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Em uma nota que neste momento tenho à vista, Charles Dickens diz o seguinte,
referindo-se a uma análise que fiz do mecanismo de Barnaby Rudge: "Sabe que Godwin
escreveu seu Caleb Williams de trás para frente? Começou emaranhando a matéria do
segundo livro e logo, para compor o primeiro, pensou nos meios de justificar o que
havia feito".
Tenho pensado quão interessante seria um artigo escrito por um autor que
quisesse e que pudesse descrever, passo a passo, a marcha progressiva seguida em
qualquer uma de suas obras até chegar ao término definitivo de sua realização. Seria,
para mim, impossível explicar por que ainda não foi oferecido ao público um trabalho
semelhante; mas talvez a vaidade dos autores seja a causa mais poderosa para
justificarmos essa lacuna literária. Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem
deixar que acreditemos que escrevem graças a uma espécie de sutil frenesi ou de
intuição extática; teriam verdadeiros calafrios se tivessem que permitir ao público dar
uma olhadela por trás da cortina, para contemplar os trabalhosos e vacilantes embriões
de pensamentos, a verdadeira decisão adotada no último momento, os relances de idéias
que durante muito tempo resistem a mostrar-se, o pensamento plenamente maduro mas
rejeitado por ser inaproveitável, a eleição prudente e os arrependimentos, as dolorosas
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emendas e interpolações; em suma, os rolamentos e as rodas, os artifícios para a troca
de decoração, as escadas e os alçapões, as penas de galo, as cores, os disfarces e todos
os enfeites que em noventa e nove por cento dos casos são o peculiar do histrião
literário.
Quanto a mim, não compartilho com a repugnância do que acabo de falar, nem
encontro a menor dificuldade em recordar a marcha progressiva de todas as minhas
composições. Posto que o interesse dessa análise ou reconstrução, que tenho
considerado como um desideratum, é inteiramente independente de qualquer interesse
real ou imaginário na coisa analisada, não poderei ser censurado se revelo aqui o modus
operandi utilizado para construir uma de minha obras. Escolhi "O Corvo" por ser esta a
mais conhecida de todas. Meu propósito consiste em demonstrar que nenhum ponto da
composição pode ser atribuído à intuição ou à sorte; e que aquela avançou até seu
término, passo a passo, com a mesma exatidão e lógica rigorosa de um problema
matemático.
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Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação que
eu não situava acima do gosto popular nem abaixo do gosto crítico, concebi antes de
tudo uma idéia sobre a extensão idônea para o poema projetado: uns cem versos
aproximadamente. Na realidade, cento e oito.
Refleti, em seguida, sobre o caráter daquela palavra. Tendo decidido que haveria
um estribilho, a divisão do poema em estâncias surgia como um corolário necessário,
pois o estribilho constitui a conclusão de cada estrofe. Não havia dúvida para mim que
semelhante conclusão ou término, para possuir força, deveria ser necessariamente
sonora e suscetível de uma ênfase prolongada. Aquelas considerações me conduziram
inevitavelmente ao o prolongado, que é a vogal mais sonora, associada ao r, porque esta
é a consoante mais vigorosa.
Já bem determinado o som do estribilho, era preciso, depois, eleger uma palavra
que o contivesse e, ao mesmo tempo, estivesse harmoniosamente de acordo com a
melancolia que eu havia adotado como tom geral do poema. Seria impossível não se
deparar com a palavra nevermore (nunca mais). Na verdade, esta foi a primeira que me
veio à mente.
O desideratum seguinte foi este: qual seria o pretexto útil para empregar
continuamente a palavra nevermore? Ao ver a dificuldade que se me apresentava para
encontrar uma razão válida dessa repetição contínua, não deixei de observar que essa
dificuldade surgia tão só de que tal palavra, repetida tão obstinada e monotonamente,
seria proferida por um ser humano. Em resumo: a dificuldade consistia em conciliar a
monotonia aludida com o exercício da razão na criatura chamada para repetir a palavra.
Surgiu então a possibilidade de uma criatura não racional e, sem embargo, dotada de
palavra: como é lógico, pensei, de início, em um papagaio; no entanto, este foi
imediatamente substituído por um corvo, que também é dotado de palavra e, ademais,
está infinitamente mais de acordo com o tom desejado.
Teria que combinar, em seguida, aquelas duas idéias: um amante que chora a sua
amada morta e um corvo que repete continuamente a palavra nevermore. Não só teria
que combiná-las, como teria que variar a aplicação da palavra repetida; mas o único
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meio possível para semelhante combinação consistia em imaginar um corvo que
aplicasse a palavra para responder as perguntas do amante. Então pude tirar vantagem
da facilidade que se me oferecia para o efeito do qual meu poema estava dependendo,
isto é, o efeito da variação da aplicação. Compreendi que poderia formular a primeira
pergunta feita pelo amante, a qual o corvo responderia nevermore; que desta primeira
pergunta poderia fazer uma espécie de lugar-comum; da segunda, algo menos comum;
da terceira, algo menos comum ainda, e assim sucessivamente, até que por último o
amante, arrancado de sua indolência pela índole melancólica da palavra, pela sua
freqüente repetição e pela fama sinistra do pássaro, fosse lançado a uma agitação
supersticiosa e, loucamente, formulasse perguntas diversas, mas apaixonadamente
interessantes ao seu coração; perguntas que dessem a medida exata da superstição e do
singular desespero que encontra o prazer em sua própria tortura, não por crer o amante
na índole profética ou diabólica da ave (que, segundo lhe demonstra a razão, não faz
mais que repetir algo aprendido mecanicamente), mas por experimentar um prazer
inusitado ao formulá-las daquele modo, recebendo do nevermore sempre esperado uma
ferida deliciosa e insuportável. Vendo semelhante facilidade que se me oferecia ou,
melhor dizendo, que se me impunha no transcurso do meu trabalho, decidi primeiro
formular a pergunta final, a pergunta definitiva, para a qual o nevermore seria a última
resposta, a mais desesperada, plena de dor e sofrimento.
Aqui posso afirmar que meu poema começara pelo fim, como deveriam começar
todas as obras de arte. Então, precisamente nesse ponto de minhas meditações, tomei da
pena pela primeira vez e compus a seguinte estância:
Só então escrevi essa estância; primeiro, para fixar o ponto supremo e poder, o
mais claramente possível, variar, segundo sua gravidade e importância, as perguntas
anteriores do amante; e, em segundo lugar, para decidir definitivamente o ritmo, o
metro, a extensão e a disposição geral da estrofe, assim como para graduar as que
deveriam antecedê-la, de modo que nenhuma a ultrapassasse em seu efeito rítmico. Se,
no trabalho de composição que deveria seguir, eu houvesse sido tão imprudente a ponto
de escrever estâncias mais vigorosas, eu as debilitaria, conscientemente e sem vacilação
alguma, de modo que não interferissem no efeito do crescendo.
Aqui eu bem posso falar algo sobre a versificação. Meu primeiro objetivo era -
como sempre - a originalidade. Uma das coisas mais absurdas do mundo é, para mim,
ver como a originalidade da versificação tem sido tratada com descaso. Mesmo
reconhecendo que no ritmo puro exista pouca possibilidade de variação, é evidente que
as variedades em matéria de metro e estância são infinitas; sem embargo, durante
séculos, nenhum homem fez alguma coisa de original a respeito da versificação, nem
sequer algo parecido. O certo é que a originalidade - excetuando os espíritos de uma
força insólita - não é, de maneira alguma, como muitos acreditam, questão de instinto
ou de intuição. De um modo geral, só através de muito trabalho pode-se encontrá-la, e
embora seja um mérito positivo da mais alta categoria, o espírito de invenção participa
menos que o de negação para chegarmos até ela.
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Não é preciso afirmar que não pretendi ser original nem no ritmo nem no metro
de O Corvo. O primeiro é trocaico; o segundo, um octâmetro acatalético, alternando-se
com um heptâmetro catalético que, repetindo-se, vai se converter em estribilho no
quinto verso, finalizando com um tetâmetro catalético. Para expressar-me sem
pedantismo, os pés empregados, que são troqueus, consistem em uma sílaba longa
seguida de uma breve; o primeiro verso da estância é composto de oito pés; o segundo,
de sete e meio; o terceiro, de oito; o quarto, de sete e meio; o quinto, também de sete e
meio; o sexto, de três e meio. Ora, isolando cada um desses versos, veremos que já
foram empregados antes, de maneira que a originalidade de O Corvo consiste na
combinação dos mesmos em uma única estância. Até o presente momento, nada foi
criado que se lho assemelhe. O efeito dessa combinação original se fortalece mediante
alguns outros efeitos inusitados e absolutamente novos, obtidos por uma aplicação mais
ampla da rima e da aliteração.
Havendo determinado assim o lugar, era preciso introduzir então a ave: a idéia
de que esta penetrasse pela janela me parecia inevitável. Que o amante supusesse, no
primeiro momento, que o aflar do pássaro contra o postigo fosse uma chamada à sua
porta era uma idéia brotada de meu desejo de aumentar a curiosidade do leitor,
obrigando-o a aguardar, mas também do desejo de colocar o efeito incidental da porta
aberta de par a par pelo amante, que nada mais encontraria que a escuridão, e que
pudesse aceitar a ilusão de que o espírito de sua amada estivesse a lhe chamar.
Fiz com que a noite parecesse tempestuosa, primeiro para explicar o motivo do
corvo buscar a hospitalidade; segundo para criar o contraste com a serenidade material
reinante no interior do quarto.
Fiz também com que a ave pousasse sobre o busto de Palas para estabelecer um
contraste entre suas plumas e o mármore. Compreende-se que a idéia do busto foi
suscitada unicamente pela ave; que fosse precisamente um busto de Palas para, em
primeiro lugar, demonstrar a íntima relação com a erudição do amante e, em segundo
lugar, por causa da própria sonoridade do nome Palas.
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Nas duas estâncias seguintes, o propósito se manifesta ainda mais:
A partir desse momento, o amante não mais zomba, já não vê nada de fictício no
comportamento da ave. Fala dela como uma "espantosa, sinistra, ominosa ave de
outrora", e sentia que seus "feros olhos queimavam" o seu "coração". Essa transição do
pensamento e essa imaginação do amante têm como finalidade predispor o leitor a
outras análogas, conduzindo o espírito até uma posição propícia para o desenlace, que
virá tão rápida e diretamente quanto possível.
Mas, nos temas manejados desse modo, por mais habilidade e mais vivas
riquezas de incidentes que possua o artista, sempre mostrará um pouco da rudeza ou da
nudez que repelem a leitura de uma pessoa sensível. Dois elementos são exigidos
eternamente: por um lado, certa suma de complexidade ou, em outras palavras, de
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combinação; por outro, certa quantidade de espírito sugestivo, algo assim como uma
veia subterrânea de pensamento, invisível e indefinida. Esta última quantidade é a que
confere à obra de arte o ar opulento que cometemos a estupidez de confundir com o
ideal. O que transforma em prosa (e prosa das mais chatas) a pretendida poesia dos que
se denominam transcendentalistas, é justamente o excesso na expressão do sentido que
só deve ser insinuado, é a mania de converter a corrente subterrânea de uma obra em
outra corrente, visível na superfície.
Convencido disso, juntei as duas estâncias que concluem o poema, porque sua
qualidade sugestiva haveria de penetrar em toda a narração antecedente. A corrente
subterrânea do pensamento se mostra, pela primeira vez, nestes versos:
"Afasta teu bico do meu coração, afasta tua forma de minha porta!"
O Corvo disse: "Nunca mais".
Quero ressaltar que a expressão "do meu coração" encerra a primeira expressão
metafórica do poema. Estas palavras, com a resposta correspondente, leva o espírito a
buscar um sentido moral em toda a narração que se desenvolvera anteriormente. Então o
leitor começa a considerar o corvo como um ser emblemático. Mas só no último verso
da última estância pode ver com nitidez a intenção de fazer do corvo o símbolo da
recordação fúnebre e eterna:
Obs. A tradução das estâncias e/ou dos exertos de certas estâncias do The Raven
que aparecem neste ensaio, foram feitas literalmente (Nota do trad.).