidade, estado, país). Neste caso, são sites criados para divulgar informações da
gestão municipal, estadual ou federal e funcionam, na maior parte das vezes, apenas como
ambientes de marketing político, exibindo dados previamente selecionados para construir a
imagem desejada sobre a gestão pública. No caso de serem mantidos por iniciativas da
sociedade sem vínculos governamentais, assumem um papel de apoio ao controle social
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

quando fornecem informações estratégicas para os cidadãos. O objetivo desse tipo de


dispositivo está relacionado ao compartilhamento de informações para que o cidadão
acompanhe os acontecimentos e possa agir. No entanto, nem sempre há espaço para interação
com o usuário. Mesmo assim, configura-se como uma iniciativa importante pois o acesso à
informação é o primeiro passo do processo participativo.
Um dos exemplos desta tipologia, o Fortaleza em Mapas (https://mapas.fortaleza.ce.gov.br/),
elaborado pelo Instituto de Planejamento de Fortaleza, é uma plataforma colaborativa de
mapas abertos para inserção de dados sobre a cidade. O usuário deve entrar no site do projeto,
escolher uma legenda temática na qual se classifica a informação que será mapeada (Espaços
de lazer e convívio, Violência, Acessibilidade, Cultura e memória, Risco a saúde, Economia, Meio
ambiente) e inserir os dados com uma breve descrição. O sistema recebe os dados fornecidos
pelo usuário e gera relatórios periodicamente. Porém, nem todos os dados são utilizados para
fins de planejamento e não existe um controle exato para selecionar os dados relevantes e
otimizar o serviço. Neste caso, a única possibilidade de interação entre o usuário e a prefeitura
é a seção “fale conosco”, além da própria atividade de inserção de dados urbanos (ocorrências,
buracos nas ruas, pontos de alagamentos, etc.). Porém, conforme Rocha e Pereira (2011)
descrevem, a maioria dos portais do governo são espaços de comunicação unidirecional, fato
percebido na pesquisa de Meneses (2017) sobre o Fortaleza em Mapas, quando aponta que a
informação emitida pelo cidadão não tem nenhuma garantia de divulgação na forma de dado
aberto na plataforma.
Outro exemplo de Dispositivo de Informação é o Observatório Cidadão de Piracicaba
(http://www.observatoriopiracicaba.org.br/), uma plataforma criada por um conjunto de
entidades públicas e privadas com o intuito de compartilhar informações de interesse do
cidadão na esfera municipal. Intitulando-se como uma ferramenta de controle social, o
observatório reúne informações divididas nos seguintes temas: Meio Ambiente, Metas,
Participação Social e Transparência Pública. Os dados são apresentados sob a forma de
indicadores construídos a partir de fontes diversas, permitindo ao cidadão realizar análises
sobre a construção e implementação de políticas públicas do município. O Observatório de
Piracicaba também só permite a interação com os usuários do Portal através do “fale conosco”
e não apresenta os resultados ou feedbacks desse diálogo. A plataforma, portanto, apenas se
propõe a fornecer informações e fontes para que o cidadão assuma uma conduta ativa em outro
espaço, ou seja, configurando-se como um ambiente de coleta e compartilhamento de
informações.
A segunda tipologia, Dispositivos de Mobilização e Ativismo, também pode ser chamada de
“rede” pois fornece aos seus usuários a possibilidade de se reunir em grupos para criar
mobilizações e também permite conectar-se com tomadores de decisão para exigir feedback
sobre processos em andamento. A transformação da conduta de cidadão passivo, apenas
consumidor de informações, para a conduta de cidadão ativo, que se integra em um movimento
de mobilização e ativismo, é possibilitada a partir da mudança de relação entre portal e usuário.
Os objetivos deste tipo de dispositivo são relativos às ações concretas dos cidadãos, como por
exemplo, criar petições e abaixo-assinados online (apenas modificando a forma de coletar
assinaturas mas mantendo as intenções originais), ou mesmo propor projetos de lei de
iniciativa popular com base no número de usuários favoráveis.
Um dos exemplos desta tipologia é o Nossas (https://www.nossas.org/), que iniciou os
trabalhos chamando-se “Nossas Cidades”. Definindo-se como um laboratório de ativismo, uma
organização apartidária e sem fins lucrativos, o Nossas propõe dar voz às demandas dos
cidadãos através de uma rede de mobilização e ativismo em diversas cidades do Brasil. Além
disso, a iniciativa também atua como uma incubadora, promovendo capacitações e
treinamentos e fornecendo suporte a fim de que organizações a nível municipal (Meu Rio,

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso

Minha Sampa, Meu Recife) se mobilizem e atuem prol das causas locais com uma rede de
voluntários. O Nossas, através das suas redes municipais criou e geriu algumas ferramentas,
tais como a Panela de Pressão (para fazer pressão popular nos tomadores de decisão), a
Legislando (para apoiar e promover projetos de lei de iniciativa popular) e a De Guarda (para
possibilitar “vigílias” virtuais em edificações ou locais ameaçados de demolição ou ocupação
indevida pelo poder público). Uma característica diferenciada do Nossas é a prestação de
contas aberta que é realizada na seção “Transparência” mediante o compartilhamento de
auditorias contábeis e do relatório anual para livre conferência.
Outro caso de Dispositivo de Mobilização e Ativismo é o Change.org
(http://www.change.org/), uma plataforma virtual de construção de abaixo-assinados sobre
diversos temas de interesse público que apoia iniciativas em várias partes do mundo. O sistema
funciona na forma tradicional de um abaixo-assinado, porém, com o auxílio da internet e da
inteligência artificial, a plataforma faz com que o abaixo-assinado seja visto por um público
específico de pessoas que possuem interesse no tema e também contribui para que o resultado
chegue aos tomadores de decisão, pressionando-os e influenciando sua conduta.
A terceira e última tipologia de dispositivo, os Dispositivos Didáticos e de Pesquisa, assemelha-
se à tipologia Dispositivos de Informação, porém, inserindo mecanismos de interatividade e
permitindo análises, comparações e configurações na exibição dos dados. É importante
observar que, a partir do levantamento realizado, esta tipologia de dispositivo, na maioria das
vezes, possui uma atuação de caráter interescalar, diferente das outras tipologias que
geralmente se concentram na escala local. Muitas vezes criados através da associação de
empresas e instituições particulares, esses dispositivos, embora promovam compartilhamento
de informações para os cidadãos, também possuem uma preocupação didática e de pesquisa.
Além de fornecer dados para o usuário, esses portais oferecem mecanismos interativos de
organização e análise desses dados, adicionando mais complexidade na construção de cenários
e no agrupamento de informações.
Um exemplo desta tipologia é a Alerta Democrática (http://alertademocratica.org/), uma
plataforma criada em 2014 a partir do emergente contexto político mundial mediante a
reunião de líderes de todos os países da América Latina para a criação de cenários, prevendo
transformações na democracia até o ano de 2030. Iniciativa do Instituto Reos e apoiada por
instituições internacionais como Fundação Ford e Fundação Avina, a Alerta Democrática
constrói previsões baseadas em fatos e destaca possibilidades e desafios democráticos para o
futuro. Esse contexto é apresentado em um exercício de construção de quatro cenários
distintos: “Democracia em Transformação”, “Democracia em Tensão”, “Democracia em
Mobilização” e “Democracia em Agonia”. Utilizando-se da metodologia de Planejamento de
Cenários Transformadores, a plataforma apresenta questões como a falta de
representatividade, descrença da população nas instituições, conflitos socioespaciais, novos
canais de mobilização por meio da tecnologia, corrupção e repressão policial e
desenvolvimento de novas formas de participação e colaboração. A intenção da plataforma é
apresentar os cenários como produto provocativo e em tom de alerta para que os cidadãos
tenham consciência e se mobilizem sobre os caminhos possíveis da democracia
latinoamericana e para embasar a construção de agendas e condutas nos âmbitos políticos,
acadêmicos e sociais.
Outra iniciativa classificada como Dispositivo Didático e de Pesquisa é o Instituto Update –
Laboratório de Inovação Política na América Latina (https://www.institutoupdate.org.br/). É
fruto da sociedade civil e trabalha com pesquisa e fomento de iniciativas de inovação política,
mobilização e participação na América Latina – geralmente com uso da internet – utilizando
como background o contexto sociopolítico do continente. O resultado é um panorama de
projetos que a plataforma pesquisa e fomenta, tais como: Emergência política de mulheres
(pesquisa realizada com mulheres eleitas para cargos públicos), Formação Democrática
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

(capacitações para equipes de campanhas políticas inovadoras e de baixo orçamento),


Gabinete da inovação (grupos de debate com gabinetes atuantes na inovação política),
Emergência política tendências (levantamento e classificação de 700 iniciativas de inovação
política da América Latina), dentre outros.
O Instituto Update foi criado em 2015 apenas com a pesquisa sobre as iniciativas de inovação
política da América Latina e atualmente recebe doações de pessoas físicas e de instituições
(como BMW Foundation, Fundação Ford e Fundação Avina), atuando com o objetivo de gerar
visibilidade para as ações pesquisadas e também impulsionar a viabilidade do ecossistema de
inovação política latinoamericano.
Para compreender a relação entre os objetivos dos dispositivos e sua utilização, é essencial
questionar-se sobre a conexão que eles representam para cidadãos e governantes. Segundo
Vieira (2008), parâmetros evolutivos são aqueles que expressam a temporalidade de qualquer
sistema. Encarando o processo de planejamento participativo como um sistema composto de
diversas partes relacionadas, dois destes parâmetros são relevantes para esta análise:
conectividade e estrutura. Segundo o autor, a conectividade é a capacidade dos elementos de
um sistema de estabelecer conexões ou relações entre si. Já estrutura ocorre quando as
relações são estabelecidas, é a conexão de fato (VIEIRA, 2008). Ou seja, a conectividade
representa a possibilidade, a estrutura representa o fato ocorrido. Neste sentido, os novos
espaços virtuais de produção e compartilhamento de informações estabelecidos pelo uso das
TICs representam possibilidades de conexão entre atores sociais, porém não representam
estas conexões de fato.
Os dispositivos virtuais de participação apresentados operam sobre a conectividade
ampliando as possibilidades de efetivação de novas conexões, em muitos casos, com agilidade
e eficiência. Algumas vezes também possibilitam tipos de relações nunca antes
experimentadas, atributo próprio da ubiquidade das TICs. Porém, é preciso admitir que o
estabelecimento de um canal de relação entre um cidadão e um gestor não significa
necessariamente a construção de uma atividade democrática e participativa de planejamento
da cidade. Nos casos nos quais a conexão é de fato estabelecida, a análise deve ocorrer sobre a
qualidade e a efetividade do contato proporcionado. Segundo Denbigh (1975 apud VIEIRA,
2008) as conexões podem ser ativas, quando permitem o intercâmbio de informações;
indiferentes, quando são indiferentes a este intercâmbio; e podem ser opostas ou contrárias,
quando bloqueiam o transporte de informações. Esta classificação corrobora com os tipos de
dispositivos apresentados anteriormente.
Os dispositivos do tipo Mobilização e Ativismo estabelecem conexões do tipo ativas, tais como
as redes sociais virtuais que funcionam como espaços democráticos de comunicação
multidirecional. Os dispositivos do tipo Didáticos e de Pesquisa podem estabelecer conexões
do tipo indiferente, visto que muito deles são indiferentes – e muitas vezes até estanques – na
transmissão das informações que exibem. Nos dispositivos do tipo Informação, no caso
específico dos portais governamentais, o fluxo de informações é, na maioria das vezes,
unidirecional. Dessa forma, as conexões que estes dispositivos estabelecem são do tipo opostas
ou contrárias. A seguir está um quadro síntese sobre os dispositivos virtuais de participação,
suas características e sua classificação quanto à tipologia e ao tipo de conexão.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso

Figura 2: Caracterização e
classificação dos dispositivos
virtuais de participação.

Fonte: Adaptado de Meneses


(2017).

Pode ser observado que todos os dispositivos analisados trazem algum tipo de contribuição
em diferentes etapas do processo participativo dado que apresentam possibilidades de
interação (conectividade) entre governantes e governados ou permitem a criação de espaços
de debate sobre questões importantes relativas a população. Porém, é preciso considerar que,
assim como definido por Arnstein (1969) sobre processos de cooptação ou terapia, os espaços
virtuais de participação também podem ser corrompidos. Como o formato foi transformado
(do espaço físico para o espaço virtual), o processo parece diferente e, muitas vezes, idôneo,
mas permanece com problemáticas muito semelhantes às verificadas nas metodologias
tradicionais. Por esse motivo, como dito anteriormente, é essencial refletir sobre a qualidade
da conexão estabelecida.
Este panorama demonstra, ao estudar sobre as novas possibilidades trazidas pelas TICs, a
exigência de permanecer com uma visão crítica sob pena de aderir a uma perspectiva
enviesada sobre o assunto. Não se pode ignorar a falibilidade dos dispositivos estudados, bem
como o largo conjunto de fatores que influenciam opiniões e ações nos espaços virtuais. São
constantes os questionamentos sobre a legitimidade da democracia exercida nos espaços
virtuais, por isso, processos desta natureza devem considerar as limitações impostas pelo
próprio espaço virtual, tais como a falsa identidade, a manipulação e falsificação de dados e
mídias (MENESES et al, 2019; REGATTIERI, 2019).

PROCESSO PARTICIPATIVO: NOVAS TECNOLOGIAS, VELHOS PROBLEMAS

Para responder ao questionamento inicial, é necessário refletir sobre as contribuições das


tecnologias em fases específicas do processo participativo, buscando perceber quais entraves
permanecem mesmo com uso de ferramentas digitais. Para realizar uma análise aprofundada,
este trabalho propõe que o tema seja interpretado a partir de três perspectivas diferentes: os
problemas da ferramenta (relativos ao modo de funcionamento das ferramentas amparadas
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

nas TICs e as influências externas); os problemas do processo participativo (relativos à


metodologia de trabalho) e problemas dos cidadãos (relativos a aspectos socioeconômicos e
políticos).
Sobre os problemas da ferramenta (TICs), o fator mais importante a ser contemplado no debate
é a exclusão digital, grande entrave para o desenvolvimento de populações em diversas partes
do mundo. De acordo com a Organização das Nações Unidas, um dos objetivos para o milênio
é “Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento”, apresentando como uma das
metas a ampliação do acesso às tecnologias de informação e comunicação. Esta necessidade é
confirmada por um estudo que descreve um cenário no qual “menos de um terço da população
no mundo em vias de desenvolvimento está online, em comparação com os 78 por cento no
mundo desenvolvido” (NAÇÕES UNIDAS, 2015). Ao mesmo tempo, no relatório de 2015 já é
percebido um aumento de pessoas que possuem telefone móvel e internet.
Segundo Marques (2014), os estudos relativos aos impactos das tecnologias digitais sobre a
democracia apresentam dois equívocos: o determinismo tecnológico e a ingenuidade nas
análises sobre o poder das instituições e agentes representativos. Compreende-se como
determinismo tecnológico a crença de que a tecnologia provoca transformações na sociedade
e não o contrário, ou a percepção da influência da tecnologia como algo sempre positivo,
ignorando os mecanismos de manipulação e poder que se apresentam na forma de “inovação
tecnológica” (CASTELLS, 1999. p. 64). Esta ideia também é exemplificada por Morozov (2019)
em sua análise crítica sobre a construção do conceito de smart city, quando o autor aponta
indícios da ligação do termo “smart” à estratégia de grandes corporações para ampliação dos
lucros com a inserção de tecnologia nas cidades, tornando-as “inteligentes” (MOROZOV, 2019).
A exclusão digital não está somente na impossibilidade de acesso a um aparelho smartphone
ou a um computador com internet, mas também na falta de conhecimento sobre as
ferramentas. Por fim, admitindo conectividade e conexão como conceitos diferentes (VIEIRA,
2008), é essencial compreender que o acesso do usuário à ferramenta não garante a sua
participação efetiva pois é necessário um engajamento do cidadão para integrar o processo
participativo. (MENESES, 2017).
Outro problema da ferramenta é a falta de legitimidade das redes de participação, muitas vezes
ocasionado pela influência das instituições nos espaços virtuais (MARQUES, 2014). Diversos
canais são criados com o intuito participativo e no entanto, servem apenas aos interesses das
empresas que os patrocinam (MENESES et al, 2019) e, em outros casos, são criados por entes
públicos somente para cooptação, como os portais governamentais, por exemplo, que
promovem apenas uma comunicação unidirecional (ROCHA e PEREIRA, 2011). Além disso, são
conhecidos diversos casos da utilização de estratégias de manipulação tais como perfis falsos,
robôs, disparo em massa de notícias falsas, softwares de edição audiovisual utilizados para
produção de fake news, recursos que influenciam o comportamento das pessoas mediante
mineração, modelagem de dados e manipulação de tendências, modificando sobremaneira as
redes existentes e colocando em cheque a credibilidade desses espaços (REGATTIERI, 2019;
RUEDIGER, 2017; MENESES et al., 2019).
Sobre os problemas do processo participativo, devem ser consideradas algumas condições
favoráveis à participação popular de qualidade em políticas públicas ou na elaboração de
Planos Diretores (PEREIRA, 2017; LUCHMANN, 2003). As condições para que ocorra a
participação popular em políticas públicas – definidas por Luchmann (2003) – são a tradição
associativa, a vontade política e o desenho institucional. Pereira (2017) acrescenta mais uma
condição: o comprometimento dos técnicos envolvidos com o princípio participativo. O autor
também destaca a importância de considerar a influência dos fatores próprios do território em
estudo (contexto local). A imagem de um processo participativo é, muitas vezes, a de um

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Vítor Domício de Meneses, Daniel Ribeiro Cardoso

processo lento, complexo, oneroso e ineficiente para a escala da cidade, principalmente pela
quantidade de atores participantes e a dificuldade de estabelecer acordos.
Também é preciso considerar como problema do processo a adequação das ferramentas
digitais no âmbito institucional, sua aderência no sistema de planejamento adotado e sua
eficiência na resolução dos problemas existentes (MENESES, 2017). Este fator atesta a
importância da dimensão institucional, seja no comprometimento da gestão pública com o
processo participativo, seja no desenvolvimento de ferramentas para possibilitar processos
mais dinâmicos com feedback contínuo da população (ASCHER, 2010).
Segundo Souza (2006), podem ser identificados três tipos de obstáculos à participação
popular. O primeiro deles é a cooptação, prática que transforma o processo participativo em
“um instrumento de domesticação da sociedade civil por parte das forças políticas à frente do
aparelho de Estado.” (SOUZA, 2006. p. 410). O segundo obstáculo é definido pelo autor como a
problemática da implementação (do processo), reunindo todas as dificuldades logísticas
enfrentadas para a realização de um processo como esse, tais como incompetências gerenciais,
conflitos políticos e ideológicos, pressão de grupos sociais influentes (SOUZA, 2006. p. 410).
Sobre os problemas dos cidadãos, compreende-se principalmente as dificuldades
socioeconômicas, fator que impede a população de ter tempo livre para participar dos
processos (MENESES, 2017). Esta mesma questão também é apontada por Souza (2006) como
a problemática da desigualdade, referente as dificuldades enfrentadas pelas populações de
baixa renda para participar voluntariamente de reuniões e assembléias promovidas em prol
de questões coletivas. Essas dificuldades vão desde as privações financeiras até os problemas
de disponibilidade de horários que não concorram com o expediente de trabalho. O autor cita
ainda dificuldades ligadas a autoconfiança dos cidadãos envolvidos, que nem sempre
acreditam no potencial de sua participação no processo (SOUZA, 2006. p. 411). Além disso, é
preciso considerar também como problema dos cidadãos a falta de engajamento político, em
grande parte motivada pelo contexto atual de descrédito das instituições, falta de confiança
nos processo políticos e participativos (MENESES, 2017). Abaixo está um quadro síntese com
os problemas apontados pelos diversos autores.

Figura 3: Síntese dos


problemas do processo
participativo contemporâneo.

Fonte: Elaborado pelos


autores.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
velhos problemas

Ao observar o quadro-síntese é possível perceber que há um contexto de profunda


transformação nos processos participativos com a inserção crescente das Tecnologias de
Informação e Comunicação. No entanto, apesar de as relações e interações nesses processos
terem sido modificadas, é notável que os entraves existentes nos métodos tradicionais
permanecem nos processos que utilizam os dispositivos virtuais. Além disso, é importante
ressaltar a influência de fatores e agentes externos ao processo, muitas vezes no âmbito
político e econômico, alterando o caráter dos espaços participativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, retoma-se aqui o questionamento inicial: como as TICs estão sendo apropriadas
em processos participativos contemporâneos no contexto brasileiro? Para responder a esta
questão foi realizado um levantamento bibliográfico que apresentou um panorama mais
aprofundado sobre a ubiquidade das TICs não só nos processos participativos, mas em todos
os setores da sociedade, demonstrando a abrangência destes recursos e expondo seus
conflitos, tais como a exclusão digital. A base teórica selecionada para amparar o estudo aqui
apresentado aponta para novos paradigmas socioeconômicos, políticos e culturais que passam
a influenciar também no planejamento urbano. Esta percepção inicia-se com o reconhecimento
de novas possibilidades para a participação, debate essencial para a construção de cidades
mais democráticas.
Sobre este tema, a partir da análise dos dispositivos pesquisados e da sistematização proposta
para os problemas dos processos participativos contemporâneos, fica claro que os novos
métodos guardam problemas muito semelhantes aos encontrados nos processos participativos
tradicionais. Essa conclusão representa um grande desafio (ou a renovação do desafio seminal)
para o planejamento urbano: Como construir cidades mais democráticas considerando o
contexto de desigualdades e entraves políticos da sociedade? Mais do que compreender o
desafio, é importante ter consciência da influência e do potencial das tecnologias neste
processo e também das ameaças que elas podem representar.
Nesse sentido, é essencial admitir que, refutando uma perspectiva de determinismo
tecnológico, as TICs não são responsáveis pela transformação e pelo engajamento das
populações em prol de questões coletivas. Esse engajamento é provocado por fatores de ordem
política e social que apenas são reproduzidos com fidelidade nos espaços virtuais. Ou seja, o
espaço é o meio para que as transformações ocorram, influenciando de forma positiva ou
negativa a depender do contexto. As Tecnologias de Informação e Comunicação não
representam, portanto, a solução para os problemas encontrados nos processos participativos
– e talvez adicionem mais complexidade a eles – mas devem ser encaradas como uma
alternativa aos métodos tradicionais em busca de um urbanismo de dispositivos (ASCHER,
2010), objetivando monitorar o desenvolvimento da cidade em tempo real para planejar
intervenções mais dinâmicas e construir espaços mais democráticos.

Referências Bibliográficas

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Conectividade e conexão nos processos participativos: novas tecnologias e
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Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168715

ADIÇÃO GRADUAL DA INFORMAÇÃO SOBRE UM PATRIMÔNIO


ARQUITETÔNICO: PRODUÇÃO DE MODELOS E DE SENTIDOS
GRADUAL ADDITION OF INFORMATION OVER AN ARCHITECTURAL HERITAGE:
PRODUCTION OF MODELS AND SENSES

Adriane Borda A. da Silva1, Cristiane dos Santos Nunes 1, Stefani Curth Goulart1, Bethina
Harter Silva1

RESUMO:
Este estudo relata a estruturação de um método de representação utilizado em um contexto de investigação
em arquitetura, especificamente envolvendo a produção em um laboratório de fabricação digital. O método 1Universidade Federal de
Adição Gradual da Informação - AGI, está dirigido à produção de modelos táteis para apoiar ações culturais Pelotas - UFPEL
inclusivas relativas a um conjunto arquitetônico de interesse histórico e patrimonial da cidade de Pelotas. A
partir da teoria da escalada da abstração, de Vilém Flusser, este método é problematizado, observando-se a
lógica de associar a variável dimensional das representações envolvidas com os níveis abstracionais exigidos
para produzi-las e compreendê-las como meios de comunicação. A dinâmica de estruturação do método,
apoiada em processos de co-design, entre universidade e sociedade, atribui sentidos ao uso dos modelos e ao
potencial das tecnologias digitais empregadas, promovendo a continuidade na produção e ampliação das
narrativas táteis sobre o patrimônio pelotense.

PALAVRAS-CHAVE: Representação; Patrimônio Arquitetônico; Fabricação digital; Modelos táteis; Flusser

ABSTRACT:
This study reports the structuring of a representation method used in a context of architectural research, Fonte de Financiamento:
involving production in a digital manufacturing lab. The GAI method, an acronym for Gradual Addition of FAPERGS, CNPq e
Information, aims at the production of tactile models to support inclusive cultural actions concerning an PREC/PROEXT/UFPel
architectural set of historical and patrimonial interest in the city of Pelotas. From Vilém Flusser's theory of (bolsas de estudantes)
escalation of abstraction, this method is problematized, observing the logic of associating the dimentional Infraestrutura física
variable of the employed means to make and comprehend them. The dynamic of the methods structuring, (máquinas): FINEP, PROEXT,
supported by co-design processes between university and society, assigns meaning to the usage of the models Programa ALFA/CE.
and to the potential of the employed digital technologies, promoting continuity in the production and Insumos: PROEXT.
enlargement of the tactile narratives of Pelotas' patrimony.
Conflito de Interesse:
KEYWORDS: Representation; Architectural Patrimony; Digital Manufacturing; Tactile Models; Flusser Declara não haver.

Submetido em: 12/04/2020


Aceito em: 08/07/2020

How to cite this article:

BORDA, A. B. A.; NUNES, C. S..; GOULART, S. C.; SILVA, B. H. Adição gradual da informação sobre um patrimônio
arquitetônico: produção de modelos e sentidos. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-,
2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168715
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

INTRODUÇÃO

Um conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Pelotas-RS está reconhecido pelo


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como Patrimônio Cultural
Brasileiro. Incluem-se neste conjunto uma charqueada, uma chácara, um parque e quatro
praças, sendo uma destas a Praça Coronel Pedro Osório. O entorno desta Praça preserva
diversos edifícios de arquitetura eclética erguidos entre o final do século XIX e início do XX,
caracterizando-se como um importante suporte de memória sobre a história da cidade. Situado
no centro de Pelotas, este patrimônio remete, por um lado, ao doce lado desta história, ao
apogeu econômico da cidade, e, por outro, à cruel maneira de adquiri-lo: apoiado na escravidão.
Desta maneira, preserva um cenário produzido por uma dinâmica social que tem sido
traduzida, pelo senso comum, com a expressão “entre o sal e o açúcar”. Esta expressão também
se refere a uma outra materialidade. O açúcar era uma das moedas de troca para negociar a
carne salgada (charque), a qual sustentava a economia da região a partir da mão de obra
escrava. Com isto, a cidade também desenvolveu uma cultura de produção de doces que até
hoje perdura, inclusive com certificação de origem para este patrimônio cultural: “doces de
Pelotas”.

Figura 1: (A) o lugar de


uma charqueada; (B)
margem do arroio Pelotas;
exemplares da arquitetura
pelotense de interesse
patrimonial nos estilos
colonial (C e D) e eclético
(E e F)

Fonte: Acervo da Secretaria


de Cultura da Prefeitura
Municipal de Pelotas

A arquitetura do entorno da Praça Coronel Pedro Osório permite reconstruir na memória,


quando contraposta à arquitetura que abrigava a indústria saladeril, o momento em que existia
o propósito de afirmar o poder econômico dos proprietários dos casarões, que eram os
próprios charqueadores. Estes construíram um cenário urbano, aos moldes europeus da época,
que contrastava totalmente à insalubridade daquele ambiente industrial. O conjunto de
fotografias da Figura 1 facilita imaginar estes dois cenários. As charqueadas pelotenses (A) se
estabeleceram ao longo do Arroio Pelotas (B), na época, referido como “rio vermelho”, devido
às manchas de sangue decorrentes dos dejetos da matança do gado para a produção do charque
(carne salgada e exposta ao sol nos varais). Havendo uma sazonalidade para esta produção
(época de engorde do gado), as mesmas instalações abrigavam as olarias, mantendo assim
ativa a mão de obra escrava durante todo o ano. A zona urbana se constituiu longe desta
realidade de exploração humana. Exploração que sustentava o luxo e opulência dos
charqueadores. Em um primeiro momento, a arquitetura no estilo colonial abrigava tanto as
sedes industriais (C e D) como as casas assobradadas do centro da cidade. Logo, muitas delas
adquiriram novos elementos, para configurar, com outras novas construções, um conjunto que
retratasse a modernidade daquele momento. Isto está demonstrado ao observar, lado a lado:
construções sem porão alto e com beiral (estilo colonial) (D); construções sem porão alto e com
platibandas e balaústres (readequadas para a linguagem do ecletismo) (E); e, aquelas já
projetadas sob a linguagem do ecletismo, com porão alto, platibandas e balaustradas (F).

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

Todo este discurso acompanha o roteiro turístico da cidade, contextualizando assim os


elementos preservados da paisagem urbana, como alguns monumentos, arquiteturas e seus
ornamentos. Os estudos históricos de Gutierrez (1993, 2010) sistematizaram a história do ciclo
do charque, o qual compreendeu o período de 1777 até 1930. O tipo de edificação, que sediava
esta indústria, variava entre o padrão português em fita, com pátio interno ou ainda
assobradado, sem a abundância de adornos figurativos e em ferro, como já exemplificado na
Figura 1 (C e D). Posteriormente, estes adornos passaram a caracterizar os edifícios públicos e
os casarões urbanos.
Especialmente o patrimônio arquitetônico do entorno da Praça Coronel Pedro Osório é rico em
elementos que compõem narrativas diversas. Em particular, os estudos de Santos (2007)
contribuem para a compreensão destas narrativas, tratando de analisar o significado de cada
ornamento destas edificações. Tal ornamentação compõe uma linguagem, própria de um
ecletismo histórico, como caracterizado pelo referido autor, percebida em diferentes graus de
erudição, em termos de correspondência com aquela linguagem importada da Europa. Muitos
dos edifícios, a partir destas ornamentações explicitam, externa e internamente, seus usos e
propósitos. A partir da disponibilização de catálogos, os elementos ornamentais eram
adquiridos, atentando para indicar o poder do proprietário da edificação. Quanto mais
exclusivos eram estes adornos, maior poder era demonstrado, podendo inclusive contar com
artífices particulares e especializados, sem lançar mão de elementos de catálogos.
Este tipo de caso pode ser ilustrado com o conjunto de adornos do Casarão 8 (Figura 2, (A)).
Esta edificação, juntamente com os outros dois casarões ecléticos da Figura 1 (E e F), compõe
a testada de um quarteirão, totalmente preservada, do entorno da referida praça. Os elementos
decorativos, especialmente os estuques dos tetos, constituem uma narrativa que permite
identificar a função original de cada um dos cômodos do corpo principal da “casa do
conselheiro”. Assim era tratada esta casa, em sua época, por habitar ali Francisco Antunes
Maciel, conselheiro do Imperador D. Pedro II, conforme descrito em Michelon (2016). O teto
da sala de jantar, como pode ser observado na Figura 2 (B), exemplifica tal propósito. A
representação refere-se a uma mesa posta, induzindo a uma disposição do mobiliário e até
mesmo contando sobre os hábitos alimentares: estão representadas figuras relativas a
diversos animais de caça, frutas e legumes, além de pratos e talheres como ilustra o detalhe
(C). Deve-se ter em conta que esta narrativa é acessível, naturalmente, às pessoas videntes.
A possibilidade de apropriação destes edifícios como suportes de memória, por qualquer
pessoa, está seguramente associada a um conjunto de experiências, envolvendo cada um dos
sentidos. Referindo-se à percepção da paisagem urbana, o sentido da visão assume um papel
mais importante ainda, sendo necessário proporcionar meios para que pessoas com
deficiências visuais possam ser incluídas neste processo cultural. Com este propósito, o
presente estudo relata o processo de estruturação de um método de representação, que está
sendo utilizado para a produção de modelos táteis relativos ao patrimônio arquitetônico
pelotense. Esta produção insere-se em um contexto de investigação em arquitetura, no âmbito
de um laboratório de fabricação digital, junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Pelotas.

Figura 2: (A) fachada do


Casarão 8; (B) decoração do
teto da sala de jantar; (C)
detalhe ressaltado sobre a
imagem, garfo e faca
cruzados sobre um prato
Fonte: autoras a partir da
nuvem de pontos

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

OS REFERENCIAIS TEÓRICOS QUE APOIAM A PRODUÇÃO

As maquetes (modelos físicos) de arquitetura possibilitam ampliar a percepção da forma das


edificações e do contexto urbano para qualquer pessoa, independentemente de suas
capacidades visuais. Este potencial das maquetes é destacado por Pereira et al. (2017), um
estudo que traz um aporte científico diferenciado, tendo, como autor principal, um profissional
experiente em arquitetura e que se constituiu pesquisador doutor, também na área de
arquitetura, após agregar a experiência de perda total de seu sentido de visão. Há uma marcada
crítica ao domínio da visão sobre outras modalidades sensoriais junto à prática de arquitetura,
em sintonia com as reflexões de Pallasmaa (2011), que já enfatizava a necessidade de a própria
arquitetura provocar a experiência multissensorial. Ambos os estudos alertam para a
tendência ocularcentrista na arquitetura, incrementada pelo uso de novas tecnologias.
Entretanto, para Juhani Pallasmaa, “embora as novas tecnologias tenham reforçado a
hegemonia da visão, elas também podem ajudar a reequilibrar as esferas dos sentidos”
(PALLASMAA, 2011, p. 34). No âmbito do presente estudo, este mesmo tipo de reflexão é
direcionado ao questionamento sobre como melhor explorar as tecnologias de fabricação
digital para traduzir/produzir as multissensorialidades que o patrimônio arquitetônico
tratado é capaz de ativar.
Por outra parte, tratando-se de um contexto formativo de arquitetura, os preceitos do Desenho
Universal, nos termos de Ornstein (2010), guiam a problematização das representações táteis
produzidas. Consideram-se, assim, os sete princípios do Desenho Universal, a saber: I - uso
equitativo; II - uso flexível; III - uso simples e intuitivo; IV - informação de fácil percepção; V -
segurança; VI – esforço físico mínimo; VII - dimensionamento para acesso e uso abrangente
(ORNSTEIN, 2010, p. 15-21). Adentrando-se neste campo, os modelos táteis passaram a ser
compreendidos como um tipo de recurso assistivo, a partir das categorias apresentadas em
Cook e Polgar (2008). Estes modelos podem, então, ser utilizados como um equipamento para
auxiliar na sensorialidade de diferentes tipos de deficiência, como um sistema de comunicação
alternativa ou, ainda, como uma tecnologia assistiva para apoiar ações educativas ou
profissionais.
A produção destes recursos, empregando tecnologias de fabricação digital por impressão 3D e
corte a laser, parte da interpretação da atividade de representar a geometria da forma como
meio de construção de conhecimento, considerando-se que “conhecer é modificar, transformar
o objeto, e compreender o resultado dessa transformação” (PIAGET, 2002, p. 1). Toda esta
interação com o objeto, para ser representado, estimula a investigação sobre a especificidade
formal e construtiva da arquitetura envolvida, exigindo a compreensão de uma lógica
associativa ao contexto histórico, social e cultural do momento em que foi produzida. Com isto,
este processo de representação promove a construção de narrativas para serem agregadas ao
uso dos modelos táteis, reforçando-os como suportes de memória, ativadores de sentidos,
agregando assim maior significado a este tipo de recurso assistivo.
Todo o processo de produção dos recursos assistivos está sendo realizado juntamente a
pessoas com cegueira ou baixa visão através de atividades extensionistas, nas quais os modelos
produzidos são avaliados quanto a sua capacidade de comunicação. Dessa maneira, apoia-se
no conceito de co-design, nos termos de Pereira et al. (2017), tendo o usuário como ator no
processo de projeto, ao invés de ser somente representado por um especialista. Esse processo
colaborativo vai ao encontro do discurso de Freire (2013), o qual destaca que ações de
extensão devem promover a participação ativa dos integrantes do grupo para a construção do
conhecimento.
Junto a estas reflexões adicionam-se também os referenciais advindos da área da comunicação.
Especificamente, as representações produzidas estão sendo problematizadas utilizando-se da
teoria da escalada da abstração de Vilém Flusser (1998). Esta teoria confere dimensões aos
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

meios de comunicação inversamente proporcionais ao grau de abstração exigido para a sua


compreensão: parte do tridimensional, referindo-se àqueles que se valem diretamente da
experiência com o objeto físico, envolvendo o corpo em seus cinco sentidos e por tanto com
menor grau de abstração em relação aos demais; avança para o bidimensional, utilizando-se
da imagem do objeto, quando produzida por meios tradicionais (desenho); caracteriza o
unidimensional, dirigindo-se à escrita (códigos de linguagem); e por fim anuncia o
nulodimensional. Esta adimensionalidade corresponde então ao maior grau de abstração,
atribuída ao que caracteriza como imagens técnicas, produzidas por aparelhos e passíveis de
serem computáveis, de serem transformadas em número. Esta leitura realizada por Flusser,
para compreender a própria história da humanidade, é aqui transposta para provocar um
exercício reflexivo, utilizada minimamente ante sua complexidade. Sob esta lógica
dimensional/abstracional, realiza-se uma reflexão sobre todos os meios de comunicação que
envolvem a estruturação do método utilizado.
De antemão, este método transita entre diferentes “dimensões” para representar o patrimônio
referido desde: as edificações, em concreto, que compõem a paisagem, envolvendo todos os
sentidos (tridimensional); as suas imagens (bidimensionais); aos textos que as descrevem
(unidimensionais); às imagens técnicas computacionais, produzidas pelos aparelhos,
necessárias para a estruturação da narrativa tangível desta paisagem urbana
(nulodimensionais), e por fim, aos modelos físicos em escala adequada ao sentido do tato, os
quais podem ser percebidos por todas as pessoas, retornando à tridimensionalidade.
Com este trabalho, buscou-se avançar em todo este processo reflexivo, a partir da teoria da
escalada da abstração, para potencializar o método da Adição Gradual da Informação, como
tem sido referido o método de produção de modelos táteis como recursos assistivos, junto ao
contexto em que está sendo estruturado.

O MÉTODO DE PRODUÇÃO DOS MODELOS

A delimitação do método da Adição Gradual da Informação, AGI, advém de uma trajetória


prévia, registrada em Borda et al. (2012) e Dalla Vecchia et al. (2015). Em 2012, esta produção
esteve dirigida à tentativa de tradução da geometria da imagem fotográfica (bidimensional)
para um meio tátil. Em 2015, o método já esteve dirigido à comunicação tátil da geometria da
própria arquitetura, na escala do detalhe e do edifício. Em 2018, a aplicação do método já havia
avançado para a escala urbana e foi descrito em Borda et al. (2018), texto aqui ampliado. Para
a aplicação do método a uma paisagem urbana, partiu-se de um apoio pré-existente a roteiros
turísticos, sobre o entorno da Praça Coronel Pedro Osório, disponibilizado por instituições de
caráter público (Prefeitura e Universidade). Logo, tratou-se de problematizar cada etapa de
projeto e da fabricação dos modelos táteis, sob as abordagens teóricas anteriormente
apresentadas. Sendo assim, estabeleceu-se um processo de co-design, sob os preceitos do
Desenho Universal, investindo-se na formação dos pesquisadores/estudantes para as ações
extensionistas, para a apropriação das tecnologias de representação e fabricação digital e,
sobretudo, para a compreensão do significado social e cultural dos recursos assistivos. O
método empregado trata de definir, de acordo com a especificidade de cada elemento
representado, o número de camadas de informação a serem geradas. Estas camadas referem-
se às diferentes escalas de representação, que passam a constituir uma narrativa tátil, para
ampliar a percepção desde o todo da paisagem urbana aos detalhes das edificações.
Esta narrativa tátil vem sendo produzida por estudantes da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, FAUrb, da Universidade Federal de Pelotas, UFPel, no âmbito da pesquisa, do
ensino e da extensão, contemplando tanto interesses formativos quanto demandas
institucionais. A demanda por recursos assistivos de apoio a um roteiro cultural e turístico tem
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

sido apontada pelas Secretarias Municipais de Cultura e de Desenvolvimento e Turismo de


Pelotas e pela própria UFPel, para uso em ambientes culturais de sua responsabilidade. Neste
caso, dois dos museus universitários se situam em edificações, de interesse patrimonial, do
entorno da Praça Coronel Pedro Osório: o Museu do Doce e o Museu de Ciências Naturais Carlos
Ritter. Com isto, os recursos assistivos que estão sendo produzidos já estão tendo um espaço
expositivo para serem acessados e testados de maneira aberta, em diálogo com a sociedade,
permitindo estabelecer a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

A INFRAESTRUTURA PRÉ-EXISTENTE

O turismo tem acompanhado a evolução das tecnologias de informação e comunicação


modernizando suas estruturas e qualificando seus agentes. Serviços on-line têm facilitado aos
turistas acessar a informação sobre os pontos de interesse em qualquer momento e lugar. Estas
possibilidades remetem ao conceito de turismo ubíquo. Conforme Silva et al. (2014), este
conceito é empregado por guias eletrônicos de turismo, quando possibilitam através de
georreferenciamento e de dispositivos móveis, como tablets e smartphones, fornecer
informações contextuais, de maneira interativa e instantânea, do local para o usuário.
Certamente, muitos dos roteiros turísticos realizados na Praça Coronel Pedro Osório devem
estar sendo dirigidos sob a consulta, pelo próprio turista, de sites especializados, incluindo
aquele organizado pela Prefeitura Municipal de Pelotas. Alguns deles avançam também em
termos de acessibilidade à informação, disponibilizando recursos de áudio e de tradução para
língua de sinais. Além disto, agentes públicos e privados, promovem passeios acompanhados
de um discurso oral, por vezes contando com folders específicos sobre o centro histórico de
Pelotas, o qual tem como ponto focal a referida praça. Partiu-se, assim, de roteiros já
estruturados. Em particular, adotou-se um folder, produzido em 1994 pelo Núcleo de Estudos
de Arquitetura Brasileira, NEAB/FAUrb/UFPel. Este material inclui informações textuais e
ilustradas, exemplificado na Figura 3, sobre o entorno da praça. A numeração, indicada sobre
o mapa, localiza as edificações de interesse patrimonial e remete aos desenhos de fachadas, aos
dados históricos e às características arquitetônicas principais de cada uma delas, informações
sistematizadas a partir de projetos de investigação desenvolvidos pelo NEAB. No folder está
uma descrição suscinta, exemplificada, na mesma imagem, pelo caso da sede da Prefeitura
Municipal de Pelotas.

Figura 3: Ilustrações do
folder sobre a Praça Coronel
Pedro Osório: capa; mapa do
entorno; exemplo de
descrição de uma edificação

Fonte: Acervo do NEAB


(Núcleo de Estudos de
Arquitetura Brasileira),
FAUrb, UFPel

Os modelos digitais deste entorno urbano foram executados a partir das seguintes fontes:
documentação arquitetônica disponibilizada pelo NEAB/FAUrb/UFPel e pela Prefeitura
Municipal de Pelotas (PMP); imagens obtidas no Google Maps
(https://www.google.com.br/maps/), através da ferramenta Street View; imagem em alta
resolução da área, disponibilizada pela PMP; mapa vetorizado do lugar com a marcação dos
lotes; modelos geométricos (digitais) disponíveis no Armazém 3D
(https://3dwarehouse.sketchup.com), relativos à produção do Projeto MODELA Pelotas,
conforme consta no registro junto a esta plataforma de modelos. Contou-se também com dados
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

obtidos por meio de tecnologias de fotogrametria digital e escaneamento 3D a laser, para uma
das edificações, caso registrado em Borda et al. (2016, 2017). Desta maneira, as fontes de dados
foram diversas, confrontando-se as informações para avançar em termos de precisão para a
representação. Entretanto, este aspecto (precisão de medidas) não chega a adquirir relevância
frente às escalas de representação, aos objetivos e às tecnologias empregadas. Conforme
Pereira et al. (2017), modelos táteis precisam ter formas simples, ampliando-se detalhes
relevantes e eliminando-se aqueles que produzem ruídos à percepção tátil. Com isto, mesmo
partindo-se de representações anteriormente executadas, sob outros propósitos de
representação, foi necessária uma remodelagem, conforme o caso e a escala. A Figura 4 ilustra
um processo de simplificação de fachada. A imagem (A) refere-se a uma fotografia retificada
da fachada principal do Casarão da Família Assumpção, edificado em 1887. Esta fotografia foi
utilizada como textura sobre um modelo digital simplificado, o qual não contém a geometria
dos elementos ornamentais. Este tipo de modelo facilita a sua disponibilização na plataforma
Google Earth em 3D, sendo possível informar, visualmente, a complexidade formal, sem
sobrecarregar o modelo digital. A imagem (B) refere-se ao modelo da mesma fachada,
produzido para ser impresso em 3D, na escala 1:75, e representar, de maneira simplificada, a
geometria dos ornamentos. Este modelo seguiu as orientações dos colaboradores com
deficiência visual, de controle do grau de rugosidade para ser possível perceber cada elemento
individualmente pela ponta dos dedos. A imagem (C) mostra uma simplificação maior da
fachada para a impressão na escala da maquete da Praça (1:500), com o propósito de informar
tipologias das edificações e proporções entre elas, para a percepção da configuração de todo o
entorno em questão.
O critério para a seleção dos elementos a serem representados neste processo de simplificação
da geometria das fachadas foi conduzido essencialmente pelos textos relativos às
características arquitetônicas que particularizam cada edificação, constantes no folder de
referência. Para o caso do Casarão relativo às fachadas da Figura 4, por exemplo, a descrição
textual ressalta o tipo de edificação e a situação em relação ao quarteirão: “casarão de esquina
e de partido de corredor lateral”. Esta localização pode ser observada junto à representação de
toda a praça e seu entorno, na Figura 5, cujo formato da edificação parece a letra E refletida,
situada no canto superior esquerdo da fotografia.

Figura 4: Simplificações de
uma fachada: A) para a
disponibilização no Armazém
3D (fotografia retificada como
textura); B) para impressão
3D, na escala 1:75; C) idem,
na 1:500

Fonte: Borda et al. 2018

Prosseguindo sobre a narrativa da mesma fachada, o modelo tátil enfatiza o que está destacado
textualmente, sobre a presença de um porão alto, habitável e com aberturas em formato
elíptico, denominadas gateiras. O texto também descreve a existência de pilastras, marcando o
ritmo da fachada, assim como outras volumetrias representadas para ilustrar a seguinte
descrição: “[...] corpo com vãos de sacada de púlpito em ferro, esquadrias com bandeira de
verga reta e com ornamentos, de massa, na parte superior [...]”. Todos os adornos, incluindo os
dos elementos que sustentam o coroamento da fachada, aparecem particularizados na escala
de 1:75. Nesta escala promove-se a tradução tátil do seguinte texto “[...] cimalha com cornija,

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Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

friso e arquitrave profusamente trabalhada”, elementos que na escala de 1:500 fundem-se em


uma única saliência.
A maquete da paisagem urbana é adotada como dispositivo inicial das narrativas de cada
edificação, informando sobre os parâmetros de localização, orientação, forma e proporção em
relação a todo o entorno. Observa-se, neste conjunto na escala 1:500, o propósito de diferenciar
os edifícios pelos materiais e tecnologias de fabricação empregados: os inventariados ou
tombados, relativos à arquitetura eclética, estão sendo produzidos em PLA (polímero poliácido
láctico) branco, a partir da tecnologia de impressão 3D (método aditivo, por deposição de
camadas de PLA fundido). O acabamento opaco permite a compreensão da forma por pessoas
com baixa visão; as demais edificações estão sendo produzidas em MDF (placa de fibra de
média densidade), a partir do corte a laser. Até o momento estas representações referem-se
apenas ao sólido envolvente das edificações, sem adicionar nenhum detalhe de fachada. Os
modelos digitais foram produzidos a partir da extrusão dos polígonos dos lotes de um mapa
vetorizado, disponibilizado pela PMP, respeitando-se as respectivas alturas das edificações.
Nota-se ainda que a base da maquete está constituída por uma imagem aérea, em alta
resolução, da Praça e de seu entorno. Com esta imagem busca-se facilitar a compreensão de
pessoas sem deficiência visual. O contraste de materiais também facilita a identificação e
diferenciação dos edifícios históricos por pessoas com baixa visão.

Figura 5: Fotografia da
maquete tátil da Praça
Coronel Pedro Osório e de
seu entorno

Fonte: Borda et al. 2018

ADIÇÃO GRADUAL DA INFORMAÇÃO: MÉTODO APLICADO

Dentre as 20 edificações destacadas, do entorno da praça, junto ao folder de referência, 13 delas


foram representadas em sua volumetria externa na escala 1:500 por impressão 3D. A aplicação
do método AGI, até então, foi realizada em 8 destas 13 edificações, avançando-se assim para a
representação de fachadas principais, na 1:75, como exemplificado na Figura 4. A
particularização destas fachadas, tem a intenção de provocar a percepção tátil sobre as
diferenças de linguagem das composições arquitetônicas, por destacar as identidades de cada
edifício, já expressas, pelo folder, na linguagem textual e do desenho. A representação, em cinco
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Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

escalas, variando de 1:500 a 1:10, já apoia uma narrativa tátil sobre a cúpula do Grande Hotel,
processo descrito em Dalla Vecchia et al. (2015). Esta cúpula se sobressai no entorno da praça,
coroando a edificação de maior porte em altura para a época, concluída em 1928. Além disto,
o método tem sido aplicado de maneira mais sistemática junto ao Casarão 8 (Museu do Doce),
conforme descrito em Borda et al. (2016) e Borda (2017), contando-se com uma representação
precisa, por nuvem de pontos, obtida pelo escaneamento a laser do edifício, interna e
externamente. Este edifício oportuniza visitas públicas, tendo assim um suporte para o acervo
dos recursos assistivos juntamente com a infraestrutura de mediação. Existem, para este caso,
narrativas que se apoiam desde a escala urbana na 1:500 até à escala de 1:1, usada, por
exemplo, para descrever uma figura do estuque do teto deste casarão.
A tabela 1 registra o estágio de aplicação do método AGI. Valores quantitativos, relativos ao
número de estudantes e de horas envolvidos, ao longo da produção, são imprecisos,
especialmente por compreender uma diversidade de perfis de habilidades com as tecnologias
de representação, do início da graduação à pós-graduação.

Tabela 1: Registro do
estágio de aplicação do
método AGI, nas
edificações destacadas
no folder de referência,
relativo à Praça Coronel
Pedro Osório, Pelotas,
RS

Fonte: Produzido pelas


autoras

As sistematizações em relação à eficácia dos recursos, tem envolvido toda a equipe de co-
design, dependentes assim de observações advindas de diferentes áreas, como por exemplo,
terapia ocupacional, museologia, turismo, história e teoria da arquitetura, gestores das
instituições envolvidas, mediadores dos museus, usuários em geral. Estas reflexões estão em
processo, dependentes da contínua revisão dos recursos, a partir da experiência em cada ação,
sendo estes ajustados, seja na forma ou em número de camadas, para estruturar e ampliar as
narrativas táteis. Quanto às reflexões advindas de usuários com deficiência visual, contou-se,
em um primeiro momento, com a participação de um estudante de Museologia, com limitação
total do sentido de visão, porém com memória visual recente, inclusive tendo um repertório
necessário para o reconhecimento da arquitetura representada. E, ao longo do processo,
conta-se com a parceria da Escola Louis Braille, por meio do uso dos recursos por estudantes,
cujos perfis abarcam uma grande diversidade em termos de: grau de deficiência visual, idade,
gênero, nível de escolaridade e capacidade cognitiva. Neste caso o uso tem sido realizado de

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

maneira coletiva, envolvendo um mínimo de vinte pessoas. As imagens da Figura 6 ilustram


um destes momentos de experimentação, em junho de 2018, junto a uma turma de adultos da
escola citada. Demonstra-se a flexibilidade dos recursos em permitir destacar cada uma das
representações na escala 1:500 (A) para serem totalmente manuseadas e associadas às
representações das fachadas ou elementos que complementam a informação sobre estas
edificações em outra escala (B e C). A cada momento de uso são registradas, por fotografias e
por vídeos, as percepções tanto por parte da equipe envolvida como por parte dos usuários.
Desta maneira, busca-se compreender como cada uma das camadas de informação, e em seu
conjunto, acionam um processo de educação patrimonial. Mesmo sem ainda ter havido uma
sistematização dos registros fotográficos e de vídeo, estes evidenciam a expressão de afetos de
todos os envolvidos e o uso efetivo destes recursos como suportes de memória. Dentre estas
evidências, pode-se citar o caso de uma criança, do grupo da Escola referida, com deficiência
visual total, que, de maneira espontânea, em um momento imediatamente após a experiência
com a maquete, tentou reproduzir, utilizando-se de peças de montar, um dos modelos
experenciados.
Outro caso, que evidencia a produção de afetos, refere-se a um estudante também da mesma
escola, já idoso e com cegueira total recente. Ao visitar o Museu do Doce e tocar nos modelos
que facilitam a compreensão da forma dos elementos decorativos dos estuques dos tetos
expressou, com lágrimas nos olhos: “Estou vendo mais do que quando eu tinha visão!”. Este
estudante declarou que frequentava aquele casarão quando ali se situava uma repartição da
Prefeitura e que nunca havia olhado para o teto. E complementou: “isto sempre foi bonito
assim?”.
A aplicação do método AGI exige o trânsito entre as diferentes escalas, havendo assim a
necessidade de um investimento contínuo na produção de conhecimento para sustentar o
discurso sobre cada camada de informação gerada. Isto tem provocado avançar em estudos
como os desenvolvidos em Santos (2007), os quais objetivam decifrar as narrativas
constituídas pelas arquiteturas envolvidas. A particularização de cada um dos elementos
decorativos exige agregar vocabulário e interpretar as representações, compreendendo suas
relações para a estruturação de tais narrativas.

Figura 6: Registro
fotográfico do uso dos
modelos táteis junto a
uma ação realizada na
Escola Louis Braille de
Pelotas em junho/2018

Fonte: Borda et al. 2018

Todo este esforço constitui as atividades formativas que integram saberes próprios da prática
de arquitetura. Para cada uma das edificações e em particular para aquelas que estão de portas
abertas para a recepção cultural e de educação patrimonial, como a sede dos museus
universitários já mencionados, faz-se oportuno investir na produção de novas camadas de
informação, envolvendo diferentes abordagens, escalas e tecnologias. Esta diversidade facilita
contemplar um desenho universal.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

Nesta direção, tem-se adicionado camadas de informação mais próprias de um fazer


arquitetônico, e que também têm sido compartilhadas e difundidas nestes espaços culturais
em que esta produção está tendo a oportunidade de ser validada. Trata-se de saberes
específicos da geometria gráfica que sustentam a prática de organização formal constituída ao
longo da história da arquitetura. Como exemplificado nas imagens da Figura 7, por meio de
traçados, são investigados os lugares geométricos específicos para a posição de cada elemento,
desde a escala do detalhe (B) a do edifício (C). Estes lugares, subjacentes às composições, são
configurados como camadas de informação sobre as representações físicas. Para isto, o uso de
tecnologias, como o escaneamento a laser (caso da imagem C) e a fotogrametria digital (caso
da imagem A), tem sido fundamental, pois as hipóteses são elaboradas sobre representações
precisas.

Figura 7: Estudos de
geometria gráfica sobre
nuvens de pontos dos
elementos do patrimônio:
um detalhe do estuque e da
fachada do Casarão 8

Fonte: Borda (2017)

A Figura 8 ilustra uma narrativa que objetiva conectar a escala urbana a de um edifício em
particular. O caso exemplificado, indicado sobre a escala urbana (A), e ainda representado de
maneira simplificada, refere-se às “casas gêmeas” (B), como reconhecidas pelo senso comum
pelotense, situadas em uma das esquinas do entorno da Praça. A parte exatamente da esquina,
abriga o Museu de Ciências Naturais Carlos Ritter. Na escala 1:100, nos moldes mais próximos
de maquetes tradicionais (C), integra-se outra camada de informação sobre a distribuição dos
cômodos nos diferentes níveis que compõem a edificação. São disponibilizados mapas táteis
portáteis, relativos as plantas baixas, removíveis da maquete em um sistema de gavetas (D),
apoiando-se no método configurado em Sperling et al. (2015). Este tipo de produção
exemplifica uma das atividades realizadas no âmbito da curricularização da extensão, efetivada
recentemente na FAUrb/UFPel. Este tipo de recurso encontra-se já disponível também no

Figura 8: A) Casas Gêmeas,


escala 1:500; B e C) foto e
maquete, 1:100; E) mapas
táteis do Museu do Doce

Fonte: Boyle et al. (2019)

Museu do Doce (E), sendo utilizado para ser validado pelos visitantes, conforme descrito em
Boyle et al. (2019).
A linguagem arquitetônica dos demais edifícios do entorno (não inventariados/
patrimoniados), está sendo representada pela aplicação de texturas, configuradas por
fotografias retificadas de suas fachadas, sobre os modelos simplificados (em MDF na maquete
do espaço urbano) na escala 1:500. E, paulatinamente, no ritmo das atividades de investigação,
59
Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

ensino e extensão, o método AGI também será aplicado, para oferecer uma infraestrutura que
facilite a compreensão do todo deste entorno.

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS

Os resultados esperados para este estudo referem-se à reflexão sobre os sentidos atribuídos
ao processo, de representação do patrimônio, aqui descrito. Trata-se, mais especificamente, de
problematizar o emprego das tecnologias de fabricação digital, utilizadas para produção dos
modelos que estruturam o método da adição gradual da informação. Como anunciado
anteriormente, utiliza-se para esta problematização a teoria da escalada da abstração de Vilém
Flusser (1998), observando-se assim a relação das variáveis dimensionais dos modelos
empregados com os níveis de abstração necessários para produzi-los e/ou compreendê-los.
Esta produção refere-se ao ato de representar, nos termos piagetianos, de construção de
conhecimento. A interação com o objeto (paisagem urbana) se dá inicialmente na vivência do
espaço, no tridimensional, proposta a ser intensificada por um roteiro turístico com o apoio de
um conjunto de representações caracterizados como recursos assistivos. Nesta primeira
interação, pode haver o envolvimento de vários sentidos (visão, audição, olfato e tato),
incluindo a proposta de complementação da informação para as pessoas com deficiência visual,
tratando de exigir um nível de abstração menor possível em termos comunicacionais em
relação à forma desta paisagem.
A representação pelo desenho (bidimensional), nos termos flusserianos, ao eliminar uma das
dimensões, exige um maior nível de abstração. O desenho a mão, produzido por estudantes de
arquitetura e utilizado no folder de referência, foi substituído, junto ao método AGI, pelo
exercício de vetorização de imagens (processo digital). Esta vetorização se faz necessária para
o desenvolvimento dos modelos tridimensionais dos elementos que compõem as fachadas dos
edifícios, sobre as fotografias retificadas ou sobre a visualização ortogonal das nuvens de
pontos, especialmente para a produção de desenhos para o corte a laser. Este processo
abstracional/interacional envolve uma maior atenção sobre a forma e seu significado no
âmbito das linguagens de arquitetura envolvidas, para que as imagens mentais provocadas
pelo tato auxiliem na apropriação do conhecimento a ser construído por cada usuário. O
exercício de reconhecer e traduzir as representações unidimensionais (descrições textuais das
edificações), por parte da equipe de mediação exige a apropriação efetiva do discurso sobre o
objeto representado como um todo (paisagem urbana). Os depoimentos orais dos usuários têm
demonstrado também tal apropriação, embora não tenha sido oportunizada a expressão
escrita, a qual terá que envolver o sistema estruturado pelo pedagogo francês
Louis Braille (1809-1852), sistema tátil formado por pequenos pontos salientes para serem
decifrados pela ponta dos dedos. Destaca-se que a Escola Louis Braille, envolvida nas ações,
tem adicionado paulatinamente este sistema de escrita ao recurso. A associação do discurso ao
modelo tem se constituído como uma ação lúdica de perceber tatilmente a narrativa traduzida
em forma arquitetônica. Por fim, compreende-se o uso de imagens técnicas, incluindo a
fotografia, a fotogrametria digital, o escaneamento 3D a laser, a modelagem geométrica e visual
e a fabricação digital, todos computáveis, envolvendo um alto nível de abstração. Para o
contexto acadêmico, por meio da trajetória de aprendizado proposta, cada uma delas está
guiada por uma consciente intenção de uso e controle de um tipo específico de produção. Desta
maneira, não se trata de uma prática representacional que atribui autonomia ao aparelho. Ao
contrário, foge da postura “proletária” associada ao tipo de relação a ser evitada, do usuário
com tais tecnologias, alertada por Flusser (1998).
As informações contidas no folder de referência, bi e unidimensionais (desenhos e textos)
foram assim ampliadas, partindo e retornando à tridimensionalidade, utilizando-se da
trajetória de uso das imagens técnicas, nulodimensionais.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adriane Borda A. da Silva, Cristiane dos Santos Nunes, Stefani Curth Goulart,
Bethina Harter Silva

Adiciona-se ainda uma reflexão sobre a oportunidade de incremento à infraestrutura de um


turismo ubíquo. Refere-se à possibilidade, frente à popularização das tecnologias de impressão
3D, de disponibilização dos arquivos digitais com acesso aberto para a obtenção dos modelos
táteis desde qualquer lugar. Isto poderá contrapor à problemática de tempo necessário para
experenciar as diferentes camadas de informação produzidas. Deve-se ter em conta que para
se adquirir informação suficiente, por meio do tato, capaz de contribuir para a construção da
imagem mental, necessita-se de mais tempo. Este modelo, sendo ajustado para outras escalas
e tecnologias de impressão 3D, pode informar um grau de precisão geométrica maior,
especialmente sobre a ornamentação das fachadas. Assim o usuário aplicaria o método AGI,
compondo sua própria narrativa, a partir da impressão em diferentes escalas, podendo
particularizar elementos. Isto vem ao encontro do questionamento sobre a simplificação para
a escala de 1:500. Esta escala inviabiliza discernir todos os elementos de fachada pelo tato, mas,
mesmo considerando os limites da tecnologia (precisão de impressão) consegue informar para
a percepção visual, contemplando assim o propósito de desenho universal. Já nos últimos
processos de representação, os limites passaram a ser a habilidade de quem representa e/ou
as informações precisas sobre a geometria, por envolver formas complexas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de representação aqui referido, por um lado, constitui-se como infraestrutura para
promover a inclusão cultural de pessoas com deficiências visuais. Por outro, como
oportunidade para promover uma formação profissional em arquitetura, sensível e apta ao
Desenho Universal e à interação com a sociedade, tendo em vista a experiência de caráter
extensionista.
O exercício de realizar uma leitura dos meios de comunicação envolvidos em todo o processo,
apoiado nas reflexões flusserianas tem induzido ao estabelecimento de um ambiente
acadêmico reflexivo especialmente quanto à postura de uso das tecnologias digitais de
representação. E, mais do que isto, desloca o objetivo didático centrado no tempo tecnológico
atual para a construção de uma postura atenta a qualquer tempo.
Partiu-se de um resultado concreto, o “maquetão”, como tem sido tratado no contexto do
estudo, avançando-se para resultados essencialmente qualitativos. Estes expressados pelo
afeto das pessoas que vivenciam a experiência, tanto por parte dos usuários dos modelos como
por parte da equipe de desenvolvimento das representações. Tal experiência, a todo momento
transita pelos diferentes níveis de abstração. As representações, produzidas por fabricação
digital, estão carregadas de sentidos: social, formativo, cultural e profissional. Podem ser
reproduzidas em série, pelos aparelhos, entretanto, são os momentos de interação com estas
representações que possibilitam a transgressão ou a criatividade para avançar com a inclusão
cultural e com o aperfeiçoamento do processo formativo para o projeto. Desta interação é
possível que surjam outras representações ainda impensadas, avançando em todo o processo
comunicacional.

Agradecimentos

À equipe do GEGRADI/UFPel, ao Rafael Eslabão que garantiu o funcionamento das máquinas e


aos órgãos financiadores (FINEP, FAPERGS, CAPES, PROEXT/UFPel).

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Adição gradual da informação sobre um patrimônio arquitetônico:
produção de modelos e sentidos

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63
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166737

PROXÊMICAS DO ESPAÇO – FATORES SÓCIO-ESPACIAIS E


FERRAMENTAS DIGITAIS
SPACE PROXEMICS - SOCIO-SPATIAL FACTORS AND DIGITAL TOOLS

Caio Augusto Rabite Almeida1, Guilherme Valle Loures Brandão2, Renato César Ferreira
Souza1, Marcos Martins Borges3

RESUMO:
Segundo Edward Hall, Proxêmica é o termo que designa a inter-relação entre observação e teoria de uso que
o homem faz do espaço e na interação destes com o mesmo, observadas à partir de quatro de quatro esferas
diferentes de relacionamentos: íntimo, pessoal, social e público. Apropriando-se do conceito de Hall, a 1Uversidade Federal de
pesquisa tem como objetivo o delineamento de um método de investigação que parta do princípio das Minas Gerais – UFMG
categorias de classificação do espaço introduzindo os conceitos de distância social, estudando o
relacionamento entre os “nós da cidade” e as relações interpessoais com a abrangência de benefícios sociais 2SecretariaMunicipal de
diversos como: segurança, comunicação, áreas livres, habitação, engajamento e serviços. Este trabalho busca Atividades Urbanas –
entender as possibilidades de utilização de relações socioespaciais na investigação de fatores que tendem cada SMPU/PBH
vez mais a incorporar atributos de ação humanos não-explícitos, auxiliando na geração de parâmetros e
grandezas que possam ser instrumentalizados em ferramentas de modelagem digital para análise e simulação 3Universidade Federal de
de recintos urbanos. Para tanto, são aplicadas ferramentas digitais na construção de um modelo da cidade de Juiz de Fora - UFJF
Juiz de Fora – MG – que permite a inserção de dados socioespaciais, bem como a análise das interrelações e
retroalimentação de dados. Conclui-se que o maior desafio na aplicação ao planejamento urbano está em
como lidar com esses parâmetros e buscar soluções dentro de organizações maiores e mais abertas visando
melhor adaptabilidade dos sistemas urbanos frente às transformações latentes, incorporando nos novos
agentes, sejam instrumentais ou de ações participativas, numa mudança projetual - da probabilidade e da
prescrição - para a possibilidade e descrição em, sobretudo, reformas e ampliações urbanas.

PALAVRAS-CHAVE: Proxêmicas; Análise Espacial; Ferramentas Digitais; Urbanismo.

ABSTRACT:
According to Edward Hall, proxemics is the term that designates the interrelationship between observation and Fonte de Financiamento:
theory of the use men makes of space and in their interaction with it, observed from four different relationship Coordenação de
spheres: intimate, personal, social and public. Appropriating Hall’s concept, this research aims to design a Aperfeiçoamento de Pessoal
survey method that begins from the principle of space classification categories introducing social distance de Nível Superior - CAPES
concepts, studying the relationship between the city nodes; and interpersonal relationships with the scope of
diverse social benefits such as: security, communication, free areas, housing, engagement and services. This Conflito de Interesse:
work seeks, thus, to understand the possibilities of using socio-spatial relationships in the investigation of Declara não haver.
factors that increasingly tend to incorporate non-explicit attributes, assisting in the generation of parameters
and values that can be used in digital modeling tools for urban environment analysis and simulation. To this Submetido em: 14/02/2020
end, digital tools are applied in the construction of a model of Juiz de Fora city that allows the insertion of a Aceito em: 08/07/2020
wide range of socio-spatial data, as well as the interrelation analysis and data feedback. It is concluded that
the greatest challenge in applying proxemics into urban planning is how to deal with these uncertainties and
seek solutions within more open organizations and better adaptability of urban systems in the face of latent
transformations, incorporating in new agents, whether instrumental or participatory actions, in a change - of
probability and prescription - for possibility and description especially in urban expansion and renovation.

KEYWORDS: Proxemics; Space Analysis; Digital Tools; Urbanism.

How to cite this article:


ALMEIDA, C.H.R. ; BRANDÃO, G.V.L; SOUZA, R. C. F.; BORGES, M. M. Proxêmicas do espaço – fatores sócio-
espaciais e ferramentas digitais. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166737
Proxêmicas do espaço – fatores sócio-espaciais e ferramentas
digitais

INTRODUÇÃO
As Proxêmicas são um neologismo criado pelo antropólogo e sociólogo Edward T. Hall, em uma
de suas principais obras intitulada “A Dimensão Oculta” (1966). Segundo Hall (1966, p. 01),
“Proxêmica é o termo que designa a inter-relação entre observações e teoria de uso que o
homem faz do espaço e na interação destes com o mesmo”. Sua definição pode ser resumida
como as relações não verbais inseridas em determinado espaço e cotidiano, usadas para
descrever o espaço pessoal de indivíduos em um meio social.
Hall (1966) propõe a existência de quatro esferas diferentes de relacionamentos: íntimo,
pessoal, social e público, de forma que a distância entre estes espaços pode variar de uma
cultura para outra, conforme ilustrado na figura 1. Segundo ele, “Os humanos são seres
territoriais, as pessoas cotidianas reivindicam o espaço, constroem sobre ele e, assim, marcam
seu território” (HALL, 1989; p. 59).

Figura 1. Distância e
correlação dos espaços
proxêmicos segundo Hall.

Fonte: Adaptado de Hall


(1966).

Umberto Eco (1976), ao tratar de códigos linguísticos da arquitetura, apresenta conceito


semelhante ao que Hall classificou como proxêmica, definindo-a como o estudo das distâncias
entre os seres humanos. Sendo possível percebê-la como uma linguagem que não é dita, mas
notada por meio da leitura destas distâncias, poderia auxiliar o melhor projeto dos espaços
físicos.
Michel de Certeau (1980) compara a proxêmica com uma linguagem em que se lê, em um
segundo instante, a vivência dos lugares e dos espaços em que, a princípio, realiza-se a
diferenciação entre mapa (a rede de vias interligadas) e percurso (os caminhos para
deslocamento praticados nessa rede).
Hall (1966) define as comunicações espaciais em duas categorias: as de alto e de baixo
contexto, que levam em consideração características de território e contextualização local por
movimento (cinesia) e proximidade (linguagem), de acordo com sua intensidade. Sendo assim
depreende-se que as proxêmicas tratam das distâncias, dos espaços, dos modos de
comportamento e percepção como atributos fundamentais em seu escopo de análise.
Esses conceitos se traduzem em dois processos básicos – que serão incorporados ao método
de análise proposto: a) as cadeias de ação, caracterizadas por possíveis vetores de
transformação; e b) os quadros situacionais, caracterizados como as transformações em
consequência das cadeias de ação propriamente ditas.

66
Gestão & Tecnologia de Projetos
Caio Augusto Rabite Almeida, Guilherme Valle Loures Brandão, Renato
César Ferreira Souza, Marcos Martins Borges

Partindo dos pressupostos citados, a pesquisa tem como intenção o delineamento de um


método de investigação baseado no princípio das categorias de classificação do espaço
determinadas por Hall, introduzindo os conceitos de distância social, também conhecida como
espaço corporal. Sua utilização como método de análise é proposta a um mosaico mais amplo,
o espaço urbano, estudando o relacionamento entre os nós da cidade e as relações
interpessoais com a abrangência de benefícios sociais diversos como segurança, comunicação,
áreas livres, habitação, engajamento e serviços.
O método desenvolvido aplica as ferramentas digitais Rhinoceros®, Grasshopper®, Urbano e
UNA Toolbox na construção de um modelo digital que incorpora dados socioespaciais em sua
construção. Para demonstração de aplicação do método, é realizado estudo de caso na cidade
de Juiz de Fora, situada na Zona da Mata de Minas Gerais.
Este trabalho busca, assim, entender as possibilidades de utilização de relações socioespaciais
na investigação de fatores que tendem a incorporar cada vez mais atributos não-explícitos,
auxiliando na geração de parâmetros e grandezas que possam ser instrumentalizados em
ferramentas de modelagem digital e dados de segundo grau para análise e simulação em
recintos urbanos.

DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS DO PLANEJAMENTO URBANO

Batty (2013) afirma que no estudo da urbanização contemporânea nota-se a coexistência de


uma série de oposições – como passado e futuro, tradição e inovação, resistência e
efemeridade, permanência e transição – somada às incertezas das atmosferas social, política e
econômica das diversas partes que influem nas decisões de planejamento ou funções antes
estipuladas pelos planos diretores e outras propostas previamente estipuladas.
Lefebvre (1996) aponta que a especialização das ciências tornou as respostas cada vez mais
segmentadas. Dentro do urbanismo, essa especialização torna-se axiomática ao passo que
diversas questões são tratadas de forma individual por diferentes agentes, como se uma
mesma resposta não fosse capaz de solucionar mais de uma delas, sobrepondo os esforços e
aumentando o grau de dificuldade e distanciamento da gestão do espaço urbano.
Segundo Ashby (1956), à medida que o mundo se torna mais complexo e orientado a dados,
nossas respostas e sistemas devem ter consideração proporcional. Apesar das múltiplas
facetas da realidade urbana presente, o que se observa é que grande parte dessas relações
ainda são majoritariamente gerenciadas e pensadas por meios e instrumentos tradicionais.
Para Portas (2007, p.31) as ações de planejamento urbano “devem permitir a liberdade de
interpretações posteriores, visto que os conjuntos urbanos são realizados variando autores,
culturas, tipologias e técnicas”. Portas (2007) ainda classifica a resposta proporcionada pelos
meios tradicionais como “cidades-de-uma-só-peça”, por serem projetos que apresentam logo
à partida todos os elementos desenhados e definidos, fechando e inviabilizando posteriores
modificações e transformações no espaço urbano, desconsiderando ou subjugando o fator
tempo.
Esse negligenciamento do fator tempo ocasiona a adoção de soluções que, em sua maioria, são
feitas de maneira imediata e prescritiva, sem visar o diálogo e a correlação de diversos dados
e saberes, que considerem também o usuário como uma parte colaborativa e inerente ao
sistema, almejando um planejamento dinâmico em contraponto à total definição inicial do
projeto.
Há uma busca cada vez maior no entendimento dos principais fatores que configuram a cidade
como um organismo complexo, mas determinado. Ao mesmo tempo, os sistemas urbanos
fazem com que seus usuários se tornem paulatinamente dependentes de sua estrutura, mesmo
que seu controle esteja cada vez mais incompatível com técnicas tradicionais de gerenciamento
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digitais

e planejamento. Essa incompatibilidade é devida em grande parte à complexidade inerente das


cidades, resultado das inúmeras interações que nela ocorrem e a tornam imprevisível (BATTY,
1971).
Pangaroo (2017) defende que tal busca se torna bastante difícil uma vez que não apenas
objetos, seres humanos ou máquinas fazem parte da equação, mas também relacionamentos,
sistemas, infraestrutura e interações.
Com os avanços tecnológicos e de sistemas de informação os modelos arquitetônicos e
urbanísticos adquirem maior flexibilidade e capacidade de adequação a diferentes situações,
permitindo não somente a rápida modificação e reavaliação do projeto antes de sua conclusão,
como também favorece a seleção de opções a partir da geração de diferentes cenários
possíveis. DeVries et al (2005) apontam que esses avanços são motivados fundamentalmente
pela ampliação do acesso a diversas fontes de dados e à digitalização de informações,
aumentando os elementos disponíveis para análise holística de uma situação.
McCullough (2004) ressalta que, apesar da demanda e aumento do uso de tecnologias
aplicadas no urbanismo, uma das principais dificuldades para o entendimento mais abrangente
de como a tecnologia da informação pode ser aplicada no contexto das cidades é a ausência de
teorias a respeito do lugar que as disciplinas possam se complementar.
Epítetos como urbanismo da informação, urbanismo paramétrico, smart cities e computação
contextual, entre muitas outras classificações, ganham força no atual cenário e buscam em sua
maioria a incorporação de ferramentas digitais para lidarem com a problemática da
urbanização e da qualidade de vida nas cidades, almejando contribuir para decisões de
planejamento, desenho e integralização de dados e usuários sob a narrativa de construir um
viés mais sustentável e/ou inteligente.
Complementar à discussão sobre estas tendências, há uma demanda emergente por novos
métodos de planejamento urbano que possam ser mais dinâmicos ao fornecer análises e
proposições de forma mais aberta e permeável. Para tanto, a tecnologia apresenta-se como
catalisadora para o atendimento desta necessidade, contribuindo para o desenvolvimento de
métodos para avaliação e análise de diferentes cenários de crescimento e planejamento,
incorporando dados diversos, levando em conta o protagonismo do fator tempo e dos diversos
atores em contraposição à definição estática de parâmetros e projetos.

FERRAMENTAS EMERGENTES E NOVOS FATORES

Ao longo do tempo vários autores como Jane Jacobs (1961), Michael Batty (1971) Christopher
Alexander (1977), Christian Norberg Schulz (1980), Bill Hillier (1984), Pierre Frankhauser
(1994) e Jan Gehl (2010) propuseram formas de se analisar as características espaciais
relacionadas a aspectos sociais, geográficos, paisagísticos, simbólicos e de desenho, com alguns
destes inclusive propondo uma sistematização dessas relações. O desenvolvimento de
ferramentas e métodos computacionais incorpora parte dessas teorias e agrega novas
interpretações, principalmente na formação de parâmetros.
O geógrafo John Agnew (2013) defende que é impossível compreender os lugares a partir das
dimensões limitadas da arquitetura ou da geografia física, já que as variáveis que caracterizam
os lugares são polivalentes. Uma das variáveis apontadas por Agnew (2013) seria o
“sentimento de lugar”, que poderia ser compreendida como uma medida que inclui as
realidades intersubjetivas que lhe conferem o que a linguagem convencional descreveria como
“caráter” ou “qualidade de vida”.
Situada entre a localização objetiva e o sentimento subjetivo do lugar, Moore (2013) estabelece
um território intermediário ou “localidade”. Essa qualidade do lugar é o cenário em que as
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relações sociais se desenvolvem, o que inclui a escala de vida institucional à qual a arquitetura
dá tantas contribuições: a cidade, a praça pública, o quarteirão e a vizinhança.
Na tentativa de relacionar aspectos materiais com aspectos imateriais, físicos com subjetivos,
além de aspectos qualitativos e quantitativos, é necessário entender as relações e as dinâmicas
que ocorrem entre as várias partes do sistema urbano. Dogan et al (2018) demonstram que
algumas pesquisas focam no entendimento das diferenças de qualidade e quantidade das
interações que tornam uma cidade ou bairro mais atraente que um outro, possibilitando
análises e características personalizadas, como demonstrado pela figura 2, para determinados
indivíduos com interesses distintos.

Figura 2. Utilização de
métricas para análise de
preferências pessoais.

Fonte: Adaptado de
Dogan et al (2018).

Há um debate no campo de estudo que ambientes urbanos mais densos tendem a gerar níveis
maiores de interação entre pessoas e oferta de usos e serviços do que ambientes urbanos
espraiados (SEVTSUK, 2014). O argumento é que a densidade influi no aumento das
possibilidades de encontros planejados e aleatórios, permitindo que os usuários de uma área
façam mais atividades em menos tempo.
Neste âmbito, é importante a definição da densidade urbana e a relação com a intensidade local
de nós de distribuição: entende-se que a densidade toma como referência a quantidade de
pessoas ou elementos de forma urbana em uma área específica, e a intensidade está ligada à
concentração e distribuição de atividades no plano das ruas da cidade. A densidade adotada
neste trabalho toma como parâmetros os aspectos construtivos e de usos, considerando as
distâncias e a diversidade de determinados serviços em uma área.
Para Panerai (2008) a densidade tende a fortalecer centros existentes, redistribuir usos,
equipamentos, espaços públicos e privados, aproximar habitantes dos transportes e dos
serviços, que possam favorecer a qualidade de determinado lugar em sua apropriação por
usuários.
De acordo com Sevtsuk e Kalvo (2016), as três principais qualidades da forma urbana que
afetam a intensidade de um determinado espaço e influenciam suas métricas são:
• Escala: refere-se ao tamanho dos edifícios. Se os edifícios de destino forem maiores
em volume, eles poderão acomodar mais estabelecimentos.
• Frequência: refere-se à quantidade de edifícios em um espaço urbano. Se o número
de prédios vizinhos for alto, ou seja, se o espaçamento entre os prédios for menor, mais
destinos serão encontrados na mesma faixa de caminhada.

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digitais

• Localização: refere-se à implantação dos edifícios na malha urbana. Se o destino


estiver localizado em uma junção com maior número de conexões em uma malha de
ruas, poderá obviamente ser alcançada por mais pessoas.
Em geral, as ferramentas buscam incorporar mais que a distância topológica de caminhada,
relacionando quesitos como uso do solo, disponibilidade de serviços, qualidade de vida,
densidade, preço do m² e ano da construção das edificações.
Segundo Sevtsuk e Mekonnen (2012), enquanto os métodos de coleta de efeitos negativos da
urbanização – como congestionamento e densidade – são mais debatidos e operacionalizados,
a captura de efeitos positivos – como urbanidade, intensidade e mobilidade – permanecem
pouco explorados em teoria e prática.
Figura 3. Fatores com
relações próximas na
elaboração de novos
fatores.

Fonte: Elaboração
própria.

Essa seletividade e atribuição de maior grau de importância aos efeitos negativos gera uma
lacuna que pode ser verificada na insuficiência de trabalhos que lidem com a caracterização
destes efeitos positivos do espaço. Holanda (2003) complementa relatando que a urbanidade
pode ser edificada a partir de características como vitalidade urbana – entendida como muitas
pessoas, percebidas por um observador social, utilizando o espaço – diversidade e interação
social, acessibilidade e mobilidade urbana, existência de serviços e presença de hábitos
cotidianos.
Para Dogan et al (2018) e Sevtsuk e Kalvo (2016), metodologias emergentes de planejamento
urbano apoiadas por ferramentas digitais específicas podem contribuir não apenas nos
estudos relacionados à mobilidade ativa, mas também na intensidade das interações que são
influenciadas por parâmetros espaciais – como escala de construção, localização, diversidade
de usos, permeabilidade e acessibilidade.
Quando os dados desses parâmetros são analisados por um longo período de observação,
permitem a identificação de padrões de comportamento que podem auxiliar o planejamento
de novos edifícios, espaços públicos ou mesmo ruas e bairros inteiros. Embora ainda seja
precoce a relação causal sobre a eficácia de diferentes métodos de design e análise que
correlacionem aspectos sociais e econômicos com configurações urbanas, o desenvolvimento
de métricas que possam capturar aspectos qualitativos dos lugares é um passo importante para
o desenvolvimento e melhor compreensão do funcionamento de bons ambientes urbanos.

MÉTODO DE ESTUDO

Esta seção do artigo propõe uma abordagem metodológica que busca correlacionar algumas
considerações teóricas e instrumentais tratadas até aqui nesta pesquisa de caráter
exploratório. Como o contexto urbano é composto por diversas variáveis que estão em
constante interação e transformação, criar uma síntese de análise urbana implica em combinar
e associar vários dados e propor uma interpretação apropriada.
As ferramentas utilizadas foram o software Rhinoceros®, seu add-on de programação visual
Grasshopper®, e duas extensões dentro destes aplicativos, sendo elas UNA Toolbox (SEVTSUK,
2018) e Urbano. Ambas as ferramentas direcionadas ao planejamento e análise urbana,
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podendo colaborar nos estágios iniciais de projeto e no apoio da tomada de decisões,


auxiliando no layout de ruas e na alocação de programas e densidade, através de feedbacks
ativos e análise de métricas (Figura 4).
Figura 4. Diagrama das
questões abordadas e
análises usadas na
abordagem metodológica
proposta.

Fonte: Elaboração
própria.

A metodologia pode ser descrita da seguinte maneira:


1. Configurar a malha urbana (network) do espaço ou cidade desejada com coleta e
importação de dados geo-espaciais de 2ª ordem, já que ambas as ferramentas (UNA e Urbano)
necessitam dessa entrada de dados. Os arquivos podem ser implementados por meio de
arquivos Open Street Maps (.osm), Shapefiles (.shp), GIS ou desenhados dentro de interfaces
CAD, que acompanhem o traçado das malhas do espaço delimitado. É importante nesta etapa
a verificação da integridade topológica da malha (network). As linhas resultantes devem estar
todas integradas para não gerar incongruências nos resultados gerados.
2. Agregar dados e preparar o modelo: atribuir pesos, limpar possíveis incongruências
dos dados incorporados (gráficos em shapefiles). Os dados de entrada são as redes de ruas e
os contornos das edificações que são alimentados por metadados. Estes metadados podem ser
inseridos manualmente ou importados por meio de informações de localização e atividades
usando a API do Google Places ou do centroide dos shapes de edificações, contextualizado o
modelo com os diferentes locais e comodidades encontradas dentro da área de estudo. Os
edifícios e as ruas são representados como curvas nas quais os dados são inseridos, permitindo
a edição das geometrias e dos dados incorporados. A etapa de modelagem na interface do
programa 3d foi realizada de uma forma bastante interativa, porém a velocidade está
relacionada diretamente ao tamanho da área de estudo.

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digitais

3. Realizar análises de gravidade e alcance com a ferramenta UNA, para comparação


entre as áreas de acessos a serviços em uma escala macro. A análise de alcance (reach)
quantifica quantos destinos cada origem pode alcançar dentro de um raio específico e estima
a facilidade de acesso a serviços, bens e locais no menor deslocamento possível (SEVTSUK,
2018). Esta função é usada para descrever quantas habitações ou locais de trabalho estão
disponíveis em uma caminhada ao longo de determinado trajeto. A análise utilizada no
trabalho foi feita de forma a medir o alcance dos pontos de origem para acesso aos principais
pontos colocados como de maior concentração de atividades. Já a análise de medida da
gravidade (gravity) é usada para estimar a atração que determinados pontos de destino – por
exemplo comércio, espaços públicos, sistemas de transporte – provocam em uma rede.
4. Realizar as análises no plugin Urbano com base nos dados obtidos pela ferramenta
anterior, com intuito comparativo em escalas reduzidas. O plugin Urbano foi desenvolvido por
uma equipe multidisciplinar da Universidade de Cornell e intenciona complementar as análises
feitas pelo UNA, focando mais explicitamente nas atividades socioeconômicas, como por
exemplo padrões de comportamento e partindo para uma observação mais local. A figura 5
mostra a interface da barra das ferramentas utilizadas.

Figura 5. Detalhe dos plugins


UNA (superior) e Urbano
(inferior) para Rhinoceros®
e Grasshopper®
respectivamente.

Fonte: Adaptado de plugin


UNA e Urbano. Para o método proposto foram abordadas as seguintes métricas disponíveis na ferramenta
(Figura 6):

Figura 6. Métricas
disponíveis pelo plugin
Urbano e adotadas na
metodologia do trabalho.
Disponível em:
www.urbano.io. Acesso
realizado em: 14/01/2020.

Fonte: Adaptado de Plugin 1


Urbano.

• Streetscore: métrica que avaliar a pontuação de uma rua, é medida usando um


contador denominado street hits, que avalia quantas pessoas usam um determinado segmento
de rua nas viagens especificadas, isso pode permitir analisar quão movimentada é uma rua
dentro de uma rede.
• Walkscore e Amenityscore (métrica de Comodidade): o walkscore avalia a capacidade
de deslocamento em determinado bairro, avaliando a relação entre a distância de um dado
endereço para as diversas amenidades no entorno. O walkscore pode ser aumentado ao se
adicionar mais comodidades ao bairro, porém existe um questionamento econômico da
viabilidade de demanda do usuário para sustentá-las. Para contrapor a essa questão a
ferramenta propõe a pontuação das comodidades (amenityscore), que mensura a diferença
entre a oferta e a demanda de um determinado tipo de serviço na área recortada.
Por fim, o uso de ferramentas de natureza paramétrica permite uma rápida retroalimentação
do sistema e a geração de diversos cenários em um tempo reduzido.

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A figura 7 resume as etapas que foram adotadas para a realização do método sob o viés
instrumental proposto:

Figura 7. Metodologia
instrumental proposta pelo
trabalho.

Fonte: Elaboração Própria

As contribuições analíticas por ambas as ferramentas usadas neste trabalho estão diretamente
relacionadas à distribuição de comodidades, intensidade de deslocamento e de acesso a
serviços.
O termo amenity (comodidade) é utilizado no setor imobiliário e de hotelaria, e leva em
consideração os benefícios que determinada propriedade pode fornecer, aumentando assim o
seu valor. As comodidades físicas podem incluir desde a facilidade de acesso e qualidade dos
serviços como restaurantes, parques, áreas comuns, bares, centros comerciais.
As comodidades são os pontos inseridos nos polígonos que representam atividades e serviços
disponíveis em determinada área. Esses pontos podem possuir um maior ou menor fator de
relevância local. Os fatores não explícitos incluem as questões de infraestrutura e aspectos
sociais, como transporte público integrado, baixas taxas de criminalidade, ou qualquer outro
que possa aumentar o bem-estar dos residentes.
Pode-se posteriormente gerar agrupamentos (clusters) de preferências positivas, e alimentar
os dados e metadados de outras fontes empíricas como: entrevistas com usuários, valor do
metro quadrado e aluguel, notas recebidas pelos serviços disponíveis e IDH (índice de
desenvolvimento humano) local. Tal como as observações sociais, tais métodos encarecem
bastante a pesquisa, mas é necessário que se tenha acesso a estes dados para gerar resultados
mais significativos e reduzir o tempo de elaboração e inserção destes no modelo. O diálogo
entre as duas ferramentas foi facilitado já que ambas operam no mesmo software,
possibilitando o uso do mesmo modelo e a interoperabilidade entre os resultados e
complementação de análises.

CASO DE ESTUDO

Para o caso de estudo deste trabalho utilizou-se o município de Juiz de Fora, localizado na Zona
da mata de Minas Gerais (figura 8), com população estimada de 568.873 habitantes em 2019.
Juiz de Fora foi escolhida para aplicação dos modelos de estudo devido a sua configuração
urbana espraiada, à disponibilidade de dados necessários e conhecimento prévio dos autores
sobre as dinâmicas urbanas locais (pesquisas exploratórias), como indicação de possíveis
pontos de maior atratividade.

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Figura 8. Localização, malha


viária do município de Juiz
de Fora e bairro Eldorado,
recorte para estudo de caso.

Fonte: Google Earth/


Elaboração própria.

Para detalhamento e apresentação de resultados em escala mais próxima à do bairro, foi


realizado um recorte na área do bairro Eldorado, localizado na região nordeste de Juiz de Fora.
Nos últimos anos, o bairro vem passando por rápido adensamento a partir de substituição do
uso residencial unifamiliar, até então predominante, pelo residencial multifamiliar. O resultado
da área nas análises de alcance e gravidade, que serão apresentadas mais a frente, foi fator
preponderante na escolha do recorte.
O primeiro passo, conforme descrito no método, é adicionar curvas à rede urbana e identificar
os pontos de interesse. Algumas áreas não foram inseridas na malha final da cidade utilizada
no caso de estudo por não apresentarem conectividade considerável (geralmente ruas e
pequenos distritos sem traçado viário representado e parcelas de edificações de baixa
densidade) e/ou por apresentarem intervalos com vazios urbanos consideráveis para o
restante da rede.
A maior parte das funções analíticas utilizadas pelas ferramentas propostas valem-se de
pontos para descrição dos locais (edifícios, entradas, espaços públicos) como unidades de
análise. Estes pontos podem ser classificados em três categorias dentro da primeira ferramenta
usada, a UNA diretamente na interface do Rhinoceros®: Pontos de Origem, Pontos de Destino
e Pontos de Observação. Feito isso, é possível inserir pesos dentro dos pontos, com a força de
atratividade ou importância que cada um deles contém por exemplo. A Figura 9 ilustra
resumidamente as etapas compreendidas nesta fase.

Figura 9. da esquerda para a


direita - Network da malha
viária da cidade de Juiz de
Fora, distribuição de
edificações (pontos de
origem) e por fim colocação
de pontos de destino e de
seus respectivos pesos.
Fonte: Elaboração própria.
Para efeito de estudo do método consideramos os espaços dentro de três escalas de pesos, de
1 a 3, baseados em uma escala numérica.
• Peso de Vetor 3 – Pontos locais com grande atratividade, considerados pontos de
destino, possuem uma alta concentração de serviços e convexidade de transportes e
deslocamentos, pontos de encontro ou de passagem de um grande fluxo de pessoas. São locais
de significativa relevância na cidade e pontos de referência. Nos mapas de gravidade e alcance
apresentam a cor vermelha de acordo com seu raio de influência.
• Peso de Vetor 2 – Demais locais que possuem relevância local média, recebem um
fluxo, concentração de serviços e demais fatores em menor escala, tais como equipamentos de
saúde, praças de bairros, centros comerciais de média e pequena dimensão, parques e outras
instituições. Tais pontos são representados por gradientes alaranjados e amarelados.

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• Peso de Vetor 1 – O restante dos pontos, considerados dentro do programa como


pontos de origem, geralmente casas, prédios residenciais, espaços públicos pequenos.
Possuem geralmente cores frias na visualização de gravidade e alcance, são geralmente azuis
e verdes.
A rede gerada pela ferramenta mostra quantos pontos de origem estão mais próximos dos
pontos com pesos atribuídos maiores valores, e gera os mapas de alcance (Figura 10) e
gravidade (Figura 11) destes destinos, com base em sua proximidade e atratividade.

Figura 10. Análise de


Alcance utilizando da
ferramenta UNA na cidade de
Juiz de Fora nos parâmetros
utilizados.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 11. Análise de


Gravidade utilizando da
ferramenta UNA na cidade de
Juiz de Fora nos parâmetros
utilizados.

Fonte: Elaboração própria.

A escolha das áreas para aplicação do plugin Urbano foi realizada a partir dos resultados
demonstrados pela Ferramenta UNA nas análises de alcance e gravidade, comparando os
índices obtidos e a sua relação com a facilidade de serviços e de acessibilidade e uso destes nas
áreas investigadas. A área escolhida é caracterizada por ser de uma região de oferta baixa de
serviços diversificados e de malha regular.
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digitais

Foram, então, realizadas simulações para a situação existente e uma situação projetada, com o
intuito de verificar se haveria mudanças sensíveis nos valores de streetscore e walkscore para
a área a partir da inserção de alguns pontos de interesse comerciais de peso de vetor 1 nas
áreas que apresentavam menor walkscore. A inserção – para ambas as simulações – seguiu o
procedimento indicado na figura 12 e a simulação das situações existente e projetada é
apresentada nas figuras 13 e 14.

Figura 12. Processo de


inserção de pontos de
interesse no Plugin Urbano.

Fonte: Adaptado de plugin


Urbano/Elaboração própria.

Figura 13. Streetscore


situação existente à esquerda
(a) e com inserção de pontos
de comodidades à direita (b).

Fonte: Elaboração própria.


1

A figura 13a apresenta a estimativa de circulação de pessoas para a situação existente,


demonstrando que o fluxo decresce à medida que se afasta da avenida principal. As ruas com
os menores streetscores são as que possuem uma menor circulação de pessoas, já que contam
com poucos pontos de destino e distribuição de atividades. A figura 13b demonstra a inserção
de novos pontos de comodidades na situação projetada, aumentando a distribuição de serviços
e da conectividade destas ruas anteriormente mais periféricas na rede .

Figura 14. Walkscore


situação existente à esquerda
(a) e com inserção de pontos
de comodidades à direita (b).

Fonte: Elaboração própria.

A figura 14a apresenta a situação existente e pode-se verificar que os polígonos com melhor
walkscore são os localizados próximos à avenida principal, que apresenta maior número de
serviços e concentração de atividades. Os valores ficam mais baixos à medida em que se afasta
da concentração de atividades. A figura 14b traz os resultados para a situação projetada, após

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inserção de pontos de comodidade, indicando melhoria do parâmetro nas partes mais


distantes da avenida principal.
Observou-se durante o uso do plugin Urbano relativa dificuldade na visualização dos
resultados numéricos, principalmente em áreas mais amplas ou com maior quantidade de
edificações e/ou segmentos. Com o propósito de facilitar essa visualização, aplicou-se a escala
de gradientes (verde a vermelho) com os valores de cada parcela com os índices de walkscore
obtidos, revelando quais pontos possuem os melhores índices gerados nas simulações,
conforme figura 15.

Figura 15. Geração em


cores de volumetrias que
atingiram um maior valor de
walkscore para situação
existente (à esquerda) e
situação projetada (à direita).

Fonte: Elaboração própria.

DISCUSSÃO

A elaboração das simulações de alcance e gravidade a partir da malha urbana de Juiz de Fora
possibilitaram perceber as áreas da cidade que, embora próximas às centralidades indicadas
pelo parâmetro gravidade, possuíam baixos valores do parâmetro alcance, indicando a
necessidade de maiores deslocamentos para realização de atividades cotidianas. Os resultados
streetscore e walkscore apresentados no estudo de caso demonstram que a proposição da
distribuição mais homogênea de pontos de interesse melhora os parâmetros analisados.
Embora tenha sido realizada apenas uma proposição de forma ilustrativa juntamente com o
método exploratório, os métodos permitiram a inserção e avaliação de diversas propostas de
modificação, possibilitando simular a antever os resultados de possíveis intervenções físicas.
Nota-se que a coleta de dados é importante, mas a sua relevância está diretamente relacionada
a conexão dentro de um contexto específico que possa revelar redes de interdependências. O
maior empecilho na execução do método reside na dificuldade de encontrar uma ampla gama
de dados socioespaciais digitalizados em bancos compatíveis com os softwares e plugins
utilizados. A inserção manual dos dados para cada edificação dificulta a elaboração do modelo
e reduz a confiabilidade dos resultados, já que informações importantes podem não ter sido
consideradas. Quanto maior a disponibilidade de dados oficiais digitalizados, mais precisas as
simulações e resultados, de forma que a análise das propostas projetuais e a retroalimentação
do modelo tendem a ter maior sucesso.
A proposta metodológica e os resultados podem induzir à ideia de que os espaços com os
melhores índices de intensidade são aqueles que dispõem de maior oferta e qualidade de
serviços. Sendo assim é importante compreender as especificidades de cada lugar – não se
situando apenas em fatores econômicos e sociais – relativizando possíveis dinâmicas que
ocorrem em regiões periféricas ou que possuam outras formas de urbanidade, como por
exemplo a sazonalidade de eventos e serviços.
Embora a forma urbana e a conectividade estejam associadas a melhores resultados, como
demonstrado no estudo de caso, não são os únicos fatores que podem influenciar as
discrepâncias socioespaciais das cidades. Incorporar as proxêmicas do espaço como agente na

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digitais

estruturação e planejamento de uma cidade e de seus espaços, torna-se instrumento que pode
ser utilizado para visualização e formação de estratégias de projeto que considere a
importância das dimensões sociais presentes em um espaço construído de maneira a fortalecê-
lo.
Para futuros trabalhos, buscaremos gerar possíveis comparações entre recortes urbanos,
identificando suas potencialidades, qualidades e debilidades, fornecendo análises de como
estes contextos se adaptam e transformam-se alterando padrões ao longo do tempo.
Considera-se também a busca por métricas que consigam capturar a intensidade urbana
levando em consideração não apenas os aspectos socioeconômicos, como valor da terra ou
disponibilidade de serviços em uma área, com especial atenção à variabilidade dos pesos e
categorizações como faixa etária, necessidades e classe social local, entre outros fatores que
possam agregar vitalidade a ruas e lugares.

CONCLUSÃO

O trabalho buscou apontar alternativas para a identificação de meios assistidos por


ferramentas digitais para análise de contextos locais e evidenciar como uma distribuição
racional de serviços e espaços públicos podem aumentar substancialmente a oferta de serviços
e diminuir desigualdades socioespaciais, que aumentam paralelamente à rápida urbanização.
As proxêmicas, assim como outras correntes de estudo socioespaciais, podem e devem ser
então utilizadas como meio para auxiliar na percepção destes comportamentos na
estruturação e planejamento de uma cidade e de seus espaços. É fundamental que exista uma
consonância entre os diversos agentes dos diversos campos de atuação e conhecimento que se
debruçam sobre o planejamento das cidades, e ferramentas digitais bem orientadas podem
colaborar efetivamente para a redução dessas lacunas.
Com as possibilidades advindas da emergência de instrumentos tecnológicos e outros avanços
como Big Data e Inteligência Artificial, há uma progressiva adoção e interesse em pesquisas
que assumem a perspectiva de que o espaço urbano não deve ser mais concebido como um
sistema estático ou bem definido, mas que possua flexibilidade e esteja aberto às constantes
implicações e mudanças inerentes à sua complexidade.
O desafio principal é buscar soluções dentro de organizações mais abertas que visem à melhor
adaptabilidade dos sistemas urbanos frente às transformações latentes, incorporando novos
agentes – sejam instrumentais ou de ações participativas, orientadas à necessidade de uma
abordagem que abarque os diversos campos envolvidos na proposição de soluções e na
identificação de problemas e potencialidades – numa mudança de pensamento projetual da
probabilidade e da prescrição para a possibilidade e descrição.

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Renato César Ferreira Souza


rcesarfs@gmail.com

Marcos Martins Borges


marcos.borges@ufjf.edu.br

80
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166255

APLICAÇÕES DA FABRICAÇÃO DIGITAL EM ARQUITETURA, DESIGN E


CONSTRUÇÃO: PROCESSOS DE APROPRIAÇÃO TECNOLÓGICA E
ADEQUAÇÃO SOCIOTÉCNICA EM EXPERIMENTOS NA AMÉRICA DO
SUL
APPLICATIONS OF DIGITAL FABRICATION IN ARCHITECTURE, DESIGN AND
CONSTRUCTION: PROCESSES OF TECHNOLOGICAL APPROPRIATION AND SOCIO-
TECHNICAL ADAPTATION IN EXPERIMENTS IN SOUTH AMERICA

Rodrigo Scheeren1, David M. Sperling1

RESUMO:
Conforme o avanço e a disseminação das tecnologias de fabricação digital nos campos da arquitetura, design e
construção, torna-se oportuno sistematizar os laboratórios que as implementam e compreender como estão 1Universidade de São
ocorrendo as suas dinâmicas de uso no contexto da América do Sul. Como parte de um projeto de pesquisa em Paulo. Instituto de
andamento, o objetivo do artigo é elencar alguns dos experimentos projetuais identificados durante a investigação Arquitetura e Urbanismo
e apresentá-los por meio de categorias baseadas em similaridades de propostas temáticas e conceitos, além de suas – IAU USP
relações com as tecnologias. Os métodos utilizados abrangem a revisão da literatura e revisão sistemática de
publicações, mapeamento de informações, questionários semiestruturados e estudos de caso. Os artefatos
selecionados são analisados conforme os temas da apropriação tecnológica, adequação sociotécnica e inovação
social, manifestando uma perspectiva local de estratégias de produção frente a demandas e necessidades, a partir
do emprego de técnicas e tecnologias digitais. O contexto recente de instalação dos laboratórios de fabricação digital
foi se ampliando nas instituições por meio do ensino e da pesquisa, além da consolidação do modelo Fab Lab na
região. Os resultados práticos são muito heterogêneos em seus temas, concebidos com prazo de durabilidade curto,
ainda limitados em escala e fortemente baseados na articulação formal híbrida entre o analógico e o digital, devido
aos materiais disponíveis, tipo de maquinário acessível e da especialização técnica necessária para produzi-los, mas
com alguns projetos direcionados à solução de problemas no aspecto social.
PALAVRAS-CHAVE: Fabricação digital; Apropriação tecnológica; Adequação sociotécnica; Inovação social; Design
arquitetônico.

ABSTRACT:
According to the advancement and dissemination of digital fabrication technologies in the fields of architecture, Fonte de Financiamento:
design and construction, it becomes opportune to systematize the laboratories that implement them and understand Fundação de Amparo à
how their dynamics of use are occurring in the context of South America. As part of an ongoing research project, the Pesquisa do Estado de São
objective of the article is to list some of the design experiments identified during the investigation and to present Paulo - FAPESP e Conselho
them through categories based on similarities of thematic proposals and concepts, in addition to their relationship Nacional de
with technologies. The methods used include a literature review and systematic review of publications, information Desenvolvimento Científico e
mapping, semi-structured questionnaires and case studies. The selected artifacts are analyzed according to the Tecnológico - CNPq
themes of technological appropriation, socio-technical adequacy and social innovation, showing a local perspective
of production strategies in the face of demands and needs, based on the use of digital techniques and technologies. Conflito de Interesse:
The recent context of the implementation of digital fabrication laboratories has been expanding in institutions Declara não haver.
through teaching and research, in addition to the consolidation of the Fab Lab model in the region. The practical
results are very heterogeneous in their themes, conceived with a short term of durability, still limited in scale and Submetido em: 11/02/2020
strongly based on the formal hybrid articulation between analog and digital, due to the available materials, the type Aceito em: 08/07/2020
of accessible machinery and the technical specialization necessary for producing them, but with some projects aimed
at solving problems in the social aspect. KEYWORDS: Digital fabrication; Technological appropriation; Socio-technical
adequacy; Social innovation; Architectural design.

How to cite this article:

SCHEEREN, R.; SPERLING, D. M. Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos
de apropriação tecnológica e adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul. Gestão &
Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-, 2020. https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166255
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

INTRODUÇÃO

A disciplina da arquitetura foi expandida em suas práticas e formas de atuação nas últimas
décadas devido a uma série de mudanças técnicas e tecnológicas, centradas principalmente na
evolução do paradigma digital (PICON, 2010), com avanços ocorrendo no âmbito dos processos
computacionais de projeto (MENGES AHLQUIST, 2011) e na esfera da fabricação digital
(CANEPARO, 2014). A possibilidade de materializar os conceitos projetados permeia o
interesse dos arquitetos por atividades práticas que se constituem desde a aplicação das
tecnologias por meio da prototipagem rápida (Sass; Oxman, 2006) até em experimentos
materiais utilizando métodos avançados que articulam o estado da arte das tecnologias
industriais em processos para a construção (NABONI, PAOLETTI, 2015). Em paralelo,
laboratórios de investigação se consolidaram em instituições de ensino (CELANI, 2012),
propostas de fabricação pessoal, assim como nos Fab Labs, que indicam um potencial de
“revolução” na área (GERSHENFELD, 2005; 2012). Desse modo, a expansão do vocabulário de
criação, da análise e da simulação de projetos cada vez mais complexos está sendo
materializada por processos de fabricação que investigam a utilização das máquinas de
controle numérico computacional, com a finalidade de automatizar o design para a produção.
De acordo com qualquer contexto sociotécnico, os artefatos produzidos devem ser
compreendidos de forma vinculada aos seus meios de produção, às relações de trabalho, e aos
potenciais de transformação desse mesmo contexto. Em virtude dessas condições, existem
posições críticas em relação ao papel das tecnologias e suas condições de efetivação. As
alterações no processo de produção da construção pelas tecnologias de fabricação digital
decorrem de mudanças fundamentais nas estruturas sociais e de mercado, não como práticas
tecnicamente determinadas, mas que evoluem e são estabelecidas por necessidades e
desenvolvimentos sociais e culturais (MOE, 2010, p. 164-5). Entre a promoção de princípios de
abertura, democratização, empoderamento e compartilhamento de informações, os Fab Labs
e o movimento maker estão suscetíveis a associarem-se a concepções individualizantes e
suprimirem o que há de possibilidade mínima para a construção coletiva na sociedade
(FONSECA DE CAMPOS, 2018). Além disso, a informalidade dos mecanismos de trabalho, a
exclusividade do conhecimento técnico e das práticas enquadram-se em condições sociais,
culturais e econômicas muito específicas (NASCIMENTO; PÓLVORA, 2016), podendo
desdobrar um contexto limitado dos Fab Labs e makerspaces em países periféricos.
O uso das novas tecnologias computacionais tornou-se tópico de interesse global, constituído
segundo uma lógica em que investigações, experimentos e protótipos oriundos de países
desenvolvidos, são divulgados e convertem-se em referências para pesquisas realizadas em
outros países. Frente a esse contexto, muitas vezes centrado na divulgação técnica de
propostas oriundas desses países, há certa escassez de trabalhos mais aprofundados sobre o
assunto na América do Sul. Sendo assim, convém elucidar como as transformações
oportunizadas pela disponibilidade de maquinário e técnicas são capazes de aperfeiçoar e
contribuir para a criação de projetos, desenvolvimento de atividades e sistemas direcionados
à esfera social e seus contextos de realização e seus propósitos. O problema se coloca de duas
formas: a) compreender a situação local dos laboratórios que exploram as tecnologias; b)
fornecer subsídios a partir do contexto da América do Sul para um pensamento crítico em
relação à apropriação situada das técnicas e tecnologias.
O artigo apresenta uma sistematização que torna visível uma perspectiva acerca da aplicação
das tecnologias de fabricação digital em arquitetura, design e construção na América do Sul. A
análise realizada referencia-se nos conceitos de apropriação tecnológica (BONSIEPE, 1983),
adequação sociotécnica (DAGNINO, 2009) e inovação social (MANZINI, 2015). O primeiro, se
refere à compreensão das tecnologias existentes, seus potenciais e limitações, a real
necessidade de sua aquisição e futuras aplicações; o segundo, reflete sobre a conformidade de

82
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

métodos e estratégias de ensino, serviço e produção em seu meio de inserção, às necessidades


e aos atores envolvidos, a partir de conhecimentos prévios e sua capacidade de
aprimoramento, utilizando as tecnologias como suporte em seus distintos níveis; o terceiro,
foca na geração de projetos alternativos, e sua capacidade de modificar e redirecionar agendas
de processos e de produção que impactem diretamente no bem-estar de uma comunidade.
Enquanto a esfera de aplicação da fabricação digital oriunda de países econômica e
tecnologicamente desenvolvidos está devidamente registrada na literatura, são escassas as
publicações que sistematizam projetos advindos de laboratórios na América do Sul. Portanto,
a intenção de articular uma análise nesse sentido segue a compreensão de Mignolo (2003), a
partir da qual “as histórias locais estão assumindo o primeiro plano e, da mesma forma,
revelando as histórias locais das quais emergem os projetos globais com seu ímpeto universal”
(p. 46), explicitando não somente algumas relações de poder manifestas nessa condição, mas
também a oportunidade de considerar o outro lado da história enquanto liberação de um
horizonte cultural (MIGNOLO, 2018).
O objetivo do artigo é elencar alguns experimentos projetuais identificados durante a pesquisa,
para apresentar um panorama de produção recente na região, com base na aplicação das
tecnologias de fabricação digital para a arquitetura, design e construção. De maneira específica:
a) apresenta informações gerais sobre a situação e os modos de conformação dos laboratórios;
b) identifica e organiza artefatos a partir de características comuns emergentes, baseadas nas
noções de apropriação tecnológica, adequação sociotécnica e inovação social, representando
especificidades emergentes de cada região; c) analisa a conjuntura geral em que emergem estas
experiências, abrangendo alguns dos fatores tecnológicos, técnicos e sociais vinculados à
fabricação digital em nossa região.
A investigação exploratória acerca dos laboratórios de fabricação digital na América do Sul,
que dá suporte à pesquisa da qual este artigo apresenta um recorte, foi conduzida a partir de:
a) revisão da literatura global e de publicações locais, focadas no tema da fabricação digital; b)
mapeamento (ABRAMS; HALL, 2006) dos laboratórios de fabricação digitais com atividades
vinculadas à arquitetura, design e construção na América do Sul, constituídos desde o início
dos anos 2000; c) questionário (LUNE; BERG, 2017) aplicado para compreender informações
institucionais, de infraestrutura, os usos das tecnologias e identidade da produção; d) estudos
de caso (WANG; GROAT, 2015) baseados em projetos e protótipos resultantes de atividades
didáticas, de pesquisa, oficinas, instalações artísticas e objetos de design, demandas para
soluções de problemas e suportes para atividades práticas, organizados por meio de uma
categorização.
Mais especificamente, o artigo apresenta informações parciais da pesquisa “Laboratórios de
fabricação digital na América do Sul: estratégias, processos e artefatos para arquitetura e
design”, sendo derivado do trabalho intitulado “Technological appropriation and socio-
technical adequacy in South America: applications of digital fabrication in architecture and
design”, apresentado no XXII Congresso da Sociedade Iberoamericana de Gráfica Digital
(SIGraDi) (SCHEEREN; SPERLING, 2018)..

A DIFUSÃO DOS PARADIGMAS COMPUTACIONAIS E DA FABRICAÇÃO DIGITAL

O paradigma computacional, relacionado aos processos de projeto e à produção da arquitetura,


evoluiu nas últimas décadas devido ao seu uso como ferramenta de assistência ao desenho e
para interfaces generativas, de construção da informação e de criação de formas complexas.
Tal avanço contribuiu para que o arquiteto não estivesse atrelado às limitações técnicas e de
logística do setor de produção industrial seriada, podendo controlar e customizar os resultados
materiais utilizando tecnologias de fabricação digital. Uma das origens desse processo de
desenvolvimento remonta ao período entre 1940 e 1950, quando foi criada e testada a
83
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

primeira máquina de fresagem de controle numérico (CNC), em 1952, nos laboratórios de


pesquisa de servomecânicos no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Tal fato
demonstra a convergência entre os interesses militares, da indústria e da academia, em “uma
visão hegemônica da tecnologia que retratou de forma otimista os computadores como chave
para o projeto nacional dos EUA de supremacia e competitividade global” (LLACH, 2015).
Não parece ser coincidência que na mesma instituição foi criado o modelo Fab Lab, uma
proposta de espaço que inclui instruções para uso e aquisição de maquinário com um valor de
até 50 mil dólares, que se concretizou no início dos anos 2000 por Neil Gershenfeld (2005), e
logrou-se divulgar mundo afora. A vocação para criar tecnologias de automação em prol da
indústria induziu o desenvolvimento de outras tecnologias de fabricação no mesmo país, a
partir de meados dos anos 1980 e início dos anos de 1990, como a manufatura aditiva por meio
de SLS, SLA e a FDM. Apesar da tecnologia FDM ter sido inventada naquele momento, é somente
em meados e final da primeira década de 2000 que ela se difundiu, após o fim de patentes e
mediante processos abertos compartilhados, como o projeto RepRap, e a comercialização de
modelos de impressoras 3D desktop acessíveis e versáteis (CARPO, 2017, p. 75), como a
MakerBot. Ao longo do tempo, algumas dessas tecnologias se desdobraram em técnicas
avançadas para a construção, em parte, por meio da pesquisa experimental em universidades,
com a ampliação de escala do maquinário e a diversidade de materiais empregados.
Além da divulgação do modelo de espaço de trabalho suportado pela cultura maker, rede e
filosofia do Fab Lab MIT, outros fatores contribuíram para a crescente conformação de uma
“cultura digital” de projeto e produção na área de arquitetura e design naquele período. Entre
eles, o surgimento de interfaces de programação amigáveis aos usuários e tecnologias abertas
de fácil compreensão; a publicação de projetos construídos e experimentos complexos que
manifestavam integração das tecnologias digitais de outros setores em projeto, análise,
fabricação e montagem (KOLAREVIC, 2005); as aspirações de design e os sistemas de
fabricação digital que aproximaram a indústria manufatureira do setor da construção,
instaurando novos vocabulários de projeto para arquitetura (SCHODEK et al., 2005); a
utilização das máquinas para a prototipagem de objetos e modelos arquitetônicos em um
processo integrado com o design digital, ensino e pesquisa em escolas de arquitetura, design e
construção (SASS e OXMAN, 2006).
Os fatores mencionados acima difundiram-se globalmente e, em contextos como o da América
do Sul, influenciaram claramente a formação de iniciativas de ensino, investigação e produção.
Logo, é de fundamental relevância compreender como vem sendo realizadas apropriações e
aplicações tecnológicas em cenários tão diversos na região, sendo que os resultados
materializados por esses laboratórios são considerados aqui artefatos significativos para essa
análise.

PRECEDENTES DA PESQUISA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA PARA IDENTIFICAÇÃO


E ANÁLISE DOS ARTEFATOS

Em 2015, a exposição “Homo Faber: Digital Fabrication in Latin America” (SPERLING;


HERRERA, 2015), na ocasião do congresso “CAAD Futures”, reuniu de forma pioneira projetos
desenvolvidos com suporte da fabricação digital em diversos países do nosso continente. A
partir da mesma base de dados, o artigo “Migratory Movements of Homo Faber: Mapping Fab
Labs in Latin America” (SPERLING, et al., 2015b) apresentou um mapeamento de informações,
baseado em uma amostragem de laboratórios de fabricação instalados, nas redes de formação
de conhecimento estabelecidas na América Latina e nas conexões com países de outros
continentes. No ano seguinte, o projeto de pesquisa “Laboratórios de fabricação digital na
América do Sul: estratégias, processos e artefatos para arquitetura e design”, desenvolvido no
programa de pós-graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP, iniciou um
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

mapeamento de laboratórios de fabricação digital na América do Sul ligados a arquitetura,


design e construção em instituições de ensino públicas e privadas, além de iniciativas
independentes e escritórios. Este projeto busca sistematizar e compreender a situação dos
laboratórios, suas dinâmicas de assimilação e aplicação das tecnologias, estratégias de
trabalho, produção acadêmica e de projetos, para que se fomentem redes e dinâmicas de
associação entre laboratórios com interesses e projetos similares.
O contexto recente da fabricação digital na América do Sul se constitui em diversos tipos de
espaços privilegiados para atividades com sua devida infraestrutura. Estes espaços, entendidos
genericamente como “laboratórios”, segundo especificidades institucionais e objetivos, foram
classificados como “laboratório de pesquisa”, “Fab Lab” e “escritórios de design”. Eles foram
incluídos na pesquisa a partir de suas relações com a arquitetura e o design de produto e se as
suas atividades e produção são minimamente originais e relevantes para o contexto do qual
emergem. Um primeiro resultado do mapeamento foi obtido a partir do material para a
exposição “Homo Faber”, redes específicas como “Makery” e “FabLabs.io”, complementado por
informações de buscas em websites e redes, utilizando palavras-chave relacionadas à
“fabricação digital”, e pelos questionários aplicados.
O princípio das atividades dos laboratórios na região pode ser sintetizado em alguns marcos
temporais. Um período inicial de instalação e uso das tecnologias por meio de alguns grupos
de pesquisa em instituições de ensino por volta de 2007 e, nos anos seguintes, o surgimento
dos primeiros Fab Labs e escritórios empregando as tecnologias. Por volta de 2012, há um
período de expansão dos laboratórios em instituições de ensino e empreendimentos privados,
que se acelera por volta de 2016, mais centrados em novos Fab Labs e escritórios de design
aplicando as tecnologias de fabricação. É importante salientar que alguns desses laboratórios
tiveram suas atividades descontinuadas durante o período do levantamento, um dado que
revela questões de ordem econômica e de políticas de inovação na região. Em 2018, na ocasião
do XXII Congresso da Sociedade Iberoamericana de Gráfica Digital (SIGraDi) intitulado
“Tecnopolíticas”, a exposição “Homo Faber 2.0: Politics of Digital in Latin America”
(SCHEEREN; HERRERA; SPERLING, 2018) apresentou projetos realizados na América Latina
que utilizam a fabricação digital para desenvolver processos e materializar artefatos que
impactam positivamente nas relações entre produção e comunidades do contexto no qual se
inserem.
Em artigo publicado anteriormente (SPERLING, et al., 2015a), a implementação dos
laboratórios de fabricação digital em nosso contexto foi analisada sob os aspectos econômicos,
acadêmicos e culturais. Em consonância com reflexões desenvolvidas na segunda exposição
Homo Faber, esse artigo amplia a análise para compreender aspectos complementares aos já
estabelecidos, no caso, o social e o político. No estágio em que se encontram, o aspecto
econômico envolve a diminuição dos valores para compra e manutenção de maquinário, além
de financiamentos de projetos por fomento público ou privado; o aspecto acadêmico manifesta
o estabelecimento de grupos de pesquisa e atividades de ensino em instituições com a
disseminação de conhecimento em publicações e em redes de compartilhamento técnico; o
aspecto cultural ainda espelha referências produzidas em contextos distantes, mas indica
diversidade na produção com especificidades temáticas, técnicas e materiais locais, além da
adaptação de um movimento faça-você-mesmo por meio do compartilhamento de informações
online, iniciativas em rede e sistemas distribuídos, como em oficinas e residências nos Fab
Labs.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

Figura 1. Mapa dos


laboratórios identificados com
potencial para a pesquisa

Fonte: Autores, 2019

O aspecto social e político (LOMBARDERO & DE CANALES, 2016) permeia os anteriores, ao


incitar a reflexão sobre como os processos de projeto e produção com as novas tecnologias
geram uma estrutura de mediação que representa os sujeitos envolvidos nesses processos,
através da expressão material e formal. Procura-se compreender como as relações e ações no
campo comum da sociedade podem ser promovidas com potencial de emancipação e
transformação, gerando significado ao que é produzido, assim como verificar as atividades que
permeiam a aplicação das tecnologias de fabricação digital. De modo mais específico, interessa
compreender se e como a assimilação dessas tecnologias beneficia a produção relacionada às
condições específicas de cada região, representa fatores culturais, influencia na resolução de
problemas e contribui na dimensão do comum, com novas formas de trabalho e de
participação.
A percepção desses acontecimentos parte da análise fundamentada em determinados temas
apontados a seguir. Bonsiepe (1983) indicou a importância de abordar o tema da apropriação
tecnológica, para compreender que sem a sua produção local por setores capacitados, é gerada
uma condição de assimetria e dependência entre países periféricos e centrais. Ao não se
estabelecer conjuntura favorável à inovação em cada sociedade, a tecnologia torna-se
mercadoria que limita o processo de transferência crítica e de desenvolvimento econômico
nesse campo. Desse modo, surge um desequilíbrio no qual a tecnologia torna-se instrumento
de dominação que restringe a autonomia produtiva.

86
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

Dagnino (2009) discute aspectos similares por meio do tema da adequação sociotécnica,
segundo a qual o dispositivo tecnológico é apropriado e adaptado aos interesses políticos de
grupos sociais relevantes, evitando “a ideia de que se possa simplesmente transferir
tecnologias pré-concebidas” (DAGNINO, 2009, p. 63). Em vez de copiar saberes e técnicas, a
ideia de “reaplicação” é colocada, quando o conhecimento e a tecnologia existentes são
ajustados às particularidades de cada contexto, em que a noção de tecnologia se estabelece
como resultado da ação de um ator social e decisão do coletivo. Além disso, a utilização dos
recursos deve ser direcionada com o objetivo de maximizar o bem-estar da sociedade e do meio
ambiente.
Por sua vez, Manzini (2015), sugere que a inovação social resulta de soluções desassociadas de
modelos instituídos. Nesse sentido, o significado inerente às ações partiria de múltiplas
expectativas e motivações dos atores envolvidos. Para que esse compartilhamento aconteça, é
importante adaptar o conhecimento técnico, os materiais a disposição e integrar os atores com
diferentes níveis de experiência em busca de novas soluções que extrapolem os modelos
econômicos tradicionais, operando com base na multiplicidade de motivações e expectativas
dos atores. Desse modo, “quanto mais pessoas forem expostas a essas tecnologias, maiores
serão suas oportunidades e capacidade de absorvê-las, e entenderão como elas podem ser
usadas ou adaptadas” (MANZINI, 2015, p. 16).

IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DOS ARTEFATOS: UMA AMOSTRAGEM INICIAL

As aplicações da fabricação digital na arquitetura, design e construção, apresentam-se de


maneira heterogênea entre os diversos laboratórios, evidenciando uma diversidade regional
em seus resultados. Para o presente artigo, parte dos trabalhos de laboratórios expostos no
mapa da Figura 1 foi selecionada segundo características específicas e aspectos comuns, que
emergiram em relação à amostra geral, com foco nos temas apresentados anteriormente.
Elencamos projetos realizados na Argentina – Nodo39 FabLab, TaMaCo e +ID Lab (Universidad
de Buenos Aires)–, no Brasil – Fab Lab SP, Estúdio Guto Requena, LAMO 3D (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), LEAUD (Universidade Federal de Juiz de Fora) e LM+P
(Universidade Federal da Paraíba) –, no Chile – Aconcagua FabLab (Pontificia Universidad
Católica de Valparaíso), gt2P e FabHaus (Pontificia Universidad Católica de Chile) –, na
Colômbia – Tu Taller Design, FabLab Unipiloto, MorfoLab (Universidad Pontificia Bolivariana)
e Frontis 3d –, no Equador – FabLab UTPL –, no Peru – Fab Lab UNI –, e no Paraguai – FabLab
Universitario CIDI (Universidad Nacional de Asunción). Os conjuntos apresentados foram
elaborados a partir das similaridades das propostas e aplicações das tecnologias,
complementados por breves análises relativas aos projetos neles inseridos.
1) “Abrigos experimentais” inclui estruturas espacializadas para proteção, investigação de
suportes formais e materiais para a escala humana, além de módulos de habitação em seus
diversos níveis de complexidade. Os projetos se baseiam em iniciativas semelhantes, como a
wikihouse e os pavilhões. Em sua composição, empregam técnicas de corte e montagem a partir
de peças regulares, elementos regrados ou curvilíneos, determinando padrões customizados e
adaptáveis por meio de dobras e encaixes. As investigações formais têm o desafio de lidar com
limitações materiais, adaptações às demandas funcionais, ambientais e às técnicas construtivas
disponíveis.

87
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

Figura 2. Imagens dos


artefatos “Abrigos
experimentais”

Fontes:
Identificada abaixo das
Furetsu Casa Nordeste Nudo # Casa Abierta
imagens
Fonte: TaMaCo Fonte: Carlos Alejandro Fonte: Tomás Vivanco, Fonte: David Del Valle
Nome Diego Gajardo

O pavilhão Furetsu (TaMaCo) foi criado pelo estúdio Formosa Design, em 2017, como
instalação para um evento itinerante na Argentina. É composto de um esqueleto estrutural em
madeira, com peças cortadas em fresadora CNC, encaixadas para formar um elemento de dupla
curvatura suportando peças de plástico translúcido, cortadas a laser, dobradas e encaixadas
em módulos customizados. O projeto da Casa Nordeste (LM+P) investiga estratégias digitais
para construir uma residência de baixo custo que contemple a eficiência de conforto e
desempenho térmico para a região, além do uso de materiais e produtos sustentáveis. Utiliza a
fabricação digital para o corte das peças da estrutura de compensado naval, junções estruturais
e princípios de montagem. A técnica Nudo # (FabHaus UC) é um sistema de construção baseado
em uma peça de junção que permite a montagem de módulos habitáveis mínimos com a
capacidade de serem expandidos. As peças de encaixe cortadas com fresadora CNC permitem
facilmente que a estrutura possa ser montada, desmontada e transportada com facilidade. A
Casa Abierta (Tu Taller Design) foi criada como um protótipo experimental para a Feira de
Design de Medellín, como um resultado mais robusto e customizável para o mercado. O projeto
é uma proposta sustentável composta de sistema modular de treliças laminares e chapas de
madeira cortadas com fresadora CNC para serem pré-montadas.
2) “Infraestruturas e suportes” revisita concepções de sistemas e suportes materiais
construtivos, facilitados em seu desenvolvimento e fabricação por ferramentas digitais. Os
projetos envolvem elementos para espaços urbanos ou para a construção, em suas diferentes
escalas e funções, seja como protótipos e testes funcionais ou para futuras aplicações em
projetos. Os artefatos resultantes empregam técnicas industriais que podem ser aplicados em
maior escala, com o intuito de se adaptarem às futuras demandas locais em projetos similares,
suprirem problemas específicos ou se consolidarem como componentes duradouros.

Figura 3. Imagens dos


artefatos “Infraestruturas e
suportes”

Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Fachada metálica dobrada Forma para calçada drenante Pavilhão Tornado
Fonte: Rodrigo Velasco Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Fonte: Gonçalo Castro Henriques
Campos

A fachada metálica dobrada (Frontis 3d) é um sistema customizado de painéis perfurados que
tem a função de proteção e se adapta aos condicionantes da edificação como iluminação,
ventilação e vista para o exterior. A fabricação utiliza capacidade ociosa da indústria local e que
associa técnicas de suportes metálicos já aplicadas em outros projetos construtivos. A forma
para calçada drenante (Fab Lab SP) é utilizada como molde feito de peças de compensado naval
cortadas com fresadora CNC. As peças são encaixadas para formar canaletas pré-fabricadas em
microconcreto de alto desempenho. Em conjunto, compõem uma galeria subterrânea de
canalização pluvial para aprimoramento da infraestrutura urbana. O Pavilhão Tornado (LAMO

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

3D) surgiu de uma atividade didática em que foi concebida uma intervenção temporária no
espaço público, gerando espaço de permanência e descanso. O projeto é composto de
superfícies regradas geradas digitalmente e construídas a partir de peças de madeira serradas,
com demarcações de encaixe efetuadas com cortadora a laser.
3) “Materialidades artificiais” engloba experimentos que convergem formas e o
comportamento dos materiais bioinspirados no âmbito da pesquisa básica, incorporando o
aporte simbólico e conceitual no decorrer do seu processo. Os objetos são desenvolvidos por
ressignificações do conceito de natureza e se utilizam de substâncias orgânicas; adequando o
material ao ambiente no qual estão vinculados. Os elementos resultantes potencializam a
criação de superfícies e recobrimentos adaptáveis às mais diversas estruturas e geometrias.
Figura 4. Imagens dos
artefatos “Materialidades
artificiais”

Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Superfícies bio-inspiradas Tecnologías Expresivas – bioplástico Bio-termoplastic
Fonte: David Andrés Torreblanca Fonte: Gabriela Gonzales Faria Fonte: Pablo Suing
Díaz

As Superfícies Bio-inspiradas (Morfolab) resultam do propósito de unir superfícies e texturas


em investigações com padrões inspirados nas espécies vegetais da região. A partir da
modelagem digital, são criados elementos adaptativos com fresadora CNC e manufatura
aditiva, que podem ter distintas aplicações no design de produtos. As Tecnologías Expresivas
– bioplástico (FabLab Unipiloto) compõem experimentos materiais desenvolvidos por meio de
atividade de ensino que utilizam a modelagem de resinas biodegradáveis com a finalidade de
criar formas adaptáveis e irregulares, além de possibilitar que esse tipo de material possa ser
testado com aplicação de manufatura aditiva. O Bio-termoplastic (FabLab UTPL) é um
elemento de proteção para fachadas que filtra a alta intensidade da radiação UV na região
equatoriana. A geometria complexa de voronoi foi gerada a partir de modelo digital, composta
por resina e acrílico termocrômico, que resulta em uma estrutura rígida materializada com
manufatura aditiva.
4) “Objetos informados” explora elementos formais e simbólicos que, por meio de suas partes
simples, compõem artefatos complexos e articulados. As propostas partem de matrizes,
módulos ou morfologias, que podem compor generativamente instalações e estruturas
distintas do material originário por meio de informação digital ou intervenção humana.
Resultam em composições interativas e com efeito lúdico, utilizando técnicas de impressão,
corte de peças planas e montagem.
Figura 5. Imagens dos
artefatos “Objetos informados”

Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Jogo de montar ArchBricks ALADA Empatias mapeadas
Fonte: Frederico Braida Fonte: Rodrigo Martn Iglesias Fonte: Guto Requena

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

O jogo de montar ArchBricks (LEAUD) reúne componentes utilizados como um kit didático de
ferramentas em que é possível montar simulações em escala reduzida de conjuntos
habitacionais. A proposta parte de um projeto aberto em que as peças podem ser
materializadas e adaptadas por manufatura aditiva. O ALADA (+ID Lab) é um objeto criado em
colaboração com o Laboratório de Morfologia (FADU-UBA) e TaMaCo. A experimentação
investiga relações entre a forma, o material e comportamento estrutural, além de explorar
efeitos tridimensionais e simbólicos com o uso de elementos planos para um resultado
estrutural. Empatias mapeadas (Estúdio Guto Requena) é uma instalação que oferece um
espaço no formato de câmara para descanso e contemplação, informada por sensores que
controlam efeitos de som e luz. As grandes peças de madeira, cortadas por fresadora CNC e
encaixadas, abrigam um sistema interativo que envolve de maneira sensória os usuários.
5) “Artesanias híbridas” configura artefatos e instalações que auxiliam e otimizam a realização
de atividades manuais, aproximando sistemas analógicos de processos de fabricação digital. Os
projetos associam a revisão de técnicas artesanais desenvolvidas em cada região,
considerando-as herança cultural que é incorporada como tema do artefato. Os objetos
resultantes são compostos de materiais simples e procedimentos de montagem que são
potencializados por meio das tecnologias digitais.

Figura 6. Imagens dos


artefatos “Artesanias híbridas”

Fontes:
Identificada abaixo das
imagens
Telar 1.0 de pedal Estructura-bastidor de Dispositivo têxtil Parabrick
Fonte: Walter Gonzales tejido Fonte: Leo Aravena, Fonte: Julio Diarte, FabLab
Arnao Fonte: Alicia Correa Aconcagua Fablab Universitario CIDI

O Telar 1.0 de pedal (Fab Lab UNI) é um mecanismo portátil de alta performance que facilita
processos de tecelagem para a composição de iconografias andinas. Composto por peças
planas de madeira compensada, pode ser adaptado às necessidades manuais de diferentes
tipos de pessoas e de trabalhos. A Estructura-bastidor de tejido (Nodo39 FabLab) é uma
estrutura de madeira criada digitalmente para apoiar telas e pontos com a finalidade de
constituir um tear de tecido. A instalação temporária foi criada para apresentar e conservar
técnicas têxteis antigas dos indígenas da região central da Argentina, em um evento da
indústria criativa de Mendoza. O Dispositivo têxtil (Aconcagua FabLab) é um artefato que
reproduz um pequeno tear, facilitando a criação de pequenas peças têxteis, levado ao público
a partir da proposta itinerante do laboratório. Composto de peças de madeira e acrílico
cortadas a laser, a fabricação do objeto tem o objetivo de renovar o interesse pelas técnicas
têxteis da região. O Parabrick (FabLab Universitario CIDI) é um dispositivo que fornece suporte
para linhas-guia que funcionam para orientação de diversas composições geométricas de
alvenaria. Fabricado digitalmente com peças de madeira fresadas e encaixadas, a estrutura
pode ser montada no canteiro de obra e assim facilitar o trabalho manual.
6) “Dispositivos recodificados” abrange produções materiais relacionadas à reflexão conceitual
acerca das tecnologias e suas aplicações práticas, criando novas dinâmicas de utilização. Os
artefatos traduzem a subversão ou modificação do aparelho capaz de informar ou fabricar
outros objetos. As máquinas de fabricação digital são designadas como base para reformulação
e utilizadas para facilitar o processo de materialização por meio de técnicas de programação e
montagem analógica ou eletrônica, com aplicações direcionadas a elementos plásticos e na
geração de protótipos customizados.

90
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

Figura 7. Imagens dos


artefatos “Dispositivos
recodificados”

Fontes:
Identificada abaixo das
imagens

Digital Analogue Machines - Candelaria Less N°1 Catenary Pottery Printer


Fonte: Tomás Vivanco Fonte: Gt2P

O Digital Analogue Machines (FabHaus) é uma série de maquinações criadas por meio de
atividades de ensino que reutilizam partes de dispositivos eletrônicos descartados. O intuito é
criar objetos conceituais que associam manufatura personalizada, processos que se encontram
entre o maquínico e o automatizado. O Less N°1 Catenary Pottery Printer (gt2P) é uma
máquina analógica que funciona por meio de uma estrutura fixa com elementos ajustáveis.
Utilizando parâmetros controlados manualmente e o comportamento dos materiais, gera
objetos cerâmicos não-estandardizados que ressignificam técnicas artesanais no contexto
digital.
Projeto Aplicação Técnica Tecnologia Conceitos associados Tabela 1. Síntese da
1 Furetsu Estande itinerante Encaixe, dobra Fresadora, Corte Adequação sociotécnica identificação dos projetos
Laser
Casa Nordeste Construção resiliente Encaixe Fresadora Inovação social
Nudo # Construção baixo custo Encaixe Fresadora Inovação social
Casa Abierta Habitação modulada Encaixe, pregado Fresadora Adequação sociotécnica Fontes:
2 Fachada metálica Estrutura de proteção Dobra, perfuração Fresadora, Corte Apropriação tecnológica Autores
Laser
Forma para Molde para saneamento Encaixe, colagem Fresadora Inovação social
calçada
Pavilhão Tornado Estrutura em espaço Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
público
3 Superfícies bio- Elementos morfológicos Desbaste, adição Fresadora, Adequação sociotécnica
inspiradas Impressão 3d
Tecnol. Expres. Material de proteção Moldagem Formativa Adequação sociotécnica
bioplástico
Bio-termoplastic Componente de proteção Moldagem Formativa Inovação social
4 Jogo ArchBricks Objeto lúdico/didático Adição, encaixe Impressão 3d Adequação sociotécnica
ALADA Instalação Corte em padrões Corte Laser Apropriação tecnológica
técnico/simbólica
Empatias Instalação sensorial Encaixe Fresadora Apropriação tecnológica
mapeadas
5 Telar 1.0 de pedal Aparelho para tecelagem Encaixe Corte Laser Apropriação tecnológica
Estructura- Instalação para manuseio Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
bastidor técnico têxtil
Dispositivo têxtil Aparelho portátil para Encaixe Corte Laser Apropriação tecnológica
tecelagem
Parabrick Aparato para canteiro Encaixe Corte Laser Adequação sociotécnica
6 Digital Analogue Máquina geradora de Montagem Corte Laser, Apropriação tecnológica
Machines elemento artístico Impressão 3d
Less N°1 Catenary Mecanismo artesanal de Montagem Corte Laser, Adequação sociotécnica
controle manual Impressão 3d

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Os projetos apresentados caracterizam uma amostra oportuna para demarcar o que está
surgindo nos distintos contextos de nossa região, em termos de técnicas de produção, práticas
situadas, aplicações das tecnologias e adequações sociais. A produção dos laboratórios, de
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

maneira geral, ainda está mais direcionada à aplicação das tecnologias para a fabricação de
protótipos e modelos arquitetônicos, peças de mobiliário e objetos de design. A escala dos
projetos limita-se a objetos pequenos e medianos, com poucas articulações na escala da
construção. As distintas dinâmicas de funcionamento dos laboratórios influenciam nos modos
de concepção e de fazer dos artefatos, em que alguns encontram-se em espaços privados e
direcionam a sua produção ao mercado e às exposições de design, outros criam estratégias
colaborativas a partir de demandas de parcerias externas. Os tipos de espaços disponibilizados
pelos laboratórios, são abertos à participação, com propostas de residências, oficinas e
instalações, além dos institucionais, regulados pelo ensino, pesquisa e extensão, com o
potencial de integração conjunta a diversos setores da sociedade. A configuração de boa parte
dos laboratórios está baseada em organizações nucleadas, amparadas na proposta da rede
global Fab Lab, dos quais alguns estão expandindo a sua atuação por meio de unidades móveis.
Os temas selecionados para a escolha dos projetos apresentados nesse artigo contribuem para
delimitar um recorte dos resultados materiais encontrados durante a pesquisa. A articulação
híbrida entre o analógico e o digital destaca-se em muitos projetos, devido à restrição dos
materiais possíveis de serem utilizados no maquinário disponível e pelo domínio técnico
necessário para fazê-lo. Ao mesmo tempo, torna-se um potencial para a criação de resultados
formais e combinações materiais não-usuais. As técnicas mais utilizadas são o seccionamento
para encaixe, seguido do uso de técnicas aditivas, além de técnicas de dobradura e montagem.
Em termos formais, as geometrias retilíneas e planas são mais recorrentes, pois o acesso ao
tipo de maquinário que as produz facilita o processo de fabricação e montagem em maior
escala, Os materiais utilizados são rígidos mas com resistência limitada, como madeira, plástico
e peças flexíveis, em que poucos artefatos incorporam elementos locais.
A escolha do maquinário vem seguindo critérios de custo, facilidade de manipulação e
aprendizado, não baseada em necessidades urgentes de aplicação. Impressoras 3D e
cortadoras a laser são preferidas a equipamentos robustos e industriais, pautados por
tecnologias disponibilizadas por empresas internacionais, dos EUA, Europa e China. É possível
encontrar máquinas sendo criadas em nossa região, com funções e aplicações específicas, mas
poucas e em âmbito experimental. O uso de robôs na automação de processos de fabricação
ainda é uma realidade distanciada, que está em estágio de assimilação técnica em poucas
instituições. À medida que se amplia o controle tecnológico em nosso contexto de restrições
aquisitivas, o domínio técnico passa a ser exigido do profissional em um nível de
superespecialização, o que dificulta um salto no nível de fabricação.
Como alternativa, incorporam-se conceitos, saberes convencionais e práticas analógicas para
um maior grau de liberdade propositiva e de inserção do potencial das interfaces digitais e das
máquinas para se alcançar estratégias híbridas. Os projetos apresentados indicam diferentes
níveis de impacto em termos de inovação social, com apenas alguns deles associando de forma
mais explícita essa estratégia na concepção de projeto. Boa parte deles tangencia fatores de
adequação sociotécnica ao adaptarem técnicas processuais, de controle da fabricação e de
materiais para a produção. A apropriação tecnológica se explicita nos trabalhos ao utilizarem
o maquinário como suporte parcial para a execução dos artefatos. Apesar dessas noções não
estarem explicitamente difundidas, no contexto geral, percebe-se que o interesse de
envolvimento com os temas se mostra crescente.
Baseado na análise dos projetos escolhidos, é possível designar especificidades e limitações do
uso da fabricação digital em nosso contexto. A adaptação de referências técnicas e de projeto
de um panorama global ocorre, geralmente, com baixo grau de complexidade propositiva. O
enfrentamento da escassez e da limitação dos meios e materiais induz a criação de estratégias
particulares para servir necessidades mais urgentes e respostas a requisições eventuais. A
combinação de técnicas e materiais por meio de investigações formalizadas realizam-se, quase
que exclusivamente em instituições de ensino. O potencial de revisão das práticas artesanais
92
Gestão & Tecnologia de Projetos
Rodrigo Scheeren, David M. Sperling

articula-se com a manutenção da identidade de comunidades, com o intuito de recuperar


simbolismos, e também fomentar uma indústria criativa. A valorização de fatores ambientais
comparece como condicionantes situados para a geração de artefatos funcionais. A
participação de agentes com distintos saberes e experiências, externos aos laboratórios,
acontece apenas de forma pontual em alguns projetos. A fabricação digital vem oferecendo
ferramentas para explorar artefatos conceituais e artísticos.
Com a ausência de um panorama claro e amplamente discutido sobre as contribuições da
fabricação digital em nosso contexto, a tendência, em um primeiro momento, foi de
espelhamento de propostas do exterior, principalmente com o intuito de assimilação das
técnicas digitais. A atribuição de sentido que conferiu envergadura à incorporação das
tecnologias de fabricação digital na América do Sul derivou das possibilidades de inovação
veiculadas em países desenvolvidos, mas ainda não verificadas em escala, seja de processos e
produtos customizados que seriam de grande complexidade, ou com custo e tempo de
produção reduzidos. Logo, percebe-se certa fetichização do potencial de uso das máquinas.
Além desses aspectos, a formação de redes de conhecimento acontece de maneira cambiante,
pouco abrangente e limitada a iniciativas em determinadas regiões. Outro fator que causa
inconstâncias são as mudanças de políticas públicas e os recorrentes cortes em investimentos
em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias com base local.

CONCLUSÃO

A utilização das tecnologias de fabricação digital encontra espaço privilegiado em centros de


ensino e investigação, makerspaces e, de forma secundária, em escritórios na América do Sul.
Nesse sentido, o esforço em identificar e compreender a situação e a produção dos laboratórios
fornece subsídios para se pensar aprimoramentos na sua aplicação, a expansão das atividades
com as tecnologias digitais, além de conexões com outros profissionais e setores de produção.
O estado da arte da fabricação digital na América do Sul evoluirá quase que necessariamente
dependente de conexões em rede e por via de conhecimento multidisciplinar. De modo que os
temas da apropriação tecnológica, adequação sociotécnica e inovação social possam ser, dentre
outros similares, capazes de determinar sentido e o impacto dos projetos, situando-se como
dispositivos críticos em relação às tecnologias, a fim de situá-las nas diversas condições sociais
em que se instalam. A sistematização presente neste artigo serviu como ensaio em um esforço
de categorização dos projetos, com desdobramentos em publicações futuras. O mapeamento,
que já vinha sendo elaborado, pode ser complementado e ampliado futuramente, além de
desdobrado em estudos de caso mais focados nas similaridades entre atividades, técnicas e
tipos de artefatos. Com efeito, a partir desse material, será possível delinear teorias
fundamentadas sobre o presente e o futuro das aplicações da fabricação digital em arquitetura,
design e construção na América do Sul.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), processo nº 2017/04946-7 e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), processo nº 304071/2019-6.

93
Gestão & Tecnologia de Projetos
Aplicações da fabricação digital em arquitetura, design e construção: processos de apropriação tecnológica e
adequação sociotécnica em experimentos na América do Sul

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95
Gestão & Tecnologia de Projetos
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166316

TECNOPOLÍTICAS EM LISBOA: REDES HÍBRIDAS COMO BASE PARA A


CRIAÇÃO DE UM OBSERVATÓRIO BIP/ZIP
TECHNOPOLITICS IN LISBON: HYBRID NETWORKS AS THE BASIS FOR CREATING A BIP/ZIP
OBSERVATORY

Ana Carolina C. Farias1, Alexandra Paio1

RESUMO:
A condição digital levanta novas oportunidades à participação cidadã nos processos de tomada de decisão e
oferece novos meios de interação que potenciam a organização e ação política coletiva. No momento em que
o desenho de políticas públicas para as cidades é crucial, torna-se primordial a inclusão e criação de novas 1Iscte
- Instituto
formas de distribuição de poder entre pessoas e organizações envolvidas nos processos tecnopolíticos. O Universitário de Lisboa
presente artigo analisa um conjunto de dispositivos tecnopolíticos criados via bottom-up, no âmbito do
programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária (BIP/ZIP) do Município de Lisboa. O método de análise
assenta-se num conjunto de critérios de leitura dos atores envolvidos, das redes formadas e dos meios
utilizados. O estudo permite uma reflexão crítica sobre o papel da dimensão digital na articulação e expansão
da participação em territórios prioritários, entre entidades parceiras e comunidades. Os resultados sublinham
a pertinência do desenho de um observatório capaz de monitorizar o impacto do programa BIP/ZIP na cidade
de Lisboa.

PALAVRAS-CHAVE: tecnopolítica; cultura digital; comunidades de prática; Lisboa.

ABSTRACT:
The digital condition raises new opportunities for citizen participation in decision-making processes and offers Fonte de Financiamento:
new means of interaction that enhance collective organization and political action. At a time when the design da Bolsa de Mérito de 3º
of public policies for cities is crucial, the inclusion and creation of new forms of power distribution among people Ciclo da Escola de
and organizations involved in technopolitical processes becomes paramount. This article analyses a set of Arquitetura e Tecnologias do
technopolitical devices created via bottom-up, within the scope of the Priority Intervention Neighbourhoods ISCTE- Instituto Universitário
and Zones (BIP/ZIP), a Lisbon Municipality’s program. The analysis method is based on a set of criteria for de Lisboa e do projeto FCT
reading the actors involved, their networks and means. The study allows a critical reflection on the role of the UIDB/04466/2020.
digital dimension in the articulation and expansion of participation in priority territories, between partner
entities and communities. The results underline the pertinence of the design of an observatory capable of Conflito de Interesse:
monitoring the impact of the BIP/ZIP program in the city of Lisbon. Declara não haver.

KEYWORDS: Technopolitics; communities of practice; digital culture; Lisbon. Submetido em: 03/02/2020
Aceito em: 08/07/2020

How to cite this article:

FARIAS, A. C., PAIO, A. Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório
BIP/ZIP. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, p.18-, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.166316
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

INTRODUÇÃO

A cultura digital, ao afirmar-se como paradigma no início de século XXI (STALDER, 2018),
reflete importantes alterações nos ecossistemas de processos e métodos colaborativos nas
disciplinas do design e nas relações destas com a participação cívica. O movimento de dados
abertos governamentais e a difusão de plataformas de participação, enquanto respostas top-
down de governos e instituições às exigências cidadãs por transparência (accountability) e
inclusão, trazem consigo desafios e oportunidades para a colaboração entre cidadãos,
organizações públicas, privadas e governos (MAINKA et al., 2015). A Web 2.0 possibilita o
ativismo digital e a produção bottom-up de ferramentas úteis para a comunicação entre pares
e articulação política de indivíduos e grupos (FOTH, et al., 2015).
O uso político da tecnologia, nomeadamente das novas tecnologias digitais de informação e
comunicação, cunhado como tecnopolítica (KELLNER, 2001), prospecta a democratização do
conhecimento através da possibilidade de cada cidadão se tornar criador, editor, distribuidor
e ativista (FOTH, et al., 2015).
Os movimentos rebeldes conhecidos como a Primavera Árabe, o 15M na Espanha, Occupy Wall
Street nos Estados Unidos e alguns de seus ecos, impulsionaram os estudos sobre
tecnopolíticas na última década, devido ao uso que esses grupos fizeram da internet e das redes
sociais para se organizarem e difundirem reivindicações (MEDINA, 2015). Em 2020, durante o
período de isolamento social, imposto pela pandemia de COVID-19, em que o ciberespaço foi
experimentado como único espaço público possível, as tecnopolíticas foram amplamente
utilizadas para a compreensão e ação sobre o problema vivido, e para reconfiguração de
diversas tarefas do cotidiano (HAN, 2020; CASTELLS, 2020).
Diversos estudos referem-se à tecnopolítica de forma mais abrangente, para determinar a
relação intrínseca entre desenvolvimento tecnológico e política, partindo do pressuposto de
que não existe neutralidade nesse desenvolvimento (TRERÉ & BARRANQUERO, 2018).
Segundo Kurban, Peña-Lopez e Haberer (2016), a produção top-down de tecnopolíticas, focada
na eficiência e eficácia das organizações, reforça sistemas de controle, enquanto a produção
bottom-up subverte o uso de ferramentas legais e políticas, cujas consequências ainda carecem
de mais estudos.
A institucionalização da participação, cujo processo acentuou-se a partir da década de 1980
(PATEMAN, 2012), levou ao desenvolvimento de diversas metodologias, ferramentas e, nas
últimas décadas, de plataformas com forte dimensão digital que pretendem oferecer um espaço
de partilha de informações, de colaboração e deliberação. São exemplos, os observatórios, as
plataformas de dados abertos, as plataformas de deliberação, os laboratórios cívicos para a
experimentação de projetos e, ainda, uma grande diversidade de aplicações para
levantamento, processamento e visualização de informações sobre territórios e redes (FARIAS
& PAIO, 2019). Porém, a capacidade de funcionarem de fato como arenas para participação,
como instrumento para a realização do direito à cidade, depende da interação que conseguem
proporcionar entre cidadania, governo e atores não humanos, da distribuição de poder
(ARNSTEIN, 1969) que essa interação reflete, além da superação da desigualdade no acesso às
infraestruturas e literacia digitais.
Perante estes desafios, o município de Lisboa tem sido chamado a supervisionar a sua política
pública de regeneração urbana denominada de Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária
(BIP/ZIP), através da criação de um observatório. O Programa de Parcerias Locais BIP/ZIP
(PPL), criado durante a discussão sobre a política de habitação, em 2011, financia pequenos
projetos promovidos por organizações de base, em 67 territórios carenciados do município,
como estratégia de desenvolvimento local. Compreendendo a habitação enquanto habitat, ou
seja, composta pelas dimensões socio econômicas, urbanísticas e ambientais, o PPL permite

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Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

um leque muito amplo de atividades financiáveis que vão da reabilitação de espaços públicos
à formação e geração de empregos (CML, 2012). O Observatório BIP/ZIP (OBZ) permitiria a
monitorização dos territórios prioritários e o acompanhamento dos processos participativos
no âmbito do PPL, definindo estratégias baseadas em dados e indicadores de previsão.
Neste contexto, o presente artigo pretende sublinhar a importância da cultura digital na
expansão dos dispositivos tecnopolíticos na participação cidadã e contribuir para o desenho
de um observatório, partindo do levantamento e análise de um conjunto de experiências
BIP/ZIP com tecnopolíticas produzidas por diversos atores locais que fazem parte desse
ecossistema. Ao longo dos anos, vários projetos BIP/ZIP desenvolveram dispositivos
tecnopolíticos para comunicar e organizar suas ações. O próprio município de Lisboa, dispõe
de diversas plataformas digitais para facilitar a participação cidadã, ainda que dispersos em
diferentes canais e com resultados ainda pouco estudados (ALLEGRETTI et al., 2016).
Neste estudo, analisamos os dispositivos tecnopolíticos desenvolvidos via bottom-up pela
iniciativa local, no âmbito do BIP/ZIP que, de diferentes formas, buscaram articular suas ações
nos territórios, através da identificação dos atores, redes e meios utilizados. Complementam
esta reflexão, outros estudos que analisam o desenvolvimento de dispositivos tecnopolíticos
top-down criados pelo município. Deste modo, é possível compreender a cultura de uso de
tecnopolíticas no objeto em estudo, identificando convergências e caminhos a percorrer para
o desenho do observatório. Discute-se, também, os primeiros passos no papel da hibridização
das redes nos processos participativos e colaborativos de regeneração urbana em Lisboa.

REFERENCIAL TEÓRICO

Segundo Felix Stalder (2018), a cultura digital reflete-se na participação de cada vez mais
pessoas nos processos culturais, disputando dimensões de existência através de atividades
sociais cada vez mais intermediadas por dispositivos tecnológicos. O autor identifica duas
tendências políticas que emergiram das relações sociais forjadas sob a condição digital, na crise
da democracia liberal: (1) pós-democracia; e (2) commons. A primeira refere-se às práticas que,
apesar de expandirem a capacidade de comunicação social, limitam a possibilidade de os
participantes tomarem decisões. São exemplos os dispositivos e processos forjados sob o
conceito de smart city que redesenham sistemas operacionais das cidades numa abordagem
tecnocrática, pouco transparente e proprietária, geralmente pautada por grandes empresas
como a IBM, Cisco, Siemens e outras (TOWNSEND, 2014).
Sob a perspectiva do commons está a criação de instituições que combinam a participação com
a tomada de decisões, integrando as dimensões econômica, social e ética das relações
(STALDER, 2018). A difusão das tecnologias digitais, especialmente de informação e
comunicação (TIC), facilita a mobilização de cidadãos em torno de práticas de construção de
comuns urbanos, experimentando a produção e gestão de recursos tangíveis e intangíveis
(STAVRIDES, 2016; BOLLIER & HALFRICH, 2019).
Urbanismo tático, práticas de planejamento urbano colaborativo e a exploração de dados
abertos para a produção de dispositivos tecnológicos com fins cívicos, são alguns dos exemplos
do que Martijn de Waal e Michiel de Lange (2019) definem como hacking cívico, práticas que
ambicionam a criação e o domínio do bem comum. Em oposição à smart city, os autores
sugerem a hackable city, ou seja, a exploração das tecnologias digitais de forma estratégica,
alinhando as iniciativas cívicas a processos democráticos de cogovernança.
Assim, a emergência de novos atores políticos, da ação híbrida (online e offline) mediada por
atores humanos e não humanos, posicionam as tecnopolíticas como ‘espaço de intervenção’ e
‘paisagem de possibilidades’ (TRERÉ & BARRANQUERO, 2018). Nesta paisagem, dão-se
disputas políticas em que, também, emergem forças conservadoras e intensificam a produção
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Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

de um ‘tecnocapitalismo’ (KELLNER, 2001). Por outro lado, também potencia a ação de


movimentos sociais e da cidadania ativa, oferecendo novas formas de articulação dos
problemas reais que encontram, cujo sucesso ainda demanda análises e reflexões críticas.
Para Javier Toret Medina (2015), tecnopolítica não se restringe ao ciberativismo, é uma
apropriação das ferramentas digitais para a organização da ação coletiva, conectando corpos e
cérebros numa rede distribuída pela multidão conectada, como exposto no mapa conceitual da
tecnopolítica (Figura 1).

Figura 1. Mapa conceitual da


tecnopolítica.

Fonte: Adaptado pelas autoras,


a partir de Medina (2015), p.
64. Disponível em:
https://bit.ly/2Ko9KDq

Kurban et al. (2016) propõem um esquema conceitual que é ainda mais claro. Analisando as
tecnopolíticas quanto ao seu propósito, os autores identificam quatro níveis políticos da ação:
(1) comunicativo, quando a tecnologia é usada para difundir informação ou para influenciar
opiniões, muitas vezes através do uso dos media e redes sociais; (2) legal, quando a tecnologia
é usada de forma a ‘digitalizar’ processos existentes do exercício do direito, como na realização
de petições online e criação de plataformas para referendos; (3) organizacional, quando a
tecnologia é usada para a comunicação e organização internas, por exemplo, através de
campanhas de crowdsourcing ou crowdfunding; (4) institucional, quando a tecnologia é
associada a políticas participativas dirigidas no governo e permitem o compartilhamento de
tomadas de decisão, por exemplo, nos orçamentos participativos ou em práticas de codesenho
de políticas públicas.
Além do propósito, o esquema conceitual de Kurban et al. (2016) inclui outras cinco
dimensões: (1) o contexto, relacionado com o nível de liberdade civil em que se dá a produção
tecnopolítica, se no exercício da liberdade, no processo de empoderamento ou na governança;
(2) a escala, referente à estrutura da geografia política em que se dá a ação, podendo ser
comunal (local), regional, estatal ou internacional; (3) a direção, referente à natureza
multiescalar das tecnopolíticas que, assentes na comunidade, aproxima-a às arenas globais
afetando processos e protocolos intermediários; (4) os atores, em sua multiplicidade e
diferentes níveis de participação, podendo ser institucionais, individuais ou coletivos; e (5) o
espaço, multilayer, caracterizado pela sincronização de singularidades antes dispersas, que
encontram no ciberespaço a capacidade de organização e feedback para redefinir o espaço
físico em ‘nós’ de conhecimento. Na figura 2 é possível observar o esquema com as seis
dimensões que servem de base ao presente estudo.

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Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

Figura 2. Esquema conceitual


da tecnopolítica.

Fonte: Das autoras, a partir de


Kurban et al. (2016).

Quanto aos novos atores, Stalder (2018) destaca as ‘comunidades de prática’ como os espaços
privilegiados, na cultura digital, para o desenvolvimento de recursos materiais e
organizacionais que moldam a identidade e a ação coletiva dos seus integrantes. Hackers,
makers, ativistas, têm em comum a ação e produção de conhecimento e significados sobre um
campo de prática específico, tendo a comunicação como eixo fundamental de existência.
Os novos meios – internet e Web 2.0, smartphones, recursos de data mining, inteligência
artificial etc. – oferecem capacidade de armazenar maiores quantidades de informação,
organizar processos deliberativos, suportar colaboração e inovação (DE WAAL & DE LANGE,
2019). Desta forma, as tecnopolíticas habilitam, igualmente, redes sociotécnicas construtoras
de contranarrativas e epistemologicamente enriquecedoras (GUTIERREZI & MILANII, 2013).
Mapear as redes tecnopolíticas, conhecer os dispositivos gerados e seu potencial, compreender
a forma como criam identidades e redes de colaboração, quais os interesses que movem as
ações empreendidas, são tarefas estratégicas não só para garantir a inclusão desses novos
atores nos processos do design como, também, para aproveitar o conhecimento produzido
nessas práticas, em processos de inovação aberta.

MATERIAIS E MÉTODOS

A partir das reflexões traçadas acima, tornou-se premente analisar a ação tecnopolítica no
contexto do BIP/ZIP. A análise consiste no levantamento de projetos tecnopolíticos, a partir do
mapa conceitual de Medina (2015), e a classificação de atores, redes e meios, tendo em conta
dois aspetos: (1) as tipologias definidas no PPL, descritas a seguir; e (2) as categorias relativas
aos propósitos assinaladas por Kurban et al. (2016) (Figura 3).
Como fonte de recolha de dados foi utilizada a plataforma do PPL da Câmara Municipal de
Lisboa (CML)i que disponibiliza as fichas de candidaturas de projetos apresentadas em todos
os ciclos de financiamento do programa (2011 a 2019), de onde se extraiu somente os projetos
aprovados. A informação encontrada responde às regras do PPL, que determina que os
projetos sejam realizados em parcerias (mínimo de uma entidade promotora e uma parceira),
com a indicação dos territórios de ação, temáticas e destinatários preferenciais, ser baseados
em diagnósticos, definir objetivos e um plano de sustentabilidade das atividades.
A identificação dos projetos tecnopolíticos fez-se em duas etapas: (1) pesquisa nos textos das
candidaturas pelas palavras-chave “plataforma”, “digital” e “online”, resultando em uma
amostra de projetos que planejaram o uso de ferramentas digitais; e (2) leitura dos objetivos
dos projetos pré-selecionados em busca das propostas que atendessem ao mapa conceitual das
tecnopolíticas, proposto por Medina (2015) e explicado na Fig. 01, isto é, a criação de redes
orientadas para ações coletivas concretas no espaço urbano, articuladas com os propósitos de
suas coletividades.
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Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

Figura 3. Análise da ação


tecnopolítica no contexto do
BIP/ZIP.

Fonte: Das autoras.

Para a classificação dos atores, utilizaram-se as categorias definidas no PPL: (1) classificam as
entidades quanto à responsabilidade legal e financeira que assumem sobre os projetos,
podendo ser promotoras ou parceiras; (2) classificam as entidades segundo 18 tipos de
instituiçãoii; (3) classificam os destinatários preferenciais dos projetos em sete tipos: crianças,
jovens, idosos, famílias, comunidades, adultos e outros. Para a análise das redes formadas em
torno dos projetos, utilizou-se a plataforma kumu.io iii , para a visualização das redes de
colaboração de cada projeto e as intersecções entre elas, destacando as entidades promotoras
das parceiras, identificando os tipos de instituições de cada uma, e os destinatários
preferenciais.
Para análise dos meios, procurou-se identificar: (1) os territórios de ação; (2) as tecnologias
aplicadas, destacando os tipos de ferramentas e softwares utilizados; (3) os propósitos
políticos, segundo as categorias do esquema conceitual de Kurban et al. (2016): comunicação,
legalização, organização e institucionalização; e (4) as temáticas dos projetos, que segundo o
PPL podem ser: Melhorar a Vida no Bairro, Promover Competências e Empreendedorismo,
Reabilitar e Requalificar os Espaços, Promover a Inclusão e a Prevenção e Promover a
Dinamização Comunitária e a Cidadania.
Em suma, a leitura analítica (Figura 3) pretende: (1) revelar a utilização de tecnopolíticas no
âmbito do BIP/ZIP; (2) identificar experiências de articulação em rede auto organizadas pelas
comunidades de prática, isto é, as redes de parcerias e destinatários formadas em torno dos
projetos; (3) medir a incidência das tecnopolíticas nos territórios; e (4) aferir as características
das ferramentas produzidas, no sentido de tirar orientações para o desenho do OBZ.

RESULTADOS

O estudo partiu das informações fornecidas nas fichas de candidaturas dos 354 projetos
BIP/ZIP aprovados entre as edições 2011 e 2019 do PPL. Alguns projetos ofereceram maior
dificuldade para a obtenção de informação, uns porque os dispositivos digitais criados já não
estavam mais em utilização, outros porque ainda não haviam sido finalizados.
Do primeiro filtro com as palavras-chave extraiu-se 70 projetos que planejaram, em suas
candidaturas, o uso de ferramentas digitais. Da leitura dos objetivos desses projetos, segundo
o mapa conceitual de Medina (2015), extraiu-se uma amostra de estudo com 19 projetos
tecnopolíticos, relacionados na Tabela 1 com as seguintes informações: ano da edição de
financiamento; nome; as entidades promotoras dos projetos; e os endereços eletrônicos das
plataformas, algumas já descontinuadas.

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Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

Os projetos BIP/ZIP têm ciclos definidos de ação, no entanto, algumas tecnopolíticas tiveram
desdobramentos em mais de um projeto ou ciclo de financiamento, articulados pelos mesmos
promotores, como é o caso de: DNA Lisboa II e Rede Rés-do-Chão, proposto pelas entidades Rés
do Chão e Praga Associação Cultural para a elaboração faseada de um mapeamento de imóveis
devolutos e redes de serviços; as várias redes profissionais articuladas pelo estúdio de
arquitetura Artéria, a partir de levantamentos, mapeamentos, e sistematização de bancos de
dados; e os projetos realizados no bairro Casal Ventoso pela entidade Projecto Alkantara, com
o objetivo de fortalecer o sentido de comunidade do bairro e sua imagem positiva.
Ano Nome do Projeto Entidades Promotoras Endereço Eletrônico Tabela 1. Amostra de estudo.
2011 Agulhanumpalheiro - Artéria http://www.agulhanumpalheiro.pt/
Portal de Casas
Fonte dos dados: Plataforma
2013 Rede de Carpintarias de Artéria http://redecarpintarias.org/
Lisboa do PPL, http://bipzip.cm-
http://resdochao.org/projectos/plataforma- lisboa.pt/.
2014 DNA Lisboa II Rés Do Chão | Praga
res-do-chao/
Associação Cultural
2014 Operação Skyline Artéria http://lisbonskyline.pt/

http://resdochao.org/projectos/plataforma-
2015 Rede Rés do Chão Rés Do Chão res-do-chao/

Clube Intercultural
2015 Projecto D´Ajuda Europeu | Localsapproach | https://www.yrpri.org/group/684
Associação De Apoio E
Segurança Psico-Social
2016 LXConnect Centro Social Da Musgueira https://www.lxconnect.org/

2016 Rede de Artes e Ofícios Artéria https://www.redearteseoficios.pt/


de Lisboa
2016 Muita Fruta Acpm Associação Cozinha https://www.muitafruta.org/
Popular
2016 C3-Centro Comunitário Clube Intercultural https://novobancocrowdfunding.pt/c3
da Curraleira Europeu
https://projectoalkantara.squarespace.com/
2017 Memórias do Casal Projecto Alkantara nucleointerpretativodocasalventoso
Ventoso

2017 Rede dos Construtores Artéria https://www.rededosconstrutores.pt/


de Lisboa
2017 Fórum Urbano Localsapproach https://forumurbano.pt/

2018 Construir Comunidade Associação Santa Teresa de em construção


Jesus
https://www.facebook.com/pg/levantarocer
2018 Levantar o cerco às Cooperativa BTUIN Crl coascolinas/posts/
Colinas
2019 Escolas Amigas da Associação Para o https://www.escolasamigasdaigualdade.pt/
Igualdade - EAI Planeamento da Família
2019 Casal Ventoso - Projecto Alkantara https://bit.ly/2ZCCyxQ
Fazemos Acontecer
https://www.facebook.com/germinarBancoS
2019 Germinar um banco de Margens Simples ementes/
sementes
2019 Redes Sociais Associação de Inter-Ajuda https://bit.ly/3frbwQg
Saudáveis-Games 4 All de Jovens «Eco-Estilistas»

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Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

REDES DE ATORES

A visualização das redes de atores permitiu identificar 77 entidades, entre promotoras e


parceiras. A Figura 4 ilustra as redes de colaboração formadas, relacionando os projetos, os
destinatários e as entidades, categorizadas por sua tipologia de instituição e destacadas
quando promotoras. Observa-se a tendência por formação de redes maiores do que o mínimo
exigido pelo PPL (1 promotora + 1 parceira), formadas por parceiros de tipologias variadas,
muitas vezes em intersecção com outras redes através das promotoras, demonstrando o papel
mobilizador dessas entidades.

Figura 4. Rede de atores


(entidades e destinatários) dos
projetos. Os nós de entidades
com sombra acinzentada
identificam as entidades
promotoras, as demais
atuaram como parceiras.

Fonte: Ilustração gerada pelas


autoras através da plataforma
kumu.io. Disponível em:
https://bit.ly/3dUfnF8.
Informações obtidas na
plataforma do PPL:
http://bipzip.cm-lisboa.pt/

A tipologia de instituição mais frequente são os Grupos Informais, representados por 18


entidades. Apesar de as regras do PPL só permitirem a atuação dos Grupos Informais como
parceiros dos projetos, uma vez que as entidades promotoras têm de assumir
responsabilidades jurídicas e financeiras, tais grupos são muito frequentes nas redes formadas,
o que aponta para a um estímulo, nessas práticas, à formação de novas coletividades ou à
efemeridade das mesmas, criadas para a circunstância de ações específicas.

Dentre as promotoras, as tipologias mais frequentes são: Associação de Desenvolvimento Local,


Associação Cultural e IPSS. Em todo o universo BIP/ZIP, as Associações de Desenvolvimento
Local representam um considerável número de ateliers de jovens arquitetos como os Locals
Approach e Artéria, responsáveis por 7 dos 19 projetos estudados, com práticas voltadas para
a leitura dos territórios e identificação de oportunidades de ação e articulação de redes.

Os tipos de instituições menos frequentes na amostra são as Associações de Jovens / Estudantes


e Desportiva, com uma entidade cada uma, além de três tipologias ausentes. Importa referir
que as entidades se autodeclaram na definição tipológica de suas instituições e que a base de
dados demonstra alguns equívocos nessas informações. Por outro lado, essa classificação,
inicialmente com 12 tipologias, foi aumentada a partir de 2018, o que justifica a baixa
quantidade de entidades em tipologias como Organização não Governamental, que passou a ser
uma opção apenas recentemente.
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Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

O Projecto D’Ajuda, promovido pela Locals Approach, é o que tem a maior rede de entidades
(quase metade são Grupos Informais) e, junto com os projetos C3 e os dois realizados no Casal
Ventoso, formam o maior cluster de colaboração. Somente 6 dos 19 projetos estudados (4
propostos no ano corrente) constituíram redes de colaboração sem nenhuma intersecção com
as demais.

Comunidade é a destinatária preferencial de 17 dos 19 projetos estudados. As exceções são


Germinar um Banco de Sementes, voltado para as crianças, e Operação Skyline, voltado para
adultos e condomínios e cidadãos, inserido como outros. As outras categorias não são foco dos
projetos tecnopolíticos estudados.

DISPOSITIVOS TECNOPOLÍTICOS

Os projetos tecnopolíticos selecionados abrangem todos os territórios BIP/ZIP, com maior


incidência nos territórios mais centrais. Tal pode ser explicado pela presença de muitas
entidades na região central da cidade, pelo foco dado pela mídia e outras políticas de
desenvolvimento urbano a essa mesma região e, igualmente, pela presença de destinatários
mais familiarizados com as ferramentas digitais. A Fig. 05 mostra-nos o mapa de Lisboa e os
territórios prioritários identificados segundo a ocorrência de projetos tecnopolíticos da
amostra de estudo.

Figura 5. Territórios BIP/ZIP


ilustrados quanto à incidência
dos projetos tecnopolíticos da
amostra de estudo.

Fonte: Das autoras, a partir de


informações disponíveis em:
http://bipzip.cm-lisboa.pt/

A Figura 6 revela a relação entre projetos, temáticas e propósitos. Em relação à temática há


um maior equilíbrio, sendo Promover Competências e Empreendedorismo e Promover a
Dinamização Comunitária e a Cidadania as temáticas mais utilizadas, orientando cinco projetos
cada uma. Além das categorias estabelecidas pelo programa, este, também, permite aferir
outras temáticas, na amostra em estudo, como: Desenvolvimento Local e Património Cultural
como temática no Projecto d’Ajuda e Competências para Cidadania Ativa como temática do
Fórum Urbano, ambos da entidade Locals Approach.

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Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

Figura 6. Relação entre


projetos, temáticas e
propósitos.

Fonte: Ilustração gerada pela


autora através da plataforma
kumu.io. Disponível em:
http://bit.ly/31eI6yT.
Informações obtidas na
plataforma do PPL:
http://bipzip.cm-lisboa.pt/

O propósito mais frequente na amostra é o da comunicação (13 de 19), seguido pela


organização e legalização. Nenhum projeto adota tecnopolítica com propósito institucional, o
que demandaria uma articulação maior com o poder público local, ainda não percebida nesses
projetos. Já a comunicação pode ser compreendida como um nível inicial no processo de
articulação entre atores e causas, o que pode explicar sua predominância na amostra.
Relativamente às ferramentas digitais utilizadas, foram identificadas plataformas, no geral
desenvolvidas a partir de softwares open source, para alojamento de mapeamentos
colaborativos, bancos de dados, canais para deliberação e votação de ideias, plataformas para
trocas de serviços, produtos e tempo, canais para campanhas de comunicação e financiamento
coletivo, distribuição de material informativo e manuais, produção e distribuição de material
audiovisual e articulação de redes.
A associação Rés-do-Chão construiu a sua Plataforma homônima através de dois projetos (Rede
Rés do Chão e DNA Lisboa II). A plataforma parte do mapeamento de imóveis vazios no nível
térreo dos edifícios identificando os respectivos proprietários para articular a ocupação desses
imóveis. Na etapa seguinte, articulou uma rede de serviços entre comerciantes, artistas,
moradores etc. para divulgar as atividades do bairro. A plataforma organizava o campo de ação
da entidade, cujo objetivo é contribuir para a vitalidade das ruas a partir da reocupação
temporária dos imóveis. Inicialmente instalados e atuantes em território no Centro Histórico,
agora estão instalados na zona Ocidental da cidade.
O projeto Muita Fruta propõe um mapeamento colaborativo das árvores frutíferas nos
logradouros urbanos da cidade. Utiliza a base do OpenStreetMap e a plataforma Lealeft para a
programação do mapa. Lançado em 2017, ainda tem poucas inserções.
Nas três Redes que propôs - de Carpintarias, de Artes e Ofícios e de Construtores de Lisboa - o
atelier de arquitetura Artéria buscou visibilizar saberes tradicionais necessários para que a
requalificação em curso na cidade respeitasse seu patrimônio material e imaterial. Os três
projetos compreendem o mapeamento de oficinas e atores e a construção de redes através da
produção de conteúdo sobre os temas e elementos mapeados, disponibilizados em plataformas
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Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

próprias. Como parte da estratégia para ampliar e fortalecer as redes, também são promovidas
rodas de conversa e ações de formação.
Outro projeto realizado pelo atelier Artéria, a Operação Skyline buscou reativar as coberturas
dos edifícios da cidade, apresentando para tal uma solução arquitetônica, jurídica e ambiental.
O projeto, inserido na representação portuguesa da Biennale di Venezia 2014, oferecia um sítio
eletrônico para inserções voluntárias de ‘condomínios’ e ‘investidores’, disponibilizando seus
imóveis ou demonstrando interesse em investir. A plataforma oferecia um arranjo para a
viabilização das coberturas, antecipava questões frequentes e disponibilizava manuais para os
‘condomínios’ e os ‘investidores’.
Os projetos Memórias do Casal Ventoso e Casal Ventoso – Fazemos Acontecer atuam na
comunidade oriunda do realojamento do bairro Casal Ventoso, buscando a transformação
positiva da imagem da comunidade, e a aquisição de novos modelos de cidadania. O primeiro
criou o Núcleo Interpretativo do Casal Ventoso, plataforma digital que disponibiliza vídeos e
fotos com o levantamento das memórias e histórias de vida dos moradores. O segundo está a
criar um Jornal Digital para denunciar as diversas realidades do bairro.
Os outros três projetos do ciclo de 2019, similarmente, tem propósitos comunicativos. A
Associação para o Planeamento da Família pretende implantar em várias instituições o modelo
Escolas Amigas da Igualdade (EAI), em projeto homônimo, discutindo de forma participada a
implementação de políticas de gênero nas escolas. Propõe a utilização de plataforma online
para disseminação do guião EAI além de outros produtos e jogos criados em projetos BIP/ZIP
anteriores. O projeto Germinar um Banco de Sementes propõe a formação de um banco de
sementes que terá catálogo disponibilizado online e acessível a qualquer cidadão, com o
objetivo de promover o consumo responsável e formas de circularidade da economia. O projeto
Redes Sociais Saudáveis – Games 4 All vai promover a conscientização sobre o uso adequado e
saudável das redes sociais utilizando, dentre outras coisas, a produção de material multimídia
e jogos.
Outros quatro projetos tiveram como principal propósito político a organização. LXConnect é
uma aplicação para smartphones (disponível para IOS e Android, também acessível por
desktops) criada pelo Centro Social da Musgueira, que consiste numa rede comunitária para
oferta e pedidos de bens e serviços, cuja navegação dá-se por mapa ou catálogo.
O projeto C3-Centro Comunitário da Curraleira utilizou a plataforma Novo Banco Crowdfunding
para financiamento das novas instalações do centro comunitário.
O projeto Fórum Urbano desenvolveu uma plataforma de partilha de dados sobre os projetos
BIP/ZIP. Tem navegação por mapa e por catálogo com as fichas de cada projeto, com filtros por
localização, entidade, ano, tema, destinatários e modos de fazer. Utiliza dados dos projetos
realizados entre 2011 e 2016 em todos os territórios, cuja fonte é a plataforma do PPL. O
desenvolvimento da plataforma envolveu, igualmente, a realização de eventos e fóruns de
partilha em vários territórios e discutiu a necessidade de criação de ferramentas que
auxiliassem a colaboração entre os projetos. Na ocasião da pandemia de COVID-19, em 2020, a
plataforma ganhou nova camada de mapeamento, com as iniciativas de respostas das
entidades BIP/ZIP à situação pandémica.
O projeto Construir Comunidade propõe a criação de um Banco de Tempo gerido através de
uma plataforma online. No entanto, ainda em construção.
Os últimos dois projetos da amostra desenvolveram tecnopolíticas com o propósito de
digitalizar processos legais, especificamente canais de participação. O Projecto D’Ajuda,
continuação de um outro projeto BIP/ZIP realizado em 2013, o 2 de Maio Todos os Dias, lançou
o Observatório D’Ajuda, consistindo na elaboração de um diagnóstico participado da região,
para a articulação de micro intervenções que viessem ao encontro das observações e ideias
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Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

levantadas. O observatório recolheu ideias através da plataforma Your Priorities (uma


aplicação para eDemocracy da Citizens Foundationiv), mapeadas pelo Google Maps. Tendo suas
atividades financiadas pelo PPL finalizadas em 2016, datam daí as últimas inserções.
No projeto Levantar o Cerco às Colinas, cuja plataforma, ainda, está em construção, propõe
ativar a participação digital em territórios históricos sob processo de gentrificação, a partir da
utilização da plataforma open source Decidim e da plataforma Lisboa Histórica para Todos,
criada por outro projeto BIP/ZIP.
Os resultados deste estudo revelam que o acesso ao financiamento do PPL e a maturidade das
comunidades de práticas que vão se formando ao longo do tempo, permitem o prolongamento
de algumas ações e campanhas por mais projetos, seja quando são executados por fases, seja
quando as ferramentas produzidas são apropriadas por outras entidades e comunidades, para
novos fins.
É importante realçar que o estudo se baseou na leitura das candidaturas dos projetos e na
visualização e interação com as plataformas disponibilizadas. Assim, a informação contida nas
fichas de candidaturas reflete somente as intenções dos projetos. Para averiguar resultados
mais especificos no território, são necessários meios mais adequados de trabalho de campo,
não descritos neste estudo que se apresenta. Todos estes passos reforçam a pertinência da
criação de um observatório.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

O estudo realizado permite aferir que os dispositivos tecnopolíticos, nos projetos BIP/ZIP, são
ferramentas de apoio à ação das entidades nos territórios e procuram dar respostas a
necessidades práticas como o acesso a um espaço físico de trabalho ou o mapeamento dos
atores, bem como identificação de recursos das redes laborais em que estão envolvidos.
Nos projetos analisados, a dimensão digital revela-se importante no reforço e expansão de uma
articulação que já é feita nos territórios pelas comunidades de prática. O uso de tecnopolíticas
no BIPZIP permite organizar campos de ação, campanhas de comunicação, levantamento de
informações e canais de colaboração, dando maior visibilidade às suas necessidades e novos
meios para resolver problemas e reforçar potencialidades.
A produção bottom-up de ferramentas tecnopolíticas é campo fértil para inovação social, na
medida em que possibilita a aprendizagem de novas competências da cultura digital, tanto
pelos cidadãos quanto pelas entidades, instrumentalizando-os para novas frentes de trabalho
e de ação política. No entanto, a aprendizagem e a inovação possibilitada por essas práticas
dão-se de forma claramente desigual entre os territórios prioritários, conforme demonstrado
na Fig. 05, reforçando a importância da hibridização entre as dimensões física e digital desses
processos, para a expansão da participação cidadã, de forma inclusiva.
Da análise das plataformas online mapeadas, é evidente a dificuldade de manutenção, não só
das mais antigas, algumas das quais já descontinuadas, como de outras mais recentes. Isto
pode-se explicar pelo fato de que os financiamentos obedecem a um cronograma de realização
de um ano, e todo o investimento necessário depois desse período tem de ser sustentado pelo
projeto ou pela rede que o mantém. Por outro lado, criadas para difundirem campanhas ou
para apoiarem ações definidas, findam quando alcançam seus objetivos.
Acresce, a dificuldade de utilização de algumas das ferramentas. Várias das plataformas
estudadas não demonstram grande performance, nem todas estão associadas a páginas em
redes sociais e as que estão não demonstraram campanhas com grande viralidade, o que pode
advir da inadequação da ferramenta aos destinatários ou ação.

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Gestão & Tecnologia de Projetos
Ana Carolina C. Farias, Alexandra Paio

Os bancos de dados formados nos projetos analisados, bem como os mapeamentos criados são
alimentados por levantamentos in loco ou da colaboração entre os participantes nas
comunidades de práticas. Poucas plataformas estudadas exploram a utilização dos dados
abertos disponibilizados pelo município de Lisboa ou por outras organizações, o que também
pode refletir uma falta de competência técnica para tal. Por um lado, isso demonstra a
necessidade de as comunidades de prática obterem novos dados além daqueles que compõem
os bancos oficiais; por outro, demonstra o potencial a explorar na combinação dessas duas
formas de levantamento e produção de informações. Estudos futuros poderão indicar, ainda, a
adequação à utilização pela iniciativa local, das plataformas de dados abertos disponibilizadas
pela CML, por exemplo, em relação aos tipos de dados fornecidos e às formas de
disponibilização.
A produção de informação pelas tecnopolíticas analisadas, bem como a experimentação que
fazem de arranjos colaborativos e canais de deliberação, são fatores que devem ser explorados
no desenho do OBZ. A necessidade de garantir o funcionamento das ferramentas e sua
manutenção ao longo do tempo deve ser avaliada em alinhamento com as comunidades que a
vão utilizar, duração das atividades ou campanhas de comunicação e etapas na perseguição
dos objetivos traçados pela ação coletiva.
Enquanto comunidades de práticas (STALDER, 2011), a partilha de experiências e capacidades
de inovação e mobilização são de grande importância para o desenvolvimento das entidades,
que encontram nas tecnopolíticas meios potentes para tal. Deve-se ter em atenção que o PPL
foi lançado numa altura de grande crise econômica em Portugal, sendo percebido por muitas
entidades, destacadamente ateliers de arquitetura e associações culturais, como oportunidade
de financiamento para suas atividades. Estudos futuros poderão demonstrar se as alterações
que a cidade sofreu nos últimos anos – primeiro a crise e depois os grandes investimentos para
a reabilitação de espaços públicos e para a indústria do turismo, ainda que em doses desiguais
para as diferentes zonas da cidade (SEIXAS et al., 2019) - também, interferiram nas redes de
colaboração forjadas nos territórios BIP/ZIP.
No contexto abrangente de regeneração urbana do PPL, as temáticas mais frequentes na
amostra de estudo referem-se à formação de competências e ao exercício da cidadania. O OBZ
poderia ajudar a construir uma análise que cruzasse os investimentos públicos destinados aos
territórios BIP/ZIP e as temáticas adotadas pelos projetos, evidenciando se eles estão a
contribuir para a solução dos problemas, somente desfrutando dos investimentos injetados ou
se estão totalmente alheios às dinâmicas territoriais de macroescala.
A análise das redes de colaboração é útil para o desenho do OBZ, no sentido de identificar os
atores com maior proximidade aos territórios e às comunidades de prática, com maior
capacidade de difundir informações para o resto da rede e estimular o seu engajamento. No
entanto, o estudo limita-se à interpretação dos projetos conforme apresentados em
candidatura ao PPL. Novos estudos, através de métodos etnográficos, poderiam averiguar
melhor, nos territórios, a influência dessas comunidades de prática, não só nos projetos
BIP/ZIP, como também em outras práticas importantes para o desenvolvimento local.
Em suma, o presente estudo pode orientar o desenho de metodologias e dispositivos de
participação e colaboração, trazendo a identificação de discussões que são consideradas
urgentes pelas comunidades de prática, a expertise que já desenvolveram na manipulação
tecnológica dos dispositivos criados e as dificuldades que encontram na realização e avaliação
de suas ações, no atual contexto de abertura à contribuição de atores tão diversos.
Os resultados permitem discutir o panorama das tecnopolíticas utilizadas nos projetos
BIP/ZIP, as quais desvelam camadas de informações sobre os territórios e comunidades,
fortalecem redes de colaboração, afirmam identidades e desenvolvem competências
sociotécnicas. A compreensão aprofundada dessas práticas é ponto de partida para o desenho
109
111
Gestão & Tecnologia de Projetos
Tecnopolíticas em Lisboa: redes híbridas como base para a criação de um observatório BIP/ZIP

do OBZ. Este permitiria alcançar as necessidades das comunidades de prática, oferecendo-lhes


ferramentas adequadas às suas competências e contextos prioritários. O OBZ poderia
funcionar como plataforma híbrida (física e digital) em apoio aos processos BIP/ZIP,
monitorização de seus efeitos e base para a colaboração dos vários atores.

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http://dx.doi.org/10.1007/978-3-319-65560-4.

Notas

i
Disponível em: http://bipzip.cm-lisboa.pt/
ii
São eles: Junta de Freguesia, Associação de Desenvolvimento Local, Associação de Moradores,
Associação Religiosa, Associação Cultural, Associação Desportiva, Associação de Jovens/Estudantes,
Associação de Pais e Encarregados de Educação, Fundação, IPSS-Instituição Particular de
Solidariedade Social, Grupo Informal, Outra, ONG-Organização Não Governamental, Santa Casa da
Misericórdia, Agrupamento de Escolas, Cooperativa sem fins lucrativos, Associação Recreativa,
Instituição de Ensino Superior.
iii
Plataforma digital de livre acesso para a organização, visualização e análise de dados, de forma
interativa. Disponível em: https://kumu.io/
iv
Mais informações em: https://citizens.is/

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https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168933

HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL GENERATIVA: A GRAMÁTICA DA


FORMA COMO INSTRUMENTO

GENERATIVE SOCIAL HOUSING. THE SHAPE GRAMMAR AS A DESIGN TOOL

Cristiana Griz1, Thaciana Belarmino1, Julia Dutra1

RESUMO:
Este artigo mostra a primeira etapa do desenvolvimento de um sistema generativo para conceber projetos de
habitação de interesse social customizadas. O processo de construção de habitações geralmente envolve
1
investimento para o desenvolvimento do projeto e para o gerenciamento do processo de construção. Em Universidade Federal de
habitações desse tipo, muitas vezes o investimento é deixado de lado por razões econômicas. No entanto, Pernambuco - UFPE
devido à falta dele, o projeto pode não ser adequado e sua construção pode ser ainda mais onerosa e com
baixa qualidade. Com o objetivo de contribuir para esta questão, este artigo apresenta a criação de um sistema
generativo de projeto, uma gramática da forma, que possibilita desenvolver projetos de habitação de interesse
social customizadas e que possa auxiliar na construção otimizada da edificação. O sistema segue os
fundamentos e métodos descritos no formalismo da gramática da forma e é desenvolvido com base nas
análises de projetos de reconhecido valor técnico, bem como em recomendações sobre projetos de habitação
de interesse social de qualidade. Os resultados, ainda que parciais - referentes a primeira etapa do
desenvolvimento da gramática, revelam a eficácia de sistemas generativos para a concepção de projetos
customizados, e contribui para a busca da reinterpretação do processo tradicional de projeto / construção de
habitações de interesse social.

PALAVRAS-CHAVE: Design generativo; gramática da forma; habitação de interesse social

ABSTRACT:
This paper shows the first stage of the development of a generative system to design customized social housing. Fonte de Financiamento:
The construction process of housings generally involves investment for the design’s development and for the FACEPE
construction’s management process. In this type of housing, investment is often neglected for economic
reasons. However, due to the lack of it, the design may not be adequate and its construction may be even more Conflito de Interesse:
expensive and with low quality. In order to contribute to this issue, this paper presents the creation of a Declara não haver.
generative design system, a shape grammar, which develops customized housing designs and that assists in
the building’s optimized construction. The system follows the fundamentals and methods described in the Submetido em: 20/04/2020
formalism of shape grammar and is developed based on the analysis of recognized technical value design, as Aceito em: 08/07/2020
well as recommendations on quality social housing designs. The results, even if partial - referring to the first
stage of grammar development, reveal the effectiveness of generative design systems for the conception of
customized design, and contribute to the search for the reinterpretation of the traditional process of design /
construction of social housing.

KEYWORDS: Generative design; shape grammar; social housing.

How to cite this article:

GRIZ, C.; BELARMINO, T. DUTRA, J. Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como
instrumento. Gestão & Tecnologia de Projetos. São Carlos, v15, n3, 2020.
https://doi.org/10.11606/gtp.v15i3.168933
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento

INTRODUÇÃO
Esse artigo apresenta uma investigação que visa desenvolver um sistema generativo de projeto
que sirva de base para a customização de projetos de habitação de interesse social. O foco é
voltado à questão de projetos e construção de qualidade de algumas dessas habitações e
contribui para o aperfeiçoamento de métodos que reinterpretem o tradicional processo de
projeto.
O processo de projeto e construção de habitações, independente do seu tamanho, geralmente
envolve altos investimentos para o desenvolvimento do projeto e para o gerenciamento e
execução da obra. Na sua própria definição, a habitação de interesse social é justamente aquela
voltada à população que carece de recursos econômicos para ter acesso à moradia formal ou
para contratar os serviços de técnicos profissionais da área. Esse investimento para o
desenvolvimento e execução de tais projetos, que, na maioria dos casos, são duvidosos quanto
a sua qualidade (BONDUKI, 2008; PINTO, PINTO, BERNARDO, FEIJÃO, 2017;FIM et al, 2019),
acontece mais frequentemente no caso da criação de conjuntos habitacionais, seja por
iniciativa pública, seja através de empresa privada. Quando a construção dessas habitações é
feita de maneira isolada e a responsabilidade fica a cargo do seu próprio dono – a chamada
autoconstrução (FIM et al, 2019), o investimento em projeto é, muitas vezes, deixado de lado
por razões econômicas.
Entretanto, justamente pela falta de investimento e assessoria técnica especializada, o projeto
pode não ser adequado, comprometendo sua qualidade e a construção pode resultar ainda
mais onerosa. Segundo Amorim e Telles (2016), a autoconstrução é frequentemente
encontrada em zonas urbanas e rurais de baixa renda, podendo resultar em projetos de
habitações subdimensionadas, insalubre e sem os requisitos mínimos para uma moradia de
qualidade. Sendo assim, grande parte das pessoas que conseguem adquirir um terreno nessas
condições começam a construir suas habitações sem planejamento, sem o auxílio de um técnico
que possa desenvolver um projeto adequado e, portanto, diminuindo a qualidade da
construção, do ponto de vista técnico, estético e econômico.
Várias investigações são desenvolvidas com o objetivo de aumentar a qualidade de habitações
de interesse social (MITCHELL 2008; BONDUKI, 2008; BUZZAR, FABRICIO, 2010; BRANDÃO
2011; MIRON, MONTEIRO, SILVA, 2019), principalmente aquelas produzidas pelo Programa
Minha Casa Minha Vida (MCMV). Implementado em março de 2009, o MCMV foi criado com o
objetivo de possibilitar que a população com rendimentos de até 10 salários mínimos
pudessem ter acesso à moradia (NARDELLI, 2010; RANGEL, 2011). Sendo pensado
principalmente para reduzir o déficit habitacional, ao final de um ano o programa também
incentivou o crescimento da construção civil e o aquecimento do mercado imobiliário.
Entretanto, um dos recursos que o programa possibilita é pouco explorado por seus usuários.
Além de financiar moradias já construídas por terceiros, o MCMV, na modalidade que ficou
conhecida como “Entidade” ,também destina parte dos seus financiamentos para a construção
de habitações para aqueles que adquirem um terreno em loteamento urbano. Para isso, a
principal exigência é ter um projeto arquitetônico aprovado na prefeitura local – requisito
importante e que faz com que as assessorias técnicas exerçam um papel fundamental para a
construção de habitações de qualidade.
Como nessa camada da população poucos tem acesso a esse tipo de serviço, em 2008 foi criada
a Lei nº 11.888/2008, que assegura assistência técnica pública e gratuita para projeto e
construção de habitação de interesse social. Contudo, como argumentam Fim e seus colegas
(2019), depois de mais de dez anos da vigência da lei, poucos indícios de sua aplicação são

114
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra

verificados. Essa falta de acesso à assessoria técnica para a maioria dessa camada da população
faz com que o de financiamento proposto pelo MCMV – Entidade fique ocioso.
Assim, tendo em vista esse nicho de mercado, e buscando contribuir com a qualidade desse
tipo de habitação, a startup PopBIM do ramo da construção civil (incubada em 2018 no Porto
Digital, Recife) buscou parceria com pesquisadores do Laboratório de Estudos Avançados em
Arquitetura (lA2) e do Grupo de Estudos Modelagem da Informação do Ambiente Construído,
ambos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para juntos, pensarem em um sistema
que conceba projetos de alguns tipos de habitação de interesse social (ver características,
descritas na Tabelas 1). O objetivo é desenvolver projetos de maneira generativa e que esse
mesmo sistema auxilie na construção otimizada da edificação. O sistema é, portanto, centrado
nos princípios do design generativo, mais especificamente a gramática da forma (descritos a
seguir), que servirá de base para a geração customizada de projetos de habitação.
Tendo esta problemática como base, a investigação desenvolvida com parceria entre a PopBIM
e a UFPE busca desenvolver e executar projetos de habitação de interesse social de qualidade
de maneira otimizada. Isso será feito através do desenvolvimento de um sistema que vai
facilitar o acesso a um projeto arquitetônico por essa camada da população, possibilitando a
geração de projetos desenvolvidos dentro do princípio da gramática da forma. Além disso, ao
final, pretende-se que esse sistema auxilie, também, a construção da habitação, através da
mediação entre o proprietário e fornecedores de material e mão de obra da construção civil
local.
De uma maneira geral, a gramática proposta é desenvolvida em três estágios:
1. O estágio 1 diz respeito à organização espacial da habitação. Aqui, são definidas regras
que dizem respeito à funcionalidade e resultam em diversas maneiras de organizar
espacialmente os ambientes da habitação, de acordo com dados de entrada específicos,
fornecidos pelo proprietário, como o número de ambientes, o tipo de interação entre eles (se
mais restritivo ou mais interativo, como cozinhas abertas para a sala, por exemplo).
2. O estágio 2 trata da volumetria do projeto. É desenvolvido necessariamente a partir da
solução espacial selecionada no estágio anterior e guiado por outro conjunto de dados de
entrada – altura do pé-direito, tipo de coberta, etc. Nesta fase, a mediação entre fornecedores
já deve estar prevista e, de acordo as especificidades dos materiais, as regras de definição da
volumetria serão inferidas.
3. O estágio 3 é responsável pela definição dos elementos construtivos da habitação.
Nesta fase são definidas as regras que irão decompor a volumetria definida no estágio anterior
nos elementos construtivos da habitação – paredes, pisos, tetos, cobertas, esquadrias, etc. Aqui,
pressupostos da fabricação digital serão levados em conta para a definição das regras.
Cada estágio, por sua vez, é desenvolvido em duas etapas: a parte analógica e a parte digital. A
primeira mostra o processo de inferência de regras da gramática e o teste de aplicação dessas
regras, através da derivação feita manualmente, regra por regra (como é visto a seguir) . A
segunda faz uso de tecnologias digitais para implementar as regras de maneira que as soluções
geradas pela gramática sejam obtidas de maneira automatizada e otimizada.
Este artigo apresenta a parte analógica do estágio 1 em um estudo piloto, onde é descrito o
desenvolvimento da parte da gramática responsável pela distribuição funcional e organização
espacial da habitação.

SOBRE A GRAMÁTICA DA FORMA

O século XXI é tido como a era das tecnologias digitais (KOLAREVIC, 2005). No campo da
arquitetura e urbanismo, sua aplicação vai desde a adoção como ferramentas de representação
115
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento

– classificadas por Oxman (2006) como interação representacional , até a sua completa
incorporação no processo de concepção do projeto – a chamada interação com o ambiente
virtual (OXMAN, 2006). O nível de interação do projetista com essas tecnologias altera
profundamente a maneira de pensar e o processo necessário para o desenvolvimento de
projetos.
Neste cenário, o Design Generativo (DG), cujas bases conceituais e teóricas remontam da
antiguidade clássica (MITCHELL, 1989), vem se consolidando juntamente com a disseminação
e apropriação de novas tecnologias e ferramentas baseadas no uso do computador. Entretanto,
por ser um termo que ficou mais conhecido devido a maior disseminação das tecnologias
digitais, sua definição, muitas vezes, aparece de maneira confusa na literatura.
Sendo um dos temas do campo conhecido como “computacional design” , o design generativo
pode ser descrito como uma metodologia de projeto onde o projetista não interage
diretamente na representação do projeto, e sim, com um sistema que representa o projeto
(FISCHER; HERR, 2001). Para Celani (2011), um sistema generativo é um método indireto de
projeto no qual o projetista não se preocupa apenas com a solução de um problema em
particular em um contexto específico, mas em criar um projeto genérico, que possibilite
resolver problemas semelhantes em contextos diferentes.
De acordo com o princípio do design generativo, o projetista cria um sistema de regras que,
com sua implementação, digital ou analógica, vários projetos podem ser gerados. Neste
paradigma as informações necessárias para conceber o projeto são organizadas e tratadas de
acordo com os princípios definidos no sistema, que descreve o passo-a-passo para que o
projeto seja desenvolvido. Quando essas regras são implementadas dentro de um sistema
computacional, as soluções geradas são mais otimizadas, automatizadas e variadas. A aplicação
de tecnologias computacionais na implementação é que acrescenta o caráter inovador para o
design generativo. Assim, seu conhecimento e apropriação passa a ser de relevante
importância para o campo de projetos de arquitetura.
Um dos sistemas generativos de projeto é a gramática da forma. Criada por Stiny e Gips (1972),
ela consiste em um sistema de geração de formas baseado em regras que, aplicadas passo a
passo (assim como os algoritmos ), são capazes de gerar uma linguagem de projeto (ELOY,
2012). Ou seja, com a aplicação de uma gramática da forma é possível obter vários projetos
com características distintas, mas que possuem o mesmo princípio compositivo, definido pelas
regras da gramática. É, portanto, um formalismo eficaz para se alcançar a customização em
massa de projetos – principal produto a ser alcançado pela presente investigação.
Segundo Duarte (2007), um dos pioneiros no desenvolvimento de estratégias de
personalização em projeto de habitações, a customização em massa permite oferecer produtos
personalizados, em grandes quantidades, a custos similares aos de produtos padronizados e
disponibilizados por meio da produção em massa. Prática já consolidada nas indústrias
automotiva, aeronáutica e naval, a customização em massa aplicada a projetos unidade
habitacionais pode trazer benefícios financeiros tanto para o cliente – que pode adquirir uma
habitação adequada às suas demandas particulares, quando para o construtor, que passa a
oferecer vários produtos personalizados sem precisar de mais investimentos para isso
(NABONI; PAOLETTI, 2015).
A gramática da forma já vem sendo utilizada em vários projetos de habitações (DUARTE, 2007;
MUSSI, 2014; ELOY, 2012; GRIZ, et al, 2016; LIMA, et al, 2017), evidenciando a mudança de
paradigma no processo de projeto quando se deseja alcançar a customização em massa. Isso
acontece, pois ela é utilizada como estratégia definidora das regras de concepção do projeto
arquitetônico personalizado, como facilitadora da incorporação do usuário na concepção
projetual, sendo, assim, promotora da personalização da unidade habitacional em série.
116
Gestão & Tecnologia de Projetos
Cristiana Griz, Thaciana Belarmino, Julia Dutra

Em geral, as gramáticas da forma podem ser classificadas de acordo com: (a) a maneira como
as regras são inferidas e (b) a lógica da aplicação das regras. A primeira define as duas
principais classificações descritas por Duarte (2007) - gramáticas originais e gramáticas
analíticas. As analíticas são concebidas como uma ferramenta para analisar um grupo de
projetos - o corpus, que definem uma única linguagem que os representa. Essa representação
é feita por meio de regras inferidas a partir da análise dos próprios projetos que formam o
corpus. Já as gramáticas originais são aquelas que geram novos projetos e as regras, neste caso,
não são necessariamente criadas a partir da análise de projetos, mas podem, também, ser
baseadas em requisitos pré-estabelecidos e descritos em textos, normas, etc.
Em relação à lógica da aplicação, as gramáticas podem ser de vários tipos (KNIGTH, 1999). As
principais são as básicas (onde apenas as regras de adição são aplicadas), as não
determinísticas (quando as regras da gramática são aplicadas em qualquer ordem), as
sequenciais (onde as regras são aplicadas em uma ordem predefinida) e irrestrito (qualquer
tipo de regra é aplicada em qualquer ordem).
Além dessas, alguns autores também sugerem que as regras podem ser aplicadas pelo método
bottom-up ou top-down (MENDES, 2014). No método de desenvolvimento do sistema bottom-
up a solução é gerada a partir de uma forma inicial e uma lógica incremental, onde tem-se uma
adição progressiva de outras formas agregadas a ela. Já nas gramáticas desenvolvidas segundo
a lógica top-down, a solução formal é resultado da decomposição sucessiva da forma inicial em
partes menores (Figura 1).

Figura 1: Exemplos de
gramática da forma do tipo
Top-Down (acima) e
Bottom-up (abaixo).

Fonte: Os autores.

Independentemente do tipo, todas podem ser paramétricas. Uma gramática paramétrica é


usada para codificar ordenadamente uma gama mais ampla de variações formais para a mesma
regra. Ou seja, cada regra consiste em um conjunto de regras que podem codificar vários
atributos da forma, para que uma maior variedade de parâmetros relacionados à forma possa
ser combinada (ver regra L3, Figura 2).
Outro conceito de grande valia no desenvolvimento de gramáticas que envolvem muitos
parâmetros para se chegar à solução formal final (como é o caso de gramáticas para projetos
de arquitetura) é o de gramática genérica. Apresentado por Li (2001), a gramática genérica é
aquela que nos primeiros estágios de desenvolvimento as regras são facilmente aplicáveis
através de uma linguagem relativamente abstrata e, por essa razão, é capaz de gerar soluções
em contextos distintos, de acordo com as especificidades do projeto. Em fases mais avançadas
de desenvolvimento, as regras formais abstratas são revisadas e incrementadas com
parâmetros e restrições de acordo com critérios específicos de cada contexto.
O primeiro estágio da gramática ora desenvolvida é parte analítica, outra parte, original, é
também do tipo sequencial e desenvolvida segundo a lógica top-down. O resultado preliminar
final (produto da aplicação das três primeiras etapas de desenvolvimento, como é visto a
seguir) mostra o caráter genérico da gramática, que, ao ser finalizada, será toda paramétrica.
117
Gestão & Tecnologia de Projetos
Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento

A GRAMÁTICA DA HABITAÇÃO GENERATIVA DE PEQUENO PORTE


Como comentado, o estágio 1 de desenvolvimento da gramática tem foco na função e na
geração de soluções que apresentem variadas organizações espaciais para a habitação. A
primeira fase desse estágio resulta tanto de uma gramática analítica, quanto uma gramática
original. Na primeira, o processo de inferência de regras contou com a análise de projetos de
habitação de interesse social de reconhecido valor técnico e que foram objetos de pesquisas de
alguns autores (ARAVENA; IACOBELLI, 2012; MAYER, 2012). Na segunda, às regras inferidas
dos projetos de referência são acrescentadas outras resultantes de pesquisa e recomendações
sobre projetos de habitação social (KOWALTOWSKI et al, 2015).
Dentre os projetos analisados, dois foram elaborados pelo escritório de arquitetura chileno,
Elemental: (a) o Quinta Monroy e, (b) a Habitação Villaverde. Em ambos os casos, Aravena toma
como partido a noção de arquitetura incremental - apenas um embrião inicial com áreas
mínimas é entregue, ficando livre para cada usuário expandir de acordo com sua necessidade.
Assim, estes projetos conseguem manter o equilíbrio entre baixos custos e personalização
(ARAVENA; IACOBELLI, 2012).
Outra referência base para o desenvolvimento das regras da gramática é o trabalho
desenvolvido por Mayer (2012). A autora argumenta que a padronização dos projetos é
consequência da busca da redução de custos e do encurtamento do tempo de execução. Para
combater a padronização, ela cria uma gramática da forma baseada num sistema modular
adimensional que toma como partido as relações espaciais (relações de adjacência, circulação,
aberturas, etc.). Mayer propõe, também, a abstração das restrições dimensionais, e trabalha
com modelos espaciais topológicos extraídos do corpus estudado. Cria, assim, modelos
matriciais a partir do qual é possível a geração de alternativas, criando, portanto, um extenso
leque de opções a partir de um número limitado de regras.
Além desses, alguns dos princípios apresentados por trabalhos de referência no campo da
arquitetura generativa para habitações (DUARTE, 2007; MUSSI, 2014; ELOY, 2012) serviram
como base para a criação das regras da gramática proposta, como é visto a seguir.

AS REGRAS DA GRAMÁTICA

Para este estudo piloto foi feita uma parceria com empreendedores de um loteamento cujos
terrenos apresentam área média de 200m2. O terreno padrão do loteamento selecionado para
estudo tem dimensões de 10m x 20m, com frente ora para o Leste, ora para o Oeste.
A aplicação da gramática da habitação de pequeno porte segue basicamente quatro etapas,
cada uma com seu conjunto de regras, que devem ser aplicadas exatamente na ordem
apresenta – daí o caráter sequencial da gramática. São (a) as regras de implantação; (b) as
regras de divisão de ambientes; (c) as regras de atribuição funcional e, (d) as regras de
atribuição dimensional.
De uma maneira geral, uma gramática da forma é constituída por quatro componentes (STINY,
1976): (1) um conjunto de formas; (2) um conjunto de símbolos; (3) um conjunto de regras da
forma e; (4) uma forma inicial. No desenvolvimento desta gramática, para cada etapa tem-se
componentes distintos.
A primeira etapa apresenta um grupo de regras que define as opções de implantação da
habitação no terreno. Como a gramática é top-down e o lote apresenta formato retangular, as
formas utilizadas são retângulos e a forma inicial é aquela que define o formato do terreno, que
será decomposto em retângulos genéricos menores. Já as regras e símbolos, neste caso, dizem
respeito aos parâmetros relativos à orientação do terreno, às normas de afastamento e à área
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da habitação (Figura 2). O resultado dessa etapa apresenta o maior polígono onde a habitação
pode ser locada no terreno: um retângulo com a maior área construída possível do pavimento
térreo.
Como comentado, o loteamento apresenta terrenos voltados para o Leste ou para o Oeste.
Assim, o primeiro conjunto de regras define a orientação do terreno (retângulo maior da Figura
2) através da aplicação da regra L1 ou da regra L2.

Figura 2: Regras de
orientação e afastamentos
do lote.

Fonte: Os autores.

Com isso definido, aplica-se a regra L3 - uma única regra referente ao parâmetro urbanístico
de afastamentos. Entretanto, por ser paramétrica, ela é capaz de gerar uma grande variedade
formal, ao mesmo tempo em que atende às restrições descritas nas condições associadas a ela.
As primeiras restrições, descritas nas condições gerais, são referentes às leis de afastamento
definidas pela prefeitura local para esse tipo de loteamento e que geram uma implantação de
edificação solta no terreno (o terreno é representado pelo retângulo maior e externo da Figura
2, e a projeção da edificação, pelo retângulo menor e interno). Porém, é possível que a
edificação não tenha afastamentos em relação ao limite do terreno, caso atenda as condições
particulares 1. Por fim, as condições particulares 2 definem afastamentos distintos dos
apresentados nas condições gerais. Esses objetivam uma maior flexibilidade para a locação da
edificação no lote, de maneira que esta possa proporcionar maior conforto em termos de
ventilação e/ou insolação, ou mesmo para possibilitar a inclusão itens programáticos
alternativos.
Vale ressaltar que alocação esquemática e provisória da habitação só pode ser definida quando
o proprietário escolher o número de ambientes. Para esse estudo piloto foram definidas oito
opções de programas arquitetônicos (Tabela 1). Estes variam em número de ambientes e
apresentam algumas sugestões de pré-dimensionamentos, resultando na área média da
habitação, que podem variar de 40m2 a 80m2. Com esse dado, e com a aplicação da regra
paramétrica L3, é possível obter cinco possibilidades provisórias de locação da habitação
(Figura 3). A edificação pode não apresentar afastamento na lateral direita ou esquerda do lote,
pode estar solta no terreno ou não apresentar afastamento de fundo, nem nas duas laterais ao
mesmo tempo.

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Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento

Tabela 1: Área (em m2) e


programa arquitetônico da
habitação.

Fonte: Os autores.
Seis ambientes. Sete ambientes com opção de duas cozinhas e dois
quartos.

Sete ambientes com opção de dois banheiros e dois Sete ambientes com opção de três quartos.
quartos.

Oito ambientes com opção de duas cozinhas e três Oito ambientes com opção de dois banheiros e três
quartos. quartos

Oito ambientes com opção de duas cozinhas, dois


banheiros e dois quartos. Nove ambientes.

A segunda etapa define a partição dos ambientes na habitação. A forma inicial é justamente a
planta de locação esquemática resultante da primeira etapa (Figura 3). As regras e símbolos
(Figura 4) são referentes à dimensão dos lados do retângulo que representa a planta de locação
e ao número e formato das suas partições da forma inicial. Devido ao caráter top-down da
gramática, ela será subdividida em outros retângulos genéricos.

Figura 3: Exemplos de
implantação esquemática
da habitação no terreno,
resultado da aplicação da
regra paramétrica L3.

Fonte: Os autores.

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Como mostra a Tabela 1, as habitações podem variar de 40m2 a 80m2, apresentando de seis a
nove ambientes, com possibilidade de combinação variada de funções. Com exceção da
habitação com seis ambientes, cujos cômodos já são previamente definidos, o morador pode
escolher o programa funcional da sua moradia, com opções de dois ou três dormitórios, com
um ou dois banheiros ou com cozinha com dimensão mínima ou mais ampla. Seguindo esses
critérios, o polígono resultante da implantação pode ser dividido, então, em seis a nove
retângulos menores, cujas regras de subdivisão variam de acordo com o número de ambientes,
a dimensão do polígono resultante da implantação e, em alguns casos, com a orientação do
terreno (Figura 4).

Figura 4: Regras de
divisão do polígono
resultante da implantação
no número de ambientes.

Fonte: Os autores.

A terceira etapa se dedica a atribuir função a cada um desses ambientes. Isso é feito através de
regras que apresentam marcadores. De uma maneira geral, em gramáticas da forma, um
marcador (ou label) é um elemento que visa restringir a maneira que a regra pode ser aplicada
(STINY, 1976). Neste caso, o marcador da gramática da habitação generativa de pequeno porte
atribui a função que cada ambiente deve ter. Assim, as regras dessa etapa são feitas para
modificar os marcadores que foram inseridos nas formas resultantes da etapa anterior, como
mostra a Figura 5.
Distintamente de como sugeriu Mayer (2012), a primeira função que deve ser atribuída é a
cozinha. Essa escolha se deu pela influência que ela exerce na localização dos demais cômodos
da habitação, bem como por ser, juntamente com os banheiros, uns dos ambientes que tem
maior custo de construção por m2. Em seguida vem a locação das salas, que, conforme análise
do corpus, está adjacente à cozinha em 100% dos casos. A locação dos quartos e dos banheiros
vem, respectivamente, logo em seguida.

Figura 5:
[Coluna Esquerda] Regras
de atribuição funcional.
[Coluna Direita]
Possibilidades de locação
para cozinha, sala e
quartos em habitações de
RC: Regra de alocação da cozinha oito ambientes.
RS: Regra de alocação da sala
RQ: Regra de alocação do quarto Fonte: Os autores.
RB: Regra de alocação do banheiro

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Habitação de Interesse Social Generativa: A gramática da forma como instrumento

Vale destacar que a locação das funções depende não apenas do número de ambientes total da
habitação, mas também (e como em todo projeto de arquitetura) da orientação do terreno.
Nesse sentido, para cada opção de subdivisão de ambientes são definidas as posições possíveis
que a cozinha, sala e quartos podem ser atribuídas (Figura 6). Essa definição facilitará a
implementação computacional da gramática, uma vez que cada orientação apresenta um
número limitado e específico de regras de atribuição de função, restringindo o número de
regras que pode ser aplicado à medida em a gramática é gerada.
Para ilustrar, toma-se como exemplo um terreno cuja frente é voltada para o Leste, com oito
ambientes e cujo polígono resultante da implantação tem largura menor que a profundidade
(Figura 7). Para tal opção, a locação da cozinha, primeiro ambiente que deve ser posicionado,
só pode ser feita nos ambientes número 2, 4 ou 6 (conforme indica a Figura 6). Ou seja, para
esse exemplo, só podem ser aplicadas as regras de atribuição funcional R-C2, R-C4 ou R-C6
(descritas na Figura 5). Já a locação da sala, além de ter que estar adjacente à cozinha, só pode
ser nos ambientes número 1, 3, 5, 7 ou 8. Para atender a esses critérios, apenas as regras de
atribuição funcional R-S1, R-S3, R-S5, R-S7 ou R-S8, podem ser aplicadas, e assim
sucessivamente.
A quarta e última etapa que forma o estágio 1 de desenvolvimento da gramática é responsável
por definir as dimensões de cada um dos ambientes, sem alterar a relação de adjacência pré-
definida. Apesar dessa etapa ainda estar em desenvolvimento, já foi definido que as dimensões
dos ambientes tomarão por base as áreas discriminadas na Tabelas 1 – o que pode resultar
numa infinidade de formatos de habitação, mesmo que, inicialmente, tenha-se como base
apenas um esquema de subdivisão de ambientes, resultado típico do desenvolvimento de uma
gramática da forma genérica.

DERIVAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DAS HABITAÇÕES

O processo de derivação é uma importante ferramenta no desenvolvimento de uma gramática


da forma (STINY, 1976). De maneira direta, a derivação mostra o passo a passo da geração de
uma solução formal a partir da aplicação recursiva das regras. Entretanto, do ponto de vista do
desenvolvimento e aprimoramento da gramática, ela serve para identificar regras que, embora
distintas, sejam redundantes, podendo, assim, ser descartadas ou substituídas por regras mais
eficientes.
Para exemplificar a aplicação passo a passo das regras da gramática da habitação generativa
de pequeno porte é apresentada a derivação de um exemplo com oito ambientes (Figura 7),
onde o proprietário optou por três dormitórios, sendo um, uma suíte. O terreno é voltado para
o Leste (portanto, deve ser aplicada a da regra L2 da primeira etapa) e, como resultado da regra
paramétrica de afastamentos (regra L3), o polígono resultante da implantação fica solto no
lote. Esse polígono apresenta uma maior dimensão na profundidade do que na largura, fato
que direciona a aplicação da regra A8a da terceira etapa para subdivisão dos ambientes (Figura
4).
Como o lote é voltado para o Leste e o polígono é mais profundo que largo, as posições possíveis
para locar a cozinha são nos números 2, 4 ou 6. Assim, apenas as regras R-C2, R-C4 e R-C6 da
terceira etapa podem ser aplicadas. A derivação apresentada na Figura 7 mostra o caminho
percorrido a partir da escolha de uma dessas três regras, pois, devido ao caráter sequencial da
gramática, as regras que podem ser aplicadas dependem diretamente da escolha da regra que
a sucedeu.

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Figura 6: Exemplo de
derivação.

Fonte: Os autores.

Esse é um exemplo de derivação que resultou em uma única solução de organização espacial
esquemática da habitação. Entretanto, partindo da mesma forma inicial apresentada na Figura
7 , e com a escolha de regras distintas a cada passo da derivação, é possível obter várias outras
soluções espaciais, como mostra a Figura 8. A partir da escolha do posicionamento da cozinha,
o segundo ambiente a ser atribuído é a sala. Para esta orientação, a sala só é possível ser
localizada nos números 1, 3, 5, 7 ou 8. No entanto, as definições das regras de posicionamento
da sala dependem, também, da posição previamente escolhida para a cozinha, já que outra
restrição é que os dois ambientes sejam adjacentes. Caso a cozinha tenha sido locada na posição
2, a sala só poderá ficar nos 1 ou 3 e apenas as regras R-S1 ou R-S3 podem ser utilizadas. Se a
opção de posicionamento da cozinha tiver sido no número 6, a sala pode ser locada nos 3, 5, 7
ou 8, e, por isso, restringe a aplicação apenas às regras R-S3, R-S5, R-S7 ou R-S8.
E com essa lógica segue-se a sequência de atribuição do segundo ambiente referente à sala
(estar e/ou jantar), dos quartos e dos banheiros – com a escolha da localização de um ambiente
influenciando diretamente a localização do próximo. Como resultado, temos uma espécie de
“árvore” que mostra as possíveis derivações ou os caminhos possíveis para se chegar à
organização espacial da habitação. Para esse tipo de lote e o programa arquitetônico escolhido
(oito ambientes com dois dormitórios e uma suíte), é possível gerar 12 organizações espaciais
esquemáticas de habitações.

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Figura 7: Árvore de
derivações que geram 12
organizações espaciais
esquemáticas de
habitações com oito
ambientes (com dois
dormitórios e uma suíte),
cujo lote é voltado para o
Leste.

Fonte: Os autores.

Como comentado, o resultado da aplicação das etapas até aqui apresentadas define a
organização espacial genérica da habitação. No entanto, essa solução genérica é capaz de gerar
um grande número de plantas distintas, dependendo do contexto das escolhas individuais dos
proprietários feita nas etapas anteriores, mas que guardam as mesmas relações de adjacência.
É por essa razão que as regras da quarta etapa – definição do formato e das dimensões dos
ambientes (ainda em desenvolvimento), precisam ser, necessariamente, paramétricas, envolve
uma grande quantidade de condicionantes e restrições, conforme cada contexto particular.
A Figura 9 ilustra possíveis soluções de plantas baixas esquemáticas que podem ser resultado
da aplicação das regras da quarta etapa. Sobre esse exemplo é preciso fazer duas observações:
primeiro, ele mostra duas soluções em planta com organizações espaciais aparentemente
tradicionais, mas que é fruto da aplicação analógica das regras, o que limita a capacidade da
gramática em gerar organizações mais singulares ; segundo, para se chegar a essas soluções
espaciais é preciso a aplicação das regras dimensionais – etapa ainda em desenvolvimento. No
entanto, sabendo que estes exemplos apresentam um vácuo de informações de como se chegar
a esses resultados, alguns testes já evidenciam que é possível obter diferentes soluções
levando-se em consideração fatores como o formato côncavo ou convexo - tanto do limite da
habitação, quanto do limite dos ambientes, variação média da área de cada ambiente
individualmente, proporção da dimensão entre ambientes adjacentes (se 1/2, 1/3 ou 2/3 da
dimensão total da parede que os separa), tipo de separação (se opaco, transparente ou parcial
– no caso de cozinhas americanas), etc.

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Figura 8: Exemplos de
plantas geradas a partir de
uma mesma organização
espacial esquemática.

Fonte: Os autores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obtenção de projetos de projetos de habitação de pequeno porte customizadas é um processo


longo. São necessárias mudanças que abarcam não apenas o método projetual, mas também a
maneira de gerir o processo de projeto e construção. Para realizar essa mudança paradigmática
é indispensável, por um lado, uma metodologia projetual que esteja interessada não apenas na
criação de projetos, mas principalmente no processo de criação desses projetos, como é o caso
da abordagem do design generativo. Além disso, como sugere Machado (2007), na
customização em massa, deve-se optar por um modelo de gestão totalmente orientado para o
cliente - atitude que difere do modelo tradicional, o qual está orientado para o mercado e
centrado diretamente no produto. Ou seja, é fundamental que haja a compatibilização entre a
expertise do técnico e as demandas personalizadas do cliente e o design generativo entra como
um instrumento metodológico que permite essa confluência de saberes com maestria.
Tendo em vista esse longo caminho que é preciso percorrer, este artigo apresenta uma
contribuição em busca da reinterpretação do tradicional processo de projeto/construção de
habitações de médio e pequeno porte. A etapa ora desenvolvida teve foco apenas na primeira
fase (a analógica) do estágio 1, referente à definição da organização espacial genérica da
habitação. Entretanto, mostra-se suficientemente rica, em termos de possíveis regras e
variações formais, sendo eficaz em demonstrar seu potencial para a geração de plantas de
habitação de pequeno porte customizadas.
Como sugere Eilouti (2019), as gramáticas da forma tratam de elementos morfológicos e
relações geométricas, topológicas e numéricas entre esses elementos, que definem o processo
que gera o projeto. As regras das três etapas aqui apresentadas mostram claramente como
esses elementos são relacionados para definir o processo de projeto. E, mesmo tendo sido um
experimento totalmente analógico, sem ainda ter finalizado a última etapa das regras, é
possível perceber que sua aplicação permite gerar muitas organizações espaciais
esquemáticas.
Por fim, vale reforçar que quando essa implementação, feita analogicamente, for desenvolvida
com ajuda de tecnologias digitais, como as proporcionadas por softwares de programação, as
soluções formais genéricas serão ainda mais otimizadas e automatizadas, resultando, por sua
vez, em variados tipos de plantas customizadas. É dessa maneira que é possível unir
conhecimento técnico e demandas individuais, proporcionando a participação desses dois
atores nas definições do projeto de maneira mais eficaz.

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Agradecimentos

Os autores agradecem à FACEPE (APQ-0495-6.04/14) e a CEO da startup PopBIM, Arquiteta


Jeanne Karlla Barbosa.

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