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Viktor Vasilyevich Bychkov

A dimensão estética da arte


de Fiódor Dostoiévski
Este arquivo é parte de uma obra maior denominada
“Estética Teúrgica Russa”
ESTÉTICA TEÚRGICA RUSSA

“Estética teúrgica Russa” é um projeto de Viktor Vasilievich


Bychkov (filósofo russo e historiador da estética), responsá-
vel por destacar a beleza espiritual e a criatividade presente na
“estética Bizantina” (a chamada estética dos Pais da Igreja),
pois, segundo Viktor, “A experiência estética dos tempos pri-
mitivos é inseparável da experiência religiosa.” O projeto é o
estudo do desenvolvimento da estética cristã oriental (Padres
da Igreja, Bizâncio, Antiga e Nova Rússia), dedicado à última
fase nos dois mil anos de história da consciência estética orto-
doxa. O conceito de “estética teúrgica” denota uma poderosa
direção ainda pouco estudada na estética implícita russa do
final do século 19 á primeira metade do século 20, incluindo
as visões dos maiores pensadores cristãos ortodoxos.
As ideias de Bukharev1 foram, até certo ponto, conti-
nuadas por Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Ele considerava
a beleza como o conteúdo principal de qualquer verdadeira
obra de arte. O princípio estético parecia-lhe o valor mais im-
portante, embora tragicamente contraditório, sem o qual uma
pessoa não pode viver. Proferia Dostoiévski que a beleza vem
de Deus, sendo a expressão do Espírito Santo, e o seu ser
absoluto mais elevado constituía-se no próprio Jesus Cristo.
E é essa Beleza que, no final das contas, “salvará o mundo”.
No entanto, a beleza na vida das pessoas e na arte é “uma coi-
sa terrível e alarmante “ - “todas as contradições vivem aqui
juntas”; e “não é apenas uma coisa terrível, mas também mis-
teriosa. Aqui o diabo luta com Deus, e o campo de batalha é o
coração das pessoas”, declara Dostoiévski pela boca de Dmi-
tri Karamazov. O princípio estético, via de regra, se opõe ao
moral - daí os muitos dramas e tragédias da vida humana, aos
quais o escritor russo dedicou muitas páginas em suas obras.
Em sua obra crítico-artística e jornalística, Dostoiévski
deu muita atenção aos problemas da arte, que em meados
do século XX estava no centro das discussões literárias
e artísticas. Em um lado havia os defensores da “arte pela
arte”, que defendiam a completa liberdade, autonomia e in-
dependência artística de quaisquer outras esferas da cultura,
e no outro, os utilitaristas, que exigiam da arte para benefício
público, uma posição sócio-política concreta e claramente ex-
pressa. Ambos os lados argumentaram de forma especialmen-

1 Bukharev, Aleksandr (1824-1871), um dos teólogos ortodoxos mais proe-


minentes durante a era da reforma do czar Alexandre II

Estética teúrgica Russa


te acirrada entre si. Dostoiévski esforçou-se para assumir uma
posição acima desta disputa, tentando suavizar os extremos
das partes que lutavam e encontrar pontos de contato entre
elas, mas internamente, ele estava mais próximo dos adeptos
da arte pura do que dos utilitaristas.
O escritor está convencido de que “a arte é tão neces-
sária à uma pessoa quanto comer e beber. A necessidade de
beleza e criatividade é inseparável do homem e, sem ela, o
homem talvez não gostaria de viver no mundo2”. A beleza.
constitui o núcleo central de qualquer arte, e é precisamen-
te isso que uma pessoa busca na arte. Ao mesmo tempo, a
necessidade de beleza é exacerbada em uma pessoa quando
ela “vive demais”, isto é (segundo Dostoiévski), quando ela
está em um estado de grande desacordo com a realidade, em
uma luta, busca ou empenho por algo, chegando então, em um
ponto em desenvolveu-se nela uma necessidade especial de
harmonia e tranquilidade que só a beleza pode lhe ofertar. É
na beleza que Dostoiévski vê o principal “benefício” da arte.
A beleza é útil para uma pessoa não por uma reação instan-
tânea a certos eventos da vida cotidiana ou por edificações e
declarações específicas, mas pela impecabilidade. Neste sen-
tido, a Ilíada3 parece ao escritor russo ser mais útil para seus
contemporâneos do que todas as obras modernistas juntas. Na
epopeia do grego antigo, ele sente o poder e a plenitude de
vida que não encontra em obras modernas.

2 Fiódor Dostoiévski: Sobre a arte (Об искусстве).


3 A Ilíada é um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga, de
autoria atribuída ao poeta Homero

5
A harmonia eterna incorporada na Ilíada pode ser decisi-
va demais para a alma. Nosso espírito é agora o mais re-
ceptivo. A influência da beleza, harmonia e força pode ter
um efeito majestoso e benéfico sobre o espírito, sendo útil
para infundir energia e sustentar nossa força. O forte ama
a força; quem acredita é forte, nós acreditamos e, o mais
importante, queremos acreditar.4

Os ideais de beleza criados pela arte do passado desper-


tam em nós o entusiasmo e a saudade daquela vida elevada,
superior à realidade ordinária - para além dela, na esfera da
“calma olímpica”, e direcionam o nosso espírito à sua busca.
Neste sentido, qualquer arte real “é sempre moderna e real-
mente, nunca existiu de outra forma e, o mais importante, não
pode existir de outra forma”. A posição dos utilitaristas, argu-
menta Dostoiévski, reduz a importância da arte ao jornalismo
comum, joga fora sua essência artística. O verdadeiro signi-
ficado de certas obras de arte nem sempre é imediatamente
revelado aos contemporâneos, mas a arte é sempre altamente
“fiel à realidade”, e esta é sua essência. Este é o sinal da ver-
dadeira arte, que é sempre moderna, vital e útil, mas podendo
haver desvios e erros, porém, repito, são transitórios. A arte
que não é moderna não atende às necessidades modernas e.
portanto, não pode existir. Se for, então não é arte5.
A arte, enfatiza Dostoiévski, é organicamente inerente
ao homem e o acompanha por toda a história da humanidade

4; 5 Anotação de Dostoiévski em “Notas sobre a literatura russa (Записки


о русской литературе)

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e por toda a sua vida pessoal. Por sua natureza, não pode ser
irrelevante e inútil, embora esse benefício, via de regra, não
seja utilitário (“benefício inútil”) no sentido de ajuda diária
na vida e nem sempre óbvio para a mente. Portanto, segun-
do Dostoiévski, é preciso dar à arte a oportunidade de se de-
senvolver livremente, e então ela encontrará rapidamente as
excelentes formas de maior benefício para um determinado
tempo: “E, portanto, a primeira coisa: não atrapalhe a arte
com objetivos diferentes, não prescreva leis para ela, não a
confunda, porque ela já tem muitas armadilhas e todo tipo
de tentações históricas”. “Quanto mais livre se desenvolver,
mais normalmente se desenvolverá e mais cedo encontrará
seu caminho real e útil”.
A arte se desenvolve de acordo com as mesmas leis do
homem - de acordo com as leis da natureza, portanto, em sua
essência, não pode se desvirtuar do objetivo principal para
satisfazer as necessidades estéticas do homem. Se repentina-
mente e temporariamente houver um desvio do objetivo, é
necessário “voltar imediatamente”. “Beleza é normalidade,
saúde. A beleza é útil porque é bela, porque na humanidade
existe uma necessidade perene da beleza e de seu ideal mais
elevado”6.
Tendo estabelecido a beleza como o fundamento de
qualquer arte real, Dostoiévski não permanece em uma posi-
ção puramente estética. Ele também reconhece a maioria das
funções mais específicas da arte, que eram bastante desen-

6 Anotação de Dostoiévski em “Notas sobre a literatura russa (Записки о


русской литературе)

7
volvidas pela estética de sua época. Em particular, ele admira
a arte, na qual o espírito da época, que se tornou o sujeito
da imagem, expressa-se por meios artísticos. Defendendo as
“noites egípcias” de Pushkin daqueles que condenam este
estudo por seu conteúdo supostamente vergonhoso, Dostoié-
vski prova que também pode “causar uma impressão artística
pura” nas pessoas que sentem corretamente a arte. Ele está en-
cantado com a forma de Pushkin de transmitir artisticamente
a atmosfera da sociedade romana tardia, atolada na busca por
formas sofisticadas de sensualidade instigante, para a expia-
ção de cujos pecados Cristo veio à terra.

Gelada de alegria, a rainha solenemente pronuncia o seu


juramento... Não, nunca a poesia alcançou tamanha for-
ça, tamanha concentração na expressão do pathos! Pela
expressão desse deleite infernal da rainha, o corpo esfria,
o espírito congela ... e fica claro para você a que tipo de
pessoa nosso divino Redentor veio. Você também entende
a palavra: redentor.7

Parece que nenhum estudioso profissional de Pushkin


tirou tal conclusão de Noites Egípcias8. Somente na corren-
te principal de uma consciência cristã livre, geneticamente
baseada na exegese patrística (em particular, na exegese do
Cântico dos Cânticos), tal compreensão do erotismo poético
de Pushkin é possível e até logicamente inevitável. A filosofia

7 Anotação de Dostoiévski em “Notas sobre a literatura russa (Записки о


русской литературе)
8 Conto de Alexander Pushkin

Estética teúrgica Russa


da arte de Dostoiévski, sem dúvida, está neste canal, embora
no nível do gabo até o próprio Dostoiévski. Frequentando a
igreja e recebendo regularmente a comunhão, Dostoiévski ex-
pressou repetidamente dúvidas sobre a correção de sua com-
preensão do Cristianismo - a correção de sua expressão em
seu trabalho.
Dostoiévski acreditava que a arte em sua verdadeira
essência não é acessível a todos que de repente entram em
contato com ela. Para seu correto e completo entendimento, é
necessário um certo nível de desenvolvimento cultural e uma
preparação adequada especificamente para a percepção da
arte. Assim, famosas estátuas como a de Vênus de Milo, po-
dem evocar nas pessoas pensamentos grosseiros, “sedutores”
e sujos, embora, como obras de gênio, sejam extremamente
castas e “causem uma impressão divina e elevada” em todos
os que são capazes de perceber a arte corretamente.
A arte não é uma cópia nua da realidade, não é uma
fotografia dela, mas apenas uma observadora; Dostoiévski
confirma isso com o exemplo da pintura de Jacobi “A Festa
dos Prisioneiros em Repouso”, exibida na Academia de Artes
em 1860-1861. O artista recebeu por ela uma medalha de ouro
e, diante dela, a exposição ficou lotada com o maior número
de espectadores.
Dostoiévski, tendo examinado com bastante cuidado,
mostra que o público realmente vê os prisioneiros no quadro,
“Era como se eu os visse, por exemplo, em um espelho ou em
uma fotografia. Mas isto é precisamente a ausência de arte. A
fotografia e o reflexo no espelho estão longe de serem obras
de arte” - diz Dostoiévski

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Do artista, porém, é necessário, enfatiza Dostoiévski,
algo significativo e mais profundo do que a «precisão
mecânica» na transferência de detalhes. A precisão é
necessária como princípio elementar, mas para conseguir na
sua criação a transmissão da «verdade artística», que o cria-
dor de “O Idiota” distingue da “verdade natural”, o artista
deve mostrar a vida na sua vitalidade.
Isso se dá quando o autor concede a oportunidade de
manifestar na obra sua atitude para com o fenômeno retrata-
do. O caráter pessoal da arte é o indicador mais importante
da mesma, ou seja, a autenticidade. Um verdadeiro mestre
simplesmente não é capaz de representar a vida mecanica-
mente: “Seja na pintura, escrita ou em uma peça musical, o
autor certamente será visto; ele se refletirá involuntariamente,
e mesmo contra sua vontade, o autor se expressará com todas
as suas opiniões, personalidade e com o grau de seu desen-
volvimento”. Isso é tão óbvio para Dostoiévski que ele não
considera necessário recorrer a provas. Ao mesmo tempo, a
arte exclui o didatismo primitivo.
O modelo de um artista verdadeiramente brilhante para
Dostoiévski foi Pushkin, no qual viu grandes profundezas ar-
tísticas e uma compreensão plena da qual a humanidade só
chegará no futuro. “Em minha opinião, ainda não começamos
a reconhecer verdadeiramente Pushkin; é um gênio que ultra-
passou a consciência russa por muito tempo”9.

9; 8 Anotação de Dostoiévski em “Notas sobre a literatura russa (Записки


о русской литературе)

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Estética teúrgica Russa


Em Pushkin, “até mesmo nossas futuras ações tornam-
-se claras para nossa mente. O espírito e o pensamento russo
não eram expressados apenas em Pushkin, mas somente nele
nos apareciam por inteiro, apareciam como um fato, completo
e integral”10.
Dostoiévski enfatizou repetidamente a natureza pro-
fética e providencial da obra de Pushkin, que ele via prin-
cipalmente na expressão artística do espírito do humanismo
cristão, nas formas, em sua opinião, características do povo
russo. Na imagem de Aleko Fyodor de Pushkin, Mikhailovich
vê precisamente o símbolo do “sofredor russo”, um andarilho
por sua terra natal; este último também o relaciona com a ima-
gem de Onegin11. No espírito e na aparência há um chamado
à humildade, para encontrar a verdade em seu mundo interior.
Além disso, Onegin é uma imagem brilhante de um “embrião
moral”, enquanto Tatiana é o ideal de uma mulher russa que
encontrou a felicidade “na mais alta harmonia de espírito”.
É por isso que Pushkin a retratou em poesia, inatingível em
beleza e profundidade.
Em todos os lugares, Pushkin pode ouvir uma crença
do caráter russo em seu poder espiritual, mas ele não é de for-
ma alguma um nacionalista, ao contrário, é a pessoa mais re-
ceptiva a outras culturas e povos na literatura russa. É sensível
ao espírito das “nacionalidades estrangeiras” e transmite-o de
forma brilhante nas suas obras. É precisamente nessa sensi-
bilidade que Dostoiévski vê a verdadeira nacionalidade russa

10 Anotação de Dostoiévski em “Notas sobre a literatura russa (Записки о


русской литературе)
11 Onegin é um romance escrito por Alexandre Pushkin

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de Pushkin e o significado profético de sua arte. O venerável
escritor está convencido de que a principal característica do
personagem russo é sua abertura a todos os povos e nacio-
nalidades, sua atitude amigável para com eles e sua luta pela
unidade universal. “Sim, o propósito do russo é indiscutivel-
mente europeu e universal. Tornar-se um verdadeiro russo ou
tornar-se completamente russo, talvez, signifique apenas (no
final) se tornar um irmão de todas as pessoas, um ser humano
universal12”.
Dostoiévski considerou o eslavofilismo russo, assim
como o ocidentalismo, um grande mal-entendido. Para um
verdadeiro russo, a Europa está tão perto quanto a Rússia;
“Nosso destino é a universalidade, e não adquirida pela espa-
da, mas pelo poder da fraternidade em uma luta pela reunifi-
cação dos povos”13. Os povos da Europa, acreditava Fiódor,
nem mesmo suspeitam do quanto são caros a nós, os russos,
mas o exemplo de Pushkin pode convencê-los disto. Foi ele
quem conseguiu materializar a ideia profética em sua obra
com extraordinária força artística.
Sua essência reside no fato de que as futuras gerações
de russos estão plenamente cientes do propósito unificador
universal da alma russa, que será capaz de “acomodar todos
os nossos irmãos nela com amor fraterno e, no final, talvez,
proferir a palavra final de grande harmonia comum, com um
consentimento final fraterno de todas as tribos de acordo com

12; 13 Discurso de Pushkin por F.M. Dostoiévski. Pronunciado em 8 de


junho de 1880 em uma reunião da Sociedade dos Amantes da Literatura
Russa.

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Estética teúrgica Russa


a lei do evangelho de Cristo!”. Percebendo alguma utopia
e natureza fantástica dessas palavras entusiásticas, Dostoié-
vski está, no entanto, convencido de sua verdade, e o principal
fiador para ele a esse respeito é a “universalidade e toda a
humanidade” do gênio Pushkin, que, pelo menos na criação
artística, “mostrou esta aspiração mundial do espírito russo
que é inegável”.
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