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A Igreja e a surpreendente ofensa do amor de Deus

Reintroduzindo as doutrinas sobre a membresia e a disciplina da Igreja

Traduzido do original em inglês The Church and the Surprising Offense of God’s Love: Reintroducing the Doctrines of
Church Membership and Discipline
Copyright © 2010 by 9Marks


Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers
1300 Crescent Street
W heaton, Illinois 60187, U.S.A
Copyright©2012 Editora FIEL
Primeira Edição em Português 2013

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PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA
DOS EDITORES, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.


Diretor: James Richard Denham III.
Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Waleria Coicev Revisão: Gustavo Nagel Capa e Diagramação:
Rubner Durais Ebook: Yuri Freire ISBN: 978-85-8132-212-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Leeman, Jonathan
A Igreja e a surpreendente ofensa do amor de Deus:
reintroduzindo as doutrinas sobre a membresia e a
disciplina da Igreja / Jonathan Leeman; [tradução
Waleria Coicev]. -- São José dos Campos, SP : Editora
Fiel, 2014.
2Mb ; ePUB

Título original: The church and the surprising


offense of God’s love.
ISBN 978-85-8132-212-4
1. Disciplina eclesiástica 2. Membros da Igreja
I. Título.

13-09970 CDD-262.8

Caixa Postal, 1601


CEP 12230-971
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
“O que acontece quando juntamos um dos assuntos mais mal
compreendidos (o amor) a uma das práticas mais ignoradas pela igreja de
hoje, a disciplina de seus membros? Acontece um livro como este. Ao
contrário da geração criada sob os conselhos do Dr. Spock a respeito da
educação infantil, o Bom Pastor cuida de seu rebanho por meio de uma
disciplina amorosa. Há muito a ser dito, hoje em dia, sobre o discipulado
radical, mas o que mais precisamos é de um discipulado mais habitual, por
meio do qual possamos perceber não só na teoria, mas também na prática,
o que significa ser conformado à imagem de Cristo. Este é o melhor livro
que vi sobre o assunto nos últimos tempos”.

Michael Horton, Professor da Teologia Sistemática de J. Gresham Machen e


Apologética no Seminário de Westminster, na Califórnia.
Ao Mark,
que me ensinou muito do que aqui está,
e ao Matt,
que me deu a chance de dizer isso.
SUMÁRIO

Apresentação
Agradecimento
Introdução

PARTE 1 – O AMOR MAL DEFINIDO

Capítulo 1 | A Idolatria do Amor

PARTE 2 – O AMOR REDEFINIDO

Capítulo 2 | A Natureza do Amor


Capítulo 3 | O Governo do Amor
Capítulo 4 | O Alvará do Amor
Capítulo 5 | A Aliança do Amor

PARTE 3 – O AMOR VIVIDO

Capítulo 6 | A Afirmação e o Testemunho do Amor


Capítulo 7 | A Submissão e a Liberdade do Amor
APRESENTAÇÃO

Num mundo caído como o nosso, o amor cristão nunca aparece


espontaneamente. Ele jamais aparece por meio de um simples sentimento. Por mais
que isso pareça surpreendente para nós, o amor cristão envolve fé, uma fé que nos
é impossível sem a obra miraculosa do Espírito Santo.
O apóstolo Paulo escreveu: “Considero tudo como perda, comparado com a
suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi
todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo.” (Fp 3.8 —
NVI)Considerar tudo como perda ou esterco envolve esforço e abnegação. É certo
que o fato de considerar ou reputar as coisas dessa forma é o contrário de amar.
Para nós, amor é prazer. Nós associamos o amor com felicidade, família, amigos e
lar. Pensamos que o amor é familiar por sua própria natureza. Ele é autoevidente e
imediato. O amor, por sua própria natureza, revela a si mesmo. Nesse sentido,
pensamos que amar é simples.
Jonathan Leeman está prestes a desafiar todas essas noções de amor, e o meu
palpite é que ele as desafiará com êxito, se você ler até o fim do livro. E ainda há a
noção de ofensa. Temos hoje em dia uma relação mista com a ideia de ofensa.
Podemos ofender os outros, não temos problemas com isso. Mas muitas pessoas
decididamente não gostam da ideia de que Deus se ofende, e muito menos se por
nossa causa. E certamente não associamos ofensa com amor.
Nesse ponto, Jonathan está nos levando para outra esfera — uma antiga esfera
— com compromissos, relacionamentos e questões sobre o certo e o errado bem
mais definidas do que as definições com as quais estamos acostumados hoje. Essas
ideias já foram familiares outrora. Não sei como você lida com novas culturas, mas
existe uma situação de desconforto que muitas pessoas têm que superar quando se
mudam para uma nova cultura. Meu palpite é que alguns de vocês terão uma
sensação parecida ao ler sobre o amor e sobre como ele pode ser ofensivo de forma
real e verdadeira, e até mesmo como ele precisa ser ofensivo de vez em quando. Mas
a esfera para a qual Jonathan está nos levando é bela, frutífera, fiel e bíblica, e
reflete o caráter de Deus.
À medida que começamos a entender mais sobre Deus e seu caráter, passamos a
perceber que o amor de Deus nos envolve na abnegação. E o fato de compartilhar o
amor de Deus com os outros nos envolve na disciplina, até mesmo na disciplina da
igreja. Como podemos amar as pessoas e não tratá-las da mesma forma que Paulo
tratou o homem adúltero de 1 Coríntios 5, que a si mesmo se enganava? Como
podemos amar as pessoas que pecam contra nós e não tratá-las do modo como
Jesus nos instruiu, em Mateus 18? Não estou dizendo que isso tudo é fácil ou
simples (é por isso que você está segurando não apenas este prefácio, mas um livro
inteiro)! Mas o fato de chegar a entender o que a disciplina na igreja tem a ver com
amor pode abalar o seu mundo. Pode até mesmo salvar sua alma.
Visto que Jonathan nos mostra tudo isso, não deveríamos ficar tão surpresos ao
descobrir que, à medida que avançamos, aprofundamo-nos no ensino bíblico sobre
a membresia da igreja. “A Bíblia ensina sobre a membresia da igreja?” — você
pergunta. “Onde?” E quando você estiver fazendo essa pergunta, penso que estará
pronto para começar a ler este livro.
Um banquete cuidadosamente preparado está diante de você. Eu conheço
Jonathan há mais de uma década. Ele tem me encorajado, provocado, divertido e
surpreendido. Colaborar com ele na escrita de materiais úteis aos pastores é uma
das minhas alegrias na vida. Jonathan tem uma mente inquieta e curiosa, que lhe
foi dada por Deus, em partes, para escrever este livro, e assim ser capaz de nos
apresentar a um mundo pelo qual ele tem sido fascinado e tem considerado com
mais profundidade do que qualquer outra pessoa que eu conheça.
Este livro é a melhor coisa que já li acerca da membresia da igreja. Não posso lhe
fazer uma recomendação melhor. Leia-o e o aproveite, agradecendo a Deus pelo
dom de Jonathan. E pelo dom do amor de Deus, que suportou a ofensa — para o
nosso espanto e deleite eternos.

Mark Dever,
Washington D.C.,
31 julho de 2009.
AGRADECIMENTOS
Minha maravilhosa esposa, Shannon, apoiou-me em humildade, de um
modo semelhante a Cristo, à medida que eu gastava muitos meses e longas horas
escrevendo este livro ou andando pela casa com minha mente fixa nele. Por essa
razão, ela merece ser mencionada em primeiro lugar. Obrigado, meu amor, por todo
o seu trabalho, oração e afeição. Sou muito grato por você.
Matt McCullough e Bobby Jamieson leram todo o rascunho inicial deste livro, e
Robert Cline e Tom Schreiner leram dois capítulos. Todos vocês o melhoraram.
Obrigado, irmãos. Agradeço também a Josh Coover, meu colega, pelo
encorajamento e pelo interesse ao longo desse projeto e também por ter sido
paciente comigo à medida que eu frequentemente pisava na bola em outras
questões no trabalho!
Sou grato a Al Fisher e a Crossway pela disposição da equipe em dar uma chance
para um autor principiante como eu. Agradeço também a Lydia Brownback, uma
editora complacente, paciente e ajudadora.
O leitor deve saber que Mark Dever forneceu a ideia original para este livro, ou
seja, ele concentrou o tópico sobre membresia e disciplina da igreja na ideia do
amor. Ele fez o mesmo no capítulo que escreveu sobre membresia da igreja.1 Eu
simplesmente enriqueci seu tema. Obrigado por isso e por muito mais, irmão.
Meu imenso agradecimento a Matt Schmucker por seu tempo e paciência
enquanto eu trabalhava neste projeto. Matt é um homem humilde, que dedica sua
vida a providenciar oportunidades para os outros. Sou privilegiado por me
beneficiar regularmente de sua liderança, sabedoria e, o melhor de tudo, de sua
amizade.
Finalmente, talvez a Igreja Batista de Capitol Hill mereça a maior parte do
crédito por moldar o coração e a mente daquele que escreveria sobre essas questões
específicas aqui apresentadas. Minha oração é para que este livro seja útil para
muitos. Por mais extenso que ele seja, o leitor deve entender que nenhuma página
dele teria sido escrita sem a instrução e o amor dessa igreja.

1. Mark Dever, “Regaining Meaningful Church Membership” [Recuperando Significativamente a


Membresia da Igreja] in Restoring Integrity in Baptist Churches [Restaurando a Integridade nas Igrejas
Batistas], Ed. Thomas W hite, Jason G. Deusing e Malcolm B. Yarnell III (Grand R apidis: Kregel. 2008),
45-62.
INTRODUÇÃO
O MEIO É A MENSAGEM

O meio é a mensagem. Você já ouviu essa frase? Ela foi dita pela primeira vez
por um estudioso das mídias, o canadense Marshall McLuhan, em 1964, e significa
simplesmente que o meio pelo qual uma mensagem é comunicada afeta seu próprio
conteúdo. Por exemplo, ler acerca de uma batalha estrangeira no jornal é diferente
de assisti-la pela televisão. O primeiro é uma notícia; o segundo, além de ser notícia,
é um espetáculo.
A frase de McLuhan é apenas mais uma forma de descrever o relacionamento
simbiótico entre a forma e o conteúdo. Pergunte a qualquer poeta, artista,
arquiteto e eles lhe garantirão que a forma de algumas coisas afeta o seu conteúdo,
e o conteúdo afeta a sua forma. Um ambiente com teto alto e abobadado, colunas
maciças e com luz natural sendo emitida através de janelas com vitrais coloridos
comunica um tipo de mensagem; ao passo que um lugar com paredes brancas de
gesso, um teto falso, luzes fluorescentes e fileiras de baias acinzentadas comunica
outro. É certo que essas formas e suas mensagens estão culturalmente
condicionadas, mas meu argumento é simplesmente o de que há uma ligação entre
a forma e o conteúdo — em todas as culturas.
Há uma relação semelhante a essa na vida de qualquer organização quando
comparamos o propósito pelo qual ela existe, o que poderíamos classificar como a
mensagem e a estrutura dessa organização, ou seja, o seu meio. Como um
fabricante de automóveis se organiza da melhor maneira para vender carros? Como
um exército se organiza da melhor maneira para defender a nação? Como um grupo
de militância política se organiza da melhor maneira para defender sua mensagem?
O propósito ou mensagem de uma organização afetará a sua estrutura, e sua
estrutura, em contrapartida, moldará sua mensagem ou propósito.
Imagine que três crentes, que estão sentados para tomar café, decidam começar
uma organização cujo propósito é definir o amor de Deus para o mundo. Essa é a
mensagem ou conteúdo da organização. Eles querem que ela diga a todos, em toda
parte: “Aqui está o amor de Deus, e ele é desse jeito.” É claro que essa mensagem
sobre o amor de Deus não é outra, senão o evangelho de Jesus Cristo: “Nisto
consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos
amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” (1 Jo
4.10)Sendo assim, os três crentes concordam que sua organização existe com esse
propósito. E todos concordam, a princípio, que a estrutura de sua organização não
só afetará o modo como eles poderão realizar esse propósito, mas também terá
potencial para moldar a própria mensagem. Por exemplo, uma organização
autoritária que diga: “Deus é amor”, comunicará ao mundo, com efeito, uma
mensagem diferente da mensagem de uma organização igualitária que diga: “Deus é
amor”.
O problema é que os três crentes discordam sobre como abordar a questão da
estrutura. Um deles observa que as pessoas em diferentes países e culturas podem
exigir diferentes tipos de estruturas. Assim, ele utiliza demasiadamente a palavra
“contextualizar” e conclui que a estrutura da organização precisa ser flexível e
adaptável. O segundo crente acha que a conversa a respeito da estrutura é
interessante, mas, no fim, conclui que não é isso o que importa, o que importa é
divulgar a mensagem. O terceiro crente, no entanto, acha que isso é extremamente
importante. Ele insiste que os outros dois, com suas soluções, desconsideraram o
problema, apesar de haverem concordado, da boca para fora, com o fato de que
existe uma ligação entre forma e conteúdo. E, além disso, ele sugere que Deus
ordenou determinada estrutura na Bíblia, em vez de outra, e que essa estrutura
combina perfeitamente com a própria mensagem, quase como se ela fosse uma
consequência vital da mensagem, como o DNA produzindo o esqueleto de um
corpo; e que é exatamente essa estrutura que Deus tem a intenção de usar para
realizar o propósito da organização — definir o seu amor para o mundo. Essa é a
sua maneira de proteger a mensagem, mantê-la em exposição, torná-la atraente e
colocá-la em ação.
Este livro apresenta essencialmente o argumento desse terceiro crente. A
estrutura da vida coletiva da igreja está intimamente ligada ao conteúdo do
evangelho, e o conteúdo do evangelho está intimamente ligado à estrutura da vida
coletiva da igreja. Elas moldam uma à outra, e uma coisa resulta na outra. Este livro
não tenta abranger todos os aspectos da estrutura da igreja. Seu foco está
principalmente nas questões acerca da membresia e da disciplina da igreja local.
Numa linguagem que é popular entre os evangélicos de hoje, alguém poderia
dizer que as práticas em relação à membresia e à disciplina da igreja local são
resultado do evangelho. Não basta simplesmente dizer que “a igreja” é resultado do
evangelho. É a igreja, de uma forma específica e diferenciada, que é resultado da
mensagem. A membresia e a disciplina não são estruturas erigidas artificialmente.
Elas não são imposições judiciais sobre a nova aliança da graça. Elas são uma
consequência vital e inevitável da obra redentora de Cristo e do chamado do
evangelho para o arrependimento e a fé. Omitir a membresia da igreja local é como
omitir o fato de que os crentes são chamados para buscar as boas obras ou amar ao
próximo, ou cuidar dos pobres, ou orar a Deus, ou seguir no caminho de Cristo.
Submeter-se a uma igreja local é o que um verdadeiro crente faz, assim como um
verdadeiro crente busca as boas obras, ama o seu próximo e assim por diante.
Alguém que se recusa a se unir — ou melhor, a se submeter — a uma igreja local é
como alguém que se recusa a buscar uma vida de justiça. Isso põe em xeque a
autenticidade de sua fé.
À medida que o evangelho presenteia o mundo com um exemplo mais vívido do
amor de Deus, e à medida que a membresia e a disciplina da igreja são resultados do
evangelho, a membresia e a disciplina da igreja local, de fato, definem o amor de
Deus para o mundo. Em apenas uma frase, esse é o argumento deste livro. Ao longo
dele, observaremos que as mesmas coisas que nos ofendem com relação à
membresia da igreja se originam nas coisas que consideramos ofensivas em relação
ao próprio amor de Deus.
O que é impressionante, portanto, é como a maioria dos evangélicos tem lançado
a questão da estrutura da igreja na categoria das coisas não essenciais e,
consequentemente, sem importância. Dizemos que o evangelho é importante, até
mesmo essencial, mas não a estrutura da igreja. E, visto que as questões sobre a
estrutura da igreja apenas dividem os crentes, assim como dividiu aqueles
indivíduos que estavam sentados para tomar café, é melhor desconsiderá-las
totalmente. Certo?
Mas e se isso estiver errado? E se Deus, em sua sabedoria, de fato tiver revelado
tanto o conteúdo quanto a forma; tanto a mensagem quanto o meio; tanto o
evangelho quanto o sistema de liderança, de modo que uma coisa combine
perfeitamente com a outra? O fato de lançar as questões sobre a estrutura da igreja
na categoria das “coisas sobre as quais os evangélicos respeitáveis não devem ter
opiniões categóricas” não arruinaria consequentemente o próprio evangelho?

DE DEUS PARA O EVANGELHO E DO EVANGELHO PARA A IGREJA Eu


creio que o que precisamos verdadeiramente é de uma teologia
sistemática sobre a membresia e a disciplina da igreja. Precisamos
considerar como as práticas sobre a membresia e a disciplina da igreja
local se encaixam nas questões mais abrangentes sobre o amor de Deus, o
julgamento de Deus, a autoridade de Deus e o evangelho. Ao pensarmos
ou escrevermos sobre a igreja, é fácil errarmos numa direção por
omitirmos as questões acerca do sistema de liderança. É fácil também
errarmos na direção contrária, pulando rapidamente para os nossos
textos-prova preferidos sobre presbíteros e diáconos, sobre a Ceia do
Senhor ou a disciplina da igreja, sem no entanto considerar
cuidadosamente o contexto teológico mais amplo.
A própria doutrina da igreja deveria informar, por meio de todas as outras coisas,
o que sabemos sobre Deus, seu amor e seu plano de salvação2. Ela deve refletir tudo
o que sabemos sobre o amor e a santidade de Deus; sobre o fato de a humanidade
ter sido criada à imagem de Deus e ter caído em culpa e corrupção; sobre a vida sem
pecado que Cristo teve, sua morte sacrificial, sua ressurreição vitoriosa, sobre a
imputação de sua própria justiça aos pecadores e sobre a vida estar sujeita ao
governo que ele inaugurou, por meio do arrependimento e da fé.
Embora eu creia que seja teologicamente problemático nos referirmos à igreja
como “uma continuação da encarnação de Cristo”3, como alguns teólogos têm
feito4, sou complacente com a tendência de se usar a linguagem da encarnação para
descrever a igreja: a igreja é precisamente onde cada doutrina é encarnada ou
personificada. A igreja é onde todas essas doutrinas são postas em ação.
O teólogo John Webster apreende bem o princípio vital do que estou querendo
dizer, quando afirma: “A doutrina a respeito da igreja só pode ser tão boa quanto a
doutrina a respeito de Deus que forma a sua base.”5 Não podemos entender o que
ou quem a igreja é se não entendermos primeiramente quem Deus é. A mesma
relação permanece entre a nossa doutrina do evangelho e a nossa doutrina da
igreja. Webster também escreve:
“É uma... preocupação especial para a eclesiologia evangélica demonstrar não apenas que a igreja
é uma consequência necessária do evangelho, mas também que o evangelho e a igreja existem
numa ordem estrita e irreversível, uma ordem na qual o evangelho antecede a igreja e a igreja
sucede o evangelho.” 6

Em outras palavras, não poderemos entender o que ou quem a igreja é se não


entendermos primeiramente o que é o evangelho de Deus.
Em certo sentido, todo este livro é um esforço para desenvolver esses dois
comentários de Webster. Especificamente, ele argumentará que a nossa
compreensão acerca de Deus e do evangelho afetará a forma como vemos as
questões estruturais ou institucionais sobre a membresia e a disciplina, e a forma
como as igrejas tratam essas questões estruturais, por sua vez, afetará o modo
como o mundo vê o amor e o evangelho de Deus.
Por exemplo, imagine que consideremos Deus como santo, mas não muito
amoroso. Isso teria algumas implicações bem evidentes para a nossa doutrina da
salvação e sobre como os seres humanos devem se aproximar de Deus ou sobre
como Deus deve se aproximar deles. Supondo que ele os chamou para algum tipo de
vida coletiva, isso traria implicações extras para a forma como esses humanos
organizariam essa vida. Francamente, minha suposição é que junto com esse Deus
“santo, mas não amoroso” a estrutura, o sistema e o plano de liderança se tornarão
um assunto de máxima importância. Essa seria uma religião muito severa,
desagradável, legalista e farisaica. Um quadro assustador. Seria mais provável que o
mundo rejeitasse esse Deus e preferisse definir o amor da sua própria maneira.
Imagine, como alternativa, que Deus não fosse tão santo, mas fosse muito
amoroso. Se eu pudesse supor isso, esperaria que esse Deus sem santidade, mas
amoroso, fosse completamente tolerante, excêntrico, temperamental e até
perigoso. A salvação seria indiscriminada e não seria totalmente justa. E a vida
coletiva dessas pessoas não seria diferente da do mundo. Essa religião seria cada vez
mais libertina, superficial, sem significado, sem direção e grosseiramente
narcisista. Novamente, um quadro assustador. Uma parte do mundo ficaria mais do
que feliz em aceitar esse Deus totalmente humano, pois ele se pareceria com eles.
Outros, devido ao fato de ele se parecer muito com eles, poderiam pensar: “Para que
me preocupar?”
Mas e se Deus fosse santo e também amoroso? Como esse Deus se relacionaria
com a humanidade? Que tipo de evangelho seus profetas proclamariam? Que tipo
de igreja seus apóstolos edificariam? Eles traçariam limites e estabeleceriam planos
de liderança?
Imagino que a maioria dos pastores, líderes eclesiásticos e crentes logo
afirmariam: “É claro que acreditamos num Deus que é santo e também amoroso.”
Mas e se a compreensão que uma pessoa tem sobre o amor de Deus estiver errada?
E se, de fato, a compreensão que uma pessoa tem sobre o amor for manifestamente
idólatra e pecaminosa? Como uma concepção idólatra sobre o amor afetaria a
compreensão que essa pessoa teria sobre Deus, sobre o evangelho e,
consequentemente, sobre a igreja?

O QUE O AMOR TEM A VER COM ISSO?


Em primeiro lugar, portanto, este é um livro a respeito da membresia e da
disciplina da igreja. É uma teologia sobre a membresia e a disciplina, e um
argumento a respeito de quão vitais são as práticas de membresia e disciplina para
um cristianismo bíblico, para a vida da igreja, para a obra da igreja de fazer
discípulos e exibir a glória de Deus ao mundo.
Mas este livro diz respeito a algo mais do que apenas membresia e disciplina. Ele
diz respeito ao amor. O mundo acha que compreende o amor, assim como acha que
ama a Deus. No entanto, não faz isso. Ele só compreende ilusões idólatras ou
invenções sobre essas coisas; sombras que exibem um pouco de sua forma, mas
pouco de sua essência. A igreja local, portanto, é chamada para ser uma
demonstração tridimensional do verdadeiro amor. E as práticas da membresia e da
disciplina da igreja são exatamente o que ajudam a tornar a igreja local visível e
evidente. Elas demonstram as exigências do amor. Elas nos ajudam a conhecer,
usando a frase do apóstolo João, quem são “os filhos de Deus e os filhos do diabo”
(veja 1 Jo 3.10). A membresia e a disciplina da igreja fornecem a estrutura ou a
configuração do que significa ser cristão — uma pessoa que demonstra o amor de
Deus. Elas ajudam a distinguir a igreja do mundo, de modo que o mundo possa
olhar e ver algo nela, mas não dela mesma. Poderia essa marca de distinção ser
talvez uma ação amorosa principalmente para os de fora? Eu argumentarei que sim,
principalmente se um dos alvos da igreja for oferecer aos de fora a esperança de que
eles mesmos possam ser incluídos em algo divinamente amoroso e divinamente
belo.
Quando a linha divisória entre a igreja e o mundo se torna obscurecida, o plano
de Deus para uma comunidade amorosa, perdoadora, caridosa e santa se torna
menos evidente. Mas essa linha obscurecida é por si só uma consequência de outra
linha obscurecida — a linha entre o criador santo e a criatura caída, entre o Deus
amoroso e o homem idólatra. Isso nos diz que muitos dos escritores que exigem
hoje uma concepção menos “institucionalizada” e “delimitada” da igreja local são os
mesmos escritores que preferem o Deus imanente em vez do Deus transcendente,
o Jesus humano em vez do Jesus divino e uma Bíblia humana em vez de divina. Nós
fornecemos panos para apagar a linha divisória entre a igreja e o mundo quando nos
convencemos não de que somos a imagem de Deus, mas sim de que Deus é a nossa
imagem e tem se misturado com a nossa idolatria por causa de seu amor. Dizendo
de outro modo, conclui-se que uma visão deficiente sobre o amor e a igreja está
arraigada numa visão deficiente sobre Deus e seu amor.
Deixe-me resumir a questão dessa maneira: meu argumento para a membresia e
a disciplina da igreja é o de que haja um limite evidente entre a igreja e o mundo, tão
evidente quanto os limites entre o lado de dentro e o de fora do Éden, de dentro e de
fora da arca, de dentro e de fora do arraial israelita, de dentro e de fora dos muros
de Jerusalém. Todavia, o que se interpõe no caminho da nossa agilidade — como
cristãos e igrejas de um Ocidente pós-moderno — em seguir o chamado bíblico para
que essa linha exista é a nossa concepção distorcida, sem santidade, sem verdade e
sem sabedoria acerca de Deus e do amor de Deus. Recuperar uma compreensão
bíblica a respeito da igreja e de seus limites exige, portanto, que reconsideremos o
que é o amor e o que são esses mesmos limites da igreja que ajudam a definir o que
é o amor para o mundo.

UMA HISTÓRIA DE “AMOR”


Existem inúmeras razões sociológicas e teológicas para que os primeiros dois
crentes da minha conversa imaginária acima reagissem em relação à questão da
estrutura organizacional do modo como reagiram, um dizendo que essa estrutura
precisa ser flexível e o outro dizendo que isso não importa. E, visto que essas duas
reações são comuns e estão profundamente arraigadas na mentalidade ocidental,
vale a pena gastar algum tempo estudando arduamente as pressuposições que estão
por detrás delas.
No ensino médio, li uma história de amor que demonstra bem a essência do
porquê é tão difícil para os crentes perceberem a relação entre o amor e a
membresia e a disciplina da igreja. Na verdade, os estudantes americanos têm lido
essa história por mais de um século, o que indica algo sobre o quão bem isso reflete
os aspectos de nossa consciência cultural. Essa história de amor começa numa
manhã ensolarada de verão, com cinco mulheres de pé num gramado, do lado de
fora da cadeia de uma cidade. A data não é especificada, mas isso se dá em algum
período do século XVII. O lugar é uma pequena colônia puritana na Nova Inglaterra,
conhecida por Boston. A ação começa com uma mulher de cinquenta anos, de
feições grosseiras, dando uma bronca em outras quatro mulheres:
Prezadas senhoras, eu lhes darei uma repreensão. Seria evidentemente um benefício para a
sociedade se nós, mulheres, sendo de idade madura e membros bem reputados da igreja,
recebêssemos a responsabilidade de lidar com uma malfeitora7 como essa Hester Prynne. O que
vos parece, fofocas? Se essa impudente estivesse de pé diante de nós cinco para um julgamento,
ela teria saído com uma sentença tal qual a que os respeitáveis magistrados concederam? Penso
que não8.

A assim chamada impudente, Hester Prynne, havia cometido adultério, um


crime comprovado pela filha criança aconchegada em seus braços, dentro da prisão.
Nessa manhã em especial, os magistrados da cidade haviam decidido que Hester
sairia de sua cela, prosseguiria até o palanque da cidade e receberia várias horas de
escárnio público por causa de seu pecado. Ao longo do caminho, e pelo restante de
seus dias, ela seria obrigada a usar um bordado escarlate com a letra “A” — de
adúltera — em seu peito.
O escândalo deixa toda a igreja ansiosa. O pregador da igreja está consternado.
Uma segunda mulher diz:
As pessoas dizem que o Reverendo Mestre Dimmesdale, seu pastor piedoso, angustiou-se muito
por um escândalo como esse ter acontecido em sua congregação.

Não é apenas o pecado de Hester que escandaliza o bom reverendo e a cidade,


mas o fato de que seu amante, o pai da criança, permanece incógnito. Um hipócrita
é, em geral, algo difícil de engolir numa “terra onde a iniquidade é investigada e
punida à vista dos governantes e do povo”9. A recusa de Hester em revelar a
identidade do pai duplica a sua culpa, e o bando de fofoqueiras barulhentas quer
sangue. Uma terceira matrona comenta:
Os magistrados da cidade são cavalheiros tementes a Deus, mas excessivamente
misericordiosos. No mínimo, eles deveriam ter colocado uma marca de ferro incandescente na
testa de Hester Prynne. A senhora Hester teria se estremecido com isso, eu garanto. Mas ela
— essa impudente perversa — pouco se importará com o que eles colocam sobre o corpete de
seu vestido! Por quê? Porque ela pode cobri-lo com um broche ou algum outro adorno de pagã e
assim caminhar pelas ruas, tão descarada como sempre.

Depois, uma quarta matrona:

Ah, deixe que ela cubra a marca como certamente cobrirá, mas o tormento dessa marca estará
sempre em seu coração.

Depois, a quinta:

Essa mulher trouxe vergonha sobre todos nós e deve morrer. Não existe lei para isso? Na
verdade há, tanto nas Escrituras quanto no livro de estatutos. Então, deixe que os magistrados
que as tornaram ineficazes agradeçam a si mesmos se suas próprias filhas e esposas se
extraviarem.
Li A Letra Escarlate, romance clássico de Nathaniel Hawthorne, escrito em 1850,
para minha aula de inglês no ensino fundamental. Toda a classe ficou escandalizada
— não com a trágica heroína Hester, mas com a população da cidade. Será que
pessoas como essas realmente existiram? Nós as encaramos com todo o desdém que
elas lançaram sobre Hester. Como elas podiam ser tão hipócritas, cruéis,
ignorantes?
A compaixão de Hawthorne em sua história dificilmente se esconde. Suas
descrições sobre as cinco fofoqueiras faz com que elas pareçam carrancas
monstruosas. Essa última mulher, ele descreve como “a mais feia, bem como a mais
impiedosa dessas juízas autoconstituídas”. Compare a descrição dessa mulher com a
descrição que Hawthorne faz da mulher a quem ela está atacando, Hester. A jovem
Hester
era alta, com uma aparência de perfeita elegância em larga escala. Ela tinha cabelos escuros e
abundantes, tão brilhantes que lançou fora a luz do sol com seu resplendor; e um rosto que,
além de ser lindo pela simetria dos traços e vivacidade da pele, possuía uma tenacidade que se
devia a uma sobrancelha marcada e profundos olhos negros... E Hester Prynne jamais havia se
apresentado de forma mais distinta... do que quando deixou a prisão. Aqueles que a haviam
conhecido anteriormente e esperavam contemplá-la ofuscada e obscurecida por uma nuvem
desastrosa ficaram surpresos e começaram a perceber como sua beleza resplandecia,
transformando a desgraça e a ignomínia na qual estava envolvida numa auréola.

O contraste é evidente. O leitor pode simpatizar-se com as mulheres velhas e


impiedosas ou com a auréola resplandecente de beleza de Hester — o que não seria
uma escolha difícil para a maioria das pessoas. Quem não escolheria simpatizar com
Hester? Parece que o emprego de uma bela mulher para “ganhar a venda” não é
uma inovação da nossa época de histeria marqueteira.
O reverendo mencionado pelas fofoqueiras, Arthur Dimmesdale, tem uma
personalidade um pouco mais complexa. Ele aparece como o salafrário secreto que
engravidou Hester e a deixou sozinha para receber o ataque da cidade. Sua covardia
é desprezível e sua hipocrisia é deplorável. Ao mesmo tempo, o seu caráter é mais
compassivo do que maligno. Ele e Hester conversam várias vezes no decorrer do
livro, e em determinado momento planejam fugir e começar uma nova vida juntos.
No entanto, Arthur continua obstinadamente dividido entre suas afeições por ela e
a influência da sociedade sobre ele. O amor o empurra numa direção, a lei da igreja
o empurra para outra. Ninguém, nem o leitor mais impiedoso, pode fazer outra
coisa senão torcer pela libertação dele e a reconciliação de ambos. Enfim, ele está
arruinado por causa do conflito entre o coração e a mente, entre a alma e sociedade.
A ignomínia de Hester a liberta ironicamente das convenções da igreja e do
constrangimento social. Sem jamais ser avarento em seu simbolismo, Hawthorne
coloca sua cabana, caindo aos pedaços, longe da civilização, na floresta selvagem
onde as bruxas agem e os índios dominam, quase como um judeu imundo ou um
cão gentio, forçado para fora do antigo arraial israelita. Todavia é lá longe, além dos
limites da respeitabilidade, que Hester fica livre para amar de modo verdadeiro e
divino. Ela pode perdoar Arthur e seus perseguidores. Ela pode sonhar com um
futuro diferente com ele. Ela pode começar sua ocupação de cuidar dos pobres da
comunidade. Ela pode criar a filha esperta que, no momento culminante do
romance, curvar-se-á para beijar a testa do pai quebrantado, num momento
ardente de graça triunfante.
O AMOR E A ESTRUTURA
Embora um crente tradicional, que estivesse sentado num banco da igreja de
encosto reto, com as mãos cruzadas no colo, pudesse ter considerado que os
românticos dos séculos XVIII e XIX, como Hawthorne, estivessem trabalhando
contra a religião, esses românticos percebiam a si mesmos como pessoas que a
estavam salvando. Eles queriam definir o amor de Deus e os impulsos espirituais da
humanidade independentemente das censuras rígidas da civilização cristianizada,
as quais se originavam das formulações doutrinárias excessivamente elaboradas e
da estrutura eclesiástica repressora.
Se Hawthorne estivesse vivo hoje, ele provavelmente descreveria a si mesmo
com o bem conhecido mantra: “espiritual, mas não religioso”. Sua igreja puritana
romanceada classificava toda transgressão moral concebível e depois entregava essa
classificação aos magistrados, para que eles as cumprissem. O problema não estava
no impulso espiritual ou moral em si, mas no fato de colocar essas coisas numa
estrutura religiosa. Isso era o que hoje podemos chamar de “institucionalismo” —
tratar as variadas regras e sistemas de autoridade de uma organização como sendo
mais importantes do que as próprias pessoas. Quando a espiritualidade e a
moralidade se tornam embutidas na estrutura impessoal e autoritária de uma
instituição, a conformidade a elas deve ser imposta pelos inspetores dessa
instituição. Uma linha bem definida deve ser traçada entre os que são de dentro e os
que são de fora. Qualquer tendência para individualidade ou criatividade deve ser
reprimida pelo temor de transgredir o código. Os homens e as mulheres que
demonstram uma habilidade maior para se conformarem aos códigos da instituição
tendem a ficar endurecidos em posturas hipócritas, enquanto os homens e as
mulheres que são incapazes de se manterem corretos, dentro dos limites, recebem
uma reprimenda ou, pior, a exclusão do grupo. Com tudo isso, a graça e a
misericórdia se esvaem, e o amor e a beleza são eliminados.
Vale a pena notar como Hawthorne opera todos os botões de pânico de nossos
dias: a igreja foi incorporada ao Estado; o que é privado tornou-se público; os
semeadores religiosos de discórdia escarnecem daquela que é jovem, bonita e livre.
Até mesmo a filha inocente se torna indiretamente uma vítima.
Então, sobre que tipo de história de amor A Letra Escarlate é exatamente? É do
tipo que ilustra bem as pressuposições sobre o amor, as quais muitas pessoas
estavam começando a adotar no século XIX, quando Hawthorne escreveu seu livro,
pressuposições que, creio eu, são quase que inquestionáveis hoje em dia. É difícil
explicar essas pressuposições a respeito do amor de forma sucinta. Na verdade,
usarei todo o primeiro capítulo para tentar dar uma explicação sobre isso. Mas
deixe-me tentar fazê-lo resumidamente agora. Nós assumimos não que Deus é
amor, mas que o amor é Deus. Em outras palavras, não comparecemos diante do
verdadeiro criador do Universo e lhe dizemos: “Por favor, diga-nos como o Senhor é
e como o Senhor define o amor.” Em vez disso, começamos com o nosso próprio
conceito autodefinido de amor e permitimos que esse conceito autodefinido
brinque de ser deus. Quando digo “brincar de deus”, quero dizer que deixamos que
esse conceito defina o que é certo e errado, bom e mau, digno de glória e indigno de
glória, mesmo quando esse tipo de avaliação pertence somente a Deus. O amor se
torna o ídolo supremo.
Por exemplo, era “errado” que Hester cometesse adultério? Teria sido errado se
ela e Arthur tivessem fugido e começado uma nova vida juntos, apesar do fato de
ela ser casada com outra pessoa? Ou poderíamos dizer que aquelas mulheres
maldosas da cidade estavam arruinando a vida de Hester com seus julgamentos
farisaicos? O apelo implícito do romance de Hawthorne, e de todas as coisas em
nossa cultura, é: “Não, isso não é errado, porque eles se amam. Ou, mesmo que isso
seja um pouco errado, é justificável, pois o amor cobre os pecados. O amor
justifica!”

Pressuposições a Respeito do Amor


Você consegue perceber as pressuposições que estão sendo feitas com respeito
ao amor, na obra A Letra Escarlate, as quais eu contestaria, e que são absolutamente
inquestionáveis hoje? A primeira pressuposição é que nenhum limite pode ser
estabelecido para o amor. Ao contrário, o amor estabelece todos os limites. Não há
concepção alguma de verdade ou de santidade, ou de sabedoria, para condicionar ou
estruturar tal amor. O amor segue livre, não limitado pela verdade. Na verdade, ele
por si só constitui a verdade e é a fonte da justificação suprema. Podemos justificar
qualquer coisa hoje em dia dizendo que isso foi “amoroso” ou “motivado pelo amor”.
Considere por um momento aquilo que as pessoas entendem por amor hoje em
dia e depois fale sobre o amor entre dois homossexuais. O que as pessoas entendem
por amor quando usam esse termo para justificar o sexo heterossexual antes do
casamento, ou fora do casamento, ou o divórcio? O que elas entendem por amor
quando mimam seus filhos? O que elas entendem por amor quando mudam de uma
igreja para outra ou nunca se sacrificam pelos outros em suas igrejas? É verdade
que o amor é o bem mais grandioso, e é verdade que o amor justifica, mas a
pergunta que permanece é o que — ou quem! — define o amor.
A segunda pressuposição é que, em nossas mentes, o amor está desassociado das
estruturas institucionais e dos atos institucionais de julgamento. Na melhor das
hipóteses, a ideia de instituição é uma ideia fria, impessoal e burocrática. As
estruturas possuem molduras rígidas e arestas. O amor, como sabemos, é flexível,
complacente e pessoal. Na pior das hipóteses, as instituições têm tudo a ver com
poder, não com amor. E os atos institucionais de julgamento — mesmo nas mais
raras circunstâncias em que eles sejam necessários — sempre indicam uma falha do
amor ou uma falha em amar. Eles certamente não são, em sua maioria, atos de
amor. O que é uma instituição ou uma igreja institucionalizada senão uma
autoridade impessoal e indiscriminada que alega falar em nome de Deus e nos diz o
que é certo e errado, quando poderíamos saber, pelos nossos próprios instintos,
que o amor está nos dizendo outra coisa? O que são as instituições e as igrejas
institucionalizadas senão a tentativa de alguns poucos privilegiados tomarem o
poder? Os românticos dos séculos XVIII e XIX queriam ser guiados pelo amor e não
pela estrutura, pelos desejos internos e não pelo constrangimento externo, pelos
impulsos espontâneos e não pela dedução racionalista, pelos sentimentos e não
pelos fatos, pela beleza e pela liberdade e não pela eficiência e pela ordem, pela
sabedoria suada dos dias laboriosos e não pela meditação idolente dos livros de
teologia10. Eu creio que o Ocidente pós-moderno seja caracterizado por tendências
semelhantes a essas. Em nossa mente, a palavra amor e a palavra instituição não
poderiam estar mais distantes uma da outra.
A terceira pressuposição é que amor e igreja não andam juntos, principalmente
uma igreja com limites nítidos e opiniões autoritárias. Hester não era amada pela
igreja. Ela foi perseguida e excomungada. Diga a palavra amor e o pensamento da
maioria das pessoas imediatamente passará para alguma outra categoria, talvez
para o relacionamento entre dois amantes ou para a relação entre pais e filhos, ou
até mesmo para a relação entre um indivíduo e Deus. Mas quantas pessoas hoje
associam o amor com os relacionamentos que subsistem dentro da igreja local?
Geralmente, o caso é exatamente o contrário. As igrejas locais são mais conhecidas
por contendas, maledicências e fanatismo.
Além de todas essas, há mais uma pressuposição que as mentes ocidentais
elaboram acerca do amor: amor e autoridade não têm nada a ver um com o outro. A
autoridade reprime. O amor liberta. A autoridade explora. O amor capacita. A
autoridade rouba a vida. O amor a salva. Essa dissociação entre o amor e a
autoridade não é algo novo. Elas têm estado separadas desde que a Serpente
sugeriu a Adão e Eva que o amor e a autoridade de Deus eram incompatíveis. Eu
argumentaria que o contraste entre o amor e a autoridade chegou a ter um relevo
ainda mais acentuado com o Iluminismo e os românticos contrailuministas, que
compartilharam todo o individualismo autônomo dos racionalistas e classicistas
contra os quais eles estavam reagindo. O que precisamos é de amor — diziam eles.
Não de limites. Não de estruturas ou instituições. Não de autoridade. E, quem sabe,
nem mesmo de igrejas. Essas coisas são os “bandidos” que os românticos como
Hawthorne e nossa cultura de hoje colocam em oposição a este bem supremo
chamado “amor”.
Não há muitos crentes hoje em dia que vão tão longe, ao ponto de dizer que os
crentes não precisam de igrejas, mas durante pelo menos dois séculos inúmeros
escritores têm argumentado que as igrejas precisam ser desinstitucionalizadas. Os
protestantes liberais têm clamado por “mais comunhão” e “menos autoridade
institucional” desde que Friedrich Schleiermacher emprestou essa linguagem dos
românticos para colocar a experiência religiosa em oposição ao que ele via como
formulações doutrinárias do Iluminismo racionalista11. Mais ou menos na mesma
época, um movimento de renovação do Romantismo começou intensamente entre
os escritores católicos romanos, como aqueles que haviam sido influenciados por
Schleiermacher e outros, uma revolução que acabaria por culminar numa série de
mudanças feitas no Concílio Vaticano II12. Os protestantes e os católicos abastados
trabalharam em suas respectivas tradições, com certeza, mas suas doutrinas sobre
a salvação e a igreja começaram a se aproximar uma da outra, em grande parte
porque eles “partilhavam da mesma renovação romântica pós-iluminista”13.
Os evangélicos conservadores têm nutrido essas tendências anti-institucionais
essencialistas pelo menos desde que George Whitefield percebeu que os batistas e
presbiterianos dos Estados Unidos eram mais favoráveis à sua obra de avivamento
do que seus próprios anglicanos14. Isso surge exatamente toda vez que o
cristianismo nominal e a “graça barata” se tornam um assunto importante na
igreja15.
O que é mais notável para os nossos propósitos é a enxurrada de livros lançados
nas últimas décadas pelos escritores evangélicos e pelos assim chamados pós-
evangélicos de dentro da igreja emergente ou da igreja missional, ou pelos seus
simpatizantes, que ecoam esse mesmo apelo por menos instituição e mais
comunhão16. Não é de surpreender que essa mesma tendência romântica surja
também através de muitos desses livros, como faz um de seus mais incitantes
clamores: amenizem os limites entre os que são de dentro da igreja e os que são de
fora. Conforme um desses autores expressa: “Os limites entre aqueles que
pertencem à igreja e aqueles que não pertencem não deveriam ser traçados de
forma tão acentuada.”17 Afinal, “o estabelecimento de limites claros é geralmente
um ato de violência”.18

Na Busca das Duas Coisas


Jesus sabia que, num mundo caído, nenhuma autoridade, quer fosse
institucional ou não, poderia ser totalmente confiável. Ele sabia que nas mãos dos
seres humanos pecaminosos sempre houve e sempre haverá uma arma para
praticar os piores atos de exploração e destruição. Em relação a Jesus, o apóstolo
João escreveu: muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome, mas o
próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. E não precisava de
que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o
que era a natureza humana (Jo 2.23-25).
Essas palavras são impressionantes. Não se confiava a eles, porque sabia o que
era a natureza deles. Ele sabia que tipo de apetites governava as suas melhores
ações. Em certo sentido, é claro que Jesus finalmente se confiou às autoridades —
a ponto de morrer — mas ele nunca confiou sua consciência, sua vontade, sua
lealdade ou missão a qualquer autoridade humana. Mesmo com a idade de doze
anos, ele se conduzia de forma submissa aos seus pais, ao mesmo tempo em que os
lembrava de que sua submissão suprema pertencia ao Pai do Céu (Lc 2.49, 51).
Dado o histórico da conduta de Jesus com os fariseus, sem deixar de lado os seus
comentários concernentes às suas tradições, acho que também podemos dizer com
segurança, apesar do anacronismo, que Jesus conhecia muito bem os perigos das
instituições e a tentação humana para explorar o poder institucional para tirar
vantagens egoístas.
Tudo isso produz certo dilema. E se quisermos o amor gracioso que Hawthorne
personifica em Hester, sem fecharmos os olhos para o adultério? E se quisermos
descrever algumas coisas como “erradas” e ainda quisermos continuar sendo
pessoas amorosas? E se quisermos o coração e também a cabeça, o amor e também
a verdade, principalmente quando se tem em conta o estado decaído deste mundo,
que geralmente coloca essas duas tendências ou esses dois tipos de pessoas uns
contra os outros, conforme Hawthorne faz? Será que devemos supor que Deus nos
chama para nos submetermos às autoridades só quando essa submissão está de
acordo com nossas opiniões pessoais ou com nossas conjecturas racionais? Se for
assim, o que a submissão significa de fato? Esse dilema é bem apreendido numa
afirmação de um escritor anglicano: “O clamor popular é por pronunciamentos
inequívocos vindos de Cantuária — contanto que eles sejam aqueles com os quais o
orador se alegra em concordar!”19
É certo que a história da igreja está repleta de igrejas caindo nesse tal
“institucionalismo”, o qual pode ser antiético para o próprio cristianismo se
tivermos em mente a centralização de toda a autoridade no bispo, se misturamos a
Igreja e o Estado, seguindo Constantino, ou se tivermos uma proliferação excessiva
de comitês na igreja batista local. O evangelho deles não dá ênfase alguma sobre a
oposição que Jesus faz às estruturas que roubam a vida, estabelecidas pelos
fariseus para manter a vida espiritual de Israel. Uma das tentações perenes da Igreja
tem sido a de permitir que os elementos institucionais de sua vida corporativa
sejam tratados como primordiais20; a de permitir que as suas regras e hierarquias
se tornem mais importantes do que as pessoas e seus relacionamentos; a de deixar
que as tradições dos homens prevaleçam sobre os mandamentos de Deus21. Talvez
as regras erradas estejam sendo impostas. Talvez as regras corretas estejam
recebendo uma ênfase errada. Talvez os guardas da instituição simplesmente
gostem de ter poder. Esse é o tipo de coisa que certamente pode acontecer com
frequência22. Na verdade, os seres humanos são tão inclinados a abusar da
autoridade, e até mesmo os crentes são tão prontos para fundamentar
erroneamente suas tradições nos alicerces de concreto de suas instituições, que
realmente parece perigoso tirar os nossos olhos dessa ameaça iminente, nem que
seja por um momento; o que seria quase como se o piloto de um jato de combate
decidisse desligar o seu radar, embora estivesse ouvindo o zunido de um míssil
inimigo indo contra sua aeronave.
Ao longo dessas linhas, eu concordo plenamente com os aspectos significativos
das recentes críticas ao “institucionalismo” nas igrejas ocidentais, principalmente
na literatura da igreja missional. Os homens pecadores deste mundo — e até
mesmo os homens pecadores crentes das igrejas! — sempre desejarão abrigar suas
tradições em estruturas autoritárias, e eles o farão de maneiras que acabam
impedindo uma comunhão amorosa.
Posto isso, a ameaça do institucionalismo e o abuso de autoridade não são os
assuntos que este livro está rebatendo23. Na verdade, ele está rebatendo o erro
oposto, o erro que, creio eu, aflige muito mais os crentes e as igrejas de hoje, à luz
da cosmovisão anti-institucional, antilimites, antimoralidade, antiautoridade e das
tendências da cultura ocidental. Ele está rebatendo as ameaças da falta de limites
que é antiautoridade e a ameaça da falta de submissão. Fazer isso de maneira
adequada, num contexto de decadência, requer que mantenhamos ligado o radar de
nossas telas. Precisamos considerar o que significa se submeter à autoridade de
uma igreja local e aos seus líderes, mesmo em face da ameaça de a autoridade estar
sendo exercida erroneamente.
De modo implícito, este livro argumentará que a dicotomia entre o amor e a
estrutura, entre a comunhão autêntica e a instituição estruturada é uma dicotomia
falsa. Correndo o risco de simplificar demais, digo que o romântico precisa do
classicista; o coração precisa da cabeça; a criatividade precisa da ordem; o amor
precisa da verdade e da autoridade. Com tantas dicotomias como essas, precisamos
tomar cuidado para não sermos forçados a adotar uma ou outra, mas sim buscar o
intangível: uma e também a outra. Enfatizar uma coisa em detrimento da outra
produz algo que é inferior à humanidade, pois, conforme veremos mais tarde, uma
ênfase exagerada em certa direção produz uma imagem de algo que é inferior ao
divino. A simples presença de elementos institucionais (regras, recursos,
hierarquias) dentro de uma igreja não implica necessariamente num
institucionalismo, do mesmo modo como a lei não implicaria num legalismo ou um
dogma não implicaria num dogmatismo24.

A MEMBRESIA E A DISCIPLINA DA IGREJA Explicitamente, este livro


examinará as linhas divisórias da membresia e da disciplina da igreja
local — as mesmas coisas que, no mundo fictício de Hawthorne,
prenderam o “A” escarlate ao corpete de Hester Prynne e a expulsaram da
vila para a selva desprotegida. A membresia e a disciplina da igreja local,
tanto quanto qualquer outra coisa, representam o lado institucional da
religião e da vida da igreja. A membresia da igreja é o traço na terra, uma
linha limítrofe, um muro ao redor da cidade. É a lista de nomes. É uma
forma institucional de declarar: “As pessoas desta lista são as de dentro.
Todos os demais são os de fora.” A membresia da igreja, sem dúvida
alguma, é exclusivista.
A disciplina da igreja, então, é o mecanismo utilizado para impor essa prática
exclusivista, é a caneta que escreve alguns nomes na lista e risca outros. Ela é o
oficial de justiça que despeja o embusteiro. A membresia e a disciplina da igreja são
os dois lados de uma mesma moeda. Este livro não só examinará as práticas de
membresia e disciplina da igreja, como também argumentará que Deus tenciona
usar essas mesmas estruturas para ajudar a definir seu amor para com o mundo
que nos observa. Apenas para ser claro, isso significa que essas estruturas advogam
em favor dessas práticas exclusivistas.

Ligar e Desligar
Por que alguém desejaria fazer isso? O mais importante é porque Jesus deu a
igreja esse tipo de autoridade institucional. Os autores do evangelho registraram
Jesus utilizando a palavra que nós traduzimos como “igreja” apenas duas vezes.
Talvez seja irônico, portanto — à luz da nossa própria repulsa cultural a qualquer
coisa que tenha resquícios de institucionalismo — que, em ambas as passagens, ele
conceda a esse ajuntamento de pessoas a autoridade para “ligar e desligar”.

“Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16.18-19).

Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá
sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito
de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles (Mt 18.18-20).

Essas passagens têm sido debatidas pelos clérigos desde que Mateus as escreveu,
e compreender tudo o que elas envolvem não é fácil. Voltaremos a uma discussão
mais extensa sobre isso no capítulo 4. Por enquanto, vale a pena destacar algumas
questões que creio bastante simples. Nessa passagem, Jesus descreve esse poder
com a metáfora de uma chave, a qual é a razão de os pastores e os teólogos ao longo
da história da igreja se referirem ao “poder das chaves”. Essa metáfora é bem
simples. O que as chaves fazem? As chaves trancam e destrancam portas. As chaves
permitem que algumas pessoas entrem, mantendo as outras pessoas do lado de
fora, o que é exatamente o que Jesus queria que esse grupo de pessoas reunidas em
seu nome fizesse — controlasse quem entrava e quem ficava de fora.
Onde Jesus diz que essa chave deveria ser usada? Onde esse ligar e desligar
acontece? Novamente, sua resposta é simples e proveitosa: na terra. Jesus chama
essa assembleia de pessoas reunidas em seu nome para ligar e desligar pessoas na
terra. O que não está muito claro é exatamente o que esse ligar e desligar na terra
significa no céu. Os católicos romanos dizem uma coisa, os protestantes outra, mas
apenas para esclarecer: esse ligar e desligar acontece em meio a pessoas reais, de
carne e osso, na terra — não em meio a realidades abstratas e idealizadas. Isso
acontece necessariamente de maneira local, porque os seres humanos existem de
maneira local. Jesus concede aos ajuntamentos reais, constituídos de pessoas reais,
tanto o poder como a obrigação de decidir se Evódia ou Ciro, ou Catherine, ou
Friedrich, ou McKenzie, ou Farhod, ou Jeng é, de fato, “um deles” — um crente,
um seguidor de Cristo, um discípulo. Se esse ajuntamento real e não abstrato
determina que a profissão de fé de um indivíduo é fidedigna, ele une esse indivíduo
a eles mesmos. Caso contrário, não o une. Como essas pessoas exercem sua
autoridade para unir? Elas os unem por meio de dois mecanismos externos, visíveis
e institucionais, concedidos a eles por Jesus: uma iniciação através do batismo e a
participação contínua por meio da ceia da nova aliança. Como eles desobrigam ou
desligam alguém? Eles negam ao indivíduo a oportunidade de participar dessa ceia
contínua.
É em meio a esse poder para ligar e desligar, para supervisionar e disciplinar no
meio desses ajuntamentos reais de cristãos na terra, que encontramos as doutrinas
da membresia e da disciplina da igreja.

A RELEVÂNCIA DESSE TÓPICO


O tópico sobre a membresia e a disciplina da igreja é particularmente relevante
em nosso contexto ocidental pós-moderno por pelo menos quatro razões.

A Confusão Eclesiológica
Em primeiro lugar, o pragmatismo que reinou nas igrejas americanas pelo menos
desde o século XX, principalmente desde o advento (semelhante a de Donald
McGavran) da ideia de crescimento de igreja em meados do século passado, deixou a
nossa compreensão a respeito da própria igreja em alguma medida sem doutrina,
sem preceitos e sem estrutura. É quase como se as correntes de ar do pragmatismo
e a pressão barométrica do pós-modernismo viessem junto com a queda de
temperatura do “essencialismo” evangélico (o jeitinho evangélico para descartar
qualquer doutrina não considerada essencial para a salvação), a fim de produzir a
“tempestade perfeita”, uma tempestade que dizimou a capacidade de pensar com
seriedade e vigor renovado acerca da igreja local.
Do lado dos evangélicos de direita, estão os pensadores cautelosos, que são
completamente escrupulosos em outras áreas da doutrina, mas tendem a seguir a
correnteza pragmática na forma como conduzem e estruturam suas igrejas.
Quando os conservadores escrevem sobre a igreja, eles geralmente repetem o que
os Pais disseram a respeito de a igreja ser única, santa, universal e apostólica ou o
que os reformadores descreveram como as duas marcas da igreja. Essa última
ênfase geralmente se traduz num compromisso com a pregação, levando a sério as
ordenanças, o que é certamente essencial, mas nem sempre oferecem uma
orientação imediatamente evidente nas questões que confrontam a igreja
contemporânea, como o local das programações, ministérios de pequenos grupos,
cultos múltiplos, múltiplos locais de culto, pastoreio por meio de vídeo transmissão,
o relativismo, o papel da contextualização, os desafios da globalização, a relutância
cultural quanto ao comprometimento ou à afiliação, o consumismo, o cinismo, as
concepções contemporâneas sobre tolerância e muito mais.
Enquanto isso, do lado dos evangélicos de esquerda, novas conversas
interessantes estão acontecendo em relação a como a igreja se relaciona com a
Trindade ou como a essência da igreja está intimamente ligada a missões. Contudo,
muitos desses mesmos escritores estão construindo suas doutrinas sobre a igreja
com base nas doutrinas do Deus trino e num evangelho que se demonstra
insatisfatório para os conservadores. A consequência disso é uma espécie de
confusão, com evangélicos de todo tipo de concepções construindo suas igrejas com
base numa mistura aleatória de tradição, pragmatismo e novas ideias, as quais
possuem alguma utilidade, mas que se baseiam em concepções inadequadas sobre
Deus e o evangelho.

A Oposição à Membresia
Em segundo lugar, o tópico sobre a membresia e a disciplina da igreja é
particularmente relevante agora porque um número crescente de livros escritos
por pastores e líderes de igreja nas várias últimas décadas se opõem explicitamente
à prática da membresia da igreja. Alguns argumentam que a membresia da igreja
local é irrelevante, desnecessária ou antiquada e, por essa razão, pode ser
dispensada. Outros argumentam que a linha divisória exclusivista da membresia da
igreja apresenta um exemplo distorcido do evangelho e, por isso, deve ser
dispensada. Entre essas vozes, as palavras que se repetem vez após vez são: “menos
institucionalismo” e “mais comunhão autêntica”, ou “menos estrutura e mais
amor”. Conforme mencionado alguns momentos atrás, determinados autores
católicos romanos e protestantes liberais têm dito isso desde meados do século XIX,
e cada vez mais nas décadas anteriores e posteriores ao Concílio Vaticano II, mas
inúmeros evangélicos, e os assim chamados pós-evangélicos, têm dito o mesmo nas
duas últimas décadas. Isso quase se tornou um mantra: o institucionalismo é ruim,
a comunhão amorosa é boa25.

A Reduzida Importância da Igreja Local


Esses autores e líderes não estão pensando dentro de um vazio, mas num
contexto de tendências culturais mais profundas. Isso nos leva à terceira razão para
a relevância do tópico sobre a estrutura da igreja, ou seja, os crentes ocidentais
possuem uma concepção anêmica e fraca sobre a igreja local e sobre seu papel na fé
cristã. O pesquisador de opinião pública, o evangélico George Barna, testemunhou o
seguinte fato:
Enquanto aproximadamente metade da população adulta frequenta cultos religiosos durante
uma semana típica... menos de um em cada cinco adultos acreditam firmemente que a
congregação da igreja é um elemento crucial para o seu crescimento espiritual, e apenas alguns
argumentam intensamente que a participação em algum tipo de comunidade de fé é exigida
para que eles alcancem seu pleno potencial.
Somente 17% dos adultos disseram que “a fé de uma pessoa deve ser desenvolvida
principalmente por meio do envolvimento com a igreja local”. Até os grupos de frequentadores
mais dedicados — como os evangélicos e os crentes regenerados — geralmente rejeitam essa
noção; apenas um terço de todos os evangélicos e um em cada cinco não evangélicos adultos
regenerados apoiam essa concepção. Apenas um em cada quatro adultos que possui uma
cosmovisão bíblica (25%) concordou com a centralidade da igreja local para o crescimento
espiritual de uma pessoa.
Assim como apenas alguns adultos (18%) adotaram firmemente a ideia de que a maturidade
espiritual exige envolvimento numa comunidade de fé26.

Também em minha experiência, quando pergunto a um crente comum o quanto


uma membresia comprometida com a igreja é importante para o seu cristianismo,
isso produz uma resposta que varia entre “nada” e “mais ou menos”. Muitos crentes
estão felizes por frequentar indefinidamente uma igreja específica, sem que haja
uma associação formal. Outros estão felizes em visitar igrejas diferentes de mês em
mês e permanecem nesse padrão por um ano ou mais. Ainda há outros que, enfim,
não frequentam igrejas e tentam manter sua vida espiritual através do uso
autodirecionado de livros cristãos, grupos de comunhão, estações de rádio ou
outros meios de mídias cristãs. Se você tentar explicar para alguém com essa
mentalidade a importância ou mesmo a necessidade de se associar a uma igreja, é
provável que você receba, na melhor das hipóteses, um encolher de ombros, ou,
mais provavelmente, a acusação: “Isso é legalismo”, ou “Isso é dogmático”, ou “Isso
não é amor”. Mencione as palavras disciplina da igreja, e poderá estar bem certo de
que essas acusações virão.

“Assim Como Eu Vos Amei”


À medida que os crentes perdem de vista o chamado de Deus para levarem a cabo
sua vida cristã coletiva, eles perdem tragicamente a capacidade de definir o amor
para o mundo — o que é a quarta razão por que este tópico é tão relevante. A
doutrina da igreja, na verdade, conforme disse no início, leva toda a doutrina cristã
a determinar como um grupo real de pessoas se reúne e organiza suas vidas.
O que o evangelicalismo precisa hoje não é apenas de um centro renovado e
rearticulado, ele precisa de limites. E com isso não estou querendo dizer apenas
limites doutrinários ou as “afirmações e negações” indicadas pelos líderes das várias
denominações e movimentos evangélicos. Falo dos limites que pertencem às igrejas
locais. Essa é a ferramenta que Cristo deu à igreja na terra para impor essas
declarações de fé e esses centros doutrinários vigorosos!
É exatamente por essa razão que a doutrina da igreja é a mais adequada para
definir o amor de um modo que até mesmo a doutrina da salvação ou a doutrina de
Deus não pode: ela prepara o povo da nova aliança de Deus para exibir o caráter, a
sabedoria e a glória de Deus a todo o Universo (Ef 3.10). É exatamente por isso que
Jesus disse a seus discípulos: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos
outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos
saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (Jo
13.34-35 - NVI). O mundo entenderá quem é Cristo e o que o amor é quando a igreja
o definir amando uns aos outros no evangelho — “como eu os amei”. Mas aqui há
uma armadilha — a palavra “como” em “como eu os amei”. Os crentes devem amar
uns aos outros como Cristo nos amou. E se, conforme eu disse, nós tivermos
concepções idólatras acerca do amor — e até mesmo concepções idólatras sobre o
amor de Cristo?
O argumento deste livro, de modo bem simples, é que Deus chama a igreja para
traçar limites; limites que distinguem essas pessoas de outras pessoas; limites que
impedem que algumas pessoas se associem a elas ao mesmo tempo em que excluem
outros indivíduos após eles terem se associado a elas. E não somente isso, Deus
pretende que a igreja utilize essas linhas divisórias a fim de ajudar a definir para o
mundo o que o amor é exatamente.
A igreja define o amor. Embora ela geralmente defina o amor de forma
deficiente, Deus chama a igreja para fazer isso — para definir o amor para o mundo
por meio desse mesmo processo de incluir alguns pecadores e excluir outros.

CONFIANTEMENTE RELEVANTE PARA TODOS OS SISTEMAS DE


LIDERANÇA Meu alvo com este livro não é formar um argumento explícito
sobre a forma de sistema de liderança que eu pessoalmente creio que seja
a melhor: batista e congregacional. Em vez disso, meu alvo primordial é
argumentar em prol de dois aspectos específicos do sistema de liderança
da igreja — membresia e disciplina — os quais acredito que devam ser
aplicados em qualquer contexto denominacional, mesmo que eu
mantivesse, simultaneamente, diferentes formas de liderança para a
igreja, elas seriam melhores ou piores se esses aspectos estivessem sendo
mantidos apropriadamente ou não. Em outras palavras, espero ver as
igrejas batistas; anglicanas/episcopais; luteranas; metodistas;
pentecostais; presbiterianas; menonitas; independentes, mas lideradas
por presbítero; e todas as outras igrejas que pregam o evangelho,
praticando a membresia e a disciplina da igreja de modo significativo, por
intermédio dos mecanismos de seus sistemas de lideranças específicos,
mesmo que alguns desses sistemas sejam mais apropriados para isso do
que outros.
Portanto, tentarei evitar qualquer ambiguidade na forma como defino a igreja
“na terra”, não porque não considere que isso seja importante, mas porque não é
essa a batalha que desejo travar aqui. Por exemplo, eu discordaria de um
presbiteriano que dissesse que a igreja visível consiste em “todos aqueles que
fizeram profissão de sua fé no Senhor Jesus Cristo e também os seus filhos”27; ou
de um episcopal que se referisse a uma entidade chamada Igreja Episcopal na
América28. Entretanto, acredito que uma igreja que admita os filhos dos crentes,
mas que tome o cuidado bíblico de ligar e desligar os crentes na terra é melhor do
que outra que não o faz. Sim, creio que incluir filhos potencialmente não
regenerados na igreja trará problemas para ela mesma, principalmente para a
geração seguinte, mas meu alvo aqui é considerar questões que espero beneficiem
tanto as igrejas batistas quanto as presbiterianas. Penetrando um pouco mais no
livro, principalmente quando começo a discutir as questões mais práticas, o leitor
descobrirá outros aspectos de meu congregacionalismo. E em um ou dois trechos eu
chego a apresentar um argumento sobre por que a abordagem congregacional no
sistema de liderança da igreja, além de ser bíblica, resolve melhor alguns problemas,
tais como as ameaças ou abusos de autoridade. Apenas peço aos não
congregacionalistas que sejam pacientes enquanto faço isso.
Quanto aos desentendimentos que eu, sendo um batista, possa ter com os não
batistas sobre o significado do batismo ou da Ceia do Senhor, que são dois assuntos
importantes para os tópicos acerca da membresia e disciplina, a boa notícia para o
leitor não batista é que a maioria das outras denominações protestantes
conservadoras e moderadas pode afirmar praticamente tudo o que um batista diz
sobre esses dois temas. Em geral, as divergências não envolvem tipicamente
descartar o que um batista crê, mas envolvem o fato de se algo mais deve ser
acrescentado ao que um batista acredita. Por essa razão, espero que os
presbiterianos, anglicanos, metodistas e outros se achem capazes de afirmar muito
daquilo que direi em relação ao significado do batismo e da Ceia do Senhor.

Literatura
Além disso, o leitor perceberá ao longo do livro que geralmente utilizo
referências de obras bem conhecidas da literatura, como fiz ao usar A Letra
Escarlate. Tenho feito isso por duas razões. Primeiro, porque isso tem sido divertido
para mim no processo de escrita do livro. Em segundo lugar, e ainda mais
importante, acredito que a boa literatura, com suas imagens e pathos, pode
transmitir melhor o zeitgeist — o espírito da época — do que as pesquisas de
opinião, que é o que a maioria dos livros daqueles dias parece empregar para
caracterizar o panorama cultural. Uma boa teologia deve estar constantemente
atenta quanto ao modo como todos nós estamos arraigados em nossa própria
época, e espero que essas referências literárias nos ajudem a nos tornar mais
cientes de nossas pressuposições.

Nosso Plano de Culto


Finalmente, eis o que vem pela frente. O capítulo 1 começa com uma
consideração sociológica dos fatores culturais que impedem significativamente a
membresia e a disciplina da igreja. Essa é outra parte de minha tentativa de fazer
com que a teologia dialogue com nossa própria época e lugar. Enfim, argumentarei
que essas considerações sociológicas dão lugar às considerações espirituais.
Nos capítulos de 2 a 5, apresento um argumento teológico consistente para a
membresia e a disciplina da igreja. O capítulo 2 tenta elucidar o que é uma
compreensão correta acerca do amor. O capítulo 3 tenta elucidar o que é uma
compreensão correta sobre a autoridade. Gastarei tempo para fazer essas duas
coisas por duas razões. Primeiro, porque a membresia da igreja é uma função do
amor e da autoridade de Deus exercida entre os crentes da aliança. Segundo, porque
acredito que a maioria dos evangélicos possui, na melhor das hipóteses,
compreensões reducionistas sobre o amor e a autoridade. Você pode até dizer que
eu estou tentando usar esses dois capítulos para introduzir uma nova visão de
mundo antes de formular argumentos mais específicos em relação à membresia e à
disciplina da igreja nos capítulos 4 e 5. No entanto, se você estiver ansioso para ir
direto ao assunto, vá logo para o capítulo 4, onde eu defino formalmente a
membresia e a disciplina da igreja, com base em Mateus 16, 18 e 28. Eu argumento
que membresia é um tipo de aliança. Depois, o capítulo 5 dá um panorama sobre
essa aliança e considera o que ela é exatamente à luz das alianças do Antigo
Testamento e da nova aliança.
Os capítulos 6 e 7 são, portanto, uma tentativa de ser mais prático e de “aplicar”
a doutrina desenvolvida nos primeiros quatro capítulos. O capítulo 6 leva o leitor
através do processo de membresia e de disciplina do ponto de vista da igreja. O
capítulo 7 faz o mesmo, mas do ponto de vista do crente.

2. Kevin Vanhoozer expressa isso de uma forma mais eloquente: “A igreja evangélica é a súmula da
teologia evangélica”. “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel” [O Evangelicalismo e
a Igreja: A Companhia do Evangelho] in The Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects [O Futuro do
Evangelicalismo: Discussões e Perspectivas], ed. Craig Bartholomew, Robin Parry, e Andrew West, Grand
R apidis: Kregel, 2003, p. 52.
3. Para começar, isso obscurece a distinção criador/criatura; anuvia a singularidade do episódio da
encarnação; cria uma identificação exagerada entre Cristo e sua igreja; ignora as diferenças essenciais
entre o Cristo sem pecado e a igreja ainda pecadora; supervaloriza este mundo e minimiza a importância
da parousia e a esperança da Igreja nela. Veja Michael S. Horton, People and Place [Pessoas e Lugares]
(Louisville: Westminster John Knox, 2008) p. 166-70; e também Ronald Y. K . Fung, “Body of Christ” [O
Corpo de Cristo] in Dictionary of Paul and His Letters [Dicionário sobre Paulo e suas Cartas], ed. Gerald F. P.
Hawthorne e R alph P. Martin (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993) p. 81.
4. Essa ideia se tornou proeminente tanto entre os seguidores protestantes do idealismo alemão quanto
entre os católicos, a começar por Friedrich Schleiermacher (veja Douglas Farrow, Ascension and Ecclesia
[Ascensão e Eclesia], Edinburgh: T&T Clark, Continuum, 1999, pp. 182-83; J. A . Möhler (veja Michael J.
Himes, Ongoing Incarnation: Johann Adam Möhler and the Beginnings of Modern Ecclesiology [Encarnação
Continuada: Johann Adan Möhler e o Início da Eclesiologia Moderna], Herder and Herder, 1997, e o
aluno de Möhler, K arl Adam. Michael Horton também segue essa trilha, do começo ao fim, até o
presente momento, junto com escritores como o Papa Bento XVI, o teólogo luterano Robert Jenson, o
teólogo batista Stanley Grenz e o círculo de escritores conhecido como Ortodoxia R adical, como
Graham Ward
(http://sites.silaspartners.com/partner/Article_Display_Page/0,,PTID314526|CHID598014|CIID2376346,00.htm
acessado em 18 de janeiro de 2008). Veja também o capítulo 6 de Horton, People and Place, principalmente
pp. 156-64.
5. John Webster, “ The Church and the Perfection of God” [A Igreja e a Perfeição de Deus] in The
Community of the Word: Toward an Evangelical Ecclesiology [Na Comunhão da Palavra: Rumo a uma Eclesiologia
Evangélica], ed. Mark Husbands e Daniel J. Treier, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005, p.78.
6. Ibid., p. 76, cf. Vanhoozer, “Evangelicalism and the Church” [O Evangelicalismo e a Igreja], pp. 70-77.
7. Uma mulher que violou a lei.
8. Esta citação e as outras que se seguem fazem parte da mesma conversa extraída de uma cópia do livro
de Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter, que li no ensino médio (Nova Iorque: Washington Square
Press, 1972, traduzido para o português como A Letra Escarlate, pp. 51-52. Modernizei levemente a
linguagem em vários trechos.
9. Ibid., p. 62.
10. Para uma útil introdução ao Romantismo do final do século XVIII e início do século XIX, veja Jacques
Barzun, From Dawn to Decadence: 500 Years of Western Cultural Life, New York: HarperCollins, 2000, pp. 465–89,
traduzido para o português como Da Alvorada à Decadência: a História da Cultura Ocidental, de 1500 aos
nossos dias, Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002.
11. Veja Roger Haightm, Christian Community in History, vol. 2: Comparative Ecclesiology, [A Comunidade Cristã
na História, v.2: Eclesiologia Comparativa] New York: Continuum, 2005, pp. 312–13.
12. Entre eles, Johann Adam Möhler, em especial, ajudou a inaugurar uma “revolução conceitual” na
doutrina da igreja entre os católicos no ano de 1820 e seguintes, com seu livro Unity of the Church
[Unidade da Igreja]; e Haight, Christian Community In History [Comunidade Cristã na História], p. 355.
Veja também o útil resumo de Dennis Doyle, Communion Ecclesiology [Eclesiologia da Comunhão],
Maryknoll, NY: Orbis, 2000 e o capítulo de Avery Cardinal Dulles, “ The Church as Mystical
Communion” [A Igreja como a Comunhão Mística] in Models of the Church, edição ampliada, New York:
Image Books, 2002, pp. 39–54, traduzida para o português como A Igreja e seus Modelos, Brasília, DF:
Paulinas, 1978. Seguindo a obra de Johann Adam Möhler, os pensadores-chave do último século da
eclesiologia da comunhão católica romana que geralmente são citados incluem Charles Journet, Yves
Congar, Henri de Lubac e Jean-Marie Tillard; veja a obra de Tillard, Church of Churches [Igreja das
Igrejas]. Tanto João Paulo II quanto Bento XVI também fizeram contribuições significativas.
13. Haight, Christian Community, p. 356; Doyle, Communion Ecclesiology, pp. 23–37.
14. Uma pesquisa proveitosa sobre a influência de George W hitefield na percepção eclesiológica
evangélica pode ser encontrada em Bruce Hindmarsh, “Is Evangelical Ecclesiology an Oxymoron? A
Historical Perspective” [A Eclesiologia Evangélica é um Oxímoro? Uma Perspectiva Histórica] in
Evangelical Ecclesiology: Reality or Illusion? [Eclesiologia Evangélica: Realidade ou Ilusão?], ed. John G.
Stackhouse, Grand R apids: Baker, 2003, pp.15–37.
15. Não é coincidência que o teólogo Dietrich Bonhoeffer, bem conhecido por sua crítica à graça barata
em The Cost of Discipling [O Preço do Discipulado], seja o mesmo homem que também escreveria “ The
whole interpretation of the organizational forms of the Protestant Church as being those of an
institution must therefore be dismissed as erroneous” [A Interpretação de todas as formas
organizacionais da Igreja Protestante como sendo as de uma instituição que deve ser rejeitada como
errada] in Dietrich Bonhoeffer, Sanctorum Communio, London: Collins, 1963, p. 178.
16. Essa está longe de ser uma amostragem exaustiva dos trabalhos acadêmicos e não acadêmicos dos
evangélicos e pós-evangélicos, listados cronologicamente, os quais, em graus variados, exigem uma
maior ênfase na comunhão e menos na instituição em relação às práticas protestantes comuns nos
últimos dois séculos: Colin Gunton, “ The Church on Earth: The Roots of Community” [A Igreja na
Terra: As R aízes da Comunhão] in On Being the Church: Essays on the Christian Community [Sobre o que é Ser
Igreja: Ensaios sobre a Comunhão Cristã], ed. Colin E. Gunton e Daniel W. Hardy, Edinburgh: T&T
Clark, 1989, pp. 48–80; Greg Ogden, Unfinished Business: Returning the Ministry to the People of God
[Empreendimento Inacabado: Um Retorno ao Ministério para o Povo de Deus (Grand R apids:
Zondervan, 1990), 62–108; David J. Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission,
Marynoll, NY: Orbis, 1991, pp. 50–51, traduzido para o português como Missão Transformadora: Mudanças de
Paradigma na Teologia da Missão, São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002; Paul G. Hiebert, Anthropological Reflections on
Missiological Issues, Grand R apids: Baker Books, 1994, pp. 107–36; 159–72, traduzido para o português
como O Evangelho e a Diversidade das Culturas: Um Guia de Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999;
Kevin Giles, What on Earth Is the Church: An Exploration in New Testament Theology [O que é a Igreja, Afinal? Uma
Exploração da Teologia do Novo Testamento], Eugene, OR: Wipf and Stock, 2005; orig. SPCK , 1995, pp.
8–22; Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America [Igreja Missional: Uma Visão do
Envio Feito pela Igreja da América do Norte], ed. Darrell L. Guder, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp.
80, 84, 93–94, 221ss; Darrell L. Guder, The Continuing Conversion of the Church [A Conversão Contínua da
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Onde Vai a Igreja? Mudanças na Maneira de Conduzir Ministérios, Curitiba, PR: Editora Esperança, 2012; Stanley
Grenz, The Social God and the Relational Self: A Trinitarian Theology of the Imago Dei [O Deus Social e o Ser
Relacional: Uma Teologia Trinitariana da Imago Dei], Louisville: Westminster, 2001, pp. 331–36; Doug
Pagitt, Church Re-Imagined: The Spiritual Formation of People in Communities of Faith [A Igreja Repensada: A
Fomação Espiritual das Pessoas nas Comunidades de Fé], Grand R apids: Zondervan, 2003, pp. 23–31,
47–48; Stuart Murray, Church After Christendom [A Igreja Após a Cristandade], Milton Keynes, UK:
Paternoster, 2004, pp. 135–64; Brian McLaren, A Generous Orthodoxy, Grand R apids: Zondervan, 2004, p.
62, traduzido para o português como Uma Ortodoxia Generosa, Brasília, DF: Palavra, 2007; Reggie McNeal,
The Present Future: Six Tough Questions for the Church [O Futuro Presente: Seis Questões Difíceis para a Igreja],
San Francisco: Jossey-Bass, 2003, pp. 26–27, 34–36; Eddie Gibbs and Ryan K . Bolger, Emerging Churches:
Creating Community in Postmodern Cultures [Igrejas Emergentes: Criando Comunhão nas Culturas Pós-
modernas], Grand R apids: Baker, 2005, pp. 89–115; Neil Cole, Organic Church: Growing Faith Where Life
Happens, San Francisco: Jossey-Bass, 2005, traduzida para o português como Igreja Orgânica: Plantando a Fé
Onde a Vida Acontece, Rio de Janeiro: Habacuc, 2008; Trinity in Human Community: Exploring Congregational Life in
the Image of the Social Trinity [A Trindade na Comunidade Humana: Explorando a Vida Congregacional na
Imagem da Trindade Social], Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, 1–3; R ay Anderson, An Emergent
Theology for Emerging Churches [Uma Teologia Emergente para Igrejas Emergentes], Downers Grove, IL:
InterVarsity, 2006, p.92; Dan Kimball, They Like Jesus but Not the Church: Insights from Emerging Generations,
Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 73–95 traduzido para o português como Eles Gostam de Jesus, Mas Não
da Igreja: Insights das Gerações Emergentes Sobre a Igreja, São Paulo: Vida, 2011.
17. 16 Miroslav Volf, After Our Likeness [Consequência da Nossa Semelhança], Grand R apids: Eerdmans,
1998, 148 n. 84.
18. Ibid., 151 n. 97
19. Paul Avis, Authority, Leadership, and Conflict in the Church [Autoridade, Liderança e Conflitos na
Igreja], Philadelphia: Trinity Press International, 1992, p. ix.
20. Dulles, Models of the Church, p. 27.
21. Peter L. Berger e Thomas Luckmann oferecem uma introdução muito proveitosa à ideia de
institucionalização e suas origens in The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of
Knowledge, New York: Anchor Books, 1966, pp. 47–79, traduzido para o português como A Construção
Social da Realidade, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. “A institucionalização acontece” — dizem eles
— “sempre que existe uma simbolização das ações habituais por modelos ou agentes principais. Em
outras palavras, qualquer simbolização é uma instituição”, p. 54. Penso que uma maneira mais simples
de dizer “simbolização das ações habituais” é dizendo “tradição”; uma ideia que não é intrinsecamente
problemática, mas que se torna problemática quando, conforme Jesus disse aos fariseus: “ Vocês
negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens” (Mc 7:8 - NVI). Uma
maneira pela qual poderíamos definir “institucionalismo” seria dizendo que nossas instituições se
tornam “institucionalizadas” sempre que nossas tradições prevalecem sobre os mandamentos de Deus.
22. Paul G. Hiebert apresenta uma análise útil das características de uma igreja que está sucumbindo à
institucionalização, bem como dos perigos de se fazer isso, em Anthropological Reflections [Reflexões
Antropológicas], pp. 159–64.
23. O livro de Miroslav Volf, After Our Virtue: The Church as the Image of the Trinity [A Consequência
da Nossa Virtude: A Igreja como a Imagem da Trindade], promove a concepção relacional da igreja local,
mas ele o faz sem rejeitar os elementos institucionais da igreja: “Conforme uma visão muito difundida
nos círculos protestantes, o Espírito de Deus e as instituições da igreja estão em contradição. ‘Onde está
o Espírito do Senhor, aí há liberdade’ (2 Co 3.17); em contraste a isso, as instituições são entendidas
como mecanismos de repressão. Se essa visão estivesse correta, então a ‘anarquia espiritual’ resoluta
seria a única ‘estrutura’ adequada para uma igreja carismática. Essa visão, no entanto, é preconceituosa,
e qualquer um que compartilhe dela falha em reconhecer tanto o caráter das instituições eclesiásticas
quanto o modo de agir do Espírito de Deus”, em After Our Virtue, Grand R apids: Eerdmans, 1998, p.
234.
24. Dulles, Models of the Church, p. 27, cf. Giles, W hat on Earth Is the Church, pp. 21–22.
25. Veja n. 15.
26. Extraído de “Barna Update”, intitulado “Americans Have Commitment Issues, New Survey Shows”
[Os Americanos Têm Assuntos Comprometedores, Apontam as Novas Pesquisas”, pelo Grupo Barna, 18
de abril de 2006. Os dados se baseiam em 1003 entrevistas telefônicas com adultos de todos os EUA .
http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=235; acessado em 23 de
janeiro de 2008.
27. The Book of Church Order of the Presbyterian Church in America, 6th ed.; [Livro de Ordem da Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos, 6a ed], Gabinete do Secretário Estadual da Assembleia Geral da Igreja
Presbiteriana nos Estados Unidos, conforme aprovado pela 35a Assembleia Geral em Memphis, TN,
junho de 2007: 2–1, 4–1.
28. E.g., Thomas Witherow, The Apostolic Church, 1858; reimpresso por Glasgow, Scotland: Free
Presbyterian Publications, 2001, p. 15 traduzido para o português como A Igreja Apostólica - Que Significa
Isto?, Recife: Editora Os Puritanos, 2005. Sobre esse tópico, veja Miroslav Volf, After Our Likeness, p.
138.
Capítulo 1

A IDOLATRIA DO AMOR

“Tudo o que você precisa é de amor.”


— John Lennon

Pergunta Principal: Como as nossas concepções culturais sobre o amor, hoje


em dia, impedem que aceitemos a membresia e a disciplina da igreja?

Resposta Principal: Temos feito do amor um ídolo que nos serve e, desse
modo, redefinido o amor como algo que jamais impõe julgamentos, condições ou
ligações obrigatórias.

Ponto 1: Formular a doutrina da igreja exige que


consideremos a nossa bagagem cultural.

A ECLESIOLOGIA É UM NEGÓCIO ARRISCADO


Adulterar a doutrina da igreja é um negócio arriscado. Talvez mais do qualquer
outra doutrina cristã, a doutrina da igreja — também chamada de Eclesiologia — é
o ponto no qual as variáveis da ambição pessoal e da vã presunção atuam em todas
as equações. A Eclesiologia é o território das guerras de influência e das rivalidades
políticas. É para onde o pastor, preparado para o combate, e seu diácono intratável
se dirigem mais uma vez para chegar a um acordo sobre “quem assume a
responsabilidade pelo quê”; é onde a igreja episcopal local tem que determinar o que
significa se separar da comunhão episcopal, que abandonou o evangelho; é onde o
presbitério decide se o estilo de vida de um membro o exclui da declaração de fé da
comunidade.
Alguém poderia dizer que é comparativamente fácil debater sobre a presciência
de Deus ou sobre se a regeneração precede a conversão, ou sobre o que é o milênio.
Levante um desses tópicos, e mais da metade da igreja encolherá os ombros e
alegará desconhecimento. Mas levante o tópico acerca de quem tem a palavra final
sobre o orçamento da igreja ou sobre quem escolhe o novo pastor, ou sobre se a
igreja tem o direito de disciplinar o filho adulto e desobediente de um presbítero, e
você não encontrará muitos desentendidos. Não resta dúvida de que a história da
igreja está repleta de exemplos de teólogos que mudam sua eclesiologia para
satisfazer às circunstâncias políticas.
Em outras palavras, existe uma “mundividência real” para a doutrina da igreja.
Decidir quem recebe o batismo e a Ceia do Senhor e quem não recebe é, de certa
maneira, uma decisão “política”, e outras decisões doutrinárias não o são. O mesmo
se dá para decidir quem tem a palavra final nas questões decisivas. E, assim, nossas
ideias sobre Eclesiologia serão afetadas de modo único pelas experiências pessoais
que colocamos em ação, associadas às ambições e aos temores nutridos em nossos
corações. Alguns autores têm especulado que as Escrituras não têm muito a dizer
sobre como exatamente os cristãos devem estruturar suas igrejas, razão pela qual
eles podem moldá-las e remodelá-las para se adaptarem melhor aos seus contextos
missiológicos. Penso que é melhor — e menos especulativo acerca do porquê Deus
ter feito o que fez — remover o elemento normativo dessa proposição e dizer, por
uma simples questão de descrição sociológica, que a nossa doutrina da igreja é pelo
menos tão passível de ser moldada por nossa época e lugar quanto outras doutrinas,
isso se não for ainda mais passível que as outras.
Afinal, seria uma coincidência que durante quinze séculos as igrejas tenham
convergido para uma autoridade centralizada enquanto o mundo estava sendo
governado por césares e monarcas? Seria uma coincidência que as revoluções
democráticas do século XVIII e a proliferação de governos democráticos que se
seguiram desde então tenham combinado perfeitamente com uma proliferação
semelhante de formas de liderança de igreja congregacionais e não associativas?
Sim, ocorreram algumas exceções29. Mas não é de se esperar que, quando uma
cultura se torna acostumada com uma forma específica de governo, as igrejas se
tornem mais propensas a adotar esses mesmos modelos? O mesmo se dá nos
modelos de negócios. É natural que as pessoas padronizem sua igreja de acordo com
aquilo que funciona no escritório. Comitês nos anos 40 e 50? Pastores que são
diretores executivos nos anos 90? Franquias com cultos em múltiplos locais hoje
em dia? Enfim, é terrivelmente surpreendente que os líderes cristãos no Ocidente
pós-moderno, antiautoridade, antilimites e anti-institucional de hoje exijam cada
vez mais a desinstitucionalização da igreja?Por essas razões, é útil considerarmos o
contexto do escritor à medida que ele escreve sobre a doutrina da igreja. Na
introdução, consideramos a exigência por “menos instituição” e “mais comunhão”
de muitos escritores contemporâneos. O teólogo Jürgen Moltmann faz esse tipo de
afirmação nas primeiras páginas de sua obra sobre Eclesiologia, mas o faz
encarando a “crise da igreja nacional e das igrejas estabelecidas em alguns países por
longos períodos”, como a igreja luterana estatal da Alemanha30. Dado o cenário que
ele está contemplando, concordo totalmente com Moltmann. Mas, e se um escritor
disser a mesma coisa enquanto estiver olhando para as igrejas Batistas do Sul, que
são carismáticas e voltadas para os frequentadores não convertidos, conforme
determinado líder da Convenção Batista do Sul faz em seu livro de nível popular
para pastores31? Apesar de ser mais familiarizado teologicamente com o autor
batista, eu ficaria mais receoso.
Portanto, adulterar a doutrina da igreja é um negócio arriscado, porque ela é, de
modo geral, particularmente influenciável pelas realidades da cultura e, de modo
mais específico, pelas ambições pessoais. É por isso que desejo dedicar um capítulo
inteiro examinando algumas das causas que provavelmente mais afetam o modo
como vemos as questões sobre membresia e disciplina da igreja nos dias de hoje.
Não chegamos a esses tópicos sem uma bagagem cultural. Chegamos com um trem
cheio dela.

UMA PROPOSTA CULTURAL CONTRA O SENSO COMUM


Se a doutrina da igreja estiver atada a ambições e medos do coração, fazer uma
verificação da bagagem cultural envolve muito mais do que perguntar que
pressuposições ou opiniões podemos ter sobre a igreja. Trata-se de examinar as
noções fundamentais sobre o amor, Deus e muito mais. Além disso, a nossa
compreensão acerca da doutrina cristã — principalmente acerca da Eclesiologia —
está ligada a todas as áreas de nossa vida. O fato de minha esposa gostar de ver
comédias românticas nas noites de sábado ou de eu gostar de assistir a filmes de
ação e aventura afeta muito mais do que podemos perceber o modo como nos
reunimos com a igreja nas manhãs de domingo. Na verdade, o simples fato de
assistirmos a filmes nas noites de sábado, em vez de cantar cânticos em nossa velha
sala de visitas, à luz de uma luminária, afetará o modo como damos e recebemos
amor dos outros membros de nossa igreja.
Meu principal argumento neste capítulo é que nossas ideias a respeito do amor
são mais idólatras do que imaginamos. Para percebermos isso, quero pegar o enredo
da história que começou na introdução, com relação à tendência romântica latente
na cultura ocidental pós-moderna contra as estruturas, limites ou qualquer coisa
que cheire a exclusivismo. Afinal, creio que a maioria dos leitores cristãos
considerará a principal proposta deste livro — de que por meio das práticas
exclusivistas da membresia e da disciplina da igreja, Deus pretende ajudar a
(re)definir o amor e a beleza para os seres humanos caídos — profundamente
contrária ao senso comum. Os mesmos elementos que contêm o DNA da nossa
cultura ocidental pós-moderna fazem com que a maioria de nós reaja contra
qualquer coisa que insinue institucionalismo ou exclusivismo, mesmo que
remotamente, assim como as células brancas do sangue reagem de forma
programada contra as bactérias externas. O único limite com o qual a maioria das
pessoas concorda nesses dias é com o limite de manter aqueles que criam limites do
lado de fora32! Mais apropriadamente, isso contradiz nossas ideias a respeito do
amor. Nós consideramos o amor exatamente aquilo que nos chama a derrubar as
paredes divisórias com nossas marretas, em vez de erigi-las.
Por que parece falta de amor traçar limites claros em torno de uma igreja? É falta
de amor? O que supomos que seja o “amor”? As nossas noções sobre o amor são de
fato bíblicas? Muitos escritores hoje em dia dizem que os crentes ocidentais são
excessivamente individualistas. E juntamente com tal individualismo, dizem eles,
vem (2) o consumismo, (3) a relutância em ter compromissos em geral e (4) certa
descrença em relação a toda verdade absoluta.

Ponto 2: O individualismo nos deixou desunidos, o que nos


impele a buscar um amor que faça com que nos sintamos
completos. E desejamos que as igrejas façam o mesmo.
INDIVIDUALISMO
Imagine Benjamin Franklin aos seus 17 anos de idade — o filho de um fabricante
de velas que se tornaria tipógrafo, cientista, inventor, escritor e embaixador —
entrando na cidade de Filadélfia pela primeira vez, sem conhecer sequer uma
pessoa, pisando a rua do mercado com nada mais do que um dólar holandês no
bolso, uma baguete de pão debaixo de cada braço e uma terceira na mão, fazendo o
reconhecimento da cidade na qual ele, um dia, ajudaria a liderar as colônias
americanas numa revolução rumo à nacionalização33.
Imagine o escravo afro-americano Frederick Douglass — que um dia seria o
abolicionista mais internacionalmente renomado de uma era e o conselheiro
ocasional do presidente Abraham Lincoln nos assuntos pertinentes à escravidão —
aos 12 anos de idade, debruçado sobre um pedaço de cimento com um giz inteiro
entre os dedos, ensinando a si mesmo a escrever, imitando as letras que ele
observava os construtores navais marcarem em pedaços de madeira — “B” para
bombordo, “E” para estibordo, “B.A.” para bombordo avante, “E.R.” para estibordo a
ré34.
Imagine Amelia Earhart — escritora, pioneira na defesa dos direitos das
mulheres e a primeira mulher a pilotar sozinha um avião por sobre o Atlântico —
aos sete anos de idade, em pé, com o lábio machucado e o vestido rasgado, atrás de
sua montanha-russa caseira, construída juntamente com uma caixa e tábuas de
madeira escoradas numa armação de oito pés, lubrificada com banha, que a havia
jogado ao chão. Imagine-a, depois disso, exclamando à sua irmã: “Ó, Pidge, é como
estar voando35!”

TODA ASSOCIAÇÃO É NEGOCIÁVEL


Histórias notáveis como essas foram apresentadas à consciência cultural
americana — minha própria consciência — com uma visão gloriosa do homem ou
da mulher autoconfiante, que venceu na vida e se autodefiniu. Nenhuma classe
social, etnia, gênero, distrito ou grilhões poderiam prender esses heróis. Adaptando
o hino de Charles Wesley, suas cadeias foram quebradas, seus corações foram
libertados, eles ressuscitaram, partiram; e o que se segue é o notório para mim.
Essas biografias reais inspiraram o mundo da ficção popular em todas as coisas,
desde os contos ocidentais de aventura Deerslayer ou Pioneers (traduzido para o
português como Os Pioneiros, Mem Martins, Portugal: Publicações Europa América,
1983), de James Fennimore Cooper, até as aventuras posteriores de Horatio Alger,
como Dick Ragged ou Struggling Upward [Luta Ascendente]. Em decorrência desse
tipo de ficção, desenvolveu-se o que tem sido chamado de mito do Adão americano.
Assim como Adão estava no jardim do Éden, como os primeiros peregrinos que
saíram do Mayflower em Plymouth Rock, cada nova geração de americanos tem
percebido a si mesma como uma geração sem limites de fronteiras nacionais ou de
tradição, de espaço ou de tempo, do mesmo modo como a fronteira ocidental se
estendeu além dos limites da imaginação, oferecendo oportunidades ilimitadas para
a criação de novos mundos36. Por que tal ficção é tão significativa? Porque a ficção
que um público escreve e lê revela o que esse público valoriza e o que ele despreza.
Avançando para os nossos dias, uma pessoa só precisa ir ao cinema para perceber
que o mito do Adão americano continua vivo e forte, apesar de não ter as visões
inspiradoras de esperança do passado. Nos anos 2000, e nos seguintes, Jason
Bourne, um assassino treinado pela CIA, com poderes ilimitados de autodefesa e
um caso grave de amnésia, talvez tenha personificado isso da melhor maneira37. E
Bourne permanece numa longa linha de heróis do tipo Lone Ranger, desde o Super-
homem, na década de 1970, passando por Indiana Jones, na década de 1980, até o
Exterminador do Futuro, na década de 1990 (observe o crescente niilismo nessa
trajetória).
Há muitas outras maneiras pelas quais poderíamos contar a história do
individualismo. Eu a tenho descrito como um dos maiores poderes ingleses. Um
historiador da igreja poderia voltar no tempo e contar a história da Reforma de
Lutero e de sua doutrina do sacerdócio de todos os crentes. Depois, poderia vir o
tratado Paz de Augsburgo, de 1555, que conferia aos príncipes da Europa a
capacidade de determinar se seu território seria protestante ou católico. O qual
poderia ser sucedido pela Paz de Vestfália, que concedia liberdade para as minorias
religiosas da Europa decidirem essa questão independentemente de seu príncipe,
uma vez que poderiam continuar sendo católicos romanos, luteranos ou
reformados. O qual poderia ser sucedido pelo Ato de Tolerância, de 1689, que
concedia aos cidadãos britânicos o direito de se reunirem em suas próprias casas de
culto, com seus próprios pastores, desde que permanecessem trinitarianos e
protestantes; e isso poderia ser sucedido pela cláusula de não estabelecimento de
uma religião oficial na Declaração dos Direitos Humanos dos Estados Unidos. Um
estudante de teoria política provavelmente preencheria sua história com
personagens como o Rei João e sua Carta Magna, Thomas Hobbes e seu Contrato
Social, com o discurso de John Locke sobre o “consentimento dos governados”, com
a versão do Contrato Social feita por Rousseau, a Declaração de Independência e a
cabeça do rei de França jazendo no fundo de um balde em meio a uma multidão que
aplaudia.
Sejam quais forem as ilustrações e as histórias que utilizemos para narrar o
drama emergente do indivíduo, o desfecho da história é o mesmo para a pessoa
mediana na atual cultura ocidental: toda associação é negociável. Todos nós agimos
independentemente, e todos os relacionamentos e situações da vida são um
contrato que pode ser renegociado ou cancelado, quer estejamos lidando com o
príncipe, com os pais, com o cônjuge, com o vendedor, com o chefe, com a urna
eleitoral, com o juiz do tribunal, ou, é claro, com a igreja local. Estou comprometido
essencialmente comigo mesmo e em maximizar minha vida, minha liberdade e em
buscar a felicidade. Entre os meus vários relacionamentos, posso optar por me
identificar com outro grupo, mas apenas enquanto isso for comprovadamente
favorável a minha pessoa. Retenho poder de veto acima de todas as coisas. Quando,
no decorrer dos acontecimentos humanos faz-se necessário remover os laços que
me ligaram aos outros, eu os removo.
Essa capacidade de negociar e vetar meus compromissos obviamente se estende,
por todo o caminho, para o céu e para a eternidade. O sociólogo Robert Bellah nos
apresenta ao termo “sheilaismo”, agora infame. Sheila Larson foi uma das pessoas,
entrevistadas por sua equipe de pesquisa, que se sentia com a liberdade de moldar
uma religião a sua própria imagem, selecionando e escolhendo os seus princípios
religiosos e morais favoritos e, por meio disso, “transformando a autoridade
externa num sentido interno”38, — quase como os clientes de um restaurante, que
dão uma olhada geral nas saladas. Foi exatamente assim que um pastor unitariano
definiu a religião dela: uma tigela de salada39.
É verdade que a identidade de grupo tem sido crescente pelo menos desde a
década de 1960. Isso aconteceu entre as feministas, que buscavam galgar um espaço
garantido para os indivíduos pertencentes à categoria demográfica chamada de
“mulheres”; como também entre alguns participantes do movimento dos direitos
civis, que buscavam medidas de solidariedade étnicas mais abrangentes. Isso
também tem ocorrido cada vez mais entre os “os círculos de estilos de vida”, ou seja,
blocos culturais com identidade própria, que não são formadas em torno de uma
identidade étnica, religiosa ou outra forma de identidade de grupo tradicional, mas
em torno de algum outro tipo de decisão, de estilo de vida, como homossexualidade,
donos de Harley Davidson ou ouvintes de hip-hop — movimentos completos, com
suas próprias revistas, filmes, igrejas, vestuário, discursos e assim por diante40. Não
creio que essa balcanização demográfica tenha feito algo para arruinar ou destituir
a supremacia do indivíduo. Ela tem simplesmente dado novas ferramentas a ele
para afirmar — ou tentar afirmar — sua supremacia individual.
INDIVIDUALISMO E AMOR
O que tudo isso tem a ver com a forma como definimos o amor hoje em dia? O
crescimento do individualismo ao longo dos últimos séculos tem afetado
sensivelmente todas as áreas da vida ocidental, incluindo a forma como
compreendemos e experimentamos o amor. Conforme o sociólogo Anthony
Giddens conta, a maioria dos casamentos na Europa pré-moderna foi celebrada não
por causa do amor ou da atração sexual, mas por razões econômicas. Pelo menos
para os pobres, o casamento era um meio de organizar o trabalho pesado41. Quando
se falava de amor no contexto do casamento, ele era caracterizado como o amor
compassivo entre o marido e a mulher administrando uma casa ou uma fazenda
juntos.42 Em fins do século XVIII, no entanto, aquilo que Giddens chama de “amor
romântico” começou a surgir em meio à agitação dos romances, muitos deles
escritos por mulheres, os quais apresentavam o relacionamento amoroso como um
romance, numa narrativa de autodescoberta e autoexpressão43.
O amor apaixonado, em si, não era algo novo em fins do século XVIII e no século
XIX. Todas as poesias que sobreviveram desde o antigo Egito até Romeu e Julieta, de
Shakespeare, retrata um amor passional e sexual, que consome tudo, que envolve
um indivíduo ou um casal, quase como uma doença, interrompendo suas obrigações
e atividades cotidianas e lhe inspirando atos de heroísmo, sacrifício ou desespero.
Essa narrativa de autorrealização era culturalmente distinta do amor romântico
emergente na parte final do século XVIII e no século XIX, a qual envolvia não apenas
a atração sexual, mas também a descoberta do outro indivíduo, com determinadas
características que supostamente completavam o indivíduo solitário. Por essa
razão, Giddens escreve:
O amor romântico pressupõe algum grau de autoquestionamento. Como eu me sinto em
relação ao outro? Como outro se sente em relação a mim? Os nossos sentimentos são
suficientemente “profundos” para suportar um envolvimento a longo prazo? Ao contrário do
amour passion (amor apaixonado), que afasta os indivíduos desordenadamente, o amor romântico
os separa das situações sociais mais amplas de um modo diferente. Ele prevê uma trajetória de
vida a longo prazo, voltada para um futuro antecipado, embora maleável44.

Giddens não especula sobre as origens ou causas do amor romântico. Será que
isso foi uma reação à sensação que as pessoas tinham de se sentirem à deriva, já que
muitas de suas amarras tradicionais haviam sido cortadas pelo individualismo
racionalista do Iluminismo? Por mais que os românticos quisessem definir a si
mesmos como contrários ao Iluminismo, eles continuavam como originários dele,
do mesmo modo como a pós-modernidade é originária da modernidade (sendo
simultaneamente uma reação contra ela, apesar de compartilhar algumas de suas
pressuposições mais básicas).
De uma maneira interessante, Giddens caracteriza os homens como
“vagarosos”45 nessas concepções transformadoras acerca do amor, já que o amor
romântico é “essencialmente um amor feminizado”46. Ao contrário das mulheres
passivas dos contos medievais, as mulheres dos romances românticos são
determinadas e independentes, capazes de enternecer os corações dos homens que
anteriormente eram indiferentes ou hostis a elas. Giddens não elucida o que ele
quer dizer com feminização do amor de modo tão claro quanto se poderia esperar,
mas parece que essa ideia repousa no fato de que as mulheres são as produtoras do
amor romântico e as únicas responsáveis pela manutenção de um casamento
baseado em tal amor, em face da contínua ameaça da infidelidade masculina. Os
homens que instigam o amor romântico não são homens masculinos, e sim
“sonhadores dengosos” que estão dispostos a construir toda a sua vida em torno de
uma mulher específica47. A feminização do amor também parece se encontrar em
seu caráter doméstico. Giddens caracteriza a família como sendo transformada pelo
advento do amor romântico, na medida em que as crianças estão cada vez mais
sendo reconhecidas como vulneráveis, necessitando de cuidados emocionais e
compaixão materna a longo prazo. O homem vitoriano permaneceu como a
autoridade de seu lar, mas sua autoridade foi cada vez mais enfraquecida por uma
ênfase crescente na ternura emocional entre pais e filhos48.

AMOR ROMÂNTICO VERSUS AMOR BÍBLICO


Sem dúvida, os aspectos desse amor romântico correspondem aos anseios da
amante e do amado em Cantares ou até mesmo aos elementos da linguagem do
amor entre Jeová e Israel, nos profetas do Antigo Testamento. A fim de que
nenhum leitor evangélico confunda essa ilustração do amor romântico com algo
completamente bíblico, vale a pena considerarmos um contraste, ou seja, o amor e o
casamento conforme caracterizado pelo pré-moderno Martinho Lutero. Lutero,
assim como os românticos, cria firmemente que os casamentos devem ser
fundamentados no amor. Ao criticar a instituição de casamentos arranjados, Lutero
escreveu: “Uma afeição paternal ou maternal pelos filhos deveria se recusar a
tolerar qualquer coisa diferente do amor e do deleite como base para o
casamento”49. E não apenas isso, Lutero, assim como os românticos, experimentou
pessoalmente e testemunhou a natureza intoxicante do início do amor: “O primeiro
amor é ardente, é uma intoxicação de amor, de modo que somos cegados e atraídos
para o casamento”50. Contudo, a concepção de Lutero sobre o amor conjugal não
era uma questão de autoexpressão e autorrealização. Ela ia além da intoxicação
inicial e aspirava a algo mais bíblico, algo feito da mesma essência do amor que os
crentes devem ter pelo seu próximo — uma dedicação sincera ao bem e à santidade
do outro.
Depois que nos livramos de nossa intoxicação, o amor sincero continua na vida conjugal do
piedoso; mas o ímpio se arrepende de ter se casado... Onde a castidade conjugal deve ser
mantida, o marido e a mulher devem, acima de todas as coisas, viver juntos em amor e
harmonia, de modo que um trate o outro com carinho, de modo sincero e com total fidelidade.
Essa dedicação sincera é uma das principais exigências para a criação do amor e do desejo pela
castidade51.

Para Lutero, o casamento e a paternidade não existem principalmente para que


os indivíduos humanos possam compreender, completar e expressar a si mesmos,
ou para criar filhos isolados de tudo o que existe, o que lhes ensinará a fazer o
mesmo. Em vez disso, o “supremo propósito dessas coisas é obedecer a Deus,
encontrar ajuda e conselhos contra o pecado; invocar a Deus; buscar o amor e
instruir os filhos para a glória de Deus; viver com sua esposa no temor de Deus e
levar sua cruz”52.
O amor romântico do fim do século XVIII e do século XIX difere principalmente
da concepção de Lutero e das concepções mais bíblicas a respeito do amor
geralmente desta forma: para o amante romântico, o ponto absoluto de referência
moral era uma fidelidade exclusiva ao relacionamento amoroso e à sua
maximização. Todos os outros laços sociais — familiares, de camada social,
religiosos, profissionais etc. — tornavam-se secundários e finalmente dispensáveis
por causa da preservação desse relacionamento humano primordial. Giddens não
utiliza o termo “idólatra” para caracterizar o amor romântico, mas é isso o que ele é.
Enquanto Agostinho reconhece que os seres humanos só encontrarão descanso
completo em Deus, o amante romântico encontra a plenitude de sua alma no outro.
No amor! Não que tudo a respeito do amor romântico esteja errado. Conforme
sugeri anteriormente, podemos encontrar reflexões sobre isso nas páginas das
Escrituras. No entanto, o amor romântico isola um ou dois aspectos do amor bíblico
— que é algo mais complexo e multifacetado — e faz deles algo supremo,
distorcendo, por meio disso, até mesmo o que há de bom nesse amor.
Não é difícil perceber como essa concepção sobre o amor romântico, endossada
pelo desejo que um indivíduo tem de se expressar e de se completar, afeta, nos dias
de hoje, as nossas concepções acerca do “amor” em todas as esferas da vida. Quer a
conversa gire em torno dos cultos da igreja, das amizades ou do namoro, eu sei que
você me ama quando você me deixa “ser eu mesmo” ou “expressar o meu eu” ou “ser
a melhor pessoa que posso ser”. E eu a amo quando permito que você faça o mesmo.
Por isso os americanos têm a tendência de descrever como “amorosas” as igrejas
que nos fazem sentir relaxados e confortáveis, não condenados. Nós podemos ser
nós mesmos ali. E também nenhum julgamento é importante em nossas amizades:
“Eu sei que ela é minha amiga porque ela não me julga. Posso ser verdadeira com
ela.”
Mas isso de fato é amor? Se o “amor” consiste apenas nisso, eu mesmo me torno
o verdadeiro objeto de minha afeição. Eu poderia alegar que “amo você”, mas, na
verdade, o que eu amo é a maneira como você faz que eu me sinta. Você faz com que
eu me sinta aceito, inteligente, romântico, estimulado, encorajado, especial,
afetuoso e fofo, encantado, atraído, atraente, apaixonado, tudo o que eu posso ser,
diligente, criativo, cheio de vida, intelectual e espiritualmente edificado, como um
herói, capacitado, desenvolvido, formidável! Conforme John Piper disse, nós
chamamos de “amor” o fato de as pessoas nos “supervalorizarem”53.
Assim como o amor dos romances melancólicos do século XIX, nós empregamos
a ideia de amor hoje em dia como sendo o argumento que vence todos os
argumentos. Se uma ação for motivada pelo amor, ela possui toda justificação de
que precisa. Este é o último trunfo: “Mas eles se amam”, ou: “Isso não parece uma
coisa amorosa”, ou: “O que você está dizendo pode até ser verdade, mas isso é falta
de amor”. Sabemos que o amor pode ser trágico. Sabemos que ele pode ser tolo. Mas
o amor em si é bom, e ele sempre o será. As pessoas religiosas justificam esse ponto
de vista dizendo: “Deus é amor”. As pessoas não religiosas destacam o bem da
humanidade e dizem — ou cantam — “Tudo o que precisamos é de amor”.
Não é impossível que o amor seja o justificador supremo, mas, se isso for
verdade, deve haver um amor perfeito e divino que justifica. E se aquilo que as
pessoas chamam de amor não for de fato amor? E se for uma sombra ou um
espectro que simplesmente se assemelhe ao amor real? Isso não poderia ser um
ídolo — um substituto para Deus —, que eles usam para justificar a si mesmos? E o
que acontece quando os seres humanos usam ídolos para justificar suas ações e
relacionamentos?
O AMOR AUTOEXPRESSIVO NAS IGREJAS
A pergunta que os pastores e líderes de igreja em especial precisam fazer a si
mesmos é: Como os crentes se relacionam com suas igrejas quando entendem o
amor como uma questão de autorrealização e autoexpressão? Para alguns, os
aspectos emotivos das reuniões corporativas da igreja assumem uma importância
indevida, seja no estilo de música ou na personalidade do pregador. Os crentes
avaliarão a igreja pelo fato de poderem “se identificar” com a música ou com o
pastor. “As guerras de adoração provavelmente se seguirão a isso, porque é através
da música que a maioria de nós se expressa. Justamente por isso, as letras de suas
músicas não apresentam tanto uma oportunidade para meditar sobre o amor de
Deus para com os pecadores (“ao contemplar a excelsa cruz onde o rei da glória
sucumbiu”), mas sim expressões repetidas do amor dos pecadores por Deus
(“Cantarei teu amor pra sempre, cantarei teu amor pra sempre, cantarei teu amor
pra sempre”). Os dois tipos de expressão são bíblicas, mas o último sempre deve ser
uma resposta ao primeiro. É isso o que acontece nas igrejas hoje em dia?
Se uma igreja entender que o amor deve ser uma questão de autoexpressão e
autorrealização, as classes de escola dominical, os pequenos grupos e outros
ministérios se dividirão demograficamente, porque os crentes se tornam mais
preocupados em encontrar pessoas que compartilhem de suas experiências de vida
do que em encontrar pessoas mais velhas com quem pdem aprender e pessoas mais
jovens a quem podem discipular.
A capacidade de integrar as pessoas de modo étnico, cultural ou etário se torna
bem mais difícil.
Assim como na cultura como um todo, igrejas inteiras chegam a representar os
vários círculos culturais da cidade. O princípio da unidade homogênea opera! As
reuniões da igreja dão a impressão de serem vibrantes e vivas, mesmo quando uma
concepção idólatra acerca do amor está sendo adorada. A pregação se torna um
“aconselhamento pessoal com base nos grupos”, conforme um pastor do início do
século XX afirma.
Os “testes dos dons espirituais” também se tornaram populares. Não importa em
que áreas a igreja tenha necessidades. Não importa onde as linhas de batalha
precisem ser reforçadas. “Preciso me sentir realizado através de meu envolvimento
na igreja, portanto, diga exatamente como Deus tem me equipado pessoalmente e
depois especifique uma posição que me permita dar expressão ao meu próprio
conjunto de dons”.
Quando o amor se torna uma questão de autoexpressão entre os crentes, o
evangelho em si — o próprio cerne do amor cristão — se torna remodelado para
propósitos terapêuticos. Conforme David Powlison escreveu:
Nesse novo evangelho, os grandes “males” a serem corrigidos não exigem qualquer mudança
fundamental de direção no coração humano. Em vez disso, o problema repousa em meu
sentimento de rejeição por parte dos outros; em minha experiência corrosiva sobre a vaidade
da vida; em meu sentimento agitado de autocondenação e falta de autoconfiança; na ameaça
iminente de aborrecimento, caso a minha música seja estragada; em minhas reclamações
exageradas quando um caminho árduo e longo está pela frente. Essas são as necessidades
importantes sentidas hoje em dia, as quais o evangelho se dedica a satisfazer. Jesus e a igreja
existem para fazer com que você se sinta amado, importante, aprovado, entretido e edificado.
Esse evangelho ameniza os sintomas angustiantes. Ele o faz sentir-se melhor. A lógica desse
evangelho terapêutico é um “Jesus a meu dispor” que satisfaz os desejos individuais e abranda
as dores físicas54.

O AMOR DE DEUS NO EVANGELHO DIZ RESPEITO APENAS A MIM.


Ao mesmo tempo, as igrejas impregnadas com essa fragrância da marca
romantizada do amor autoexpressivo, parecidas com banheiros perfumados,
repelem a clientela mais masculina, o que levou muitos autores a se preocuparem
com o afastamento dos homens das igrejas55. Afinal, nem todo mundo gosta dos
romances de Jane Austen ou dos filmes de Meg Ryan. Por essa razão, um grande
número de homens valorosos sacaram suas pistolas e retomaram alguns territórios
evangélicos. Livros, igrejas e conferências agora explicitamente se concentram
naqueles que são mais inclinados à seção da locadora com filmes de ação e aventura,
corridas de stock car, MMA e em qualquer um que goste de pensar em si mesmo
como o sujeito de maxilar quadrado e ombros largos. Ironicamente, todo esse
movimento continua enamorado com a autoexpressão e a autodefinição.
Que pressupostos culturais ocultos, no Ocidente de hoje, impedem os crentes de
levarem a sério a membresia da igreja? Por que a própria ideia de membresia e de
disciplina da igreja possui a débil característica de “desamorosa” para as nossas
emoções contemporâneas? Porque aprendemos, no Ocidente democrático e
capitalista, que devemos agir de modo independente, e que o propósito da vida é a
maximização da felicidade do indivíduo. Por essa razão, as igrejas locais são
simplesmente mais um grupo disputando a nossa lealdade pessoal, como os
partidos políticos ou as mercearias. E assim como fazemos com os partidos
políticos, com os amantes e com as mercearias, aprendemos a negociar e a
renegociar a nossa associação com as igrejas locais à medida que elas se alinham
exatamente com a nossa ideia acerca do eu de seus valores. A fim de legitimar essas
renegociações de contratos, temos redefinido o amor, para que ele se harmonize
com esse sentimento de ligação com outra pessoa que elogie e afirme a nossa
percepção sobre o eu e sobre seus valores. “Como você espera que eu me mantenha
nesse casamento? Nós temos nos distanciado. Não amamos mais um ao outro.” Se o
amor não é nada mais que autossatisfação e autoexpressão, essa questão é razoável.
Ao mesmo tempo, como consequência de um “institucionalismo” legalista, temos
aprendido a rejeitar quaisquer aspectos institucionais de uma igreja ou organização.
Afinal, as instituições atuam abrigando regras que refreiam as pessoas
independentes mais do que elas desejam ser refreadas.

Ponto 3: O consumismo nos tem levado a nos concentrarmos


no poder de atração do objeto do amor, em vez de nos
concentrarmos no processo de amar. Vemos as igrejas como
produtos que nos satisfazem ou não.
CONSUMISMO
De certa forma, poderíamos terminar nossa investigação acerca do
individualismo e de seu efeito sobre a forma como entendemos o amor. Mas,
correndo o risco ser um tanto redundante, creio que teremos uma compreensão
mais completa e mais útil sobre o amor e a igreja nos dias de hoje se nos
aprofundarmos mais em três aspectos do individualismo: consumismo, medo de
compromisso e descrença em relação a todos os dogmas.
Se a vida for uma série de ligações e compromissos negociáveis, então posso
fazer tudo o que puder para maximizar minhas aquisições. É isso o que um
consumidor faz. A felicidade e o descanso resultam das aquisições inteligentes, e a
infelicidade e a ansiedade, das aquisições medíocres. É lógico que o problema é que
nenhuma aquisição de fato encerra a negociação. A possibilidade de haver remorso
por parte do comprador sempre aparece. “Será que eu deveria ter adquirido outra
marca?” “Será que um modelo melhor será lançado no mês que vem?” “Qual é
política de troca de produtos da loja?”
A salvação sempre tem sido uma questão de troca, quer estejamos trocando os
nossos pecados pela justiça de Cristo ou uma camisa de tamanho médio por uma
maior. A troca não é o problema. O problema com a sociedade consumista, em
primeiro lugar, é que as pessoas acreditam que as coisas tangíveis devem ser
trocadas — uma camisa, um carro, uma profissão, uma amizade, um casamento, a
falta de escolaridade. A redenção é uma mudança de circunstâncias, o que significa
que a salvação é secularizada. Ela diz respeito a trocar algo neste mundo por alguma
outra coisa, ainda neste mundo. Nós buscamos a nossa tranquilidade, nosso
descanso, nossa paz e nossa alegria neste mundo ou nesta época.
Em segundo lugar, a sociedade consumista não tem ideia de que a primeira coisa
que precisa ser mudada é o próprio coração de uma pessoa — um coração de pedra
por um de carne, um coração natural por um sobrenatural. O consumidor, pelo
próprio fato de ser um consumidor, está se esforçando tanto para comparar este
produto com aquele, que raramente tira os olhos dos produtos tempo suficiente
para interrogar os apetites de seu coração. Ele não pergunta: “O que os meus
apetites revelam? Estou desejando as coisas certas?” Uma mentalidade consumista
tem uma obsessão desordenada e enganosa pelos objetos de seus desejos, em vez de
pelas qualidades desses desejos.
No passado, os limites de tempo e espaço, tradição e comunidade, agiam para
reprimir e amestrar os apetites, para melhor ou para pior. Quando o indivíduo está
livre de todas as tradições e da comunidade, os apetites não possuem outra coisa
para guiá-los e moldá-los, a não ser o acaso e os próprios caprichos.
CONSUMISMO E AMOR
Já no ano de 1940, o sociólogo Erich Fromm observou que as concepções
ocidentais acerca do amor, na verdade, haviam se desviado para o consumismo.
Considere a forma como o processo do namoro típico funciona. Um homem avalia o
seu próprio poder de aquisição baseado naquilo que ele entende que é valorizado
pelas mulheres: personalidade, humor, estatura, perspectivas futuras e assim por
diante. Com base nessa autoavaliação, ele faz a melhor aquisição possível de acordo
com, sejam lá quais forem, as características que ele mais valoriza nas mulheres,
tais como inteligência, beleza ou contexto familiar. Num mercado com ofertas
abundantes, ele pode ser mais específico em suas exigências. Ele não está
procurando apenas beleza, mas sim uma morena com essa ou aquela estatura. Em
tudo isso, Fromm observou que as pessoas têm tirado o seu foco das “qualidades”
do amor e colocado nos “objetos” do amor. Estamos mais preocupados com quem
nos ama do que em amar. Ele escreve: “Desse modo, duas pessoas se apaixonam
quando sentem que encontraram o melhor objeto disponível no mercado, levando-
se em conta as limitações de sua própria mudança de valores56.”
Quando abordamos o amor e os relacionamentos como consumidores, o que nos
chama a atenção são as características mais superciciais, visto que os processos de
tomada de decisão do consumidor baseiam-se nas qualidades externas em vez de
nas qualidades mais profundas, invisíveis. A beleza conta mais do que o caráter; o
salário mais do que a lealdade; os costumes mais do os valores; o desempenho
sexual mais do que a fidelidade. No amor romântico do século XIX, a sexualidade era
considerada como algo que surgia do verdadeiro amor. Na época da revolução sexual
ocorrida na última metade do século XX, o sexo bom se tornou uma condição prévia
para o amor. O sexo passou a ser um teste no início do relacionamento, em vez de
um prêmio a ser conquistado na intimidade do relacionamento. Uma ênfase muito
maior foi dada à experiência sexual e ao tipo físico57. A pornografia encontrou um
mercado mais facilitado, já que o público é facilmente ludibriado por suas fantasias.
O AMOR CONSUMISTA NAS IGREJAS
Não é coincidência o fato de que uma igreja “amorosa” acredite que o tamanho e
o desempenho sejam importantes. A melhor forma de amar e alcançar o mundo é
com uma boa linha de produtos. As igrejas maiores possuem os recursos
necessários para esse tipo de coisa, as igrejas pequenas não. Logo, as igrejas
pequenas enfraquecem. Um pastor relatou para outro recentemente a sua
experiência de perder 1.000 dos 2.500 membros para uma igreja grande, voltada
para os frequentadores não convertidos, quando esta se mudou para perto da sua
(uma igreja que não era tão menor assim, na verdade). De modo notável, as
contribuições da igreja não diminuíram após a saída dos mil membros; na verdade,
aumentaram. Parece que foram os consumidores que deixaram a igreja.
Quando os pastores falham em ensinar aos crentes que o problema do amor
começa com sua qualidade em vez de com seus vários objetos, as habilidades
cruciais que os crentes desenvolvem no shopping são transferidas para a vida de
suas igrejas. As pessoas vêm, ouvem a música, ouvem a pregação, olham as outras
pessoas ao redor — “Elas se parecem comigo? Ficarei confortável com elas?” — e
fazem uma avaliação de tudo quanto viram, no caminho para a casa: “Eu gostei da
música, com exceção de um cântico. O pregador não foi muito divertido. Você viu
alguma programação para adolescentes?” Elas avaliam suas experiências em vez de
seus corações. Elas julgam a igreja em vez de deixar que a Palavra de Deus as julgue.
Em tudo isso, elas falham totalmente em reconhecer que não estão amando o seu
próximo como a si mesmas. A pergunta que elas fazem não é: “Que estilo de música
ajuda o meu próximo a louvar a Deus?” Elas perguntam: “Que estilo me satisfaz?”
Os líderes de igreja com inteligência mercadológicatêm imaginado que podem
utilizar diversos cultos para atrair diferentes segmentos do mercado. Os líderes de
igreja com inteligência mercadológica têm imaginado que eles podem começar
“cultos” múltiplos, todos com a mesma marca confiável da franquia. Eles se
esqueceram — ou nunca foram ensinados — que o amor verdadeiro exige
conhecimento pessoal, porque o conhecimento pessoal é uma condição prévia para
a responsabilidade, a disciplina e a santidade. Com milhares de membros espalhados
por cultos múltiplos, haverá consideração por algumas ovelhas, mas por muitas
delas não. Muitas ovelhas perambularão por aí, procurando um produto melhor, e
ninguém ficará sabendo. Paulo não estava realmente querendo dizer para os
presbíteros darem atenção a todo o rebanho, não é mesmo? Mas apenas para a
maior parte dele (At 20.28).
O nome do jogo de muitas igrejas hoje em dia é “O jeito certo é do seu jeito”. Os
produtos não são feitos para durar, mas sua depreciação é planejada e esperada. Um
culto bem-sucedido é aquele que produz uma elevação espiritual ou uma
experiência no topo de um monte. O crescimento é calculado pelo número de
decisões feitas, não por “uma obediência duradoura a uma mesma norma”, nas
palavras de Nietzsche. As estatísticas e outras formas de medida a curto prazo são
de total importância. Quando os números começarem a mergulhar na curva
sigmoide, mude a engrenagem da programação, a fim de produzir outra propulsão
no crescimento. As virtudes como santidade, autossacrifício e fé não podem ser
contabilizadas, razão pela qual elas não têm importância. Conforme Mark Dever
afirmou, as imagens dos gráficos estatísticos são mais adoradas do que as imagens
esculpidas58.

Ponto 4: A fobia de comprometimento remove o


compromisso do amor, e ele se torna uma questão de
vantagem pessoal. A ideia de compromisso é removida de
nossa visão de igreja.
A FOBIA DO COMPROMISSO
Uma consequência adicional do individualismo e do consumismo é o medo de
assumir compromissos obrigatórios. A ambição de buscar a felicidade nas
negociações e renegociações de nossos muitos contratos significa ter a certeza de
que nenhum contrato será excessivamente obrigatório. Ou melhor, significa evitar
todos os contratos enquanto manipulamos as circunstâncias para conseguirmos
todos os benefícios de um contrato.
Essa é uma generalização grosseira que provavelmente não faz jus às
complexidades da vida urbana do século XXI. Mas as notáveis mudanças em uma
série de indicadores sociais sugerem que as pessoas hoje em dia são geralmente
mais relutantes em assumir compromissos e ligações obrigatórios, que limitem as
opções disponíveis a eles no futuro, do que as pessoas das gerações passadas59.
Alguns exemplos concretos deverão afirmar a importância disso, uma questão que
muitos de nós, creio eu, conhecem por experiência própria.
Em primeiro lugar, os americanos hoje em dia são menos propensos a se filiarem
a clubes, associações e grupos cívicos do que seus predecessores. O francês Alexis de
Tocqueville pode ter retornado de sua famosa viagem de 1831 aos Estados Unidos
com relatórios surpreendentes sobre a vibrante vida cívica e as atividades
associativas dos americanos, mas os pesquisadores recentes têm revolvido mais de
um século de anuários maçônicos, registros de pagamentos de uniões sindicais,
relatórios estatísticos do Rotary Clube, da liga infantil de basquete, da União dos
Escoteiros e até mesmo dos membros mais ilustres do clube de boliche para
descobrir que o país que Tocqueville viu está mudado60. O número de organizações
que exigem um envolvimento cara a cara e um compromisso substancial por parte
dos membros tem despencado abruptamente. Por outro lado, as organizações
nacionais e internacionais como o Sierra Club ou a National Audubon Society, que
prometem enviar boletins ocasionais em troca de nada mais que uma verificação
anual de membresia, têm crescido61.
Em segundo lugar, a atitude mais lenta que os ocidentais têm tomado em relação
à instituição do casamento sugere uma incapacidade cultural maior para assumir
compromissos com obrigações. Tanto os homens quanto as mulheres estão se
casando em idade mais madura. Os índices de concubinatos estão em alta. Os
divórcios são mais comuns. As estatísticas acerca do segundo e terceiro casamento
estão aumentando. E não é novidade para ninguém que o sexo fora do casamento é
cada vez mais aceito na cultura como um todo. Justamente por isso, a contínua
aprovação cultural em favor do aborto, nas petições, sugere uma relutância em
relação aos compromissos obrigatórios da paternidade.
Em terceiro, os ocidentais estão mudando de profissão e de carreira com maior
frequência no curso de sua vida profissional do que no passado. De acordo com as
estatísticas do Departamento do Trabalho dos EUA, em 2008, a média de
estabilidade no emprego para os trabalhadores entre 25 e 34 anos de idade era de 2
anos62. Se um indivíduo começar a trabalhar aos 20 anos, ele terá, aos 40, uma
média de sete profissões. Assim como acontece com todas essas estatísticas,
precisamos ajustar as conclusões que tiramos desse fato com outros fatores de
qualificação. Por exemplo, o ritmo de mudança de emprego entre os trabalhadores
comuns no último século é também, sem dúvida, resultado da crescente
complexidade e eficiência da economia global, que altera as profissões e as torna
desnecessárias com muito maior rapidez do que no passado. Ainda assim, seja qual
for a causa, o efeito em cadeia é uma menor capacidade para se comprometer com
uma única carreira no curso de vida de uma pessoa.
Em quarto lugar, alguns comentaristas observaram a capacidade que as igrejas
evangélicas conservadoras possuem para aumentar as responsabilidades de sua
membresia em comparação com seus colegas protestantes mais bem-sucedidos,
porque os evangélicos “exigem mais” de seus membros doutrinariamente63. O que
essa conclusão não reconhece é a tendência simultânea que os frequentadores de
igreja têm para se afiliarem a igrejas maiores e até mesmo megaigrejas, onde as
exigências para o envolvimento interpessoal, par a responsabilidade e para o
compromisso são geralmente menores. Um número maior de americanos está se
unindo às igrejas? Talvez. Mas será que essas igrejas estão permitindo que seus
membros persistam no anonimato? Geralmente sim.
Minha geração em especial — a geração x64 — adora o deus das opções. As
pessoas atingem os seus vinte e até trinta e tantos anos na incerteza quanto ao que
querem ser “quando crescer”, motivando pelo menos uma dupla de escritores a
caracterizar esse fenômeno como “adolescência tardia”65. Quantos homens
(incluindo eu) não tenho aconselhado durante a angustiosa decisão de se
comprometer ou não com esta ou aquela mulher? Afinal, outra mulher “muito
melhor” poderia aparecer no mês seguinte. A mentalidade consumista, a
multiplicidade de opções e a preocupação do comprador em se arrepender impedem
a capacidade de ter compromisso, desde as profissões até as esposas, os
restaurantes e as casas. Os compromissos nos amarram, e numa cultura onde a
maximização do prazer a curto prazo tem seu prêmio, os compromissos
obrigatórios são ameaçadores. Os compromissos obrigatórios, por natureza, são
criados a fim de impedir que os indivíduos vivam de acordo com seus caprichos e
fantasias. Eles restringem a liberdade. São prazeres adiados.

A FOBIA DO COMPROMISSO E O AMOR


O que o temor do compromisso faz com o amor? Ele reconfigura o amor de
modo que a obrigação ou a quebra de compromisso se torne menos relevante. A
lealdade e a fidelidade são removidas dos ingredientes do amor. A marca do amor
romântico que Giddens descreveu como característica do fim do século XVIII e do
século XIX não era estática, ela evoluiu. Ela serviu “para abrir caminho” para algo
que ele chama de relacionamento puro. O relacionamento puro é a relação social na
qual entramos “por aquilo que podemos obter de cada pessoa, através de uma
associação consistente com o outro, e que se prolonga somente na medida em que
ambas as partes acreditam que estão recebendo satisfação suficiente por parte da
outra pessoa envolvida na relação”66. Ela é pura ou descontaminada de qualquer
obrigação moral, qualquer sentimento de dever ou responsabilidade, qualquer
compromisso a longo prazo e qualquer apelo para servir ao outro ou para cuidar
dele. Ela existe simplesmente por causa da utilidade presente e não é constrangida
por coisa alguma, senão pela preferência pessoal.
Uma cultura caracterizada por esses “relacionamentos puros” é uma cultura
onde as amizades, as parcerias no trabalho, os parceiros sexuais e a membresia da
igreja existem simplesmente em função daquilo que é imediatamente vantajoso
para o bem-estar de alguém, e continuam existindo apenas enquanto as coisas
permanecerem assim. Sempre que um relacionamento se tornar inconveniente ou
exigir demais, deve ser deixado para trás. Por essa razão, os crentes deveriam se
perguntar: “Eu gasto tempo somente com pessoas que considero agradáveis? Eu
evito pessoas com necessidades ou com quem tenho dificuldades para me
relacionar? Abandono a igreja quando as coisas se tornam difíceis?”

O AMOR SEM COMPROMISSO NAS IGREJAS


Quando a ideia de compromisso obrigatório é removida da definição de amor, as
igrejas se tornam lugares onde os sacrifícios pessoais são raramente feitos. Desse
modo, o evangelho é raramente exemplificado. (Cumprir as alianças com os
pecadores sempre exige um autossacrifício.) Em vez disso, as pessoas vêm e vão —
“pulando de igreja em igreja” — com nenhum cuidado. Elas se associam facilmente
às igrejas e facilmente as abandonam, visto que o fato de fazerem isso não viola sua
concepção de amor e suas obrigações. Elas não param para medir as consequências
de seu afastamento na vida dos outros. Elas não sentem o peso de sua
responsabilidade pelos outros. Não discutem as razões de sua saída com os
pastores. Elas apenas se vão. Devolvem suas compras no balcão. Isso não é nada
pessoal. Em tudo isso, elas pedem pouco dos outros e dão pouco em retribuição.
O que é trágico é que esses crentes que vêm e vão das igrejas estão simplesmente
imitando muitos pastores. Um homem vem por alguns anos, ouve falar de outra
oportunidade, vai embora e não pensa coisa alguma sobre isso. Sua compreensão
acerca do amor é destituída de qualquer sentimento de obrigação a longo prazo por
um rebanho.
Com tudo isso, a ligação entre a doutrina e a prática enfraquece. Os crentes
professam ter fé no evangelho. Seu sepultamento e ressurreição simbólicos nas
águas do batismo indicam que eles desejam tomar suas cruzes e seguir o seu
Senhor, mas a própria ética de seu amor sem compromisso não lhes proporciona a
oportunidade de cumprir essa profissão de fé com suas ações. Essas ovelhas são
ensinadas de modo tão deficiente, tão de acordo com as concepções
descompromissadas da cultura secular acerca do amor, que a consciência de um
homem é raramente alertada (se é que é alertada) quando ele se vira para sua
esposa e diz: “Querida, estou cansado desta igreja, vamos procurar outra.” Tão logo
ela concorde e eles saiam da igreja, eles falham em reconhecer sua violação do novo
mandamento que Cristo deu a sua igreja — “Ameis uns aos outros, assim como eu
vos amei” —, embora eles possam afirmar esse mandamento em suas mentes. O
mundo, como um todo, olha para a igreja cristã e ouve sobre o “amor cristão”, mas
não vê nada diferente daquilo que já conhece, porque os nossos compromissos de
uns para com os outros são insignificantes e indolentes. Então, por que os
descrentes se preocuparão (desde que sejam entretidos)?
Cada vez mais, os crentes estão deixando de se associar às igrejas. A “experiência
providenciada por suas igrejas”, afirma o famoso pesquisador de opinião pública
evangélico George Barna, “parece superficial. Eles estão buscando uma experiência
de fé que seja mais vigorosa e inspire mais admiração” do que aquilo que a antiga
igreja local pode lhes oferecer67. O próprio Barna fica orgulhoso. Se um cristão está
“mergulhado na igreja local, minimamente envolvido ou completamente
desassociado de uma igreja local, é irrelevante para mim (e, em algum sentido,
também para Deus). O que importa não é com quem você se associa (por exemplo,
com uma igreja local), mas quem você é”68. Lembre-se, o amor é autorrealização e
relacionamento, e as igrejas não estão, aparentemente, ajudando esses indivíduos.
Barna cita inúmeras estatísticas para afirmar esse ponto de vista, tal como o fato de
que oito em cada dez crentes “não sentem que entraram na presença de Deus ou
experimentaram uma ligação com Ele durante o culto de adoração”69. Isso acontece,
em parte, porque as igrejas não têm lido as estatísticas como Barna, e não têm
descoberto que “o modo como os americanos experimentam e expressam sua fé”
tem mudado significativamente70. Isso significa que as igrejas locais estão na
verdade se interpondo no caminho dos crentes “dedicados” que “são sérios em sua
fé”71. Para alguns crentes, a solução é manter as igrejas locais fora do caminho.
Assuma o controle de sua própria jornada espiritual. Para outros, a solução é
descobrir uma das novas “igrejas butiques”, que oferecem as “experiências
personalizadas” que os americanos estão procurando72. Do mesmo modo, os
crentes podem crescer em maturidade sem todas as confusões, burocracias e
redundâncias da vida da igreja local tradicional. A conclusão final de Barna? Você
pode ir para uma igreja ou sair dela, dependendo daquilo que for bom para você.
Você é o administrador de seu portfólio espiritual, o seu próprio capitão, o seu
pastor.
O pastor de uma megaigreja e inventor de modismos Bill Hybels descobriu a
dependência exagerada que sua igreja tinha de programas consumistas. A solução?
Sua igreja, a de Willow Creek, pretende desenvolver um “crescimento personalizado
ou ‘plano’ de treinamento”. Se você vai para um spa, diz ele, você tem um personal
trainer que lhe diz o que você precisa fazer. Precisamos da mesma coisa em nossas
igrejas, a fim de produzir pessoas que se autoalimentem73.
Então, por que não um livro sobre membresia e disciplina da igreja? Olá! Tem
alguém aí?

Ponto 5: A Descrença remove todo julgamento do amor, o


que nos leva a esperar uma aceitação incondicional por parte
das igrejas. O pragmatismo também dá resultados.
O CETICISMO
Juntamente com o consumismo e a fobia de compromisso, como consequência
do individualismo em nossa atual cultura, está o ceticismo em relação a todas as
formas de doutrinas ou dogmas. O fato de adotar qualquer dogma como
completamente verdadeiro — ou, nas palavras de Francis Schaeffer, como uma
“verdade verdadeira” — é ridicularizado como dogmatismo. Os dogmas se
equivalem ao dogmatismo.
A fim de que o indivíduo continue livre para avançar gradualmente para o Oeste,
para cima e para o exterior, para novos territórios e possibilidades, todas as
doutrinas e costumes do mundo antigo devem ser considerados como algo do qual
você pode abrir mão: talvez, o que minha mãe me ensinou seja verdade, talvez não.
Eu tenho que ver se isso serve para mim. Se a religião de meus avós se mostrar
vantajosa para a minha situação, eu a manterei. Se ela se mostrar como um fardo
para que eu alcance meu próprio telos e meu “destino manifesto”, então ela deve ser
descartada ou, pelo menos, modificada. É evidente que uma abordagem pragmática
da vida geralmente é uma consequência do ceticismo em relação à verdade74.
Em nossa época, surpreendentemente, o ceticismo se tornou o próprio alicerce,
a própria pedra fundamental sobre a qual toda a nossa liberdade pessoal e política
repousa — ou, pelo menos, aquilo que entendemos como nossa liberdade75. Esse
foi o ponto de partida de Descartes em sua busca pela verdade. Contudo, o
ceticismo assumiu um novo nível de resistência no século XX. Em resposta à
devastação provocada por duas guerras mundiais, pelo holocausto e pelas ideologias
totalitárias por trás desses eventos, a sociedade aberta de Karl Popper buscava a
liberdade na renúncia de todas as alegações das verdades absolutas.
Semelhantemente, Isaiah Berlin evitou todas as formas de liberdade baseadas em
algum tipo de princípio verdadeiro, optando, em vez disso, por definir
superficialmente a liberdade como “libertação da restrição” e nada mais. A
verdadeira liberdade (o que ele chama de “liberdade negativa”) não é uma
consequência de vivermos de acordo com a verdade, mesmo que esta seja uma
verdade autodeterminada. Em vez disso, a liberdade é simplesmente não ser
impedido de fazer o que quer que seja que eu deseje fazer. Esta é a única verdade
com a qual todos podemos concordar: “Fique longe do meu caminho.”
As proposições mais recentes apresentam mais dessa mesma ideia. Tudo o que
vem após o “véu da ignorância”, de John Rawls, até o “ironista liberal”, de Richard
Rorty, exige que o indivíduo trate com ceticismo todos os compromissos, todas as
doutrinas, todas as concepções de justiça ou liberdade adquiridas com sentido
diferente disso — todos os compromissos, isto é, exceto o compromisso para com o
liberalismo filosófico76. Não temos que concordar com todos os compromissos
políticos e filosóficos de Allan Bloom a fim de concordar com a forma como ele
caracteriza a mudança no culto de nossa cultura aberta:
Abertura esta usada como a virtude que nos permite buscar o que é bom por meio da razão.
Isso agora significa aceitar todas as coisas e negar o poder da razão. A busca desenfreada e
irrefletida pela abertura, sem reconhecer seu problema inerentemente político, social ou
cultural como o alvo da natureza, tem tornado essa abertura sem significado... O que temos
ensinado é: abertura para a capacidade de estarmos fechados77.
O CETICISMO E O AMOR
Não é difícil perceber o que acontece com a compreensão que uma cultura tem
sobre o amor quando o ceticismo em relação a todas as verdades se torna a única
moral absoluta: o amor se torna mutável, adaptável e maleável. O amor se torna
“qualquer coisa que combine” ou, pelo menos, “o que quer que seja que funcione
para você”. O amor se torna uma aceitação incondicional. Se você me ama com
condições, então você não me ama.
O oposto do amor, de acordo com o pensamento de hoje, é o julgamento, a
intolerância ou o exclusivismo como o dos racistas, dos homofóbicos e das igrejas
que traçam limites. Por um lado, eu sei que você me ama se você me aceita como eu
sou e tolera qualquer coisa que eu diga ou pense, sem me condenar. Na verdade, o
fato de me amar significa mais do que apenas me aceitar; significa aceitar e afirmar
minhas decisões sobre meu estilo de vida como legítimas e boas.

A ACEITAÇÃO INCONDICIONAL NAS IGREJAS


O que é absolutamente espantoso é que movimentos inteiros de igrejas
evangélicas e pós-evangélicas agora apelam para que os cristãos desvalorizem a
ortodoxia (crença correta) por causa da ortopraxia (prática correta), pensando que
esse apelo, de alguma forma, libertará os cristãos para amar de modo verdadeiro e
autêntico. A acusação que o Dr. Martyn Lloyd-Jones, um pastor de meados do
século XX, faz à igreja de seu tempo é certamente ainda mais relevante nos dias de
hoje:
Houve períodos na história em que a preservação da própria vida da Igreja dependia da
capacidade e disposição de determinados grandes líderes para diferenciar a verdade do erro,
apegando-se com ousadia ao que era bom e rejeitando o que era falso. Mas a nossa geração não
aprecia nada próximo disso. Ela é contrária a qualquer demarcação precisa da verdade e do
erro78.

Quando os líderes evangélicos e pós-evangélicos apelam para que a igreja


realinhe suas ênfases, eles estão, tragicamente, apelando para que a igreja se renda
às piores perversões e degradações do conceito de amor inventadas pelo Ocidente
secular ao longo dos últimos séculos: o amor como autoexpressão, o amor como
satisfação do consumidor, o amor como “unidade de medida para as questões”, o
amor como falta de compromisso, o amor como qualquer coisa que seja eficaz para
você. Anteriormente, perguntei o que acontece quando os seres humanos usam
ídolos para justificar suas ações e relacionamentos. A resposta é que eles escolhem
seu próprio estilo de vida, chamam isso de “amoroso” e depois colocam o selo da
aprovação de Deus sobre ele. Além disso, qualquer instituição cristã que busque
impor seus limites e políticas se tornam alvos de críticas.
Quando os evangélicos conservadores traçam sua ascendência teológica, eles são
rápidos em dizer que alguém como Friedrich Schleiermacher representa o lugar na
árvore genealógica onde o liberalismo teológico fez brotar um ramo, e isso não deve
ser confundido com sua própria linha de pensamento. Schleiermacher, que foi
plantado e cultivado no viveiro do Romantismo, pediu para não ser contado entre os
teólogos proposicionais, que “acreditam que a salvação do mundo e a luz da
sabedoria devem ser encontradas numa nova roupagem das fórmulas ou numa
nova organização das provas existentes”79. Em vez disso, afirmou ele, a verdadeira
religião “deve ter vida e conhecer a vida em um sentimento imediato”. Desse modo,
ele diz a seu leitor “para fixar sua atenção nas emoções e disposições internas”80.
Mas a ideia de Schleiermacher sobre “sentimento” é um pouco mais complexa do
que as sensações conscientes que descrevemos como “sentimentos”. Ainda assim,
não é difícil perceber como a sua abordagem sobre encontrar-se com Deus em
algum plano meditativo e intuitivo reflete o frequentador de igreja mediano, que
caminha para o culto no domingo de manhã na esperança de encontrar uma
experiência terapêutica do amor de Deus, fechando os olhos e expressando o seu
amor por Deus por meio de cânticos cíclicos com refrões de louvor. Schleiermacher
pode ter sido barrado na porta da frente, mas ele veio furtivamente pela parte de
trás, por uma porta destrancada por toda uma cultura que tem sido levada a
acreditar que o amor é essencialmente uma questão de autoexpressão e
autorrealização. O “emocionalismo”, que é a visão de que qualquer afirmação da
verdade é simplesmente uma expressão de nossas atitudes emocionais, “tem se
incorporado a nossa cultura”, afirma o filósofo Alasdair MacIntyre. Por essa razão,
os crentes de hoje, assim como qualquer outra pessoa em nossa cultura, “falarão e
agirão como se o emocionalismo fosse a verdade, não importa qual seja o ponto de
vista teórico que eles confessem”81. Os evangélicos podem alegar que se importam
com a doutrina, mas geralmente sua religião é conduzida simplesmente com base
no nível emocional. “O que Deus está lhe dizendo?” “O Senhor está me chamando
para outra igreja.” “O que Jesus faria?”
Os pós-evangélicos então afirmam ter ultrapassado as divergências teológicas
liberais e conservadoras, e apontam o dedo para os evangélicos, argumentando que
seu método de formulação doutrinária é apenas um vestígio do racionalismo
iluminista. Essa conversa está encerrada, dizem os pós-evangélicos. Ao fazerem
isso, ironicamente, eles simplesmente repetem o próprio Schleiermacher e falham
completamente em reconhecer que sua própria vida e fôlego, como pós-evangélicos,
dependem do fato de que seus pais evangélicos nasceram e foram criados na casa de
Schleiermacher, mesmo que eles digam que isso se deu na casa de outra pessoa.

O PRAGMATISMO É INEVITÁVEL
Sempre que uma verdade, um dogma e as linhas divisórias forem deixadas de
lado nas igrejas, o que vem em seguida quase sempre é o pragmatismo, assim como
acontece nos círculos filosóficos. “Isso vai funcionar?” se torna a principal pergunta
que os líderes da igreja fazem ao considerarem suas reuniões, ministérios e
programações. Portanto, o fato de o pragmatismo reinar de forma suprema nas
igrejas do Ocidente pós-moderno não deveria nos surpreender, quer as igrejas
sejam avivadas, liberais abastadas, voltadas para os frequentadores não
convertidos, emergentes ou simplesmente lideradas por indivíduos realmente
legais, que fazem tudo o que podem para evitar os desentendimentos que às vezes
são provocados pela doutrina. Muitas igrejas reavivalistas abertamente ortodoxas,
pertencentes à geração da Segunda Guerra Mundial, muitas igrejas supostamente
voltadas para os ortodoxos, da geração posterior à Segunda Guerra, e muitas igrejas
emergentes não ortodoxas da geração das décadas de 60 a 80 entregaram as rédeas
da igreja para “aquilo que funciona”. Cada geração tem simplesmente descoberto
que algo diferente funciona para a sua época e localização.
Pensar de modo pragmático, por si só, não é algo ruim. O problema aparece
quando o pragmatismo preenche o vácuo deixado pela rejeição aos princípios
bíblicos, de modo que o pragmatismo se torna o único princípio. O pragmatismo,
por sua própria natureza, exige que baseemos nossas decisões em resultados
visíveis, e até mesmo computáveis. Mas certamente a utilidade das estatísticas em
uma igreja cristã, na melhor das hipóteses, é limitada, e na pior delas, é enganadora.
Uma igreja grande é sinônimo de uma pregação sadia ou de entretenimento? Isso é
difícil de dizer. Como podemos quantificar a ação daquilo que é sobrenatural? Como
podemos avaliar com precisão aquelas coisas que a Bíblia nos garante que só podem
ser vistas com os olhos da fé? Com que eficiência podemos discernir o que está na
mente de Deus?
Em outras palavras, as mesmas coisas que dão vida e fôlego à igreja não podem
ser vistas ou medidas. Uma centena de escoteiros pode se reunir numa sala, assim
como uma centena de maçons, assim como uma centena de muçulmanos, assim
como uma centena de pessoas que se autodenominam “cristãs”. Qual é a diferença
entre esses grupos? Estatisticamente, nenhuma. Qual é a diferença espiritual entre
eles? Como se espera, a diferença é total. Mas as diferenças espirituais só podem ser
vistas com olhos espirituais. Elas não podem ser pesquisadas com o tipo de
perguntas que os seres humanos são capazes de responder marcando um X num
quadradinho, pelo menos não até que os pastores e as igrejas se tornem capazes de
discernir quais conversões são genuínas e quais não o são; e se o crescimento
numérico de uma igreja é sinal da decisão de Deus na eternidade de abençoar a
igreja com fertilidade, ou simplesmente da eficácia das programações cativantes.
As estatísticas podem ter a sua utilidade para as igrejas, mas as coisas mais
importantes em relação à igreja não podem ser medidas — as diferenças entre o
falso e o verdadeiro, entre a carne e o espírito, entre a mente dos homens e a mente
de Deus. Somente quando estivermos diante de Deus, no dia do julgamento, a real
medida das coisas será revelada. Infelizmente, muitos pastores e igrejas tentam
medir seu ministério por aquilo que pode ser visto, em vez de medir por aquilo que
é invisível.
É irônico, mas exatamente nessa questão acerca do que é invisível a aniquilação
da doutrina leva a igreja não só ao pragmatismo, mas também pode levar a uma
nova ênfase na liderança do Espírito Santo82. É quase como se a perda do
pensamento doutrinário, que cria limites, permitisse que as igrejas pudessem se
voltar para a contagem dos números ou para a perseguição ao Espírito (ou para
ambas as coisas). Esta última opção permite que os evangélicos apelem cada vez
mais para aquilo que o Espírito possa estar nos dizendo ou para a forma como Deus
poderia estar agindo, aqui e agora. “Vamos apoiar o que Deus está fazendo!” Henry
Blackaby, de linha teológica conservadora, fala dessa maneira, como também o
“emergista” Rob Bell. E será que isso não contradiz o meu ponto de vista a respeito
de os evangélicos se renderem àquilo que pode ser visto e medido? Renderse à ação
do Espírito é um sinal de humildade, certo?
Eu certamente não estou propondo que os crentes não devam submeter seus
planos ao Espírito. Ele inclina os corações dos crentes de modo maravilhoso em
várias direções. Estou simplesmente observando que algumas igrejas que falam
muito a respeito de nos submetermos humildemente àquilo que o Espírito possa
estar nos dizendo falham, ao mesmo tempo, em se submeter de modo
consciencioso àquilo que o Espírito tem falado nas Escrituras. Não quero misturar
as Escrituras com as doutrinas formuladas pelos homens, mas assumo que as
Escrituras devam ter algum valor para os seres humanos. Devemos ser capazes de
fazer afirmações reais em relação ao que ela está dizendo — ou seja, afirmações
doutrinárias. Se nem as Escrituras nem a doutrina guiar o modo como nossas
igrejas se reúnem, organizam-se e cumprem a ordem de sua Grande Comissão, não
seria este o caso de estarmos invocando o nome do Espírito simplesmente para
justificar nossas próprias ideias? Numa era cética com respeito a todos os dogmas,
isso não seria ao menos uma tentação maior?
LIGANDO OS PONTOS
Não é difícil ligar os pontos entre o individualismo da nossa cultura, o
consumismo, a dificuldade em assumir compromisso e o ceticismo com respeito a
todas as formas de dogma à relutância que os crentes têm para se associarem às
igrejas, ou, pelo menos, para considerarem o seu cristianismo como sendo
profundamente dependente de sua associação como membro em uma igreja.
Qualquer regra de uma organização institucional que ligue ou desligue os
indivíduos e os coloque numa estrutura hierárquica será inevitavelmente
impopular.
Numa cultura onde os heróis históricos têm nomes como Franklin, Douglass ou
Earhart, e onde os heróis da ficção têm nomes como Jason Bourne ou Indiana
Jones; numa cultura onde o ambiente físico de nossas vidas — desde casas e roupas
até pratos — são o produto de nossas escolhas; onde o divórcio está em voga e a
permanência no emprego é baixa; onde toda a verdade é considerada como algo do
qual possamos abrir mão, e onde as pessoas estão enamoradas pelas estatísticas —
nesse tipo de cultura, cresceremos relativamente convencidos da nossa capacidade
de fazer escolhas sábias sobre a nossa condição espiritual83. Pensaremos que
podemos conduzir nossa vida espiritual muito bem. Portanto, em comparação com
pessoas de outras épocas e lugares, nós seremos provavelmente mais propensos a
enxergar o compromisso e a submissão a uma igreja local com indiferença e
desconfiança, e justificaremos isso através de uma redefinição da palavra amor.
Muitas vezes, fico desconfiado com declarações sociológicas generalizadas,
porque, em última análise, elas são inevitavelmente especulativas. Quem, a não ser
Deus, sabe por que as pessoas — quanto mais sociedades inteiras — fazem o que
fazem? Ainda assim, se o leitor me permitir algum grau de especulação, acredito
que, até certo ponto, é razoável a conjectura de que os crentes que vivem numa
sociedade individualista são mais propensos a considerar as doutrinas sobre
membresia e disciplina da igreja como uma pedra de tropeço, pelo menos em
comparação com os crentes que vivem numa cultura menos inclinada a definir os
indivíduos como unidades isoladas.

Ponto 6: Mas o que o individualismo é de fato? Ele é o ódio à


autoridade. E por trás do ódio à autoridade está um Deus
depreciado.
A RAIZ DO PROBLEMA
Mas o drama do indivíduo é mais complexo do que pode ser comunicado por essa
declaração generalizada. Muitos dos escritores e líderes de igrejas que estão
explicitamente lutando por uma desinstitucionalização da igreja não são
individualistas estridentes, mas sim pessoas comprometidas com a comunidade.
Eles argumentam que as estruturas impessoais das classes e do rol de membros,
atividades exclusivas para membros dos ministérios, hierarquias de liderança,
formas tradicionais de culto, declarações de fé extensas, atos disciplinares e coisas
do tipo se interpõem no caminho de seres humanos quebrantados e feridos, que
estão aprendendo a amar uns aos outros, a cuidar dos de fora e a levar cura para
uma comunidade mais ampla. Os críticos de uma ortodoxia rigorosa não estão
comprometidos com a liberdade de ação, mas sim com uma concepção relacional do
ser humano. Eles acreditam que a paz humana, o senso de significado e a alegria
podem ser encontrados apenas na comunhão.
Portanto, aqui estou eu, argumentando que muitos crentes no Ocidente são
anti-institucionais e relutantes em se associarem com qualquer coisa devido às suas
ocultas pressuposições individualistas. Mas alguns dos líderes e escritores
abertamente anti-institucionalistas também são abertamente anti-individualistas.
Estou fugindo do assunto?
COMUNITARISMO
Vale a pena observar que um aspecto notável da assim chamada cosmovisão pós-
moderna, em contraste com a visão moderna, é a proeminência dada àquilo que é
comunitário em oposição ao que é individual. Isso é feito de forma descritiva,
afirmando que a nossa própria percepção do “eu” é necessariamente determinada
pela justaposição dos grupos linguísticos, étnicos, econômicos e de gêneros que
ocupamos. Às vezes, ela é feita de forma normativa, afirmando que nós, como
indivíduos, devemos buscar viver nossa vida com mais mentalidade de grupo ou
comunidade, já que nenhum de nós é uma ilha, afinal.
Eu aprecio determinados elementos da literatura comunitarista e concordo com
eles, quer seja com sua abordagem da filosofia política ou da vida da comunidade da
igreja local. Pois ela geralmente oferece uma antropologia mais sofisticada e realista
do que a maioria da literatura que a precedeu. No entanto, já que ela, em certa
medida, permite (e até mesmo insiste) que sua própria antropologia forme e
determine a sua própria teologia, devemos lidar com ela com cuidado. Os vários
grupos sociais, étnicos ou nacionais dos quais você e eu fazemos parte, sem dúvida,
moldarão o modo como compreendemos a revelação do próprio Deus nas
Escrituras, coforme sugeri anteriormente, mas isso não significa que não possamos
ter uma compreensão correta e verdadeira de suas Escrituras por meio de seu
Espírito.
E não somente isso, mas a reação pós-moderna e comunitarista contra o
individualismo modernista continua sendo originária desse individualismo, assim
como os aspectos importantes da cosmovisão dos românticos contrailuministas se
originaram do Iluminismo. O “eu” pós-moderno pode ser constituído e delimitado
socialmente — nenhum “eu” existe na mais radical das formulações — mas dentro
de suas limitações, nenhuma autoridade existe para estender sua mão ou dizer ao
“eu”: “O que você está fazendo?” Ele pode ir e vir conforme lhe apraz, invocando sua
pertença a este ou àquele grupo, de acordo com seus caprichos.
ANTIAUTORITARISMO
Não creio que a proposição comunitarista ofereça qualquer antídoto verdadeiro
contra o individualismo e seus corolários, tal como o consumismo. Eles
argumentam que a comunidade é o antídoto contra o individualismo. Mas não é, o
que nos leva para o único tema central deste livro: o problema real é a briga contra a
ideia de autoridade. Com o risco de soar como o último modernista Friedrich
Nietzsche, ou como o pós-modernista radical Michel Foucault, tudo tem a ver com o
poder. Com o risco de soar como um professor fundamentalista de escola
dominical, tudo tem a ver com desobediência. Alguns escritores contemporâneos
entendem isso, outros não. Não basta dizer que o problema da modernidade era o
individualismo, porque esse termo é muito vago. O problema que Descartes e todos
os de sua laia deixaram para a posteridade é mais precisamente descrito como
individualismo autônomo — autônomo com o sentido de “lei própria” — onde
estamos deixando que o adjetivo, não o substantivo, realize o verdadeiro trabalho
de afirmar o nosso ponto de vista. A solução para o individualismo não é a
comunidade. A solução — alguém pode temer dizer isso sem ter muitas páginas que
o qualifiquem — é reintroduzir uma concepção da submissão à vontade revelada de
Deus da forma como ela deve ser estabelecida na igreja local.
A campanha que a cultura ocidental tem promovido durante vários séculos em
favor do individual tem sido uma campanha contrária a todas as formas de
autoridade. Desde o ensino elementar até a graduação, os educadores têm nos
ensinado a questionar a autoridade: a autoridade da igreja, por causa do que ela fez
com Galileu; a autoridade dos reis, por causa de suas usurpação; a autoridade da
grande maioria, por causa de suas tiranias; a autoridade dos homens, por causa do
exercício de sua força bruta e de seus atos de opressão; a autoridade da Bíblia, por
causa das suas supostas contradições; a autoridade da ciência, por causa das
mudanças de seus paradigmas; a autoridade da filosofia, por causa de seus jogos de
linguagem; a autoridade da linguagem, porque ela tem sido desconstruída; a
autoridade dos pais, porque eles não são legais; a autoridade do mercado, por causa
das suas desigualdades exageradas; a autoridade da polícia, por causa de suas
mangueiras de incêndio e de seus cassetetes; a autoridade dos líderes religiosos,
porque eles nos farão acreditar em suas ideologias; a autoridade da mídia, por causa
de suas tendências; a autoridade das superpotências, por causa de seu
imperialismo. Existe alguma autoridade que deixamos de questionar? Quando se
trata daquilo que devemos crer e de como devemos viver, uma suspeita onipresente
em relação à autoridade espreita a mente da maioria dos ocidentais, em parte
porque estamos familiarizados com a história cruel dos abusos de autoridade.
Desde o início, a história que o Iluminismo conta sobre o individualismo tem sido
realmente uma história sobre a batalha contra a autoridade, razão pela qual o
método filosófico de Descartes começa com um total ceticismo em relação a toda
autoridade epistemológica externa. A partir daí, ele construiu toda uma cosmovisão
acerca dos recursos internos com seu famoso cogito ergo sum — “Penso, logo
existo”. Um filósofo comunitarista caracterizou o projeto de Descartes como
criador do “eu desimpedido”84. Mas ele é mais do que isso. O “eu” não está
simplesmente desconectado ou desimpedido, ele é provocador. No ponto em que
Jeová, criador do céu e da terra, descreveu-se a Moisés com o atributo
autodefinidor “Eu sou” (ego sum, na Vulgata), Descartes fundamentou o seu
conhecimento de sua própria existência e, a partir daí, o seu conhecimento de todas
as coisas, incluindo Deus no atributo de sua própria racionalidade: “Sei que existo
porque sou um ser que pensa.” Com esse famoso desvio para o sujeito, o indivíduo
se tornou o árbitro de todas as verdades. Jeová foi rejeitado. O indivíduo não
precisa mais confiar na igreja, nos pais, no rei ou no professor para lhe ditar o que é
verdadeiro e falso, certo e errado. O indivíduo deve julgar a verdade por si mesmo.
Os românticos do contrailuminismo, apesar de rejeitarem as estruturas
ordenadas e as proposições doutrinárias de seus predecessores racionalistas,
compartilhavam de sua mesma rejeição a toda autoridade externa. Nesse sentido,
os românticos e os classicistas eram dois filhos dos mesmos pais, embora
parecessem diferentes.
Em minha mente, a cena de abertura do livro A Nascente, de Ayn Rand, de 1943,
apreende o clímax lógico do desvio para o sujeito, de Descartes, e apresenta um dos
momentos mais degradadores de Deus e exaltadores do homem da literatura
ocidental. Vale a pena observar como o imaginário primitivo de Rand desperta o
sentimento dos dois capítulos de abertura da Bíblia. Seu herói é ao mesmo tempo
Adão e Deus:
Howard Roark riu. Ele ficou nu, em pé na beira de um precipício... O lago abaixo era apenas um
fino anel de aço que cortava as rochas ao meio. As rochas desciam para as profundezas,
imutáveis. Elas começavam e terminavam no céu. De modo que o mundo parecia suspenso no
espaço, uma ilha flutuando sobre o nada, ancorada aos pés do homem sobre o precipício. Seu
corpo se inclinava para trás, na direção contrária ao céu. Era um corpo de linhas e ângulos
retos, cada curva desbastada em superfícies planas. Ele se levantou rígido, com suas mãos
penduradas ao lado do corpo, com as palmas abertas. Sentiu suas omoplatas estiradas e ao
mesmo tempo rígidas, sentiu a curva de seu pescoço e o peso do sangue em suas mãos.... Seu
rosto era como a lei da natureza — algo que uma pessoa não poderia questionar, mudar ou
contestar. Ele tinha os ossos malares salientes e excessivamente esqueléticos, as maçãs do rosto
alveoladas; olhar cinzento, frio e fixo; uma boca desdenhosa, firmemente cerrada, a boca de um
algoz ou de um santo. Ele olhou para o granito. É para ser cortado, ele pensou, e transformado
em paredes. Ele olhou para uma árvore. É para ser rachada e transformada em vigas. Ele olhou
para um vestígio de ferrugem sobre a rocha e pensou no minério ferro que está no subsolo. É
para ser fundido e surgir como treliças defronte ao céu. Essas rochas, pensou ele, estão aqui ao
meu dispor, esperando pela broca, pela dinamite e pela minha palavra; esperando para serem
partidas, fendidas, trituradas, reformadas; esperando pela forma que minhas mãos lhe darão85.

A partir desse nosso ponto de vista, o problema com esse Howard Roark fictício
não é simplesmente o fato de ele ter uma concepção mal compreendida de seu
enraizamento social e da necessidade de comunidade, embora isso seja verdade. O
problema está na idolatria do “eu”. O problema é que ele pensa que é Deus, e as
filosofias tanto do modernismo quanto do pós-modernismo legitimam essa
ambição86.
Se alguém alegar que a A Nascente, de Ayn Rand, é uma peça obscura da
literatura do século XX que a maioria dos crentes provavelmente ainda não leu, eles
estarão fugindo da questão. Mesmo que não possamos traçar uma linha direta de
causalidade genealógica entre um determinado livro e as cosmovisões adotadas
numa cultura, precisamos apenas nos lembrar da pressuposição comunitarista
razoável de que uma autora como Rand, seus muitos leitores e os escritores que
vieram antes e depois dela surgiram do mesmo solo — o solo no qual ainda vivemos
hoje. Howard Roark não é apenas mais um Adão americano? Partindo do ponto de
vista de como os crentes definem a liderança, muitas igrejas não estão procurando
por pastores visionários como Roark — homens que criam novos impérios inteiros
com um planejamento, um livro, algum dinamismo pessoal e, ah, claro, com as
orações da igreja? O exibido Roark é uma ilustração muito familiar do homem dos
dias de hoje, líder bem-sucedido, empresário e que venceu na vida, tanto secular
quanto religioso87. E tal figura não conhece autoridade alguma, senão os limites de
sua própria imaginação.
Mas é provavelmente um exagero dizer que os ocidentais de hoje acreditam que
toda autoridade seja sempre ruim. A maioria das pessoas reconhece sua utilidade
temporária na organização da vida no dia a dia. Alguém tem que fazer as leis.
Alguém tem que ensinar na sala de aula. Alguém tem que administrar o escritório.
Dito isso, a autoridade é algo que usamos para os nossos “contratos”, para usar a
linguagem dos antigos teoristas democráticos. É algo para o qual nós, os
governados, devemos dar o nosso consentimento. A autoridade final e absoluta
sobre o que acreditar e como viver continua com o indivíduo. O indivíduo pode
ceder temporariamente sua autoridade a outro por causa de uma vantagem
estratégica. Desse modo, um homem pode concordar em ceder sua própria
autoridade a uma constituição. Uma mulher pode concordar em ceder um pouco de
sua autoridade a um contrato de trabalho. Um casal pode concordar em ceder parte
de sua autoridade ao outro num voto de casamento. Mas todos esses arranjos são,
no final, temporários, porque eles são contratuais e fiados sobre o consentimento
livre e igual das partes.
Em resumo, não existe uma concepção verdadeira de autoridade, segundo a visão
que o filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, Søren Kierkegaard, demonstra
em seu ensaio Of the Difference between a Genius and an Apostle [A Diferença entre
um Gênio e um Apóstolo], ao escrever: “Honrar o pai de alguém porque ele é
inteligente é impiedade”88. O que Kierkegaard quer dizer? Nós seguimos os gênios
quando o que eles dizem está de acordo com a nossa própria percepção sobre o que
é racional ou direito. Não há reconhecimento verdadeiro algum da autoridade deles.
Nesse sentido, seria impiedade transportar a linguagem do quinto mandamento
para tal domínio: o filho que honra o seu pai porque ele é inteligente não está
verdadeiramente honrando ao seu pai. A diferença entre o gênio e o apóstolo,
portanto, é que, ao contrário do gênio, um apóstolo fala com uma autoridade
divinamente outorgada, e quer suas palavras soem como sábias, quer como tolas
(cf. 1 Co 1.18ss.), ele deve ser obedecido.
A AUTORIDADE NAS IGREJAS
A autoridade é uma ideia popular nas igrejas? Tudo, desde os debates a respeito
do papel das mulheres na igreja e no lar até os debates acerca da autoridade de Deus
sobre o futuro e sobre a salvação sugere o contrário. Os evangélicos falam e pensam
a respeito da linguagem da autoridade com a mesma frequência com que praticam a
disciplina na igreja, o que significa dizer: quase nunca. O que é impressionante é o
modo como esses debates a respeito da autoridade entre os crentes geralmente
esgotam a linguagem do amor. Impedir que as mulheres se tornem pastoras ou
compartilhem uma igualdade de liderança no lar é considerado como uma falha em
respeitar, honrar e amar as mulheres. Excluir um indivíduo da comunhão da igreja
por causa de pecado sem arrependimento é chamado de falta de amor. Sustentar
que Deus é soberano sobre a salvação e o futuro é considerado como uma falha em
reconhecer o amor de Deus. “Mas Deus é amoroso,Ele não faria isso!”, é o que
muitos dizem prontamente.
Na mente de muitos crentes ocidentais, as ideias acerca do amor e da autoridade
permanecem quase que completamente em desacordo. Talvez, o sinal mais
importante a respeito desse fato seja a escassez de pregação bíblica ou de pregação
expositiva. Uma igreja que adota uma pregação sadia, expositiva, é uma igreja que
ao menos tem começado a reconhecer a intenção de Deus em empregar
pronunciamentos autoritativos por meio de mediadores humanos, em nossa vida e
em nosso crescimento como cristãos. Uma igreja que adota uma pregação sadia,
expositiva, é uma igreja que ao menos tem começado a reconhecer que Cristo entra
na vida do crente com a autoridade de um rei que ordena arrependimento e
obediência. Por isso essa igreja se reúne para ouvir o que o rei tem dito de modo
autoritativo em sua Palavra. Infelizmente, bem poucas igrejas adotam tal pregação
como o centro de sua vida comum. Em vez disso, os pregadores escolhem seus
tópicos terapêuticos de acordo com aquilo que eles entendem que a congregação
precisa. Eles desejam coçar onde a congregação tem coceira. Novamente, a igreja
que não adota uma pregação expositiva é uma igreja que provavelmente tem
colocado o amor em oposição à autoridade.
Talvez, mais do que qualquer outro tema cultural que tenhamos discutido, a
questão da autoridade é relevante para a discussão acerca da membresia e da
disciplina da igreja local porque membresia e disciplina envolvem uma vida de
submissão. A membresia da igreja é, entre outras coisas, a submissão à disciplina de
uma congregação em especial. Em certo sentido, acredito que esse ato de submissão
seja contratual e temporal pelo fato de nenhuma igreja local ser suprema. Em outro
sentido, acredito que esse ato de submissão não seja contratual pelo fato de estar
baseado nas realidades supremas realizadas pela obra da morte e da ressurreição de
Jesus Cristo e em suas reivindicações sobre a vida dos crentes como rei e senhor.
Se o DNA de nossa natureza caída e de nossa mentalidade cultural for
inerentemente desconfiado de qualquer autoridade, as práticas de membresia e de
disciplina da igreja, grosso modo, serão difíceis de serem vendidas. Crentes
diferentes e igrejas diferentes enxergarão a autoridade com maior ou menor
desconfiança. E não resta dúvidas, uma das dificuldades mais reais que temos que
esclarecer nessa discussão é saber o que significa submissão num mundo caído,
onde a autoridade — incluindo a autoridade da igreja — costuma ser tão abusiva. O
que fazemos com os cultos de Jim Jones que existem no mundo, nos quais a
autoridade é usada para induzir ao suicídio em massa? Como compreendemos a
autoridade e seus usos, quando os oficiais nazistas como Adolph Eichmann utilizam
exatamente este argumento: — “Nós estávamos apenas cumprindo ordens.” —
para justificar o massacre de milhões de pessoas? Em outras palavras, essa
discussão consequentemente terá de levar em consideração a questão sobre como
equilibramos as concepções sobre a autoridade da igreja com a autoridade da
consciência do indivíduo diante de Deus, a fim de não repetirmos os erros e terrores
da história, contra os quais tanto o modernismo quanto o pós-modernismo
corretamente se posicionam.
Ao longo dessas linhas, talvez seja conveniente nesse ponto oferecer um
conselho ao leitor. Uma parte de mim, com sinceridade, está preocupada em falar
favoravelmente acerca da autoridade na sequência deste livro, levando em conta a
grande quantidade de líderes cristãos que continuam abusando dela, seja na igreja
ou no lar. Quantos cristãos magoados têm recebido nada menos do que egoísmo das
mãos dos pastores, dos maridos, dos pais ou das igrejas, em nome de Deus ou da
autoridade. Uma parte de mim está, portanto, inclinada a dizer a qualquer leitor
que já afirma o papel da autoridade na igreja para ir mais além, pelo próprio temor
de afirmá-la em suas formas abusivas. Meu argumento, em certo sentido, dirige-se
principalmente ao grupo contrário — igrejas e líderes que não podem imaginar
qualquer tipo de papel para as autoridades. Dito isso, espero que um exame bíblico
mais cuidadoso desse conceito demonstre que a autoridade piedosa não é algo que
rouba a vida, mas sim que produz vida. Isso é algo que, creio eu, tanto os que
abusam quando os que evitam a autoridade precisam ouvir.
De onde quer que venhamos, um componente crucial da investigação cristã
sobre membresia e disciplina deve incluir a questão de saber se nossas suspeitas e
afirmações em relação à autoridade coincidem com as suspeitas e afirmações da
Bíblia.

SECULARIZANDO A IDEIA DE DESOBEDIÊNCIA Embora a ideia de


individualismo seja útil, precisamos estar cientes do fato de que ele pode
secularizar o problema da cultura ocidental. Deixe-me ilustrar isso com
outro exemplo. Podemos falar a respeito das “inseguranças” ou podemos
falar do “temor do homem”. O último diz respeito ao nosso
relacionamento com outras pessoas no que concerne a Deus. O primeiro
está exclusivamente ligado ao nosso relacionamento com outras pessoas.
E é secularizado. Eis outro exemplo: podemos falar sobre “consumismo”
ou podemos falar sobre “ganância”. As duas ideias buscam a mesma
coisa, mas a primeira é despida de qualquer embaraço extraordinário.
“Consumismo” soa como as palavras civilizadas de um sociólogo, ao passo
que “ganância” soa como as palavras vindas do púlpito de um pregador
fundamentalista que ofende outros seres humanos. Mas é exatamente
isso que o consumismo é. Ele é a velha ganância 89. Ela é uma ação em
relação a outros seres humanos, mas ela é fundamentalmente uma forma
de medir como estamos em relação à Deus. Ela é uma forma de idolatria
(Cl 3.5; Ef 5.5).
As palavras de um sociólogo, como consumismo, e as de um psicólogo, como
insegurança, são úteis para a questão porque elas nos permitem separar um aspecto
do pecado de outro. Mas quando temos que realmente tratar de problemas como a
insegurança ou o consumismo, não iremos muito longe se não retirarmos essas
máscaras seculares e os chamarmos pelos seus nomes antiquados, os nomes que
soam como a escola dominical: temor do homem e ganância. Por exemplo, não
deveríamos tratar a insegurança apontando para o seu oposto, autoconfiança:
deveríamos falar sobre o temor a Deus. Não deveríamos tratar do consumismo
lendo tratados sociológicos, mas falando a respeito de as coisas terem substituído a
Deus como objeto de adoração.
Estou me demorando nesse ponto porque muita literatura secular e cristã tenta
tratar do individualismo dando vivas ao seu correspondente oposto — o
comunitarianismo. A linguagem e a literatura sobre o individualismo podem nos
ajudar a perceber e a descrever alguns dos sintomas do problema: as pessoas são
relutantes em assumir compromissos com os outros e em ter que prestar contas. As
pessoas rejeitam todo tipo de limites além de suas próprias preferências e pensam,
com insensatez, que podem definir que estão num caminho bom e correto sem a
ligação com outras pessoas. Mas quando tratamos do “individualismo” como sendo
a raiz do problema, preparamos o caminho para aquilo que eu creio ser um
diagnóstico insuficiente, se não for um erro de diagnóstico, pois a nossa análise ou
exclui Deus ou envolve apenas uma grande depreciação de Deus.
Eis um exemplo de um diagnóstico insuficiente. Um acadêmico escreve: “Meu
argumento é que as falhas distintas de nossa época são decorrentes da falha de uma
relação apropriada com Deus”90. Os nossos problemas, diz ele, são uma questão de
uma “relação apropriada”. Bem, isso está mais ou menos correto. Mas era assim que
o apóstolo Paulo ou o profeta Jeremias colocavam a questão: “Assim diz o Senhor,
‘tenho observado uma falha numa relação apropriada de sua parte, ó Israel’!”? Em
certo sentido, sim, Israel falhou em se relacionar com Deus, mas o modo como eles
falharam em se relacionar é o que importa. Eles falharam em obedecê-lo. Eles
falharam em ouvir o seus mandamentos. Deus está interessado num
relacionamento com os seres humanos, mas ele está interessado num
relacionamento estruturado de uma forma específica. Ele está interessado num
relacionamento autoritativamente assimétrico — ou seja, ele é o rei que deve ser
adorado, nós não. Talvez esse autor tivesse a intenção de que todas essas coisas
estivessem condensadas neste simples adjetivo: “apropriado”. Mas sua ênfase — no
substantivo — foi claramente nessa ideia de relação. Mesmo quando falamos a
respeito de um relacionamento com Deus, ironicamente, esse relacionamento pode
ser secularizado quando rebaixamos Deus para o nosso nível e o despojamos das
coisas que fazem dele Deus. Com esse teólogo e inúmeros outros, a capacidade de
Deus para se relacionar substitui o seu senhorio91.
Quando retiramos por um momento a máscara do individualismo secularizado, o
que encontramos por trás dela é um medo, ou melhor, um ódio à autoridade. Não é
dos relacionamentos que as pessoas têm medo; as pessoas almejam os
relacionamentos, conforme todo o movimento romântico testifica. Em vez disso, é
um tipo especial de relacionamento que as pessoas desprezam. Portanto, o
problema real no final não é o individualismo, mas a oposição à ideia de autoridade.
O isolamento não é o problema. Mas sim a recusa em viver a vida conforme as
condições de outra pessoa.
UM DEUS DEPRECIADO
Deixe-me explicar isso de outra maneira. Essa ênfase no relacionamento,
conforme sugeri anteriormente, tem se tornado muito comum na literatura
teológica hoje em dia, com cada vez mais autores insistindo no fato de que nós,
como indivíduos, não precedemos os nossos relacionamentos, em vez disso, são os
nossos relacionamentos que nos constituem como indivíduos. “Eu” não sou o que
“eu” sou até que minha mãe, meu pai, meus irmãos, amigos e inimigos, minha
cultura e minha igreja interajam comigo e participem na criação da minha
identidade. Wolfhart Pannenberg refere-se à “exocentricidade” da natureza
humana, querendo dizer que Deus não nos criou para sermos egocêntricos, mas
para sermos interligados e constituídos externamente92. John Zizioulas argumenta
que, visto que o ser de Deus é constituído de uma comunidade de pessoas, do
mesmo modo a humanidade, em seu estado de perfeição, existe não como
indivíduos, mas como pessoas em comunidade93. Entre esse tipo de escritores, o
pecado é caracterizado, portanto, como uma quebra de relacionamento ou como
um despojamento da paz relacional entre o homem e Deus, entre homem e homem
e entre o homem e o cosmos. A salvação é considerada como uma reconciliação de
relacionamentos quebrados.
Eu posso afirmar tudo isso e hesito em fazer uma crítica porque acredito que a
igreja possa se beneficiar com esse tipo de observação. Mas temo que possa haver
um buraco profundo bem no cerne desse projeto comunitarista — uma grande
depreciação de Deus. Ao fazer tal acusação, não tenho a pretensão de considerar
cada frase de cada livro entre os escritores desse grupo. Por essa razão, assumamos
que estou somente tratando de uma tendência que tenho observado, sem
pretender fazer justiça a nenhum autor em especial. Ainda assim, o fato de
tratarmos dessa questão dessa maneira nos permitirá perceber o que é necessário.
Eis um exemplo de como um escritor recente caracteriza o pecado: “O salário do
pecado é a morte porque, se nossa vida está baseada em nosso relacionamento com
Deus e com as outras pessoas, se esses relacionamentos estiverem corrompidos,
nossa própria vida está ameaçada por completo”94. Novamente, isso é verdade, mas
não chega a tanto. O salário do pecado é a morte não só porque o nosso pecado
quebra o nosso relacionamento com Deus, que é a fonte da vida; o salário do pecado
é a morte porque o pecado ofende a majestade gloriosa, bela, santa e
resplandecente de Deus! O salário do pecado é a morte porque a glória de Deus é
importante e infinita, e nós carecemos dela. O salário do pecado é a morte porque
Deus é digno de toda a honra, adoração e louvor, e nós o temos ignorado. Quando
sua glória não é honrada e valorizada da forma apropriada, ou seja, quando nós
ficamos destituídos de sua glória, nós nos tornamos judicialmente culpados, e um
pagamento nos é exigido. Dizer que nenhum pagamento é exigido é o mesmo que
dizer que sua glória de fato não possui valor algum. Quebre algo que é barato e
ninguém se importará. Quebre algo requintado e precioso, no entanto, e seu valor
será demonstrado — em partes — pelo fato de que será exigido um pagamento.
Deus, que tem ciúmes de sua glória e de seu nome, teria demonstrado que ele é sem
valor e indigno se tivesse escolhido salvar a humanidade pecadora sem exigir um
pagamento justo pelas transgressões contra a sua pessoa gloriosa e seu caráter.
Como tal, o pecado é mais do que uma quebra de relacionamento, e a salvação é
mais do um relacionamento restaurado. O pecado é uma ofensa contra a majestade,
e a salvação é a restauração da adoração à majestade — “não ter outros deuses”, nas
palavras de Moisés; “amar a Deus de coração, de mente, de alma e de força”, nas
palavras de Jesus95. É por essa razão que lemos numa oração puritana: “Que eu
nunca me esqueça que a crueldade do pecado não repousa na natureza do pecado
cometido, mas na grandiosidade da pessoa contra quem pecamos.”96 O que os
humanos individualistas precisam não é apenas de relacionamentos, mesmo que
sejam relacionamentos de amor e interesse mútuo. Em vez disso, os humanos
precisam de relacionamentos que os movam na direção da adoração, da honra e da
apreciação de Deus e de sua glória97. A solução comunitarista, receio eu, demonstra
como o nosso individualismo tem se tornado individualista — nós nos valorizamos
tanto que temos dificuldade em imaginar o quão ofensivo é o nosso pecado contra a
pessoa gloriosa de Deus.
O chamado da Bíblia para a obediência e para a submissão diante da autoridade
de Deus está arraigado em sua glória e majestade. Por essa razão, desprezar a
autoridade é, enfim, desprezar a sua glória. Em outras palavras, identificar o
problema real como sendo contra a autoridade e não apenas o individualismo nem
chega a ser suficiente. No final, o problema real é o ódio contra a majestade e a
dignidade de Deus.

Ponto 7: A membresia na igreja, portanto, começa com


arrependimento.
ARREPENDIMENTO
Se a raiz do problema de nossa cultura e de nossas igrejas for a ideia de
autoridade e o desprezo da glória de Deus, então a solução não é simplesmente se
associar a uma comunidade e criar relacionamentos; a solução é o arrependimento.
É uma mudança de coração e direção. Esse arrependimento inclui se associar a uma
comunidade e criar relacionamentos, mas se associar a um tipo específico de
comunidade, onde o “eu” não seja soberano e onde uma pessoa é chamada à
obediência aos outros como uma expressão da obediência a Deus. É uma associação
a uma comunidade onde a adoração a Deus é suprema em tudo.
Nos capítulos seguintes, veremos que participar da membresia de uma igreja
bíblica significa se submeter a um corpo de relacionamentos com estruturas de
autoridade implícitas, um corpo no qual os diferentes membros assumem papéis
diferentes, embora eles constituam, juntos, um único corpo. Isso exige que nos
arrependamos do autogoverno. A maioria dos crentes não acha que deve se
arrepender ou igualmente se submeter quando se associa a uma igreja. Talvez eles
se sintam sozinhos e se associem a uma igreja para ter comunhão. Talvez eles
tenham considerado os argumentos bíblicos com relação à membresia na igreja e
tenham sido persuadidos de que isso é a coisa certa a fazer. Talvez eles nunca
tenham pensado a respeito disso e estejam fazendo apenas o que os crentes que eles
conhecem fazem. Mas seja qual for sua experiência consciente, associar-se a uma
igreja é principalmente uma questão de arrependimento e obediência. Isso
certamente não é uma questão de se associar a algum clube com vários privilégios,
como quando alguém se associa a um clube. Enquanto a palavra membro possuir
essa conotação nas mentes ocidentais, ela será uma palavra imprópria para ser
usada. Ainda assim, ela é uma boa palavra para se usar, porque submeter-se a uma
igreja local e se tornar um membro é uma ratificação externa do que significa se
submeter a Cristo e se tornar um membro de seu corpo. Significa manter o
imperativo daquilo que Cristo realizou no indicativo. Submeter-se a uma igreja local
na terra, na linguagem da ética cristã, é nos tornarmos aquilo que somos no céu.

CONCLUSÃO
Eis o que podemos extrair deste capítulo: entre os crentes díade hoje, os tópicos
sobre membresia e disciplina da igreja têm sido criticados explicitamente por alguns
e rejeitados silenciosamente por muitos. E isso acontece, conforme tenho
argumentado, porque em nossa época individualista, cética, antiautoridade e
depreciadora de Deus, nós temos uma aversão instintiva à ideia de sermos
constrangidos a fazer qualquer coisa. Portanto, temos redefinido Deus e as
expectativas acerca de seu amor de um modo que não é permitido que façamos.
Temos levantado um ídolo e o chamado de “amor”. E esse ídolo chamado amor tem
dois grandes mandamentos: “Saiba que Deus o ama pelo fato de não obrigá-lo a
fazer coisa alguma (principalmente se você não quiser realmente fazê-lo)” e, em
seguida, “Saiba que o seu próximo o ama melhor quando permite que você se
expresse de forma completa e sem julgamentos”.
Minha esperança é que a identificação desses problemas nos ajude quando, no
restante do livro, voltarmos a considerar como o fato de pertencer a uma igreja
local e se submeter à sua disciplina deve ser parte da forma básica da vida cristã.

29. Por exemplo, John Smyth estabeleceu uma das primeiras igrejas batistas antes que Hobbes
escrevesse o Leviathan (traduzido para o português como Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2008) ou
que Locke escrevesse Two Treatises of Government, traduzido para o português como Dois Tratados do
Governo Civil, Lisboa: Edições 70, 2006, isso sem falar de grupos como os valdenses.
30. Jürgen Moltmann, The Church in the Power of the Spirit, Minneapolis: Fortress, 1993; orig. pub.
1975 (traduzido para o português como A Igreja no Poder do Espírito, 1975), p. xx.
31. Reggie McNeal, The Present Future: Six Tough Questions for the Church, San Francisco: Jossey-Bass, 2003,
pp. 26–27, 34–36.
32. Eis um exemplo dessa tendência antilimites dando forma ao modo como a igreja local é vista: Tony
Jones, um líder da igreja emergente, disse numa entrevista: “As declarações de fé [nas igrejas] dizem
respeito a fronteiras, que precisam ser defendidas por soldados armados. Você tem que verificar os
passaportes das pessoas quando passam por essas fronteiras. Isso se torna uma obsessão — guardar as
fronteiras. Esse simplesmente não é o ministério de Jesus. Também não era o ministério de Paulo ou de
Pedro.” Citado em Kevin DeYoung e Ted Kluck, W hy We’re Not Emergent [Por que Não Somos
Emergentes], Chicago: Moody, 2008, p. 117. Outro exemplo notável pode ser visto em Brian McLaren,
A Generous Orthodoxy, Grand R apids: Zondervan, 2004, p. 109.
33. Benjamin Franklin, The Autobiography and Other Writings [Autobiografia e Outros Escritos], New
York: Penguin, 1986, p. 27.
34. Frederick Douglass, Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave [A Narrativa da
Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano], New York: Penguin, 1982, 86-87.
35. Donald M. Goldstein e K atherine V. Dillon, Amelia: A Life of the Aviation Legend [Amelia: A Vida
da Lenda da Aviação], nova ed., Dulles, VA: Brassey’s, 1999), p. 9.
36. R .W.B. Lewis descreveu de forma excelente esse Adão americano como sendo “emancipado da
história, felizmente desprovido de ascendência, intocado e imaculado pelas heranças comuns da família e
da raça; um indivíduo independente, autoconfiante, autopropulsionado, pronto para enfrentar qualquer
coisa que o espere, com a ajuda de seus próprios recursos exclusivos e inerentes... e em sua
inexperiência, ele era fundamentalmente inocente”; The American Adam [O Adão Americano],Chicago,
University of Chicago Press, 1959, p. 5.
37. George F. Custen, “Debuting: One Spy, Unshaken” [Estreando: Um Espião Inabalável] in New York
Times, “ Week in Review ” [Revendo a Semana], 23 de junho de 2002; também descrito em Heather
Clark, The Myth of the American Adam Re-Bourne [O Mito do Adão Americano Renasce], uma tese de
mestrado não publicada, outono de 2004, Purdue University disponível em
<http://www.calumet.purdue.edu/engphil/recenttheses.html> acessado em 17 de janeiro de 2008.
38. Robert Bellah et al., Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life [Hábitos
do Coração: Individualismo e Comprometimento na Vida Americana], New York: Harper and Row,
1985, pp. 235, 220.
39. Em Jon D. Levenson, “ The Problem with Salad Bowl Religion” in First Things 78 [“O Problema com
a Religião da Tigela de Salada” em “Primeiras Coisas” 78, dezembro de 1997: 10-12.
40. Robert Bellah, Habits of the Heart, pp. 72-73.
41. Anthony Giddens, Transforming Intimacy: Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies, Palo
Alto, CA: Stanford University Press, 1992, p. 38, traduzido para o português como Transformação da
Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas, São Paulo: Unesp, 1992.
42. Ibid., p. 43.
43. Ibid., 39-40, Bellah, Habits of the Heart, p. 73.
44. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 44-45.
45. Ibid., p. 59.
46. Ibid., p. 43.
47. Ibid., p. 43, 59.
48. Ibid., p. 42.
49. Citado em Justin Taylor, “Martin Luther’s Reform of Marriage” in Sex and the Supremacy of Christ,
ed. John Piper e Justin Taylor, W heaton, IL: Crossway, 2005, p. 240, traduzido para o português como
Sexo e a Supremacia de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
50. Ibid., p. 239.
51. Ibid., p. 239-40.
52. Ibid., p. 231.
53. John Piper, God Is the Gospel, W heaton, IL: Crossway, 2005, pp. 149-50 traduzido para o português
como Deus é o Evangelho, São José dos Campos: Editora Fiel, 2006.
54. David Powlison, “ Therapeutic Gospel” [O Evangelho Terapêutico], in Journal of Biblical Counseling
[Periódico de Aconselhamento Bíblico] 25 (Verão de 2007): p. 3.
55. Veja Leon J. Podles, The Church Impotent: The Feminization of Christianity [A Igreja Impotente: A
feminização do Cristianismo], Dallas: Spence, 1999, pp. 3-4, 57-59; David Murrow, W hy Men Hate
Going to Church [Por que os Homens Odeiam Ir à Igreja?], Nashville: Nelson, 2005; Mark Chanski,
Manly Dominion: In a Passive-Purple-Four-Ball-World, Amityville, NY: Calvary Press, 2004. É notável
que essa crítica não seja recente; veja Cortland Myers, W hy Do Men Not Go to Church? [Por que os
Homens Não Vão à Igreja?], New York: Funk e Wagnalls, 1899.
56. Erich Fromm, The Art of Loving, 1956; reimpressão New York: Harper and Row, 1989, p. 3,
traduzido para o português como A Arte de Amar, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
57. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 62.
58. Mark Dever, W hat Is a Healthy Church?, W heaton, IL: Crossway, 2007, p. 96 traduzido para o
português como O que é uma Igreja Saudável, São José dos Campos: Editora Fiel.
59. Para uma discussão desse fenômeno na geração dos jovens de hoje, principalmente em relação aos
que pertencem a uma igreja local, veja os caps. 2 e 3 de Robert Wuthnow, After the Baby Boomers: How
Twenty-and Thirty-Somethings Are Shaping the Future of American Religion [Depois da Geração Pós-
MSegunda Guerra mundial: Como os Jovens e Adultos de Meia-idade Estão Moldando o Futuro da
Religião Americana], Princeton: Princeton University Press, 2007.
60. Veja Robert Putnam, “Bowling Alone: America’s Declining Social Capitol” [Jogando Boliche Sozinho:
O Declínio do Capitólio Social Americano] in Journal of Democracy 6 (janeiro de 1995): pp. 65-78; e
também Robert Putnam, Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community [Jogando
Boliche Sozinho: O Colapso e o Renascimento da Comunidade Americana], New York: Simon and
Schuster, 2000.
61. Putnam, Bowling Alone, p. 156.
62. Departamento do Trabalho dos EUA , Divisão de Estatísticas do Trabalho, “News” [Notícias], 26 de
Setembro de 2008, USDL 08-1344 disponível em
<http://www.bls.gov/news.release/archives/tenure_09262008.pdf>.
63. Roger Finke e Rodney Stark, The Churching of America [A Frequência à Igreja nos EUA], Piscataway,
NJ: Rutgers University Press, 2005, p. 275.
64. N.T. Geração X tem sido uma denominação da geração iniciada aproximadamente entre as décadas
de 60 a 80.
65. Ouvi que R . Albert Mohler utiliza essa frase em diversos discursos e artigos. Ela pode ser encontrada
em <www.almohler.com>; veja também Diana West, The Death of the Grown-Up: How America’s
Arrested Development Is Bringing Down Western Civilization [A Morte do Crescimento: Como o
Impedimento do Desenvolvimento Americano Está Prejudicando a Civilização Ocidental], New York:
St.Martin’s Press, 2007.
66. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 58.
67. George Barna, Revolution, Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, p. 14, traduzido para o português como
Revolução - Cansado da igreja?, Santo Amaro, Abba Press.
68. Ibid., p. 29.
69. Ibid., p. 31.
70. Ibid., p. 49.
71. Ibid., p. 8.
72. Ibid., p. 62–63.
73. Hybels descreve isso em <http://revealnow.com/story.asp?storyid=49>. A citação foi extraída de
Greg L. Hawkins e Cally Parkinson, Reveal: W here Are You?, Barrington, IL: Willow Creek Association,
2007, pp. 65-66, traduzido para o português como Descubra Onde Você Está, São Paulo: Vida, 2008 .
74. Exatamente como pensam Jeremy Bentham e John Stuart Mill na Grã-Bretanha ou John Dewey e
Richard Rorty nos Estados Unidos.
75. Colin Gunton descreve como as concepções modernas sobre a liberdade são um engano no livro The
One, The Three, and the Many: God, Creation, and the Culture of Modernity [O Único, Os Três e os
Muitos: Deus, a Criação e Cultura da Modernidade], Cambridge, UK: Cambridge, 1993, pp. 13, 33-37.
76. Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982,
p. 179, traduzido para o português como O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa: Calouste
Gulbenkian/ Dinapress, 2005; Charles Taylor, Sources of the Self [A Origem do Eu], Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1989, p. 27.
77. Allan Bloom, The Closing of the American Mind [O Fechamento da Mente Americana], New York:
Touchstone, 1987, pp. 38-39.
78. Extraído de D. Martyn Lloyd-Jones, Maintaining the Evangelical Faith Today, Nottingham, UK:
Inter-Varsity, 1952, pp. 4-5, traduzido para o português como Mantendo a Fé Evangélica Hoje, São
Paulo: PES.
79. Friedrich Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers [Sobre a Religião:
Discursos aos Desdenhadores Cultos], tradução de John Oman, New York: Harper and Row, 1958, p. 17.
80. 51 Ibid., p. 36, 18.
81. Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory [Um Estudo sobre a Teoria Moral], 2a
ed., London: Duckworth, 1985, p. 22.
82. Por exemplo, Mark Noll escreve: “O novo movimento carismático obscureceu os limites
demarcatórios entre protestantes e católicos como coparticipantes e seguidores do vento do Espírito”. Is
the Reformation Over? [A Reforma Terminou?], Grand R apids, Baker, 2005, p. 65. Apesar de Noll não
apresentar isso como um exemplo negativo da deterioração doutrinária — à medida que seu livro tenta
promover o desmoronamento da parede que divide protestantes e católicos romanos — isso serve para
os nossos propósitos como um exemplo da relação inversa que há nas igrejas contemporâneas entre a
atenção dada às distinções doutrinárias e a que é dada à ação do Espírito Santo.
83. Não resta dúvida de que uma publicação lançada em 2007, intitulada American Individualism Shines
Through in People’s Self-Image [O Individualismo Americano Brilha Através da Autoimagem das
Pessoas], da organização de pesquisa de opinião George Barna, observa: “Com base em entrevistas com
amostras de 4000 adultos representantes da nação, a autoimagem dos adultos americanos prevaleceu de
forma clara e distinta. A maioria dos americanos vê-se como líderes (71%) e acredita que são bem
informados a respeito dos acontecimentos correntes (81%). Eles quase que unanimemente veem a si
mesmos como pensadores independentes (95%), e como pessoas leais e confiáveis (98%). Eles também
dizem que são capazes de se adaptar facilmente a mudanças; e uma quantidade colossal de pessoas,
quatro em cada cinco, acredita que eles estão fazendo uma diferença positiva no mundo. Dois em cada
três adultos notaram que eles gostam de estar no controle das situações. E embora a maioria dos
americanos argumente que são livres pensadores e que são “bem abertos” a pontos de vista morais
alternativos (75%), a grande maioria apoia os valores da família tradicional (92%), o que resulta numa
grande maioria que alega se preocupar com o estado moral da nação (86%). Embora, curiosamente,
apenas um em cada quatro adultos se preocupe suficientemente em tentar convencer outras pessoas a
mudarem seus pontos de vista a respeito de tais assuntos”, 23 de julho de 2007;
http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=275, acessado em 23 de
janeiro de 2008).
84. Charles Taylor, Sources of the Self, cap. 8, principalmente pp. 155-58, traduzido para o português
como As Fontes do Self, São Paulo: Edições Loyola, 1997.
85. Ayn R and, The Fountainhead, 1943; reimpresso por New York: Signet, 1993, pp. 15-16; traduzido para
o português como A Nascente, São Paulo: Landscape, 2008.
86. Se alguém contestar que o pós-modernismo, na verdade, abomina essas ambições imponentes e faz
tudo o que pode para desconstruir tais afirmações, é preciso apenas perguntar ao pós-modernista por
que ele acha que tem autoridade para desconstruir. A verdade é que a desconstrução pós-moderna do
indivíduo continua apenas como autônoma — autogovernada — assim como o indivíduo moderno,
mesmo que ele postule autoridade simplesmente em sua capacidade de declarar todas as verdades como
nulas e ineficazes. Nesse sentido, o desconstrutivismo desconstrói a si mesmo.
87. Assim como acontece com Ayn R and, no entanto, não é muito difícil especular sobre as possíveis
cadeias de causalidade quando consideramos a imensidão do impacto que alguém como o ex-presidente
do Banco Central dos EUA , Alan Greenspan, que geralmente se gabava de seu amor pela obra de R and,
poderia ter em toda a economia e na forma de vida dos Estados Unidos nas últimas décadas do século
XX. Seria irracionalidade pensar que as concepções econômicas de crescimento e vitalidade que captam
boa parte da nossa atenção consciente ao lermos o jornal da manhã, considerando em qual candidato
votar ou determinando se as taxas de juros são favoráveis para o refinanciamento da hipoteca de nossa
casa, não causarão também um profundo impacto em nossas expectativas de crescimento e vitalidade na
Igreja? Em seu livro Greed: The Seven Deadly Sins, New York: Oxford University Press, 2006, traduzido
para o português como Avareza, Coleção Sete Pecados Capitais, São Paulo: Saraiva, 2005, Phyllis A .
Tickle argumenta que “a trajetória desde Adam Smith até Ayn R and e Arthur Andersen tem sido
traçada de modo irreversível”; p. 40.
88. Citado em Gilbert Meilaender, “Conscience and Authority” [Consciência e Autoridade] em First
Things [Primeiras Coisas], November 2007, p. 33.
89. Ver Phyllis A . Tickle, Greed, pp. 38, 40.
90. Colin E. Gunton, The One, the Three and the Many, p. 38.
91. É assim que Stanley Grenz caracteriza Moltmann no livro Rediscovering the Triune God: The
Trinity in Contemporary Theology [Redescobrindo o Deus Triúno: A Trindade na Teologia
Contemporânea], Minneapolis, Fortress, 2004, p. 84, citando Moltmann em Trinity and the Kingdom
and God in Creation [A Trindade, o Reino e Deus na Criação], traduzido por Margaret Kohl,
Minneapolis: Fortress, 1993, p. 221.
92. Wolfhart Pannenberg, Anthropology in Theological Perspective [A Antropologia na Perspectiva
Teológica], Philadelphia: Westminster Press, 1985.
93. John D. Zizioulas, Being as Communion: Studies in Personhood and the Church [Existindo como
Comunhão: Estudos sobre a Personalidade e a Igreja], Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press,
1985, pp. 16-19; 36-65.
94. Tom Smail, Like Father, Like Son: The Trinity Imagined in Our Humanity [Tal Pai, Tal Filho: A Trindade
Representada em nossa Humanidade], Grand R apids: Eerdmans, 2005, p. 238.
95. Cf. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, vol. 1., ed. John T. McNeill, Philadelphia:
Westminster, 1960, p. 39, traduzido para o português como As Institutas, Ed. Clássica, São Paulo:
Cultura Cristã, 1985.
96. Extraído da oração intitulada “Humiliation,” in The Valley of Vision [Humilhação em O Vale da
Visão], Ed. Arthur Bennet, Edinburgh: Banner of Truth, 2002, p. 143.
97. Outro escritor da linha comunitarista, Miroslav Volf, espantosamente parece lançar uma luz num
Deus centrado no homem, bem no cerne de sua descrição da Glória de Deus, quando ele define a glória
de Deus como “o amor de Deus” para “o bem da criação”, no livro Free of Charge: Giving and Forgiving in a
Culture Stripped of Grace [Livre do Fardo: Ofertando e Perdoando numa Cultura Despojada da Graça],
Grand R apids: Zondervan, 2005, p. 62; e também p. 39. Eu digo “parece” porque suas afirmações são
breves e poderiam ser mais bem elaboradas.
Capítulo 2
A NATUREZA DO AMOR

“Traga-me aquele amor superior.”


— Steve Winwood

Perguntas Principais: O que é o amor de Deus e por que ele nos ofende? Qual é
a ligação entre a nossa compreensão acerca do amor de Deus e a membresia na
igreja?

Principais Respostas: O amor de Deus nos cria e afirma, mas ele o faz com o
propósito de ganhar louvores para o próprio Deus. A santidade ou centralidade do
amor de Deus em Deus nos ofende porque ela traz tanto salvação quanto
julgamento. Por essa razão, a membresia e a disciplina da igreja nos ofendem
porque elas exemplificam tanto a salvação quanto o julgamento, trançando uma
linha divisória entre essas duas coisas.

Ponto 1: De maneiras que não esperamos, o amor de Deus


nos atrai e também nos repele, o que significa que o evangelho
e a igreja de Deus também nos atraem e nos repelem.

A palavra inquisição significa qualquer inquérito judicial, mas é mais


conhecida em referência aos tribunais eclesiásticos estabelecidos pela Igreja
Católica Romana, entre os séculos XII e XIX, no combate aos desvios de doutrina e
de comportamento.
Os puritanos podem ter uma má reputação devido a excessos quanto à questão
da membresia e da disciplinada da igreja, conforme vimos com A Letra Escarlate, de
Nathaniel Hawthorne, mas a Inquisição da Igreja Católica certamente tem uma
merecida reputação ainda pior. Os indivíduos acusados de heresia eram
secretamente afligidos. Nem sempre tornavam público que tipo de acusações eram
levantadas contra eles. Eles não podiam chamar testemunhas de defesa. Os
advogados geralmente relutavam em defender o acusado, devido ao temor de serem
acusados de estimular a heresia98. Não é tão surpreendente que na Inquisição
Espanhola, por exemplo, 40% dos acusados tenham sido executados.
Fiódor Dostoiévski insere a história “O Grande Inquisidor”, de seu romance Os
Irmãos Karamazov, na Sevilha do século XVI, Espanha, naquilo que ele descreve
como “o período mais temido da Inquisição, quando as fogueiras ao ar livre ardiam
todos os dias na terra para a glória de Deus”. Trata-se de um conto estranho. Ele
começa com Jesus aparecendo silenciosamente nas ruas da cidade, não como em
sua segunda vinda, mas apenas para “visitar seus filhos por um momento”.
Todos reconhecem Jesus imediatamente e o cercam com adoração, ao que ele
responde com “compaixão infinita”. Seu “coração arde de amor” pelas pessoas. Ele
retoma a atividade de cura que marcou seu primeiro ministério na terra. As pessoas
choram e beijam o solo por onde ele caminha. As crianças lhe lançam flores e
gritam: Hosana! Em determinado momento, Jesus para o cortejo de um funeral,
carregando o caixão aberto de uma menina morta. Ele pronuncia gentilmente:
“Talitha cumi”, e a menina ressuscita com um olhar sorridente e surpreso. A
multidão chora de admiração.
Enquanto isso, um observador idoso se afasta e avalia a cena. Vendo apenas o
exibicionismo, o observador, o próprio cardeal grande inquisidor, um indivíduo cuja
autoridade teria vindo diretamente do papa, finalmente intervém e prende Jesus.
Ele caminha para dentro da cela da prisão de Jesus e o desafia sem qualquer sinal de
intimidação:
É você? Você?... Não, não responda, fique em silêncio. E de qualquer forma, o que você poderia
dizer? Eu sei muito bem o que você diria. E você não tem direito algum de acrescentar qualquer
coisa àquilo que já foi dito sobre você nos tempos passados. Por que você voltou para atrapalhar
o nosso caminho? Pois você veio para atrapalhar o nosso caminho, e você mesmo sabe disso.
Mas você sabe o que acontecerá amanhã? Eu o considerarei culpado e o queimarei na fogueira
como o mais perverso dos hereges, e essas mesmas pessoas que hoje beijaram os seus pés,
amanhã, com um só gesto meu, correrão para ajuntar as brasas sobre sua fogueira, você sabe
disso? Sim, ouso dizer que você sabe.

Ao longo da história, o grande inquisidor lembra Jesus que o próprio Jesus deu à
igreja a autoridade para incluir ou excluir dela a quem quer que ela deseje: “Você fez
suas promessas, selou-as com sua palavra; você nos deu o direito de ligar e desligar,
e assim, obviamente, você não pode nem sonhar em tirar esse direito de nós
agora.”99
Não confunda Jesus com a igreja institucionalizada. Essa parece ser a moral
dessa história. Será? Talvez esse seja um dos pontos de vista de Dostoiévski.

O AMOR QUE ATRAI E REPELE


Dostoiévski não era fã da Igreja Católica Romana e por mais de uma ocasião se
opôs à sua autoridade impassível contra a luz calorosa do amor de Cristo, embora
em sua história ele pareça usar o inquisidor para representar abertamente o
ceticismo. Essa história, em particular, termina enfaticamente com Cristo
respondendo aos argumentos incisivos de seu inquisidor com um beijo na boca —
argumentos os quais, em cartas pessoais, Dostoiévski admitiu serem
constrangedores. Esse beijo arde no coração do homem idoso, e o amor
misteriosamente prevalece contra o ceticismo racional.
Com um pouco de presunção pós-moderna (não importa a intenção do autor),
gostaria de oferecer uma moral diferente para essa história. Dostoiévski pode ter-se
oposto ao inquisidor como o vilão, mas eu gostaria de sugerir que o vilão é, de fato,
Jesus.
Nós alegamos encontrar conforto no fato de que Deus é amor, conforme o
apóstolo João afirma. Ansiamos por ele. Falamos dele incessantemente. Passamos
séculos esperando por ele. Preparamo-nos para a sua vinda construindo grandiosos
edifícios religiosos. Mas quando esse Deus, que é amor, vem, nós o prendemos,
interrogamos e depois o matamos, assim como fez o grande inquisidor. É por isso
que os atos de compaixão de Cristo conseguiam atrair grandes multidões que se
voltariam contra ele no momento seguinte e arremeteriam contra ele com as presas
arreganhadas, como um cão assustado ou um urso provocado (Mt 21.09; 27.20ss;
cf. Pv 17.12). Cada um de nós faz isso, incluindo o autor de “O Grande
Inquisidor”100. Essa história é poderosa porque aponta para algo que está no fundo
do nosso coração — o ódio não apenas a Deus, mas também a seu amor!
O que as pessoas falham em perceber é que o verdadeiro amor — o amor de
Deus — ao mesmo tempo atrai e repele todos nós. Ele tem um quê de beleza e um
quê de ofensa grosseira para o coração caído. É por essa razão que Jesus é o vilão,
pelo menos em nossa mente. Contemple o amor de Deus por um ângulo, e ele
parecerá a coisa mais resplendente em todo o universo. Mas ande alguns metros e
observe novamente, e você descobrirá que seus lábios rosnam, seus punhos se
cerram e seu coração se torna moralmente ofendido. Mas você está olhando para a
mesma coisa — para o amor de Deus. Você apenas o vê por um ângulo diferente.
Cristo foi crucificado não apenas pelas autoridades religiosas de sua época,
conforme Dostoiévski e muitos outros escritores cristãos de hoje ilustram. Ele foi
crucificado por todo homem. Ele foi crucificado por mim e por você. Enfim, não
culpe a Inquisição do institucionalismo do catolicismo romano. Culpe o seu próprio
coração idólatra e o meu. O pintor Rembrandt percebeu bem isso quando pintou a
si mesmo na cena da crucificação de Cristo, como um dos crucificadores.
No final das contas, não é a institucionalização do cristianismo que ofende de
modo tão grave os nossos sentimentos, quer seja com Dostoiévski, quer nas
conversas correntes sobre o institucionalismo da igreja. Sim, as estruturas
legalistas são ofensivas, mas a ofensa real está num nível mais profundo. Ela está
arraigada na natureza do próprio amor de Cristo. O amor de Cristo, embora seja
belo para o homem natural por meio da graça comum, também o ofende (veja 1 Co
2.14). Nós gostamos de toda essa conversa sobre compaixão e cuidado com os
oprimidos.Às vezes, os nossos olhos derramam lágrimas pelas ações
autossacrificiais de uma mãe, de um amigo ou de alguém que ama. Ainda assim, há
algo mais profundo acerca do amor Deus que ofende os nossos olhos naturais, não
regenerados.
Assim como acontece com o amor de Deus, acontece com seu evangelho e com
sua igreja. Seu evangelho e sua igreja ao mesmo tempo atraem e repelem. No espaço
de alguns versículos, o Evangelho de Mateus testifica que o mundo tanto perseguirá
os filhos de Deus por causa de sua justiça, como também louvará a Deus pelas obras
justas de seus filhos (Mt 5.10, 16). Falo dessa inconstância. No entanto, nós, como
cristãos e líderes da igreja, não temos uma esperança secreta de construir igrejas
que provocam uma reação e não a outra? Não é isso o que os autores que escrevem
sobre crescimento de igreja prometem? Mais adiante nesse Evangelho, Jesus envia
seus discípulos para fazer curas e os adverte de que serão perseguidos (Mt 10.1-25).
Que estranho! As pessoas costumam favorecer aqueles que trazem cura para elas.
Mas não é assim nas Escrituras. O homem natural ao mesmo tempo elogia e
condena Deus, o seu evangelho e o seu povo.
Então, o que é o amor de Deus e como poderíamos odiá-lo? Essas são as
primeiras duas perguntas que este capítulo tentará responder, e depois que as
respondermos, entenderemos mais porque a membresia e a disciplina na igreja são
tão ofensivas para nós. No Capítulo 1, consideramos as concepções falsas e idólatras
acerca do amor existentes em nossa cultura e em nossas igrejas. Neste capítulo,
queremos considerar o amor da forma como a Bíblia o define. Lembre-se, a nossa
doutrina a respeito da igreja é simplesmente tão boa quanto a nossa doutrina a
respeito de Deus. Isso é assim, em parte, porque Jesus pediu ao Pai para ajudar a
igreja a compartilhar o mesmo amor que ele compartilha com o Pai (Jo 17.26), e ele
disse que devemos amar uns aos outros assim como ele nos amou (Jo 13.34).
Portanto, se pudermos responder à pergunta sobre como é o amor de Deus, então
teremos percorrido um longo caminho na direção de compreender o amor que
mantém a igreja unida e a distingue do mundo.
Aqui está a resposta mais curta que encontraremos. Nos dias de hoje, o amor de
Deus é geralmente entendido como algo universal, indiscriminado e incondicional.
E por detrás dessa concepção está geralmente a centralidade no homem. Contudo,
de fato, encontramos nas Escrituras que o amor de Deus é totalmente centrado em
Deus, o que significa que ele é mais complexo do que a concepção comum poderia
imaginar. Ele combina salvação e julgamento. Ele é gracioso e discriminatório. Ele
muda o exterior e o interior. A membresia da igreja é uma ilustração de todas essas
coisas — da salvação e do julgamento, da graça e da discriminação, do cuidado
interior e do exterior — e por essa razão, ela define o amor de Deus para o mundo.

Ponto 2: A doutrina do amor de Deus é bíblica e


teologicamente mais complexa do que as pessoas imaginam.
Os teólogos anteriores a Lutero centralizavam o amor de
Deus no próprio Deus.
UMA DOUTRINA DIFÍCIL
D. A. Carson inicia seu fino mas profundo volume A Difícil Doutrina do Amor de
Deus com a observação de que a doutrina do amor de Deus é, conforme o título do
livro sugere, mais difícil do que as pessoas imaginam. Muitas pessoas citam seu
texto-prova preferido e acham que encerraram a conversa:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito”
(Jo 3.16).

“Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que
ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1
Jo 4.10).

E, é claro, “Deus é amor” (1 Jo 4.8 ).

Eis aí. Deus nos ama. Mais do que qualquer outra coisa. Essa é a sua natureza.
Discussão encerrada. Certo? Não exatamente.

POR QUE ESSA DOUTRINA É BIBLICAMENTE COMPLEXA?


O livro de Carson esboça cinco maneiras diferentes em que a Bíblia fala do amor
de Deus101. Ela fala:
Do amor peculiar entre o Pai e o Filho: “O Pai ama o Filho, e todas as coisas tem
confiado às suas mãos” (Jo 3.35); “assim procedo para que o mundo saiba que
eu amo o Pai e que faço como o Pai me ordenou” (Jo 14.31).

Do amor providencial de Deus pela criação: a palavra amor não é usada neste
texto, mas ele afirma que tudo o que ele fez é “bom” e que promete vir chuvas sobre
justos e injustos igualmente.

Do amor salvífico de Deus em relação ao mundo caído: “Porque Deus amou o


mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele
crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16).

Do amor específico e eletivo de Deus por um povo escolhido: “Não vos teve o
SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que
qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR
vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos
tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó,
rei do Egito” (Dt 7.7-8). “Como está escrito: ‘Amei Jacó, porém me aborreci de
Esaú’” (Rm 9.13).
Do amor condicional de Deus em relação ao seu povo, com base na obediência:
“Guardai-vos no amor de Deus” (Jd 21). “Se guardardes os meus
mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 15.10).

A observação básica aqui é que a Bíblia se refere ao amor de Deus de formas


diferentes. E não deveríamos tomar como absoluta qualquer categoria de seu amor,
como se afirmássemos que todo o seu amor fosse amor providencial ou amor
salvífico, ou qualquer outro tipo de amor102.
Essa é uma observação racional, quando paramos para pensar nela. A experiência
humana em relação ao amor é bem parecida com essa. A maneira como eu amo as
árvores do meu bairro é diferente da maneira como amo as pessoas do meu bairro,
que, por sua vez, é diferente da maneira como amo minha esposa e meus filhos.
Ainda assim, por alguma razão, nós esperamos uma uniformidade da parte de
Deus, embora ele também seja uma pessoa. Tudo isso foi para dizer que a doutrina
do amor de Deus é difícil, sobretudo por causa dos vários aspectos das informações
bíblicas.

POR QUE ESSA DOUTRINA É TEOLOGICAMENTE COMPLEXA?


A doutrina do amor de Deus é também difícil por causa das questões teológicas
que surgem das informações bíblicas. Afinal, esperamos algum tipo de consistência
entre esses diferentes aspectos do amor de Deus, mas é difícil saber como colocar
todos eles juntos. É fácil entender por que devo amar meus próprios filhos mais do
que as outras crianças da vizinhança, mas por que Deus amaria diferentes seres de
modo diferente, se é que ele faz isso? Existe algum princípio subjacente que nos
informa como e por que Deus pode amar de forma diferente em situações
diferentes?
Filósofos e teólogos têm lutado para chegar a um acordo em relação a o que é
exatamente o amor, quanto mais a o que é o amor de Deus. A concepção platônica
do amor começa com a ideia de desejar ou ansiar por aquilo que é bom e belo (eros).
O amor é um anseio por aquilo que nos falta. Por essa razão, o amor tem a função
de unir. Nossas almas estão separadas umas das outras, e o amor “constrói uma
ponte entre elas”. Mas considere o que essa definição, por mais intuitiva que pareça,
significa para a divindade. Se o amor é um anseio por aquilo que falta a alguém, e se
não falta nada aos deuses, o que Platão afirma ser o caso, logo, os deuses não devem
amar. De todo modo, essa é a conclusão de Platão103.
Assim como Platão, a compreensão de Agostinho acerca do amor começa com o
desejo ou com um “movimento” da alma na direção de algum bem104.
Ele utiliza essa palavra como sinônimo de “afeições poderosas”105. Assim como
Platão, Agostinho acreditava que Deus não tem falta de coisa alguma. Mas, ao
contrário dele, Agostinho sabia que “Deus é amor”, com base nas Escrituras. Como
Agostinho colocava todas essas coisas juntas? A sua compreensão suprema sobre o
amor incluía os aspectos do amor como o desejo (eros) e o amor como um dom
(agape), para o qual ele geralmente usava a palavra caritas (caridade), em latim106.
Portanto, apenas para deixar claro, existe o “amor como desejo” ou atração, o qual é
geralmente motivado por alguma qualidade da pessoa amada, como em “Eu o amo
porque você é bonito” ou “bom”, ou “justo” ou o que quer que seja. Essa qualidade
de amor é normalmente mencionada como Eros. E existe o “amor como um dom”, o
qual é geralmente motivado pela qualidade da benevolência daquele que ama, como
em “Eu o amo porque desejo lhe fazer o bem”. Esse tipo de amor é mencionado
como agape. Enquanto Platão optou pela primeira dessas duas definições,
Agostinho as combinou. O amor de Deus é demonstrado em sua doação de si
mesmo, a qual é feita por meio do mover ou das afeições de seu Espírito. Desse
modo, no final das contas, o Pai dá a si mesmo ao Filho, com as afeições do Espírito,
e consequentemente dá de si mesmo a nós. O verdadeiro amor é o dom afetuoso de
Deus, no Espírito. Ele escreve: “O amor, portanto, é Deus vindo de Deus”107.
O amor de Deus por nós, no Espírito, leva-nos, portanto, a amar e a adorar a
Deus em retribuição, de forma apaixonada: “Desse modo, é Deus Espírito Santo, o
qual procede de Deus, que estimula o homem a amar a Deus e ao seu próximo,
quando ele é dado ao homem, porque ele mesmo é amor. O homem não tem
capacidade para amar a Deus, a não ser que isso venha de Deus.”108 Em outras
palavras, para Agostinho, o amor é um tipo de bumerangue, ele vem de Deus e
retorna para Deus, alcançando-nos na curva de sua trajetória.
Não estou informado de que Agostinho tenha dito em algum texto que Deus ama
mais a Deus, do mesmo modo que Jonathan Edwards afirmaria no final, mas a
implicação disso é certamente essa. Ele diz explicitamente que o amor humano, até
mesmo o amor por outras pessoas e pela criação, deve ser dado tendo “como
referência” o amor a Deus. Agostinho escreve num sermão:
Você deve amar [seus filhos e sua esposa] tendo como referência o amor a Cristo, e preocupar-se
com eles tendo como referência o amor a Deus; e não amar nada neles que não seja o Cristo; e
odiar tudo naqueles que lhe são mais próximos e mais queridos, se eles não quiserem saber de
Cristo.

Como se vê, essa é a natureza da caridade divina.109


Devemos amar a Deus por causa de Deus, e devemos amar o nosso próximo por
causa de Deus. Não devo amar você por sua causa. Devo amá-lo porque você foi
criado à imagem de Deus, porque você pertence a ele, porque ele me ordenou a fazer
isso, e assim por diante. O amor centrado em qualquer outra coisa que não seja
Deus é o oposto do amor: “Se amarmos as pessoas por outra razão, nós as
odiaremos mais do que amaremos.”110 Resumindo tudo isso, Agostinho escreve:
Eu chamo de “caridade” ao movimento da alma na direção do prazer em Deus, por causa dele
mesmo, e também na direção do prazer da própria pessoa e de seu próximo por causa de Deus;
mas a “cobiça” é um movimento da alma na direção do prazer da própria pessoa, de seu
próximo ou de qualquer outro ser existente, por causa de outra coisa que não seja Deus111.

Para Agostinho, existem dois tipos básicos de amor: um amor centrado em Deus
e um amor centrado em qualquer outra coisa. Um vem de Deus e volta para Deus; o
outro não. E há um limite claro entre esses dois tipos de amor. Além disso, amar
verdadeiramente outra pessoa significa simplesmente dirigi-la até Deus. Agostinho
escreve: “Aquele que ama legitimamente o seu próximo deve agir em relação a ele de
modo que ele também ame a Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e
com toda a sua mente.”112
Bernardo de Claraval, que é citado como um místico, deu mais ênfase à
experiência de amar a Deus do que Agostinho. Ele é bem conhecido por usar a
imagem do amor romântico e o êxtase do livro de Cantares para descrever a nossa
experiência de amar a Deus113. Todavia, a conclusão geral de Bernardo é
semelhante à de Agostinho. Deus nos ama nos capacitando para amá-lo: “Ele não
ama com outro propósito, senão o de ser amado, sabendo que aqueles que o amam
são abençoados pelo seu próprio amor.”114 Para Bernardo, o amor é a própria
recompensa do amor. Ele é tanto dar como receber. Nós fomos unidos a ele por
meio dele, mas ao nos unirmos a ele, recebemos tudo o que poderíamos desejar.
Tomás de Aquino, assim como Agostinho e Bernardo, também concebiam o amor
como vindo de Deus e retornando para Deus — como um bumerangue. Ele também
começou com uma concepção acerca do amor como paixão ou desejo e depois a
combinou com uma concepção sobre o amor como um dom ou um desejo pelo bem
do outro. O amor atrai uma pessoa para a outra e une aquele que ama à pessoa
amada, mas não apenas o une, como também o move externamente. O amor é como
uma fornalha, disse Aquino, que irradia para o exterior, levando calor para toda a
casa. Por essa razão, não é bom dizer: “Eu amo a Deus, mas não amo o meu
próximo.” Do mesmo modo como o amor de Deus arde exteriormente para o
mundo, a fim de trazer as pessoas para amá-lo e servi-lo, o nosso amor também
arde externamente pelos pecadores, para levá-los ao amor Deus115.

UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO; UMA POSTURA COMPLEXA Deixe-me


oferecer uma tentativa de definição aproveitando a concordância desses
três primeiros pensadores. O que é o amor? O amor é um sentimento pelo
bem do outro. Algo em você me atrai a desejar o seu bem. Além disso, o
bem que desejo para você tem um conteúdo fixo e determinado: Deus.
Deus é o bem que Deus deseja amorosamente para os outros, e ele é o
bem que deveríamos amorosamente desejar para os outros. Nós amamos
melhor os nossos pais, amigos, cônjuges e inimigos quando desejamos
que eles conheçam a glória de Deus, um desejo que implica em outro
ainda mais supremo de que sua glória seja exibida. Novamente, não sei
se qualquer um desses três pensadores disse explicitamente que Deus
ama a Deus acima de tudo, mas essa é a conclusão geral do pensamento
deles. O amor de Deus é centrado em Deus, e o nosso também deveria ser.
Há muito a ser dito sobre essa questão. No momento, consideremos o que um
amor centrado em Deus significa para a postura de Deus (e dos cristãos) em relação
aos pecadores. Em resumo, ele exige uma postura complexa. Por um lado, ela é uma
postura de afeição universal e indiscriminada pelo bem de todo homem e mulher. É
o deleite de dar a todos, porque todos foram criados à imagem de Deus. Você pode
ter um vislumbre desse amor quando um antigo pastor congregacionalista do
romance de Marilynne Robinson, Gilead, brilhante e nostálgico, escreve a seu filho:
“Veja como é divino amar o ser de alguém. Sua existência é um deleite para nós.”116
Amar um filho é provar do amor Deus por seu filho Adão e todos os seus filhos
através da criação. (Estamos tratando da segunda categoria do amor, conforme
definido acima por Carson). Deus nos criou. A nossa existência traz deleite para ele;
por essa razão, ele continua a prover até para os seus inimigos (Mt 5.45). “Isso é
bom”, diz Deus acerca da nossa existência. “Na verdade, ela é muito boa” (veja Gn
1.31). Ele nos ama de forma geral, como suas criaturas, e nos ama de forma
específica, como indivíduos, cada indivíduo de um modo distinto do outro (cf.
139.13-16).
Deus ama a humanidade por causa de algo intrinsecamente valioso ou amável em
nós? Logicamente, isso seria impossível. Ele nos criou, e em sua onisciência e
soberania, escreveu cada dia de nossa vida antes que um deles viesse a existir (Sl
139.16). Ele é a fonte de tudo o que temos, inclusive de toda boa dádiva que nos tem
sido dada desde a criação (Tg 1.17). Sendo assim, não há literalmente nada que
Deus pudesse contemplar com afeição em nós que ele mesmo não nos tenha dado
antes (cf. 1 Co 4.7). (Podemos criar qualquer coisa em que o nosso Deus onisciente
não tenha pensado primeiramente?) Deus ama a todos porque contempla seu
próprio trabalho manual, sua própria imagem e glória em todos. O amor de Deus é
centrado em Deus. Quando nós, sendo humanos, amamos de um modo centrado
em Deus, nós amamos — conforme Agostinho disse — o que concerne a ele ou por
causa dele. Isso significa que ansiamos ardentemente por ver seu caráter e glória
expressos em toda parte — em nós mesmos, em nossos amigos e famílias, em
nossos inimigos, na criação, em tudo. Na visão estratégica da criação, o amor
centrado em Deus não carrega julgamento algum e não traça limite algum. Ele
experimenta somente prazer e deleite na dádiva de si mesmo.
Por outro lado, o amor de Deus, centrado em Deus, ama adotar uma postura que
se opõe a tudo o que se opõe a Deus, assim como você e eu nos opomos a qualquer
um que se oponha aos objetos humanos do nosso amor, tal como um amigo ou um
cônjuge. Eu amo minhas filhas, por isso tenho uma afeição pelo bem delas. Como,
então, não me oporia a alguém ou algo que intentasse o mal delas? Assim também
acontece com o amor de Deus por Deus, e o mesmo se dá com qualquer amor
verdadeiro que tenhamos por ele. Amá-lo significa ter afeição por sua glória e
honra. Por essa razão, uma postura complexa nos é exigida. Deus ama todos os
pecadores à medida que eles refletem sua glória; e ele se opõe a eles à medida que
eles não fazem isso. O que isso significa é que o amor centrado em Deus deve
discriminar; deve ter preferências; deve fazer julgamentos e deve fazer essas coisas
à luz do pecado e da queda. Ele não é universal, porque não ama coisa alguma que se
oponha a Deus. O amor centrado em Deus não ama o pecado. O que é pecado?
Pecado é qualquer coisa que se oponha a Deus e, enfim, intente o mal de Deus. Por
essa razão, o amor de Deus, que é centrado em Deus, fará discriminação entre o
que é pecado e o que não é; entre aqueles que pertencem ao pecado e aqueles não
pertencem; entre aqueles que o amam e buscam a sua glória e aqueles que não o
fazem.
Por essas razões, o coração que ama verdadeiramente combinará aspectos de
amor e ódio117. Ele odeia qualquer perversão de sua imagem ou qualquer coisa que
possa depreciar seu amor, mas esse mesmo ódio se baseia no amor pelo bem.
Aquino expressa isso da seguinte maneira: “O ódio pelo mal de uma pessoa é
equivalente ao amor pelo seu bem.”118 Ele estava, no entanto, disposto a falar em
termos de “amor preferencial”. Assim como devemos amar os que estão mais
próximos de nós (eu devo amar meus filhos mais do que as outras crianças do meu
bairro), devemos também amar aqueles que são mais semelhantes a Deus em seu
caráter e virtude, porque é precisamente pelo caráter e virtude de Deus que o nosso
coração deve arder como fornalha, é para a sua beleza que devemos ser atraídos.
Agostinho também percebia claramente que esse amor centrado em Deus exige
uma postura complexa que, às vezes, requer que admoestemos e disciplinemos as
próprias pessoas a quem amamos. Em uma passagem muito relevante para a
disciplina da igreja e para o cuidado pastoral, ele escreve:
Nunca devemos nos encarregar da tarefa de repreender o pecado do outro a menos que,
examinando minuciosamente a nossa própria consciência, possamos garantir a nós mesmos,
diante de Deus, que estamos agindo por amor. Se as repreensões, ameaças ou injúrias
pronunciadas por aquele que você está chamando para prestar contas ferirem o seu espírito,
então, para que essa pessoa seja curada por você, você não deverá falar até que você mesmo
esteja curado, a fim de que você não aja por motivos mundanos, por mágoa e faça de sua língua
uma arma pecaminosa do mal, pagando o erro com erro e maldição com maldição. O que quer
que seja que você fale com o espírito ferido será a ira de um vingador, não o amor de um
instrutor... E se, como geralmente acontece, você começar um curso de ação movido pelo amor
e estiver procedendo com amor, mas um sentimento diferente surgir furtivamente, pelo fato
de você ser resistente, desviando-o de reprovar o pecado de um homem e levando-o a atacar o
homem em si — melhor será que, enquanto estiver lavando a poeira dos olhos com suas
lágrimas, você se lembre de que não temos o direito de tripudiar sobre o pecado do outro, visto
que estamos pecando no mesmo tipo de pecado reprovado, caso a ira contra o pecado tenha
mais êxito em nos levar a ser pecadores do que a misericórdia em nos levar a ser bondosos119.
O simples fato de podermos disciplinar alguém em amor significa que o amor não
é indiscriminado. Certamente essa é uma observação bíblica: “Porque o Senhor
corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe” (Hb 12.6).
Mais uma vez, o ponto mais importante é que uma concepção sobre o amor
centrado em Deus requer uma postura complexa, o que exige tanto amor quanto
julgamento. Do ponto de vista da criação, ele é universal e indiscriminado. Mas do
ponto de vista panorâmico da queda, não é. Ele faz julgamentos e se separa daquilo
que não ama a Deus.

Ponto 3: Muitos teólogos, desde Lutero, têm optado por uma


compreensão reducionista do amor de Deus — o amor
simplesmente como um dom incondicional. Essa
compreensão evangélica comum hoje em dia acerca do amor
muda principalmente o propósito e a forma da membresia da
igreja.

UMA DEFINIÇÃO REDUCIONISTA DE AMOR


É importante atentarmos para a linha histórica que se segue a Aquino, porque a
doutrina cristã acerca do amor continuou a evoluir por meio das obras de vários
protestantes notáveis, e essa evolução não tem sido totalmente útil. Na verdade,
encontramos nela mais uma questão que poderia ter sido acrescentada à lista dos
fatores culturais, do Capítulo 1, que se interpõem no caminho da membresia e da
disciplina da igreja. Lá, eu me concentrei nas concepções excessivamente
sentimentalistas, consumistas e egocêntricas acerca do amor romântico, as quais
têm aprisionado cada vez mais a imaginação popular nos últimos dois séculos. O
que eu não havia mencionado era a evolução na compreensão teológica acerca do
amor nas igrejas cristãs, começando com Martinho Lutero, mas principalmente
chegando aos pensadores mais recentes como Søren Kierkegaard, Anders Nygren,
Karl Barth e outros. A compreensão teológica acerca do amor promovida por tais
pensadores, creio eu, é assumida como correta pela maioria dos evangélicos. O
problema é que essa compreensão corre o risco de colocar o homem no centro do
amor de Deus e assim remover a necessidade de qualquer tipo de julgamento. A
membresia e a disciplina da igreja são um tipo de julgamento. Elas são uma maneira
de dizer: “Essa pessoa pertence ao lado de dentro de nosso círculo, aquela pessoa
não”, o que é um ato de julgamento. Se, no entanto, não há lugar para julgamentos
no amor, então a membresia da igreja — mais do que tudo — precisa ser
descartada.
Martinho Lutero representa algo como um marco na mudança da doutrina do
amor120. Assim como os autores que já consideramos, uma conversa mais extensa
seria necessária para considerar as diferentes correntes do pensamento de Lutero
acerca do amor, como sua afirmação a respeito da vida comum ou seu pensamento
sobre o amor conjugal, quanto mais de todas elas como um todo. No entanto, o que
é significativo nesse ponto é a ênfase que ele dá ao chamado gracioso e universal de
Deus para a salvação.
Enquanto a Igreja Católica Romana havia enfatizado a obra do homem na
obtenção da salvação, Lutero respondeu com a doutrina da justificação somente
pela fé, por meio da qual a graça justificadora de Deus é prometida gratuitamente a
todo o que crê. Dizem que naquilo em que Roma enfatizou o amor do homem por
Deus, a doutrina rigorosa de Lutero sobre o pecado o levou a enfatizar o amor
gracioso e incondicional de Deus pelo homem. Enquanto a visão de Lutero sobre o
amor conjugal incluía elementos do amor, sua Soteriologia enfatizava igualmente o
amor de Deus como um dom abnegado. De todo modo, essa é a forma como Lutero
tem sido entendido por inúmeros pensadores que veem a si mesmos como
seguidores de seus passos121.
A conversa pós-luterana é estabelecida como uma batalha entre agape e eros,
entre a assim chamada concepção cristã e a concepção platônica. A começar por
Lutero, dizem que a definição doutrinária do amor cada vez mais se inclina na
direção do aspecto universal e indiscriminado. O amor é um dom agape, e ponto
final. Ele não demonstra preocupação alguma com o mérito ou a indignidade do
objeto amado. Quer Lutero tivesse ou não a intenção de dar essa ênfase na
definição de sua concepção de amor (não estou convencido de que ele a tivesse),
essa se tornou a principal interpretação atribuída a ele. O amor salvífico de Deus
para com o mundo caído — a terceira categoria de Carson — definia cada vez mais o
amor cristão como um todo.
Søren Kierkegaard, por exemplo, fez uma forte distinção entre o amor cristão e
o amor romântico. O amor romântico, afirmou, concentra-se no “nome do favorito,
no amado, no amigo, em quem é amado de forma distinta do restante do mundo”; o
amor cristão nunca escolhe seus favoritos, mas ama a toda a humanidade. O amor
romântico “se esforça” na direção de um único amado, o amor cristão “é impelido na
direção oposta”. O amor romântico é “determinado pelo seu objeto de amor”. Ou
seja, ele é atraído pela atração. O amor cristão é simplesmente “determinado pelo
amor”. Ele depende da autorrenúncia. Ele é um dom. O amor romântico pode se
transformar em outra coisa, como o ódio. O amor cristão “nunca muda; ele tem
integridade, ele ama — e jamais odeia”122. Em resumo, o amor cristão é sempre
universal e incondicional, enquanto qualquer coisa que discrimine e tenha
preferências é tudo, menos amor.
O teólogo luterano Anders Nygren, no século XX, em seu famoso livro Agape and
Eros, também queria separar a ideia de Platão do amor como desejo (eros) da ideia
cristã do amor como dom (agape). Uma porção generosa de seu livro se dedica a
criticar Agostinho por combinar as duas coisas e a elogiar Lutero por dirigir a igreja
de volta ao amor agape. Ele compara os dois tipos de amor numa série de parelha de
versos:
Eros é um desejo e um anseio ávidos. Agape é doar sacrificialmente... Eros é o caminho do homem
em direção a Deus. Agape é o caminho de Deus em direção ao homem. Eros é o esforço do
homem; ele supõe que a salvação do homem é a sua própria obra.
Agape é a graça de Deus; a salvação é obra do amor divino... Eros é a vontade de obter e possuir,
a qual depende do desejo e da necessidade.
Agape é a liberdade para doar, o que depende da plenitude e da liberalidade. Eros é
principalmente o amor do homem... Agape é principalmente o amor de Deus... Eros é
determinado pela qualidade, beleza e dignidade do objeto amado; ele não é espontâneo, mas
sim “despertado”, “motivado”. Agape é soberano em relação ao objeto amado e é dirigido “tanto
ao mau quanto ao bom”; ele é espontâneo, “superabundante e não é motivado”.
Eros reconhece um valor em seu objeto — e ama a esse valor. Agape ama — e cria valor para o
objeto amado123.

Note que o amor é completamente separado de minha atração por um objeto. Ele
não é outra coisa senão um dom autossacrificial. É uma escolha, despretensiosa e
sem constrangimento, de doar em favor do bem de outra pessoa — é mais um
efeito da vontade do que do coração. Ele nunca é condicional, mas sempre
incondicional. Não há necessidade alguma de atos de julgamento em tal amor,
porque ele é totalmente um dom. Ele é para o indigno, bem como para o digno; para
o pecador, bem como para o justo.
Karl Barth também pode ser enquadrado nessa tradição. Deus é “aquele que ama
sem restrições”, afirma Barth. Ele ama como “um fim em si mesmo”. Outros da
tradição agostiniana e reformada poderiam perguntar: “Mas Deus não ama por
causa de sua glória?” Mais ou menos, afirma Barth. Ele escreve: “Ao nos amar, Deus
deseja sua própria glória e a nossa salvação. Mas ele não nos ama porque ele deseja
isso. Ele deseja isso por causa do seu amor... Deus ama porque ele ama; porque esse
ato é o seu próprio ser, sua essência e sua natureza. Ele ama sem realizar esses
propósitos e antes de realizá-los.”124 Em outras palavras, ele não renuncia ao amor
por causa de sua glória. Ele nos ama porque ele é amoroso; isso é um fim em si
mesmo (Barth aponta para Dt 7.8 e Jr 31.3 para apoiar suas afirmações). Mas
então, sim, ele recebe a glória (e nós somos salvos) porque ele é amoroso. O amor
de Deus vem primeiro; sua glória e a nossa salvação vêm em segundo lugar, como
consequência do fato de ele amar. Assim, juntamente com esses últimos poucos
autores, Barth vê o amor de Deus totalmente como um dom; ele não é dado por
causa de qualquer coisa que ele contemple no objeto de seu amor125.
Hoje em dia, alguns teólogos têm retomado a frase de Lutero, “uma teologia da
cruz”, e se colocado explicitamente contra a “teologia da glória” (assim como ele o
fez). Entre outras ênfases, eles também negam que o amor de Deus possua algo
como o desejo ou atração em si; ele todo é um dom gratuito. Por exemplo, Gerhard
Forde escreve: “Esse amor de Deus, que cria o seu objeto, é completamente distinto
do amor dos homens. O amor humano é estimulado pela atração para aquilo que dá
prazer. Ele deve buscar encontrar o seu objeto, e, poderíamos acrescentar, ele
provavelmente o deixará de lado quando se cansar dele.”126 A ênfase que Jürgen
Moltmann dá ao amor sofredor de Deus baseia-se nessas mesmas pressuposições
básicas.
Mais uma vez, o velho pastor congregacional de Marilynne Robinson nos oferece
uma ilustração útil. Ele escreve: “O amor é santo porque é como a graça — a
dignidade de seu objeto nunca é o que realmente importa.”127
Nós temos uma abundância de riquezas nas observações de Lutero e na sua linha
de interpretação. Quando a afeição de Deus é posta sobre algo, nesse momento, e
apenas nesse momento, aquilo se torna algo digno, valioso e encantador. Seu amor
não é dado àquilo que, antes de seu amor, era de alguma forma intrinsecamente
encantador. Em vez disso, o amor de Deus cria aquilo que é encantador e valioso.
Quando ele olha para a criação e diz: “Isso é bom”, ela, de fato, torna-se boa e
encantadora, porque ele a fez ser assim.
É exatamente por isso que o evangelho de Deus chega às coisas desprezadas, às
coisas humildes e àquelas que não são. É exatamente aí que o amor de Deus cria, do
modo mais óbvio, algo encantador e amável. Ele interage com ladrões, assassinos,
com coletores de impostos, prostitutas e diz a um mundo que se autojustifica e
despreza essas coisas: “Observe o que vou fazer. Observe o modo como eu os
amarei e, por meio de meu amor por eles, os transformarei num povo belo,
resplendente, majestoso; um povo que excede os anjos em fulgor.”
O amor de Deus é um dom agape dado aos que não merecem. Frederick
Buechner, ao meditar sobre o amor aos inimigos, apreende essa ideia de um modo
doce: “E ainda há o amor pelo inimigo — amor por aquele que não o ama, mas o
escarnece, ameaça e lhe inflige dor. O amor do torturado pelo seu torturador. Esse
é o amor de Deus. Ele conquista o mundo.”128 Um amor como esse não é
maravilhoso de se contemplar? Anteriormente, eu afirmei que o amor de Deus
tanto nos repele quanto atrai. O que nos atrai especificamente? É o fato de doar a si
mesmo igualmente ao que é digno e ao que é indigno.
Ah, mas há o resplendor. Isso, de fato, nos atrai. E como não atrairia? Ele é belo,
e realmente o amamos por causa de tamanha beleza, não é mesmo? Paulo até chega
a dizer que o amor de Cristo “nos constrange” (2 Co 5.14). Então considere: não
estamos imitando o amor de Deus? Como então devemos amar a Deus? Devemos
amá-lo independentemente de sua beleza? O nosso amor por ele deve ser
totalmente como um dom benevolente e não como uma resposta de adoração?
Além disso, o que significa ter “a terna misericórdia de Jesus Cristo” por uma igreja,
conforme Paulo afirma que tem pelos Filipenses (1.8)?
A discussão acerca do amor cristão nos círculos teológicos tem ido além dessa
escolha entre agape e eros, voltando-se recentemente para as questões de
“mutualidade” e “relacionamento recíproco”129. Todavia, eu creio que essa distinção
básica delimita uma separação substancial em muitas mentes cristãs. Nós
associamos agape com a graça e com a ideia de o amor de Deus ser “incondicional”, e
associamos eros com obras, justiça, beleza e com a ideia de amor “condicional”. O
problema é que essa mesma ênfase verdadeira e maravilhosa no dom gratuito do
amor de Deus é reducionista. Ela ilustra apenas uma parte da informação bíblica a
respeito de Deus; a parte do evangelho e a parte na qual a igreja é chamada à
existência. Na verdade, essa definição dirigida pelo agape (o amor apenas como um
dom) ignora pelo menos duas coisas que estão no cerne do amor na Bíblia. Em
primeiro lugar, ela ignora o amor do divino Pai por seu Filho perfeito. Onde isso se
encaixa na definição de “amor”? Não existe sofrimento ou autossacrifício no amor
do Pai pelo Filho. Ele é simplesmente prazer, e esse prazer está baseado na beleza e
perfeição moral do Filho130. Em segundo lugar, ela ignora a questão do porquê de
Cristo ter que morrer para salvar pecadores. Por que ele não poderia apenas falar e
trazer a salvação à existência, assim como ele falou e trouxe a criação à existência?
Receio que definir o amor apenas como um dom agape coloca centralizado no
homem a concepção do amor centrado em Deus, de Agostinho131. Considere a
questão dessa forma: Por que Deus ama pecadores para a salvação? A resposta
agape é: “Porque ele os ama! E ponto final. Ele ama e ele dá. Isso é o que ele faz.” Não
existe qualquer incentivo extra para Deus. Seu amor por eles é um fim decisivo em
si mesmo. Ele ama os pecadores por causa deles e nada mais. Lembre-se, Jesus
morreu por nós. Ele deu tudo!
Sim, ele realmente morreu por nós, mas ele, de fato, renunciou tudo? Ele
renunciou a sua santidade? Sua missão? Ele renunciou o seu compromisso de
obedecer ao Pai? Ele desprezou sua ambição de glorificar o Pai e não espera coisa
alguma em retribuição por parte daqueles a quem ele salva? Ele fica feliz se eles,
uma vez salvos, viverem do modo como lhes agrada? Cristo foi crucificado na carne,
sim, mas ele fez isso por um propósito específico que era mais importante do que
salvar pessoas. Ele está salvando um povo a fim de que esse povo possa ser santo,
amoroso e unido. Ele está salvando um povo para que esse povo possa ser
consagrado para adorar a Deus132. Ele está salvando um povo não para a glória
desse povo, mas para a glória de Deus133. Assim que você disser que Cristo espera
algo daqueles a quem salva, como a obediência, você estará admitindo que Deus está
buscando algo. Ele tem algum alvo em mente. No entanto, note o que acontece
quando você segue verdadeiramente a linha de pensamento do amor agape em
direção a sua conclusão lógica. Se o amor de Deus é simplesmente uma dádiva
sacrificial e nada mais — quero dizer, de fato, um sacrifício totalmente puro —
então Deus renuncia a sua divindade, não é mesmo? Ele deve abandonar sua
santidade, sua justiça, tudo. Se eu abandonar tudo por sua causa, é porque eu o amo
mais do que a mim mesmo. Uma concepção agape do amor, que eu considero ser
uma tendência atual entre os evangélicos, assume implicitamente que, no final das
contas, Deus vive e ama por nossa causa. Nós somos o seu amor maior. Ele nos ama
mais do que qualquer outra coisa, até mesmo mais do que sua própria glória. Ele
nos idolatra.
E, sendo assim, a lei de Deus se curva diante de nós, e todo julgamento é
finalmente derrotado. O que é a lei de Deus, afinal? Ela é o conjunto de exigências
de sua natureza. E se sua natureza se define primeiramente e acima de tudo como
amar a humanidade, então não pode ser pecado amarmos a nós mesmos acima de
todas as coisas e sermos orgulhosos. Não devemos amar aquilo que Deus ama, e
valorizar o que ele valoriza? Não devemos considerar como bem e mal aquilo que
ele considera bem e mal? Se nós somos o que ele mais ama, devemos amar mais a
nós mesmos. A justiça de Deus se transforma em qualquer coisa que seja para o
meu bem. Não existe qualquer outro tipo de justiça “esquecida em algum lugar” que
possa exigir que ele nos julgue por odiá-lo e amarmos mais a nós mesmos. Todo
julgamento pode ser deixado de lado134. Se as pessoas não escolhem Deus, tudo
bem. Dê a elas o direito de dizer não a Deus. Mas não precisamos julgá-las. Não há
razão para isso. Envie-os para umas férias infinitas de felicidade do outro lado do
universo.

POR QUE ISSO É IMPORTANTE PARA A MEMBRESIA E PARA A


DISCIPLINA DA IGREJA?
Por que estou caminhando para abstrações, num livro sobre membresia da
igreja? Considere o que a membresia e a disciplina da igreja são. Elas são atos
preventivos de julgamento, feitos por uma congregação local, os quais prenunciam
o julgamento ainda maior, o veredicto vindouro. Elas são uma declaração, na terra,
sobre quem pertencerá ao povo de Deus, no céu (Mt 16.19). Elas são uma avaliação
de quem pertence a ele e de quem não pertence. Se o que Deus mais ama for ele
mesmo, então Deus pode escolher livremente julgar aqueles que não o amam. Na
verdade, ele deve julgar. Se esse for o caso, então os julgamentos preventivos feitos
pela membresia e pela disciplina da igreja podem ser vistos como misericordiosos e
bondosos. Essas práticas se tornam uma graciosa advertência sobre um julgamento
muito maior que está por vir135. Se, no entanto, Deus amar mais o homem, então
Deus não será outra coisa senão inconsistente ao julgar quem quer que seja. Na
verdade, sua natureza o constrangeria a não julgar. Por essa razão, os assim
chamados julgamentos preventivos feitos pela membresia e pela disciplina da igreja
não só seriam cruéis e odiosos, como também seriam mentiras superficiais.
Em resumo, se definirmos o amor como nada mais que uma “dádiva
incondicional”, ou como “dom gratuito de Deus para a salvação” — como muitos
evangélicos fazem —, poderemos ter um sistema teológico tendendo para a
centralidade do homem e, consequentemente, para o universalismo. Todo sistema
teológico centrado no homem, no final, seguirá o caminho do universalismo,
conforme já tem acontecido desde que a serpente prometeu a Eva: “É certo que não
morrereis”, tornando-a “igual a Deus” (Gn 3.4-5). Um sistema pode manter de
forma inconsistente um papel para o julgamento de Deus e para a membresia da
igreja por algum tempo, mas, no final, as tensões nesse sistema teológico se farão
percebidas. A doutrina do julgamento passará a ficar em segundo plano e, depois,
silenciosamente desaparecerá por completo. E, à medida que isso acontecer, o
mesmo se dará com as práticas de membresia e disciplina da igreja, a menos que elas
sejam reconfiguradas para alcançar a demanda do mercado. “Nossos membros têm
seus privilégios”, diz o comercial do cartão de crédito. “Venha para a comunidade
autêntica”, diz o clero pós-moderno.
Voltaremos a essas questões em breve, mas primeiro precisamos considerar
algumas informações bíblicas acerca do amor em relação a Deus e ao homem.
Assim, estaremos numa posição melhor para definir o amor e o evangelho de Deus,
e para perguntar se há lugar para algum julgamento no amor — e na membresia da
igreja!

Ponto 4: As Escrituras demonstram que o amor de Deus é


santo — é centrado em si mesmo O AMOR DE DEUS POR
DEUS

“Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”, diz o divino Pai a Jesus em seu
batismo (Lc 3.22). Esse versículo não é Gênesis 1.1, mas poderia ser. O amor do Pai
pelo Filho existe desde o início de tudo (veja Jo 17.5, 24).
(Estamos lidando agora com a primeira categoria de Carson, conforme descrita
acima.) Por que o pronunciamento de que o Pai se compraz com o Filho é repetido
sete vezes no Novo Testamento136? O contexto dessas palavras no Evangelho de
Lucas nos ajuda com a resposta. Seguindo imediatamente o batismo, Lucas
apresenta uma genealogia que se estende até Adão, que é mencionado, de fato,
como “o filho de Deus” (Lc 3.23-38, principalmente 38). Jesus, esse filho de Adão,
deve ser aquele para quem toda a história tem apontado, o último Adão, por assim
dizer (cf. 1 Co 15.45). Então, logo após traçar toda a história humana, Lucas
apresenta esse filho de Adão sendo conduzido pelo Espírito de Deus ao deserto,
onde ele encontraria o antigo adversário de Adão, Satanás. O palco está montado
para uma reconstituição da tentação do Éden, só que agora não é num magnífico
jardim, mas num deserto estéril, e Jesus estava jejuando por quarenta dias e noites.
Na verdade, essa cena não só reconstitui o Éden, como também encobre outra
reconstituição — os quarenta anos de Israel no deserto.
No entanto, em resposta a esses desafios, o Filho faz o que nem Adão nem Israel
poderiam fazer. Ele recusa uma provisão falsa e confia totalmente nas palavras de
Deus (Lc 4.4; Dt 8.3). Ele se recusa a se apegar a uma falsa oferta de autoridade e
glória, e adora somente a Deus (Lc 4.6, Dt 6.13, cf. Gn 3.5-6). Ele recusa uma falsa
reivindicação de direito, mas confia completamente no domínio de Deus (Lc 4.12;
Dt 8.16; Êx 17.2-7).
A perfeita obediência do Filho ao Pai é também o testemunho do Evangelho de
João. A comida do Filho é “fazer a vontade do Pai e realizar sua obra” (Jo 4.34; 6.38;
cf. Mt 4.4). Ele “nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o
Pai” (Jo 5.19, 30; 17.2). Ele fala e ensina apenas conforme o Pai o ensinou (7.17;
8.28; 12.49-50). Ele veio no nome e na autoridade do Pai, não em seus próprios
(5.27, 43; 7.17; 8.28). “Porque eu não tenho falado de mim mesmo, mas o Pai, que
me enviou, ele me deu mandamento sobre o que hei de dizer e sobre o que hei de
falar” (12.49 ARC; cf. 14.10).

UM AMOR CONDICIONAL?
O amor do Pai pelo Filho é “condicional” à obediência do Filho? Será que o Pai
tem um amor ardente pelo Filho porque o Filho lhe obedece? Isso soa como aquela
vez em que o Filho diz: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no
meu amor, assim como tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço
no seu amor” (Jo 15.10). O paralelismo nesse texto é impressionante. Nós
permanecemos no amor de Cristo por meio da obediência, assim como o Filho
permanece no amor do Pai por meio da obediência137.
Há um pano de fundo bíblico mais amplo que vale a pena mencionar aqui
também. Quando Deus fez uma aliança com Davi, ele prometeu a Davi que puniria
seu filho quando ele cometesse iniquidade (2 Sm 7.14). No entanto, quando essa
aliança é repetida nas Crônicas, após o exílio, essa ameaça específica é omitida (veja
1 Cr 17.13). Isso seria porque o único filho importante de Davi após o exílio foi
Cristo? Se voltarmos, portanto, para os Salmos, encontraremos um importante
personagem davídico que, de fato, é recompensado por sua justiça. Isso está mais
claro no Salmo 45, no qual se lê: “Amas a justiça e odeias a iniquidade; por isso,
Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria, como a nenhum dos teus
companheiros” (Sl 45.7). Deus ungiu esse rei porque ele amava a justiça e odiava a
iniquidade (veja também Sl 21.5-7) — o qual o livro de Hebreus afirma ser Cristo
(Hb 1.9). Vez após vez, esse importante personagem davídico diz: “Retribuiu-me o
SENHOR segundo a minha justiça” (Sl 18.20; cf. Sl 7.8; 26.1; 35.24). Jesus foi
ungido como Messias e rei não apenas porque ele era o Filho de Deus. Ele
conquistou a unção por meio de sua justiça (cf. Sl 2.7)!
Essa corrente específica de textos é somente uma das que fluem para o vasto e
profundo oceano da Cristologia e não deveria ser lida separadamente de outras que
afirmam o amor eterno e garantido do Pai pelo Filho. Entretanto, Jesus é o único
que “aprendeu a obediência” pelas coisas que sofreu (Hb 5.8). Jesus é o único que
pôde dizer aos seus discípulos: “Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, assim como tenho guardado os mandamentos de meu
Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15.10). Jesus é o único de quem o Pai disse que
se comprazia nele, um comprazimento fundamentado, pelo menos em parte, na
perfeição moral do Filho. Na verdade, a declaração da satisfação do Pai em seu Filho
acontece no batismo de Jesus, um batismo que foi realizado para “cumprir toda a
justiça” (Mt 3.15).
No mistério da encarnação, parece que Jesus de Nazaré, o Deus-Homem, era o
recebedor daquilo que poderíamos chamar de amor “condicional” de Deus. Em sua
impecabilidade, é lógico, Jesus, o Deus-Homem, guardou a lei de modo perfeito, e o
julgamento pronunciado sobre ele foi “justo”. Como o Filho eterno, obviamente, o
amor do Pai pelo Filho é infinito e garantido. Entretanto, há pelo menos uma
corrente textual que segue o curso da história da redenção e que sugere que o Pai
presenteou o Filho encarnado com um tipo de amor condicional ou um amor que
era fundamentado na obediência de Cristo138. As boas novas, para nós, é que Jesus
cumpriu as condições139!
Há nisso uma lição crucial. Isso demonstra que o Pai ama o Filho por causa da
perfeição do Filho. Ele se descreve como sendo atraído para determinadas
qualidades de seu Filho, qualidades com as quais ele se “compraz”. Isso era verdade
durante a encarnação, e temos toda a razão para pensar que isso era verdade na
eternidade passada, e que o será também na eternidade futura. O Filho reflete o
próprio caráter do Pai e o glorifica, e o Pai o ama por essa razão. O amor do Pai pelo
Filho não é indiscriminado e arbitrário. Ele tem uma razão de ser. Podemos até
mesmo dizer que há uma condição para o amor eterno do Pai. E se o Filho não se
submetesse de modo perfeito à vontade do Pai e não refletisse perfeitamente a
imagem do Pai — será que o Pai deixaria de amá-lo? Bem, isso é uma situação
hipotética, e não temos como saber. O que, de fato, sabemos com certeza é o que o
salmista cantou e o que o autor de Hebreus atribui ao Pai no que concerne ao Filho:
“Amas a justiça e odeias a iniquidade.” “Por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com o
óleo de alegria, como a nenhum dos teus companheiros” (Sl 45.7; Hb 1.9). O amor
de Deus, até mesmo pelo Filho, está ligado à sua justiça. Deus não ama nem a si
mesmo independentemente de sua própria lei. Seu amor é intrinsecamente
condicionado por todos os seus outros atributos. Em resumo, Jesus, o Filho amado,
dá prazer ao Pai porque ele cumpriu o mandamento dado a Israel: “Amarás, pois, o
SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força”
(Dt 6.5; cf. 6.6).
O amor como atração e o amor como um dom não estão separados no amor do
Pai pelo Filho. O Pai é atraído para o Filho, e ele doa gratuitamente ao Filho tudo o
que tem. Ele se transmite ao Filho totalmente. O apóstolo Paulo explica que
“aprouve a Deus que residisse toda a plenitude” em Cristo (Cl 1.19). O próprio
Jesus testemunhou que: “O Pai ama ao Filho, e todas as coisas tem confiado às suas
mãos” (Jo 3.35; veja também Mt 11.27); e também: “o Pai ama ao Filho, e lhe mostra
tudo o que faz” (Jo 5.20); e também: “Porque assim como o Pai tem vida em si
mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo (Jo 5.26). Portanto, a
transmissão de si mesmo que o Pai faz ao Filho é completa, de modo que Jesus
podia dizer ao seu discípulo Filipe: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Paulo
também podia dizer: “Ele ‘é a imagem do Deus invisível’” (Cl 1.15); e o autor de
Hebreus escreveu: “Ele é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser” (Hb
1.3).
Recentemente, ouvi por acaso uma exposição de um pregador sobre o amor do
Pai pelo Filho, conforme expresso no batismo de Jesus. O pregador seguiu falando
sobre como o Pai podia amar o Filho sem reservas, porque não havia no Filho
pecado que impedisse o seu amor. O Filho era perfeito e sem defeitos, por isso o Pai
podia amá-lo sem restrições ou reservas. Imagine tal amor perfeito e doce fluindo
— o amor da perfeição infinita pela perfeição infinita140! No entanto, à medida que
ele pregava, eu sentia um peso crescente e opressivo em mim. “Nunca serei tão
perfeito”, eu pensava. “Deus jamais será capaz de me amar totalmente sem
reservas.” Esse peso aumentava até que, de modo notável, o pregador voltou a dizer
que exatamente esse mesmo amor foi dado a cada cristão em razão de... bem, isso
está adiantando a nossa história. Por enquanto, ofereço apenas esta observação: O
amor de Deus e a lei de Deus não estão tão separados quanto nós, os evangélicos,
temos a tendência de pensar. Na verdade, eles estão simultaneamente ligados.

DEMONSTRAR AMOR ATRAVÉS DA OBEDIÊNCIA?


Se o amor do Pai pelo Filho consiste em transmitir toda a sua glória ao Filho (cf.
Jo 17.5), e receber o devido prazer em troca disso, o amor principal e o maior prazer
do Filho consistem em receber a glória do Pai, o que ele faz por meio da obediência.
O zelo pela casa, pelo nome e pela reputação do Pai consome o Filho (Jo 2.17),
porque ele toma para si as reprovações que recaem sobre o Pai. Todavia, ele as toma
por amor ao Pai (Sl 69.7, 9). Jesus diz que tudo o que ele faz é para agradar ao Pai
(Jo 8.29); por essa razão, ele aponta para sua obediência como um sinal de seu amor
pelo Pai: “Assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço como
o Pai me ordenou” (Jo 14.31).
Nada é mais valioso para o Filho do que o Pai, por isso o seu maior prazer está em
transmitir a glória do Pai a todo o universo (cf. 17.4). Ele faz isso conformando sua
vida totalmente à vontade do Pai. Ele basicamente diz: “Deus, o Pai, é tão precioso e
valioso que eu o colocarei em evidência com todas as minhas ações. Portanto, se
você vir a mim, terá visto o Pai.” Esse é o amor perfeito demonstrado por meio da
obediência perfeita.

UM AMOR PRÓPRIO?
O amor de Deus por Deus é amor-próprio? Não e sim. Não, porque no amor do
Pai pelo Filho, ele ama outra pessoa, o seu eterno filho unigênito.
E sim, porque no amor do Pai pelo Filho, ele ama o seu próprio ser — a expressão
exata do seu ser — Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
Ele contempla sua própria imagem maravilhosa no Filho.
Ao que parece, no amor de Deus por Deus, dar e receber se fundem. A glória é
dada. A glória é recebida. A glória é refletida. O dom da glória é redobrado e
compartilhado. Sim, ainda existe uma assimetria entre o Pai e o Filho. O Pai envia,
ao passo que o Filho vai. O Pai ordena, enquanto o Filho obedece. O Pai inicia, ao
passo que o Filho responde. Nas páginas do Novo Testamento, essa ordem nunca foi
invertida141. Ainda assim, não há perdedores em meio a esses diferentes papéis ou
vocações. A relação de autoridade e obediência não é uma ameaça à satisfação, à
glória e ao amor. Tanto o Pai quanto o Filho “saem ganhando” e compartilham da
glória da vitória redentora. A autoridade e a obediência se tornam o mesmo veículo
por meio do qual o amor é demonstrado.
Tudo isso é surpreendente em nosso presente contexto ocidental, em que
depreciamos todas as formas de hierarquia e autoridade, como adversas ao amor. O
amor é interpretado como sendo vulnerável e abnegado, ao passo que a autoridade
é considerada como exploradora, e a submissão, como degradante. A fim de
promover relacionamentos e comunidades de amor, dizem que devemos nivelar
todas essas hierarquias em nossas igrejas e lares, e substituí-las por estruturas
igualitárias, ou mesmo remover as estruturas. (Ironicamente, essa proposição em si
baseia-se num tipo de estrutura de poder capaz de produzir o amor.) Certamente,
qualquer uso egoísta do poder, quer seja exercido por uma hierarquia formal, quer
não, é por si só a antítese do amor — é a afirmação da força de uma pessoa sobre
outra para fins egoístas. Não é de se admirar que os homens, num mundo decaído,
concluíssem que amor e poder, ou amor e autoridade, são antitéticos e que todas as
hierarquias permanentes (não contratuais) devam ser niveladas. O que é ainda mais
surpreendente é o fato de que a Bíblia coloca o amor não decaído do Pai e do Filho
nesse tipo de estrutura autoritária. E não somente isso, mas ela usa os abusos de
poder horrivelmente corrompidos de Herodes e Pilatos, pelos quais um homem
inocente é levado a sofrer, a fim de fornecer a maior demonstração de amor do
Filho pelo Pai e pela humanidade.
Como então devemos entender a relação entre amor, autoridade e obediência? A
resposta sem dúvida afeta o modo como compreendemos o amor na igreja local,
bem como o amor que a igreja deve ter pelo mundo. Será que o amor, em algum
momento, toma uma posição de autoridade em relação aos membros da igreja ou ao
mundo?
Será que, em algum momento, na igreja, o amor exige obediência?
AMOR E SANTIDADE
Enquanto olhamos mais atentamente para o amor perfeito entre o Pai e o Filho,
há mais uma coisa que precisamos considerar: a relação entre o amor de Deus e a
santidade de Deus. Afinal, a relação entre o amor e a santidade na história da igreja,
assim como a relação entre amor e autoridade, é, no mínimo, diversificada.
Ao recontarmos essa história, somos tentados a caracterizar as igrejas desde a
época de Cristo como se estivessem sempre se desviando do rumo, ou para um lado
ou para o outro. Ou elas se desviavam muito na direção da santidade e da separação
do mundo e por causa disso abandonavam o amor, ou elas se desviaram muito na
direção do amor e da assimilação e, por isso, abandonavam a santidade. Os
puritanos e os fundamentalistas proveram estereótipos banais para as ênfases
exageradas do passado. Os românticos, os liberais e — mais recentemente — os
emergentes proveem estereótipos banais para os contemporâneos. É tentador
narrar a história desse modo, mas acho que seria melhor dizer que algumas igrejas
têm se desviado muito na direção daquilo que elas acham que é santidade, enquanto
outras igrejas têm se desviado demasiadamente para aquilo que elas acham que é
amor. Se uma igreja abandonou a santidade, ela abandonou o amor; e se ela
abandonou o amor, também abandonou a santidade. A santidade e o amor
envolvem um ao outro mutuamente e agem em acordo, não em oposição.
Ao descrever a relação entre a santidade e o amor de Deus, Jonathan Edwards
argumenta que a santidade de Deus é sua dedicação perfeita e pura ao prazer que
ele tem em si mesmo e em sua glória — o Pai dedicado ao Filho e o Filho dedicado ao
Pai. Sua santidade é seu amor por si mesmo. Edwards escreve: “A santidade de Deus
consiste em seu amor, principalmente na união perfeita e íntima e no amor que
existe entre o Pai e o Filho.”142 Ou, em outra passagem: “A santidade de Deus é ele
ter a consideração devida, adequada e apropriada por todas as coisas; portanto, ela
consiste principal e sumariamente em sua consideração infinita ou em seu amor
por si mesmo, já que ele é o Ser mais grandioso e mais excelente que existe.”143
Não estou certo se Edwards tinha a intenção de resumir a santidade de Deus
como um todo como sendo uma qualidade inerente das afeições de Deus, como se
afirmasse: “Deus é santo porque tem afeições santas.” Certamente que devemos
enfatizar que a santidade de Deus não é apenas uma qualidade inerente de suas
afeições, mas sim do seu ser144. O próprio ser de Deus é santo! Entretanto, visto
que estamos falando do amor ou das afeições de Deus, creio que Edwards esteja
absolutamente certo ao dizer que a santidade de Deus consiste em seu amor
infinito por si mesmo.
As pessoas definem geralmente a santidade como o fato de Deus estar
“separado”. Mas o fato de ele estar separado não nos diz do quê145. Se Deus odeia o
pecado, é porque o pecado se opõe a algo que Deus ama, e o que Deus mais ama? O
que ele mais ama é a sua glória (por exemplo, Is 48.8-11). O teólogo Wayne Grudem
demonstra ter essa compreensão em sua definição sobre a santidade de Deus: “A
santidade de Deus significa que ele é separado do pecado e dedicado a buscar sua
própria honra.”146 Isso ajuda a explicar a estranha justaposição da transcendência e
da imanência de Deus no cântico de louvor cantado pelo serafim na visão de Isaías:
“Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua
glória” (Is 6.3)! A santidade de Deus não separa sua presença da terra, mas faz
exatamente o oposto; ela enche a terra com a sua presença para que ele possa exibir
a sua glória única e exclusiva147. A santidade, ao que parece, exige não só um “não”
ao mundo, mas também um “ingresso” nele para que Deus seja glorificado148. Por
essa razão, Davi canta: “Tributai ao SENHOR a glória devida ao seu nome, adorai o
SENHOR na beleza da santidade” (SL 29.2). Tornar manifesta a sua santidade é o
mesmo que manifestar sua glória (Ez 28.22; veja também Êx 15.11).
Edwards nos ajuda a perceber, portanto, que a santidade de Deus e o amor de
Deus parecem ser duas perspectivas de uma mesma realidade149. Ao olharmos para
“dentro” do ser do Deustrino, vemos o amor. Ao olharmos para “fora” das suas três
pessoas, vemos a santidade. Em outras palavras, considere os relacionamentos
dentro da própria divindade; entre o Pai, o Filho e o Espírito. A partir desse ângulo,
podemos ver esses laços perfeitos de amor divino — três pessoas que possuem uma
afeição perfeita para com o bem e para com a glória um do outro. No entanto,
quando caminhamos para fora desse relacionamento e olhamos para a mesma coisa
em comparação a todas as outras coisas no universo, vemos o que a Bíblia chama de
“santidade” — o fato de ele ser, de modo puro e sem distrações, dedicado a amar a
sua própria glória.
Então, qual é exatamente a relação entre a santidade e o amor? A santidade é a
forma de medir a dedicação do amor a Deus ou, mais especificamente, a pureza da
dedicação do amor a Deus. O quão puramente Deus ama a Deus? Essa é a forma de
saber o quão santo Deus é. O quão puramente o homem ama a Deus? Essa é a
forma de saber o quão santo o homem é. Outra forma de dizer isso seria dizendo
que o amor de Deus é dirigido pela santidade de Deus. Ele sempre, e somente, se
move na direção de propósitos santos. Nesse sentido, o amor de Deus é
constrangido pela santidade de Deus, assim como a água é constrangida pelo cano
através do qual ela flui. É lógico, isso significa que a santidade de Deus, no final das
contas, serve aos propósitos de seu amor, assim como o cano em relação à água.
É essa afeição santa, ou amor santo, que divide o universo em dois. E há uma
linha divisória clara e brilhante entre os dois lados, uma linha tão clara como o
limite entre o interior do jardim do Éden e o lado de fora dele; entre o interior da
Arca de Noé e o lado de fora dela; entre o interior de uma casa coberta por uma
mancha de sangue na noite da Páscoa e o lado de fora dela; entre o interior do
arraial israelita no deserto e a parte externa dele; entre o interior da Terra
Prometida e a parte de fora dela. Ela é uma linha tão clara quanto o rio Jordão. De
um lado dessa linha estão os santos; do outro lado estão os ímpios. De um lado
estão aqueles que têm um amor centrado em Deus; do outro lado, aqueles que
amam os ídolos. De um lado estão aqueles que ouvem a Palavra e a Lei de Deus; do
outro lado estão aqueles que ouvem as opiniões dos outros (veja Gn 3.17).
Quando Paulo se refere ao povo escolhido de Deus como “santos e amados” (Cl
3.12), ele não está falando sobre duas coisas que não se relacionam entre si. A igreja
local que escolhe enfatizar o amor de Deus, mas não sua santidade, é uma igreja
que, de fato, não compreende o que é o amor de Deus; porque o amor de Deus é
completamente firmado sobre Deus e seu caráter glorioso, em todos os aspectos.
Tal igreja provavelmente colocará um ídolo no lugar do amor de Deus. E, como tal, a
igreja que hesita em traçar limites nítidos para a membresia ou em praticar a
disciplina, porque essas coisas não parecem ser amorosas, precisa saber que ela tem
se deixado enganar por uma caricatura de amor centrada no homem. Ela tem sido
atraída pela cultura. E bem pode estar adorando um ídolo.
Por outro lado, a igreja que, por uma razão ou por outra, parece enfatizar a
santidade de Deus e, no entanto, falha em fazê-lo a serviço do amor é uma igreja
que interpreta mal a santidade de Deus. A santidade de Deus significa encher a
terra com sua glória, incluindo o modo radicalmente distinto como ele enviou o seu
Filho para chamar não os justos, mas os pecadores ao arrependimento. Não resta
dúvida de que aquele a quem os demônios reconheceram como o “Santo de Deus”
era o mesmo que se aproximaria para tocar o homem com o espírito imundo de um
modo que o povo “santo” de Israel não tocaria (Mc 1.24). Uma igreja santa é uma
igreja que se abstém do pecado enquanto habita entre os pecadores, sendo ambas
essas coisas qualidades inerentes à santidade. Ela está no mundo, mas não é do
mundo; essas duas posturas, novamente, são qualidades inerentes à santidade.
Missões e evangelismo não são simplesmente uma consequência do amor de Deus,
mas de sua santidade. Ele é tão completamente consagrado à sua própria glória que
deseja que todos se consagrem à sua glória! E, novamente, a igreja que pensa que é
santa, mas não se envolve intensamente com o evangelismo e com ações de serviço
não é uma igreja santa. Aqueles que pertencem aos “eleitos congelados” de Deus
que tomem cuidado.
Note, portanto, que tanto o amor quanto a santidade possuem estímulos
internos e externos. Eles são internos pelo fato de cooperarem para atrair as
pessoas para o amor de Deus, e são externos pelo fato de desejarem que mais e mais
pessoas conheçam esse amor. A santidade e o amor de Deus é uma fornalha de
purificação nos corações do povo de Deus, que arde cada vez mais com amor pelos
perdidos — para que eles possam conhecer a Deus e para que ele possa ser exaltado
em suas vidas.
Considere mais uma vez a razão de o amor de Deus nos atrair e ofender ao
mesmo tempo. Ele nos atrai porque age exteriormente para nos abraçar. Ele nos
atrai porque é um dom que é misericordiosamente inclusivo — ele almeja incluir
mais e mais pessoas, apesar da indignidade delas. Ele é um dom dado àqueles que
são imanentemente indignos de tal amor. Todavia, ele nos ofende porque tudo nele
diz respeito a Deus, e nosso coração orgulhoso e idólatra não aprecia esse fato. Ele
nos ofende porque as pessoas são incluídas nele não por causa da honra de seus
nomes; elas são incluídas nele por causa da honra e do louvor do nome de Deus.
Elas são incluídas não por aquilo que elas podem trazer, mas por aquilo que será
pedido que elas entreguem: adoração. O fato de a adoração, de nossas vidas santas e
de nossas santas ambições estarem centradas em Deus nos ofende. Isso é
arbitrariamente excludente — isso exclui a adoração de todas as outras coisas além
de Deus. Isso exclui a adoração ao eu.

Ponto 5: As Escrituras demonstram que os propósitos de


Deus na redenção também são santos, centrados nele mesmo.

O AMOR DE DEUS PELOS PECADORES


Se o amor do Pai pelo Filho é caracterizado pela transmissão que o Pai faz de si
mesmo ao Filho e por sua total atração pelo Filho, o que dizer do amor de Deus
pelos pecadores? Não poderíamos apenas dizer que seu amor pelos pecadores é
caracterizado simplesmente pelo amor agape? Simplesmente uma dádiva? Sim e
não.
Do nosso ponto de vista, sim, o dom da salvação por meio de Cristo é
simplesmente uma dádiva de amor aos pecadores que não a merecem.

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito (Jo
3.16a).

Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados


gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus
(Rm 3.23-24 e também 5.15-17, 6.23).

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus (Ef. 2.8).

Nós não merecemos o amor redentor de Deus. Não podemos merecê-lo. Ele deve
dá-lo a nós não apenas independentemente de qualquer qualidade em nós, mas
numa espantosa contradição em relação ao que somos.
Do ponto de vista de Deus, no entanto, não é assim; o dom da salvação é dado em
resposta à pessoa e à obra de Cristo. Cristo conquistou a nossa salvação. Ele a
mereceu. Deus nos ama porque ele ama seu belo Filho e deseja que a beleza justa de
seu Filho seja difundida e proclamada por meio da transferência dessa justa beleza à
noiva de seu Filho.

Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti,
assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele
conceda a vida eterna a todos os que lhe deste (Jo 17.1-2).

Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e
pelos profetas; a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas —
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os
que creem (Rm 3.21-22).

Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas
existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de
sofrimentos, o Autor da salvação deles. Pois, tanto o que santifica como os que
são santificados, todos vêm de um só. Por isso, é que ele não se envergonha de
lhes chamar irmãos (Hb 2.10-11).

Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo
sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe
obedecem (Hb 5.8-10).

O amor do Pai pelo Filho é dado a recebedores indignos com base no mérito de
Cristo — nisso encontramos o quarto aspecto do amor descrito por Carson, o amor
especial de Deus pelo seu povo.
Na verdade, até existe um sentido, “do nosso ponto de vista”, com o qual quero
qualificar minha afirmação de que ele nos dá a salvação simplesmente como um
dom. Devemos manter em mente que o dom possui um propósito que nos
transcende: Deus dá o dom de sua graça a recebedores indignos para que eles
também possam se parecer com o objeto supremo de seu amor — Cristo:
Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, tendo-a purificado por
meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem
defeito (Ef 5.25-27).

E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a


glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória (2 Co 3.18a).

O ardor da afeição do Pai pelo Filho é tão grande que ele deseja que centenas de
milhares de rostos se pareçam exatamente com o rosto de Jesus. Essa afeição,
enfim, tem a ver com Jesus.
Kierkegaard distinguiu o amor cristão do amor romântico, dizendo que este
último se concentra no “nome do favorito... em discriminação ao restante do
mundo”, e que ele “se esforça na direção de um único ser amado”150. Mas esse é o
amor cristão! O nome do preferido que tanto o Pai quanto o cristão igualmente se
esforçam para evidenciar é o nome de Cristo, ao passo que Cristo, por sua vez, se
esforça para evidenciar o nome do Pai e conclama o seu povo a fazer o mesmo (veja
Jo 16.26-27; 1 Co 15.28).
O amor de Deus por qualquer outra coisa que não seja a glória do Filho está
condicionado àquele primeiro amor. Essa é a minha maneira breve e imprecisa de
dizer o que Jonathan Edwards leva cerca de uma dúzia de páginas para dizer em The
End for Which God Created the World [O Fim para o Qual Deus Criou o Mundo], já
que ele distingue os “propósitos supremos” dos propósitos “subordinados”,
“principais”, “mais elevados” ou “extremamente supremos”151. Todas as outras
atividades de Deus são contingentes a este único propósito mais elevado: a
proclamação de sua glória. Edwards escreve:
Todo o amor de Deus talvez se resuma ao seu amor por si mesmo e ao seu deleite em si
mesmo... Seu amor pela criatura é apenas a sua inclinação para glorificar a si mesmo e
transmitir-se a si mesmo para seu próprio deleite na glorificação e transmissão de si mesmo152.

O amor de Deus pela humanidade, na criação, está ligado à exibição de sua


imagem. Seu amor pela humanidade, na redenção, está ligado à exibição da imagem
de seu Filho. Ele nos dá esse amor porque é atraído pela exibição da glória. Seu amor
por nós está sempre condicionado a isso.
O amor pode ser dado condicionalmente? A resposta deve ser “sim” se
assumirmos que uma pessoa é capaz de amar algumas coisas mais do que outras. Eu
amo o meu emprego; no entanto, amo mais minha esposa do que meu emprego. Se
as circunstâncias fossem tais que eu tivesse que escolher entre minha esposa e meu
emprego, o emprego seria sacrificado. Será que a natureza condicional do meu
amor pelo meu emprego significa que, de fato, não o amo? Certamente que não.
Tenho um prazer genuíno em meu emprego, e isso de modo confiante, por razões
que glorificam a Deus. Entretanto, meu amor por minha esposa é maior, o que
significa que, sob determinadas circunstâncias, o meu amor por meu emprego se
tornaria condicionado ao meu amor por minha esposa.
Exatamente por isso poderíamos dizer que se existe qualquer coisa na vida que
eu ame incondicionalmente, isso deve ser aquilo que eu mais amo — aquilo que eu
manteria após ter sacrificado todo o resto. Todas as demais coisas que eu amo na
vida, portanto, eu as amo com a condição de que elas não ameacem aquilo que eu
mais amo.
Se Deus é a coisa mais importante em suas próprias afeições, então, todos os
outros amores devem estar condicionados a esse primeiro amor. Os mesmos
raciocínios em relação ao principal amor de Deus poderiam, então, ser afirmados
para as outras coisas que Deus realmente ama, ainda que condicionalmente. Esse
ponto pode acabar sendo esquecido neste capítulo, mas note que ele contradiz uma
das pressuposições fundamentais da nossa cultura a respeito do amor, a saber, de
que todas as coisas dignas do nome “amor” devem ser “incondicionais”. O amor
pode ser condicional, e, de fato, o amor de Deus pela humanidade é sempre
condicional. Na criação, ele era condicionado ao fato de o homem guardar o
mandamento (Gn 2.15-16). Na redenção, ele é condicionado à justiça de Cristo e à
capacidade de exibirmos sua glória.
As boas novas do cristianismo não são as de qye Deus decidiu amar um povo
incondicionalmente, e sim que ele decidiu conceder seu “amor condicional” a um
povo, de modo pleno e garantido, de forma oposta ao que esse povo merece, porque
Cristo satisfez as exigências. David Powlison tem a frase perfeita para isso: Deus
não ama seu povo escolhido incondicionalmente; ele os ama de modo
“anticondicional”153. Ele ama o seu povo de modo oposto ao que esse povo merece e
depois o transforma naquilo que ele deve ser. Ele dá o seu Espírito ao seu povo, por
meio do qual as pessoas podem viver de acordo com seus justos padrões, exibindo,
por meio disso, mais uma vez sua imagem. Assim, o seu povo fica livre para cumprir
os propósitos que Deus tinha para ele na criação. Conforme os profetas do Antigo
Testamento prometeram, Deus perdoa a iniquidade de seu povo e também coloca a
sua lei dentro deles, de modo que eles andem em seus estatutos e tenham o cuidado
de obedecer às suas regras.
Todas as riquezas do amor do Pai por seu Filho amado são concedidas a esses
filhos adotivos e coerdeiros. Todas as afeições do amor do Pai por seu Filho amado
são concedidas à noiva do Filho. Nós, a igreja, somos incorporados de modo notável
no amor “vasto, imensurável, ilimitado e irrestrito” do Pai pelo Filho.
O estudioso do Novo Testamento Richard Bauckham observou que os atributos-
chave do relacionamento entre o divino Pai e o Filho, em João 10, tornam-se a base
da oração de Jesus por seus discípulos, no capítulo 17:
Em João 10, Jesus descreve a si mesmo e o Pai como um (v. 30). No capítulo 17
ele pede ao Pai para tornar os seus discípulos um, assim como ele e o Pai são
um (vs. 11, 21, 22, 23).

No capítulo 10, Jesus diz que foi santificado pelo Pai (v. 36). No capítulo 17 ele
pede ao Pai para santificar seus discípulos (v. 17).

No capítulo 10, Jesus diz que Deus o enviou ao mundo (v. 36). No capítulo 17
ele pede ao Pai para enviá-los ao mundo (18, 21, 23).

No capítulo 10, Jesus diz que o Pai está nele e ele está no Pai (v. 38). No
capítulo 17, ao falar novamente sobre os seus discípulos, ele diz ao Pai: “A fim
de que... estejam eles em nós... eu neles, e tu em mim... para que o mundo
conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (vs. 21,
23, 26)154.

No bumerangue do amor de Deus, os discípulos são incorporados em todas as


afeições, direitos e propósitos que o Pai oferece ao Filho.
O homem natural pode se ofender com a centralidade do amor de Deus no
próprio Deus. Ah, se ao menos os seus olhos fossem abertos para ver
primeiramente o quão grandioso é esse amor e, em segundo lugar, o que Deus
promete ao homem no evangelho. Quão grandioso é o amor de Deus por Deus! As
chamas do amor de Deus devem arder por algo. No amor de Deus por Deus, seu
amor não arde por nada que não seja a beleza mais requintada; por nada que não
seja a incomparável retidão moral; por nada que não seja o poder criador e
sustentador do universo; por nada que não seja uma justiça perfeitamente
cuidadosa; por nada que não seja a sabedoria de seu Filho, a qual envolve todas as
coisas; de um Filho que reflete de volta para ele a imagem de seu próprio ser.
Quando o Pai contempla o Filho, as chamas de seu amor ardem por tudo isso —
com deleite e prazer infinitos no bem que existe nesse Filho perfeito. Eis o quão
grandioso é esse amor.
O que então é dado, no evangelho, ao homem caído? Esse mesmo amor! Pense
em minha história sobre ouvir o pastor pregando a respeito do batismo de Jesus. O
amor do Pai pelo Filho deve ser opressor para nós porque nós não somos dignos
dele. Ouso dizer que nós somos como a menina simples que folheia as páginas de
uma revista de moda e se sente deprimida por não se parecer com as modelos
artificialmente modificadas e retocadas das páginas que estão diante dela. Por essa
razão, ela sente que nunca será amada e adorada por sua beleza, como ela deseja
ser. É com essa atitude que devemos contemplar o amor do Pai pelo Filho. Nunca
nos pareceremos com Jesus, enquanto o amor do Pai pelo Filho irrompe como
águas poderosas por causa de sua beleza. Ah, mas aqui está a boa nova do
evangelho: tamanho amor será dado a você e a mim, pecadores repulsivos — o
irromper das águas poderosas do amor do Pai sobre nós. Sobre você. Se tão somente
nos arrependermos e crermos.
Tamanho amor possui um efeito transformador no pecador porque, conforme
afirma Agostinho, esse “amor é Deus de Deus”. Ele “é Deus, o Espírito Santo, que
procede de Deus, e que estimula o homem a amar a Deus e ao próximo”. Ele nos
ama com o intuito de que o amemos em retribuição, com o mesmo amor e
obediência que Jesus demonstrou pelo Pai. Considere estas promessas espantosas
de Jesus:
Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama;
aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me
manifestarei a ele (Jo 14.21).
Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos
para ele e faremos nele morada (Jo 14.23).

Naquele dia, pedireis em meu nome; e não vos digo que rogarei ao Pai por vós.
Porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e tendes crido que
eu vim da parte de Deus (Jo 16.26-27).

Depois, orando ao Pai, Jesus diz: “Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei
conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja”
(Jo 17.26). — Aqui encontramos o quinto aspecto do amor bíblico definido por
Carson, o qual ele chama de “amor condicional”.
O amor de Deus é dado aos pecadores por causa de Cristo, mas esse amor não é
separado de sua santidade. Ele é santo e produz santidade. Ele cria a obediência
santa do amor.

Ponto 6: Portanto, podemos definir o amor como “a


afirmação e a afeição daquele que ama em relação à pessoa
amada e para o bem dessa pessoa amada, no Santo”.

O QUE É O AMOR?
Portanto, o que é o amor? Será que podemos sistematizar os vários aspectos das
informações bíblicas? Creio que podemos, e, com uma pequena ajuda do jesuíta
Jules Toner e da feminista Margaret Farley, encontrar-nos-emos exatamente de
volta ao argumento de Agostinho e Edwards. No final das contas, descobriremos
que o amor é um bumerangue — o bumerangue de Deus.

OS TRÊS COMPONENTES DO AMOR


Em seu livro The Experience of Love [Experimentando o Amor], Jules Toner tenta
simplesmente observar o que acontece quando o amor age. Como experimentamos
o amor? Sua resposta gira em torno de várias ideias: resposta, união e afirmação.
Para começar, o amor é uma resposta a alguma qualidade que percebemos na pessoa
amada. Essa qualidade nos instiga ou nos inclina a desejarmos nos unir a ela por
causa daquela qualidade; mas não desejamos nos unir à pessoa amada de um modo
que destrua a integridade daquilo que ela é. Em vez disso, o amor afirma a pessoa
amada em seu próprio ser “por causa dela mesma e em si mesma”. Aquele que ama
dá a si mesmo à pessoa amada com o intuito de se identificar com ela155.
Toner faz uma maravilhosa distinção entre dar a si mesmo e dar de si mesmo.
Quando eu dou de mim mesmo a você, eu lhe dou algo que possuo, como a
sabedoria, a alegria, meus bens ou forças. É lógico que não arrisco, de fato, perder
coisa alguma nesse processo, porque ganho louvor por tais dádivas. Na verdade,
posso dar tudo o que tenho, até mesmo meu corpo para ser queimado, e não ter
amor. Quando dou a mim mesmo, no entanto, não dou apenas algo que possuo, mas
dou todo o meu ser. Eu identifico o meu ser e tudo o que sou com você. As forças
que tenho se tornam suas e as tristezas que você tem se tornam minhas. Qualquer
glória que eu possa ter se torna sua, e toda a glória que você possa ter é a glória na
qual eu mais me alegro. Ela também é minha. Existe um tipo de interpenetração
entre a minha identidade e a sua, do tipo que não viola a integridade de nenhuma
das identidades, mas as une simultaneamente. Toner resume: “Eu o amo porque
você é você. E eu poderia ser você, por amor, sem deixar de ser eu mesmo, porque
devo ser eu mesmo, a fim de que você possa ser você de uma maneira que somente
eu posso fazer com que você seja você.”156
Assim como Toner, a feminista Margaret Farley define o amor como uma
“afirmação afetiva que é responsiva e unificadora”, mas ela também notou que essa
definição pode ser usada para descrever amores tolos e destrutivos. Tal amor deve
afirmar verdadeira e legitimamente a pessoa amada. Deve haver uma afirmação
justa da pessoa amada, a qual, por sua vez, depende de uma afirmação justa do eu
(por essa razão: “Ama ao teu próximo como a ti mesmo.”)157.
Acho que nem Toner nem Farley nos oferecem tudo o que precisamos para essa
definição, e suas definições até mesmo correm o risco de obscurecer a distinção
entre o criador e a criatura. Mas suas observações são proveitosas e oferecem a
linguagem para a minha definição de amor baseada em Agostinho e em Edwards. O
verdadeiro amor piedoso consiste em três coisas: (1) na afirmação da pessoa amada
e na afeição por parte daquele que ama, (2) no bem da pessoa amada, e (3) no
Santo.
1) A afirmação da pessoa amada e a afeição por parte daquele que ama... O Amor
sempre começa nesse ponto. A essência pura disso pode ser vista no prazer que o
Pai tem no Filho amado, bem como pelo fato de ele afirmar a criação como “boa”.
Isso também pode ser visto no desejo salvífico que Deus tem para com os pecadores.
Apesar do fato de eles haverem se rebelado contra ele, ele continua afirmando a
nossa existência como uma coisa boa no chamado para a salvação: “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira...” (Jo 3.16) e “o Senhor... é... não querendo que
nenhum pereça” (2 Pe 3.9).
No entanto, esse aspecto do amor de modo algum é exclusivo de Deus. Ele
caracteriza qualquer amor, quer estejamos falando do amor moral ou imoral; do
amor erótico, platônico ou divino; do amor por uma pessoa ou por uma comida.
Amar alguma coisa é estar feliz porque essa coisa existe, por causa de alguma
qualidade nela. É afirmá-la. É ter afeição por ela. Na linguagem de Toner, esse é o
aspecto responsivo do amor, e até mesmo um desejo responsivo de se unir. Na
linguagem da conversa histórica, isso é eros.
Na verdade, é provavelmente muito mais fácil perceber esse aspecto do amor no
domínio romântico ou erótico. Considere o livro de Cantares, no qual dois amantes
estão envolvidos com afeição e prazer um pelo outro e por meio do outro. Cada um
declara ao outro que o amor do outro é melhor do que o vinho (1.2; 4.10). Os
amigos lhes dizem para eles se embebedarem com amor (5.1). Aquele que ama
nunca para de exultar na beleza da pessoa amada. A pessoa amada confessa estar
doente de amor (2.5; 5.8) e, por duas vezes, conjura outras mulheres a não
despertarem o amor na hora errada (2.7; 8.4). Por que tamanha conjuração?
Porque “as muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afogá-lo” (8.7a).
Os prazeres ou afeições do amor são poderosos, controladores e dominadores da
vida, assim como o vinho ou o fogo. Embora um homem possa ser desprezado por
fazer isso, ele ainda pode “dar toda a riqueza de sua casa pelo amor” (8:7b). A ênfase
do livro de Cantares recai claramente sobre a experiência e as sensações do amor —
sobre o prazer do amor.
2) ...e no bem da pessoa amada... Toner está certo ao falar sobre o fato de não
violar a integridade daquele a quem amamos, e Farley está certa ao dizer que tal
amor deve estar de acordo com a verdade e a justiça. Todos nós sabemos, por
exemplo, que o amor romântico pode se tornar explorador e invasivo. O que impede
que essa afeição esteja a serviço próprio? O verdadeiro amor tem prazer no bem ou
no benefício da outra pessoa. Amar verdadeiramente outra pessoa é amar o seu
bem ou o seu benefício, embora tenhamos que definir esse bem158. Talvez eu esteja
tendo prazer ao vê-lo prosperando financeiramente, recuperando-se
emocionalmente, crescendo na graça ou ganhando a corrida. A questão é que o fato
de eu alegar que o amo só é validado pelo meu prazer no seu bem genuíno.
Uma vez mais, meu desejo pelo seu bem pressupõe que, nas palavras de Toner,
eu o aceite como sendo criado à imagem de Deus e digno de todo o meu respeito.
Afirmo que você, de alguma forma, é proveniente de Deus, é digno de amor, e
afirmo o meu desejo de ver um sobre você um bem ainda maior. Isso significa que
eu não quero apenas dar de mim mesmo a você, mas quero dar a mim mesmo a
você. Quero tratar suas tristezas como se fossem minhas e deixar que você lide com
minhas forças como se fossem suas. Desejo lhe dar toda glória que me pertença, e
toda glória que pertença a você será considerada como um motivo para minha
própria celebração. Em outras palavras, há um compartilhamento de identidades e
tudo isso fica envolto por essas identidades. Eu começo a representar a sua
identidade porque desejo o seu bem; e você, se você me ama, começa a representar a
minha.
Vemos isso nas Escrituras entre os pais e os filhos, onde a identidade
compartilhada entre pais e filhos deve ser um veículo para amar e fazer o bem um
ao outro. Pais e filhos podem até mesmo ser informados de que partilharão das
culpas e das bênçãos um do outro (por exemplo, Êx 20.5-6). Vemos isso na
instituição do casamento, na qual a mulher toma o nome do homem e eles
compartilham a união em uma só carne. O homem e a mulher devem fazer o bem
um ao outro, não apenas dar de si mesmos, mas dar a si mesmos. Essa união e a
interpenetração dela são tão íntimas que Adão chama sua esposa de “osso dos meus
ossos e carne da minha carne” (Gn 2.23-24), ao passo que Paulo diz que os maridos
devem “amar sua mulher como a seu próprio corpo” (Ef 5.28). Vemos isso entre os
cidadãos de Israel, que compartilhavam a mesma identidade e o mandamento para
fazer o bem um ao outro. O rei, principalmente, deveria tomar o nome da nação e
dar-se a si mesmo totalmente pelo bem da nação. E vemos isso na igreja.
Em outras palavras, Deus edifica determinadas instituições com a mesma
estrutura que a humanidade e a história da redenção, na qual os princípios do amor
devem ser cumpridos. Tanto os relacionamentos naturais (pai/filho) quanto os
relacionamentos de alianças (marido/mulher) foram designados para ser veículos
das afirmações afetivas de retribuição e de unidade. Na verdade, a aliança se torna o
principal cenário para a identificação e amor mútuo no curso da história da
redenção, bem como para compartilhar a culpa ou a bênção159. Conforme
consideraremos mais cautelosamente nos capítulos 4 e 5, a aliança não cria o
relacionamento, mas o afirma. Além disso, uma aliança é muito mais do que um
compromisso com esse relacionamento, ela é o fato de alguém curvar e dobrar toda
a sua identidade diante da outra pessoa.
Em certo sentido, poderíamos dizer que o amor pode envolver autossacrifício,
mas ele nunca é completamente abnegado. Amar verdadeiramente sempre significa
experimentar algum tipo de prazer, mesmo que seja somente alguns segundos de
prazer antes de o coração parar e a respiração cessar, num último ato de
autossacrifício.
Uma pessoa se sacrificará por seu amigo quando o prazer que ela sente na vida de
seu amigo exceder o prazer que ela tem em si mesma. O prazer de dar amor é
igualmente tão forte quanto o prazer da pessoa egoísta, se não for maior; por isso,
mais bem-aventurado é dar do que receber (At 20.35).
Isso é exatamente o que é tão belo e abnegado no amor — encontrar prazer
genuíno no bem de outra pessoa. Em última análise, o amor envolve tanto dar
quanto receber. Uma pessoa pode dar-se a si mesma, mas, se ela o fizer em amor,
sempre receberá prazer ao fazê-lo.
3) ...no Santo. Para nos tornarmos verdadeiramente bíblicos em nossa
compreensão acerca do amor, um terceiro componente é exigido. O bem que aquele
que ama deseja para a pessoa amada não é apenas o assim chamado “bem”; esse bem
deve ser o Deus pessoal da Bíblia — o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E mais do que
isso, ele é o bem de se submeter e se conformar a Deus, exatamente como Cristo se
submete completamente ao Pai como um sinal de seu amor. Amar outra pessoa
significa desejar que essa pessoa conheça, experimente, receba, desfrute e adore o
Deus que a tudo satisfaz e é digno de adoração — conhecê-lo como também somos
conhecidos. Amar outra pessoa significa ter prazer na ação dessa pessoa para se
conformar ao bem mais grandioso de todos e desfrutá-lo: Deus.
Isto é o que Agostinho tinha em mente ao dizer que devemos amar os outros “no
que concerne” a Cristo ou “por causa de” Cristo, e essa é precisamente a questão
que Toner omite ao dizer que devemos amar o outro ser humano “por causa dele
mesmo e nele mesmo”. O amor é uma afirmação afetiva que é responsiva e
unificadora para o bem do outro, mas ele é uma afirmação afetiva no Santo —
somente nele sempre. Amar outro ser humano é amá-lo na criação (pela virtude da
obra de Deus) e para a redenção (pela virtude da obra de Deus).
Essa também é a questão omitida pelos intérpretes de Lutero, como
Kierkegaard, Nygren e Barth. Esse assunto não é, enfim, uma questão do amor
como desejo (eros) versus o amor como um dom (agape). E sim de sabermos se o
desejo é pelo Santo e se o dom é o Santo. Uma vez que os teólogos omitem esse
último ponto, conforme eu disse, eles têm um sistema teológico que tenderá a
centralizar-se no homem, mesmo que outros princípios em seu sistema os ajudem a
impedir que façam isso.
Para ser justo, a tradição agostiniana também tem suas fraquezas.
Especificamente, ela pode amenizar o fato de que o amor de Deus realmente afirma
a humanidade. Essa tradição, em algumas de suas formulações, é tão resistente em
relação à garantia de que o amor continua centrado em Deus que ela tende a
ignorar o fato de que Deus realmente afirma a criação como boa, e que ele, de fato,
aceita pecadores, em seu desejo de não ver ninguém perecendo.
John Piper, complementando Edwards, gosta de dizer que Deus não nos ama nos
supervalorizando, mas nos capacitando a supervalorizá-lo.
Ele ilustra esse ponto nos colocando diante do Grand Canyon, contemplando o
seu esplendor. Nós não olhamos para o Grand Canyon para nos sentir bem em
relação a nós mesmos, mas simplesmente para olhá-lo com admiração.
Em certo sentido, essa descrição de Piper sobre o amor de Deus poderia soar
como o bumerangue que tenho descrito, e ela certamente pode servir como uma
citação didática, mas acho que a sua formulação é um pouco severa. Talvez eu esteja
forçando sua ilustração a ir um pouco além do que ele pretendia, mas vale a pena
observar que o Grand Canyon não faz coisa alguma para interagir com seus
observadores, muito menos para afirmar a existência das pessoas que olham para
ele. A existência de seus observadores não possui absolutamente importância
alguma — uma pessoa poderia muito bem ser substituída por outra. Mas isso não
acontece com o amor de Deus por nós. De acordo com Gênesis 1, ele afirma a nossa
existência. Ele não precisa fazê-lo, mas o faz. E além do mais, ele nos supervaloriza.
Ele supervaloriza a si mesmo, e toda a supervalorização que ele nos dá será
redirecionada para ele, mas existe uma afirmação.
Talvez eu esteja querendo chegar a uma diferença entre afirmação e capacitação.
Ele não apenas nos capacita a supervalorizá-lo. Ele nos capacita a supervalorizá-lo,
em parte, por nos afirmar em nossa existência e redenção. Um conflito pessoal com
o perdão me fez lembrar o quão preciosas são essas verdades. Apenas algumas
semanas atrás, encobri a verdade de um colega presbítero, na resposta a uma
pergunta que ele me fez a respeito da minha vida de oração. Eu queria que ele
pensasse que eu orava mais do que oro. Logo após dar minha resposta, senti uma
vergonha profunda por haver mentido, mas meu orgulhoso me impediu de corrigir
o erro rapidamente. Pela graça de Deus, tive dificuldades para dormir naquela noite
e confessei o meu pecado a ele pela manhã. Ele me perdoou de forma imediata e
graciosa. Lágrimas surgiram em meus olhos com o seu perdão. Apesar do meu
pecado, fui afirmado — afirmado de modo notável, gracioso e maravilhoso. Não
havia glória para mim naquilo; com efeito, havia exatamente o oposto — glória
àquele que me perdoou.
A ilustração de Piper sobre a visão beatífica do Grand Canyon é maravilhosa, mas
existiria alguma maneira de ajustá-la para termos uma bela visão de como alcançar e
receber os pecadores160? Note que muitas ilustrações sobre o céu, na Bíblia, são
feitas por meio de festas! Essa não é uma questão secundária para os propósitos do
argumento deste livro. Assim como no Capítulo 4, tanto o batismo quanto a
membresia da igreja são uma reconstituição, no Novo Testamento, da seguinte
constatação: “E viu Deus que isso era bom.” Eles são a afirmação e a aceitação por
parte da igreja da nova criação de Deus na vida dos indivíduos.
Ainda assim, a conclusão geral de Piper, Edwards e Agostinho é precisamente
correta. O amor é inerentemente centrado em Deus. O amor diz respeito ao louvor,
à adoração e à glória de Deus. O amor é desfrutar Deus e desfrutá-lo em todo e
qualquer lugar onde ele escolher se manifestar. Portanto, um mortal raramente
poderá fazer uma oração melhor por outro mortal do que a que Paulo fez ao pedir
ao Pai que capacitasse os efésios a conhecerem “o amor de Cristo, que excede todo
entendimento, para que eles fossem tomados de toda a plenitude de Deus” (Ef
3.19).
Esse terceiro aspecto do amor nos apresenta um limite que separa a
compreensão mundana e a compreensão bíblica acerca do amor. O mundo pode
compreender os primeiros dois aspectos do amor — o amor como uma afirmação e
uma afeição pela pessoa amada e pelo seu bem. Mas desde que Adão e Eva caíram,
no jardim, o mundo, por natureza, tem se oposto a este terceiro princípio do amor:
o amor como afeição pelo bem do outro em Deus e por meio de Deus. Afinal, o
mundo deseja ser Deus (Gn 3.5). Temos engolido a mentira de Satanás de que o
nosso maior prazer nunca será encontrado no fato de conformarmos nossa
existência a Deus e à lei de seu caráter. Por essa razão, definimos o amor de uma
forma que exclui deliberadamente a Deus, ele que é a própria fonte e o ser do amor.
Uma das maiores ironias do Ocidente pós-moderno talvez seja esta: aquele
formidável símbolo de prazer em nossa cultura, por causa do qual a maioria das
pessoas (conscientemente ou não) rejeita a Deus de forma enfática — o sexo —, é
exatamente a mesma coisa que Deus deu à humanidade a fim de que ela pudesse ter
uma analogia, uma categoria, uma linguagem para conhecer como será a satisfação
em Deus, na glória, de forma não adulterada (veja Ef 5.22-33). Em outras palavras,
rejeitamos a Deus por causa do sexo, mas o sexo é exatamente o que ele tem nos
dado a fim de compreendermos, mesmo que de modo débil, a experiência de uma
união perfeita com ele161.
A idolatria, afinal de contas, nada mais é do que colocar algum outro grande bem,
algum outro “primeiro amor”, no lugar de Deus, em rebeldia ao primeiro e ao
segundo maior mandamento (Dt 5.7-8, 6.5; Mc 12.28ss). Exatamente por isso,
descobrimos que o amor humano, pecaminoso, pode conter os dois primeiros
elementos do amor — uma afeição pelo bem da pessoa amada. Mas, porque o
pecador não pode, por natureza, considerar Deus como o bem maior, ele expressará
o seu “amor” pela pessoa amada segundo o ídolo que ele colocou no lugar de Deus,
seja ele qual for. Infelizmente, esse amor idólatra se desvirtuará inevitavelmente
em destruição. Considere um pai que é viciado em trabalho, mas deseja
verdadeiramente, em certo sentido, o bem genuíno de seus filhos, com quem ele
nunca passa tempo. Os sinais mais significativos de seu amor por eles são
brinquedos, viagens exóticas ou pagamento de cursos — exatamente as mesmas
coisas que ele mais valoriza, e não apenas valoriza, mas adora. Ele se identifica
genuinamente com esses filhos, compartilhando suas forças, carregando as
fraquezas deles, mas não há conhecimento do Santo. Todo esse esforço será em vão.
Considere uma mãe legalista, guiada pelas regras, que oprime os filhos, a quem
ela ama de forma genuína, com suas exigências infinitas. Ela adora a sua própria
imagem e consequentemente se esforça para demonstrar para todo o universo que
ela é capaz, que ela se basta, que ela é justa e digna. O fardo das regras que ela
impõe aos seus filhos é ironicamente a expressão de seu amor por eles. Ela se
identifica com eles e deseja o bem deles. Ela deseja, com todo amor do qual é capaz,
que eles “estejam à altura”, do mesmo modo como ela deseja desesperadamente se
bastar a si. Mas, novamente, não há nenhum conhecimento do Santo.
Considere, enfim, uma igreja que tenha uma afeição verdadeira pelo bem de sua
comunidade, mas que o faça com um amor antropocêntrico. O desejo primordial
dessa igreja será o de atrair pessoas para a sua comunhão por meio de quaisquer
meios possíveis. O uso de dispositivos tecnológicos, de entretenimento e de slogans
parece funcionar melhor em nosso contexto contemporâneo, assim como apelar
para os temores e superstições das pessoas parecia funcionar bem no contexto
medieval. Entretanto, não importa em qual proporção o amor dessa igreja esteja
centrado no homem, ela jamais crescerá em santidade e em amor verdadeiro por
Deus. Os números podem aumentar, mas a adoração não aumentará.
O princípio implícito em todos esses três exemplos é que a Bíblia nos apresenta
somente dois bens superiores possíveis: Deus ou alguma outra coisa. Todo bem
superior além de Deus é um ídolo, o que é exatamente a razão de termos
descoberto no Capítulo 1 que a idolatria está no cerne das ideias desse mundo
acerca do amor. E não é um tanto trágico, pois, quando o povo de Deus imita e
pratica o amor conforme o mundo o define? Afinal, mais do que tudo, o povo
regenerado de Deus, novas criaturas, foi liberto do domínio do pecado a fim de
amar verdadeiramente o Pai, o Filho e o Espírito; a fim de perceber que Deus é o
bem supremo para a pessoa amada.
Todos esses três elementos do amor podem ser encontrados naquela que talvez
seja a descrição do amor mais conhecida da Bíblia — 1 Coríntios 13. Nos primeiros
três versículos desse capítulo, Paulo distingue o amor do modo de falar angelical, do
conhecimento, da fé e até mesmo do autossacrifício altruísta. Aparentemente, o
amor não é amor sem alguns tipos de elementos afetivos162. No entanto, o amor
não exige apenas qualquer afirmação e afeição, mas sim a afeição pelo bem da
pessoa amada. Os versículos 4 a 7, portanto, apresentam uma lista de ações ou, pelo
menos, de disposições do coração, que demonstram uma devoção total ao bem da
pessoa amada. Paciência, bondade, ausência de inveja, a não insistência na própria
vontade, a perseverança na esperança — todas essas coisas são ações ou atitudes
que pressupõem um cuidado essencial com a pessoa amada acima do cuidado
consigo mesmo e com os seus próprios interesses.
O clímax ou cumprimento final desse amor será o momento quando vier o que é
perfeito e o que é em parte for aniquilado; o momento quando o veremos face a
face e o conheceremos como também somos conhecidos (1 Co 13.10,12).
Ironicamente, não é incomum que casais não cristãos peçam que 1 Coríntios 13 seja
lido em seus casamentos, provavelmente porque essas duas primeiras seções
apresentam os dois primeiros aspectos do amor com uma elegância raramente
alcançada em toda a literatura. Irrefutavelmente, os cinco versículos finais desse
capítulo são vagos o suficiente para evitar o que poderia ofendê-los se eles
entendessem tudo o que está em jogo — contemplar “aquele que é perfeito”,
“conhecer plenamente” a Deus e o amor perfeito de Deus.

Ponto 7: O amor de Deus, o evangelho de Deus e a igreja de


Deus nos ofendem porque eles são centrados nele.

O CERNE DA OFENSA: ESTA NÃO É A NOSSA FESTA Anteriormente,


declarei que o amor de Deus nos repele. Como o amor de Deus poderia
nos ofender?

A OFENSIVIDADE DO AMOR DE DEUS PELO PRÓPRIO DEUS


O amor de Deus nos ofende porque o maior objeto de seu amor é o próprio Deus
e não nós.
“Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória
eternamente” (Rm 11.36), disse o apóstolo Paulo após gastar onze capítulos
explicando a natureza da redenção. Se “todas as coisas” incluem o amor, e
certamente incluem, então todo amor é de Deus, por meio de Deus e para Deus. O
amor, conforme tenho dito, é como um bumerangue, vindo de Deus e atraindo o
amor de volta para Deus em retribuição.
O bumerangue do amor de Deus é lançado na exigência que Deus faz para que
toda a humanidade adore a ele, não a nós mesmos. O bumerangue retorna no
louvor e glória que ele recebe tanto pela salvação quanto pelo julgamento. “Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!... A ele, pois,
a glória eternamente (Rm. 11.33, 36). Uma vez que o amor de Deus é centrado em
Deus, os homens serão julgados, o que não seria o caso se o amor dele fosse
centrado em nós.
Por essa razão, podemos também dizer que o amor de Deus é ofensivo a nós
porque ele produz julgamento contra nós. E nós queríamos ser o juiz.
Visto que Deus é o maior objeto do amor de Deus, o evangelho de Deus, apesar
das coisas que o mundo possa gostar em relação a ele, no final das contas nos
ofende. Afinal, o evangelho de Deus envolve aplicar a própria justiça de Deus ao
pecador, por meio da fé, não deixando ao pecador coisa alguma da qual se orgulhar.
Com o evangelho de Deus, toda glória vai para Deus (Rm 3.21-27), não para nós.
Além disso, o seu evangelho nos chama para uma vida de justiça. Ele até mesmo
declara que o amor é demonstrado pela obediência. Essa é uma ideia difícil de
vender numa cultura que equipara o amor à liberdade absoluta.
Visto que Deus é o maior objeto do amor de Deus, a igreja de Deus, apesar das
coisas que o mundo possa gostar em relação a ela, no final das contas nos ofende.
Afinal, a igreja é o âmbito das pessoas que têm se rendido a esse Deus
ofensivamente autoglorificador. Esses traidores têm se deixado enganar para
promover esse megalomaníaco.
Eles estão apoiando a forma de governo dele. E onde ficam o nosso jeito e a nossa
glória?
Os limites da membresia e da disciplina nos ofendem porque eles nos fazem
lembrar do julgamento de Deus, o qual desprezamos. “O quê? Ele pensa que pode
me excluir?” Na verdade, essas mesmas fronteiras, limites ou barreiras ao redor da
igreja, que relembram aos olhos não regenerados que esse âmbito é o que é, foram
os mesmos limites, barreiras e fronteiras que conquistaram os territórios em nosso
país. Pergunte a qualquer nação ocupada como ela se sente em relação a essa
ocupação. A resposta será imediata: indignação e ultraje. Como uma nação trata os
seus compatriotas quando eles passam para o lado do inimigo? Eles são
desprezados. São chamados de traidores. São acusados de atividades criminosas.
Geralmente eles são enforcados.
Admito completamente que essas metáforas militaristas podem parecer cruéis.
As metáforas de barreiras e fortificações são cruéis exatamente porque o “amor”,
no domínio do homem natural, é definido como: “Eu estou no centro, não Deus.”
Afirmar que “Deus é o centro” é, por definição, algo cruel a se dizer. Essas
metáforas são agressivas exatamente porque o amor de Deus, de fato, almeja
destruir o que é cruel, tornando-o amoroso. Ele almeja redefinir o amor do homem
natural, de modo que o próprio Deus, e não o homem, torne-se o objeto supremo
do amor. O ato de criar o novo homem é um ato de destruição — assassinato — do
velho homem. Morte, depois ressurreição. E não somente isso, mas Deus almeja
fazer isso por meio do ato ofensivo de evangelismo e do ato ridículo da pregação.
Que audácia!
Os limites da igreja são os limites entre dois domínios — um onde Deus está no
centro e um onde o centro somos nós. Não há um território neutro entre esses dois
domínios. Isso não significa que sempre está claro quem pertence a qual, mas
fazemos bem em lembrar, conforme disse Jesus, que nenhum de nós pode servir a
dois senhores. Porque ou há de aborrecer-se de um e amar o outro, ou se devotará a
outro e desprezará ao um. Ou, conforme o apóstolo João afirmou, não podemos
amar a Deus e ao mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. Ou
ainda, conforme disse Jesus, quem não é por Deus é contra Deus, e quem com ele
não ajunta espalha. Ou estamos do lado de dentro do forte ou estamos do lado de
fora163.
O amor de Deus, o evangelho de Deus e a igreja de Deus nos ofendem porque
nós somos ladrões de glória, emprestando aqui a frase de Paul David Tripp. Deus
nos criou para desfrutarmos e exibirmos a sua glória, mas o pecado enredou o
nosso coração, de modo que agora tentamos roubar aquilo que por direito pertence
a ele. Tripp ilustra esse ponto com uma simples história de um menino pequeno
numa festa de aniversário de uma menininha de cinco anos. Ele dá uma olhada para
suas lembrancinhas e depois para a enorme pilha de presentes dela. Aborrecido com
a comparação, ele cruza os braços, faz um bico e emite um audível “hum!”. Na
verdade, ele repete esse “hum!” várias vezes para se assegurar que todos o ouvem.
Finalmente, uma das mães que estava na festa se abaixa, traz o rosto dele perto do
dela e diz algo profundo: “Johnny, esta festa não é a sua!”164
Aquilo que é verdade para uma criança de cinco anos é verdade para todos nós:
nós tratamos a vida como se ela fosse a nossa festa. Queremos que a montanha de
presentes e os créditos pertençam a nós, não a qualquer outra pessoa. Muito menos
a Deus. Passamos nossa vida conspirando contra esse fim. Deus responde à nossa
conspiração não com um evangelho de “amor incondicional”, mas com um
evangelho do amor “contrariamente condicional”. A ideia de amor incondicional
sugere que ele se contenta em nos amar exatamente do modo como ele nos
encontra, mas isso não está totalmente correto. Ele nos ama no momento em que
nos encontra, mas ele nos ama nos transformando naquilo que devemos ser.
Se a vida fosse a nossa festa, como nós e o pequeno Johnny desejamos, as linhas
divisórias não fariam sentido. Existe um universo de diferenças entre um Deus que
ama mais a Deus e um Deus que ama mais o homem. Um é santo, o outro não.
Qualquer sistema teológico que torne a humanidade o foco primordial do amor de
Deus é um sistema que, no final das contas, perde sua necessidade de fronteiras ou
limites de santidade ou retidão, de justiça ou misericórdia. A misericórdia se torna
sem significado e a licenciosidade se torna tudo. As linhas demarcatórias entre a
membresia da igreja e o mundo afinal desaparecerão ou, pelo menos, terão uma
função vazia e paradoxal, mais condizente com o marketing de negócios — “Una-se
a nós como você está, todos são especiais aqui!” No entanto, a linha quase
inexistente entre a igreja e o mundo seria o menor dos nossos problemas. O perigo
real seria um Deus que não discrimina, compelido a tranquilizar todos os caprichos
e desejos ardentes dos humanos.
Por outro lado, curvar-se ante o amor de Deus por Deus — submeter-se à sua
glória — significa ser incorporado a ele, compartilhar dele e desfrutar eternamente
a mais bela de todas as belezas.

Ponto 8: O amor de Deus e o julgamento de Deus agem em


harmonia, não em oposição. Isso também é ofensivo.
A OFENSIVIDADE DO JULGAMENTO
Por falar nas coisas que ofendem os contemporâneos sentimentos ocidentais, há
mais uma questão, que se origina no amor primordial de Deus por Deus, que
precisamos considerar, ou seja, a relação entre o amor e o julgamento de Deus. A
Bíblia ensina de modo muito claro que o julgamento é de Deus (Dt 1.17). Ela ensina
que o julgamento é a sua própria atividade — ninguém ensinou isso a ele (Is 40.14).
De fato, ela ensina que ele ama o julgamento (Is 62.8) e que ele é um Deus de juízo
(Is 30.18. Ml 2.17). É necessário apenas um momento de reflexão para dar-se conta
da forma como a Bíblia está repleta de atos de julgamento de Deus: a queda, o
dilúvio, Babel, Sodoma e Gomorra, o faraó e o Mar Vermelho, a morte da primeira
geração de israelitas no deserto, o Cordeiro Pascal, a morte de Cristo na cruz, o lago
eterno de fogo ardente.
Isso é particularmente relevante para as práticas de membresia e disciplina da
igreja, visto que estas são formas de julgamento, conforme eu disse anteriormente.
Não um julgamento supremo ou final, mas um julgamento preventivo, e é por isso
que Jesus comissionaria os seus discípulos com uma linguagem tão firme como
esta: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes,
são retidos” (Jo 20.23).O que então devemos fazer com a relação entre o amor e o
julgamento?
O primeiro ponto a ser estabelecido aqui é que o amor e o julgamento não são
opostos. Em vez disso, eles agem em harmonia, conforme vimos no caso do amor e
da santidade. A chave nessa questão é considerar a relação entre o amor e a lei, visto
que estou tratando o julgamento como um veredito produzido conforme a lei —
um pronunciamento daquilo que a lei exige165. Num mundo caído, a vida real
geralmente nos presenteia com situações em que o amor e a lei estão em conflito.
Nossas afeições parecem ditar uma coisa, ao passo que a lei parece ditar outra, quer
estejamos falando a respeito da lei dos homens, quer da lei de Deus. Os teólogos da
teologia sistemática às vezes reforçam essa noção de que o amor e a lei estão em
tensão, até mesmo no próprio Deus166.
O nosso desafio, creio eu, é voltar atrás e reconhecer que, enfim, não existe
tensão alguma entre o amor e a lei no plano eterno de Deus167. A lei é exatamente a
mesma coisa que protege aquilo que é mais amado e apreciado. Não estou querendo
dizer que “proteger algo precioso” é a essência daquilo que a lei é ou faz, os filósofos
podem argumentar a respeito disso. Mas, na verdade, penso que até certo ponto é
fácil perceber que uma das razões primordiais de instituirmos leis e criarmos
julgamentos por meios delas é a proteção de algo precioso. Assassinar é contra a lei
porque a vida é preciosa. Roubar é contra a lei porque a propriedade é preciosa.
Mentir é contra a lei moral de Deus porque a verdade é preciosa. Toda criança de
cinco anos que valoriza seus brinquedos e todo rei que valoriza a sua riqueza
compreende muito bem isso em relação à lei. É por isso que tanto as crianças
quanto os reis declararão: “Não mexa nessas ou naquelas coisas!” Nesse sentido,
poderíamos dizer que as leis funcionam como cercas ou sistemas de segurança. As
pessoas levantam cercas e instalam sistemas de alarme quando querem proteger
algo precioso.
É por essa razão que transgredir uma lei resulta numa penalidade ou num ato de
julgamento. Um ato de julgamento diz a respeito do valor ou da dignidade daquilo
que está sendo protegido. Se nenhuma penalidade ou julgamento seguir a
transgressão da lei, aprendemos que, seja o que for que a tal lei estiver protegendo,
isso não deve valer muito. Se a penalidade pela transgressão for severa, aprendemos
que aquilo é precioso. O julgamento ensina. Por exemplo, descobri na tenra idade
que mentir para os meus pais produzia uma penalidade mais intensa do que
disputar um brinquedo com meu irmão. A lição que aprendi com essas penalidades
diferentes foi que a verdade é mais preciosa do que brinquedos. A simples ideia de
penalidade pode ser repugnante para os seres humanos, mas a penalidade é o que
dá sentido à lei como guardiã da dignidade (ou mestre ou aio, cf. Gl 3.24). Se a lei é a
sentinela que protege aquilo que é precioso, a penalidade ou julgamento é a
baioneta pontiaguda da sentinela. Ela dá o aguilhão, a essência e o sentido da lei.
Deus diz a Noé: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se
derramará o seu” (Gn 9.6a). Essa severidade existe porque a vida humana é
preciosa. O fato de tirar a vida deve, portanto, resultar na mais severa das punições
terrenas. Deixar que um assassino fique livre é o mesmo que dizer: “A vida que ele
tirou, em todo caso, não era tão digna.”
Em resumo, a lei é o amor da sentinela, e o julgamento é a baioneta da sentinela.
A lei e o julgamento protegem o que quer que o amor mais ame. Elas combatem a
injustiça, a opressão e a exploração. O estudioso da Bíblia Leon Morris explora esse
argumento comparando a mentalidade bíblica com a nossa:
Conosco, o legalismo tem adquirido a conotação de uma aplicação rígida e desalmada da letra da
lei em detrimento dos valores humanos. Não foi assim que os hebreus entenderam o
julgamento. Para eles, a lei era o baluarte contra a opressão. O pobre e o fraco olhavam para a
lei para serem salvos da força do rico e do poderoso. “Ó Deus, salva-me, pelo teu nome, e faze-
me justiça, pelo teu poder”, diz o salmista (Sl 54.1), e esse tipo de apelo era constante. Nós
podemos fazer uma distinção entre a bondade e os processos judiciais, mas devemos estar
cientes de que os hebreus não faziam isso168.

O amor e a lei — ou o amor e os julgamentos da lei — agem em harmonia, não


em oposição.
Para aplicar esse princípio, primeiro a Deus, afirmamos que, visto que as afeições
de Deus defendem aquilo que é mais precioso, ele avaliará ou julgará todas as coisas
segundo o valor e a dignidade atribuídos a essa determinada coisa. Ele quer que
chamemos “bem” ao que ele chama “bem” e que chamemos “mal” ao que ele chama
“mal” (Is 5.20). E se, portanto, Deus amasse a sua glória mais do que qualquer coisa,
defendendo-a como aquilo que é mais precioso, todas as coisas no mundo que
redundassem em sua glória seriam chamadas de “bem”. Qualquer coisa que se
opusesse à sua glória seria chamada de “mal”, e a lei de Deus seria aquilo que
defenderia os padrões de sua glória, e o julgamento de Deus seria realizado de
acordo com essas leis, que promovem a sua glória. Por outro lado, se Deus nos
amasse mais do que qualquer coisa — se suas maiores afeições estivessem voltadas
para a nossa glória — a lei e os julgamentos de Deus se voltariam exatamente na
mesma direção. A lei de Deus defenderia basicamente a minha glória e a sua, e o
julgamento dele faria o mesmo, ainda que isso significasse que o julgamento
recaísse, às vezes, sobre o próprio Deus — “Deus, como você se atreve a...”
Se o amor e o julgamento agem em harmonia, inúmeras questões a serem
aplicadas na igreja local brotarão na mente: a natureza exclusivista da membresia da
igreja, quando praticada corretamente, seria, na verdade, amorosa?
Além disso, embora a disciplina da igreja possa, sem dúvida, ser motivada por
outras coisas que não o amor, seria o caso de os membros de uma igreja local, que
amam uns aos outros e ao mundo de um modo piedoso, serem obrigados, às vezes,
a seguir o caminho da excomunhão? Um segundo princípio relacionado ao amor e
ao julgamento de Deus é que todos os seus julgamentos servem à centralidade de
seu amor no próprio Deus. Seu amor avalia e julga de acordo com sua centralidade
em Deus. O seu amor tem expectativas, exige e decreta penalidades de acordo com
sua centralidade em Deus. O que é interessante notarmos na passagem de Gênesis
9, citada acima, é por que a vida humana é descrita como “preciosa”: “Se alguém
derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o
homem segundo a sua imagem” (v. 6). A preciosidade da vida humana, ao que
parece, repousa completamente no fato de que os humanos retratam Deus. A nossa
dignidade é uma dignidade derivada. Ela deriva daquele de quem somos imagem.
Matar um ser humano é errado não porque Deus nos ama mais do que qualquer
outra coisa, mas porque ele ama a sua própria glória mais do que tudo. É por isso
que o rei Davi sabia que seu assassinato e adultério eram basicamente pecados
contra Deus (Sl 51.4). Uma lei de proteção havia sido colocada ao redor da vida e da
fidelidade conjugal, duas coisas que se tornaram preciosas por causa de sua relação
com Deus. Matar é destruir alguém feito à imagem de Deus. Trair é, no mínimo,
contar mentiras sobre a fidelidade de Deus ao seu povo. Fazer tanto uma coisa
quanto a outra, sendo um portador dessa imagem, é apresentar um retrato
blasfemo de como o próprio Deus é. O pecado de Davi, embora tenha sido
executado contra Urias, Bate-seba e contra o seu próprio corpo, foi, em última
instância, contra Deus e contra Deus somente. Ele transgrediu a lei de Deus. Ele foi
destituído da glória de Deus. Ele exaltou os ídolos da lascívia acima de Deus. Ele
tratou a glória e a dignidade de Deus com total desdém. A lei de Deus é a cerca
infinitamente alta que protege sua dignidade e glória infinitas. Ela é a guardiã (e a
declaradora) de sua glória. Infringir sua lei é não ter consideração por sua dignidade
infinita. Colocando isso em termos mais concretos, dizer não a Deus é o mesmo que
dizer: “O que você pensa não me importa muito, porque você não significa muito
para mim.” A própria estrutura dos Dez Mandamentos confirma as prioridades do
amor de Deus. As proibições da segunda tábua da lei, as quais proíbem prejudicar
outros seres humanos (por meio da desonra aos pais, assassinato, adultério, furto,
falso testemunho e cobiça) são fundamentadas na primeira tábua, principalmente
nos dois mandamentos contra outros deuses e ídolos. Sua glória e reputação são o
propósito mais importante de sua lei e de seus julgamentos, desde o dilúvio de
Gênesis até o lago de fogo de Apocalipse. Por que os seres humanos desprezam os
julgamentos de Deus? Não é só por causa das ameaças de dor ou de perdas. As
pessoas aceitarão dores e perdas por causa das coisas que elas amam. Não, nossa
repugnância em relação às penalidades e aos atos de julgamento de Deus está
arraigada no próprio fato de Deus valorizar e apreciar mais algo que não seja aquilo
que mais valorizamos e apreciamos. Ele ama mais a sua glória. Nós amamos mais o
que é nosso, justamente o motivo pelo qual Adão e Eva agarraram a oferta da
serpente para que fossem avaliadores autônomos do “bem e do mal” (Gn 3.5). Uma
implicação desse segundo princípio é que um sistema teológico que apresente um
Deus que ama suas criaturas mais do que qualquer coisa é um sistema que
provavelmente se inclinará, com o passar do tempo, para o universalismo e para a
erradicação do julgamento divino, bem como para uma revalorização da ética. Um
sistema antropocêntrico também traçará limites e executará julgamentos, mas,
desde que o ser humano se tornou a coisa mais valiosa do universo, a lei será
reestruturada para oferecer proteção de acordo com essa nova ordem. As sentinelas
terão seus objetivos redefinidos, quase como o serviço secreto dos EUA, passando
de uma administração presidencial para a seguinte. No sistema antropocêntrico, as
duas tábuas da lei serão invertidas, por assim dizer, de modo que as leis pertinentes
a Deus se tornem fundamentadas nas leis pertinentes aos homens. Com o amor de
Deus fluindo principalmente na direção da humanidade, o conceito de santidade se
tornará, por consequência, vazio de qualquer significado, como canos sem água.
Além disso, qualquer doutrina sobre julgamento ou condenação eterna se
degenerará. Os sistemas antropocêntricos poderiam manter tal doutrina de forma
inconsistente por algum tempo, pois essa doutrina pode ser facilmente encontrada
nas páginas das Escrituras, mas a lógica inevitável desse sistema afinal determinará
que, se a humanidade for a coisa mais preciosa, e se Deus amar mais o homem do
que a si mesmo, não haverá qualquer lei superior que o constranja a fazer qualquer
outra coisa que não seja garantir a felicidade eterna a toda a humanidade.
Até a assim chamada lei “de respeito à escolha humana”, popular em algumas
tradições teológicas, certamente não exigirá condenação ou inferno. Se Deus
amasse o homem mais do que qualquer coisa, por que então, conforme perguntei
anteriormente, ele não poderia enviar aqueles que o rejeitam para o outro lado do
universo, para umas férias de felicidade eterna, cegando-lhes para o fato de que ele
os sustém e lhes dá alegria, mesmo ali? Alguma forma de universalismo é inevitável,
seja ela articulada ou não. Um Deus centrado em Deus pode escolher salvar a todos
ou a ninguém. Um Deus centrado no homem, ao que parece, é obrigado a salvar a
todos, por causa da exigência de suas afeições principais.
Justamente por isso, uma igreja que adorar um Deus antropocêntrico começará
a minimizar e, consequentemente, a apagar os limites traçados pela Bíblia, tais
como os limites entre o céu e o inferno, a igreja e mundo ou entre este mundo e o
vindouro. Provavelmente, os limites éticos também se desfarão, como os limites
entre a liderança masculina e a feminina, ou entre os estilos de vida homossexual e
heterossexual. Novos limites éticos surgirão no lugar daqueles; limites que estarão
mais propensos a se harmonizarem com os limites éticos da política e da cultura
popular. Como consequência, a igreja se parecerá com o mundo, e a razão para isso
deve ser clara: o antropocentrismo é o princípio moral fundamental do reino deste
mundo. Ele é exatamente aquilo que faz da humanidade decaída a humanidade
decaída.

Ponto 9: Uma igreja amorosa é uma igreja que busca o Santo


para afirmar o que é pecaminoso e se separar de tal coisa.

CONCLUSÃO: O QUE É UMA IGREJA AMOROSA?


O amor de Deus é um bumerangue que o homem natural ama e despreza. Nós
amamos quando o bumerangue nos rodeia, à medida que ele voa para fora, mas
desprezamos a exigência do bumerangue à medida que ele nos chama de volta para
amá-lo com todo o nosso coração, mente, alma e força. Também desprezamos a
insinuação de que esse amor o leve a julgar. Ele diz: “Não terá outros deuses diante
de mim. Porque minhas, e por meio de mim, e para mim são todas as coisas.” Nós
dizemos: “Isso é ofensivo. Vou queimá-lo numa fogueira por causa disso. Não me
importo se você está andando por aí, curando pessoas. Você quer que eu me prostre
diante de você? Como você se atreve!”
O evangelho de Deus é um bumerangue que o homem natural ama e despreza.
Amamos o anúncio de perdão e amor sem que haja mérito de nossa parte, mas
desprezamos o chamado para o arrependimento, para abandonarmos tudo e
seguirmos a Jesus. Desprezamos a exclusividade desse chamado.
A igreja de Deus é um bumerangue que o homem natural ama e despreza.
Amamos a ideia de uma comunhão calorosa que nos adote, mas desprezamos as
exigências dessa comunhão para que abandonemos a adulação da família e dos
amigos, com a qual estamos acostumados, e nos submetamos a essa supervisão e
disciplina. O que é pior, pertencer a uma igreja significa ter que nos voltarmos para
as nossas famílias e amigos e compartilharmos um evangelho ridículo com eles. Isso
significa dizer àqueles que nos geraram: “Ainda estou com vocês, mas não sou de
vocês.” Sabemos como eles reagirão: “Isso é exclusivista! Isso é arrogante! Isso não é
amor!” Mas, tal como a súplica do Cristão de Bunyan para que o povo de sua cidade
se arrependesse antes que a destruição viesse, assim é o nosso próprio amor para
com eles, o qual deseja que eles vejam a eternidade de diferença entre o que éramos
e o que somos agora. O limite entre esses dois territórios deve ser nítido e evidente
— para o eterno bem deles.
SANTIDADE E AMOR
Santidade e amor não são aquilo que as pessoas esperam. As pessoas esperam
que o amor chame a igreja para a missão, ao passo que a santidade chame a igreja
para a adoração. As duas coisas são verdade, mas também é verdade que a santidade
nos envia para a missão, enquanto o amor nos chama para a adoração. Tanto o amor
santo quanto a santidade amorosa possuem um estímulo externo e interno, ou
melhor, um estímulo ascendente — novamente, assim como um bumerangue.
Tudo tem o seu tempo determinado — tempo para inclusão e tempo para exclusão,
tempo para afastar e tempo para atrair de volta, tempo para edificar e tempo para
derrubar, tempo para afeição e tempo para a rejeição.
Considere a oração sacerdotal de Jesus. Ele não pede ao Pai para tirar a igreja do
mundo, mas pede ao Pai para guardá-la. “Não peço que os tires do mundo, e sim que
os guardes do mal” (Jo 17.15). Ele guardou os discípulos das forças do mal e deseja
que o Pai faça o mesmo (17.12). Mais especificamente, ele pede ao Pai para guardá-
los no nome dele (17.11). Esse é um povo marcado pelo nome do próprio Deus e
para o nome de Deus. Eles devem ser separados e diferentes, mesmo que venham a
ser odiados por causa disso, assim como Jesus foi odiado (17.14). Jesus é também
inflexível em sua oração em relação àqueles que são do corpo da igreja e os que são
do mundo. Por essa razão, ele pede ao Pai para consagrá-los para o ministério dele:
“Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao
mundo, também eu os enviei ao mundo” (17.17-18)169. Por que ele os envia? Cristo
tem a intenção de que a igreja se encha com o conhecimento da glória de Deus,
assim como as águas cobrem o mar (Hc 2.14; Is 6.3). Conforme o estudioso do Novo
Testamento Richard Bauckham colocou, “Deus os torna santos, dedicados a ele, não
a fim de removê-los do mundo, mas a fim de enviá-los ao mundo para fazer-se
conhecido.”170
Todavia, é por meio dessa santidade, desse afastamento e dessa atração, que a
igreja define o amor para o mundo. Em outras palavras, a igreja deve ir para o
mundo, mas deve ir como um povo unido e distinto, um povo que é marcado pelo
nome de Deus. Jesus diz ao Pai: “Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens
dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que
sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os
amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.22-23). Note o que Jesus não disse
aqui. Ele não disse que o mundo conhecerá o amor do Pai quando a igreja agir
exatamente como o mundo ou quando a igreja aceitar os descrentes em sua
comunhão, ou quando a igreja se dispersar como indivíduos em todo e qualquer
lugar. Em vez disso, ele diz que o mundo conhecerá o amor do Pai por meio da vida
de união da igreja. É certo que esse é o motivo pelo qual Jesus havia dito
anteriormente a seus discípulos para amarem uns aos outros como ele os havia
amado — de modo que o mundo pudesse saber que eles pertenciam a ele (Jo 13.34-
35).
A igreja é missional, conforme muitos argumentam hoje em dia171? Sim, visto
que o bumerangue do amor de Deus é arremessado para fora da igreja, que leva o
evangelho. No entanto, a ênfase missional se torna antropocêntrica ou pecaminosa
assim que opõe à curva de retorno do bumerangue — contra o povo de Deus
reunido, contra a própria glória de Deus. O propósito do amor de Deus pelos
pecadores, assim como o propósito de sua afirmação da criação, é que ele possa ser
glorificado e adorado. A glória e a adoração são mais bem vistas na terra em seu
povo reunido, razão pela qual o coração do crente deve valorizar tais ajuntamentos.
Uma igreja que não se esforça para alcançar os pecadores perdidos não é uma igreja
amorosa — ou santa —, mas uma igreja que não se esforça para ajudar esses
pecadores perdidos a se conformarem cada vez mais à glória de Deus, para o adorar,
não é santa — ou amorosa.

OS QUE BUSCAM GLÓRIA


Os crentes não devem ser ladrões de glória, mas devem buscá-la: “A vida eterna
aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e
incorruptibilidade” (Rm 2.7). Eles devem ir para o mundo buscando a glória de Deus
onde quer que possam achá-la, afirmando-a afetuosamente e identificando-se com
ela. Eles devem fazer isso em vários níveis, de acordo com o amor providencial de
Deus, seu amor universal e seu amor especial por seu povo.
Visto que a glória de Deus está evidente na criação (por exemplo, Sl 19.1-5), o
povo de Deus deve buscá-la e afirmá-la na criação.
Visto que a glória de Deus está evidente no auge da criação, a humanidade, o
povo de Deus deve também buscá-la e afirmá-la na humanidade. Mesmo que a
imagem de Deus tenha se tornado distorcida e obscurecida, como uma fotografia
chamuscada mas não totalmente queimada, retirada das cinzas, o coração do crente
deve ficar enternecido pela memória daquilo que ela era e poderia ser novamente.
Madre Teresa escreveu:
Deus se identificou com os famintos, os doentes, os nus, os sem-teto; famintos não só de pão,
mas de amor, de cuidado, de serem alguém para alguém; nus não apenas de vestimentas, mas
despidos daquela compaixão que pouquíssimas pessoas dão aos desconhecidos; desabrigados não
apenas de um abrigo feito de pedra, mas da falta de abrigo que vem do fato de não terem
ninguém para chamar de seu172.

Deus se identificou com todos os pecadores, em toda parte, pelo fato de colocar o
selo de sua imagem sobre eles. Ele diz em essência: “Todo filho de Adão é meu, e
todos eles refletem algo de mim.” Ou seja, ele os ama. Os crentes devem, portanto,
buscar a glória de Deus nos bares, becos e clínicas de aborto, nos escritórios de
advocacia, no chão dos mercados e nos campos de futebol.
Mais do que todas essas coisas, um cristão é alguém com olhos atentos
principalmente ao Santo, assim como a pessoa amada buscando por aquele a quem
ama, esforçando-se para ouvir seu nome sendo falado, para sentir o cheiro de sua
veste. Uma fotografia chamuscada não é suficiente. Ela deseja alcançá-lo e tocá-lo e
sentir seu abraço.
Neste mundo, o crente encontra o abraço vívido e santo de Cristo na igreja local,
à medida que a igreja colabora para afirmar, para se unir e se identificar com o
crente. “Sim, você pertence a Cristo. Você é dele. Ele ainda não voltou, mas estamos
no lugar dele até que ele venha. Se você sofrer, sofreremos com você. Se você se
alegrar, nós nos alegraremos com você, porque ele prometeu que a glória dele seria
nossa e que a nossa glória seria dele.”Uma igreja que ama com o amor de Cristo é
uma igreja que anseia afirmar toda a amabilidade divina, criada pelo evangelho, que
ela vê nas vidas dos outros:
Por amor de si mesma, a igreja deseja se unir à presença dessa amabilidade
divina na vida dos crentes individuais, porque todo crente exibe cada vez mais
tanto as características de Deus compartilhadas universalmente, tais como
compaixão e misericórdia, como qualquer outra perspectiva exclusiva da glória
de Deus que ele tenha dado a cada membro do seu corpo. A igreja anseia se
identificar com a beleza dada por Deus a cada um e compartilhar dela. Os
membros “anseiam” uns pelos outros “na terna misericórdia de Cristo Jesus”
(Fp 1.8). Os membros do corpo não apenas dão de si mesmos uns aos outros;
eles dão a si mesmos uns aos outros. Por essa razão, “se um membro sofre,
todos sofrem com ele; se um deles é honrado, com ele todos se regozijam” (1
Co 12.26).

Por amor aos indivíduos, a igreja anseia que cada membro seja protegido dos
ataques do mundo, da carne e do diabo, e seja guiado em toda a justiça e para
uma amabilidade maior, assim como uma mãe deseja essas coisas para os seus
filhos. À medida que os membros da igreja anseiam uns pelos outros na terna
misericórdia de Cristo Jesus, eles oram para que o amor deles “aumente mais e
mais em pleno conhecimento e toda a percepção”, para que cada um aprove “as
coisas excelentes e sejam sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo, cheios do
fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus”
(Fp 1.9-11). A igreja deseja o bem dos indivíduos, o bem que é Deus.

Por amor ao mundo, a igreja anseia que cada crente seja distinguido e exibido
como um exemplo de esperança, um modelo de amor inspirador, uma luz que
gera vida. A igreja deseja distinguir o indivíduo do mundo, de modo que o
mundo possa ver que há outro caminho, ainda melhor; para que ele possa
também dar glória ao Pai que está no céu e segui-lo (Mt 5.13-16; 1 Pe 2.12).
Por amor a Cristo, a igreja deseja unir e manter cada crente unido a si mesma
na preparação para a volta do noivo, lavando-o com a água da Palavra, para que
cada indivíduo possa ser santo e glorioso, sem mácula nem ruga na vinda do
noivo (2 Co 11.2; Ef 5.27; Fp 1.11).

Por amor a Deus, a igreja deseja exibir cada indivíduo diante do mundo inteiro
e proclamar: “Vejam, aqui está a glória de Deus, sua sabedoria, santidade e
amor” (veja Ef 3.10).

As igrejas devem buscar glória, santidade e amor.


Sobre o fundamento desse amor santo, Jesus tenciona que a igreja exerça a
autoridade de afirmar a fé, de ligar e manter a fé e de supervisionar essa fé. Ele não
sobrecarrega a igreja com seu amor e depois a deixa sem capacidade de agir com esse
amor. Em vez disso, ele dá à igreja uma autoridade que ele não dá ao crente
individual. Especificamente, ele dá uma caneta nas mãos da igreja e diz: “Escreva os
nomes de todos aqueles que me professam e me seguem. Inclua-os e diga ao mundo
que eles são um de nós. Você pode até mesmo chamar os jornais, acordar os
vizinhos e pedir que eles se alegrem. Meus filhos estão em casa.”Passaremos agora
para esse tópico sobre o amor e a autoridade.

98. “Inquisition” [A Inquisição] in The Oxford Dictionary of the Christian Church, 3a d. F. L. Cross e E. A .
Livingstone, New York: Oxford University Press, 1997, pp. 836-37.
99. The Brothers K aramazov, tradução de David McDuff, New York: Penguin Books, 2003, pp. 325-26,
328, traduzido para o português como Os Irmãos K aramazov, São Paulo: Editora 34, 2008.
100. Kevin Vanhoozer compreende isso da forma correta, penso eu, quando escreve: “O amor de Deus,
talvez como nenhum outro assunto teológico, é particularmente vulnerável à suspeita de Feuerbach de
que as doutrinas são projeções dos ideais humanos”, em sua introdução ao livro Nothing Greater,
Nothing Better: Theological Essays on the Love of God [Nem Maior, Nem Melhor: Ensaios Teológicos
Sobre o Amor de Deus], Ed. Kevin J. Vanhoozer, Grand R apids: Eerdmans, 2001, p. 2 n. 1.
101. D. A . Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God, W heaton, IL: Crossway, 2000, pp. 16-21,
traduzido para o português como A Difícil Doutrina do Amor de Deus, Rio de Janeiro: CPAD.
102. Ibid., p. 21.
103. Platão, “Symposium” [Simpósio] in The Collected Dialogues of Plato, Ed. Edith Hamilton e
Huntington Cairns, Princeton: Princeton University Press, 1961, pp. 533, 544, 553, 555 (ou seções 178,
191, 200, 202), traduzido para o português como Os Diálogos de Platão: Estrutura e Método Dialético,
São Paulo: Loyola, 2002 .
104. Para obter duas discussões muito proveitosas de Agostinho acerca do amor, veja o capítulo sobre
Agostinho em Bernard V. Brady, Christian Love [O Amor Cristão], Washington, DC: Georgetown
University Press, 2003, pp. 77-124 e Lewis Ayres, “Augustine, Christology, and God as Love: An
Introduction to the Homilies on 1 John” [Agostinho, a Cristologia e o Amor de Deus: Uma introdução
às homilias sobre 1 João” in Nothing Greater, Nothing Better, pp. 67-93.
105. Agostinho, Confessions, Vol. I.ix (15), traduzido para o português como Confissões, São Paulo:
Martin Claret - Bb, 2002.
106. Agostinho não lia grego e, portanto, não pensou em termos de eros e agape. Geralmente, ele usava a
palavra latina caritas (de onde vem o termo caridade) para descrever o amor, mas também usava a
palavra “amor”, uma palavra mais associada com o amor apaixonado. Visto que sua concepção sobre o
amor combinava aspectos de cada uma delas, ele negava suas diferenças e dizia que elas poderiam ser
utilizadas de modo intercambiável. Veja Agostinho, “ The City of God against the Pagans” [A Cidade de
Deus Contra os Pagãos] in Cambridge Texts in the History of Political Thought [Escola Histórica do Pensamento
Político de Cambridge], editor e tradutor R . W. Dyson, Cambridge: Cambridge University Press, 1998,
livro 14, cap. 7.
107. Agostinho, The Trinity [A Trindade], 15.31; cf. 32. Mesmo que a formulação de Agostinho sobre a
trindade despersonalize o Espírito Santo, reduzindo-o ao amor compartilhado entre o divino Pai e o
Filho, conforme algumas pessoas argumentam, creio que podemos, pelo menos, afirmar o que Agostinho
diz aqui, ou seja, devemos acrescentar ao que Agostinho diz acerca do Espírito, mas não precisamos
extrair coisa alguma do que ele diz.
108. Ibid.
109. In Brady, Christian Love, p. 117.
110. Ibid., p. 105.
111. Agostinho, On Christian Doctrine [Sobre a Doutrina Cristã], Vol. 3,10,16.
112. Ibid., 1.23. E também em outra parte: “‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. E você ama a si
mesmo da forma adequada quando ama a Deus mais do que a você mesmo. Portanto, aquilo que você
almeja para si mesmo você deve almejar para o seu próximo, a saber, que ele possa amar a Deus com
uma afeição perfeita. Pois você não amará o seu próximo como a si mesmo, a menos que você tente
atraí-lo para aquele bem que você está buscando. Porque esse é o único bem no qual há lugar para todos
o buscarem com você. Os deveres da sociedade humana procedem desse preceito” (On the Morals of the
Catholic Church [Sobre a Moral da Igreja Católica], traduzido por Richard Stothart, in St. Augustine:
The Writings Against the Manicheans and Against the Donatists: Nicene and Post-Nicene Fathers of
the Christian Church [Os Escritos contra os Maniqueus e Contra os Donatistas: Os Pais da Igreja Cristã
nos Períodos Niceno e Pós-niceno], vol. 4, Ed. Philip Schaff, W hitefish, MT: Kessinger, sem data, cap.
26, p. 55).
113. Brady, Christian Love, pp. 125-40.
114. Ibid., p. 129.
115. Ibid., pp. 164-79, principalmente pp. 165-66, 171.
116. Itálicos no original; Marilynne Robinson, Gilead, New York: Farrar, Straus and Giroux, 2004, p.
136, traduzido para o português como Gilead, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
117. Veja D. A . Carson, Love in Hard Places [O Amor em Situações Difíceis], W heaton, IL: Crossway,
2002, pp. 42, 182.
118. In Brady, Christian Love, p. 174.
119. Extraído de Augustine’s Commentary on Paul’s Letter to the Galatians (57), in Garry Wills, Saint
Augustine, A Penguin Life series, New York: Viking, 1999, pp. 111-12, traduzido para o português como
Patrística, V. 25, Explicação da Carta aos Gálatas, São Paulo: Editora Paulus, 2009.
120. Anders Nygren chama isso de “Revolução Copérnica” na doutrina do amor. Agape and Eros [Agape
e Eros], traduzido por Philip S. Watson, London: SPCK , 1982, p. 681.
121. Esse argumento específico pode ser encontrado em Nygren, Agape and Eros, p. 681ss.
122. Søren Kierkegaard, Works of Love, traduzido por Howard Hong e Edna Hong, New York:
Torchbooks, 1962, pp. 36, 49, 63, 77, traduzido para o português como As Obras do Amor, Petrópolis:
Vozes, 2007.
123. Nygren, Agape and Eros, 210.
124. K arl Barth, Church Dogmatics, vol. 2.1, Ed. G. W. Bromiley and T. F. Torrance, New York: T&T
Clark, 2004, pp. 28.2.3 (p. 279) traduzido para o português como Dogmática Cristã, São Leopoldo:
Sinodal. Veja também Miroslav Volf, Free of Charge, Grand R apids: Zondervan, 2005, p. 39. Ele trata
explicitamente dessa questão em Barth e Lutero.
125. Barth escreve: “A expressão do amor de Deus está preocupada com a busca e a criação de uma
comunhão sem qualquer referência a uma capacidade ou mérito existente por parte do amor. O amor de
Deus não só não é condicionado por qualquer reciprocidade no amor, mas também não é condicionado
por qualquer mérito, para ser amado por parte de quem é amado, por nenhuma união ou comunhão de
sua parte [da parte da pessoa amada]”. Church Dogmatics, vol. 2.1, 28.2.2 (p. 278).
126. Gerhard O. Forde, On Being a Theologian of the Cross: Reflections on Luther’s Heidelberg
Disputation [Sobre Ser um Teólogo da Cruz: Reflexões Sobre a Disputa de Lutero em Heidelberg], 1518,
Grand R apids: Eerdmans, 1997, p. 113.
127. Robinson, Gilead, 209.
128. Frederick Buechner, The Magnificent Defeat [A Esplêndida Derrota], New York: HarperCollins,
1985, p. 105.
129. Veja o capítulo “Self Regard, Other Regard, and Mutuality” [Consideração Própria, Consideração
pelo Outro e Mutualidade] in Brady’s, Christian Love, pp. 240-64; veja também Kevin Vanhoozer,
“Introduction — The Love of God — Its Place, Meaning, and Function in Systematic Theology”
[Introdução — O Amor de Deus — Seu Lugar, Significado e Função na Teologia Sistemática] in Nothing
Greater, Nothing Better, pp. 1-29, principalmente pp. 18-19.
130. Veja Nygren, Agape and Eros, 678-80.
131. Os proponentes da definição agape argumentam explicitamente que sua definição é centrada em
Deus e a que veio antes dela era centrada no homem, e.g. Nygren, Agape and Eros, pp. 681-84. Eu
concordaria com isso se estivéssemos falando de todo o sistema soteriológico de Roma versus o de
Lutero. O que me preocupa é como o próprio amor vem a ser definido.
132. Como era de se esperar, os proponentes do amor exclusivamente agape desejam também um povo
transformado com seu sistema teológico. Nygren tenta evitar a graça barata dizendo, por exemplo, que
o amor de Deus “exige uma devoção ilimitada” (Agape and Eros, p. 104). Mas isso soa como uma
contradição interna em Nygren. Isso pode dar a impressão de que existe algo que afinal atrai o amor de
Deus — a perspectiva de uma devoção ilimitada!
133. É nesse ponto que eu discordo principalmente da afirmação de Miroslav Volf: “Deus é o doador
mais infinitamente rico e generoso, que não recebe coisa alguma em retribuição” (Free of Charge, p. 37).
Nada em retribuição? Então por que ele nos ordena adorá-lo?
134. Os teólogos que adotam exclusivamente a concepção do amor agape às vezes têm outros
mecanismos em seus sistemas teológicos para preservar o julgamento de Deus. Mas é de se esperar que
encontremos certa inconsistência em seu sistema teológico. Nygren, por exemplo, tenta tratar desse
mesmo argumento demonstrando que sua ideia sobre o amor, na verdade, permite, sim, o julgamento,
porque (1) Deus exige que aceitemos o seu amor e (2) seu amor exige uma devoção ilimitada. De outra
maneira, o que ele está dizendo é que seremos julgados (Agape and Eros, pp. 102-4). O problema é que
essas duas condições contradizem sua concepção do que é agape, camuflando o Deus agostiniano, que
deseja adoradores centrados em Deus.
135. Calvino escreve: “Mas a igreja desliga quem é excomungado — não que ela o lance na ruína e
desespero eternos, mas porque ela condena sua vida e sua moral e o adverte sobre sua condenação, caso
não se arrependa”. Institutes, tradução de Ford Lewis Battles, p. 1214.
136. Mt 3.17; 17.5; Mc 1.11; 9.7; Lc 3.22; 9.25; 2 Pe 1.17.
137. Veja Carson, The Difficult Doctrine of Love, 40.
138. Esses são os tipos de textos que levaram alguns teólogos do passado ora na direção da Cristologia
adocionista, ora na da Cristologia funcional.
139. O ponto principal estabelecido aqui é análogo ao questionamento sobre se Jesus, o Deus-Homem,
poderia ter pecado. Cristo era capaz de não pecar ou ele não era capaz de pecar? Em certo sentido, Cristo
poderia ter pecado, porque as tentações postas diante do homem Jesus eram reais. Em outro sentido,
não, ele não poderia ter pecado porque ele desejava, de modo perfeito, fazer a vontade de seu Pai. Nesse
ponto, estou seguindo a abordagem de G. C. Berkouwer sobre a impecabilidade de Cristo em The Person
of Christ, Grand R apids: Eerdmans, 1954, pp. 251-67, principalmente pp. 262-63, traduzido para o
português como A Pessoa de Cristo, São Paulo: Aste, 2011.
140. Veja também o capítulo de John Piper, “ The Pleasure of God in His Son” [Prazer de Deus em Seu
Filho] in The Pleasures of God [Os Prazeres de Deus], Sisters, OR: Multnomah, 2000, pp. 25-45.
141. Carson escreve: “Nenhuma vez sequer há qualquer indício de que o Filho comissione o Pai, que o
obedece. Nenhuma vez sequer há qualquer indício de que o Pai se submeta ao Filho ou dependa dele
para as suas próprias palavras e obras” (The Difficult Doctrine of Love, 40).
142. Jonathan Edwards, “ Treatise on Grace” [Tratado Sobre a Graça] in The Works of Jonathan
Edwards, Vol. 21, p.186.
143. Jonathan Edwards, “Miscellanies” [Coletâneas] número 1077 in The Works of Jonathan Edwards,
Vol. 20, p. 460.
144. Agradeço a Steve Wellum por esse esclarecimento.
145. Peter Gentry, comentando a obra do estudioso evangélico francês Claude-Bernard Costecalde,
argumenta que a palavra santidade na literatura bíblica é menos bem definida como “separado” e mais
bem definida como “consagrado a” ou “dedicado a”; veja Peter J. Gentry, “ The Covenant at Sinai” [A
Aliança no Sinai] in The Southern Baptist Journal of Theology [Periódico de Teologia dos Batistas do Sul
, vol. 12 (Outono de 2008): 48.
146. Wayne Grudem, Systematic Theology, Grand R apids: Zondervan, 1994, p. 201, traduzido para o
português como Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1994.
147. Cf. J. Alec Motyer, The Prophecy of Isaiah: An Introduction and Commentary [A Profecia de Isaías,
Introdução e Comentário], Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993, p. 77.
148. Michael J. Gorman, “ You Shall Be Cruciform for I Am Cruciform” [Vocês Serão Moldados Pela Cruz
Porque Eu Sou Moldado Pela Cruz], in Holiness and Ecclesiology in the New Testament [Santidade e Eclesiologia
no Novo Testamento, Ed. Kent E. Brower e Andy Johnson, Grand R apids: Eerdmans, 2007, p. 153.
149. Caldwell, Communion in the Spirit [Comunhão com o Espírito], pp. 50, 54.
150. Kierkegaard, Works of Love, p. 36.
151. Em sua versão reimpressa de God’s Passion for His Glory, W heaton, IL: Crossway, 1998, pp. 125-
36, traduzido para o português como A Paixão de Deus por Sua Glória: Vivendo a visão de Jonathan
Edwards, São Paulo: Cultura Cristã, 2008 .
152. Bruce W. Davidson, “ The Four Faces of Self-Love in the Theology of Edwards” [As Quatro Faces do
Amor-Próprio na Teologia de Edwards] in Journal of the Evangelical Theological Society, vol. 51 (março
2008): 89; originalmente encontrado em The Works of Jonathan Edwards, vol. 18: The “Miscellanies”
501-832, Ed. Ava Chamberlain, New Haven: Yale University Press, 2000, p. 239.
153. Veja o capítulo, de David Powlison, “God’s Love: Better than Unconditional” [O Amor de Deus é
Melhor do que Incondicional], em seu livro Seeing with New Eyes [Vendo com Novos Olhos],
Phillipsburg, NJ: P&R , 2003, pp. 163-70.
154. Richard Bauckham, “ The Holiness of Jesus and His Disciples in the Gospel of John” [A Santidade
de Jesus e de seus Discípulos no Evangelho de João], in Holiness and Ecclesiology in the New
Testament [Santidade e Eclesiologia no Novo Testamento] Ed. Kent E. Brower e Andy Johnson, p. 109;
cf. A . J. Köstenberger, The Missions of Jesus and the Disciples according to the Fourth Gospel [A
Missão de Jesus e de Seus Discípulos de Acordo com o Quarto Evangelho], Grand R apids: Eerdmans,
1998, pp. 186-97.
155. In Brady, Christian Love, 242-46.
156. Ibid., p. 245-46.
157. Ibid., p. 256.
158. É nesse ponto que penso que o argumento de Charles Taylor para definir a moralidade, a
identidade ou (para os nossos propósitos) o amor, de acordo com alguma concepção de bem, é muito
proveitoso; veja Charles Taylor, Sources of the Self, principalmente as páginas pp. 78-90.
159. Os teólogos e exegetas geralmente discutem a ideia protestante da imputação da justiça de Cristo
nos termos de um tribunal, visto que o grupo da palavra dikaios faz parte do grupo de palavras
legais/judiciais. No entanto, a metáfora do tribunal é exatamente uma metáfora que pode nos ajudar em
determinados aspectos da imputação, mas que não explica completamente o conceito teológico. A crítica
muito citada de N. T. Wright sobre a imputação é deficiente exatamente porque trata a metáfora, por
assim dizer, de modo unívoco. Ele escreve: “A justiça não é um objeto, uma substância ou um gás que
pode passar através do tribunal”, in What Saint Paul Really Said [O que São Paulo Realmente Disse], Oxford:
Lion Book, 1997, p. 98. Bem, certamente isso parece inteligente, mas ele não está, de fato, criticando a
imputação nesse ponto. A imputação é uma ideia judicial, sim, mas também é uma ideia de aliança.
Entrar em determinados tipos de aliança envolve minha identidade e tudo o que sou, de tal modo que
tudo o que é meu se torna seu e tudo o que é seu se torna meu. Quando eu me casei com minha esposa,
por exemplo, minha dívida do empréstimo estudantil se tornou dela, e o Honda Civic dela, na verdade,
tornou-se meu. Nem o Honda nem a dívida flutuaram pelo tribunal. Entretanto, houve de fato essa
“troca graciosa”, pelo menos desde a minha perspectiva. O mesmo se deu com a troca gentil entre a
justiça de Cristo e meu pecado. Pelo fato de dar-se a si mesmo ao seu povo, na nova aliança, o que ele
possuía passou a ser nosso e o que era nosso se tornou dele. Nesse sentido, Wright está correto em
apontar para os aspectos da aliança da justiça de Deus em Cristo. Eu até aprecio o argumento dele, no
mesmo capítulo dessa crítica, de que o livro de Romanos nos presenteia não com as realidades do
tribunal, mas com a “teologia do amor” (p. 110). Todavia, de alguma forma ele omite o fato de que a
identidade compartilhada das alianças bíblicas envolve troca; não apenas obrigações, mas também
dívidas e bênçãos. De alguma forma, ele omite o fato de que a troca do pecado pela justiça, entre Cristo e
o pecador — essas realidades legais e judiciais —, também é uma realidade da aliança, uma aliança
nupcial, nesse ponto.
160. Aquilo que a ilustração de Piper omite é maravilhosamente assimilado por uma ilustração mais
bíblica de Edwards: “A criação do mundo parece ter existido principalmente para este fim: para que o
Filho eterno de Deus pudesse obter uma esposa a quem ele pudesse exercer plenamente a benevolência
infinita de sua natureza, e diante de quem ele pudesse, por assim dizer, abrir e despejar toda essa imensa
fonte de complacência, amor e graça que estava em seu coração, para que, desse modo, Deus pudesse ser
glorificado”. Extraído do sermão de Jonathan Edwards: “Church’s Marriage to Her Sons, and to Her
God” [O Casamento da Igreja com Seus Filhos e com seu Deus], em Sermons and Discourses 1743-1758
[Sermões e Discursos], vol. 25, Ed. Wilson H. Kimmach, New Haven, CT: Yale University Press, 2006, p.
187.
161. Por essa razão, D. A . Carson escreve: “O único prazer e intimidade nesta vida que chegam perto do
antegozo do prazer que a igreja e seu Senhor terão, ao serem perfeitamente unidos no último dia, é a
união sexual de um bom casamento”. Love in Hard Places, p. 191. Semelhantemente, John Piper
escreve: “Deus nos criou com a paixão sexual, de modo que houvesse uma linguagem para descrever o
que significa nos unirmos a ele em amor e o que significa nos afastarmos dele na direção de outros”, in
Sex and the Supremacy of Christ, p. 28; e novamente: “Deus nos fez poderosamente sexuais, de modo
que ele pudesse ser conhecível com mais profundidade. Foi-nos dado o poder de conhecermos ao outro
sexualmente, a fim de que pudéssemos ter alguma ideia de como será conhecer a Cristo de forma
suprema”, p. 30.
162. D. A . Carson, Love in Hard Places, pp. 21-22.
163. Mt 6.24, 12.30; 1 Jo 2.15.
164. Paul David Tripp, “Instruments in the Redeemer’s Hands: People” in Need of Change Helping
People in Need of Change, Phillipsburg, NJ: P&R , 2002, p. 34, traduzido para o português como
Instrumentos nas Mãos do Redentor, São Paulo: NUTR A , 2009.
165. Veja a excelente discussão de T. D. Alexander acerca do amor e da lei, em seu capítulo sobre
Deuteronômio, intitulado “Love and Loyalty” [Amor e Lealdade] in T. D. Alexander, From Paradise to
Promised Land: An Introduction to the Main Themes of the Pentateuch, Grand R apids: Baker, 1995, p.
162, traduzido para o português como Do Paraíso à Terra Prometida: Uma introdução aos temas
principais do Pentateuco, Sto. Amaro - São Paulo: Shedd Publicações, 2010. Será que Deuteronômio, um
livro repleto de muitas leis, de fato é um livro a respeito de amor e lealdade? “No cerne dessa aliança”,
afirma Alexander, referindo-se ao fardo de Deuteronômio, “está um compromisso de ambas as partes
para amar uma a outra de modo sincero e fiel”.
166. Por exemplo, Donald G. Bloesch escreve: “A fé bíblica retrata Deus como tendo duas faces:
santidade e amor. Essas são as perfeições que configuram a interação de Deus com seu povo. Elas estão
integralmente relacionadas e ainda assim coexistem numa certa tensão, a qual destaca sua unidade
paradoxal, em vez de resolvê-la. A santidade de Deus é sua pureza majestosa que não pode tolerar o mal
moral. O amor de Deus é gregário, ele adota compassivamente o pecador. A santidade de Deus é sua
separação daquilo que é imundo e profano. O amor de Deus é sua disposição para se identificar com
aqueles que são imundos, a fim de ajudá-los. A santidade de Deus transcende esse mundo transitório de
morte e decadência. O amor de Deus se encarna neste mundo corrompido pelo pecado”. God the
Almighty: Power, Wisdom, Holiness, Love [O Deus Todo-poderoso: Poder, Sabedoria, Santidade e
Amor], Carlisle, UK: Paternoster, 1995, pp. 139-40.
167. A tensão que experimentamos entre o amor de Deus e a lei de Deus na era presente é resultado de,
pelo menos, uma destas três coisas: primeiro, podemos ter uma concepção antropocêntrica do amor de
Deus, a qual está colidindo com a natureza teocêntrica, quase que necessária, de sua lei. Creio que esse
seja, até certo ponto, o erro mais comum que os evangélicos cometem. Em segundo lugar, parece, haver
de fato uma tensão real entre o amor supremo de Deus por sua glória e seu amor condicional pelos
pecadores (por exemplo, 2 Pe 3.9). Em última análise, acho que devemos dizer que essa tensão se
dissolverá, mas, uma vez que essa é uma tensão que as Escrituras apresentam como uma realidade,
devemos esperar senti-la. Terceiro, parece que um Deus centrado no homem experimentaria tensão
entre o amor e a lei, à medida que os seres humanos escolhem as coisas que ele, em sua infinita
sabedoria, sabe que não são boas para eles.
168. Leon Morris, The Biblical Doctrine of Judgment [A Doutrina Bíblica sobre o Julgamento], 1960;
reimpressão, Eugene, OR: Wipf & Stock, sem data, pp. 22.
169. Richard Bauckham argumenta convincentemente que o Evangelho de João faz distinção entre a
“purificação” dos pecados, a qual os discípulos já haviam recebido (13.10, 15.3), e a santificação ou
consagração deles para a obra do ministério de Cristo. A consagração, ele argumenta, é uma melhor
tradução de hagiazō, no verso 17, visto que a palavra “santificar” sugere que Jesus tinha em mente,
nesse texto, a ideia de tornar alguém eticamente santo. O contexto do versículo 18, no entanto, sugere
que ele tem a ideia de que os seus discípulos sejam separados para a sua obra. Richard Bauckham, The
Holiness of Jesus and His Disciples in the Gospel of John, p. 111.
170. Ibid., p. 113.
171. Na conferência do Concílio Missionário de 1952, Wilhelm Anderson, complementando a obra de
K arl Barth, propôs que tanto a igreja quanto a missão deve ser realizada na missio Dei — a missão de
Deus. As missões não são apenas uma função da igreja, e a igreja não é apenas o desfecho das missões.
Em vez disso, ambas estão fundamentadas num Deus trino que está numa missão. A igreja tem uma
natureza missionária — agora dizemos “missional”. Johannes Blauw assimilou essa premissa básica no
título de seu livro de 1962, The Missionary Nature of the Church, traduzido para o português como A
Natureza Missionária da Igreja, São Paulo: Astes, 1966 . Os ecumênicos adotaram mais plenamente essa
forma de falar com o surgimento do Marketing de Comunicação Integrada e do Concílio Mundial de
Igrejas, em 1961, seguidos pelos católicos romanos e pelo pronunciamento do Concílio Vaticano II, que
afirmava que “a igreja na terra é missionária por sua própria natureza, de acordo com o plano do Pai, e
tem sua origem na missão do Filho e do Espírito Santo”. “Decreto da Atividade Missionária da Igreja”,
Ad Gentes Divinitus, in Vatican Council II [Concílio Vaticano II]: v. 1, The Conciliar & Post Conciliar
Documents [Documentos do Concílio e pós-concílio], edição revisada, Ed Austin Flannery, Costello
1987, p. 813. Sinalizando essa mudança de pensamento entre muitos, o Concílio Mundial das Igrejas de
1969 removeu o plural de seu Periódico Internacional de Missões, que passou a ser Periódico
Internacional de Missão. Essa história é relatada em Craig Van Gelder, The Essence of the Church: A
Community Created by the Spirit, Baker, 2000, pp. 32-36; e também em David Bosch, Transforming
Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission, Orbis, 1991), pp. 362-68. Darrell Guder reivindica o
crédito pela proliferação do termo “igreja com base missional” em seu livro editado com esse título The
Church as Missional Community [A Igreja como uma Comunidade Missional], The Community of the
Word: Toward an Evangelical Ecclesiology [A Comunidade do Mundo: Rumo à Eclesiologia Evangélica] ,
Ed. Mark Husbands and Daniel J. Treier, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005, p. 114.
172. Originalmente citado em Life in the Spirit: Reflections, Meditations, Prayers, Mother Teresa of Calcutta [Vida
no Espírito: Reflexões, Meditações, Orações de Madre Teresa de Calcutá], Ed. K athryn Spink (San
Francisco: Harper & Row, 1983), pp. 24-25.
Capítulo 3

O GOVERNO DO AMOR

“Temos que deixar o amor governar.”


— Lenny Kravitz

Perguntas Principais: O que é autoridade? Como ela se relaciona com o amor?


E que papel ela desempenha na igreja?

Principais Respostas: A autoridade, fundamentada no amor santo, cria vida.


Ela cria toda uma nova realidade diferenciada e moldada.

Ponto 1: A ideia de autoridade nos assusta por razões


compreensíveis.

Amor e autoridade — essas coisas fazem de fato parte uma da outra?


DISTOPIA
Recentemente, tive finalmente a oportunidade de ler 1984, o romance distópico
de George Orwell. Escrevendo nos anos de 1940, Orwell mira o totalitarismo da
União Soviética estalinista, mas, assim como uma espingarda, esse rifle literário
espalha sua rajada de balas com uma amplitude muito maior. Ele, de forma geral,
desafia o conceito de autoridade e nos induz a pensar que conduzir o amor à
presença da autoridade fará com o que o amor seja machucado e espancado o tempo
todo, como se colocássemos uma pessoa numa jaula com um gorila mal-humorado.
O principal culpado do romance de Orwell é o partido autoritário do Grande
Irmão. “O Grande Irmão está vigiando você”, dizem os cartazes e as telas dos
cinemas ao redor da cidade. O partido considera como uma ameaça qualquer
lealdade que não a lealdade ao próprio partido. Ele rompe metodicamente todos os
laços sociais — dos pais com o filho, do amigo com seu amigo, daquele que ama com
a pessoa amada. Ele define a justiça em seus próprios termos. Ele extrai
cirurgicamente toda a esperança e todos os sentimentos sinceros da vida daqueles a
quem ele governa, governando não somente suas palavras e pensamentos, mas
também seus corações. Seu alvo é nada menos que a conversão. Um representante
do Grande Irmão diz em relação aos dissidentes políticos (e a cada um, por tabela):
Nós o convertemos, capturamos sua mente, nós o remodelamos. Queimamos dele todo mal e
toda ilusão; trouxemo-lo para o nosso lado não na aparência, mas de forma genuína, de coração
e de alma. Fizemos com que ele fosse um de nós antes de o matarmos. É intolerável que um
pensamento errôneo exista em qualquer lugar do mundo, por mais secreto e impotente que
possa ser173.

Os métodos que o partido estalinesco utiliza, com o propósito exclusivo de


preservar seu poder, são ameaças, propagandas políticas, fome em massa, torturas
e execuções. E o que é mais repugnante — ele realiza essas atividades por meio das
agências governamentais do Ministério da Verdade (que propaga mentiras), do
Ministério da Paz (que promove a guerra), do Ministério da Fartura (que planeja a
fome), e por meio do melhor de todos, o Ministério do Amor (que tortura e mata).
O partido é bem-sucedido. O personagem principal, Winston, passa a maior
parte da história resistindo ao Grande Irmão. Mas, após ser espancado e ter passado
por uma lavagem cerebral, no final da história, ele contempla a foto de seu ditador,
um semideus, com lágrimas nos olhos. Ele repreende a si mesmo por ter se excluído
por tanto tempo do “seio amoroso” desse tirano. O romance termina com essas
palavras ultrajantes: “Ele amava o Grande Irmão.” Winston fora convertido
completamente.
Enquanto estava lendo 1984, minha cabeça e meu coração foram tentados em
duas direções. Minha cabeça continuou a afirmar a ideia bíblica da autoridade, ao
passo que meu coração queria duvidar dela. Há um momento no romance, por
exemplo, quando o leitor olha, através dos olhos de Winston, para as faces de sua
mãe e de sua irmã ainda bebê como se elas estivessem caminhando para a própria
morte, sacrificando a si mesmas, para que Winston pudesse viver. O leitor vê seus
rostos e sente o sofrimento, mas a vida de Winston está tão oprimida pelo medo,
pelo ódio e pela dor, nesse mundo totalitário, que ele luta mentalmente para
registrar esse instante como um momento trágico. Seu coração está ao mesmo
tempo endurecido em relação a elas e em conflito consigo mesmo por causa daquele
fato.
O vilão responsável por esse mundo desalmado, assombrado pelo medo e pelo
odioso — para o conflito emocional de Winston — é a autoridade. A autoridade
enfraquece, perverte e finalmente sacrifica a vida. Ela consome e rouba o
verdadeiro ser humano do ser humano. Diante dessas realidades, qualquer
afirmação animada e vívida de que a “autoridade é boa”, num livro sobre teologia,
poderia parecer no mínimo ingênua, se não for insensível e absurda. É certo que
este mundo já tem conhecido muito sofrimento nas mãos das autoridades.
Certamente que as tendências democráticas para a liberdade, igualdade e, até
mesmo, para algum tipo de autonomia estão corretas. É lógico que essa linha de
raciocínio não se aplica só aos sistemas políticos. Ela se estende para o céu. Com
certeza, Deus não deseja nos governar, e não deseja reprimir qualquer vida, amor e
criatividade que ele possa nos ter dado, não é mesmo?
Considere novamente o que foi proposto no último capítulo: o amor de Deus é
centrado em Deus; seu amor exerce autoridade, e ele até mesmo efetua
julgamentos. Isso nos chama para nos coformarmos ao seu caráter. O amor e a
autoridade agem aparentemente de mãos dadas. O que pode ser ainda mais
perturbador é o que consideraremos no final deste capítulo e no próximo: Cristo
passa sua autoridade para a igreja e nos chama a governar. Ele até chama as igrejas
que frequentamos a governarem — sobre nós!
Pode isso estar correto? Isso pode ser bíblico? O partido do Grande Irmão tinha
um “Ministério do Amor” para torturar pessoas. O que impede que a história de
amor entre Deus e o seu povo, conforme começamos a descrever, termine em mais
uma distopia? “Deus o ama, então se converta ou terei que matá-lo.” Não foi isso
que os paladinos de Carlos Magno, com espadas na mão, disseram à medida que
impunham a “conversão” cristã à Europa pagã? Nem a política nem a teologia da
autoridade são simples. Qualquer tentativa de considerar a autoridade da igreja no
mundo deve considerar a realidade do abuso de autoridade. Afirmações leves e
textos-prova não farão isso.
Essa ideia é tão drástica e perigosa que precisamos gastar tempo buscando
compreender o que é autoridade. Na maior parte deste capítulo, buscaremos
compreender o que é autoridade, e se Deus tem a intenção de que seu povo a
exerça. Pode parecer que estou gastando muito tempo nas preliminares, mas unir-
se a uma igreja local não é apenas uma questão de “se unir” a uma sociedade civil, a
um clube ou a uma equipe de xadrez. Não se trata de se associar, soberanamente, a
alguma organização, pagar alguns tributos e receber os devidos benefícios em troca.
Não, essas ideias omitem completamente a ligação implicada nas metáforas bíblicas
da igreja como uma família, uma cidadania, um templo, uma vinha ou um corpo.
Além disso, conforme observamos anteriormente, associar-se a uma igreja não diz
respeito a dar de si mesmo, como você faria com qualquer outra organização; mas
diz respeito a dar a si mesmo, o que é um ato de submissão. Diz respeito a identificar
o seu nome com todos aqueles que pertencem a essa igreja. Diz respeito a estar
unido de coração, mente e missão. É, em resumo, submeter o seu discipulado
cristão a um limite geograficamente estabelecido, a um grupo numericamente real.
É se submeter, é ser governado e é governar.

Ponto 2: Por essa razão, muitos líderes e pastores nos


apresentam, hoje, a visão de uma comunidade amorosa de
relacionamentos, minimizando a ideia de autoridade.

OUTRO CAMINHO: A COMUNIDADE


Obviamente, há outro caminho que podemos tomar. Não temos que falar a
respeito da autoridade. Conforme vimos no Capítulo 1, muitos teólogos e líderes de
igreja estão apresentando uma visão alternativa, que tenta unir indivíduos a uma
igreja sem recorrer a um conceito hierárquico de autoridade. Seu grito inicial é:
“Relacionamento!”, ou: “Comunhão!” Quer esses cristãos e líderes percebam ou
não, o seu grito ecoa o que muitos filósofos, teoristas políticos, sociólogos e
teólogos “comunitaristas” têm dito há décadas, e por razões que podemos
compreender: todo mundo está olhando para a correria da vida urbana moderna,
para a desunião que as pessoas sentem e para a natureza superficial dos
relacionamentos e estão fazendo a mesma pergunta: “Que tipo de cola social nos
manterá unidos?”
As pessoas viajam oitenta quilômetros de ida e volta ao trabalho. Os parceiros de
negócios que estão em lados opostos do globo têm mais tempo cara a cara um com o
outro do que com seus vizinhos. As amizades começam e acabam com uma chamada
de celular. Os pais, pressionados pelas agendas ocupadas, deixam que os videogames
cuidem de seus filhos. Os pastores superstars das megaigrejas piscam seus olhos em
meio às luzes ofuscantes do palco, a fim de verem os rostos dos espectadores.
No meio de toda a agitação, todos estão coçando a cabeça e se perguntando como
impedir que tantas vidas desconectadas se desviem para um distanciamento ainda
maior. Muitos diriam: esse é um dos maiores desafios nas culturas democráticas,
capitalistas, globalizadas e seculares do Ocidente174. O que mantém as pessoas
juntas? Ninguém quer responder a essa pergunta, trazendo de volta o bicho-papão
da pré-modernidade — a autoridade.
Com efeito, é aí que começaremos, não com uma discussão sobre autoridade e
sobre como ela dá organização à igreja local e aos seus membros, mas analisando
sua alternativa, essa ideia popular de relacionamentos e comunidade.
O DESVIO RELACIONAL
Nas ciências sociais, a conversa comunitarista se origina daquilo que, às vezes, é
chamado de “desvio relacional”, segundo o qual a questão dos relacionamentos,
anteriormente periférica, vem para o centro da essência da existência humana
(ontologia)175.Nós somos os nossos relacionamentos e não podemos nos separar
deles sem que tenhamos uma crise de identidade176.
Na teologia, a importância dos relacionamentos (a dialética do Eu e Tu) reorienta
todas as categorias da sistemática177. Tem-se observado que:
O próprio ser de Deus é definido não pelos substantivos gregos para um ser
estático, mas pelo fato de ser três pessoas numa comunhão;
as pessoas humanas têm uma “analogia relacional” com a comunhão
trinitariana de Deus;
o amor é uma questão de mutualidade;
o pecado é uma quebra de comunhão;
Cristo nos reconcilia com ele e nos restaura para um relacionamento com
Deus;
Cristo também nos restaura para um relacionamento com seu corpo, a
comunidade da igreja;
E a escatologia resumirá todas as coisas em nossa participação na comunhão
divina178.

Tocamos em várias dessas questões no Capítulo 1, e por trás delas está a


pergunta: O que mantém as pessoas unidas em nossa cultura individualista? A
resposta — relacionamentos — parece ser uma forma arrumada e atraente de
fazer isso sem recorrer ao bicho-papão da pré-modernidade. Todo mundo gosta de
relacionamentos. Por favor, indiquem para mim e para a minha igreja uma solução
para isso.

PROGRAMAS DE RECOMENDAÇÕES
Como era de se prever: muitos programas de lições a serem seguidas pela igreja.
Para começar, devemos (dizem que devemos) recuperar a compreensão da igreja
como uma comunidade de pessoas, em vez de uma instituição impessoal179. Se os
relacionamentos são o que constitui a essência da igreja, qualquer estrutura que
exista deve ser orgânica, líquida ou natural. A igreja é um “organismo espiritual que
possui uma expressão vital”180. Apenas considere os títulos de vários livros recentes
escritos por líderes eclesiásticos: Natural Church Development, 1996 (traduzido para
o português como O Desenvolvimento Natural da Igreja, Editora Esperança); Liquid
Church [Igreja Líquida], 2002; Organic Church, 2005 (traduzido para o português
como Igreja Orgânica, Rio de Janeiro: Editora Habacuc, 2008); Seeds for the Future:
Growing Organic Leaders for Living Churches [Sementes para o Futuro:
Desenvolvendo Líderes Orgânicos para Igrejas Vivas], 2005; Organic Community
[Comunidade Orgância], 2007, e Reimagining the Church: Pursuing the Dream of
Organic Christianity, 2008 (traduzido para o português como Reimaginando a Igreja,
Brasília: Editora Palavra, 2009). Em seguida, navegue pelas opções deleitáveis no
cardápio de modelos de igreja (como um autor empolgadamente as relaciona): igreja
voltada aos frequentadores interessados, igreja com propósitos, igreja de células,
igreja de células G12, igreja-cafeteria, igreja estilo cafeteria, igreja das multidões,
igreja do local de trabalho, igreja-bar, igreja de clube cultural, igreja-empresa, cyber-
igreja, igreja online, igreja de culturas específicas, igreja do meio de semana, igreja-
projeto, igreja de sete dias por semana, igreja pós-Alfa, igreja das refeições juntos,
igreja nos lares, igreja-menu, igreja multicultural, igreja dispersa e muito mais181.
Emprestando uma expressão de Shakespeare, poderíamos exclamar: “Ó
maravilhoso novo mundo, que tem tais igrejas!”
Disseram-nos que a pregação não deve ser um monólogo, mas sim um diálogo.
Nossas igrejas devem falar e aprender a partir da multiplicidade dos pontos de
vista182. Ninguém, indivíduo ou grupo de indivíduos, tem a autoridade para dizer o
que Deus pensa.
Dizem-nos que a conversão não deve ser tratada como um acontecimento do
passado, porque a fé geralmente vem gradualmente e cresce gradualmente. É
melhor falar da conversão como uma jornada, um processo, uma conversa ou, pelo
menos, como uma “conversão contínua”, que, assim como uma conversa, implica
uma abertura contínua para novas perspectivas183. A experiência dos indivíduos
varia, e o mesmo se dá com as culturas. Além disso, na história das missões cristãs,
toda a ideia de um “momento decisivo” de conversão tem geralmente levado a igreja
na direção de práticas opressivas. Conforme determinado autor adverte:
Os cristãos sensíveis evitam essa terminologia (de conversão), cientes de que ela conota uma
pressão para se conformar a crenças e comportamentos específicos e implica na submissão à
sabedoria e à justiça superiores daqueles que já são “convertidos”. De modo geral, a conversão
tem historicamente significado uma exigência imperialista (e, às vezes, coerciva) para a
obediência às instituições, credos e normas éticas de uma igreja dominante184.

O nosso alvo como crentes não deve ser exigir que, num instante, os de fora se
coformem às nossas crenças e comportamentos, porque os relacionamentos levam
tempo e também porque os relacionamentos envolvem tanto ouvir quanto falar185.
A missão e o evangelismo cristão são atividades relacionadas. Eles estão
relacionados em seus processos — nós buscamos a missão de Cristo cultivando
relacionamentos — e eles estão relacionados em seu propósito, servindo ao
propósito da comunhão. “Basicamente”, afirma o teólogo Simon Chan, “todas as
coisas são levadas de volta à comunhão com o Deus trino. A comunhão é o
propósito supremo, não a missão.”186
Em tudo isso, o conceito de autoridade, e até mesmo da própria autoridade de
Deus, é deixado de lado ou pelo menos é relativizado187.

IMPLICAÇÕES PARA A MEMBRESIA DA IGREJA Dada a revigorada ênfase


nos relacionamentos e nos processos, como se fossem opostos ao episódio
da conversão, não é muito difícil predizer o tipo de conselho que se
seguirá quando o assunto for a membresia e a disciplina da igreja. Numa
única frase: Não importa! Não estamos interessados em divisão, mas em
ligação.
Uma frase popular que alguns líderes de igreja têm usado como argumento é
“pertencer antes de crer”188. As igrejas desejam que os de fora sintam o convite e o
abraço de uma comunidade amorosa189. Os limites fazem com que os de fora se
sintam medidos e julgados, então deixemos que os excomungados, os pré-incluídos,
os semi-incluídos e os não incluídos se sintam como se pertencessem à igreja
mesmo antes de crerem. E não façamos exigência alguma aos pós-incluídos e aos
anti-igrejas, porque essas exigências o afastarão ainda mais190.
No livro de Dan Kimball sobre alcançar os sem-igreja, Eles Gostam de Jesus, Mas
Não da Igreja, ele defende que devemos fazer o que pudermos para derrubar o muro
de separação, a fim de atrairmos os descrentes para o lado de dentro:
O nosso alvo não deve ser o de fazer as pessoas “irem à igreja”. Devemos convidar as pessoas a
participarem da vida da comunidade da igreja e da ação de Deus, não apenas convidá-las a
participarem de nossos cultos de adoração... Precisamos entender que na maioria dos casos, em
nossa cultura emergente, o pertencer precede o crer. Na cultura de hoje, as pessoas não chegam
a ter cofiança e entendimento até que elas se sintam como aqueles que pertencem à igreja.
Depois, o Espírito age nelas, levando-as ao estágio da fé.

Kimball deseja ser sensível à cultura, e a cultura diz: “Deixe-me pertencer ao


povo de Deus, depois eu crerei.” Será que isso significa que a cultura está
determinando quem é o povo de Deus na terra?
Uma forma um pouco mais cuidadosa de falar sobre o fato de pertencer antes de
crer é dizer que as igrejas devem adotar uma abordagem com uma “posição
convergente”, e não uma “posição limitada”, em sua vida comunitária. Igrejas que
têm uma posição limitada criam limites em torno do que consideram ser o
comportamento correto e a crença correta, e depois patrulham esses limites. As
igrejas de posição convergente se concentram em trazer as pessoas para um
relacionamento com a pessoa que está no centro, Cristo. O primeiro modelo é
considerado estático e institucional. O segundo modelo é considerado dinâmico e
amoroso. O primeiro enfatiza a pureza organizacional. O segundo enfatiza o
convite, a aceitação e o crescimento das pessoas. O primeiro exige que as pessoas
alcancem determinado padrão antes de se unirem ao clube. O segundo alcança
todas as pessoas, não importa o quão diferentes ou quebrantadas elas possam
estar191. Quando a questão é posta dessa forma, quem não escolherá o modelo de
posição convergente?
Os defensores da igreja de posição convergente admitem que essas igrejas podem
ser um pouco mais desorganizadas, e seus limites, um pouco mais vagos. Mas isso
faz sentido. Os pecadores são desorganizados, até mesmo os que já foram
perdoados, e os relacionamentos do mundo são dinâmicos, temperamentais e
raramente são visíveis. Não podemos ver tudo o que Deus vê. Um defensor da
abordagem de posição convergente escreve:
Nós, por causa da nossa limitação, podemos contemplar apenas o padrão externo — o que as
pessoas dizem e fazem. Consequentemente, para nós, a conversão geralmente se parece mais
com um processo do que com um momento fixo, e a igreja se parece mais com um corpo vago,
feito de pessoas com diferentes graus de comprometimento com Cristo. O problema com isso
não é a verdadeira natureza das realidades espirituais, mas os limites de nossa percepção
humana.
Isso é um problema principalmente para aqueles de nós, do Ocidente, para quem a ordem
institucional e o planejamento são tão importantes. Está claro que precisamos reorganizar as
nossas prioridades. Temos de tornar as pessoas mais importantes do que os programas, dar
prioridade aos relacionamentos, em vez da ordem e do esmero192.

Com certeza, o autor está correto em relação ao argumento sobre as limitações


de nossa capacidade de conhecer verdadeiramente quem pertence a Cristo e quem
não pertence, que é a razão de os crentes terem feito distinção entre a igreja visível
(todos aqueles que professam a Cristo) e a igreja invisível (aqueles que
verdadeiramente pertencem a Deus), pelo menos, desde Agostinho. Entretanto,
poderia ser o caso de os defensores da igreja de posição convergente estarem nos
apresentando mais um “ou um/ou outro” quando o que queremos é um “ambos/e”?
Quer as pessoas estejam ou não cientes dos jargões (posição limitada/posição
convergente), essas ideias básicas permeiam a consciência diária de muitos
evangélicos.
Tempos atrás, participei de uma discussão num blog sobre a membresia da igreja.
Eu argumentei que a membresia da igreja, entre outras coisas, propicia a certeza da
salvação. Um dos comentaristas respondeu o seguinte:
Eu não frequento a igreja por causa da membresia, frequento por causa da comunhão.
Francamente, não me importo se a igreja me dá essa certeza ou não [sic]. Meu objetivo de ser
um cristão não é afetado pela certeza vinda de outros. Para mim, a comunhão é muito mais
importante — estar interligado com outros que compartilham das minhas crenças, fazer parte
da vida deles e tê-los como parte da minha vida. Não preciso dos outros para ter fé ou uma
crença, ou para ser um cristão. Mas a comunhão, não a membresia, de fato me oferece algo que
não conseguiria ter de outro modo e me permite oferecer esse algo também.

Esse indivíduo colocou uma ênfase louvável na comunhão e nos


relacionamentos. A relação de um indivíduo com a igreja local não deve ser
caracterizada de forma nominal ou consumista, mas de forma relacional. Ou seja, a
participação numa igreja local deve ser repleta do dar e receber dos
relacionamentos, não apenas quando a igreja satisfizer determinadas necessidades.
O problema é que ele parece ter uma certeza exagerada de sua própria salvação,
bem como uma capacidade de se autoenganar (“Francamente, não me importo se a
igreja me dá essa certeza ou não.”). A igreja não é algo a que esse indivíduo acredita
que deva se submeter. Ele mantém todo o controle. A suposição desarticulada que
age em segundo plano é que os relacionamentos e a autoridade, assim como o amor
e a autoridade, estão em desacordo. A ideia da posição convergente da igreja sofre
um reducionismo semelhante.

O QUE ESTÁ CORRETO ACERCA DA TENDÊNCIA RELACIONAL


Não sou fã de igrejas artificiais e não genuínas, ou de igrejas autoritárias e
arbitrárias. Ambas impedem a obra do evangelho, porque o que quer que esteja
produzindo inautenticidade, arbitrariedade ou formalidade sem vida é diretamente
contrário ao evangelho.
Na verdade, estou completamente surpreso com a tendência para “comunidade”
representada em tantas “conversas” recentes, seja nos livros, nos blogs ou entre
amigos. No livro A Igreja Reimaginada, o líder da igreja emergente Doug Pagitt
escreve:
Eu acredito que a comunidade é onde a verdadeira formação espiritual acontece. A maioria das
pessoas vem à fé não por meio de um esforço isolado, mas por meio do dia a dia com o povo da
fé, tal como seus familiares ou amigos... A comunidade como um meio de formação espiritual
serve para imergir as pessoas no modo cristão de viver, de maneira que elas aprendam como ser
crentes num processo de descoberta e mudança que dura a vida toda. A comunidade cristã pode
e deve ser um contexto para evangelismo e discipulado, um lugar onde a fé é professada e
vivida193.

Eu não poderia estar mais de acordo com essas observações. A comunhão da


igreja deve dar forma à nossa vida cristã e ser o contexto para o nosso evangelismo e
discipulado. E, para ser claro, essa formação espiritual não diz respeito
simplesmente a como manter as pessoas “no esquema”, como se nós todos
fôssemos apenas modelos úteis na vida uns dos outros194. Em vez disso, a
comunidade da igreja apresenta um exemplo de nossa nova identidade comum em
Cristo e depois dá uma nova forma às nossas identidades. Os autores Tim Chester e
Steve Timmis estão corretos: “Nossa identidade como seres humanos é
fundamentada na comunidade. Nossa identidade como crentes está fundamentada
na nova comunidade de Cristo.”195 Nós não frequentamos jantares em família
simplesmente porque é bom comer. Nós o fazemos por causa de quem somos —
membros da família. Nesse sentido, a tendência das confissões protestantes e das
descrições da igreja local tem sido apenas parcialmente correta toda vez que ela
limita o propósito da igreja local à edificação dos cristãos. A igreja também diz
respeito à adoração a Deus e a alcançar o mundo. A igreja local é o lugar onde as
novas identidades individuais e a nova identidade coletiva são exibidas, glorificando
a Deus e desafiando o mundo.
Além disso, eu me oponho ao que muitas dessas conversas estão se opondo —
uma concepção de igreja institucionalizada, dirigida pela programação. Em seu livro
Reimaginando a Igreja, Frank Viola descreve uma concepção institucionalizada da
igreja local e o que ele gostaria de ver no lugar disso:
Reconheço de bom grado que todas as igrejas (até mesmo as igrejas orgânicas) admitem algum
grau de institucionalismo. Mas estou usando a expressão “igreja institucional” num sentido
muito mais restrito. Ou seja, estou me referindo àquelas igrejas que atuam principalmente
como instituições que existem acima, além e independentemente dos membros que as povoam.
Essas igrejas são mais construídas sobre programações e rituais do que sobre relacionamentos.
Elas são altamente estruturadas; organizações tipicamente focadas no prédio e controladas por
profissionais destacados para isso, os quais são auxiliados por voluntários (leigos). Eles exigem
uma equipe, um prédio, salários e a administração. Na igreja institucional, os congregantes
assistem a uma apresentação religiosa uma ou duas vezes na semana, lideradas principalmente
por uma pessoa (o pastor ou ministro) e depois se retiram para os seus lares, para suas vidas
individuais196.

Viola, assim como um número crescente de pessoas hoje em dia, deseja algo
diferente:
Eu tenho um sonho de que inúmeras igrejas sejam transformadas de organizações comerciais
poderosíssimas em famílias espirituais — comunidades autênticas centradas em Cristo — onde
os membros se conheçam intimamente, amem uns aos outros incondicionalmente, sofram
profundamente uns pelos outros e se alegrem de forma infalível197.

O fato de escolher edifícios, salários e a administraçãopor atacado pode levar a


igreja a falhar em entender o que é importante, mas a partir do momento que esses
edifícios, membros de equipes e as programações impeçam o corpo da igreja, como
um todo, de se equipar para as obras do ministério (Ef 4.11 e ss.), creio que ele
esteja perfeitamente correto. Sugiro que o sonho dele, conforme foi articulado na
citação acima, é parecido com aquilo que o Novo Testamento descreve.
A preocupação com tantas conversas como essas se deve a que elas desprezam o
que é essencial junto com o que é ruim. Muitas delas estão reagindo contra uma
formulação desequilibrada somente para adotar outra. De todo modo, esse é o pior
exemplo dessa sequência histórica. O melhor exemplo dessa sequência histórica é
que elas se dirigirão para um modelo de igreja mais bíblico e previsível. O fato é que
algo está sendo perdido. Na verdade, a mesma coisa que tantos líderes de igreja
querem descartar (a autoridade) é exatamente aquilo que eles não devem descartar
para alcançar aquilo que estão buscando (relacionamentos que proporcionam vida e
comunhão).
Ponto 3: No entanto, Deus não é um Deus apenas de
relacionamentos, ele é um Deus de autoridade, e a autoridade
é o que mantém a igreja unida.

NÃO APENAS RELACIONAMENTOS, MAS AUTORIDADE


A pergunta sobre o que mantém as pessoas unidas é uma pergunta boa e
necessária.
Precisamos nos lembrar de que a Bíblia se preocupa com outra pergunta
também, a saber, como o povo de Deus é distinguido. No entanto, a Bíblia
demonstra claramente uma preocupação com o fato de atrair e manter juntas as
pessoas. O julgamento na Bíblia é geralmente retratado como uma dispersão ou
expulsão vinda de Deus. A redenção é retratada como o ato de trazer de volta e
manter junto. Na Torre de Babel, vemos a humanidade sendo dispersa. No
Pentecostes, vemos o Espírito Santo saindo e atraindo de volta pessoas de muitas
nações. Com relação a isso, os pastores e líderes de igreja enfrentam as perguntas
que os sociólogos e teoristas políticos enfrentaram ao serem confrontados com as
realidades do individualismo autônomo: como construímos uma comunidade?
Mas, conforme acabamos de dizer, “relacionamentos” ou “comunidade” não são
uma resposta satisfatória. Pelo menos, não em relação às igrejas, que é a nossa
preocupação aqui. Isso seria o mesmo que dizer que a autoconfiança é a solução
para a insegurança. Autoconfiança é o oposto de insegurança, o que não deixa de
fazer sentido, embora tire Deus de cena. Deixe-me explicar isso de um modo mais
bíblico, teológico e filosófico. Se fôssemos fazer uma busca pelas palavras bíblicas
que tratam de “relacionamento” ou “comunidade”, e outra pelas que tratam de
“obedecer”, “manter” ou “seguir”, não encontraríamos coisa alguma sobre as
primeiras, e muita coisa dedicada às últimas. Sim, a palavra comunhão pode ser
encontrada, mas isso prova o meu argumento, visto que a comunhão cristã é uma
comunidade cristã com uma forma centrada em Deus.
Deixando a pesquisa de palavras de lado, onde exatamente alguém pode
encontrar na Bíblia a ênfase nos relacionamentos, pura e simplesmente? A Bíblia
não enfatiza os adjetivos e os substantivos simultaneamente: relacionamentos
amorosos, relacionamentos santos, relacionamentos obedientes, relacionamentos
cheios do Espírito? Deus não criou os planetas para perambularem da forma como
eles quisessem, mas primeiro para terem uma relação com o sol e, depois, com os
outros planetas. Ele os criou para se moverem num relacionamento orbital com o
sol. Por essa razão, surge uma nova pergunta: que força produz os adjetivos? Que
força gravitacional obriga duas pessoas não apenas a se relacionarem, mas a se
relacionarem de uma maneira santa e amorosa? Alguma outra força deve dar
estrutura a esses relacionamentos, fazendo com que eles sejam amorosos, santos e
assim por diante. O que é essa força?
Teologicamente, Deus não está interessado simplesmente em relacionamentos,
mas sim em tipos específicos de relacionamentos. Ele criou a humanidade para
retratar e desfrutar os prazeres de sua glória. Por essa razão, ele chama a
humanidade para um relacionamento de obediência ou conformidade a essa
imagem. Os relacionamentos entre Deus e os homens e entre os homens e outros
homens devem servir ao propósito específico de retratar ou adorar a Deus. É isso o
que o amor deseja. É por isso que o amor anela. Por exemplo, o divino Pai anela pelo
divino Filho para retratar e desfrutar o prazer de sua glória. Desse modo, o Pai
transmite ao Filho toda a sua plenitude. É assim que o relacionamento divino entre
o Pai e o Filho é. Eles não são dois planetas vagando ao acaso, mas duas pessoas
permanecendo num relacionamento estruturado de uma maneira específica.
Considere também um pai e seus filhos. O pai expressa seu amor por seus filhos
não apenas pelo fato de estar num “relacionamento” com eles. Em vez disso, a Bíblia
diz que ele expressa o seu amor, nesse relacionamento, treinando, encorajando,
exortando e disciplinando esses filhos. Mas o que dá ao pai o direito ou autorização
para treinar, encorajar, exortar e disciplinar seus filhos? Por que os filhos não
podem discipliná-lo?
Filosoficamente, essas questões ficam um pouco mais complicadas, mas deixe-
me tratá-las de forma muito breve, porque muitos escritores e palestrantes
evangélicos em nível profissional estão apenas imitando outros nessa questão da
“comunidade”, sem perceberem que as ideias em jogo têm vindo de conversas
acadêmicas, conversas essas que só poderiam jogar fora as pressuposições que esses
profissionais não querem jogar fora.
Por trás da discussão sobre a posição limitada e a posição convergente está uma
discussão mais complexa sobre a “ontologia essencial” versus a “ontologia
relacional”, o que envolve a essência do próprio Deus trino. Grosso modo, as
ontologias relacionais argumentam que Deus e o universo, no nível mais
fundamental, não são apenas seres ou substâncias, por si só, mas pessoas num
relacionamento. — Esse pano de fundo filosófico inclui nomes como Hegel,
Husserl, Whitehead e outros. Portanto, quando os teólogos absorvem essas
ontologias em suas obras teológicas, eles minimizam ou descartam a importância
da natureza de Deus e, no lugar dela, enfatizam o papel primordial da pessoa ou das
pessoas de Deus. Dizem, por exemplo, que o amor de Deus não deve ser tratado
como uma qualidade inerente de sua natureza, mas como uma qualidade inerente
(ou decisão) de sua pessoa. Para que o amor seja amor, ele deve ser dado
gratuitamente e não deve ser constrangido por uma “necessidade ontológica”198, o
que é uma forma fantasiosa de dizer que ele não pode simplesmente ser
constrangido pela natureza de uma pessoa ( “Ele ama porque é amoroso por
natureza; ele não pode fazer outra coisa senão amar.”). Visto que a natureza de uma
pessoa a constrange ontologicamente, dizem-nos para lançarmos fora a natureza
como parte constituinte do ser e tornarmos o relacionamento uma parte
constituinte do ser. Em outras palavras, nós não somos a nossa natureza, somos os
nossos relacionamentos. Isso preserva a liberdade de Deus — e, afinal, a nossa.
Há pelo menos três problemas com essa ideia. Em primeiro lugar, ao que parece,
isso torna deuses a liberdade e o amor. Nós não adoramos mais a Deus por causa de
sua natureza, nós o adoramos por causa da escolha que ele fez de amar, o que
significa que, de fato, adoramos o amor, a ideia de amor e o sentimento de sermos
amados, o que significa, por sua vez, que adoramos a nós mesmos.
Em segundo lugar, existe algo diferente acerca do meu relacionamento com
minha esposa e do meu relacionamento com uma cenoura. Essas diferenças têm
muito a ver com aquilo que eu, minha esposa e a cenoura somos em essência. Não
estou dizendo que o meu relacionamento com minha esposa ou com a cenoura não
denuncia o que nós três somos. Com certeza denuncia. Até eu me casar com minha
esposa, ela não era uma esposa. Até eu cortar uma cenoura com a determinação de
comê-la, ela não é alimento. Mas em momento algum eu me casaria com uma
cenoura ou usaria minha esposa como guarnição de salada. Semelhantemente, o ser
de Deus não é definido simplesmente pelo fato de ele ser três pessoas num
relacionamento. Conforme consideramos no último capítulo, o fato de Deus ser
santo, ser amor e ser um é algo que está maravilhosamente firmado, estático e
determinado. Essas são qualidades inerentes à sua natureza. Isso nos leva ao
terceiro ponto.
O nosso Deus trino é uma pessoa num relacionamento, mas colocar isso dessa
maneira é reducionista. As três pessoas de Deus não estão simplesmente num
relacionamento um com o outro, elas estão num relacionamento santo. Ou seja,
esse relacionamento é determinado e firmado por sua natureza santa. É um
relacionamento com uma direção, um foco, um desígnio, um telos. O Pai está
totalmente firmado no amor pelo Filho em toda a sua perfeição; e também o Filho,
no amor pelo Pai; e ambos, no amor pelo Espírito; e o Espírito, no amor por ambos.
Deus é santo porque suas afeições são totalmente separadas do pecado e colocadas
sobre o amor à sua própria glória, acima de tudo. Os relacionamentos de amor entre
as três pessoas da Trindade são totalmente constrangidos pela natureza santa de
Deus. Em vez de falar de Deus como pessoas num relacionamento, poderíamos ser
mais bíblicos dizendo que Deus é três pessoas numa natureza santa. A ideia de
pessoas num relacionamento também é reducionista porque distinguir entre as
pessoas de Deus e sua natureza, embora seja útil para alguns propósitos, é, no final
das contas, uma abstração intelectual. De fato, não existe tal coisa como uma
“pessoa” desprovida de algum tipo de “natureza” para dar direção, movimento,
energia e essência a ela199. Tente imaginar isso se você puder.
Visto que Deus possui uma natureza santa, seus compromissos, por sorte, não
são dinâmicos, não importa o quão dinâmico o curso de nosso relacionamento com
ele possa ser (do lado humano). Ele é um Deus que guarda suas promessas porque
ele é um Deus santo e fiel. Se tomarmos toda essa conversa sobre relacionamentos
e comunidade de modo separado da natureza de Deus, de seu caráter e de seus
propósitos santos para a criação, acabaremos basicamente no relativismo.
Joguemos fora a natureza de Deus e estaremos jogando fora o seu caráter e seus
compromissos. Alguns teólogos se utilizam de um eufemismo, chamando isso de
“panteísmo” ou “panenteísmo”, mas o relativismo é a consequência lógica de um
Deus desprovido de uma natureza determinada, uma natureza definida
principalmente pelo “relacionamento”. Se ele nada mais é do que uma pessoa num
relacionamento, o que o impede de ser tirânico ou obsessivo-compulsivo, ou um
entusiasta barulhento, ou qualquer outra coisa?
Felizmente, a nossa vida tem um propósito, ou seja, alcançar o prazer de retratar
aquele que é perfeito em santidade, justiça, retidão e amor. Por essa razão, não são
necessários apenas relacionamentos restaurados, mas sim um governo restaurado
— um novo reino. A autoridade de Deus é a força que dá estrutura aos nossos
relacionamentos. Ela é para os seres humanos aquilo que a força gravitacional do
sol é para os planetas. A fim de responder à questão sobre o que mantém a igreja
unida, precisamos, portanto, voltar à autoridade e ao amor santo.

Ponto 4: O que é a autoridade e como ela se relaciona com o


amor? Autoridade é a autorização que temos de Deus para
criar e organizar a vida.
O GOVERNO DO AMOR
ADÃO COMO REI
A controvérsia da autoridade atinge o cerne de nossa existência. Nós fomos
criados para governar. Essa ideia está lá em Gênesis 1. Deus criou Adão e Eva à sua
imagem, e depois lhes deu domínio sobre toda a terra. Ele até mesmo lhes disse para
sujeitá-la (Gn 1.28). Ao exercer a autoridade, a humanidade retrata Deus, pelo
menos em parte.
Em Gênesis 2, Deus trouxe todos os animais diante de Adão para que ele pudesse
examiná-los e dar nomes a eles. Ao dar nome a algo, observamos isso de modo geral,
alguém define e estabelece o curso daquilo que nomeou. Alguém exerce autoridade
sobre aquilo. Deus também disse a Adão para “cultivar” e “guardar” o jardim. O
jardim era o território de Adão, e Adão deveria ser o seu primeiro conquistador em
nome do amor santo de Deus.
Em outras palavras, Deus deu a Adão autoridade sobre um pedaço de terra —
direito para fazer coisas ou exigir que coisas fossem feitas ali200. A autoridade não é
apenas poder. Ela é legitimidade para exercer o poder. Ela é a autorização para
realizar uma tarefa específica, para agir com uma capacidade especial, para buscar
um propósito específico201. Todo ser humano foi criado e autorizado a exercer
autoridade, a exercer o governo divinamente sancionado. Num sentido muito real,
poderíamos dizer, então, que a autoridade, conforme Deus a planejou no jardim,
nada mais é do que o direito dado por Deus a nós, seres humanos, de tomarmos
decisões e agirmos de uma forma que retrate a Deus, sancionada por ele, não
importa o quão importante ou insignificante essa decisão possa parecer. O fato de
um homem comer e beber para glória de Deus não é um exercício de autoridade
qualitativamente inferior ao fato de outro homem comandar exércitos na
construção de vinhas, casas, jardins e parques, se ele comandar os exércitos no
temor do Senhor (veja Ec 2.4-5, 11.13; 1 Co 10.31). Os domínios desses dois
homens podem variar sensivelmente de tamanho, mas ambos cumprem igualmente
o mandato de Adão para exercer um domínio amoroso.
Ser um ser humano, de acordo com Gênesis 1, é governar algo, mesmo que sejam
apenas os pensamentos dentro de sua cabeça. É por isso que está subentendido que
Adão e cada um de seus filhos devem ser um tipo de rei.
Será que o fato de Deus ter concedido o domínio a Adão e Eva lança as bases para
qualquer imperialismo político? Para a exploração econômica? Para a degradação
ambiental? Para a monopolização dos negócios? Para a degradação social? Essa
questão nos leva mais adiante no enredo da história da Bíblia e nos obriga a
considerar o fato de que, a partir de Gênesis 3, Adão e Eva buscaram uma
“legitimação alternativa” para o seu poder de decisão, conforme os sociólogos
poderiam dizer202. Desde a queda, a humanidade tem procurado legitimar ou
justificar suas decisões e ações por meio de algo que não seja a palavra e a vontade
de Deus. O que resultou disso foi um mundo arruinado e amaldiçoado onde,
primeiramente, o exercício da autoridade humana não é necessariamente eficaz. O
homem ganha o seu sustento somente com o suor de seu rosto (Gn 3.17-19). Em
segundo lugar, o exercício da autoridade pela humanidade pós-queda, em certo
sentido, nunca é legítimo203. Ele é invariavelmente pecaminoso, porque o homem
usa o seu poder de decisão para buscar algo diferente da glória de Deus. Em terceiro
lugar, o exercício da autoridade pela humanidade pós-queda envolve uma rejeição à
autoridade de Deus e a quaisquer mediadores que Deus possa enviar para falar em
seu nome (por exemplo, Sl 2, 24.1-2). Por exemplo, os pais têm uma autoridade
dada por Deus sobre os seus filhos, mas os filhos, agindo com seu próprio senso de
legitimidade moral, rejeitam a autoridade de seus pais até que os pais exijam ou
incentivem que eles façam o contrário204. Adotar uma estrutura de autoridade
alternativa significa necessariamente desmantelar e destruir a antiga205. Um
homem não servirá a dois senhores (Mt 6.24). Portanto, num certo sentido, é
verdade que a ordem de Deus para Adão e Eva dominarem e subjugarem lança a
base para cada abuso de autoridade na história, mas não de modo absoluto.

ADÃO É COROADO DE GLÓRIA


Adão e Eva utilizaram mal a autoridade que lhes havia sido dada e abusaram dela
por confiarem na autorização de outra pessoa, ou seja, na da Serpente (Gn 3.1-6).
Se no entanto considerarmos a ideia de autoridade conforme Deus a planejou,
encontraremos uma coisa completamente diferente daquilo que a humanidade tem
corrompido e abusado. O Salmo 8, um comentário inspirado sobre Gênesis 1.28,
deixa-nos extasiados com a admiração pela decisão de Deus de ter dado autoridade a
Adão e Eva.
O primeiro e o último versículos do Salmo 8 nos dizem que esse Salmo é
principalmente a respeito da majestade de Deus: “Ó SENHOR, Senhor nosso, quão
magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade...
Ó SENHOR, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome!” (Sl 8.1,
9). Em que o salmista vê a majestade de Deus?

Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que
é o homem, que dele te lembres?
E o filho do homem, que o visites?
Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois,
todos,
e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as
sendas dos mares (vs 3-8).
O salmista considera a magnificência do universo criado por Deus; ele considera
a estatura comparativamente diminuta do ser humano; considera o fato de que
Deus tornou cada filho e filha de Adão um governante sobre este universo, e ele
está maravilhado. Ele não pode fazer outra coisa senão proclamar em alta voz a
majestade de Deus. Ainda mais surpreendente, talvez, seja a linguagem que ele
utiliza para descrever o dom da autoridade dada por Deus à humanidade: Deus
coroou Adão, Eva e seus filhos com glória e honra — a própria glória e honra de
Deus compartilhadas conosco. Cada ser humano que já conhecemos ou que já
passou pela terra — coroado, por meio da criação, com a glória e a honra de Deus.
Que notável! Deus é onipotente, oniciente, infinito de todas as maneiras, mas ele
passou o governo da criação para nós, que somos finitos. O planeta Terra, Marte —
podemos nos saciar com qualquer coisa e subjugá-la (questões sobre escassez de
recursos à parte, no momento). Será que ele é como um pai dizendo ao seu filho:
“Construa esta casa na árvore comigo”, ou como uma mãe dizendo para a filha:
“Asse este bolo comigo”, mesmo que os pais saibam que as crianças não o farão tão
bem206? O governo que Deus dá a Adão não é outra coisa senão generosidade.
Cuidado, compartilhamento da glória, concessão de honra — ele usa sua autoridade
para autorizar. Ele se inclina, forma-nos e diz: “Você, governe em meu nome. Eu lhe
darei tudo o que você precisar. Eu o guiarei, porque desejo que você compartilhe do
prazer do meu trabalho e da minha glória.” Deus deseja que compartilhemos de sua
glória, porque à medida que fizermos isso, retrataremos ou exibiremos sua glória
para todos.
Em resumo, podemos ver a majestade Deus à medida que refletimos sobre sua
autoridade e sobre o modo como ele tem usado sua generosidade para criar a vida e
abençoá-la com sua própria glória e honra. Ó SENHOR, Senhor nosso, quão
magnífico em toda a terra é o teu nome.
O governo de Adão e Eva não era, portanto, para ser abusivo, um governo que
rouba a vida. Deus não os comissionou a dar origem a todos os grandes atos de
colonialismo, imperialismo ou autoritarismo que os pudessem suceder. Mas
exatamente para fazer o contrário. O governo de Adão e Eva deveria ser um
governo frutífero, desenvolvedor, capacitador, provedor e gerador de vida nos
outros. A raiz latina comum das palavras autor e autoridade fornece uma indicação
do propósito por trás da autoridade humana — gerar vida. Deus concedeu
autoridade ao homem, o direito de governar, a fim de produzir vida, assim como o
governo de Deus produz vida. O posto de governo, podemos dizer, é o direito que o
criador tem de criar. É tomar alguma coisa (ou nada, no caso de Deus) e lhe dar
ordem, forma ou função, com algum objetivo em mente — uma ordem, forma ou
função que não existia anteriormente. É o ensino do professor, o treinamento do
treinador, a maternidade da mãe. Ter autoridade é ter o direito e o poder de criar,
assim como o professor, o treinador e a mãe tem autorização para realizar suas
respectivas funções. Aquele que cria é normalmente aquele que tem o direito de
governar. O autor tem autoridade. É por isso que Deus, o criador, tem toda a
autoridade na criação; e é por isso que Cristo, o recriador, tem todo o governo na
nova criação. Outro rei, talvez melhor do que Adão, o rei Davi, assimilou a essência
de autoria e criação da vida da autoridade divina em suas palavras finais:
Aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz
da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz
brotar da terra a erva (2 Sm 23.3-4).

A autoridade usada de modo justo, no temor de Deus, é como o sol nutrindo a


grama e fazendo-a crescer. Ela gera vida. Ela produz crescimento.
De modo que deveria ser óbvia a razão por que Paulo diria que “não há
autoridade que não proceda de Deus” (Rm 13.1). Deus, pelo fato de ser o criador do
universo, é sua autoridade suprema (considere suas palavras finais a Jó). Como o
único “Eu sou”, a autoridade é intrínseca somente a ele. Todas as demais
autoridades neste universo, portanto, recebem sua autoridade da autoridade dele.
Nós somos apenas despenseiros, arrendatários, locatários, pastores; somos filhos, e
devemos prestar conta de toda a nossa autoridade a ele.
RESUMINDO O GOVERNO DO AMOR
Como, então, podemos resumir o governo do amor da forma como Deus o
planejou na criação?
O amor é uma afeição pela beleza de Deus e toda a sua perfeição. Ele é uma
resposta a essa beleza; é o desejo de se unir a essa beleza e de se identificar com ela;
é o desejo de que essa beleza continue a ser ressaltada e desfrutada por todo o
universo. O governo é a atividade de criar ordem, forma ou função com algum
propósito. A autoridade piedosa é simplesmente o amor em ação. Ela é aquilo que a
fornalha das afeições piedosas faz, à medida que essas afeições interagem para dar
ordem, forma ou capacidade à vida individual ou coletiva das pessoas, de modo a
elas poderem conhecer o bem supremo, que é Deus. Ela é o ensino do professor, já
que o professor deseja que seus alunos conheçam a beleza do mundo de Deus. Ela é
o treinamento do treinador, já que o treinador deseja que seus jogadores conheçam
a alegria de glorificar a Deus com sua habilidade e determinação. Ela é a
maternidade da mãe, já que ela deseja que seus filhos amem ao Senhor com seu
coração, alma e mente. A fornalha no coração do professor, do treinador e da mãe
piedosos arde pela glória de Deus; ela arde com amor por aqueles que foram feitos à
imagem de Deus; ela arde com ódio pelo pecado que os mata; ela arde para que
aqueles que estão sob a sua responsabilidade conheçam a alegria, a liberdade e o
prazer de estarem com Deus em sua santidade.
Por um lado, podemos dizer que o amor santo é a base para qualquer uso piedoso
e bom da autoridade. É ele que provê o propósito e a estrutura para a autoridade207.
Por outro, podemos dizer que a própria natureza do amor santo — o seu DNA —
exige um comissionamento, uma autorização, uma ação de autoridade. O amor santo
jamais fica ocioso. Ele age necessariamente para criar ou, se for preciso, para
recriar, em prol dos propósitos da glória de Deus, e esse ato de criação é o seu
comissionamento ou ação de autoridade.
Ó, mentira diabólica que fez os humanos desprezarem a ideia de autoridade! A
autoridade divina fundamentada no amor santo não enfraquece e não rouba a
verdadeira humanidade dos homens — ela faz exatamente o oposto disso. Ela cria o
ser humano e o autoriza a fazer parte (ou a imitar) daquilo que mais satisfaz — a
vida divina. O chamado para a obediência não é nada mais que um chamado para a
satisfação de retratar, de modo consciente, o Deus perfeito. O governo do amor de
Deus, seu chamado para a obediência, é um comissionamento — um grande
comissionamento. Deus nos equipa com todas as ferramentas da percepção e da
criatividade que precisamos para retratá-lo; ele nos entrega o planeta e depois nos
autoriza a nos encarregarmos de viver, amar, construir, cantar, conquistar,
investigar, cuidar e falar de tal modo que sua glória seja manifestada e exibida.
A autoridade humana deve ser fundamentada no amor santo, a fim de ser santa
e de agir de modo santo. Qualquer autoridade que nos tenha sido dada, quer seja a
autoridade de um pai, quer seja a de um vice-presidente financeiro, deve ser usada
para gerar vida em outros e para autorizá-los a governar. O governo que os outros
recebem de nós deve, por sua vez, ser usado para gerar vida em outras pessoas e
ainda para autorizar outros a governarem. E toda a nossa autoridade deve utilizar
qualquer autorização que lhe tenha sido dada para dirigir outros na direção deste
bem maior: Deus. Quando os dirigimos a Deus, onde quer que ele tenha se
revelado, autorizamos a vida nessas pessoas.
Para avançar em nossa narrativa, a pregação é, portanto, um exercício de amor à
autoridade, porque ela dirige as pessoas para a revelação de Deus. O discipulado é
um exercício de amor à autoridade, porque ele busca ver as pessoas se
conformarem à imagem de Deus. O evangelismo é um exercício de amor à
autoridade, porque ele dirige as pessoas para a salvação e para o governo do rei
supremo. O evangelismo é a única maneira para que os outros se tornem
verdadeiros governantes. Nós somos comissionados a pregar, a fazer discípulos e a
evangelizar; no entanto, pregar, disciplinar e evangelizar são, em si, um tipo de
comissionamento. Se as pessoas se ofendem com Deus e com sua autoridade,
deveríamos nos surpreender quando se ressentem com a pregação, com o
discipulado ou com o evangelismo?

Ponto 5: O que é submissão e como ela se relaciona com o


amor? Submissão é amar a Deus e dar-se a si mesmo para a
busca de sua glória.

A SUBMISSÃO DO AMOR
Temos definido a autoridade conforme ela foi planejada na criação. Ela é a
autorização para criar ordem, forma e função de acordo com as ordens do amor
santo. Como então definiremos submissão ou obediência de acordo com o que foi
planejado na criação?

ADÃO COMO SACERDOTE


A controvérsia da submissão atinge o cerne de nossa existência. Fomos criados
para nos submeter. Essa ideia está lá em Gênesis 1. Deus criou Adão e Eva à sua
imagem e depois os chamou para exibir essa imagem, não a imagem deles mesmos.
A humanidade retrata Deus através do exercício da autoridade, mas somente ao
fazê-lo de tal maneira que mostre ao mundo como ele é. A fim de que o ser humano
exerça uma autoridade perfeita, ele deve se submeter a Deus de modo perfeito. A
submissão precede a autoridade, ou, poderíamos dizer, o indivíduo piedoso as
exerce simultaneamente. O centurião romano, um homem com autoridade que
estava sujeito à autoridade, compreendeu isso perfeitamente bem (Mt 8.9).
Adão não era o rei principal, ele era o vice-rei, governando em nome do rei
principal. Usando outra metáfora, a qual é bem desenvolvida na história da
redenção, Adão era um sacerdote. Ele não era rei para que pudesse fazer o que quer
que desejasse. Ele era rei para que pudesse mediar o amor santo, o governo que
gera a vida e a glória de Deus. Ele era um sacerdote, chamado para retratar a
semelhança de Deus aos outros — ao cosmos.
Portanto, a submissão é a decisão da imagem de se coformar à imagem daquele
que a fez. Se fui criado para exibir o caráter justo e amoroso de Deus, submeterei
minha vida a esse propósito à medida que me encarregar das tarefas para as quais
Deus me criou. A submissão piedosa envolve obedecer aos mandamentos e às leis,
mas é muito mais do que isso. É amar a Deus de forma total, abraçar sua glória e
dar-me a mim mesmo e todos os meus recursos para a causa de sua glória. Assim
como a autoridade, a submissão é o amor em ação. Ela começa com o amor por Deus
e por tudo o que ele é. Ela começa com uma afirmação de sua beleza e bondade, e
com um anseio para se unir a ele e à sua bondade. A partir dessas afeições,
portanto, aquele que ama a Deus se coforma ou se submete à vontade de Deus, à
verdade de Deus e à vida de Deus.
Por essa razão, Jesus, que amava o Pai de modo perfeito, submeteu-se ao
máximo ao Pai. Semelhantemente, Adão deveria ter se submetido a Deus por amor
a Deus, e Eva deveria ter se submetido a ajudar Adão, já que ela deveria ter amado
não apenas Adão, mas também o Deus de Adão (veja Rt 1.16).
SUBMETER-SE A OUTROS HUMANOS
Então, falando em termos de submissão a outros seres humanos, podemos dizer
que a submissão é aceitar, como sendo uma exigência do amor, a autorização para
governar de quem está numa posição de autoridade. Se você tem autoridade sobre
mim em algum contexto específico, eu aceito a prerrogativa de que Deus lhe
incumbiu de estar à frente dos outros nesse domínio. Eu me submeto a agir de
acordo com a sua ordem. Submeto a mim mesmo e os meus recursos na busca dos
seus propósitos. Submeto-me a ser corrigido quando estiver agindo em desacordo
com sua ordem. Faço tudo isso porque amo a Deus e acredito que ele lhe deu
autorização para administrar as exigências de seu amor santo nesse contexto
específico.
Entretanto, visto que a submissão piedosa é uma ação do amor santo, a
submissão piedosa neste mundo jamais deve ser uma submissão apenas a outra
pessoa, o que seria idolatria. Sim, quando nos submetemos aos outros, nós o
fazemos dentro dos limites da capacidade deles como reis, mas esses reis não são os
reis supremos. Eles são reis com funções sacerdotais, o que significa que a
autoridade deles está simplesmente mediando a autoridade de outro. A submissão
piedosa a um ser humano é, de fato, uma submissão a Deus, pelo menos se Deus a
colocou de fato ali. Deus realmente dá a alguns, não a todos, a autorização para
governar sobre os outros, e nós devemos nos submeter a eles. Mas devemos fazê-lo
apenas em obediência a Deus e nunca ir além de onde a lei de Deus nos permite ir.
No final das contas, prestaremos contas a ele, não aos mediadores humanos.

GERAR VIDA OU AMEAÇAR A VIDA?


Num mundo caído, a linguagem da submissão aos propósitos de outra pessoa,
mesmo que seja aos propósitos de Deus, pode soar como assustadora. Afinal, ela
significa renunciar aos nossos planos e objetivos, o que parece aniquilar o nosso
potencial exclusivo e criativo. Deus não fez cada um de nós único? A submissão
simplesmente não acaba com isso? Com certeza, Deus tem a intenção de que
desenvolvamos a nossa individualidade e usemos os nossos dons únicos, certo?
Isso está perfeitamente correto, mas nós só desenvolvemos a nossa
individualidade e utilizamos nossos dons quando os submetemos aos propósitos de
Deus. Os nossos dons devem ser usados de acordo com o caráter dele. É exatamente
porque a nossa individualidade e os nossos dons únicos precisam ser desenvolvidos
numa direção santa que os submetemos como matéria-prima a ele e àqueles a quem
ele colocou sobre nós. Um aluno se submete ao professor e um atleta, ao treinador,
porque a matéria-prima precisa ser desenvolvida. Ou, assim como Adão, no jardim,
sabia que as petúnias precisavam ser cultivadas de uma maneira e as rosas de outra,
a autoridade divina normalmente governa solicitando que as pessoas ajam de
acordo com o seu projeto de criação. Isso ajuda o corredor a correr rápido, o
pensador a pensar de forma perspicaz e o dançarino a dançar de forma elegante.
Digo “normalmente”, porque, num mundo caído, às vezes, a autoridade piedosa
exigirá que façamos coisas nas quais não somos e nunca seremos bons. No entanto,
o governo de Deus sobre nossas vidas nos chama principalmente para aquilo que
fomos criados para fazer coletivamente — adorar a Deus em toda a nossa
diversidade exclusiva e talentosa.
A submissão piedosa, assim como o governo piedoso, está relacionada com a
criação. Nós submetemos a nós mesmos e os nossos recursos a outra pessoa por
causa da nova criação vindoura.
Eva, como auxiliadora de Adão, deveria assumir essa postura de modo mais
concreto.
Seu currículo total de dons, talentos e perspectivas deveriam ser usados na
administração de Adão, já que ambos buscavam empurrar as fronteiras do Éden e
da glória de Deus até os lugares mais longínquos do globo. Mas, finalmente, tanto o
governo de Adão quanto a submissão de Eva deveriam exemplificar duas posturas
que todos os seres humanos deveriam assumir em todo o tempo, numa variedade
infinita de maneiras, passando de um contexto para o outro.
Estando no topo, o Salmo 1 oferece a orientação básica para todo o Saltério e a
disposição principal que toda a humanidade deve ter em relação a Deus. Ele parece
recuar de volta ao jardim do Éden e apanhar o símbolo de fecundidade que é uma
árvore frutífera para ilustrar os poderes criativos expandidos por meio da
submissão da humanidade a Deus, usando estas palavras:
Bem-aventurado o homem
que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta
na roda dos escarnecedores.
Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR , e na sua lei medita de dia e de noite.

Ele é como a árvore


plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não
murcha; e tudo quanto ele faz será bem sucedido (Sl 1.1-3).

A submissão à lei de Deus, notavelmente, não extingue a vida do homem ou o seu


potencial único e criativo. Ela o multiplica. Ele é abençoado e por meio dele vêm os
frutos da bênção na vida dos outros. Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer,
afirmou Jesus antes de sua morte, não produz fruto (Jo 12.24). Para o homem,
tudo começa com o seu deleite, suas afeições, seu amor. Ele ama a Deus e a sua
Palavra.

RESUMINDO A SUBMISSÃO DO AMOR


Tanto a autoridade quanto a submissão são ações do amor santo de Deus. Elas
são aquilo que o amor santo realiza quando põe mãos à obra. A autoridade diz:
“Construamos um reino para a glória de Deus.” A submissão diz: “Eu ajudarei.”
Ambas dão e ambas recebem, mas, talvez, em ordem inversa. A autoridade dá
uma comissão e depois recebe o prazer da revelação de uma nova criação. “Isso é
bom. Isso é muito bom.” A submissão recebe a comissão e depois se entrega ao
prazer de criar aquilo lhe foi comissionado. Esse é o prazer de quem recebe a
comissão, porque a autoridade perfeita exige que ele crie somente aquilo que lhe foi
designado criar: “Sim, isso é bom, porque fui feito para fazer isso.” Esse é o prazer
que um músico sente à medida que compõe e que um escritor sente enquanto
escreve.
Será que a autoridade recebe mais glória do que a submissão por estar
encarregada da liderança? Essa simples pergunta omite o ponto de onde a glória
vem e a quem ela pertence. Paulo sabia disso: “Porque dele, e por meio dele, e para
ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente” (Rm 11.36).

Ponto 6: Ao mesmo tempo, nós desconfiamos da autoridade


com razão, porque o pecado, em sua essência, é o abuso da
autoridade que Deus deu às suas criaturas.

O NOSSO GOVERNO CAÍDO


Quando paramos para considerar o fato de que toda a tomada de decisão
humana pode ser entendida como submissão a Deus, por assumirmos sua
autoridade delegada, talvez possamos tropeçar em cinco lições surpreendentes
acerca do pecado e do que aconteceu com a autoridade após a queda.

O PECADO É ABUSO DE AUTORIDADE


Em primeiro lugar, o pecado é desobediência, mas também pode ser definido
como um mau uso da autoridade delegada a nós. O pecado é a apropriação indevida
do governo que Deus deu a Adão. Toda ação ou decisão que um ser humano faz “na
carne”, e não “no Espírito”, utilizando a linguagem de Paulo, é um abuso de
autoridade. O pecado é a autoridade exercida de modo incorreto ou legitimada de
modo incorreto. É governar no seu próprio nome em vez de em nome de Deus; por
meio do amor mundano em vez de pelo amor santo. Quer estejamos falando de uma
criança de cinco anos de idade, arrancando o brinquedo de sua irmã, ou de um rei
usurpando outro reino e escravizando os seus súditos, essa ação é qualitativamente
a mesma — houve abuso de autoridade; tanto a criança quanto o rei rejeitaram o
governo supremo de Deus e violaram suas respectivas mordomias.
Além disso, não deveria ser muito difícil perceber por que o nosso ódio pela
autoridade e pela submissão a Deus e à sua glória estão tão profundamente ligados.
A autoridade e a glória de Deus, embora sejam atributos essenciais de sua própria
natureza, são também prerrogativas apropriadas a ele por causa da criação. O cerne
de nosso pecado é a queixa que apresentamos contra essa prerrogativa, já que
queremos ser Deus (Gn 3.5). Não queremos nos submeter a nós mesmos nem a
nossa matéria-prima a esse senhorio. Preferiríamos criar por conta própria a nossa
retidão, o nosso sentido e dignidade, nossas próprias regras e nosso próprio
governo, porque assim, ao que parece, a glória seria nossa.

A AUTONOMIA E A TIRANIA SÃO FEITAS DA MESMA ESSÊNCIA Em


segundo lugar, o isolamento e a autonomia do indivíduo ocidental são
feitos da mesma essência que o abuso do tirano sobre as massas. Ambos
os indivíduos rejeitaram a autoridade de Deus e decidiram governar em
seus próprios termos. Felizmente, os efeitos catastróficos da rejeição do
indivíduo autônomo pela autoridade de Deus são mais refreados do que
os de um tirano, que é exatamente a razão pela qual acredito que os
cristãos devem afirmar determinadas tendências do liberalismo filosófico,
conforme eu faço, em relação à esfera pública. O liberalismo filósofo, na
melhor das hipóteses, é um mecanismo defensivo contra os
inescrupulosos — um intermitente poder de veto 208. No entanto, é
importante percebermos que o individualismo autônomo e as tiranias são
diferenças mais fundamentalmente de grau que de essência 209. Por mais
importante que essa postura defensiva seja para os cidadãos do Estado, os
cidadãos do reino de Deus devem ter uma visão diferente e mais
complexa em relação à autoridade.
Por casualidade, é irônico que tantos escritores hoje em dia pareçam culpar o
individualismo autônomo e o colapso da comunidade no Iluminismo ou no
pensamento contratual, como se essas coisas fossem problemas peculiares da
modernidade. O individualismo autônomo não começou com o Iluminismo ou com
o liberalismo filosófico. Ele começou com a resposta humana à aliança das obras de
Deus. Especificamente, Adão e Eva engoliram a mentira da Serpente e ficaram
determinados a ser iguais a Deus, conhecedores do bem e do mal, em seus próprios
termos (Gn 3.5). O que a mudança da pré-modernidade para a modernidade
significou, na verdade, foi que esse sussurro satânico ganhou uma credibilidade
moral e filosófica no assim chamado Ocidente cristão (embora ele sempre tenha
sido implicitamente defendido e praticado). O Iluminismo não nos trouxe um “livre
arbítrio radical” e o atomismo; Gênesis 3 o fez. O Iluminismo, no máximo, deu uma
legitimidade pública temporária a eles.

OS HUMANOS FARÃO MAU USO DA AUTORIDADE, E DEUS ODEIA ISSO


Há uma terceira e uma quarta lição que podemos aprender a partir do fato de
que todas as tomadas de decisão humanas são um exercício da autoridade delegada
por Deus e que o pecado é, por definição, um abuso de autoridade: Deus odeia o
abuso de autoridade, muito mais do que George Orwell odeia. E não somente isso,
mas Deus está muito mais desconfiado da autoridade humana do que eu estive
quando li 1984, ou do que qualquer filósofo liberal jamais esteve. Na verdade, Deus
está totalmente certo de que os homens abusarão de qualquer mordomia que lhes
tenha sido dada. Existe um presbítero ou uma congregação, um congressista ou
presidente, um pai ou marido que possa alegar, de modo justo, que nunca abusou
daqueles que estavam sob sua responsabilidade com uma passividade pecaminosa
ou atividade exagerada? Se a resposta for sim, essa pessoa está se autoenganando.
Com certeza, um dos primeiros passos para superar o abuso de autoridade é
aqueles que estão em posição de autoridade admitirem a propensão para a
exploração egoísta. Quer uma sociedade seja estabelecida por uma prerrogativa
real, por laços orgânicos de família ou amizade, quer por contrato individual, os
homens explorarão toda oportunidade que tiverem para dominar e tirar vantagem
uns dos outros. Após a expulsão de Adão e Eva do jardim, essa deve ser a primeira
lição da Bíblia, visto que Caim se levanta contra o seu irmão Abel e o mata. De fato,
essas são duas das mais importantes lições do Antigo Testamento: que os seres
humanos abusarão da autoridade e que Deus odeia isso.
Além disso, o potencial para uma pessoa causar dano aumenta à medida que mais
poder e autoridade são colocados em suas mãos. Os reis idólatras do Egito ou da
Assíria testificam este fato (por exemplo, Êx 1.8-22; Is 10.5-19), bem como os reis
de Israel. Desde Saul, em 1 Samuel, até Zedequias, em 2 Reis, todo rei de Israel usa
o poder para ganhos egoístas, até ao ponto de assassinato. Por essa razão, os
profetas de Deus acusavam os reis de Israel e os pastores que eram “como lobos que
arrebatam a presa para derramarem o sangue, para destruírem as almas e
ganharem lucro desonesto” (Ez 22.27)210.
Mas não são apenas as injustiças e os abusos dos líderes da nação que preocupam
a Deus. Assim como a advertência de James Madison contra as facções e as
advertências de Alexis de Tocqueville contra a “tirania da grande maioria”, Deus
censura publicamente tanto as tiranias que surgem das maiorias quanto a das
minorias: “Contra o povo da terra praticam extorsão, andam roubando, fazem
violência ao aflito e ao necessitado e ao estrangeiro oprimem sem razão” (Ez
22.29)211. Deus promete julgar todos esses abusos: “Por isso, eu derramei sobre
eles a minha indignação, com o fogo do meu furor os consumi; fiz cair-lhes sobre a
cabeça o castigo do seu procedimento, diz o SENHOR Deus” (Ez 22.31)212.
Deus é Deus de justiça e despreza a exploração de todas as formas. Na função de
rei, Davi afirmou: “O SENHOR é também alto refúgio para o oprimido” (Sl 9.9), e o
rei Josafá: “Não há no SENHOR, nosso Deus, injustiça, nem parcialidade, nem
aceita ele suborno. (2 Cr 19.7). Moisés disse: “Ele faz justiça ao órfão e à viúva e
ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt 10.18).
É interessante que o argumento final da luta do Antigo Testamento contra o uso
humano da autoridade desde a Queda é apresentado por Jesus. Certa ocasião em
que Jesus estava andando no templo, sua autoridade foi desafiada pelos principais
sacerdotes, escribas e anciãos (Mc 11.28). Ele respondeu com uma parábola que
resumia o erro básico deles. Ele os descreveu como arrendatários que não estavam
satisfeitos por serem arrendatários e queriam ser donos. Eles eram vice-reis
determinados a serem reis, por isso eles espancaram e mataram os mensageiros do
proprietário da terra, e mataram o filho e herdeiro do proprietário, pensando que
poderiam ganhar aquela terra (Mc 12.1-12). Esses representantes de Israel, esses
procuradores da nação e, de fato, da humanidade, não estavam contentes por serem
despenseiros do governo de Deus. Eles queriam seu próprio governo. Eles matariam
até o Filho de Deus para conseguir isso. E o fizeram. A crucificação do Filho de
Deus, esse fato culminante da história étnica de Israel, é um símbolo do ódio da
humanidade pelo governo de Deus, confirmado pela cumplicidade de Roma nesse
ato. A crucificação é um símbolo da maneira pela qual todo filho de Adão perverte a
justiça e abusa da autoridade para conseguir sua própria vontade. Ela é um símbolo
do ódio de Deus por tais perversões, bem como da forma estranha e inesperada com
que ele utiliza a submissão de seu Filho à maior injustiça da história para realizar
salvação e glória.
Para qualquer leitor da Bíblia que se considere “religioso” ou “justo”, e para
qualquer pastor, líder de igreja ou seminarista que a leia, a parábola dos
arrendatários é um banho de água fria. Nos evangelhos, o ataque contra o reino de
Deus e a essência da tirania são destilados em sua forma mais pura e, depois,
personificados — líderes religiosos, alvos da maior ira de Cristo.
O poder e a autoridade nas mãos de seres humanos caídos são uma espada de
dois gumes. Quando usados por causa do amor, produzem vida e criam ordem.
Quando usados por qualquer outro propósito, destroem aqueles que foram feitos à
imagem de Deus (veja Gn 9.6). Todo o Antigo Testamento ensina essa lição. A
crucificação de Cristo ensina essa lição.
Nem as regras, nem as instituições, nem qualquer forma de hierarquia nesse
mundo caído produzem, no final das contas, amor ou liberdade. Qualquer escritor
que coloque a autoridade em oposição ao amor conta com a história de todo o
Antigo Testamento para constrangê-lo. Na verdade, nós provavelmente deveríamos
dizer que a crítica do Antigo Testamento sobre a situação humana é muito mais
radical e categórica do que a de qualquer mestre da suspeita ou de qualquer
desconstrucionista pós-moderno. Não há nenhuma utopia de olhos embaçados na
Bíblia. Na verdade, a rejeição de Israel a Deus e o exílio transformam a história de
Israel em seu próprio tipo de distopia.

DESCONFIE DOS QUE ESTÃO POR CIMA E DOS QUE ESTÃO POR BAIXO
Em quinto lugar, a Bíblia nos chama para desconfiar tanto daqueles que estão em
autoridade quanto daqueles que se recusam a se submeter à autoridade — tanto
dos que estão por cima quanto dos que estão por baixo. Em certo sentido, conforme
diz o ditado, deve ser verdade que o “poder corrompe”. Maior poder e autoridade
leva a maiores oportunidades de pecado, o que pode levar a um coração mais
endurecido (pense no faraó). Ao mesmo tempo, deve ser verdade que uma pessoa
que recebe poder e depois abusa dele está simplesmente expondo a corrupção que já
está dormente em todo coração humano, a corrupção que odeia e rejeita a
autoridade de Deus. As pessoas se recusam a se submeter à autoridade, em parte,
somente porque temem a injustiça e o fato de serem prejudicadas. Esse foi o
embuste que Satanás usou com Adão e Eva. “Porque Deus sabe que no dia em que
dele comerdes se vos abrirão os olhos”, disse a Serpente, sugerindo que Deus estava
tentando negar-lhes algo que era deles por direito. De fato, foi sua cobiça pelo
autogoverno que induziu Adão e Eva a acreditarem na mentira.
A experiência deles é universal. Satanás nos diz: “Você será prejudicado se se
submeter”, ao que respondemos alegremente: “E não só isso, mas não serei capaz
de tomar e afirmar aquilo que é meu por direito.” A descrição do apóstolo Paulo
desse intercâmbio sugere que isso não era outra coisa senão uma conspiração (Ef
2.1-3).
Em resumo, uma doutrina resoluta sobre o pecado não só reconhece que o poder
corrompe, como também reconhece que ele corrompe aquilo que já estava
corrompido. Uma pessoa estará se autoenganando se desconfiar apenas daqueles
que estão no topo da hierarquia e não desconfiar dos que estão na base dela. A
Bíblia acusa a ambos.

Ponto 7: A vida, morte e ressurreição de Cristo apresentam


ao mundo um exemplo de autoridade redimida, uma
autoridade a qual ele, mais tarde, passa para o seu povo.
O GOVERNO REDIMIDO DO AMOR
Temos considerado apenas a compreensão bíblica sobre a autoridade em meio a
uma humanidade caída. Conduza o amor para o mesmo lugar que a autoridade e o
amor geralmente se achará machucado e espancado, assim como uma pessoa numa
jaula com um gorila mal-humorado. Mas o que dizer da compreensão bíblica da
autoridade em meio à humanidade redimida na igreja?
CRISTO REDIME A AUTORIDADE
O Antigo Testamento na verdade ensina que todos pecaram e falham em
glorificar a Deus com sua dominação, mas, de modo notável, ele também ensina o
contrário disso. De modo profético e tipológico, o Antigo Testamento aponta para
um tempo em que Deus incluirá outro filho de Adão no roteiro da história; que
governará exatamente como se esperava que o primeiro Adão o fizesse — com
“sabedoria e entendimento”, com “conselho e fortaleza”, “com conhecimento e
temor do Senhor” (Is 11.2). Na verdade, este filho de Adão não somente será
incluído na história, mas seu reinado criará uma nova era que produzirá uma
ordem e uma harmonia que relembrarão as do Éden — “O lobo habitará com o
cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito” (Is 11.6) — embora contando
com a presente era do mal. Esse rei, um rebento miraculoso do tronco de Jessé, que
foi cortado da linhagem do rei Davi, “não julgará segundo a vista dos seus olhos,
nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com justiça os
pobres e decidirá com equidade a favor dos mansos da terra” (Is 11.3-4). Talvez o
mais notável é que esse rei humano virá portando o nome, os títulos e os atributos
do próprio Deus e, portanto, a autoridade do próprio Deus.

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu;


o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz (Is 9.6).

O mais notável ainda é que esse rei vindouro exercerá um governo perfeito
porque estará em perfeita submissão ao Pai. Ele virá como um sacerdote, buscando
mediar a glória de outro. Deus dirá a ele: “Tu és o meu servo, és Israel, por quem hei
de ser glorificado” (Is 49.3); e ele, em perfeita humildade e submissão, dirá a Deus:
“Ele me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os
eruditos” (Is 50.4).
Portanto, Cristo veio como rei e sacerdote. Quando Jesus Cristo veio, ele
invocou Isaías explicitamente, quando anunciou: “Está próximo o reino dos céus”
(Mt 4.15-17, 11.4-6, 9-10, Is 9.1-2, 40.1-5, 61.1ss). Na vida e ministério de Jesus
Cristo, a autoridade de Deus foi retratada de modo perfeito, e a autoridade humana
foi redimida de modo perfeito. A autoridade de Cristo não roubou ou desperdiçou a
vida; ela a criou, gerou, capacitou e comissionou; e ela fez isso porque estava
perfeitamente fundamentada num amor santo por Deus e pelo povo de Deus.
Assim como o salmista louvou a majestade de Deus por conceder autoridade, glória
e honra à humanidade por meio da criação, o cristão pode louvar a majestade de
Cristo por conceder a sua autoridade, glória e honra à igreja por meio da
recriação213. Mais uma vez, o autor tem autoridade, mas somente o autor da
recriação tem autoridade entre os que foram recriados; e ele usa sua autoridade
para autorizar vida e governo aos outros, para a glória do Pai.

Jesus apresentou sua autoridade restauradora e doadora de vida “curando


toda sorte de enfermidades entre o povo” (Mt 4.23-25, 9.35).

Jesus recusou a tentação de Satanás para ter “todos os reinos do mundo e a


glória deles”, já que a adoração pertence somente ao Senhor Deus (Mt 4.8-10).

Jesus surpreendeu as multidões, “porque ele as ensinava como quem tem


autoridade” (Mt 7.28-29).

O próprio centurião romano, “homem sujeito à autoridade, tendo soldados às


suas ordens”, reconhecia a autoridade de Jesus e sabia que ele poderia utilizá-
la para curar o seu servo (Mt 8.5-9).

Os discípulos observaram que “até os ventos e o mar lhe obedeciam”, o que


aconteceu quando salvou os discípulos (Mt 8.27).

Os demônios estavam sujeitos às ordens de Jesus, e ele declarou ter amarrado


Satanás (Mt 8.29-32, 9.32-33, 12.28-29).

Jesus alegou ter “sobre a terra autoridade para perdoar pecados” e provou isso
ao curar o paralítico, levando a multidão a glorificar a Deus, “que dera tal
autoridade aos homens” (Mt 9.6-8).

Esse “Filho de Davi” e “Senhor do Sábado” estabeleceu um novo tipo de Israel:


“Tendo chamado os seus doze discípulos, deu-lhes Jesus autoridade sobre
espíritos imundos para os expelir e para curar toda sorte de doenças e
enfermidades” (Mt 9.17, 10.1, 12.18).

Jesus declarou que iria extinguir as principais alianças conhecidas pela


humanidade, além de alterar seus limites baseado unicamente em quem iria e
não iria amá-lo e em quem iria e não iria obedecê-lo (Mt 10.34-39, 12.50; também
8.22).

Jesus pronunciou julgamento sobre os seus inimigos (Mt 11.20-24).

Jesus não usou seu governo para impor um jugo pesado, mas um fardo leve,
que dá descanso, visto que ele é manso e humilde de coração (Mt 11.29).
Jesus contrastou de modo específico o seu governo com o governo dos
“grandes que exercem autoridade” ao “passar o domínio” para outros. Em vez
disso, ele “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos” (Mt 20.25, 26a, 28). O seu governo era um governo
sacerdotal. Ele dirigiu seus seguidores não apenas de volta ao rei prometido em
Isaías, mas também ao servo prometido em Isaías (cf. Mt 12.15-21; Is 42.1-3,
53.3-6).

Jesus declarou: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18).

Jesus veio para declarar um reino; amarrar o Diabo; demonstrar domínio sobre a
criação; libertar os cativos; curar os coxos; ressuscitar os mortos; chamar um povo
para si; conquistar a salvação e prenunciar uma nova criação e um sacerdócio real
para essa criação. Falando de forma geral, ele veio para reivindicar a identidade e as
prerrogativas do próprio Deus, incluindo a autoridade amorosa de Deus sobre tudo
o que ele criou214. Entretanto, Cristo exerceu seu governo entregando sua vida
como um sacrifício. Ele se levantou para liderar e, em seguida, rendeu-se aos
propósitos dessa liderança. O reino foi conquistado através de um ato de resgate
sangrento, e esse resgate produziu vida — uma nova vida e uma nova criação.

OS CRENTES RETRATAM A AUTORIDADE DE CRISTO


Como os convertidos e crentes poderiam e deveriam responder à autoridade de
Cristo?
Eles devem obedecê-la pura e simplesmente. Às vezes, o Novo Testamento utiliza
a linguagem da obediência; às vezes, a linguagem abnegação; e às vezes, a linguagem
do arrependimento; mas essas são maneiras de dizer a mesma coisa — submeta-se
ao governo invasivo de Cristo.
O argumento do último capítulo era acrescentar outra dimensão de significado a
essas ações. Argumentamos que essas ações da obediência são, de fato, as atividades
do amor. O amor e a obediência a Cristo andam juntos. Amar a Deus e ao próximo é
o que os habitantes do reino invasivo de Cristo fazem (cf. Rm 13.8-10). Nós
obedecemos ao que amamos. Quando o nosso coração aprecia algo, ele
automaticamente passa a cumprir suas leis ou exigências. Tudo isso pode ser
resumido dizendo que essa conversa envolve uma troca da sujeição de nosso
coração.
Há mais uma dimensão a acrescentar. Submeter-se a Cristo é ser autorizado por
Cristo a agir no lugar dele. Sua autoridade, por meio de nossa obediência como
crentes, guia-nos em nossa autoridade. Assim como Adão deveria ter exercido um
domínio que glorificasse a Deus, equipando seus filhos para exercerem um domínio
que glorificasse a Deus, Cristo também comissiona os crentes a exercerem uma
autoridade semelhante a dele. Ele os comissiona a criar, dar ordem e capacidade,
equipando outros a estenderem seu domínio até os confins da terra.

Jesus comissiona seus discípulos para agirem como sal e luz do mundo, de
modo que o mundo pudesse “glorificar a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.13-
16).

Jesus diz aos seus discípulos para não odiar; não explorar sexualmente os
outros; não se divorciar; não mentir e não pagar na mesma moeda (Mt 5.21-
42). Na verdade, eles devem amar seus inimigos e lhes fazer o bem exatamente
porque seu Pai celestial “faz vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.43-48).

De fato, Jesus resume toda a Lei e os Profetas dizendo aos seus seguidores que
fizessem aos outros o que eles queriam que fosse feito a eles (Mt 7.12).

Jesus chama as pessoas a deixarem tudo e perderem sua vida pelo fato de o
seguirem (Mt 8.22; 10.39; 16.24-26).

Jesus chama mais trabalhadores para a seara (Mt 9.37).

Jesus deus aos seus discípulos a autoridade para expelir demônios, curar,
ressuscitar mortos e pregar as boas novas do reino (Mt 10.1, 7-8).

Jesus diz ao seu povo para cuidar de seus filhos (Mt 10.42).

Jesus se identifica com aqueles que fazem a vontade de seu Pai que está no céu
(Mt 12.50).

Jesus dá autoridade à igreja para ligar e desligar (Mt 16.15-20).

Jesus dá autoridade à igreja para julgar a si mesma (Mt 18.15-20).

Jesus diz que separará a humanidade entre aqueles que cuidam do menor de
seus pequeninos irmãos e aqueles que não o fazem (Mt 25.31-46).

Jesus autoriza seus seguidores a fazer discípulos e a instruí-los (Mt 28.18-


20)215.

Jesus comissiona seus seguidores a exercerem sua autoridade. Isso significa que
eles devem curar; oferecer vida e não explorá-la; pregar; evangelizar; excluir; ligar e
desligar; ensinar; pronunciar julgamentos sobre os impostores; importar-se com os
outros e fazer discípulos. Eles devem fazer essas coisas em toda a terra, exatamente
como Adão deveria ter feito. Eles devem fazer tudo isso tomando suas cruzes e se
entregando totalmente a Deus. Eles o amarão ao máximo, buscando autorizar
outros a viverem a vida em seu reino. A Grande Comissão em Mateus 28 não é
apenas o último episódio do Evangelho de Mateus. Ela é o clímax desse Evangelho.
Ela é a síntese e o ápice da comissão dos discípulos. Todo o trabalho que Cristo
comissiona seu povo a fazer na terra culmina nesse ponto, porque nada neste
mundo pode ser um ato mais amoroso e autorizar mais a vida em relação aos outros
do que conduzi-los a um relacionamento de obediência a Deus e ajudá-los a crescer
na obediência. É por isso que evangelizar, pregar, disciplinar e implantar igrejas são
ações do amor e do exercício da autoridade que Cristo comissionou ao amor. É por
isso também que essas ações constituem o foco primordial da igreja.
Tornar-se um crente é submeter-se ao governo de Cristo — em todas as áreas da
vida. Os crentes passaram de um reino para outro. Não é o corpo de alguém que
mudou de lugar, como quando mudamos de um país para outro. É o coração e a
sujeição desse alguém que mudam. Quer os crentes comam ou bebam, comandem
exércitos na construção de vinhas e de parques, quer os crentes compartilhem o
evangelho, eles devem fazê-lo pela fé, para a glória de Deus.
Com tal submissão, vem a autoridade ou a autorização. Quando nos
submetemos a Cristo, ele nos autoriza a ir e a fazer o que ele faz. Ele nos
comissiona a exercer a autoridade amorosa de chamar outros para o seu reino.

DUAS REALIDADES OPOSTAS


A mudança de um reino para o outro envolve tudo. É como mudar de um campo
de energia para outro ou da força gravitacional de um corpo para a força
gravitacional de outro. Melhor do que qualquer uma dessas analogias é a linguagem
utilizada pelo teólogo Oliver O’Donovan. Ele descreve o reino de Cristo e o reino dos
homens como duas “realidades” diferentes. A autoridade criada/redimida e
autoridade caída estão fundamentadas em duas realidades diferentes. O homem
caído, diz O’Donovan, recusa-se a reconhecer a verdadeira realidade do bem
supremo, Deus. Em vez disso, “o pecado, por meio do qual o homem limitou a si
mesmo, é a determinação de viver de modo fantástico, na busca da ilusão.”216 Sua
vida é baseada numa mentira. As bases nas quais ele faz suas decisões e ações, ou
seja, sua percepção de que ele está autorizado a fazer o que lhe dá prazer é uma
ilusão. Mas, então, o governo de Deus chega abruptamente, trazendo esta realidade
com ele: “A autoridade da redenção se baseia em seu poder de determinar para esta
realidade presente no mundo, com a qual nos relacionamos, o que devemos
fazer.”217 Ela destrói a antiga e cria a nova:
O termo “autoridade” nos adverte que quando a redenção é apresentada a nós, ela não
encontra um vácuo. Ela encontra uma estrutura aparente de ordem, que é apresentada no
mundo; então ela a censura e transforma. Ela traz a verdadeira realidade para ser confrontada
com as aparências de realidades, as quais o nosso mundo... tem apresentado a nós. O efeito
disso é duplo: o nosso mundo é julgado e recriado218.
Eis o que acho que O’Donovan esteja dizendo: é como se a humanidade,
contratada como gerente de uma loja, entrasse na loja de Deus chamada “Criação” e
mudasse todas as etiquetas de preço, imprimindo para cada item uma etiqueta de
preço que estivesse totalmente fora do valor e do preço atribuído por Deus na
inauguração da loja. O que era barato se torna caro e o que era caro se torna barato.
A autoridade da redenção é a autorização para restituir o verdadeiro valor daquelas
etiquetas, uma ação que inevitavelmente será combatida pelos clientes, cujos
valores estão agora alinhados com os preços falsos.
Quando uma pessoa se torna um crente, todas as etiquetas de preço são
restauradas ao seu valor original. Antes, um homem gastaria toda a sua vida para
comprar este mundo. Agora ele sabe que não há proveito em um homem ganhar o
mundo inteiro e perder a sua alma. Antes, ele tinha que passar seus dias para lá e
para cá se perguntando: “Que comeremos? Que beberemos? Ouom que nos
vestiremos?” Agora, ele busca primeiro o reino de Deus e a sua justiça. Antes, ele
buscava o louvor dos homens. Agora, ele busca o galardão que vem do Pai que está
no céu. Antes, as riquezas do mundo. Agora, a pobreza de espírito. Antes, o riso.
Agora, o lamento. Antes, a bravata. Agora, a mansidão.
Por três razões que são relevantes para a membresia da igreja, gosto da ligação
que O’Donovan faz entre a autoridade e a linguagem da “realidade”. Em primeiro
lugar, ela comunica a disjunção entre uma visão decaída da realidade e da
autoridade e a visão redimida. É como se o descrente habitasse num mundo moral
de ilusões e miragens, enquanto o crente, comparado a ele, permanecesse entre a
parede de tijolos e sobre os pavimentos de concreto da verdade de Deus219. É uma
mudança total. Somente um desses dois pode ter a verdadeira autoridade ou
legitimidade moral para suas ações. Em segundo lugar, essa linguagem comunica o
quanto essa mudança envolve todas as coisas: somos confrontados com realidades
opostas. A realidade inclui todas as coisas. Em terceiro lugar, essa mudança é
dirigida e realizada por Deus. Essa mudança envolve não apenas mudar de uma
grade de interpretação para outra, de uma estrutura de legitimação para outra ou
de um conjunto de conversas para outro, embora essa mudança seja mediada por
essas realidades antropológicas. Em vez disso, “o Espírito Santo traz a ação de Deus
em Cristo, numa posição crítica à realidade falsamente estruturada na qual
vivemos. Ao mesmo tempo, e por meio dessa mesma ação, ele chama à existência
uma estrutura de existência nova e mais verdadeira.”220 A invasão começa de cima
para baixo, não de baixo para cima.
A autoridade redimida, assim como a autoridade criada, é uma coisa maravilhosa,
que oferece vida e que concede governo; que deve ser adotada pelo povo de Deus e
na qual ele deve se regozijar; ela é uma coisa radicalmente diferente daquilo que
todos temos encontrado de acordo com a autoridade caída. É por isso que os
nascidos de novo, os crentes habitados pelo Espírito Santo, podem voltar para a
nascente de todo o Saltério, o Salmo 1, e ler sobre o homem bem-aventurado cujo
“prazer está na lei do Senhor” (v. 2). Prazer na lei? De fato, se uma pessoa está
unida a Cristo pelo Espírito, ela saboreará cada vez mais cada palavra que vem da
boca de Deus.

Ponto 8: A igreja local é onde os crentes executam sua


submissão a Cristo e praticam seu governo amoroso para com
os outros.

O QUE ISSO TEM A VER COM A MEMBRESIA DA IGREJA?


Neste capítulo, estabelecemos que a autoridade fundamentada no amor cria
vida; que Cristo representa a autoridade de Deus e que o amor cristão é
demonstrado no exercício da autoridade de Cristo. Mas o que tudo isso tem a ver
com a membresia e com a disciplina na igreja? A resposta é simples: se a submissão
à autoridade produz crescimento, logo, o crente precisa de um lugar para
desempenhar a submissão a Cristo e para praticar um governo amoroso em relação
aos outros. A solução bíblica é que os crentes se submetam à membresia e à
disciplina de uma igreja local.
Qualquer charlatão pode dizer: “Eu tenho me submetido ao governo de Cristo.”
No entanto, a submissão é tão anátema e anti-intuitiva para nossa natureza caída
que podemos facilmente nos enganar, pensando que temos nos submetido a ele
quando, de fato, não nos submetemos. Como é fácil dizer as palavras: “Cristo é meu
Senhor”, mas viver isso é uma coisa totalmente diferente. As estruturas de
autoridade da igreja local oferecem ao cristão professo a oportunidade de cumprir
estas palavras: “Cristo é Senhor.”

UMA ILUSTRAÇÃO PESSOAL


Não estou totalmente certo sobre quando Deus me converteu, mas um de meus
melhores palpites é que isso aconteceu no contexto de muitas reuniões da igreja,
durante meus vinte e poucos anos. Fui criado em igreja por pais fiéis e chamei
Cristo de meu Salvador na tenra idade, mas raramente frequentei a igreja durante a
universidade, vivendo aqueles anos totalmente para mim mesmo e para as ambições
do mundo.
Até a conclusão da universidade, as muitas decisões lamentáveis tomadas no
ensino médio e na universidade me deixaram num estado de mal-estar espiritual.
Mudei-me para o distrito de Washington e decidi me unir a uma igreja batista que
havia sido recomendada por um amigo da universidade.
Quando me pediram para explicar a minha compreensão acerca do evangelho,
numa entrevista para me tornar membro, usei a expressão expiação substitutiva, a
qual tinha ouvido meu amigo utilizar, embora não estivesse certo sobre o
significado dessas palavras e esperasse que o pastor não me pressionasse em relação
a elas.
A Palavra de Deus era pregada poderosamente nessa igreja, apontando para um
Deus grandioso e um Cristo misericordioso. A aceitação por parte da membresia foi
gentil e calorosa. Um homem mais velho, chamado Dan, convidou-me para me
juntar à sua família todos os sábados para o café da manhã e um estudo em Isaías, e
eu era frequentemente convidado para jantar na casa dos membros da igreja. A
pregação, nesse meio tempo, era intrépida. Pouco a pouco minha cabeça começou a
mudar de uma direção para a outra.
Um momento decisivo aconteceu quando eu tinha pouco mais de um ano de
membresia. A igreja tinha acabado de votar a mudança de sua constituição para um
modelo de liderança com “pluralidade de presbíteros”, o que significa que uma igreja
é liderada por uma pluralidade de presbíteros, embora continue sendo
“congregacional”, porque a congregação detém a palavra final em questões
importantes, como a escolha dos anciãos. O pastor — nosso único presbítero —
colocou cinco indicações de presbíteros perante a congregação, numa reunião de
membros. De modo notável, todos os cinco homens falharam em alcançar o limite
constitucional de 75 por cento dos votos para o mandato. De minha parte, votei em
três e contra dois deles, basicamente por razões sem importância.
Quando a falha na votação foi anunciada, a igreja fez uma interrupção coletiva e
se perguntou o que o pastor faria em seguida. Uma semana mais tarde,
descobrimos: ele estava indicando os mesmos cinco homens e pedindo para que a
igreja votasse neles novamente. Eu estava horrorizado. Ele não havia dito que
éramos uma igreja congregacional? Ele não havia ouvido a opinião da igreja na
última votação? Quem era esse pastor para pensar que poderia ir contra a
“vontade” da igreja? Eu estava determinado a votar contra todos os cinco, dessa
vez,como um voto de protesto.
Uma semana antes da segunda votação, o pastor marcou um encontro instrutivo
a fim de discutir sua decisão de indicar novamente os mesmos cinco homens. Ele
nos disse que, permanecendo diante de Deus, ele não poderia, em sã consciência,
indicar outro grupo diferente de homens. E, como um dos presbíteros formalmente
reconhecido pela congregação, ele estava nos pedindo para confiar nele. Ele foi
muito claro e franco enquanto falava, estando obviamente convencido de sua
posição, mas não houve ansiedade ou impetuosidade em sua conduta, como se
tivesse que nos levar a ver as coisas à sua maneira. Não, ele estava simplesmente
nos pedindo para segui-lo.
Apenas para constar, agora conheço esse homem há treze anos, e essa foi a única
vez que me lembro de tê-lo ouvido pedir para confiarmos nele dessa forma. Ele não
joga a carta “confie em mim” com frequência.
Reconsiderando o passado, esse foi meu momento precioso de jovem
governante. Jesus não estava me pedindo para vender todos os meus bens a fim de
segui-lo; em vez disso, ele estava me pedindo para perder meu senso de decência
democrática e meu autogoverno. O pedido do pastor poderia parecer absurdo,
assim como o pedido para vender tudo. Mas pela graça de Deus, ele fazia sentido.
Algo mudou em meu coração, motivo pelo qual desejei afirmar a liderança desse
homem. E o fiz. Pensei comigo mesmo: “Se eu sou incapaz de me submeter a ele e
ser condescendente com ele, um homem que provou ser fiel, serei capaz de me
submeter a quem?”
Um ou dois anos após esta série de reuniões, a minha vida começou a mudar.
Meus desejos de estar com o povo de Deus se intensificaram significativamente.
Minha fome de vencer o pecado aumentou.
Um novo anseio de ver outros descobrirem Jesus e crescerem no conhecimento
dele se desenvolveu. Durante o mesmo período, a igreja começou a me delegar mais
responsabilidades — a chance para ensinar na escola dominical, oportunidade de
liderar os estudos bíblicos do grupo de homens, o cargo de diácono para o cuidado
com os membros. Por meio de meu ato de submissão, tornei-me uma vez mais um
tipo de administrador — alguém autorizado a desenvolver vida nos outros.
Existem duas maneiras de alguém explicar o que aconteceu comigo durante a
série de reuniões e dos anos que se seguiram. Um sociólogo poderia apontar para a
concepção de Max Weber sobre o líder carismático e as dinâmicas de grupo da
lealdade institucional, necessárias para o funcionamento de todas as organizações
sociais. Outra explicação, que não precisa rejeitar completamente a primeira, mas
que também vê os acontecimentos com os olhos da fé, diria que eu poderia ter sido
convertido por Deus através da própria decisão de me submeter à autoridade
daquele pastor, votando naqueles cinco homens.
ARREPENDIMENTO
Considere novamente as palavras de Jesus ao jovem rico, bem como em todas as
ocasiões nas quais ele chamava os pecadores ao arrependimento. Abandonar o
nosso autogoverno e nos submeter ao governo de Cristo quase sempre significa
abandonar algo na terra — algum ídolo feito pelo homem que tem ocupado o papel
de Deus até aquele ponto. O ídolo do jovem rico era o dinheiro. O meu, logo após
terminar a universidade com um diploma em filosofia política e teoria democrática,
era o orgulho intelectual e a autonomia pessoal. Em ambos os casos, Deus nos pediu
para nos submetermos fazendo algo que, para o homem natural, parecia ultrajante.
Todavia, esse é o próprio ato de submissão a Deus, muitas vezes mediado por uma
autoridade terrena, o qual produz vida espiritual.
Não é nada menos do que trágico, portanto, quando a igreja ou um pastor aceita
uma filosofia de evangelismo, de discipulado e de vida da igreja totalmente baseada
no fato de oferecer incentivos para que as pessoas venham a Jesus. É fácil fazer
isso, porque nenhum ponto de vista autoritário é exigido. Nenhuma ordem para se
arrepender ou se desviar do pecado é necessária. Apenas ofereça às pessoas aquilo
que elas já querem, como um sentido, amor, sucesso, relacionamentos ou
propósito. No entanto, a vida nova não vem quando oferecemos às pessoas aquilo
que elas já desejam. Dar às pessoas aquilo que elas desejam simplesmente confirma
sua vida antiga. As pessoas adquirem a nova vida ao serem informadas de que a vida
antiga tem que morrer, e que coisas novas devem ser desejadas. Infelizmente, essa é
uma declaração autoritária. Ela é uma ordem, e odiamos ordens.
A vida cristã começa quando nos arrependemos e cremos (Mc 1.14). Começa
quando nos desviamos de nosso próprio governo e nos submetemos ao governo de
Cristo. Isso significa reconhecer que a realidade na qual acreditamos um dia é uma
ilusão. Agora nós vivemos e respiramos, trabalhamos e nos divertimos, crendo
numa nova realidade, num novo governo. Reconhecemos que as etiquetas de preço
de todas as coisas no universo são diferentes das que pensávamos ser um dia. Todos
os nossos relacionamentos e ambições se inclinam na direção de novos propósitos,
como se um sol novo e maior surgisse em nosso sistema solar. Tornar-se um crente
significa começar a amar, pela primeira vez em nossa vida, como Deus
verdadeiramente planeja que amemos. Significa que experimentamos as primeiras
impressões de que o amamos com todo o nosso coração, alma, mente e forças, e ao
nosso próximo como a nós mesmos. Esse amor ainda não é uma incandescência,
mas as centelhas dessas afeições estão agora acesas em nossa alma.
Os evangélicos geralmente falam sobre tornar-se um cristão “entrando num
relacionamento com Cristo”. Em certo sentido, isso é verdade. Além disso, também
é verdade que a vida e a realidade são relacionais em seu nível mais básico, assim
como Deus é um ser num relacionamento. Mas creio que seria mais bíblico (à luz do
mandamento para nos arrependermos) dizer que, ao se tornar um cristão, um
indivíduo entra num novo tipo de relacionamento com Cristo. Afinal, o descrente está
num relacionamento com Cristo. É simplesmente um relacionamento tipificado
pela rejeição, rebelião e, consequentemente, pela ira de Deus. A diferença entre um
cristão e um descrente não é principalmente uma questão de relacionamento, é
uma questão de autoridade e amor. É uma questão das sujeições do coração.
Isso significa que os defensores de um modelo de igreja de posição convergente
estão meio-certos. A entrada de uma vida na igreja deve significar mais do que
apenas cruzar alguma linha divisória doutrinária. Se a igreja estiver praticando a
membresia dessa forma, ela deve se arrepender, porque está fomentando a
hipocrisia. A membresia da igreja, pelo menos conforme Jesus planeja que ela seja,
diz respeito, na verdade, a cultivar um relacionamento com Cristo e a caminhar
continuamente na direção de Cristo, conforme o povo da igreja de posição
convergente diz. Isso deve significar a troca de uma realidade por outra, de um
governo por outro, de um conjunto de etiquetas de preço por outro. Nada na vida
de uma pessoa ficará sem ser afetado. Pertencer a uma igreja não diz respeito
apenas a caminhar na direção de Cristo de um modo vago e relacional. É muito
mais. Diz respeito a coformar nossas vidas cada vez mais à imagem dele. Diz
respeito a obedecer seus mandamentos como um estilo de vida. Diz respeito a se
arrepender, e se arrepender de novo, e se arrepender de novo, a buscar em todo
tempo uma maior conformidade à sua imagem gloriosa.
Qual é o mecanismo terreno para mediar esse arrependimento contínuo? Onde
encontramos as estruturas de autoridade que nos oferecem a oportunidade de
desempenhar nossa submissão a Cristo e de praticar seu governo amoroso por meio
do ensino, do discipulado e da disciplina? É na vida da membresia de uma igreja local
a que nos submetemos e que, ao mesmo tempo, governamos.
Creio que os evangélicos podem considerar a membresia da igreja com
arrogância ou até mesmo com desdém por assumirem que seu discipulado pessoal
com Cristo e sua membresia na igreja são coisas totalmente separadas. O que
argumentarei nos próximos dois capítulos é que a membresia da igreja é onde e
como o nosso discipulado com Cristo acontece. A membresia da igreja deve dar
forma a toda a nossa vida. Isso acontece assim porque não são só os
relacionamentos que dão substância à vida cristã, é a autoridade de Cristo, mediada
por outros seres humanos.
Quando entramos na igreja, entramos numa realidade completamente nova,
uma realidade com fronteiras e um centro. Essa nova realidade, se for de fato nova,
será bem diferente. Tudo o que diz respeito a nós deve ser diferente. Por essa razão,
nossas palavras, símbolos e até mesmo os nossos governos institucionais devem
indicar essa diferença.
Ponto 9: A igreja local é uma nova realidade, com fronteiras
distintas e um centro.
AS FRONTEIRAS DA IGREJA
A membresia na igreja começa, portanto, com o ato de submeter-se ao batismo.
“Arrependei-vos e sede batizados”, foi o que Pedro disse às multidões que lhe
perguntaram o que deveriam fazer para serem salvas (At 2.38). Isso significa que o
batismo nos salva? Não, isso é o que Cristo ordena que o novo crente faça como o
seu primeiro passo de obediência a ele. Isso simboliza a submissão de uma pessoa a
Cristo e sua união com ele em sua morte e ressurreição, mas isso acontece por meio
da submissão dessa pessoa à autoridade e à supervisão de seres humanos na igreja
local. Somente após nos submetermos à igreja é que estamos autorizados a
proclamar a mensagem do seu evangelho a outra pessoa e ao mundo.
Em outras palavras, a igreja local deve ter fronteiras bem claras. Do lado de
dentro devem estar aqueles que se arrependeram e foram batizados (e recebem a
Ceia do Senhor), do lado de fora devem estar aqueles que não fizeram isso ou que
foram excluídos. Mas essa linha divisória é exatamente a coisa que, hoje em dia,
deixa tantas pessoas irritadas, como os que defendem uma igreja de posição
convergente em oposição a uma igreja com fronteiras determinadas.
O problema com as igrejas com fronteiras determinadas, diz o antropólogo Paul
Hiebert, é que elas tentam classificar as pessoas de acordo com o que as pessoas são.
Há, pelo menos, dois problemas em se fazer isso, afirma ele. Primeiro, o fato de a
classificação das pessoas de acordo com o que elas são basear-se nas concepções
estáticas herdadas dos gregos e não na visão bíblica relacional a respeito dos seres
humanos, conforme já discutimos. Segundo, a exigência de fazermos nossas
melhores suposições em relação às pessoas, já que não podemos vê-las como Deus
verdadeiramente as vê. Isso leva a igreja com fronteiras determinadas a se
perguntar continuamente: “As crenças e o comportamento dessa pessoa estão em
conformidade com aquilo que pensamos que torna alguém um cristão?” Em
consequência disso, a igreja concentra toda a sua atenção em patrulhar os limites,
certificando-se de que as pessoas justas estão do lado de dentro e as pessoas
injustas estão do lado de fora221.
O problema com esses argumentos é que Jesus diz que uma pessoa deve nascer
de novo para entrar no reino de Deus. Paulo diz que a pessoa deve ser uma nova
criatura. Por essa razão, as igrejas devem estar extremamente interessadas naquilo
que as pessoas são. Elas são regeneradas? São novas criaturas? Embora as igrejas
certamente não vejam o que Deus vê num crente professo, Jesus ainda ordena que
a igreja batize seus discípulos (Mt 28.19-20). Aparentemente, as limitações
epistêmicas inerentes a nossa limitação e decadência não o preocupavam tanto, pois
ele decidiu se abster dessa autoridade. Na questão em que os defensores da igreja de
posição convergente desejam criar classes de crentes em vários estágios de
jornada222, a Bíblia enxerga apenas dois: o crente e o não crente, os filhos de Deus e
os filhos do diabo, os batizados e os não batizados. A igreja é chamada a traçar uma
linha — um limite — exatamente entre eles.
Não estou sugerindo que as pessoas não possam vir à fé gradualmente ou, até
mesmo, transferir sua sujeição para Cristo de modo gradual. É isso o que vemos
acontecer com os discípulos de Jesus, à medida que seus olhos se abriram, não
instantaneamente, mas de modo progressivo. Jesus parece ter ilustrado a fé
crescente deles por intermédio da cura de um homem cego em duas etapas (Mc
8.22-26). É assim que eu caracterizaria a minha própria conversão. Eu a percebi
como um processo, uma jornada, uma mudança gradual, com alguns momentos de
destaque. Pode ser que minha experiência, assim como a dos discípulos e a do
homem cego, fosse gradual porque o dom da visão espiritual estava sendo dado por
Deus gradualmente (embora eu acredite que a justificação e a regeneração tenham
ocorrido num momento decisivo).
No entanto, não devemos perder de vista o fato de que a igreja representa
publicamente uma realidade alternativa para o mundo. Nós temos que cruzar a
fronteira. Queremos estar do lado de dentro, não do lado de fora dessa nova
realidade. Deus realmente salva pessoas. O Espírito, de fato, as torna novas
criaturas. Cristo realmente as faz passar da morte para a vida, e ele autorizou
claramente a igreja, conforme consideraremos no próximo capítulo, a representar
publicamente essa realidade alternativa. Independentemente de a decisão das
pessoas de trocar de sujeição ser gradual ou imediata, uma questão surge quando
elas devem decidir mudar de camisa: “Você tem jogado pelo time vermelho. Você
tem pensado em passar para o time azul. Então, em qual deles você ficará — no
vermelho ou no azul?” A conversão acontece no momento em que essa decisão é
tomada.
O batismo, portanto, significa vestir a nova camisa. É quando nós nos
identificamos publicamente com a morte e a ressurreição de Cristo, por meio da
autoridade que a igreja representa. Todos os pensamentos e a nossa jornada vêm à
mente nesse momento. Por meio da igreja, Jesus nos pergunta se morreremos para
nós mesmos e para o nosso próprio governo, se seremos sepultados com ele e se
cofiaremos que ele nos ressuscitará com ele, em conformidade com um poder e um
governo novos. Talvez Jesus tivesse a indecisão humana universal em mente
quando comissionou a igreja a batizar. Quem sabe ele tivesse em mente
principalmente o medo pós-moderno de compromisso. De qualquer forma, o que
fica claro é que as igrejas contemporâneas, em seu esforço para se contextualizar e
exercer compaixão, podem, de forma involuntária e desafetuosa, aviltar o seu
Senhor, à medida que dizem aos pecadores que eles não precisam tomar uma
decisão quanto àquilo para que o Senhor os está chamando.
Ponto 10: Entretanto, devemos sempre ter em mente que a
autoridade, neste mundo caído, é complexa e ao mesmo
tempo mista.

A NATUREZA COMPLEXA DA AUTORIDADE AQUI E AGORA Ironicamente,


a controvérsia epistemológica que Hiebert levanta abre caminho para
ambas as coisas. É verdade que a igreja não pode ver, com os olhos de
Deus, dentro do coração dos professos. Portanto, mais uma vez, é
exatamente por causa dessa limitação que Jesus não deixa os indivíduos
encarregados de determinar quem realmente falou em nome de seu
reino. Em vez disso, ele estabeleceu a igreja e deu expressamente essa
autoridade à igreja. Será que Hiebert supõe que os indivíduos podem
perceber adequadamente a opinião de Deus acerca deles mesmos ou de
seu próprio coração? Suponho que a resposta a essa pergunta se resume a
sabermos se a doutrina que alguém tem acerca do pecado contém a
possibilidade de autoengano.
Sem dúvidas, a realidade, nesta era entre a ascensão de Cristo e seu retorno, é
difícil de discernir. A autoridade redimida, assim como a autoridade criada, poderia
ser maravilhosa, uma força doadora de vida, mas a autoridade caída continua sendo
uma força igualmente poderosa neste mundo. Quando Deus invadiu o mundo, em
Cristo, ele não substituiu simplesmente uma realidade pela outra. As duas
realidades se tornaram simultâneas, assim como dois projetores de filme lançando
sua luz sobre a mesma tela. Nem sempre é fácil discernir onde uma imagem na tela
acaba e a outra imagem começa ou qual dos projetores está projetando qual
imagem.
O exercício da autoridade entre o povo de Deus, portanto, continuará sendo um
assunto complexo até a volta do Senhor, porque o nosso mundo continua a nos
apresentar, ao mesmo tempo, exemplos de autoridade redimida e de autoridade
caída, e também porque os cristãos que ainda estão no pecado são capazes de ter os
dois tipos de autoridade. A autoridade boa e piedosa existe, de fato, neste mundo —
ela entrou na história uma vez mais — mas nem sempre é fácil discernir com o que
a autoridade piedosa se parece quando comparada à autoridade mundana, muito
menos praticá-la. É só considerar a igreja em Corinto. Por um lado, os cristãos
coríntios sofreram com uma percepção exagerada de sua vitória e de seu governo
em Cristo, conforme testificado pela exclamação exasperada de Paulo: “Já estais
fartos! Já estais ricos! Chegastes a reinar sem nós! Sim, tomara reinásseis para que
também nós viéssemos a reinar convosco!” (1 Co 4.8)223. Por outro lado, Paulo tem
que repreender o corpo da igreja por seu fracasso em exercer exatamente o tipo de
autoridade coletiva que deveria ter exercido na vida de um homem (5.4-5). A moral
dessa história é que é muito fácil para as igrejas, em nome da piedade, exercer uma
autoridade mundana enquanto falham totalmente em exercer a autoridade piedosa
para a qual foram chamadas. Na verdade, qualquer exercício de autoridade
conhecido pode ser ao mesmo tempo fundamentado no amor a Deus e no amor ao
mundo.
Num nível popular, os evangélicos, de modo geral, falam sobre “liderança servil”
como se essa fosse a frase mágica que alcançasse o equilíbrio e respondesse a todas
as perguntas. Mas o que normalmente segue essa frase é uma descrição do que
significa servir, com pouca explicação dada sobre o que significa verdadeiramente
liderar ou exercer autoridade. Será que a autoridade piedosa é nada mais que
serviço, sinônimos com significados unívocos?
Entre os teólogos, os escritores às vezes farão distinção entre diferentes tipos de
autoridade, tais como a “autoridade do conselho” versus a “autoridade da ordem”, ou
“autoridade política” versus “autoridade espiritual”. Na verdade, existem diferentes
tipos de autoridade para diferentes tipos de situações. Mas o fato de passar muito
rapidamente para tais distinções omite a questão de que a autoridade, em qualquer
domínio, com qualquer capacidade, pode ser exercida de maneira piedosa ou
mundana. Se compararmos as ações de uma autoridade piedosa com a de uma
autoridade mundana, elas, na verdade, podem parecer a mesma coisa (dentro de
certos limites morais). Jesus deu mandamentos, pronunciou julgamentos e
afirmou suas prerrogativas, assim como qualquer príncipe ou primeiro-ministro o
faz. Mas Jesus amava seus súditos ao máximo, para a glória de Deus. A intenção
dele era diferente, mesmo quando algumas de suas ações eram parecidas com a das
outras autoridades, o que não é o mesmo que dizer que a autoridade piedosa é
apenas uma questão de intenção. Visto que a autoridade mundana representa a
perversão da autoridade piedosa, ela terá tanto similaridades quanto diferenças em
relação a ela, assim como todos os exemplos de perversão o têm. A dificuldade está
em separar o que é o quê.
Com tudo isso em mente, com que exatidão as igrejas devem seguir o exemplo de
Cristo? A igreja pode dar mandamentos, pronunciar julgamentos e afirmar suas
prerrogativas? Então, de novo, qual igreja pode alegar que segue o caminho de
Cristo sem pecar?
Vale a pena manter essas complexidades em mente à medida que consideramos
como Cristo, de fato, autoriza — comissiona — a igreja a exercer a autoridade dele
dentro de seu reino. Por um lado, as igrejas e os líderes de igreja podem ser tentados
pela escatologia exagerada dos coríntios. Por outro lado, eles podem ser tentados a
definir a autoridade ou a estrutura da igreja de tal maneira que todos os perigos de
uma autoridade caída sejam removidos. Assim como acontece com James Madison
e os outros autores da Constituição dos EUA, há uma tendência compreensível para
se perguntar como estruturar um governo, a fim de diminuir a ameaça de facção, a
tirania, os interesses intrínsecos e os abusos, dada a natureza corruptível da
humanidade. O problema é que os crentes e os líderes de igreja não deveriam se
encarregar de organizar suas igrejas de acordo com o que é seguro em si, mas de
acordo com o que é fiel à Palavra de Deus. Além disso, poderia a própria natureza de
duas realidades que se sobrepõem sugerir que Deus pode apenas chamar as igrejas
para manejar algumas ferramentas que, se usadas no Espírito, trarão o bem, mas se
usadas na carne, trarão prejuízos?

CONCLUSÃO
Como um calouro da faculdade, em certo ponto do romance Eu Sou Charlotte
Simmons, de Tom Wolfe, de 2004, Charlotte diz que a faculdade é um lugar onde
“ninguém pediria ninguém em namoro, a menos que eles já estivessem passando a
maioria das noites na cama um do outro, e mesmo assim o rapaz poderia expressar
isso de um modo semelhante a este: ‘O que você vai fazer hoje à noite? Quer ficar
comigo?’”224
A cultura de nossos dias gosta de falar sobre relacionamentos e comunidade.
Com relacionamentos como esses, isso não é de se admirar. Quando estudei teoria
política na universidade, o comunitarismo estava em alta entre muitos de meus
colegas seculares pós-modernos. Você não tem que ser cristão para desejar
comunidade e relacionamento, principalmente se os seres humanos foram criados
para os relacionamentos. A Bíblia utiliza um conceito semelhante ao de
“relacionamento”, mas é um conceito mais amplo. É a ideia de uma obediência santa
à autoridade de Deus, amorosa e geradora de vida. Ser santo é segurar firme todos
os relacionamentos de alguém e mudar sua conduta, seu propósito. É por isso que, à
medida que lermos toda a Bíblia, não encontraremos referências a
“relacionamento”, encontraremos referências à obediência, à santidade e ao
senhorio.
Quando um teólogo ou um pastor faz o discurso do relacionamento e da
comunidade, em vez do discurso da obediência e da santidade, ele pode apenas estar
apregoando o evangelho da prosperidade pós-moderno. O evangelho da
prosperidade para o homem pobre é: “Não interessa toda essa baboseira sobre
obediência e santidade, Jesus quer torná-lo rico e feliz!” Mas muitos de nós somos
ricos, hoje em dia, no ocidente. Não precisamos do evangelho da prosperidade para
os pobres. Em vez disso, nós sofremos com o tédio, a angústia e a sobrecarga da
mídia. Os relacionamentos que temos são superficiais e insatisfatórios. Por essa
razão, em vez daquele evangelho, o homem intelectualmente sofisticado oferece
um evangelho da prosperidade pós-moderno: “Não interessa toda essa baboseira
sobre obediência e santidade, Jesus lhe dará relacionamentos, um propósito e uma
comunidade.”
173. George Orwell, Nineteen Eighty-Four, edição do centenário, New York: Plume Harcourt Brace,
2003, p. 263.
174. Agradeço a Os Guinness, que me sugeriu que qualquer argumento acerca da membresia da igreja teria
que dar conta de explicar as condições peculiares da vida urbana moderna. Voltarei a essa questão de
forma mais prática nos Capítulos 6 e 7.
175. Para uma visão geral desta mudança, veja F. LeRon Shults, Reforming Theological Anthropology:
After the Philosophical Turn to Relationality [Reformando a Antropologia Teológica: após a mudança
filosófica para a relacionalidade], Grand R apids: Eerdmans, 2003, pp. 11-36.
176. Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982,
p. 179, traduzido para o português como O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa: Editora Calouste
Gulbenkian, 2005; e Charles Taylor, Sources of the Self, Cambridge, MA: Harvard University Press,
1989, p. 27.
177. Veja principalmente F. LeRon Shults, Reforming Theological Anthropology; e Reforming the
Doctrine of God [Reformando a Doutrina de Deus], Grand R apids: Eerdmans, 2005.
178. Os títulos de inúmeros livros-chave que desenvolvem esses argumentos falam por si só: The Trinity
and the Kingdom [A Trindade e o Reino], 1981, em Inglês; Being as Communion [Sendo uma
Comunhão], 1985; After Our Likeness: The Church as the Image of the Trinity [Consequência da Nossa
Semelhança: A Igreja como a Imagem da Trindade], 1998; The Social God and the Relational Self [O
Deus Social e o Ser Relacional], 2001; Like Father, Like Son: The Trinity Imaged in Our Humanity [Tal
Pai, Tal Filho: A Trindade Retratada em Nossa Humanidade], 2005; Trinity in Human Community:
Exploring Congregational Life in the Image of the Social Trinity [A Trindade na Comunidade Humana:
Explorando a Vida Congregacional na Imagem da Trindade Social], 2006.
179. Veja a discussão sobre esse tópico no Capítulo 1.
180. Frank Viola, “ W hy I Left the Institutional Church,” [Por que Deixei a Igreja Institucional],
disponível em <http://www.theooze.com/articles/article.cfm?id=2075>.
181. Stuart Murray, Church After Christendom [A Igreja Após a Cristandade], Milton Keynes, UK:
Paternoster, 2004, pp. 67-98.
182. Veja O. Wesley Allen Jr., The Homiletic of All Believers: A Conversational Approach [A Homilética
de Todos os Crentes: Uma Abordagem Sociável], Louisville: Westminster, 2005; Doug Pagitt, Preaching
Re-Imagined: The Role of the Sermon in Communities of Faith [A Pregação Reimaginada: o Papel do
Sermão nas Comunidades da Fé], Grand R apids: Zondervan, 2005.
183. Veja George R . Hunsberger, “Evangelical Conversion toward a Missional Ecclesiology” [Conversão
Evangélica à Eclesiologia Missional], in John Stackhouse, ed., Evangelical Ecclesiology [Eclesiologia
Evangélica], Grand R apids: Baker, 2003, pp. 123-26; Darrell L. Guder, The Continuing Conversion of
the Church [A Conversão Contínua da Igreja], Grand R apids: Eerdmans, 2000. Stuart Murray exclama
com admiração: “Uma descoberta-chave da Década da Evangelização [Anglicana e Ecumênica], nos anos
1990, foi que muitas pessoas tiveram uma trajetória de fé gradual, em vez de repentina”; in Church
After Christendom, p. 11. Será que alguém realmente nunca diz o contrário?
184. Murray, Church After Christendom, 31-32. O argumento mais abrangente ao longo dessas linhas é
apresentado por David Bosch, em sua crítica do que ele descreve como o paradigma missionário
iluminista, principalmente sua crítica às metáforas militaristas e ao que ele entende como a justaposição
do movimento ocidental missionário com o colonialismo e as ideias do destino manifesto, Transforming
Mission, Maryknoll, NY: Orbis, 1991, pp. 284-345, traduzido para o português como Missão
Transformadora, Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. Veja
também Brad W heeler, “One of the Dirtiest Words Today: C---------n” [Uma das palavras mais obscenas
hoje em dia c-------o], disponível em <ttp://www.9marks.org, “Conversion.”>.
185. Veja Bosch, Transforming Mission, pp. 427, 453; Tite Tienou, “Christian Theology in an Era of
World Christianity” [A Teologia Cristã numa Era de Cristianismo Mundial] in Globalizing Theology:
Belief and Practice in an Era of World Christianity [Teologia Globalizada: Fé e Prática numa Era de
Cristianismo Mundial], Ed. Craig Ott and Harold A . Netland, Grand R apids: Baker, 2006, pp. 45-51.
186. Entrevista de Simon Chan com Andy Crouch, “ The Mission in Trinity” [A Missão na Trindade] in
Christianity Today, Junho de 2007, p. 48, disponível em
<http://www.christianvisionproject.com/2007/06/the_mission_of_the_trinity.html>.
187. Exemplo, o teólogo Jürgen Moltmann exclama que o senhorio é de Cristo, mas apresenta um
retrato de Deus como Senhor, passando para um retrato de Deus como Pai, que depois dá lugar ao
retrato de Deus na Igreja como amigo, no poder do Espírito.
188. Veja Murray, Church After Christendom, pp. 10-23, para uma discussão surpreendente e elaborada
sobre esse tema.
189. Veja a história de Dan Kimball em relação a isso em They Like Jesus but Not the Church: Insights
from Emerging Generations, Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 160-61, traduzido para o português
como Eles Gostam de Jesus, Mas Não da Igreja, São Paulo: Vida, 2011.
190. Essas categorias podem ser encontradas em Murray, Church After Christendom, p. 25.
191. Paul Hiebert, Anthropological Reflections on Missiological Issue, Grand R apids: Baker, 1994, pp.
110-36, traduzido para o português como O Evangelho e a Diversidade das Culturas: Um Guia de
Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999. Murray, Church After Christendom, pp. 12-38;
Michael Frost e Alan Hirsch, The Shaping of Things to Come: Innovation and Mission for the 21st
Century [A Forma das Coisas Futuras: Inovação e Missão para o Século XXI], Peabody, MA: Hendrickson,
2003, pp. 47-50; cf. Darrell Guder, et al., que chamam mais atenção para uma congregação que tem uma
posição parcialmente limitada e parcialmente centrada em Missional Church: A Vision for the Sending
of the Church in North America [Igreja Missional: Uma Visão do Envio Feito pala Igreja da América do
Norte], Ed. Darrell L. Guder, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp. 205-12.
192. Hiebert, Anthropological Reflections, p. 134, traduzido para o português como O Evangelho e a
Diversidade das Culturas: Um Guia de Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999.
193. Doug Pagitt, Church Re-Imagined: The Spiritual Formation of People in Communities of Faith,
Grand R apids: Zondervan, 2003, 27, traduzido para o português como Reimaginando a Igreja, Brasília:
Editora Palavra, 2009.
194. Ibid.
195. Tim Chester e Steve Timmis, Total Church, W heaton, IL: Crossway, 2008, 50, traduzido para o
português como Igreja Total: Repensando radicalmente nossa apresentação do evangelho na
comunidade, Niterói: Tempo de Colheita, 2011 .
196. Frank Viola, Reimagining Church, Colorado Springs: David C. Cook, 2008, 17-18, traduzido para o
português como Reimagiando a Igreja, Brasília: Editora Palavra, 2009.
197. Ibid., p. 28.
198. John Zizioulas, Being as Communion: Studies in Personhood and the Church [Existindo como
Comunhão: Estudos sobre a Personalidade e a Igreja], Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press,
1985, pp. 44, 46.
199. As conversas contemporâneas a respeito da Trindade geralmente dão primazia às três pessoas de
Deus, em vez de sua natureza única. Pelas razões que acabei de explicar, não posso fazer outra coisa
senão seguir Robert Letham, que cita Gregório Nazianzeno para o argumento de se dar primazia a
ambas as coisas. Gregório escreve: “Assim que compreendo que sou iluminado pelo esplendor dos três,
logo reconheço que sou levado de volta para o único.”, in Robert Letham, Holy Trinity [Santíssima
Trindade] Phillipsburg, NJ: P&R , 2004, p. 463.
200. Veja R . S. Downie, “Authority” [Autoridade] in The Oxford Companion to Philosophy [Companhia
de Filosofia de Oxford], Ed. Ted Honderich, New York: Oxford University Press, 1995, pp. 68-69.
201. Minha compreensão acerca da autoridade foi auxiliada por Christopher J. H. Wright (que
reconheceu ser devedor de Oliver O’Donovan), que me forneceu a palavra “autorização”, extraído de
The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative [A Missão de Deus: Desvendando a
Grandiosa Narrativa Bíblica], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, p. 53. No entanto, quero ampliar
essa ideia de um modo um pouco diferente de Wright, que define essa “autorização” como uma
“permissão legítima” ou “liberdade para agir dentro de limites”. Acho que seria melhor dizer que a
autorização de Deus para a nossa atividade é a comissão legitimadora dele. Afinal de contas, a pessoa que
recebeu autoridade — tal como a de um presbítero ou de um primeiro-ministro — recebe essa
autoridade para realizar alguma tarefa ou para cumprir algum propósito. Isso significa que, sim, ela tem
liberdade de ação num domínio relevante. Mas o desígnio dessa autoridade não é ter liberdade para
fazer o que quer que lhe agrade (mesmo que dentro de limites), mas sim o propósito que essa pessoa
tem de cumprir a tarefa para a qual recebeu a autoridade (talvez Wright admita muito mais do que isso
em outras passagens. Cf. Oliver O’Donovan, Resurrection and Moral Order: An Outline for Evangelical
Ethics [A Ressurreição e a Ordem Moral: Uma Resumo da Ética Evangélica], 2ª. ed., Grand R apids:
Eerdmans, 1994, principalmente pp. 121-24. Acho que O’Donovan assimila essa diferença para a qual
estou caminhando, referindo-se à liberdade como “ação intencional” (p. 122) e à realidade como
teológica.
202. Veja Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality: A Treatise in the
Sociology of Knowledge, p. 157; cf. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 104.
203. Reservamo-nos uma espécie de autoridade de fato, mas não de jure, uma autoridade moralmente
legítima.
204. É nesse ponto que a abordagem sociológica da autoridade se torna inadequada para fins teológicos,
o que menciono em resposta aos exegetas bíblicos que adotam uma definição sociológica por atacado.
Desde a obra fundamental de Max Weber sobre a sociologia da autoridade, entende-se que o conceito de
autoridade deve incluir não apenas o direito ou legitimidade da figura de autoridade para governar, mas
também a complacência real e a aceitação subjetiva desse governo por parte daqueles que são
governados. O próprio Weber define a autoridade como “a probabilidade de que uma ordem com um
determinado conteúdo específico seja obedecida por um grupo determinado de pessoas”, uma definição
que mede a “autoridade” por essa probabilidade (The Theory of Social and Economic Organization, New
York: Free Press, 1947; reimpressão de 1964, p. 152). De um ponto de vista totalmente materialista,
que exclui uma concepção da autoridade divina e pressupõe que toda autoridade é construída
socialmente, essa definição faz sentido. Nesse sentido, ela serve para os propósitos descritivos da
sociologia. No entanto, é lamentável quando um estudioso cristão adota de modo simplista as definições
acadêmicas seculares. Por exemplo, Bengt Holmberg, ao escrever sobre a autoridade eclesiástica nas
epístolas paulinas, procura compreender a autoridade na igreja através das lentes de Weber e seus
sucessores. Por essa razão, ele escreve: “A característica ‘invisível’ de uma relação de autoridade é que
tanto o governante quanto o subordinado consideram que o dever deste último é obedecer... Isso
significa que a reivindicação de ser autorizado a dar ordens é justificada pela referência à legitimação que
é válida para aquele que se submete à autoridade”, in Paul and Power: The Structure of Authority in the
Primitive Church as Reflected in the Pauline Epistles [Paulo e o Peder: A Estrutura da Autoridade na
Igreja Primitiva Conforme Refletida nas Epístolas Paulinas], Eugene, OR: Wipf & Stock, 1978, p. 127.
Em uma cosmovisão cristã, porém, isso é evidentemente incorreto. Assim como acontece na ilustração
da criança que rejeita a autoridade de seus pais, a autoridade de Deus e a autoridade que ele dá aos
mediadores humanos podem ou não ser reconhecidas, conforme já vimos, devido às estruturas rivais de
legitimação. Alguns teoristas seculares compreendem muito bem isso, por exemplo, Joseph R az, The
Authority of Law [A Autoridade da Lei], New York: Oxford University Press, 1983, p. 8; e R . S. Downie,
“Authority” in The Oxford Companion to Philosophy, p. 69.
205. Berger e Luckmann, The Social Construction of Reality, p. 157.
206. Recebi esses exemplos de Bruce Ware.
207. Estou tomando emprestada a linguagem “base” de Oliver O’Donovan.
208. William H. Riker, Liberalism against Populism: A Confrontation between the Theory of Democracy
and the Theory of Social Choice [O Liberaslismo Contra o Populismo: Uma Confrontação Entre a Teoria
da Democracia e a Teoria da Escolha Social], Prospect Heights, IL: Waveland Press, 1982, pp. 8-11, 244.
Certamente, esses argumentos não são incontestáveis, mas acho que ele está certo quando escreve: “Na
visão liberal, a função do voto é controlar as pessoas que possuem cargos públicos e nada mais”, 9, itálico
no original. Veja também a abordagem legalista de Brian Barry em Democracy and Power: Essays in
Political Theory 1 [Democracia e Poder: Ensaios Sobre Teoria Política 1], Oxford: Oxford University
Press, 1991), cap. 2.
209. Em comparação com as antropologias ironicamente otimistas dos teóricos liberais
contemporâneos, como John R awls, a época anterior aos teóricos democráticos sabia muito bem que os
governos populares rapidamente passavam para os seus próprios tipos de tiranias. No famoso livro
Federalist 1, James Madison censura publicamente o “prejuízo das facções”, quer elas sejam constituídas
pela maioria, quer pelaminoria do todo; essas agitações prejudicam os interesses da nação, além do
potencial para oprimir aqueles que se opõem a elas. Essa tendência para prejudicar os outros não é
produzida pela autoridade, afirma Madison, mas pela liberdade: “A liberdade é para a facção aquilo que o
ar é para o fogo, um alimento sem o qual ele instantaneamente expira”. Afinal, a causa disso está na
natureza da humanidade: “As causas latentes da facção são semeadas desse modo na natureza do
homem... Essa propensão da humanidade para cair em animosidades mútuas é tão forte que onde não
houver uma ocasião substancial para isso, as diferenças mais frívolas e fantasiosas seriam suficientes
para incitar suas paixões hostis e estimular seus conflitos mais violentos”. Madison e outros defensores
da Constituição dos Estados Unidos sabiam que esse problema poderia não ser resolvido por meio da
remoção das causas da facção, mas somente por meio do “controle de seus efeitos” [sic]; por essa razão
existe: a separação dos poderes, o federalismo, as eleições populares, a revisão judicial e,
consequentemente, uma Declaração dos Direitos Humanos etc. Preocupações semelhantes a essas são
expressas no livro Federalist 51. Citações extraídas de Alexander Hamilton, et al., New York: Bantam
Classics, 1982, pp. 43-45.
210. E também 2 Re 21.16; Jr 2.5-9, 10.21, 23.1-3, 50.6-7; Ez 22.6, 34.1-10; Zc 11.17. Para uma
excelente discussão sobre essas passagens, veja Timothy S. Laniak, Shepherds after My Own Heart:
Pastoral Traditions and Leadership in the Bible [Pastores Segundo Meu Próprio Coração: As Tradições
Pastorais e a Liderança na Bíblia], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, caps. 7-8.
211. E também Is 61.8; Jr 2.34, 19:4; Ez 22.7.
212. Dt 27.18-19; 2 Re 23.26-27, 24.3-4.
213. Encorajo os leitores a lerem o livro de G. E. Ladd, Theology of the New Testament, traduzido para
o português como Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Hagnos, 2003, para o tratamento clássico
dado ao tópico sobre o governo invasivo de Cristo, e de Thomas Schreiner, New Testament Theology
[Teologia do Novo Testamento], para uma exposição mais moderna.
214. Para saber mais sobre a reivindicação de Jesus acerca da identidade e das prerrogativas de Deus,
veja Richard Bauckham, God Crucified: Monotheism and Christology in the New Testament [Deus
Crucificado: Monoteísmo e Cristologia no Novo Testamento], Grand R apids: Eerdmans, 1999, e
Christopher J. H. Wright, The Mission of God [A Missão de Deus], cap. 4.
215. Nesse ponto, eu me restringi principalmente às citações de Mateus. Muitas outras passagens
mencionam semelhantemente a autoridade da igreja, dentre as quais: Lucas 10.19, 24.46-48; João
14.26, 20.21-23 e Atos 1:8. Referências sobre o fim da autoridade da igreja podem ser encontradas em 2
Tm 2.12; Ap 2.26-27, 5.10 e 22.5.
216. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 109.
217. Ibid.
218. Ibid., p. 104.
219. Qualquer um que tenha visto a trilogia Matrix sabe que esses filmes são postulados numa analogia
semelhante.
220. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 104.
221. Hiebert, Anthropological Reflections, p. 134.
222. Hiebert divide as pessoas em: aqueles que estão interessados, crentes, membros batizados e
presbíteros; Guder as divide em: os sem igreja, o crente nominal, o que está interessado, a congregação e
a comunidade da aliança, Missional Churches [Igrejas Missionais], pp. 210-11.
223. Este versículo tem um papel de destaque no argumento de Anthony Thiselton de que uma das
causas primárias dos pecados dos Coríntios era uma escatologia superestimada; veja Anthony C.
Thiselton, “Realized Eschatalogy at Corinth” [A Escatologia Super-realizada Concretizada em Corinto]
in New Testament Studies 24 [Estudos no Novo Testamento] (1978), pp. 510-26, veja também as
qualificações de Thiselton dessa tese em “ The First Epistle to the Corinthians” in the The New
International Greek Testament Commentary [A Primeira Epístola aos Coríntios, Comentário do Novo
Testamento Grego Internacional], Grand R apids: Eerdmans, 2000, p. 40.
224. Tom Wolfe, I Am Charlotte Simmons, New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2004, pp. 362-63,
traduzido para o português como Eu Sou Charlotte Simmons, Alfragide, Portugal: Dom Quixote, 2009.
Capítulo 4

O ALVARÁ DO AMOR

“O poder do amor é uma coisa curiosa que faz um homem chorar


e outro homem cantar.”
— Huey Lewis

Perguntas Principais: Que autoridade Cristo dá à igreja local e por quê?

Principais Respostas: Cristo autoriza a igreja local a proclamar e proteger o


evangelho; a reconhecer ou confirmar aqueles que pertencem a ela; a uni-los a si
mesma; a supervisionar o seu discipulado e a excluir qualquer impostor. Ele dá essa
autoridade à igreja local a fim de proteger e exibir o seu evangelho num mundo
caído, o qual continuamente interpreta e retrata mal o amor de seu evangelho.

Ponto 1: Neste mundo caído, os hipócritas e hereges


confundem o mundo no que diz respeito ao evangelho e à
natureza do amor de Cristo. Por essa razão, Cristo autoriza a
igreja a distinguir o povo de Deus.

Isso é uma distorção. Isso confirma os piores estereótipos do mundo a


respeito das igrejas hipócritas e dos líderes cristãos. Isso é ofensivo e grotesco. Mas
o romance de William Faulkner, Enquanto Agonizo, retrata com precisão muitos
pastores e cristãos professos, um retrato que o mundo toma como se fosse o
retrato real.
Addie Bundren, uma esposa e mãe no Mississippi rural, está morrendo. Seus
filhos e seu marido, um após o outro, relatam a experiência de assistirem à morte
da mãe, cada um deles reproduzindo suas perdas de modo diferente. Depois, na
metade da história, por três breves páginas, Faulkner introduz mais um
personagem — o sepulcro caiado que é o reverendo Whitfield. Nenhum pano de
fundo é oferecido. Faulkner simplesmente joga o leitor num enredo secundário
com as próprias palavras do reverendo:
Quando eles me disseram que ela estava morrendo, lutei contra Satanás toda aquela noite, e saí
vitorioso. Acordei para a enormidade de meu pecado; finalmente, vi a verdadeira luz, caí sobre
meus joelhos e confessei-o a Deus, pedi sua orientação e a recebi. “Levante-se”, disse ele,
“conserte aquele lar no qual você colocou uma mentira viva; no meio daquelas pessoas com
quem você tem ultrajado Minha Palavra; confesse seu pecado em voz alta. Isso é para que eles,
para que aquele marido enganado o perdoe, não eu.”

Assim como o reverendo Dimmesdale, de Hawthorne, o reverendo Whitfield, de


Faulkner, um dia teve um caso secreto com uma mulher, membro de seu rebanho,
Addie. Ele relembra que “ela então havia jurado nunca falar sobre isso”, mas ele
percebe que “a eternidade era uma coisa terrível de se enfrentar”. Por essa razão,
ele dicide fazer isso antes que ela o fizesse.
Viajando de cavalo para a casa da família Bundren, Whitfield ora: “Louvores a ti,
ó Poderoso Rei e Senhor. Exatamente por isso, purificarei a minha alma e me
beneficiarei novamente na congregação do teu amor eterno.” Ah, um verdadeiro
cristão, esse Whitfield. O homem pecou e agora busca a paz com Deus e a paz com
seu próximo. Ele anseia mais uma vez pelo amor e pelo perdão do Senhor. Após orar
silenciosamente, ele diz:
Eu sabia que o perdão seria meu... O perdão já estava lá como se já tivesse sido concedido.
Minha alma se sentiu mais livre, mais tranquila do que havia se sentido em anos; eu parecia já
habitar na paz permanente à medida que cavalgava. Em todos os lados, eu via a mão de Deus;
em meu coração, pude ouvir a sua voz: “Coragem, eu estou contigo.”

Que sorte foi ele ter sentido o perdão de Deus antes de chegar à casa de
Bundren! Ela morreu antes de ele chegar. A necessidade de uma confissão confusa
havia passado, porque Deus “é misericordioso; ele aceitará o desejo de fazer aquela
obra”. Whitfield então entra no lar agoniado, reflete sobre a mulher falecida que
agora está enfrentando “o julgamento terrível e irrevogável” de seu pecado, e
pronuncia magistralmente: “A graça de Deus esteja sobre esta casa.”
Addie talvez estivesse jazendo no inferno, com seu pecado não confessado, mas
Whitfield pôde se regozijar por sua própria alma: “Louvores a ti por teu amor
copioso e onipotente, ó, louvores.”225
Após a publicação de Enquanto Agonizo, perguntaram a Faulkner, numa
entrevista, se Whitfield era um hipócrita. Ele respondeu: “Não, eu não diria que ele
era um homem hipócrita. Ele tinha que viver uma vida hipócrita. Ou seja, ele tinha
que viver em público a vida que as pessoas fanáticas e ignorantes do Sul isolado e
rural exigiam de um homem de Deus, quando, na verdade, ele era apenas um
homem como qualquer um deles.”226
Essa caricatura personifica bem como o mundo vê o cristianismo, a igreja e o
nosso discurso sobre amor, retidão e perdão. E há mérito nessa caricatura.
Realmente existem fanfarrões e salafrários como Whitfield, um tele-evangelista
espalhafatoso antes da era da televisão. Não é difícil pensar em líderes fracassados,
em cristãos fracassados ou em igrejas divididas que confirmam esse estereótipo.
O que é totalmente trágico, portanto, é o fato de que Whitfield parece não ser
cristão. Ele é uma falsificação, e, assim como todas as falsificações, ele nos deixa
céticos e nos endurece contra a coisa verdadeira. A ironia que as pessoas geralmente
omitem é que as falsificações ao mesmo tempo escondem e revelam algo
verdadeiro. Há algo de verdadeiro na religião do reverendo Whitfield que é belo e
glorioso, apesar da caricatura distorcida de Faulkner ser completamente
irreconhecível: há um Deus gracioso que exerce o seu amor copioso no próprio ato
de salvar alguns e a outros não. Existe um Deus gracioso que exibe seu amor
onipotente no próprio ato perdoar os piores hipócritas e adúlteros. E existe um
Deus gracioso que requer o louvor de um povo distinguido, com limites, à medida
que ele pronuncia suas bênçãos sobre ele e o chama a pronunciar essa bênção a
outros, a fim de que as nações louvem seu amor generoso e poderoso.
Mas quem acreditaria nisso, quando hipócritas como Whitfield estão nas
manchetes?
Exemplos de hipocrisia ou heresia sempre receberão mais publicidade quando
envolverem um líder de igreja como Whitfield, mas não são as manchetes que
devem nos preocupar. São as nossas próprias vidas. É a vida do membro comum das
igrejas. Porque, para cada ato de hipocrisia que atinge a imprensa, não haverá
milhares de exemplos de hipocrisia em nossas próprias vidas, alguns insignificantes
e outros nem tanto? Os nossos vizinhos, colegas e amigos descrentes nos ouvem
professar o nome de Cristo com a nossa boca e com a nossa filiação a uma igreja;
todavia, eles nos observam e se perguntam: “Se Jesus é tudo o que vocês dizem que
ele é, por que sua vida se parece com a minha? Será que o evangelho do nascer de
novo, do qual você fala, pode ser de fato verdadeiro?” Mais do que os títulos das
manchetes, o que basicamente forma a percepção que o mundo tem de Cristo e de
seu evangelho é a vida diária do cristão comum.
EXPULSAI-O
É com esse tipo de tragédia que o apóstolo Paulo luta em 1 Coríntios 5.
Um homem da igreja de Corinto estava dormindo com a esposa de seu pai, e
Paulo parece se colocar no lugar dos vizinhos descrentes da igreja quando exclama:
“Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal como nem
mesmo entre os gentios” (v. 1). É como se Paulo estivesse dizendo: “Nem os
mundanos fazem isso! O que vocês acham que eles vão pensar?” Com razão, ele
estava preocupado com o nome e a reputação de Cristo. Ele estava preocupado com
a igreja, com o testemunho dela e com sua vida de santidade. Ele estava preocupado
com aquele homem, porque ele estava se autoenganando e vivendo no perigo da
condenação. Na mente de Paulo, a solução era simples: expulsai-o. Ele escreve:
Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se
estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o
meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da
carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor [Jesus] (vs 3-5).

Paulo está chamando a igreja para exercer sua autoridade, dada por Cristo, de
excluir aquele homem. Isso suscita inúmeras perguntas. Em primeiro lugar, ele diz
à igreja para que aquele homem seja “explulso”, mas expulso exatamente de onde?
Além disso, por que ele admite que a igreja possui autoridade para expulsar aquele
homem? Aquele homem deve prestar contas a Deus, não a eles, certo? Quem lhes
deu o direito de expulsá-lo? E por que Paulo fala sobre o seu espírito “ser salvo no
Dia do Senhor”? Qual é a ligação entre sua filiação a essa igreja e sua salvação?
Finalmente, parece que Paulo tem outro alvo em mente além de manter as pessoas
unidas.
Se o seu alvo não é simplesmente manter a igreja unida, que alvo é esse?
Nós podemos, consequentemente, chegar a essas perguntas, mas uma coisa deve
ficar clara para nós: Paulo reivindica um ato de autoridade institucional a fim de
defender o testemunho do evangelho. Aparentemente, o evangelho e os princípios
institucionais da vida da igreja talvez não estejam tão desconectados como às vezes
pensamos.

UM ALVARÁ INSTITUCIONAL
Afinal, nós de fato os desconectamos. Certo teólogo, Kevin Vanhoozer, escreveu
sobre sua juventude como professor, durante a qual ele evitava ensinar a doutrina
da Igreja, pois ela parecia conter apenas os assuntos que historicamente têm
dividido os cristãos, como o batismo, a política, o papel das mulheres no ministério e
assim por diante227. Além disso, nenhuma dessas coisas é essencial para a salvação.
Mas Vanhoozer recuperou o seu interesse em eclesiologia porque escolheu não se
concentrar nessas questões que dividem; em vez disso, ele escreve sobre a “simples
eclesiologia”. A simples eclesiologia é aquela que se concentra no fato de que a igreja
é resultado do evangelho e se contenta em desprezar as questões externas da
política organizacional e da prática228. A pessoa e a obra de Cristo nos tornaram um
povo; portanto, concentremo-nos em afirmar isso, e não nas coisas que nos
dividem.
Entre os evangélicos com mente teológica, a abordagem de Vanhoozer me parece
até certo ponto comum. Conferências e livros ecoam a exigência de afirmar o que é
central, estabelecendo os princípios e redefinindo as doutrinas mais importantes
para uma nova geração. Talvez isso signifique definir o evangelho de um modo que
melhor se harmonize com a narrativa da história da redenção. Talvez isso signifique
definir essa conversa de um modo menos individualista. Talvez signifique definir a
essência da igreja como “em missão”. Mas não importa qual seja a abordagem, a
política organizacional da igreja raramente entra nessa conversa. Ela é deixada de
lado. Aquilo que J. L. Reynolds afirmou em 1846 soa como uma piada: “A política
organizacional da igreja tem se tornado um tema que chama a atenção do mundo
cristão.”229
Entre os evangélicos de mente pragmática de nossos dias, o futuro da igreja,
dizem eles, depende de termos as práticas exatamente corretas. A pressuposição é
que a política organizacional da igreja é infinitamente flexível. As igrejas devem
fazer qualquer coisa que funcione. As conferências e livros ecoam o chamado para a
contextualização, os múltiplos locais de cultos e a vídeo transmissão; o cultivo da
correta cultura interna da organização, dos ministérios de pequenos grupos, das
programações evangelísticas para os que estão interessados e muito mais.
Em resumo, alguns evangélicos recomendam que afirmemos a doutrina central,
outros recomendam que brinquemos com as estruturas. No entanto, o que é
irônico é que essas duas tendências podem produzir objetivos opostos. Com
certeza, as igrejas evangélicas devem afirmar a doutrina central, mas o que está
sendo ignorado por muitos teólogos e profissionais é o fato de que Jesus outorga
autoridade à igreja para propósitos estruturais bem específicos. Em Mateus 16, 18 e
28, na realidade, ele passa aos apóstolos o rolo de um livro selado com seu próprio
selo real. Quando os apóstolos abrem o rolo, encontram um alvará para algo
chamado a igreja, uma palavra que eles haviam ouvido anteriormente, mas para a
qual Jesus agora está dando um uso novo e formal. Esse alvará formaliza a
existência da igreja na terra, estabelece sua autoridade, resume seus direitos e
privilégios básicos e descreve os princípios para se pertencer a ela. O que esse alvará
diz? Isso é o que consideraremos neste capítulo.
O que descobriremos é que Jesus nunca imaginou uma igreja separada de toda a
sua autoridade, responsabilidade e estrutura — as mesmas coisas que nos
confundem nas questões que Vanhoozer diz que divide os cristãos, como a
administração apropriada das ordenanças e da membresia. É essa igreja estruturada
que Jesus planeja usar como o meio de transmitir a mensagem do evangelho —
para protegê-la, exibi-la, sustentá-la, torná-la atraente e colocá-la em ação. A igreja é
resultado do evangelho, conforme Vanhoozer argumenta. Sim, mas as estruturas
de autoridade são uma parte importante desse resultado. A forma e o conteúdo
estão ligadas. O que protege a igreja ano após ano, geração após geração, é o poder
de ligar e desligar. São as ações de identificação, as fronteiras, os limites, a
supervisão, as ordenanças, as ações de julgamento interno, o ensino e os rituais de
iniciação — todos exercidos na terra.
Esses são os tipos de questões que Paulo tem em mente em 1 Coríntios 5. Ele não
deseja simplesmente manter a igreja unida — unidade pela unidade. Ele tem a
intenção de distinguir a igreja do mundo e, ao fazer isso, a intenção de proteger e
exibir o evangelho.
Isso é também o que Jesus parece ter em mente no Evangelho de Mateus. Para
os propósitos de nossa discussão sobre membresia e disciplina da igreja em Mateus,
Jesus comissiona a igreja a exercer a autoridade amorosa de cinco maneiras:
1) Ele autoriza sua igreja a proclamar e proteger as boas novas de seu de seu reino
invasivo e de sua e da salvação.
2) Ele autoriza sua igreja a confirmar com alegria aqueles cujas vidas e profissão
de fé indicam que eles pertencem a ele, por meio da união com seu corpo e com sua
família.
3) Ele autoriza sua igreja a unir crentes a si mesma e ao seu ato de aceitação, que
envolve cuidados por parte dela.
4) Ele autoriza sua igreja a prover supervisão para esses filhos, guiando-os,
direcionando-os e equipando-os por meio de sua Palavra, para que tenham uma
união mais íntima com ele e com todos os filhos de Deus.
5) Ele autoriza sua igreja a afastar e excluir qualquer impostor que prejudique os
membros da família, degrade o seu nome e, desse modo, impeça o testemunho da
igreja ao mundo.

Cristo dá essa autoridade à igreja exatamente por causa das complexidades da


autoridade e das ambiguidades da verdade e do amor em nosso tempo. Exatamente
porque o amor de Deus invadiu este mundo, mas ainda não declarou sua vitória
final, Cristo planeja que esse amor seja definido — “Isto é amor, isto não é.”
Exatamente porque os dois projetores de filme estão lançando sua luz sobre a
mesma tela, Cristo restringe essa tarefa à igreja e lhe diz para traçar um limite, da
melhor forma possível, ao redor das imagens que seu projetor está refletindo, o que
é precisamente o que vemos nas Escrituras.

Ponto 2: No Evangelho de Mateus, Jesus demonstra estar


preocupado com quem se identifica com seu nome e quem
não, porque se identificar com ele significa se identificar com
o Pai celestial.
O CONTEXTO DE MATEUS
REPRESENTANDO O CÉU NA TERRA
Quem fala em nome do céu na terra? Quem representa sua vontade? Talvez,
tenhamos conhecido muitos reverendos Whitfields para acreditar que alguém
possa fazer isso. No entanto, a pressuposição popular de nossos dias de que
“ninguém pode reivindicar representar o céu” é, em si mesma, ironicamente, o
próprio ato de falar com autoridade celestial.
Como os céticos antirreligião dos dias de hoje, os fariseus e saduceus super-
religiosos alegavam falar em nome do céu. Por essa razão, eles caluniavam todos os
adversários. Eles buscavam expor Jesus como uma fraude ao lhe pedirem um “sinal
do céu”, quando, de fato, eles acreditavam que ele tinha um pacto com o diabo (Mt
16.1, 12.24). Os principais sacerdotes e anciãos desafiaram semelhantemente a
autoridade de Jesus (21.23). Por trás de tais desafios, estava de novo a
pressuposição de que eles eram os representantes oficiais de Deus: “Temos por pai a
Abraão” (Mt 3.9).
No Evangelho de Mateus, Jesus responde a essas pressuposições. Ele argumenta
em todo o livro que, de fato, ele fala em nome do céu, assim como os seus
seguidores230.

Em seu ministério, Jesus declarava que o Reino dos Céus estava próximo (3.2,
4.17).

Jesus professa saber quem receberá o Reino dos Céus e herdará a terra (5.3,
5).

Jesus ensina seus discípulos a orarem para que a vontade de Deus seja feita na
terra, assim como nos céus.

Jesus lhes diz para não acumularem seus tesouros na terra, onde a traça e a
ferrugem corroem, mas para acumularem tesouros no céu, onde nem traça
nem ferrugem corroem (6.19-20).

Jesus diz aos discípulos que a eles é dado conhecer os mistérios do Reino dos
Céus (13.11).

Lição após lição é dedicada àqueles que receberão o Reino do Céu e àqueles que
não o receberão. Os pobres de espírito o receberão (5.3). Os pequeninos o
receberão (11.25; 19.14). Aqueles que se humilham como uma criança o receberão
(18.4, 14). Aqueles que fazem a vontade de seu Pai celeste o receberão (12.50).
Aqueles que produzem frutos de arrependimento o receberão (3.7-10, 7.15-23,
12.33-38). Aqueles a quem Deus escolhe o receberão (19.25-26, 20.14-16, 22.14).
Em outras palavras, o Evangelho de Mateus está preocupado com a pergunta:
quem representa o céu na terra e como são as vidas dessas pessoas? Além do mais,
ele responde a essa pergunta, apontando para uma mudança de regime de governo
drástica e única na história. Sob a velha aliança, o Israel étnico falava em nome do
céu. Agora, Cristo e seus seguidores o fazem. Deus pode suscitar filhos a Abraão das
pedras, diz João Batista (3.7-9), e Jesus promete “que muitos virão do Oriente e do
Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no Reino dos Céus;
ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas” (8.11-12).
Jesus até chama outro grupo de 12 homens para serem os novos chefes de uma
nova nação e então promete que eles se sentarão em doze tronos, e julgarão a Israel
(10.1-4, 19.20). As linhas divisórias políticas, culturais e étnicas não mais separarão
a família de Deus. Em vez disso, “qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste,
esse é meu irmão, irmã e mãe” (12.50).
Quem então fala em nome do céu na terra? Em primeiro lugar, Jesus. Ele foi
explicitamente afirmado como “Filho Amado”, por uma “voz dos céus” no início de
seu ministério terreno (3.17, cf. 17.5), reivindicando, ao fim dele, ter “toda
autoridade no céu e na terra” (28.18). Todavia, não é só Jesus que representa o céu,
mas o seu povo também o faz: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém
conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a
quem o Filho o quiser revelar” (11.27)231.

QUEM REPRESENTA A JESUS?


Quem, então, é o povo de Jesus? A mudança da forma de governo do Israel
étnico para Jesus Cristo e seu povo como os representantes de Deus na terra traz
consigo outro problema: como determinaremos quem representa Cristo ou
pertence verdadeiramente ao seu povo? Com o Israel étnico, poder-se-ia dizer que
as ligações institucionais estavam firmadas. Uma pessoa representava a Israel — e,
portanto, a Deus — se ela fosse circuncidada, guardasse o sábado, mantivesse as
leis dietéticas, pertencesse à nação-estado de Israel e assim por diante. Mas como o
mundo saberá quem fala em nome de Cristo de modo fidedigno?
O Evangelho de Mateus dedica mais atenção a essa questão do que se poderia
notar à primeira vista. Por um lado, Mateus responde a essa pergunta
caracterizando a vida desses seguidores. Eles produzem frutos de arrependimento
(3.8, 7.15-20). Suas vidas são radicalmente marcadas pelooutro mundo (5.3-12).
Eles não andam para lá e para cá obcecados com provisão terrena, como os gentios,
mas buscam primeiro o Reino (6.31-33). Eles ouvem as palavras de Cristo e as
colocam em prática (7.24-27). O Evangelho de Mateus também trata repetidamente
da questão da hipocrisia232. Quem sabe esse fosse um problema importante nas
igrejas para as quais Mateus escreveu seu livro233?
Por outro lado, o Evangelho de Mateus às vezes estrutura essa discussão sobre
quem representa a Jesus falando sobre aqueles que levam o nome de Jesus com
credibilidade234.

Jesus diz a seus discípulos que receber, em seu nome, aqueles que se humilham
como uma criança é receber o próprio Jesus (18.5).

Jesus promete estar presente sempre que dois ou três estiverem reunidos em seu
nome (18.20), assim como a presença de Jeová entre seu povo no Antigo
Testamento.

Jesus recomenda seus discípulos a viajarem até os confins da terra, batizando


mais discípulos em seu nome, bem como no nome do Pai e do Espírito (28.19).

Ao mesmo tempo:

Alguns alegarão ter feito grandiosas profecias, expulsão de demônios e obras


poderosas em nome de Cristo, mas Jesus promete lhes afastar, visto que eles
são praticantes da iniquidade e nunca fizeram a vontade do Pai que está no céu
(7.21-23).

Outros virão em nome de Cristo, reivindicando ser o Cristo, enganando a


muitos (24.5).

Em resumo, alguns professarão o seu nome de modo fidedigno e alguns o


professarão indevidamente. “Vede que ninguém vos engane”, disse Jesus, prevendo
esses falsos crentes (24.4).
Como então o mundo poderá saber quais profissões de fé têm credibilidade e
quais não? Será que alguém na terra tem autoridade para distinguir um tipo de
profissão de fé de outra? Essas perguntas são difíceis mas inevitáveis, e elas nos
levam para os textos eclesiológicos de Mateus, nos capítulos 16, 18 e 28235.

Ponto 3: Em Mateus 16, 18 e 28, Jesus deu o poder das


chaves aos apóstolos e à igreja apostólica. Isso autorizou a
igreja a proteger o evangelho; a confirmar as profissões de fé
fidedignas; a unir esses professos a si mesma; a supervisionar
o discipulado deles e a excluir os hipócritas.

TRÊS TEXTOS ECLESIOLÓGICOS

A AUTORIDADE É DADA A OUTROS DOZE (MATEUS 16) “Quem diz o


povo ser o Filho do Homem?”, Jesus perguntou aos doze discípulos.
Alguns diziam que ele tinha um pacto com o maioral dos demônios (Mt 9.34).
Outros diziam que ele era glutão e beberrão (Mt 11.19). Outros diziam ainda que
ele era João Batista, Elias ou algum dos profetas (Mt 16.14).
Não estava claro quem era esse homem, com seus sermões estranhos, sua
estranha reivindicação de autoridade e suas associações estranhas. Conforme
observamos anteriormente, o mundo não reconheceu imediatamente a encarnação
perfeita do amor e da autoridade de Deus quando ela veio. Algumas coisas no amor
de Deus são inesperadas para os olhos naturais. O verdadeiro amor precisa ser
explicado aos pecadores caídos quando ele se apresenta — “Aqui está, isto é amor.”
Após ouvir a lista dos discípulos, com várias respostas erradas, Jesus pergunta
novamente: “Mas vós... quem dizeis que eu sou?” Talvez representando todos eles,
Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Jesus confirma a
resposta de Pedro: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e
sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (v. 17, cf. 11.27).
Aparentemente, a capacidade de Pedro de perceber essa realidade alternativa não
tem nada a ver com as luzes ofuscadas, com a música certa ou com a autenticidade
de Jesus, mas sim com o fato de que o Pai celestial lhe havia aberto os olhos. E não
somente isso, mas Jesus estava evidentemente interessado naquilo que Pedro cria,
no conteúdo da confissão de Pedro.
É interessante que Jesus não para nesse ponto. Ele não diz a Pedro e aos outros:
“Ótimo, agora vocês já sabem; vocês ficarão bem.” Não, Jesus deseja que mais
pessoas compreendam a verdade sobre quem ele é, e quer que eles estejam reunidos
em torno dessa verdade que Pedro confessou. Por essa razão, ele continua: “Tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Inferno não
prevalecerão contra ela” (c. 18). Vale a pena observar o paralelo gramatical entre o
“Tu és o Cristo”, de Pedro, e o “Tu és Pedro”, de Jesus. Pedro havia acabado de
definir a identidade de Jesus e seu papel na história da redenção — ele é o Messias,
o Filho do Deus vivo. E Jesus define a identidade e o papel de Pedro na história da
redenção — ele é a pedra ou o fundamento no qual a igreja será edificada. Por essa
razão, há um jogo de palavras entre petros (Pedro) e petra (rocha). Essa igreja será a
igreja verdadeira, não alguma igreja falsa contra a qual o inferno pode prevalecer.
Após a Reforma, muitos comentaristas e teólogos protestantes se opuseram à
ideia de que Pedro pudesse ser a rocha, por temerem estar legitimando a instituição
do papado católico romano236. Ainda hoje muitos comentaristas evangélicos (a
maioria?) reconhecem que o texto pode ser lido, até certo ponto, como se Pedro
fosse, de fato, a rocha237. O ponto mais importante, penso eu, é que Jesus edifica a
igreja tanto sobre Pedro como sobre sua confissão. Conforme o comentarista Craig
Keener expressa: “Jesus não atribui simplesmente esse papel a Pedro de forma
arbitrária. No entanto, Pedro é a rocha porque ele é o único que confessou Jesus
como o Cristo nesse contexto.”238 O teólogo Edmund Clowney expressa isso da
seguinte maneira: “A confissão não pode ser separada de Pedro, nem Pedro pode ser
separado de sua confissão.”239
Não resta dúvida de que, se lermos o livro de Atos, descobriremos que Cristo
começa a edificar sua igreja justamente sobre o Pedro que fez essa confissão, não só
sobre Pedro ou sobre a confissão de Pedro. O embaixador não viaja sem o decreto do
rei; o decreto não viaja sem o embaixador do rei. Além disso, ao longo do Novo
Testamento, Cristo edifica seu novo povo sobre todos os apóstolos, à medida que
eles viajam por todos os lados, proclamando a verdade da confissão de Pedro (Ef
2.20; Ap 21.14). Mesmo que Cristo se dirigisse a Pedro unicamente em Mateus
16.17-19, todos os discípulos pareciam estar envolvidos no versículo 20240. Esses
são os fatos históricos. Deus poderia ter usado outros homens. Eles não eram o
fundamento supremo ou essencial da igreja, mas eles eram seu fundamento histórico
ou colaborador — os embaixadores que Cristo usou para proclamar o seu evangelho
em primeira mão. Pedro é escolhido aqui, talvez como primeiro entre outros iguais,
porque ele é o primeiro a confessar justamente o decreto do rei: “Vejam, Jesus é o
Messias.”
Então, como é que Jesus edifica sobre Pedro, que fez essa confissão? Ou melhor,
o que Pedro faz, com sua capacidade, como o fundamento241? Descobrimos que
Jesus responde a essa pergunta no versículo seguinte: “Dar-te-ei as chaves do Reino
dos Céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra
terá sido desligado nos céus” (v. 19). Assim como os versículos anteriores, este
versículo está repleto de questões sobre as quais os comentaristas divergem242.
Mas todos parecem concordar que ele está dando autoridade a Pedro por lhe dar as
chaves do reino. Além disso, acho que podemos dizer que, até certo ponto, de forma
indiscutível, a conexão entre os versículos 18 e 19 significa que “a igreja é a agência
da autoridade do reino sobre a terra”243. Em outras palavras, se Pedro é o
fundamento da igreja, e se Jesus dá a Pedro as chaves do reino a fim de agir como
fundamento, logo, isso poderia soar como se o reino de Cristo se estendesse por
meio da igreja. Talvez de modo mais discutível, eu argumentaria que o reino será
expandido somente por meio da igreja, visto que as chaves do reino não foram dadas
a nenhuma outra organização ou a nenhum outro indivíduo na terra — não foram
dadas às organizações filantrópicas, às agências de ações sociais, a governos,
partidos políticos ou mesmo a indivíduos bem-intencionados.
Em Mateus 16, não fica imediatamente evidente o que Pedro e, por extensão, os
apóstolos têm autoridade para ligar e desligar na terra; o objeto dos verbos ligar e
desligar. O que deve estar claro, eu espero, é que essa passagem é o único lugar onde
poderíamos encontrar uma resposta para a pergunta acima — alguém na terra tem
autoridade para distinguir um tipo de profissão de fé no nome de Jesus de outro
tipo de profissão de fé no nome de Jesus? Está claro que Cristo tem essa
autoridade. E Cristo afirma que a profissão fidedigna de Pedro vem do Pai. Mas,
depois, surpreendentemente, ele dá a Pedro (e aos apóstolos) autoridade para
declarar que certas coisas na terra representam as realidades do céu. Esse ato de
autorizar os apóstolos vem imediatamente após Jesus dizer aos discípulos para
tomarem cuidado com o fermento — ou o ensino — dos fariseus e saduceus (16.5-
12). Os fariseus e saduceus não têm autoridade para representar o céu, mesmo que
eles achem que tenham. A mudança de governo se torna conhecida244.

A EXTENSÃO DESSA AUTORIDADE PARA TODA A IGREJA (MATEUS 18)


Em Mateus 18, a mesma expressão relacionada a ligar e desligar é
utilizada novamente, só que dessa vez as chaves do reino não são
explicitamente mencionadas, e “vós” é plural: “Em verdade vos digo que
tudo o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na
terra terá sido desligado nos céus” (v. 18). Ainda que Jesus estivesse, no
capítulo 16, dando as chaves somente a Pedro, o que não creio ser o
caso 245, a maioria dos comentaristas concorda que a autoridade das
chaves é estendida, no capítulo 18, a todos os discípulos e, no final, à
igreja local. Em outras palavras, essa autoridade espantosa dada a Pedro
(e aos apóstolos) no capítulo 16 parece ser transferida para a igreja local
no capítulo 18, no contexto da disciplina da igreja. Portanto, se essa
autoridade pertencia a Pedro ou a todos os doze apóstolos, essa mesma
autoridade é passada a toda igreja, que é a que me refiro quando falo da
igreja apostólica 246.
Eis o contexto: Jesus fala sobre confrontar um irmão cristão quando ele “pecar
contra você”, a fim de ganhá-lo de volta (18.15). Se o ofensor não o ouvir, o
ofendido deve levar uma ou duas outras pessoas em sua companhia (v. 16). Se ele
ainda não o ouvir, o ofendido deve “dizer isso à igreja”, e se ainda não ouvir à igreja,
ele deverá ser tratado como um descrente (v. 17).
Nesse ponto, Jesus explica a autorização que a igreja tem para agir com essa
capacidade disciplinar, repetindo a comissão do capítulo 16 em Mateus 18.18. Essa
autoridade ou poder das chaves do capítulo 16 é colocada em prática de forma
efetiva pela igreja local para os propósitos da excomunhão247.
No versículo seguinte, Jesus parece responder a qualquer um que possa
questionar se podemos dizer realmente que a igreja local tem tamanha autoridade.
Novamente, de modo espantoso, ele liga as decisões da igreja ao céu: “Em verdade
também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de
qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que
está nos céus” (v. 19).
A autoridade que a igreja exerce é a autoridade de Deus. A igreja o representa,
como um embaixador (cf. 2 Co 5.20; Ef 6.20). As pessoas que ouvem um
embaixador falar sabem que o rei está por trás desse embaixador. O mesmo
acontecia com o Israel antigo: o mundo inteiro deveria saber que Israel pertencia ao
Senhor, porque ele habitou entre eles e eles levavam o seu nome. O mesmo
acontece na igreja local: ela leva o seu nome e ele habita no meio dela. Por essa
razão, Jesus conclui essa questão com a promessa: “Porque, onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (v.20). Aqueles que não
professam o seu nome de modo fidedigno devem ser expulsos.
Essas duas passagens nos apresentam os únicos lugares nos Evangelhos onde
Jesus utiliza o termo eclesia (igreja). Essas passagens induzem a divergências, mas
ninguém, pelo que sei, contesta o fato de que Jesus está transferindo sua
autoridade para Pedro, para os apóstolos e, enfim, para a igreja. A chave simboliza
claramente autoridade nas Escrituras (Is 22.15, 22; Lc 11.52; Ap 3.7; cf. 1.18, 9.1,
20.1). Seja o que for que afinal signifique para a igreja apostólica o “ligar e desligar
na terra”, essa comunidade de dois ou três reunidos em seu nome parece ter uma
autoridade que nem mesmo o indivíduo cristão possui (cf. Mt 18.15). Por exemplo,
quando um cristão peca contra outro, o cristão ofendido não tem a autoridade que a
igreja reunida possui para remover formalmente o ofensor.

AGINDO COM ESSA AUTORIDADE ATÉ OS CONFINS DA TERRA (MATEUS


28) A Grande Comissão de Jesus, em Mateus 28, não diz coisa alguma
explícita sobre a autoridade das chaves que os discípulos têm, mas,
conforme Jesus faz em Mateus 16 e 18, ele invoca sua própria autoridade
e depois os autoriza, mais uma vez, a fazer declarações em nome do céu:
Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar
todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século (Mt 28.18-20).

Jesus alega ter autoridade vinda do céu e, com base nisso, autoriza seus
discípulos a fazerem mais discípulos, não só compartilhando o evangelho, como
também batizando e ensinando. Observe que Jesus não diz aos seus discípulos
simplesmente para segurar um megafone ou ligar o transmissor do rádio e gritar o
evangelho, deixando que as pessoas recebam a mensagem segundo a vontade de
Deus, para que possam começar a se denominarem cristãs e seguirem em frente
com suas vidas separadas da fonte da mensagem ou separadas umas das outras.
Não, é muito mais do que isso. Fazer um discípulo envolve batizar as pessoas e
depois ensinar-lhes tudo o que Cristo ordenou.
Por que as etapas extras? Com base nas preocupações mais importantes de
Mateus, podemos supor que Jesus se preocupa com quem leva o seu nome
publicamente (assim como o nome do Pai e do Espírito). Devemos lembrar que a
questão da hipocrisia aparece ao longo do livro. Jesus comissiona seus seguidores
não apenas a pregar, mas a se encarregar do trabalho “institucional” de confirmar as
profissões de fé fidedignas, por meio do batismo, para atestar publicamente: “Esta
pessoa usa o nome de Cristo e representa o céu na terra.” Ele deseja que aqueles que
são confirmados desse modo aprendam tudo o que ele tem ordenado.
Basicamente, acredito que descobriremos que a Grande Comissão não diz
respeito somente à evangelização, mas à implantação e à edificação da igreja.
Observe que Jesus promete “estar com” seus discípulos até a consumação do
século, exatamente como ele prometeu, no contexto eclesiástico de Mateus 18,
estar presente sempre que dois ou três estivessem reunidos em seu nome.
Será que alguém que não tenha passado pelas águas do batismo tem o direito de
falar em nome de Jesus e do Pai celestial? Será que Jesus simplesmente permite
que a consciência de cada homem ou mulher declare diante do mundo: “Eu falo em
nome de Jesus e do Pai que está no céu, portanto atendam ao que digo.”? Jesus
prometeu que os impostores fariam isso (7.21-23, 24.5), mas, em tese, há
problemas em fazer isso? Acho que a resposta depende de como compreendemos a
autoridade da igreja aqui em Mateus 28 e nos capítulos 16 e 18. Minha resposta é
que não, porque creio que Jesus deu a Pedro e à igreja local o poder das chaves
exatamente para que o povo de Deus na terra tivesse um mecanismo institucional,
por assim dizer, que distinguisse quem fala por ele com credibilidade; para mantê-
los unidos; para ensiná-los e para supervisionar suas vidas juntos. Creio que os
cristãos devem, portanto, estar unidos a uma igreja. Esse é o argumento que ainda
precisa ser elaborado.

O QUE É ESSA AUTORIDADE?


O que é exatamente essa autoridade das chaves, o que significa ligar e desligar, e
o que as passagens dos capítulos 16 e 18 têm a ver com a Grande Comissão no
capítulo 28? Quando esses três capítulos são confrontados com o restante do
Evangelho de Mateus, é difícil escapar da sensação de que algo institucional está
acontecendo248. Em outras passagens Jesus fala sobre a ligação entre o céu e a terra
em termos de orar, buscar e receber, e todas elas falam pelo menos de questões
relacionais. Nesses capítulos, porém, ele usa uma linguagem que autoriza e
comissiona. Ele fala sobre as chaves, sobre ligar e desligar e sobre a ordenança do
batismo. Parece que ele está se preparando para a sua partida, deixando certas
estruturas em seu lugar. Afinal, toda essa conversa começa com a promessa de
Jesus de “edificar sua igreja” (16.18). A autoridade em questão aqui tem a ver com
sua obra de edificar algum tipo de assembleia por meio de Pedro e dos outros.
Não tenho a pretensão de oferecer, na sequência, a análise final ou a melhor
análise acerca dessas passagens, mas vou fazer o melhor que posso, oferecendo um
argumento de seis pontos.
1) A dificuldade de Mateus 16.18-19 brota pelo menos em parte das metáforas
mistas. Muitas questões, tais como os tempos dos verbos no versículo 19, tornam
difícil a explicação de Mateus 16.18-19. Mas o que é mais difícil, pelo menos para
mim, é que Jesus mistura meia dúzia de metáforas. Ele começa no versículo 18 com
uma metáfora sobre construção e fundamento (cf. Mt 7.24). Entretanto, ele está
falando não sobre construir uma estrutura, mas uma assembleia de pessoas. Ele
passa para a metáfora da porta, mas essa é no mínimo um tanto confusa, porque ele
fala sobre a porta “prevalecer”, o que é uma palavra que soa como ofensiva, quando
as portas têm propósitos defensivos. Depois, no versículo 19, ele utiliza o que
parece ser outra metáfora de porta, mas a ênfase está nas chaves, as quais são
usadas para abri-las ou fechá-las. Ele não está falando das chaves de uma porta, mas
das chaves de um reino, para o qual ele dá o sentido de um governo ou reino
salvador. Você pode ter as chaves para governar? Finalmente, ele não diz que as
chaves devem ser usadas para abrir ou fechar portas, mas para ligar e desligar algo.
Normalmente, as coisas não são ligadas com chaves, mas com cordas, cola,
gravidade ou leis.
Lendo demasiado literalmente, é como se Jesus estivesse dizendo: “Eu edificarei
a minha assembleia de pessoas sobre você e sua confissão, Pedro. Você é o concreto
que será protegido de qualquer porta que o ataque. Eu darei a você, concreto da
assembleia, as chaves para abrir e fechar meu reino salvador. Qualquer coisa que
você ligar na terra, será ligada no céu. Qualquer coisa ligada que você afastar na
terra será afastada no céu.” Uma metáfora segue a outra, e a ligação entre elas não é
imediatamente óbvia. Entretanto, é essencial reconhecer cada metáfora no
processo de interpretação.
2) Devemos deixar que cada metáfora diga o que tem a dizer e também condicione as
outras metáforas. Tenho observado, em algumas discussões sobre essa passagem, a
tendência para suavizar uma metáfora em função de outra. Por exemplo, um autor
poderia resumir o significado de16.19 enfatizando o fato de que as chaves são para
abrir e fechar, a fim de argumentar que Pedro e os apóstolos abririam e fechariam o
reino para as pessoas por meio da pregação do evangelho. Isso soa como se, usando
uma ilustração anterior, as chaves do reino fossem dadas a Pedro e à igreja para
fazer nada mais do que ligar o megafone ou o transmissor do rádio e proclamar o
evangelho. Mas o que dizer do elemento aglutinante nas palavras ligar e desligar? E
o que dizer da ideia de uma assembleia ligada à palavra igreja, a qual Jesus diz que
está edificando? Será que Jesus dá as chaves a Pedro apenas para autorizar um
bando de pessoas a agirem independentemente? Essa tendência especial — para
generalizar em excesso — parece comum aos comentaristas protestantes,
principalmente os evangélicos. Talvez nós, evangélicos, relutemos em ser ligados ou
desligados por qualquer coisa na terra.
Ou um autor poderia decidir que Jesus queria dizer que as chaves são para ligar e
desligar, o que significa que podemos esquecer por completo o fato de que as chaves
são usadas para abrir e fechar portas. As chaves são simplesmente a autoridade para
fazer o que quer que ligar e desligar signifique.
Os estudiosos críticos parecem favorecer essa tática, visto que isso significa
introduzir informações históricas fascinantes sobre possessão demoníaca ou sobre
a interpretação rabínica da lei judaica (Halachá).
Ou, já que as palavras ligar e desligar são claramente utilizadas no contexto de
disciplina na igreja, no capítulo 18, então as chaves do reino devem ter tudo a ver
com disciplina na igreja. Não importa o fato de Jesus dar o chute inicial dessa
conversa em 16.18, falando sobre edificar sua igreja. A tendência de pelo menos
algumas das confissões e explicações mais antigas é a de suprimir o capítulo 16 em
função do18249.
Mas certamente é verdade que há momentos em que os oradores ou os
escritores utilizam uma palavra ou expressão junto a outra apenas para ilustrar ou
explicar a primeira palavra ou um pecado: “Ele é a cabeça do corpo da igreja” (Cl
1.18). A palavra igreja explica um pouco mais ou especifica o que o autor, Paulo,
quer dizer com o corpo. Semelhantemente, alguns têm argumentado que a
autoridade das chaves nada mais é que a autoridade para ligar e desligar250. Acho
que concordo, mas há ainda mais uma razão por que Paulo, no primeiro exemplo,
utiliza a palavra corpo e a palavra igreja. Caso contrário, ele estaria desperdiçando
sua tinta. Elas são duas palavras diferentes, que se baseiam em duas associações ou
significados diferentes; cada qual serve, de modo um pouco diferente, para a nossa
compreensão acerca do que Paulo está querendo dizer. Existe uma mesma verdade
relacionada a chaves, ligar e desligar, mesmo que a última palavra esteja explicando a
anterior.
Em Mateus 16.18-19, à medida que passamos da metáfora da construção para a
metáfora da igreja, das chaves, do reino e do ligar e desligar, precisamos deixar que
cada metáfora se sustente e diga o que tem a dizer. Ao mesmo tempo, é lógico, o
contexto é soberano, o que significa que precisamos deixar que cada metáfora
condicione ou ajude a interpretar as metáforas adjacentes. Sabemos que Paulo, em
Colossenses 1.18, não está falando sobre o corpo físico de Cristo, porque a
metáfora adjacente nos informa isso. Ele está falando da igreja. Todavia, há algo a
respeito da igreja que se assemelha ou possui certa afinidade com um corpo físico, o
que é a razão de ele usar a palavra corpo. Um de nossos alvos ao pensar a respeito
das metáforas mistas sobre a construção, a igreja ou assembleia, as chaves e sobre o
ligar e desligar, creio eu, é considerar como poderíamos associar as ideias sobre
“abrir e fechar” com as de “unir e separar” no contexto de edificar um povo251.
Consideremos várias dessas metáforas em Mateus 16.
Edificar e rocha. Cristo promete edificar um povo sobre a rocha ou sobre o
alicerce da correta confissão de Pedro. Alguns comentaristas questionam se nesse
texto há referências à igreja como um novo templo ou a Pedro como um tipo de
rocha, como Abraão (Is 51.1-2)252. Seja o que for que possamos decidir como
resposta a esse tipo de perguntas sobre o pano de fundo, as palavras de Cristo
“sobre esta rocha edificarei” sugerem a ideia de edificar algo que ainda não existe,
algo que se mantém como uma unidade, como quando alguém constrói um prédio.
Igreja. Cristo está edificando uma igreja, uma assembleia de pessoas para o final
dos tempos. Isso faz sentido à luz da mudança da forma de governo que temos
discutido. O Israel étnico era um povo unificado, edificado por Deus253. Agora,
Cristo está estabelecendo uma nova comunidade e rejeitando Israel como
coletividade254. Portanto, ele está edificando algo, conforme dissemos, mas é uma
assembleia de pessoas. Essas pessoas, assim como um prédio físico, destinam-se a
ser colocadas juntas sobre um fundamento. Em outras palavras, esse não é o
departamento de trânsito distribuindo carteiras de motorista para pessoas sem
nenhuma ligação real umas com as outras, exceto pelo fato de todas serem
motoristas. Em vez disso, uma entidade coletiva está sendo edificada.
As Chaves. Os comentaristas debatem a relevância que as passagens citadas
acima (Is 22.15, 22; Lc 11.52; Ap 3.7; cf. Mt 23.13) possuem para Mateus 16. O fato
de Jesus não continuar falando sobre abrir e fechar, como ele faz em Apocalipse 3,
mas sim sobre ligar e desligar, torna a interpretação um pouco mais difícil. No
entanto, apesar dessas dificuldades, pense por um momento sobre o que uma chave
é. Ela é algo que abre e fecha uma porta, permitindo ou impedindo que uma pessoa
entre num novo espaço ou domínio. Quer estejamos falando literalmente sobre as
chaves de uma casa ou figuradamente sobre as chaves do conhecimento, ou sobre
as chaves do coração de alguém, a ideia básica é que a pessoa que tem as chaves pode
passar para dentro de um novo domínio, tal como o domínio do conhecimento ou o
domínio da intimidade. A ideia básica da metáfora é a de entrada, bem como a de
exclusão.
Reino. As chaves não são as chaves da igreja, em si, mas as chaves do reino, e do
reino de Cristo no Novo Testamento, que, conforme muitos já disseram, não é um
território geográfico, mas um governo ou reinado. Ocasionalmente, encontramos
Cristo falando sobre seu reino em termos de espaço físico, como quando ele fala aos
doutores da Lei e aos fariseus: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque
fechais o Reino dos Céus diante dos homens; pois vós não entrais, nem deixais
entrar os que estão entrando” (Mt 23.13; cf. 7.21; 18.3; 19.23). Mas para deixar que
esta metáfora se sustente e fale, devemos observar que estamos falando sobre o
governo de Cristo. Estamos falando sobre entrar num domínio onde determinados
princípios, crenças, leis, modos de viver, salvação e outras bênçãos se aplicam.
Ligar e desligar. O fato de estarmos falando a respeito de entrar não num reino,
mas num governo, torna-se relevante quando chegamos à metáfora sobre ligar e
desligar. Diversas explicações são dadas para essas palavras255. Talvez a discussão
mais comum gire em torno do fato de saber se Jesus está usando os termos ligar e
desligar de um modo tecnicamente rabínico, para se referir à interpretação da Lei
judaica, ou sobre o fato de algo ser proibido ou permitido256, conforme sugerido
pela tradução de Mateus 16.19b, da Good News Bible (Bíblia Boas Novas). “Aquilo
que você proibir na terra, será proibido no céu; e aquilo que você permitir na terra,
será permitido no céu”. O pensamento aqui é que Jesus disse aos discípulos apenas
para tomar cuidado com a doutrina dos fariseus, e agora ele está declarando Pedro
como um novo tipo de rabino-chefe, porque ele fez uma confissão correta257.
Outros escritores querem enfatizar não só a interpretação da Lei, do modo como
um professor faria, mas também o fato de proferir ou reter o perdão com base na
lei, do modo como faria um juiz258. Entretanto, outros autores argumentam que
não são as leis que são ligadas ou desligadas, mas sim pessoas259, assim como Paulo
fala sobre estar ligado ou desligado de um casamento (por exemplo, 1 Co 7.27,
39)260.
Portanto, como podemos lidar com essas e outras possibilidades? Deixe-me
oferecer três diretrizes sobre como devemos nos encarregar de interpretar a
metáfora sobre ligar e desligar: (1) Não devemos simplesmente importar uma
definição técnica externa para esse versículo, assumindo que, qualquer que seja a
interpretação rabínica para esses termos, ela deve esclarecer o que Jesus tem a
intenção de dizer aqui261. (2) Não devemos suprimi-la em função das metáforas
adjacentes, como a das chaves, mas deixar que ela fale por si mesma. Ligar alguma
coisa, seja essa coisa o que for, significa fazer com que ela fique grudada ou
amarrada, ou presa a uma força gravitacional, não importa se estamos falando de
constelações de estrelas (Jó 38.31), de jumentos (Mt 21.2), de leis (Mt 5.19) ou de
pessoas (Mt 12.29). Essa é uma metáfora que tem a ver com cordas ou cola, ou
princípios que constrangem. Desligar, é lógico, é exatamente o oposto. Portanto, se
você quiser ou não misturar as metáforas, você deve colocar essas palavras numa
frase e depois esguichar um pouco de cola ou de removedor de cola no significado
dessa frase. (3) Nós também devemos deixar que as metáforas adjacentes moderem
ou condicionem o modo como interpretaremos a metáfora sobre ligar e desligar.
Nesse ponto, isso significa que devemos nos lembrar que a discussão é acerca da
edificação de um povo, e que foram dadas a Pedro as chaves para expandir um
governo, o que inclui o direito de expandi-lo.
3) As metáforas sobre ligar e desligar se referem tanto a pessoas como a princípios.
Para sintetizar esses diversos pontos, argumento que a autoridade de Pedro (e da
Igreja) para ligar e desligar lhe outorga a responsabilidade de ligar as duas coisas:
pessoas e princípios. Eu diria que a expressão “qualquer coisa”, no versículo 19, na
verdade significa qualquer coisa — tanto pessoas quanto princípios. Assim como “a
mulher casada está ligada pela lei ao marido” (Rm 7.2), a autoridade de Pedro para
ligar e desligar também envolve pessoas e leis, ou princípios. Lembre-se, Jesus
estabeleceu Pedro como o fundamento da igreja por causa de sua confissão correta.
Tudo começou com sua pessoa e sua confissão. Da mesma forma, Pedro deve agora
garantir que as pessoas certas pertençam à igreja de acordo com uma confissão
correta262. Às vezes, isso significará avaliar pessoas; às vezes, isso significará avaliar
como a doutrina tem sido articulada ou a ampliação de suas implicações. A questão
é que a igreja estende o governo do Reino de Deus com as pessoas certas crendo e
obedecendo as doutrinas corretas. E agora Pedro (e a igreja apostólica) tem
autoridade para fazer esse chamado. Governo, ou controle, sempre envolve ambas
as coisas: pessoas e leis.
Para aqueles que argumentam que as coisas são o objeto dos verbos ligar e
desligar, tais como os mandamentos de Jesus, quero perguntar: “Os mandamentos
de Jesus, por sua vez, não ligam e desligam pessoas (por exemplo: Mt 18.15-18)?”
Para que aqueles que argumentam que as pessoas são o objeto dos verbos ligar e
desligar, quero perguntar: “O que você diria exatamente que é ligado ou desligado?”
São as outras pessoas, sim, mas não são as pessoas à medida que elas aplicam coisas,
tais como os mandamentos de Jesus? Em resumo, é difícil imaginar como alguém
poderia falar sobre ligar e desligar pessoas independentemente de princípios ou
sobre ligar e desligar princípios sem que isso tenha qualquer relação com pessoas.
Por essa razão, penso que uma interpretação mais abrangente da expressão “tudo”
em “tudo o que ligardes na terra” faz mais sentido.
Além disso, creio que podemos dizer que o poder para ligar e desligar envolve
ligar e desligar pessoas, porque minha interpretação é, pelo menos, parcialmente
controlada pela metáfora da chave. Mas, sinceramente, não estou totalmente certo
sobre como eu caracterizaria a relação entre as chaves e o ligar e desligar. Será que o
poder das chaves é simplesmente o poder de ligar e desligar263? Será que ligar e
desligar são um subconjunto do poder das chaves264? Minha opinião é que eles se
referem à mesma autoridade básica, e que o poder das chaves é exercido por meio do
ligar e desligar. (Daqui em diante, eu me referirei a ambas as coisas simplesmente
como o poder das chaves). Mas os dois conjuntos de metáforas são necessários para
explicar o que essa autoridade significa. No entanto, nós as relacionamos: as chaves
são dadas a Pedro por causa da edificação da igreja, por causa da edificação de uma
assembleia de pessoas. O que quer que seja ligado ou desligado, portanto, diz
respeito supostamente a pessoas e ao crescimento da igreja.
4) A metáfora das chaves não diz respeito apenas a tornar o caminho acessível, mas a
unir pessoas à igreja na terra. Se a metáfora da chave condiciona a metáfora sobre
ligar e desligar, o oposto disso também é verdadeiro: a última condiciona a primeira.
Eu já disse que as chaves são para receber (ou excluir) pessoas em um novo
domínio. No entanto, proponho que o que Jesus quer dizer para a sua plateia em
relação às chaves é que elas não são apenas para receber pessoas através de uma
porta, por assim dizer, para dentro de um espaço indefinido; mas para recebê-las
dentro de algo ao qual elas se unirão — numa sociedade a qual elas pertencerão. Em
outras palavras, ele não quer dizer apenas recebê-las; ele quer dizer uni-las ao corpo
de Cristo no céu por meio da união delas com o corpo de Cristo na terra, embora
pudéssemos encerrar definindo a igreja na terra. O elemento aglutinante da
metáfora sobre ligar e desligar recomenda essa interpretação, e o versículo anterior
recomenda isto: Jesus não está edificando um grupo de indivíduos desassociados,
mas sim uma igreja, um ajuntamento. O século I, o antigo pano de fundo cultural do
Oriente Próximo também recomenda isso. As pessoas não pensavam nas mesmas
categorias individualistas nas quais pensamos hoje em dia. O enredo da história de
Mateus recomenda isso, uma vez que Jesus está substituindo um povo coletivo por
outro. O subtema que temos visto a respeito de nos guardamos da hipocrisia,
observando os enganadores e professando adequadamente o nome de Jesus
também recomenda isso. Mais uma vez, Jesus não tem a intenção de que Pedro
simplesmente distribua autorizações a pessoas independentes. Ele tem a intenção
de edificar um povo único, unido sobre um fundamento único, com uma profissão
de fé única, de modo que o mundo possa saber quem tem o direito de falar em nome
dele.
Jesus está concedendo um alvará institucional a Pedro. Ao usar a palavra
institucional, não estou falando de algo estático ou inerte. Apenas quero dizer que
Jesus está autorizando Pedro a estabelecer na terra uma sociedade de pessoas que
possui limites definidos, uma fonte comum de identidade, um conjunto de crenças e
regras compartilhadas, e assim por diante. Como todas as demais, essa sociedade
deve ser construída com pessoas, as quais possuem certas coisas ou princípios em
comum, assim como uma sociedade de observadores de pássaros ou uma liga de
libertários ou de escoteiros. Mas não são os pássaros ou a política que unem as
pessoas dessa sociedade, é a sua submissão ao governo de Cristo. A igreja na terra,
portanto, é a sociedade de pessoas que compartilha da profissão de fé de Pedro, de
que Jesus é o Messias, o filho de Davi. É a sociedade onde o reino de Cristo é
representado, apresentado, posto em ação, exibido e expandido.
Mas os crentes não são unidos pelo sangue da aliança de Cristo? Sim, e
chegaremos nisso no próximo capítulo. Meu argumento aqui é do tipo que imagino
que os evangélicos geralmente omitem, a saber, que nós também somos unidos por
meio de nossa sujeição compartilhada à sua autoridade real e messiânica. Se, além
disso, uma pessoa com autoridade messiânica delegar um pouco de sua autoridade a
um procurador na terra — nesse caso, a Pedro e à igreja apostólica —, então, a
nossa unidade por meio do governo de Cristo se traduzirá necessariamente em
estar unido a esse procurador, à igreja apostólica na terra265. Nós estamos unidos
coletivamente pela obra de Cristo na cruz, sim, mas também estamos unidos
politicamente, por assim dizer, por meio de nossa obediência compartilhada a esse
governante messiânico e ao seu procurador que tem o poder das chaves.
Justamente por isso, qualquer um que declare que “Jesus é o Cristo” e tente
levar o seu nome publicamente deve pertencer a essa sociedade na terra, a igreja.
Há somente uma rocha sobre a qual a verdadeira igreja é edificada e contra a qual as
portas do inferno não prevalecerão, e há somente um conjunto de chaves, o qual
agora pertence à igreja. Ninguém mais o possui. Uma pessoa que declara “Jesus é o
Cristo”, mas se recusa a se submeter ao agente do rei que tem as chaves na terra,
ainda não se submeteu, de fato, ao rei. Sua profissão de fé é falsa. Se estivermos
unidos ao governo de Cristo por meio de nossa submissão, e se ele deu as chaves do
posto de governo para Pedro e para a igreja apostólica, logo, todos os que professam
seu nome devem se submeter à igreja apostólica.
5) O poder das chaves (de ligar e desligar) diz respeito tanto à entrada na nova
comunidade quanto à manutenção da vida dessa comunidade. Será que as chaves do
reino são usadas para conduzir pessoas para a nova comunidade da igreja ou para
manter a vida dessa comunidade? Alguns são inflexíveis, dizendo que elas ou são
para uma coisa ou são para outra266. À luz da conversa anterior, acho que faz mais
sentido dizer que as chaves do reino dão a Pedro e, enfim, à igreja, a autoridade
tanto sobre a porta de entrada para a nova comunidade quanto sobre a manutenção
da sua vida coletiva. Não estou querendo dizer que esses versículos nos dão
autorização para passar a detalhes da política organizacional de como isso é feito de
fato, mas simplesmente que a autoridade para unir e manter a vida da igreja na
terra começa nesse ponto.
Quando Jesus caracteriza Pedro como o fundamento sobre o qual a igreja seria
edificada, é difícil pensar que Jesus não estivesse falando da porta de entrada para a
igreja. No entanto, é difícil perceber como a ideia de ligar e desligar poderia não
envolver a porta de entrada e a manutenção da vida da igreja, principalmente se o
fato de ligar e desligar envolverem lei, doutrina ou crença nas coisas certas. Grosso
modo, uma pessoa deve acreditar nas coisas certas para entrar na igreja, e uma
pessoa deve acreditar nas coisas certas para continuar nela. O mesmo é verdade na
referência que Jesus faz sobre ligar e desligar, em Mateus 18, no contexto da
disciplina na igreja — a disciplina na igreja começa como um ato de manutenção da
vida da igreja, e termina na porta de saída da igreja.
Teologicamente, isso faz sentido à medida que a igreja é edificada e o reino é
expandido de acordo com os mesmos princípios pelos quais são mantidos:
arrependimento e fé. Sem arrependimento e fé, não há igreja, porque não há um
reino. Enfim, concordo basicamente com Leon Morris acerca de Mateus 16.18-19:
“Boas razões podem ser apresentadas para sustentar que Jesus queria dizer que a
nova comunidade exerceria a autoridade dada por Deus tanto para controlar seus
assuntos internos quanto para decidir quem seria admitido em sua membresia e
quem seria excluído dela.”267
6) A Grande Comissão representa o clímax da obra de comissionamento começada em
Mateus 16 e 18.
Já tenho observado algumas ligações textuais sutis entre os capítulos 16, 18, e
28: Jesus, de modo implícito ou explícito, invoca sua autoridade em todos os três,
bem como o seu relacionamento com o Pai celestial. Ele autoriza os discípulos a
agirem em seu nome em todos os três. E ele promete estar com os discípulos que se
identificam pelo seu nome nos capítulos 18 e 28. Quanto ao fato de sabermos se
podemos fazer uma conexão exegética ou apenas teológica entre o capítulo 28 e os
dois capítulos anteriores, parece que a autoridade inicialmente concedida no
capítulo 16 e aplicada a uma capacidade específica de alguém no capítulo 18 chega a
um clímax e a um novo tipo de expressão em 28.16-20.
Alguns dos comentaristas que argumentam que ligar e desligar dizem respeito
somente à interpretação da Lei fazem essa ligação268. A maneira como o
mandamento de Jesus para ensinar tudo o que ele ordenou remonta à autoridade
para o ensino, que foi concedida no capítulo 16. Se minha leitura das chaves, do
ligar e desligar, estiver correta, poderíamos desejar expandir essa ligação. E não é só
o mandamento do capítulo 28 para ensinar que poderia remontar ao capítulo 16,
mas também o mandamento para batizar novos discípulos. Batizar alguém, afinal, é
identificá-lo publicamente com a morte e ressurreição de Cristo Jesus. É dizer que
ele leva o nome de Cristo. É identificá-lo com o povo de Cristo, a igreja. É distingui-
lo como alguém que está entrando no reino e na igreja. Em certo sentido, a Grande
Comissão, pelo menos teologicamente, se não também exegeticamente, parece dar
expressão ao poder das chaves em ação. Ou seja, a igreja exerce o poder de suas
chaves de autoridade batizando pessoas na igreja e ensinando-lhes tudo o que
Cristo ordenou. Embora as ligações em Mateus pudessem ser mais tênues, creio
que podemos encerrar esse caso a partir das passagens sobre a Ceia do Senhor nos
Evangelhos e em 1 Coríntios, onde o poder das chaves é também exercido por meio
da Ceia do Senhor, principalmente à medida que ela diz respeito à manutenção da
vida coletiva da igreja269.
Quem, então, devemos dizer que tem autoridade para batizar e confirmar
profissões de fé? Quem está encarregado de proteger o nome de Cristo e de separar
os professos legítimos dos charlatães? Quem está encarregado de manter a vida da
comunidade e de supervisionar o discipulado do povo de Cristo? Somente a igreja
apostólica na terra, porque apenas a igreja apostólica tem as chaves de autoridade
do reino e as prerrogativas para ligar e desligar.

CINCO ASPECTOS DA AUTORIDADE DE UMA IGREJA Então, o que Cristo


autoriza a igreja a fazer em Mateus 16, 18, e 28?
Cristo autoriza a igreja a agir em pelo menos cinco aspectos, visto que eles dizem
respeito à membresia e à disciplina, os quais podem ser ilustrados de modo mais
abrangente no Novo Testamento.
Em primeiro lugar, Jesus autorizou a igreja apostólica a ser a proclamadora e a
guardiã das boas novas de Jesus Cristo. Lembre-se de que toda essa conversa
começou com Jesus perguntando aos discípulos quem ele era. A confissão de Pedro,
juntamente com Pedro, o apóstolo, é a rocha na qual a igreja é edificada, e a ele
foram dadas as chaves do reino para ligar e desligar (entre outras coisas) as
aplicações da verdade. Vemos esse aspecto das chaves em movimento, por exemplo,
quando Paulo repreende as igrejas da Galácia por ouvirem um falso evangelho. Ele
as critica por não protegerem o verdadeiro evangelho como deveriam (Gl 1.6-9), e
admite que até mesmo sua própria autoridade como apóstolo depende do fato de ele
guardar essa mensagem (1.8; também 2.11ss.).
Em segundo lugar, Jesus autorizou sua igreja a confirmar qualquer indivíduo que
professe o evangelho de modo fidedigno, assim como Jesus confirmou Pedro por
causa de sua profissão de fé. Primeiro vem uma confissão de fé, depois vem uma
confirmação tanto da confissão quanto do indivíduo que a faz. Isso também parece
ser um aspecto do exercício do poder das chaves do reino para ligar e desligar,
porque uma confirmação é feita formalmente por meio do batismo. A igreja antiga,
portanto, batizava “aqueles que aceitavam a palavra de Pedro” (At 2.41), aqueles
que haviam “recebido o Espírito Santo” (At 10.47) e aqueles que “criam” (At 8.13,
18.8). Ela batizava pessoas no “nome de Jesus” (At 2.38, 8.16, 10.48, 19.5, 22.16;
Rm 6.3), e não havia dúvidas de que ela o fazia mediante a confissão de Jesus como
Senhor (Rm 10.9). Em contraste com isso, Jesus não autorizou a igreja a confirmar
a profissão de fé em Paulo, Apolo ou Cefas (1 Co 1.13-16). Ele não a autorizou a
confirmar a fé de “cristãos anônimos” ou que nunca confessam Cristo com sua boca
(cf. Rm 10.9). Ele a autorizou a fazer uma declaração pública do fato de que este ou
aquele o pertencem quando sua profissão de fé é fidedigna.
É importante ressaltar, a essa altura, que estou fazendo distinção entre
confirmar e reconhecer. Sim, qualquer um, até mesmo um descrente, pode
reconhecer que este ou aquele “é um cristão”. O que quero dizer é que a igreja tem o
poder da confirmação pública formal, do mesmo modo como o secretário de
imprensa da Casa Branca anuncia formalmente as palavras do presidente. Eu
poderia reconhecer pessoalmente o que o presidente dos Estados Unidos disse, mas
eu não me atreveria a me levantar na frente do gabinete de imprensa de
Washington e anunciar formalmente o que ele disse. O presidente não me concedeu
tal autoridade. Na igreja, esse reconhecimento formal acontece por meio do
batismo e da distribuição da Ceia do Senhor. Em lugar algum do Novo Testamento
encontramos as pessoas batizando a si mesmas ou dando a Ceia do Senhor a si
mesmas. Nem tampouco vemos qualquer outra pessoa, além da igreja, exercendo
essa autoridade, incluindo o maior dos profetas, o pré-apostólico João Batista. Nem
mesmo ele teve autoridade para batizar, para afirmar formalmente uma pessoa
como pertencente ao corpo de Cristo (por exemplo, Atos 11.16, 19.3-4). No Novo
Testamento, vemos os apóstolos, a igreja apostólica ou algum representante dela
conduzindo batismos e distribuindo a Ceia do Senhor.
Em terceiro lugar, Cristo autoriza sua igreja apostólica na terra a unir tais
professos num ato de aceitação que envolve cuidado. Eu trato disso como pelo
menos uma implicação do que acontece quando a igreja confirma a profissão de fé
de uma pessoa, mas isso provavelmente é outro exemplo do que significa ligar ou
desligar na terra. A primeira vez que vemos a igreja apostólica exercer essa
autoridade para unir novos crentes a si mesma é em Atos 2: “Os que lhe aceitaram a
palavra foram batizados, havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil
pessoas” (v. 41; cf. 2.47; 4.4).
Ao usar a linguagem de “união”, não estou querendo sugerir que a igreja tenha
algum tipo de poder de unir os crentes ao corpo místico de Cristo, como podemos
encontrar em algumas formulações ou concepções católicas ou ortodoxas. Pelo
contrário, quero dizer que se submeter a Cristo, o Rei, exige que nos submetamos
ao seu governo conforme ele está representado na terra, o que por sua vez nos
obriga a nos unirmos a essa sociedade apostólica que possui as chaves do reino, a
igreja. Talvez uma palavra melhor que unir seja receber (cf. Mt 10.14, 40). Os
protestantes às vezes falam de “receber uma pessoa como membro”. O sentido
passivo da palavra receber implica no fato de que Deus está fazendo a doação. Se a
igreja apostólica percebe que uma profissão de fé é fidedigna, ela não tem escolha, a
não ser unir essa pessoa a si mesma por meio do batismo. Conforme Pedro
declarou: “Porventura, pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados
estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo?” (At 10.47). A resposta
implícita é não. Ninguém tem o direito de negar a um cristão aquilo que Cristo já lhe
concedeu. Ele é Senhor. Do lado humano das coisas, no entanto, o ato do batismo
acontece somente quando autorizado por um apóstolo, pela igreja apostólica ou por
representantes dela onde não haja igreja (por exemplo, At 8.26, 36). Por essa razão,
lemos que Pedro “ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo” (v. 48).
Em quarto lugar, Jesus autoriza sua igreja a afastar e excluir qualquer impostor
que prejudique os membros da família, degrade o seu nome e, desse modo, impeça o
testemunho da igreja ao mundo. Já vimos Jesus se referir a esse aspecto da
autoridade da igreja em Mateus 18 (cf. Mt 7.15-23). Pedro parece exercer essa
autoridade ao disciplinar Ananias e Safira por mentirem ao Espírito Santo (At 5.1-
9), e depois, novamente, quando ele parece excluir da comunhão Simão, o mágico,
dizendo: “O teu coração não é reto diante de Deus” (At 8.21). Muitos outros
exemplos como esses poderiam ser mencionados no Novo Testamento (por
exemplo, 1 Co 5.5; 2 Ts 3.14; Tt 3.10, 2 Jo 10-11).
Em quinto lugar, ele autoriza sua igreja a prover supervisão a todos os professos; a
guiá-los; direcioná-los e equipá-los por meio de sua Palavra, para que tenham uma
união mais íntima com ele e com todos os filhos de Deus. Isso está implícito nos
pontos três e quatro acima, e se torna explícito em Mateus 28, quando Jesus diz aos
apóstolos para ensinarem aqueles a quem eles batizavam. Unir uma pessoa ao
corpo exige algum nível de conhecimento; disciplinar uma pessoa, se a igreja o fizer
com alguma integridade, também exige que a igreja continue com sua supervisão.
Além disso, os apóstolos admitiram claramente que as palavras Jesus implicam em
que no mínimo a liderança da igreja deve exercer supervisão em nome da
congregação. Por essa razão, Paulo diz aos presbíteros em Éfeso: “Atendei por vós e
por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para
pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At
20.28; também 1 Pe 5.2; Hb 13.17). No entanto, a obra da igreja de supervisionar
também é uma implicação clara de todos os mandamentos sobre “uns aos outros”
ao longo do Novo Testamento. Jesus diz ao Pai que ele tem guardado e protegido
todos os filhos que o Pai havia dado a ele, com exceção de um (Jo 17.12; também
12.28-29; 18.9). Os membros das igrejas, da mesma forma, devem se esforçar para
manter um ao outro no amor de Deus, tendo misericórdia daqueles que estão na
dúvida, arrebatando-os do fogo, demostrando uma misericórdia misturada com
temor para controlar os outros (Jd 21-23).
Resumindo, Jesus outorga à igreja apostólica a autoridade para guardar e
proteger o evangelho; para confirmar as legítimas profissões de fé no evangelho;
para unir esses professos a si mesma; para proibir ou excluir os professos que não
têm credibilidade e para supervisionar o discipulado dos crentes. Ela tem
autoridade para traçar uma linha limítrofe ao redor daqueles que dão uma
profissão de fé fidedigna.

O QUE O ALVARÁ DIZ?


Alguns momentos atrás, eu disse que é difícil escapar da sensação de que algo
institucional está acontecendo quando olhamos para os capítulos 16, 18 e 28 do
Evangelho de Mateus. Na verdade, acho que é isso o que está acontecendo. Jesus
passa eficazmente aos seus discípulos um alvará institucional. O que esse alvará
diz? A partir de Mateus 16, 18, 28 e outras passagens do Novo Testamento,
proponho que ele diga o seguinte:
Com isso, eu outorgo à minha igreja apostólica, ao único ajuntamento escatológico e celestial, a
autoridade para agir como curador e testemunha de meu reino na terra. Autorizo esse corpo
real e sacerdotal, onde quer que ele se manifeste entre duas ou três testemunhas reunidas
formalmente em meu nome, a confirmar publicamente todas as pessoas que professam o meu
nome de forma fidedigna e me seguem como Senhor, e a se identificar comigo e com elas; a
supervisionar o discipulado delas, ensinando-lhes tudo o que tenho ordenado; a excluir todos os
falsos professos e desobedientes, e a fazer mais discípulos, identificando esses novos crentes
com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, por meio do batismo.

Jesus é um rei que, nesses capítulos, concede aos nobres um alvará que os
autoriza a edificar em seu território.
Começa-se a perceber o quão extraordinariamente tolo é o fato de tantos
evangélicos suporem que eles mantêm essa autoridade por si mesmos, o que eles
fazem sempre que dizem que sua fé cristã pertence a eles, e que eles não precisam
de uma igreja para confirmá-la. Será que nos atreveríamos a recrutar alguém para
um time de futebol profissional ou nos atreveríamos a oferecer uma posição no
gabinete do Primeiro-Ministro britânico? É claro que não. Do mesmo modo, não
poderíamos tentar entrar no exército pedindo que o exército nos receba. Sabemos
que não temos essa autoridade. Então, quem tem a autoridade para afirmar e unir
formalmente alguém ao corpo de Cristo? Cristo certamente o tem. Além disso,
essas três passagens em Mateus nos dizem que ele deu sua autoridade aos
apóstolos, os quais foram exclusivamente comissionados com a mensagem
apostólica para estabelecer o fundamento da igreja. Mas, uma vez que o
fundamento tenha sido estabelecido e os apóstolos tenham morrido, essa
autoridade não passou adiante a todas as pessoas do planeta. Essa autoridade foi
repassada para a igreja. Somente a igreja apostólica tem autoridade para batizar.
Exatamente porque vivemos entre a inauguração do reino e sua consumação;
exatamente porque a autoridade continua a ser um assunto complexo nesta época;
exatamente porque os cristãos são ao mesmo tempo justificados e pecadores;
exatamente porque somos tão propensos ao autoengano; exatamente porque esses
dois aspectos são radicalmente opostos, mas suas imagens de amor são lançadas
justapostas na mesma tela; e exatamente porque o mundo precisa de quem distinga
o amor verdadeiro do amor mundano, Cristo não autorizou indivíduos, mas antes a
igreja apostólica, a distinguir um povo para si mesmo e a mantê-lo unido.

Ponto 4: Mesmo com todas as suas imperfeições, a igreja


representa Jesus na terra. Ela dá testemunho de sua salvação
e de seu julgamento vindouros.

UM ALVARÁ TERRENO
Como então devemos entender o relacionamento entre o ligar e desligar da igreja
apostólica na terra e aquilo que acontece no céu? Os intérpretes tendem a se
concentrar no fato de se as expressões verbais de Mateus 16.19 e 18.18 devem ser
traduzidas no futuro simples (“ligares”/“será ligado” — King James, NVI, New
Revised Standard Version, English Standard Version) ou no particípio passado
(“tiver sido ligado”/“terá sido ligado” — New American Standard Bible). Ambas são
traduções tecnicamente legítimas, mas parecem levar à conclusões teológicas
diferentes; os protestantes geralmente optam pela última, e os católicos romanos,
pela primeira.
Não estou convencido de que a forma como a traduzimos realmente importa,
porque a questão é que Jesus está dando essa incumbência para estabelecer a igreja
como sua representante na terra270, e quando uma das partes exerce autoridade
em nome da outra, essa nova autoridade que representa a outra parte é, em certo
sentido, eterna. Muito provavelmente, essa expressão tem um sentido presente e
futuro. Pense numa babá que representa a autoridade dos pais. Os pais colocam–na
no encargo até que eles retornem, momento em que todas as promessas ou
advertências da babá serão vindicadas. Do mesmo modo, o encargo de Jesus para a
igreja, de agir como sua representante, poderia ser dado em termos passados,
presentes ou futuros. Deixe-me ilustrar isso com outra analogia.
Jesus é como o proprietário de um prédio dizendo ao corretor de imóveis: “Diga
aos inquilinos que as suas decisões são as minhas decisões.” Essa é uma referência
presente. Eis uma referência no passado: “Se você gostou dos inquilinos, então eu já
gostei deles.” E aqui está uma referência futura: “Se você tiver um problema com
eles, eles terão um problema comigo.”271 Será que isso significa que o proprietário
do edifício espera que o corretor leia o seu pensamento com perfeição, ou que ele
acha que concordará com todas as decisões que o corretor tomar, ou mesmo que ele
proibirá os inquilinos de apelarem diretamente a ele em caso de discordância com o
corretor? Certamente que não. O dono está simplesmente estabelecendo que, por
uma questão de princípio, o corretor fale em seu nome. Jesus elaborou um
argumento semelhante alguns capítulos antes desse: “Quem vos recebe a mim me
recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (Mt 10.40).
A verdadeira questão que divide protestantes e católicos é que tipo de
representante a igreja é, questão que pode ser ilustrada com as diferenças entre as
duas analogias que utilizei — a de um corretor de imóveis e a de um embaixador.
Um corretor, na função de representante, pode tanto fazer declarações quanto
executá-las. Ele não apenas declara que pode alugar um apartamento, mas tem a
procuração judicial para alugar o apartamento. Um embaixador, por outro lado,
somente pode fazer declarações em nome de seu rei. Ele pode dizer a um rei
inimigo: “Meu rei agirá de modo decisivo se você não remover suas forças”, ou até
mesmo: “Por meio desse pronunciamento, meu rei declara guerra a você.”
Enquanto a Igreja Católica Romana ensina essencialmente que a igreja é mais
como um corretor de imóveis (com o poder de execução)272, é melhor comparar a
igreja a um embaixador (com a autoridade para reproduzir declarações). Não há
nada nessa passagem que induza a responder àquela pergunta de um modo ou de
outro, incluindo o fato de a expressão em questão estar se referindo a algo no
passado ou no futuro. Precisamos do restante das Escrituras para respondê-la.
O que é importante reconhecermos aqui é que Jesus encarregou a igreja de falar
em nome dele na terra, e ele quer que todo o mundo saiba disso. Um membro de
igreja que esteja vivendo num pecado sem arrependimento precisa saber que a
igreja fala em nome de Jesus. Jesus voltará para cobrar as advertências da igreja
contra os pecados sem arrependimento. Um descrente que rejeite o evangelho da
igreja precisa saber que a igreja fala em nome de Jesus. Jesus voltará para cobrar o
chamado da igreja para o arrependimento. A questão não é se igreja pode discernir
de forma onisciente ou divina o estado fundamental de qualquer pessoa num
determinado momento273. A questão é que o mundo deve prestar atenção às
promessas e advertências da igreja porque Jesus deu à igreja a autoridade de falar
em seu nome, como uma embaixatriz, e ele voltará para cumprir as palavras dela.
Às vezes, a igreja fará isso de modo errado. Haverá situações em que ela afastará
ou excluirá pessoas que são cristãos verdadeiros, e às vezes ela receberá
erroneamente pessoas que não são cristãs. Mas isso não significa que a autoridade
da igreja desvaneceu. Quaisquer promessas ou advertências dadas por uma babá
poderão estar erradas, mas isso não diminui a autoridade da babá para comandar
enquanto os pais estiverem ausentes. O fato de que a igreja possa cometer erros
não serve de desculpa para que o mundo ignore suas advertências e promessas, do
mesmo modo como uma criança não pode dizer a uma babá: “É provável que você
esteja errada quanto ao horário em que eu supostamente tenho que ir para a cama.
Por essa razão, posso ignorá-la de modo legítimo, ficar acordado e assistir televisão.”
Se eu soubesse que minha filha disse isso a uma babá, eu a disciplinaria por rejeitar
a autoridade que dei à babá assim que retornasse274. Eu explicaria para ela que esse
rebeldia era uma rejeição à minha autoridade.
A igreja terrena, é importante lembrar, é um representante escatológico. Sua
vida e suas declarações apontam para uma realidade do final dos tempos. Ela aponta
para o que acontecerá. Todavia, exatamente como minha própria vida cristã aponta
de modo imperfeito para o que acontecerá, a igreja na terra o faz do mesmo modo.
A igreja na terra não representa o povo escatológico de Deus de modo perfeito, mas
deve fazê-lo da melhor forma possível275. Esse é o trabalho dela. Cristo deu à igreja
a autoridade para ligar e desligar — para fazer uma confirmação pública da inclusão
ou exclusão de uma pessoa com base na ligação dela com o evangelho. Ele pretendia
fazer uma ligação representativa clara e real entre a autoridade do Pai que está no
céu e a autoridade declarativa da igreja que está na terra276. A boa notícia é que ele
não é compelido a atestar os erros da igreja, assim como não sou compelido a
atestar os erros de uma babá. A Segunda Confissão Helvética descreve a autoridade
representativa e declarativa da igreja desta forma:
Pois vemos que o patrão dá ao mordomo autoridade e poder sobre a sua casa; e por causa disso
lhe oferece as chaves, para que ele possa receber ou expulsar do modo como o seu patrão
receberia ou expulsaria... O Senhor, de fato, ratifica e confirma aquilo que faz, reconhecendo as
obras de seus ministros e as considerando como se fossem as suas próprias277.

A expressão que precisamos observar aqui é: “reconhecendo as obras de seus


ministros e as considerando como se fossem as suas próprias.” Em outras palavras,
Jesus fará com que o mundo saiba que a igreja fala em nome dele. A expressão de
Lutero também assimila essa ligação representativa: “Esse julgamento é do próprio
Cristo.” Novamente, a igreja fala em nome de Jesus. A igreja tem autoridade não
porque é onisciente, mas porque Cristo a comissionou para se levantar e falar — ou
melhor, para ir e falar — em seu lugar.
Ponto 5: A igreja, portanto, é o procurador de Cristo na terra.

O PROCURADOR DE CRISTO E A CONVERSÃO


O governo amoroso de Cristo cria um povo e o mantém unido. Ele cria toda uma
nova realidade a partir do zero. Ele cria a igreja — uma sociedade com um centro,
limites, propósitos e uma definição. Dados a idolatria do amor da cultura
contemporânea e o evidente desdém para com a autoridade, tudo isso parece um
tanto irônico. A igreja é colocada para juntar as forças e para estar unida por meio
da autoridade, e essa autoridade é o que é utilizado para definir o amor. Para que
essa autoridade esteja certa, ela deve estar fundamentada no amor de Deus; mas
seu amor comissiona o seu governo a declarar um povo como seu, o qual, por sua
vez, define o amor. Conforme vimos no Capítulo 2, é por essa razão que o amor e a
obediência andam tão intimamente ligados ao longo do Evangelho de João. Cristo,
portanto, transfere seu governo amoroso para a igreja, conforme eu disse acima,
que age como seu procurador. A igreja, do mesmo modo, fundamentada em seu
amor, executa seu governo (para fazer declarações como um embaixador, não para
as executar, como um corretor de imóveis), por meio da união de indivíduos a si
mesma e da supervisão de seu discipulado. Ela faz isso por meio da proclamação de
seu evangelho, chamando pessoas para a sua nova criação, distinguindo por meio do
batismo e da Ceia do Senhor aqueles que chegam.
O que isso significa desde a perspectiva do indivíduo? Bem, retornemos ao tema
da conversa. A conversão, conforme já dissemos, é normalmente definida pelos
teólogos sistemáticos como arrependimento e fé, pelo menos no lado humano da
equação. Desde o início do ministério de Jesus, ele proclamava: “O Reino de Deus
está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Arrepender-se é
renunciar ao próprio governo e se render ao governo de Deus. Entrar no Reino de
Deus significa submeter a nós mesmos e todos os nossos recursos ao governo de
Deus e confiar em sua provisão para a salvação. Se Cristo transfere alguns aspectos
de seu governo para a igreja, a fim de que ela funcione como o seu procurador, isso
significa que, para o crente, o convertido é imediatamente conduzido a estar sob a
autoridade da igreja. É como um dono de time de futebol contratando um jogador e
depois dizendo a ele que, se ele quiser jogar, terá que ouvir o técnico do time. A fim
de se submeter ao dono do time, o jogador deve se submeter ao seu técnico. O dono
contrata, mas o técnico planeja as práticas, faz a relação dos jogadores e os convoca.
Os crentes se submetem a Cristo se submetendo à igreja apostólica, em quaisquer
que sejam as áreas nas quais Cristo tenha dado autoridade à igreja.
Essa é justamente a razão por que Pedro responde aos judeus que estavam
gritando com convicção pela crucificação de Jesus: “Arrependei-vos, e cada um de
vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e
recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Ele não diz apenas para que eles se
arrependam. Ele também ordena que sejam batizados. Isso não significa que o
batismo regenera ou infunde graça. Pedro está simplesmente dizendo: “Diga ao
proprietário que você desistiu de tentar ser o seu próprio patrão e que você agora
quer jogar para ele, e depois prove isso, dizendo-o imediatamente ao seu técnico.” O
arrependimento é publicamente demonstrado no batismo; ele é demonstrado na
submissão à autoridade da igreja. Submetam-se a Cristo, Pedro está dizendo,
submetendo-se à igreja. O batismo não significa apenas isso, mas significa pelo
menos isso.
A conversa não é simplesmente a respeito de ultrapassar um limite. É a respeito
de mudar as sujeições e de se submeter a toda uma nova realidade. É orbitar em
torno de um novo sol. Se o arrependimento for conduzido por meio da igreja, e se o
arrependimento for mais do que um acontecimento único, como a submissão a um
novo governo, então a vida de arrependimento será uma vida vivida no contexto da
igreja. A igreja dá forma à vida cristã.

Passo 6: O fato de a igreja ser o procurador de Cristo na terra


quer dizer que o cristão deve se submeter à igreja na terra, o
que significa se submeter à igreja local.

SUBMETER-SE AO PROCURADOR UNIVERSAL OU LOCAL?


O cristão deve se associar — ou submeter-se — a uma igreja local? Os cristãos
não podem simplesmente se submeter à igreja apostólica universal? “Ter um
relacionamento correto com Deus e com seu povo é o que importa”, diz George
Barna; “o âmago da questão não é se uma pessoa está ou não envolvida numa igreja
local, mas se está ou não ligada ao corpo de crentes na busca pela piedade e pela
adoração.” A conclusão final: “Você percebe? Isso não diz respeito a igrejas. Mas,
sim, à Igreja — ou seja, o povo que participa ativamente do avanço intencional do
Reino de Deus numa parceria com o Espírito Santo e com outros crentes.”278 Então,
por que não ser batizado num acampamento para jovens ou numa cruzada para
homens? Por que não seguir uns poucos superapóstolos, de conferência em
conferência, como os fãs da banda Grateful Dead, pelo menos nos meses de verão?
Por que não frequentar uma igreja por causa da música, outra por causa dos
sermões e outra por causa dos pequenos grupos? Apenas esteja certo de que você
está pessoalmente “na Palavra” e tem alguns “relacionamentos de prestação de
contas”. Complemente a sua dieta de leitura bíblica diária com uma lista de
perguntas que você fará ao seu amigo crente durante sua partida de golfe semanal,
aos domingos de manhã.
Com certeza, devemos dizer que ser membro da igreja universal é parte
constituinte de ser um cristão, ao passo que a membresia na igreja local não é.
Admitimos que, no último dia o ladrão da cruz, arrependido, será tido como
pertencente à igreja universal, mesmo que nunca tenha se unido a uma igreja local.
Ao escrever aos coríntios, Paulo se refere a eles como “a igreja de Deus que está em
Corinto”, e depois os descreve como os “chamados para ser santos, com todos os que
em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso”
(1 Co 1.2). Contanto que dois cristãos invoquem o nome de Cristo, que importa se
eles pertencem a igrejas locais separadas ou a qualquer outra igreja local?
A breve resposta é que a igreja local está onde a igreja na terra está. E não apenas
isso, ela está onde a igreja do céu está. Observe que Paulo se refere à igreja em
Corinto como “a igreja de Deus que está em Corinto”. Ele não diz uma igreja. A
assembleia celestial escatológica de Cristo (do final dos tempos) está representada
ali, entre aquelas pessoas. Os crentes congregados em Corinto são, nas palavras de
Ed Clowney, uma colônia do céu. Se você já esteve dentro da embaixada de sua
própria nação, num país estrangeiro, os seus concidadãos que trabalham atrás do
balcão lhe dirão: “Você está sobre o solo de nossa nação.” Mas a pátria do povo de
Deus não está em lugar algum deste planeta. Só há embaixadores e embaixadas. A
igreja na terra forma essas embaixadas de embaixadores reunidos no nome de
Cristo. O que isso significa é que um indivíduo não pode submeter a vida e o
discipulado de uma pessoa de forma significativa, verdadeira ou autêntica tanto a
Cristo como ao seu procurador terreno em qualquer outro lugar que não seja a
igreja local. Submeter-se a Cristo significa se submeter à autoridade da inclusão, à
autoridade da supervisão e à autoridade da disciplina de seu representante
apostólico na terra. Então, como o fato de ser batizado num acampamento de
jovens pode cumprir isso? Como o âmbito das conferências pode disciplinar seus
fãs, ou como os colegas cristãos do jogo de golfe podem ajudar a proteger o
evangelho apostólico de geração a geração?

ONDE ESTÁ A IGREJA NA TERRA?


Jesus deu aos apóstolos a autoridade para ligar e desligar na terra. Se
concordarmos que os crentes precisam se submeter à igreja apostólica na terra, a
pergunta inevitável é: onde a igreja na terra está, segundo a Bíblia? Será que os
crentes que se reúnem para um show uma única vez constituem uma igreja?
Conheço um anglicano australiano que acha que sim. A igreja é um ajuntamento;
um show cristão é um ajuntamento; logo, um show cristão é uma igreja. Correto? E
o que dizer de três mães crentes que se encontram regularmente no parque local e
talvez conversem sobre a Bíblia enquanto seus filhos brincam? Elas constituem
uma igreja? E o que dizer de dois cristãos esbarrando um no outro no corredor de
cereais do supermercado?
Uma maneira de determinar a localização da igreja na terra é examinar todos os
exemplos da palavra igreja (eclesia) no Novo Testamento, e simplesmente perguntar
onde os autores do Novo Testamento a situam. No Novo Testamento, encontramos
referências à igreja universal escatológica (Mt 16.18) e às igrejas locais (Mt 18.17).
Existem algumas controvérsias em torno da questão sobre se as igrejas nas casas
podem ser distinguidas das igrejas da cidade (por exemplo, 1 Co 16.9; Cl 4.15-16),
ou se Lucas se refere à “igreja” como uma designação regional (por exemplo, At
9.31). Mas, de forma geral, percebemos que todas as referências às igrejas, exceto
as referências à igreja universal, dizem respeito às igrejas locais, mesmo quando
elas são mencionadas como a igreja de uma região específica279. Não há referências
a crentes passando um tempo juntos ou mesmo realizando boas obras. Não há
referência alguma a uma estrutura administrativa multinacional. Nem mesmo o
apóstolo Paulo e seu grupo de viajantes referem-se a si mesmos como igreja. No
Novo Testamento, a igreja na terra, determinada pela aparição da palavra igreja,
parece-se com a igreja local e nada mais. Isso é útil para o argumento, mas as
epístolas menores, como 1 João ou 1 Pedro, nunca mencionam a palavra igreja. A
primeira carta de Pedro é escrita aos “eleitos que são forasteiros da Dispersão” (1 Pe
1.1). Serão eles aqueles cristãos que estão dispersos sozinhos ou em grupos
menores — alguns no acampamento, alguns frequentando conferências, alguns
jogando golfe, alguns frequentando reuniões diversas, mas sem se submeterem a
ninguém?
Ao longo da história da igreja, os clérigos e teólogos têm dado respostas
diferentes para a pergunta acerca de onde a igreja na terra está. Tanto as tradições
católicas romanas quanto as greco-ortodoxas dizem que a igreja existe onde quer
que a eucaristia seja distribuída adequadamente por um bispo devidamente ligado a
Pedro e às estruturas maiores de suas respectivas comunhões. No entanto, ambas
as tradições também exigem basicamente a presença da congregação280. A grande
dificuldade era com aquela época da cristandade, ocidental ou oriental, em que se
obscureciam os limites entre a igreja e a nação, entre a membresia da igreja e a
cidadania.
Caminhando mais do que parcialmente além desse erro, os magistrais
reformadores protestantes disseram que a igreja na terra existe onde quer aconteça
a pregação correta da Palavra e a administração disciplinada das ordenanças. O
problema era que até mesmo a doutrina não regeneradora do batismo infantil
permitiu que eles continuassem a obscurecer o limite entre a membresia e a
cidadania (nesse ponto, não estou debatendo o batismo infantil em si). As
confissões das igrejas independentes, de forma geral, concordavam com os
reformadores em relação à pregação e às ordenanças, mas elas deram um pouco
mais de ênfase na congregação e na fé subjetiva de seus congregantes. Uma das
críticas que surgem nos dias de hoje contra todas essas tradições é que tais
definições transformam a igreja num evento semanal ou num conjunto de
atividades, ou mesmo num lugar. Por exemplo, os escritores britânicos Chester e
Timmis escrevem: “A igreja não é uma reunião que frequentamos ou um lugar no
qual entramos. Ela é uma identidade que é nossa em Cristo. Ela é uma identidade
que molda a totalidade da vida, de modo que a vida e a missão se tornam ‘totalmente
igreja’.”281 Esse tipo de crítica reflete tanto as tendências missionais quanto a
“eclesiologia da comunhão” que mencionei na introdução.
O que é notável em relação até mesmo aos exemplos históricos é que todos eles,
de uma forma ou de outra, e de maneiras mais ou menos convincentes, envolvem a
congregação. Todos eles envolvem grupos de cristãos reunidos, aos quais os
indivíduos devem se submeter. Meu argumento aqui não é debater se uma
superestrutura deve ou não existir sobre esses ajuntamentos locais (não acredito
que deva). Nem tampouco meu argumento é debater se aquelas superestruturas ou
qualquer outra coisa nos ajuntamentos locais, em si, têm contribuído para um tipo
de institucionalismo que tem subjugado erroneamente as congregações (acho que
tem). Meu argumento é simplesmente que, da melhor forma que podemos dizer, a
vida cristã no Novo Testamento e ao longo de toda a história da igreja sempre tem
sido vivida numa congregação local, pelo menos em intenção. A única exceção
acontece quando uma pessoa ou um grupo procura implantar uma igreja onde não
existe igreja alguma, como no caso de Filipe e o eunuco etíope (por exemplo, At
8.26-39; observe também que o Senhor comissiona a Filipe). Essa ideia básica tem
sido questionada somente no ocidente consumista e ao apenas longo das últimas
décadas.
Com certeza, o contexto congregacional da vida cristã é admitido em toda parte
no Novo Testamento, mesmo quando a palavra igreja não é utilizada. João não a
utilizou em sua primeira epístola, mas ele escreve sobre pessoas que não faziam
parte dela: “Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se
tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para
que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos” (1 Jo 2.19). Sua primeira
epístola é tão clara acerca de que o amor e a obediência devem ser exercidos em
relação aos crentes quanto qualquer outro livro da Bíblia. Quando chegamos à
segunda e à terceira epístolas de João, não é de surpreender que o encontramos
sendo mais explícito sobre o fato de não estender o direito da comunhão a alguns (2
Jo 10), enquanto ele o estende a outros (3 Jo 5-10).
Pedro pode não usar a palavra igreja sequer uma vez em suas epístolas, mas ele
descreve seus leitores com claras metáforas de coletividade em sua primeira
epístola (2.5, 9). Ele menciona o batismo deles (3.21). Ele diz para que tenham igual
ânimo e demonstrem hospitalidade uns aos outros, sem murmuração (3.8; 4.9). Ele
os encoraja a utilizarem quaisquer que sejam os dons que eles tenham recebido
para servirem um ao outro (4.10). Ele os adverte de que o julgamento começa pela
“casa de Deus” (4.17). E finalmente, ele lhes ordena a “se sujeitarem aos anciãos”
(5.5). Quem deveria se sujeitar aos anciãos e o que esses anciãos supervisionavam?
Os leitores de Pedro, dispersos por uma vasta região, estavam sem dúvida vivendo
em igrejas com limites claramente delineados.
Submeter-se à igreja local é a forma de nos submetermos ao senhorio de Cristo.
Isso é fruto do arrependimento. Isso é obediência àquele a quem professamos ser “o
Cristo, o Filho do Deus vivo”. É ali onde o crente se submete. Ali é o lugar na terra
onde isso acontece282. Aqueles com tendências missionais e comunitárias estão
corretos em afirmar a igreja como um povo, mas ambos os grupos parecem ter
perdido a capacidade de distinguir a diferença entre a igreja e um ajuntamento de
cristãos, entre a igreja de Deus em Corinto e três mães cristãs reunidas num parque
ou trabalhando num abrigo para os sem-teto. Por um lado, a igreja local é
representada pelas vidas e pelas atividades de seus membros, exatamente como
Cristo é representado pela vida e pelas atividades das igrejas e os crentes são
representados pela igreja local e por Cristo. Essa é a razão por que Paulo está tão
preocupado com as imoralidades secretas de um membro individual da igreja de
Corinto (1 Co 5). Existe uma identidade corporativa entre os crentes e a igreja, de
tal modo que cada um pode “falar” ou “agir” como representante um do outro,
questão essa que consideraremos mais no próximo capítulo.
Por outro lado, no entanto, devemos manter a distinção entre a igreja local e um
grupo de crentes. A diferença está exatamente no fato de que Cristo passou um
alvará de autoridade para a igreja, e não aos crentes em geral. Alguém poderia dizer
que, por causa desse alvará, o todo (a igreja local) é maior do que a soma de suas
partes (os membros individuais). Sendo assim, eu pessoalmente não tenho a
autoridade para batizar meus amigos ou meus filhos simplesmente porque sou um
crente. Não fui autorizado a afirmar diante do mundo, em nome de Cristo, que eles
pertencerão ao seu povo escatológico. Como um presbítero de minha igreja local
(ou mesmo apenas como um membro), e juntamente com minha igreja, eu tenho
essa autoridade, que não é realmente minha. É da igreja. Eu simplesmente a exerço.
Será que a distinção entre uma igreja e um grupo de crentes é vaga e acadêmica?
Acredito que não. Cada funcionário de uma organização que tenha acesso a um
cartão de crédito da empresa entende que existe uma diferença entre usar o
dinheiro da empresa para negócios e usá-lo para satisfação pessoal. Um uso é ético,
ao passo que o outro não é. Reconhecidamente, o limite entre o uso para os
negócios e o uso pessoal nem sempre é claro. Meus próprios “almoços de negócios”
são sempre com amigos pessoais, e as conversas podem tocar em assuntos pessoais.
Posso debitar isso da empresa? Essa pergunta é mais bem respondida com base em
cada situação. Quando passamos para a comparação entre igrejas e crentes, isso não
é uma questão de dinheiro, mas de autoridade. E, francamente, nem sempre pode
estar claro se alguma atividade ou reunião é uma função própria da igreja local ou
simplesmente de um grupo de crentes. É importante percebermos, no entanto, que
quanto mais uma igreja ou uma pessoa cristã for além das responsabilidades
organizacionais explícitas transmitidas por Jesus (para pregar o evangelho,
proteger o evangelho, unir professos fidedignos a si mesma, excluir os falsos
professos) mais obscuro esse limite se tornará. Mas a diferença entre uma igreja e
uma turma de crentes no acampamento, no parque ou num estádio permanece.
A igreja local é o lugar onde um ajuntamento de crentes pode se encarregar, de
modo responsável e significativo, do alvará concedido em Mateus 16,
principalmente da forma como ele é esclarecido nos capítulos 18 e 28, e no 26, no
episódio da Ceia do Senhor. Em reconhecimento aos meus amigos de igrejas não
independentes, direi que é pelo menos isto. Podemos ilustrar a diferença entre a
igreja e um ajuntamento de cristãos da seguinte maneira. Posso facilmente
imaginar o conselheiro de um acampamento de verão observando um rapaz de
dezessete anos passando pela conversão no decurso de um verão, o que é seguido
por uma profissão de fé aparentemente fidedigna. O conselheiro do acampamento
deve, portanto, batizar o rapaz? Ele poderá fazer isso se puder batizá-lo de acordo
com a autoridade do alvará que Jesus concedeu aos apóstolos em Mateus 16. Esse
conselheiro tem o direito de, juntamente com vários outros, estar determinado a
continuar supervisionando indefinidamente o rapaz ou outra pessoa; a anunciar
com regularidade a morte do Senhor por meio da Ceia do Senhor; a disciplinar o
rapaz ou outra pessoa que tivesse voltado a seguir os caminhos do mundo; a ensinar
uns ao outros tudo o que Cristo ordenou; a guardar, proteger e proclamar o
evangelho e a fazer discípulos não só entre outros adolescentes, mas entre todos os
que ainda não conhecem a Cristo? Se ele puder fazer tudo isso, sim ele pode batizar
o rapaz em nome da igreja. Se esse conselheiro não puder se comprometer com
tudo isso, ou seja, se não houver uma igreja por trás, ele não terá autoridade para
batizar o rapaz. O desejo do conselheiro do acampamento de proteger o evangelho
na vida do rapaz e aos olhos de um público mais amplo deve impeli-lo a enviar o
rapaz a uma igreja, dizendo: “Una-se a ela! Seja guardado. Seja vigiado. Seja cuidado.
Seja protegido. Seja amado.”Os escritores missionais e comunitários reagem, de
forma compreensível, ao institucionalismo das igrejas. Todavia, sua crítica à igreja
como um lugar, um evento ou um conjunto de atividades omite a distinção entre a
igreja e um grupo de crentes. Eles omitem o fato de que Cristo estabeleceu uma
organização, e que seus membros não possuem autoridade para utilizar o cartão de
crédito da empresa sempre que quiserem e da forma que lhes agrada. Os crentes
podem utilizá-lo sempre que estiverem formalmente reunidos em nome de Cristo e
o Espírito de Cristo estiver presente por meio da Palavra e das ordenanças (cf. At
4.31; 6.2; 14.27; 15.30; 20.7). Afinal, é esse ajuntamento de crentes que exerce o
poder das chaves que constitui a igreja local na terra. É desse ajuntamento que
tanto Jesus quanto Paulo falam.

Jesus:

E , se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como
gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligares na terra terá sido ligado nos
céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que,
se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura,
pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles (Mt 18.17-20).

Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou
convosco todos os dias até à consumação do século (Mt 28.19-20).

Paulo:

Já sentenciei... que o autor de tal infâmia seja... em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o
meu espírito [talvez significando: o espírito dele na autoridade conferida como apóstolo], com o
poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o
espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus (1 Co 5.3-5).

Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e
eu, em parte, o creio. Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também
os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio (1 Co 11.18-19).

Os crentes, de fato, contêm “a igreja”, mas tanto Paulo quanto Jesus falam como
se fosse o ajuntamento que nos constituísse igreja, assim como um time de
basquetebol deve se reunir, a fim de ser considerado um “time”. Esse ajuntamento
formal possui uma existência e uma autoridade que nenhum de nós possui
separadamente. O todo é maior do que a soma de suas partes, porque Cristo deu ao
todo um alvará organizacional. O pastor congregacional do século XIX John Angel
James diz isso da seguinte forma: “Um membro da igreja é algo mais do que um
cristão, assim como um cidadão é algo mais do que um homem. Cada um deles tem
obrigações que procedem desse relacionamento — com o estado ou com a
igreja.”283
A igreja na terra está localizada na igreja local. Se Cristo nos chama para nos
submetermos a ele por meio de nossa submissão à igreja apostólica, ele pretende
que façamos isso por meio da igreja local. O fato de recusar seu senhorio ao nos
recusarmos a nos submeter a uma verdadeira igreja local, se vivemos onde uma
igreja subsiste geograficamente, põe em xeque o fato de sermos verdadeiramente
convertidos. É verdade que devemos escolher nos associar, e é verdade — em
alguns lugares do mundo — que temos de escolher com qual igreja nos associar.
Mas o fato de não nos associarmos, se existe uma igreja local ali, não é, na verdade,
uma opção. A membresia em uma igreja local é e não é voluntária.
Aparentemente, algumas pessoas da igreja primitiva falharam em reconhecer
esse fato, motivo pelo qual o autor de Hebreus adverte seus leitores sobre
“deixarem de congregar, como é costume de alguns” (Hb 10.25). Essa negligência
pecaminosa, diz ele, leva a uma “certa expectação horrível de juízo e fogo vingador
prestes a consumir os adversários” (Hb 10.27).
A fim de sistematizar a discussão acima e lhe dar um pouco mais de precisão,
acho que podemos dizer que se associar a uma igreja local é necessário por pelo
menos seis fatores: a natureza do que é a igreja universal, a natureza da autoridade,
nossas obrigações bíblicas para com o “corpo”, os mandamentos bíblicos para nos
submetermos aos anciãos ou aos bispos, a natureza da nossa salvação e a natureza
da nossa nova identidade em Cristo.
1) A natureza da igreja universal exige isso. Não se trata de pertencer a uma igreja;
trata-se de pertencer à igreja, dizem alguns. Isso está correto? Consideremos a
quem Jesus deseja que os crentes pertençam. Jesus disse que ele “edificaria a sua
igreja”, referindo-se à igreja universal, ao ajuntamento de crentes de todas as
épocas e de todos os lugares. Mas essa igreja já se reuniu? Em certo sentido, sim, ela
começou a ser reunida no céu (Hb 12.22-23; Ef 2.4-6; Cl 3.1, 3). Mas, em outro
sentido, não, ela ainda não está totalmente reunida. A igreja universal é um corpo
celestial e escatológico284. Quando Jesus diz que edificará a sua igreja, ele
certamente tem basicamente essa sociedade final em mente (Mt 16.18). Não tenha
dúvida de que, quando uma pessoa se torna um cristão, ela passa a pertencer à
igreja universal — ao corpo de Cristo. Isso diz respeito a pertencer à igreja.
No entanto, Jesus também diz aos seus discípulos para ligar e desligar, na terra,
esse ajuntamento celestial e escatológico. O amor, a santidade e a beleza desse
corpo do final dos tempos precisam ser demonstrados agora. A intimidade afetuosa,
perdoadora e misericordiosa da igreja precisa ser personificada agora. Cristo e sua
pessoa precisam ser exibidos agora. Os crentes não podem exibir a vida de sua
sociedade final, esse ajuntamento do final dos tempos, essa cidade celestial, esse
Cristo, somente por si mesmos. Eles precisam de outros crentes. Não podemos
perdoar, tolerar e amar, nem podemos receber perdão e tolerância, sentados
sozinhos numa ilha. É pelo fato de sermos cidadãos dessa sociedade do final dos
tempos, que ama uns aos outros, que o mundo saberá o que significa ser discípulo
de Cristo (Jo 13.34-35).
A igreja universal é um corpo celestial porque começou a ser reunida no céu, mas
é também um corpo escatológico, porque esse ajuntamento completo do final dos
tempos já começou na terra285. A pátria enviou embaixadores e construiu
embaixadas aqui e agora, razão pela qual Paulo se refere à “igreja de Deus em
Corinto” (1 Co 1.2; 2 Co 2.1)286. Esses crentes reunidos em Corinto são um posto
fronteiriço, um antegozo, uma colônia, uma representação do ajuntamento final.
Tudo isso diz respeito a pertencer à igreja; mas, aqui e agora, tudo isso diz respeito
a pertencer a uma igreja, porque é aqui onde damos substância à nossa proclamação
e à nossa fé.
Em resumo, a natureza da igreja universal exige que os crentes professos se
submetam à igreja local.
2) A natureza da autoridade e da submissão exige isso. A ideia de pertencer a uma
igreja local — na verdade, até o próprio conceito de uma igreja local — será
supérflua se a nossa ideia de relacionamento com Cristo e com outros crentes
estiver completamente baseada em alguma concepção vaga de relacionamento
mútuo entre soberanos, desprovida de qualquer necessidade de moral e de
autoridade. Se Cristo nos ordenasse apenas a cultivar um relacionamento com ele e
com outros crentes, ficaria difícil perceber por que deveríamos nos associar a uma
igreja, e muito menos por que existiriam igrejas, em primeiro lugar. Por que não
interagir simplesmente com outros crentes, à medida que isso se encaixar com
nossos horários, necessidades pessoais, preferências sociais, autoimagem e — ah,
certo — as necessidades de algumas poucas pessoas com quem por acaso nos
preocupamos? Na verdade, a própria ideia de “ajuntamento” pareceria
supérflua287. Por que afinal falar sobre a igreja, a não ser que seja em termos mais
abstratos? Por casualidade, isso nos dirige ao problema com qualquer concepção de
comunidade e relacionamento que seja desprovida de autoridade. Essa comunidade
é, enfim, nada mais do que um amálgama de indivíduos que podem ou não
compartilhar de uma relação sentimental uns com os outros. De fato, todo mundo
continua independente, porque o único antídoto verdadeiro para a independência
não é só o relacionamento, mas a submissão.
Se tentarmos conduzir o nosso discipulado com Cristo casualmente,
mordiscando e lambiscando onde quer que nos agrade, indo para lá e para cá entre
um campo e outro, será difícil perceber como nos submeteremos de forma contínua
à igreja de Deus. Podemos dar de nós mesmos para este ou aquele cristão ou para
esta ou aquela igreja, mas nunca daremos verdadeiramente a nós mesmos.
Submeter-se à igreja na terra significa caminhar até um grupo de pessoas e dizer:
“Eu creio no que vocês creem. Agora me coloquem para trabalhar, apoiando nossa
causa mútua, do modo como precisarem de mim. Vocês podem contar comigo.”
Em resumo, a natureza da autoridade e da submissão exige que os crentes
professos se submetam à igreja local. Ela exige comprometimento.
3) Nossas obrigações bíblicas para com o “corpo” exigem isso. Em 1 Coríntios 12,
Paulo descreve o corpo da igreja com uma variedade de dons, mas o mesmo Espírito;
variedade de serviços, mas o mesmo Senhor; variedade de realizações, mas o
mesmo Deus dando poder a todos eles por causa do todo: “A manifestação do
Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveito” (1 Co 12.4-7). Paulo
descreve então a interdependência desse corpo:
Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos,
constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito, todos
nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a
todos nós foi dado beber de um só Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas
muitos. Se disser o pé: Porque não sou mão, não sou do corpo, nem por isso deixa de ser do
corpo. Se o ouvido disser: Porque não sou olho, não sou do corpo, nem por isso deixa de ser do
corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo corpo fosse ouvido, onde o
olfato? Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve. Se
todos, porém, fossem um só membro, onde estaria o corpo? O certo é que há muitos membros,
mas um só corpo (1 Co 12.12-20).
É evidente que Paulo está usando as palavras membro e corpo nesse contexto
como metáforas biológicas, comparando a igreja com um corpo humano. Ele não
quer dizer que a igreja é, de fato, um corpo humano ou que os membros que são
incluídos nela são, de fato, braços e ouvidos. Ele está dizendo, de forma bem
concreta, que cada indivíduo na igreja é incompleto sem os outros, assim como
Adão estava incompleto sem Eva. Suas identidades e experiências devem ser
interligadas e mutuamente dependentes. Portanto, Paulo escreve: “De maneira que,
se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos
se regozijam” (1 Co 12.26).
Quando considerei pela primeira vez como 1 Coríntios 12 se aplicava à
membresia da igreja, eu queria confirmar se Paulo estava se referindo ao corpo
local em Corinto ou ao corpo de Cristo universal, usando a linguagem de um corpo
ou membro. Considere a frase: “Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente,
membros desse corpo” (1 Co 12.27). Será que ele quer dizer aqui que os coríntios
continham o seu próprio corpo, distinguível do corpo dos gálatas ou do corpo dos
romanos, e que eles são membros desse corpo? Se for assim, pareceria estranho
que ele se incluísse nesse corpo, conforme ele faz ao dizer: “Pois, em um só Espírito,
todos nós fomos batizados em um corpo” (v. 13). Paulo, que não é membro da igreja
de Corinto, parece admitir que foi batizado pelo mesmo Espírito e no mesmo corpo
que os coríntios foram. Logo, ele se refere ao corpo local ou ao corpo universal?
Essa questão não é tão difícil quando lembramos que o corpo local é uma
expressão ou uma embaixada do corpo universal escatológico. Em todos os usos
dessa palavra, Paulo poderia querer enfatizar um ou outro. Quando ele escreve: “Os
membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários” (1 Co 12.22), ele
tende a enfatizar o corpo local, com base nos fatores contextuais. No entanto,
quando ele escreve: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um
corpo” (v. 13), ele tende a dar ênfase no universal, lembrando-nos de que o local é
uma manifestação do universal. A linguagem é uma arte tanto quanto é uma
ciência, razão pela qual desconfio do comentarista do Novo Testamento que diz que
tem de ser uma coisa em vez da outra, mas Paulo tende a usar a imagem do corpo de
Cristo a fim de permitir que ambos os significados ressoem (veja também Rm 12.5;
Ef 4.12, Cl 2.19), uma vez que o corpo universal está presente no local.
Se isso estiver correto, 1 Coríntios 12 é uma ilustração maravilhosa sobre como a
igreja local dos dias de hoje deve começar a personificar o ajuntamento escatológico
final, por meio da submissão ao povo de Deus e de uns para com os outros. Deus
arranjou os membros no corpo, cada um deles conforme ele escolheu, de modo que
cada parte possa contribuir de modo único para o todo. Tanto o pé quanto a mão
devem submeter toda a sua “pésidade” e sua “mãosidade” ao corpo, não para acabar
com sua singularidade, mas disponibilizando-as para o bom uso, por causa da
totalidade do corpo. O corpo precisa de cada membro para ser completo. Cada
membro diferente submete seu dom ao bem comum: “A manifestação do Espírito é
concedida a cada um visando a um fim proveitoso” (1 Co 12.7). Todo o capítulo de 1
Coríntios 14 deixa claro a questão de se empenhar na busca dos dons que edificam a
igreja (vs. 3-4, 12, 17, 19).
Os dons do Espírito são dons escatológicos. Eles anunciam uma nova era e uma
nova autoridade, submetidos hoje a um uso. A união e o amor devem ser
exemplificados agora — mesmo que de modo imperfeito (1 Co 13.9) — como uma
testemunha da união e do amor que existirão na glória. “Seja tudo feito para
edificação” (14.26).
Os crentes de nossos dias têm dificuldades para se submeter ao corpo, não
apenas porque nos ofendemos com a ideia de autoridade, mas porque nossas
mentes não podem fazer outra coisa senão reagir como consumidoras. O
consumidor tem a autoridade. Um consumidor acha que ele é a cabeça e que o
restante do corpo existe para servi-lo e realizar sua história pessoal. E não apenas
isso, mas ele fica um pouco nervoso quando os outros são diferentes dele. Judeus e
gregos? Escravos e livres? Não, obrigado, vou ficar com os gregos livres. O
consumidor está sempre procurando o que se ajusta melhor. Ele está procurando
algo com cômodos suficientes, uma cozinha bem desenhada, um quintal de bom
tamanho para as crianças, e nada muito velho que possa dar muito trabalho. Claro,
e que tal algo com pouco apelo controlador?
Paulo responde: “Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais
fracos são necessários; e os que nos parecem menos dignos no corpo, a estes damos
muito maior honra; também os que em nós não são decorosos revestimos de
especial honra” (1 Co 12.22-23). A mentalidade do consumidor e a mentalidade da
submissão à totalidade do corpo são diametralmente opostas uma a outra. Uma
emprega a igreja e todos os recursos dela para o seu próprio deleite. A outra dá a si
mesma e a todos os seus recursos para a igreja, para o deleite de Deus. Submeter-se
a todo o corpo não significa apenas se submeter à sua autoridade; significa se
entregar para o seu sustento e benefício. “Seja tudo feito para edificação” (14.26).
É nesse contexto que Paulo retoma os belos versos de 1 Coríntios 13 sobre uma
festa de casamento e os lê para sua igreja local. Vocês querem exercer, praticar,
desempenhar, personificar e definir o glorioso amor do céu, ele nos pergunta?
Então, façam isso numa igreja local, numa igreja onde as facções se opõem umas às
outras (1 Co 1.12-13); onde as pessoas são arrogantes (4.8); onde os membros estão
dormindo com a mulher de seus pais (5.2); onde os membros estão processando e
defraudando uns aos outros (6.1-8); onde os membros estão ficando bêbados com o
vinho da ceia do Senhor, não deixando o suficiente para os outros (11.21-22); onde
a competição entre os dons espirituais é frequente (cap. 12, 14); onde as reuniões
são ameaçadas pela desordem (14.40); e onde alguns estão dizendo que não existe
ressurreição de mortos (15.12). Ligue-se e submeta a você mesmo e aos seus dons a
esse tipo de pessoas. Ame-os com paciência e bondade, sem inveja ou orgulho, sem
arrogância ou grosseria; sem insistir no seu próprio jeito de fazer as coisas; não com
irritação ou ressentimento; não se alegrando com a injustiça, mas regozijando-se
com a verdade.
As pessoas geralmente se queixam dos pecadores que elas encontram na igreja
local, e com boas razões. Ela está cheia de pecadores, motivo pelo qual Paulo apela
para que os crentes amem uns aos outros, suportando todas as coisas; crendo em
todas as coisas; esperando todas as coisas; perseverando em todas as coisas. Se você
não amar traidores e defraudadores como esses, não fale sobre os seus dons
espirituais, seu vasto conhecimento bíblico ou sobre todas as coisas que você faz
pelos pobres. Você é só um bronze que soa. Não fale sobre seu amor pelos crentes
de toda parte; você é apenas um címbalo que retine. Mas se você realmente praticar
o amor por um povo específico, concreto, todos cujos nomes você não consegue
escolher, então você tomará parte na definição de amor para o mundo, o amor que
caracterizará perfeitamente a igreja no último dia, porque ele retrata
perfeitamente o amor autossacrificial e misericordioso de Cristo.
Em resumo, nossas obrigações para com o corpo exigem que nos submetamos a
uma igreja local. Quando um crente se compromete ou faz aliança com uma
determinada igreja local, ele toma posse do discipulado de cada membro, “para que
não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual
cuidado, em favor uns dos outros” (1 Co 12.25). Ele sofrerá junto com aqueles que
sofrem; ele se alegrará com aqueles que são honrados (v. 26). Submeter-nos a todo
o corpo e a cada membro significa não apenas dar de nós mesmos, mas significa dar
a nós mesmos ao corpo.
4) Os mandamentos bíblicos para nos submetermos aos nossos supervisores exigem
isso. Assim como submeter-se à igreja apostólica significa se submeter de forma
concreta a uma igreja local, submeter-se a uma igreja local também envolve se
submeter a pessoas reais. Às vezes, isso significará se submeter a outro membro,
como quando um irmão ou irmã nos chama para nos desviar do pecado. Jesus disse:
“Se teu irmão pecar [contra ti], vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste
a teu irmão” (Mt 18.15). Cada membro do corpo pode exercer essa autoridade sobre
todos os outros membros do corpo exatamente porque é a autoridade de Cristo
que, enfim, governa a congregação, e cada exemplo de governo é simplesmente uma
representação do governo dele.
Ao mesmo tempo, determinados indivíduos da congregação serão e devem ser
reconhecidos pelo fato de que suas vidas apresentam um exemplo recomendável
para todo crente. Ao longo do tempo, eles têm demonstrado que suas vidas são
irrepreensíveis, que eles são irrepreensíveis, esposos de uma só mulher,
temperantes, sóbrios, modestos, hospitaleiros, aptos para ensinar, não dados ao
vinho, não violentos, porém cordatos, inimigos de contendas, não avarentos (1 Tm
3.2-3). Eles têm demonstrado a capacidade de pastorear ou governar suas famílias,
sua “pequena igreja”, conforme Lutero a chamou, o que dá credibilidade ao fato de
que poderiam pastorear a “grande igreja” (veja 1 Tm 3.4-5). Eles têm demonstrado
essas coisas ao longo do tempo. Eles não são recém-convertidos (1 Tm 3.6). Como
parte da submissão à igreja, os crentes devem se submeter a esses supervisores,
anciãos ou pastores288. Paulo os descreve como pessoas que exercem essa
“supervisão” (At 20.28). Pedro diz para a congregação estar “sujeita” aos mais
velhos (1 Pe 5.5). O autor de Hebreus diz à igreja: “Obedecei aos vossos guias e sede
submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar
contas” (Hb 13.17a). O fato de fazer isso abençoa a pessoa que se submete. O autor
continua: “Para que façam isto com alegria e não gemendo; porque isto não
aproveita a vós outros” (v. 17b). Aparentemente, a submissão aos nossos líderes é
para o nosso próprio proveito.
A autoridade dos pastores e presbíteros da igreja está baseada na autoridade que
Jesus passou para a igreja apostólica em Mateus 16? Obviamente que a Igreja
Católica Romana, e talvez outras, digam que sim, mas não estou bem certo disso. A
autoridade de Mateus 16 é o poder efetivo para ligar e desligar na terra, quando
aqui é uma autoridade que deve ser exercida por toda a igreja. Por “efetivo” quero
dizer que ela cumpre aquilo ordena. Se a igreja disser que uma pessoa está excluída,
ela está excluída. No entanto, nem nessa passagem nem em qualquer outra vemos
uma ligação entre esse alvará organizacional e o ofício do presbítero ou supervisor.
A autoridade de um presbítero ou pastor é mais orgânica. Ela é algo que é
reconhecido e afirmado pela congregação. É verdade que Jesus dá pastores e
mestres para a congregação como dá os dons e deu apóstolos e profetas (Ef 4.8-11),
mas em lugar algum somos informados de que os pastores e mestres são usados
para estabelecer o fundamento da igreja, conforme somos informados a respeito
dos apóstolos e profetas (Ef 2.20). Portanto, enquanto Roma descreve o bispo como
a essência (esse) da igreja, os protestantes dizem normalmente que os pastores e
mestres não são a essência. Cristo os deu para o benefício da igreja (bene esse). E
como tal, a autoridade deles não é efetiva. Eles não podem ordenar ou exigir
formalmente que um membro ou mesmo que a igreja faça algo, da forma como um
apóstolo podia289. Os membros da igreja são ordenados a obedecê-los, mas essa
obediência não deve ser estendida para além do que a Bíblia prescreve, pois a
autoridade é de Jesus, não do pastor. Em outras palavras, Jesus pode me ordenar a
me submeter a você, mas você não pode me ordenar a me submeter a você.
Por exemplo, um pastor não pode ordenar um crente a se casar com determinada
mulher cristã. Um pastor não pode nem mesmo ordenar efetivamente que ele não
se case com uma mulher descrente. No entanto, um pastor pode instruir um
homem crente a não se casar com uma mulher descrente, à luz das Escrituras (2 Co
6.14). Na verdade, ele deve fazê-lo; e o crente deve se submeter, porque seu pastor o
está instruindo segundo as Escrituras. Todavia, não há passagem alguma nas
Escrituras que me diga que um presbítero ou supervisor, um ou muitos, tem a
autoridade efetiva de Mateus 16 para ligar e desligar por causa de desobediência. A
igreja, é claro, tem. Ela pode excluir unilateralmente alguém de sua membresia.
À medida que comparamos a autoridade da igreja com a autoridade do
presbítero, podemos empregar a distinção atiquíssima entre a autoridade para
aconselhar e a autoridade para ordenar290. Os presbíteros têm autoridade para
aconselhar; a igreja tem autoridade para ordenar. É interessante que a interação de
Paulo com Filemon apresenta uma situação na qual ele poderia ter apelado para a
autoridade de ordenar, mas, em vez disso, ele deu um bom exemplo para os
pastores, apelandopara a autoridade de aconselhar. Ele diz a Filemon: “Pois bem,
ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, prefiro,
todavia, solicitar em nome do amor” (Fm 8-9).
Não há dúvidas de que os presbiterianos, anglicanos e outros discordarão de mim
nessa questão, visto que eles consideram que a igreja está presente na reunião ou
presente no bispo, mas é aqui que eu recomendo o modelo congregacional como
mais coerente com o Novo Testamento e como uma proteção contra abusos de
autoridade, já que a autoridade para ordenar é estendida a toda a congregação.
Em resumo, a ordem do Novo Testamento para nos submetermos aos nossos
bispos exige que nos submetamos à igreja local, mesmo que seja numa base
levemente diferente da apresentada em Mateus 16. Com certeza, todas essas
questões agem em harmonia.
5) A natureza da nossa salvação exige isso. Em vários ocasiões até aqui eu
empreguei analogias a fim de que agora estivéssemos em posição de trazer essa
questão à tona de modo mais claro. Eu disse que a igreja local deve personificar a
vida da igreja escatológica, de modo que déssemos substância à nossa profissão de
fé por meio de nossa associação com a igreja local, e que essa submissão à igreja
local é o modo de nos submetermos a Cristo. Todas essas ideias dependem do
argumento subjacente de que há uma relação entre a nossa fé e as nossas obras, e
que essa relação se expressa na diferença entre a igreja universal e a igreja local. A
nossa fé é uma fé escatológica. Ela é dada pelo céu. E essa fé escatológica, se isso for
verdade, é aplicada nas obras. Semelhantemente, a nossa membresia na igreja
universal é uma membresia escatológica. Ela também é dada pelo céu. Sendo assim,
então ela será aplicada numa membresia terrena. A igreja universal é para a igreja
local o que a fé é para as obras. Na verdade, há uma razão por que as diferenças
protestantes e católicas acerca da igreja estejam intimamente ligadas às diferenças
acerca da fé e das obras. A Igreja Católica Romana funde a igreja escatológica e a
igreja visível na terra, assim como funde a fé e as obras.
Mas uma relação paralela permanece entre a justiça declaratória que temos em
Cristo e as obras de justiça que buscamos. A primeira é dada pelo céu, a segunda nós
a realizamos. Um homem que alega ser justo em Cristo e, no entanto, não faz
esforço algum para buscar uma vida de justiça está, na melhor das hipóteses, se
autoenganando. Do mesmo modo, uma mulher que alega amar todos os crentes,
em toda parte, mas não ama sua irmã crente, está igualmente autoenganada.
Ambos são hipócritas. São crentes nominais — crentes apenas no nome — porque
sua profissão de fé não se traduz em ação ou realidade. Eles alegam ter um status
diante do trono de Deus, mas nada em suas vidas confirma a veracidade desse
status, como se Deus fosse um tolo que pudesse ser zombado (Gl 6.7). A fé deles é
sem obras, o que Tiago nos diz que é uma fé morta. É uma fé sem sentido. É uma fé
vã, mesmo que eles realmente achem que ela tem sentido. O reino de Cristo diz
respeito à realidade — uma nova realidade, não uma realidade ilusória.
O mesmo se dá com alguém que alega pertencer à igreja sem pertencer a ela.
Receio que ele se pareça muito com um crente nominal e um hipócrita. Foi dada à
igreja apostólica a autoridade para ligar e desligar. O que mais podemos concluir
sobre alguém que professa pertencer à igreja, mas não se submete à igreja
apostólica na terra? Conforme diz o apóstolo: “Aquele que não ama a seu irmão, a
quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4.20).
Cristo ama o seu povo, e ele tem a intenção de transformar e dar crescimento a
ele. Ele faz isso afirmando sua autoridade sobre eles, porque a autoridade de Cristo
é o poder da criação, o poder da vida. A autoridade de Cristo é a autorização dada a
ele pelo Pai para produzir, moldar, organizar, edificar e executar de forma geral
todas as exigências de seu amor generoso e compassivo, conforme lhe aprouver.
Espantosamente, ele passou essa autoridade para os doze primeiros homens a
quem ele salvou e lhes disse para passar essa autoridade a outros, que por sua vez a
passariam a outros, e outros, e outros. A vida e o crescimento dos cristãos
acontecem no poderoso campo de energia da autoridade da igreja, porque essa
autoridade energiza a vida. Se ficarmos fora dos guarda-chuvas da autoridade da
igreja local, estaremos nos afastando do meio ordenado por Deus para o nosso
crescimento.
A maioria dos protestantes bem treinados responderá provavelmente a essas
afirmações dizendo: “Não, é a submissão à Palavra que importa. A Palavra, e não a
igreja, é o que faz a igreja crescer.” Essa objeção está parcialmente correta. A
submissão à Palavra de Cristo converte e dá crescimento ao cristão, porque o alvo é
nos conformarmos a Cristo, e não nos conformarmos à igreja em si. Mas é a igreja
que proclama a Palavra, e é a igreja o lugar onde cada crente tem a oportunidade de
se submeter à Palavra.
Por exemplo, a Palavra nos ordena a perdoar como temos sido perdoados. Esse é
um pronunciamento de autoridade vindo de Cristo. Se nos recusarmos a perdoar
um irmão, portanto, é a igreja que agirá em nome de Cristo, primeiramente nos
exortando e, depois, disciplinando-nos por nossa falha em nos arrependermos. A
igreja pode, de uma maneira ou de outra, estar errada no exercício da autoridade
que lhe foi dada. Entretanto, Cristo deixou a igreja responsável por isso, porque é
por meio de nossa prática da submissão a outros crentes que desempenhamos
nossa obediência a Cristo. Os filhos obedecem a Deus obedecendo aos seus pais, e
isso os faz crescer. Com termos um pouco diferentes e dentro de limites diferentes,
os crentes obedecem a Deus obedecendo aos seus companheiros crentes e à igreja
como um todo, e isso nos faz crescer. Nós nos sujeitamos uns aos outros, conforme
Paulo afirma, no temor de Cristo (Ef 5.21).
A ilustração de Paulo sobre o corpo físico ilustra exatamente isso. À medida que
o pé se submete à mão, visto que o pé tem algo a ganhar com a mão diferentemente
dotada, todo o corpo cresce (1 Co 12). À medida que cada membro se submete ao
ensino dos pastores e mestres, todo o corpo cresce (Ef 4.11-12). E à medida que
cada membro se submete aos outros membros, excedendo um ao outro na
demonstração de honra, todo o corpo cresce (Rm 12.10). O nosso discipulado
pessoal com Cristo e o nosso amor pelas outras pessoas devem se basear no mesmo
ponto de vista de nossa membresia na igreja. O crescimento no amor do evangelho e
a membresia da igreja devem trabalhar juntos, assim como o conteúdo e a forma
agem juntos. A membresia da igreja — nossa submissão à igreja local — é o que
Cristo planeja para que o nosso discipulado tome forma e cresça.
Em resumo, a natureza de nossa salvação e da relação entre a fé e as obras exige
que os crentes se submetam à igreja local. A submissão a uma igreja local, ou ao que
normalmente chamamos de “associação a uma igreja local”, é a fé sendo aplicada nas
obras. Usando outra analogia, ela é a palavra ganhando substância. Um crente deve
escolher se associar a uma igreja, do mesmo modo como um crente deve escolher se
submeter a Cristo; mas, após ter escolhido a Cristo, um crente não tem outra
escolha senão escolher uma igreja para se associar.
6) A natureza da nossa nova identidade exige isso. Os oponentes da membresia
regenerada na igreja geralmente criticam a prática de seu voluntarismo, ou seja, a
ideia de que um crente deva se unir a uma igreja voluntariamente. Afinal, os
anabatistas, batistas e outros que seguiram pelo caminho da Reforma Radical
defendiam o batismo dos crentes e a membresia regenerada na igreja em oposição
ao batismo infantil. A preocupação em relação ao voluntarismo é que ele leva ao
individualismo, à ação independente e à depreciação da igreja como o povo
corporativo de Deus.
Visto que sou um batista e um congregacionalista por convicção, creio que essa
crítica é, em parte, inapropriada. Ao mesmo tempo, pode ser que alguns defensores
da membresia regenerada na igreja, ao longo da história, tenham se inclinado muito
na direção das pressuposições voluntaristas a respeito da vida na igreja local. O que
raramente é assimilado nas confissões antigas, sejam elas de igrejas independentes
ou reformadas, é a noção de que a vida cristã deve ser vivida por meio da igreja local,
porque Cristo nos fez membros do seu corpo. As confissões antigas às vezes se
referem ao mandamento de Cristo para nos unirmos às igrejas locais, mas o que
elas omitem é o fato de que esse mandamento emerge de nossa nova identidade.
Cristo nos ordena a nos unirmos ao corpo local porque já somos membros de seu
corpo. O imperativo segue o indicativo. A estrutura de Efésios 2 apresenta esse
argumento. A primeira metade do capítulo descreve a nossa reconciliação com Deus
por meio de Cristo (2.1-10). A segunda metade então explica a implicação imediata
de nossa reconciliação com Deus. Somos reconciliados com todos aqueles que do
mesmo modo pertencem a Deus: Cristo criou em si mesmo “um novo homem no
lugar dos dois povos” (Ef 2.15). Aqueles que estavam divididos anteriormente agora
são “concidadãos dos santos, e são da família de Deus” (Ef 2.19). Já que
pertencemos, devemos pertencer. A fé deve se revestir das obras.
Exatamente por causa disso, dizer que os crentes devem pertencer a uma igreja
local simplesmente porque isso é vantajoso para viver a vida cristã ou, nas palavras
de Calvino, porque isso constitui os “meios ou auxiliares pelos quais Deus nos
convida para a sociedade de Cristo e nos mantém nela”, omite a questão de que o
corpo da igreja agora é uma parte essencial da identidade cristã291. Um filho adotivo
frequenta o jantar em família com seus novos irmãos e irmãs não só porque isso é
bom para ele, mas porque isso é o que ele é: um membro da família.

A IMPORTÂNCIA DA MEMBRESIA DA IGREJA LOCAL


Hoje em dia, não acreditamos que a autoridade pertence à igreja; ela pertence ao
consumidor, que afirma o seu governo por meio de sua presença e de seus recursos
financeiros. Em vez de chamar os consumidores para se submeterem ao senhorio
de Cristo, a igreja faz tudo o que pode para lhes satisfazer as vontades. O pregador
puxa um banquinho e representa uma comédia. O ministro de música fecha os
olhos, inclina-se para trás e faz um solo de violão. Os “espectadores” se deleitam —
por um momento.
Uma das maiores tragédias do evangelicalismo atual é que ele perdeu de vista a
força maravilhosa e geradora de vida que é a autoridade. Temos sidos levados pela
cultura. Muito mais do que imaginamos, vemos a nós mesmos como agentes
independentes, encarregados de determinar a melhor forma de crescer, servir e
amar na fé. Sim, podemos ouvir os outros, ser condescendentes com os outros e
aceitar a orientação de outros; mas, em última instância, vemos a nós mesmos
como os nossos próprios técnicos, administradores de portfólio, guias, juízes e
capitães de nossos navios, de uma maneira que é mais cultural do que bíblica. Em
resumo, uma teologia subdesenvolvida conspira com os nossos instintos
individualistas para nos enganar, fazendo-nos alegar que amamos todos os crentes,
em todos os lugares, igualmente, enquanto nos negamos a amar qualquer um
desses crentes de modo específico, principalmente de modo submisso.
Previsivelmente, as igrejas são superficiais, os crentes são fracos e o povo de Deus
se parece com o mundo.
Mas e se as igrejas locais tiverem que recuperar a compreensão de que cada uma
delas ocupa a posição deprocurador de Cristo? Que cada igreja é seu representante
na terra. Considere, portanto, a importância do recebimento de membros.
Considere a importância de dizer adeus àqueles que se mudam para outra cidade; e
mais ainda, a importância de excluí-los. Se as igrejas tivessem que se ocupar com
essas considerações, o recebimento de membros seria tratado mais como um
processo de adoção. “Os documentos da criança estão em ordem? Todas as
perguntas necessárias foram feitas por ambas as partes envolvidas na adoção?
Como podemos servir e proteger essa criança da melhor maneira?” Dizer adeus aos
membros, à medida que eles partem para outra cidade, seria como dizer adeus a um
filho precioso à medida que ele deixa o lar. “Deixe-nos saber se você chegou em
segurança. Deixe-nos saber se você precisa de dinheiro. Faça bons amigos. Fique
firme naquilo que lhe ensinamos. Nós o amamos.”

Ponto 7: Como podemos, então, definir formalmente a


membresia e a disciplina da igreja local? Como sendo a
formação e o rompimento de uma aliança entre um crente e
uma igreja.

DEFININDO A MEMBRESIA E A DISCIPLINA DA IGREJA Isso nos leva à


nossa definição de membresia e disciplina da igreja. Considere essas
definições no contexto daquilo que dissemos sobre o que o amor é: a
afirmação por parte daquele que ama e a afeição pelo amado e pelo bem
dele no Santo. É o amor que leva à busca pela glória e à busca pela
santidade. Ele quer ver o santo e afirmá-lo onde quer que ele se encontre
à espera de ser reconhecido. Ele não busca essa glória separada do que é
santo, a fim de afirmar a pessoa amada, mas ele quer ver o
desenvolvimento e o crescimento na vida da pessoa amada. Por essa
razão, esse amor exercerá toda a autoridade que Cristo lhe deu para
produzir ainda mais vida e glória no objeto de seu amor.
DEFININDO MEMBRESIA
Com essas ideias em mente, comecemos com uma definição da membresia da
igreja em uma única frase. A membresia da igreja é (1) uma aliança de união entre uma
igreja específica e um crente; uma aliança que consiste (2) na confirmação que a igreja faz
da profissão de fé no evangelho por parte do crente, (3) na promessa da igreja de oferecer
supervisão ao crente, e (4) na promessa do crente de se reunir com a igreja e de se
submeter à sua supervisão.
Observe que vários elementos estão presentes nisso. Em primeiro lugar, o corpo
da igreja confirma a profissão de fé e o batismo de um indivíduo como fidedignos.
Em seguida, ela promete oferecer supervisão à fé desse indivíduo. Depois, o
indivíduo submete sua vida ao serviço e à autoridade desse corpo específico e de seus
líderes. Toda essa mudança pode ser resumida na palavra aliança. Tanto a igreja
quanto o crente dão a si mesmos (não apenas dão de si mesmos) um ao outro,
apesar das capacidades diferentes. Principalmente, o corpo da igreja diz ao
indivíduo: “Nós reconhecemos que sua profissão de fé, seu batismo e seu
discipulado cristão são válidos. Por essa razão, afirmamos e reconhecemos
publicamente que você pertence a Cristo e à supervisão de nossa comunhão. Nós
nos daremos a nós mesmos para o crescimento e a celebração do amor santo de
Cristo em você.” Principalmente, os indivíduos dizem ao corpo da igreja: “Até onde
eu puder reconhecê-la como uma igreja fiel, que declara o evangelho, submeterei
minha presença e meu discipulado ao seu amor e à sua supervisão. Eu me darei a
mim mesmo para o crescimento e para a celebração do amor santo em vocês.”
Afirmação. Falando em termos da confirmação da fé de alguém por parte da
igreja, isso significa que a igreja não cria a fé, mas apenas a ratifica. Ela confirma o
que é santo. A salvação não se origina da união com o bispo ou com a eucaristia,
como nas concepções sacramentais dos católicos romanos ou dos ortodoxas sobre
membresia da igreja. As igrejas têm autoridade somente para confirmar a fé, não
para concedê-la. A salvação é somente pela graça e somente por meio da fé. Ao
contrário do ensinamento antigo da Igreja Católica Romana, existe salvação fora da
igreja visível, institucional.
Outro modo de dizer isso seria dizendo que a autoridade da igreja é tanto
mediada quanto declarativa. Ela não é absoluta ou ex opere operato. Toda a
autoridade na igreja pertence basicamente a Cristo, o rei, e os crentes individuais
prestarão contas a ele no final, não ao papa ou ao pastor. E conforme temos visto, a
igreja não tem autoridade, por si mesma, para manter afastado de si alguém a quem
Cristo uniu a si mesmo. Nesse sentido, não gosto da descrição de Calvino (e de
Cipriano) da igreja como uma mãe, mesmo que Calvino tivesse a intenção de usá-la
de uma maneira simplesmente instrumental. A autoridade da igreja para unir um
indivíduo a si mesma é nada mais que a autoridade para confirmar aquilo que Cristo
fez por ele. Poderíamos também dizer que um embaixador ou o secretário de
imprensa da Casa Branca reproduz as decisões ou ações de seu líder. As metáforas
sobre um representante ou um embaixador descrevem melhor o papel que a igreja
desempenha nesse contexto do que o de uma mãe. No entanto, é impressionante
que Deus de fato use líderes e igrejas falíveis, e geralmente insensatos, para
representar sua autoridade, dando uma afirmação ou negação na terra, como um
prenúncio, daquilo que será afirmado ou negado no céu no final dos tempos. Assim
como em Gênesis 1 Deus pronunciou que sua criação era boa, agora a igreja,
representando Cristo na terra, afirma publicamente que a nova criação de Deus é
boa.
Hoje em dia, alguns escritores criticam a ideia de uma membresia de igreja com
fronteiras determinadas porque isso os faz lembrar dos padrões estabelecidos pelos
fariseus, e eles não querem dizer que se unir a uma igreja significa ultrapassar
alguma barreira ou viver à altura de algum padrão. Esse impulso natural está
parcialmente correto. Eu admito que as igrejas poderiam ver a membresia com o
mesmo espírito da pergunta desatinada dos apóstolos: “Quem é, porventura, o
maior no Reino dos Céus?” (Mt 18.1). Ao mesmo tempo, o próprio Jesus apresenta
uma espécie de padrão: uma pessoa deve professar o nome de Jesus e apresentar a
postura básica de se humilhar como uma criança (vs. 3-5). Não estamos procurando
confirmar pessoas que são perfeitas. Não. Devemos estar dispostos a perdoá-las
setenta vezes sete (vs. 21-22). Mas elas devem entender o evangelho e demonstrar
o fruto do arrependimento, incluindo a capacidade para perdoar os outros (vs. 23-
35).
Oferecer supervisão. A afirmação da igreja não é um acontecimento único para ser
questionado com indiferença e negligência, como faziam os falsos pastores de
Israel, que deixavam as ovelhas perambularem pelos montes. Ela não diz respeito a
afirmar simplesmente um conteúdo doutrinário, deixando de lado os limites. Em
vez disso, o amor da igreja deve ser um amor perseverante, persistente, do tipo que
anseia por manter seus membros reunidos debaixo de suas asas. Ele também é um
amor instrutivo e autoritativo, que anseia produzir crescimento e santidade na vida
de um indivíduo, para que ele possa cada vez mais retratar o Salvador, encorajando-
o de glória em glória (2 Co 3.18). Jesus ordena que a igreja ensine aos discípulos
tudo o que ele ordenou.
Submissão. Falando em termos da submissão do indivíduo ao corpo da igreja,
isso, além de ser bíblico, ajuda-nos a evitar outro extremo — a ideia irrefletida de
que, já que a fé não depende da igreja, o crente pode continuar bem sem pertencer a
uma igreja local. O fato de falar da submissão (não só de relacionamento) é um
verdadeiro guardião contra o individualismo moderno. Os crentes são obrigados a
se submeter a uma igreja local e a seus líderes por causa de sua membresia no corpo
universal de Cristo; do mesmo modo, os crentes são obrigados a buscar uma vida de
retidão por causa da retidão que lhes foi concedida em Cristo. Um homem não deve
alegar pertencer à igreja sem que pertença a uma igreja. Nesse sentido, falar da
membresia da igreja como voluntária, embora isso esteja tecnicamente correto, não
chega a fazer jus a essa questão. Essa é uma das razões por que a linguagem da
submissão é uma boa linguagem. Unir-se a uma igreja local, assim como buscar uma
vida de retidão, é uma questão de obediência necessária a Cristo. Isso diz respeito a
um relacionamento contínuo, não a um acontecimento único. Há uma
interpretação protestante para a frase católica: “Não há salvação fora da igreja
(visível e institucional).” A autoridade da igreja é mediada. Mas o crente que
demonstra uma incapacidade de se submeter aos mediadores humanos dessa
autoridade, os quais foram determinados por Deus, demonstra o que parece ser
uma incapacidade de se submeter a Cristo, o rei.
Colocando isso de uma forma mais positiva, um indivíduo se submete à igreja
assim como um jogador jovem, destreinado, submete-se à disciplina e aos treinos
severos de seu técnico; ou como um jovem pianista se submete às escalas e lições de
seu professor. É como se a terra se apresentasse a Adão, dizendo: “Escave-me,
cultive-me, faça de mim uma seara.”. É isso o que fazemos com o nosso coração
quando o submetemos à autoridade da igreja — pedimos para sermos formados por
causa do Santo, e essa submissão dá lugar ao exercício da autoridade na vida dos
outros. Damos nossas mãos, pés e respiração para trabalhar em suas vidas —
cultivando, capinando e semeando.
Uma aliança. Embora possamos falar sobre ter um compromisso com uma igreja
ou sobre se unir a ela, um crente não apenas tem um compromisso com uma igreja
ou se une a ela. Comprometer-se é a ação de uma pessoa que retém a soberania
suprema sobre sua vida, mas escolhe, seja quais forem as razões, entrar em algum
tipo de contrato. A ideia de aliança, por outro lado, certamente envolve a ação de
fazer um compromisso, mas envolve muito mais. Uma aliança articula e formaliza
um relacionamento que já existe. Ela explica como as próprias identidades de cada
parte envolvida são transformadas por esse relacionamento e, depois, dá expressão
às responsabilidades, obrigações, direitos, prerrogativas e liberdades desse
relacionamento. Um compromisso pode criar algo ou nada. Uma aliança afirma
explicitamente o que, em certo sentido, já existe. Um compromisso pode ser
rescindido sem uma transformação na identidade pública de alguém. Uma aliança
não pode. Assimilaremos essa ideia de aliança no próximo capítulo.
DEFININDO A DISCIPLINA DA IGREJA
Ligada à aliança da membresia da igreja está a ideia de disciplina na igreja.
Ela é o outro lado da moeda. O que é disciplina na igreja? Em termos gerais, ela é
o que constitui uma parte significativa do discipulado cristão. Observe que as
palavras disciplina e discípulo compartilham uma raiz comum; ambas as palavras
dizem respeito à educação. Mais especificamente, uma igreja disciplina seus
membros a fim de discipulá-los. Ou seja, ela os disciplina para educá-los no caminho
da retidão de Cristo, para ajudá-los a se conformarem à sua imagem. Assim como a
educação envolve tanto a formação quanto a correção, a disciplina na igreja também
envolve formação e correção. Os mestres ensinam e os mestres corrigem. É assim
que o estudante cresce. As igrejas, semelhantemente, ensinam e corrigem. É assim
que os membros da igreja crescem em seu discipulado cristão. Uma membresia de
igreja não disciplinada é uma membresia de igreja não discipulada. Ela será fraca e
débil; tola e impudica.
A nossa preocupação aqui é especificamente com a disciplina corretiva na igreja.
Se compararmos a membresia da igreja com a aliança de um casamento — assim
como a aliança que Deus fez com a nação de Israel — então a disciplina corretiva na
igreja começa informalmente com a ameaça de divórcio em resposta à infidelidade.
A disciplina formal na igreja é, portanto, o divórcio em si. É excluir alguém do corpo
da igreja. Usando uma analogia sobre educação, a disciplina na igreja começa
informalmente com a correção e a ameaça de uma nota de reprovação. Ela acontece
formalmente quando o professor reprova e expulsa o aluno que está totalmente
insubordinado e recalcitrante.
Definindo isso mais especificamente, a disciplina corretiva na igreja acontece
sempre que o pecado é corrigido no corpo da igreja; e acontece de modo mais pleno
quando o corpo da igreja anuncia que a aliança entre a igreja e o membro já foi quebrada,
porque o membro provou ser insubmisso ao seu discipulado cristão. Exatamente por isso,
a igreja retira a sua confirmação a respeito da fé do indivíduo; anuncia que deixará de lhe
oferecer supervisão e libera o indivíduo de volta para o mundo.
Toda igreja disciplina seus membros de modo formativo. Ou seja, toda igreja,
mesmo as que não são sadias, ensina algo aos seus membros. No entanto, a maioria
das igrejas falha em disciplinar seus membros de modo corretivo, tanto pessoal e
informalmente quanto como um ato da disciplina formal da igreja. Esse ato formal
também é conhecido como excomunhão, porque ele exclui um indivíduo da
comunhão reconhecida da igreja. Uma igreja que ensina seus membros, mas nunca
os corrige, é como um professor que dá nota A+ para todos os alunos, quer o aluno
entregue um bom trabalho, quer não. Os crentes aprenderão e crescerão, por
algum tempo, independentemente da disciplina corretiva da igreja, mas, no final, os
limites entre um bom trabalho e um trabalho ruim se tornarão obscurecidos no
corpo como um todo, porque todos estão recebendo a nota A+. No devido tempo,
cada vez menos crentes estarão fazendo um bom trabalho, porque o bom trabalho
sempre é mais difícil e exige mais sacrifício (veja 1 Co 9.24-27). É por isso que a
igreja não disciplinada se torna indolente e débil. Consequentemente, fica difícil
perceber a diferença entre essa igreja e o mundo.
A disciplina corretiva da igreja é a resposta da igreja à pecaminosidade dentro de
si mesma. Isso é o que a Bíblia diz que deve acontecer quando um membro escolhe
amar um pecado em particular acima de Cristo. Falando numa linguagem de
autoridade, o membro voltou a seguir o seu próprio governo, assim como Adão e
Eva fizeram em Gênesis 3. A igreja oferece ao membro várias repreensões tratando
das consequências do pecado sem arrependimento, enquanto o membro diz,
essencialmente (pelo menos com suas ações): “Eu não me importo. Amo este
pecado. Amo minha autonomia — ser uma lei para mim mesmo. Eu me recuso a
abandoná-lo, mesmo que o rei diga outra coisa em sua Palavra.” Ainda assim, o
indivíduo pode, ironicamente, professar ser um seguidor de Cristo e um cidadão do
reino de Cristo. Mas essa profissão de fé soa como fraudulenta, de modo que a
igreja determina coletivamente lhe negar o pão e o cálice da comunhão. O indivíduo
é excomungado. Se o crente continuar no pecado sem arrependimento, a aliança
entre o corpo e o membro acaba formalmente, como uma expressão do fato de que
o pertencimento desse indivíduo à nova aliança de Cristo parece ser falsa.

MEMBRESIA E DISCIPLINA: UM RESULTADO DO AMOR DO EVANGELHO


Se o amor é “a afirmação e a afeição por parte daquele que ama em relação à
pessoa amada e ao seu bem no Santo”, logo fica difícil entender por que os crentes
se oporiam à ideia de membresia e disciplina na igreja. Se os crentes amarem a
Cristo, eles desejarão afirmar sua presença onde quer que ela apareça. Eles
desejarão protegê-la, exibi-la e vê-la crescer. “Você pertence ao nosso Salvador?
Então, deixe-nos confirmá-lo, supervisioná-lo, servi-lo e encorajá-lo.” A membresia
da igreja é um resultado evidente do amor do evangelho, e Cristo passou à igreja um
alvará para fazer exatamente isso.
A disciplina na igreja também é um resultado evidente do amor do evangelho
centrado em Deus. É uma ferramenta inevitável e amorosa em um mundo onde o
reino de Cristo foi inaugurado, mas não foi consumado. Se o amor de Deus fosse
centrado no homem, então a disciplina seria cruel, e para aqueles que continuam
convencidos da mentira de Satanás contra Deus (Gn 3.5), ela sempre soará dessa
maneira. No entanto, para os que buscam a santidade na igreja, a disciplina na igreja
é a recusa de chamar o que é pecaminoso de “santo”. É uma maneira de desfazer
uma afirmação, a fim de que o autoengano não reine mais. Numa oposição radical à
sabedoria deste mundo, ela ajuda a esclarecer exatamente o que é o amor.
Ponto 8: Essa aliança entre um crente e uma igreja local não
remove as responsabilidades de um crente em relação aos
outros crentes, mas, de fato, dá ao crente mais
responsabilidade sobre os membros de sua igreja.
UMA IGREJA E OUTRAS IGREJAS
Após explicar minha definição de membresia da igreja para um amigo, ele fez a
simples pergunta: “Então, qual é á diferença entre meu relacionamento com um
crente que pertence à minha igreja e com outro que não pertence?” Essa é uma
pergunta importante, e uma segunda pergunta se segue a essa: como uma igreja
deve interagir com um crente que está debaixo da autoridade de outra igreja local?

OBRIGAÇÕES PESSOAIS
Suponha que eu tenha dois amigos: Shane, um amigo, membro da minha igreja
local, e Doug, membro de uma igreja local diferente. As minhas obrigações bíblicas
em relação a Shane e Doug, de um crente para com outros crentes, diferem porque
um é membro de minha igreja local e o outro não? Com certeza, eu sou chamado, se
a ocasião permitir, a fazer estas coisas para cada um deles: incentivar, amar, servir,
carregar os fardos, perdoar, repreender, emprestar dinheiro e orar. Eles, por sua
vez, são obrigados a fazer o mesmo em relação a mim, se a ocasião permitir. Por
exemplo, Paulo recomenda o exemplo dos macedônios, que doaram de forma tão
generosa para a igreja de Jerusalém (2 Co 8.1-5). Não creio que haja muita
discordância entre os crentes a respeito disso. Todos veem os mandamentos sobre
“uns aos outros” nas Escrituras e admitem que devemos amar, servir e encorajar
outros crentes, porque todos pertencemos a um único corpo em Cristo. Mas as
minhas responsabilidades bíblicas em relação aos dois homens diferem de algum
modo, no que quer que seja, porque um é membro de minha igreja local e o outro
não?
Shane e eu temos formalmente submetido nossa vida e discipulado a um grupo
de crentes específico (consistindo de presbíteros, diáconos e leigos) ao qual Doug
não tem se submetido. Isso significa que um grupo específico de crentes tem
afirmado e tomado a responsabilidade pela minha fé e pela fé de Shane de uma
maneira que não tem feito em relação à fé de Doug. Isso significa que Shane e eu
temos feito uma aliança para supervisionar o discipulado um do outro, de um modo
que não temos feito em relação a Doug — mesmo que eu ame Doug e esteja
comprometido com ele de muitas maneiras como um amigo crente. Não significa
que não somos um com Doug, em Cristo. Mas isso é simplesmente porque, nesta
terra, nenhuma igreja possui os recursos infinitos capazes de supervisionar com
responsabilidade todo peregrino. A fim de administrar responsavelmente os nossos
recursos e nosso tempo, eu concordo em ajudar a supervisionar um corpo, ao passo
que você concorda em ajudar a supervisionar outro. Esse é um esforço em equipe.
Todos nós estamos jogando para o mesmo time, mas esse time se reúne em
inúmeros locais, com inúmeros técnicos.
A prática da disciplina na igreja apresenta uma ilustração concreta de como os
nossos compromissos em relação um ao outro diferem. Como membros da mesma
igreja, Shane deve prestar contas a mim, e eu, a Shane, de um modo que nenhum de
nós dois deve fazer com Doug. Se Doug começar a se envolver num estilo de vida
pecaminoso, sem dúvidas eu deveria ter algum nível de obrigação em repreendê-lo
como um irmão crente, quem sabe severamente. Dependendo das circunstâncias de
seu pecado, eu até poderia dizer: “Doug, dadas as decisões de seu estilo de vida sem
arrependimento, não sei por que você continua a se chamar de crente.” No entanto,
esse é o limite. Como um crente em relação a outro, isso é tudo o que posso fazer.
Meus poderes e responsabilidades vão até aqui e não vão além disso. Se Shane
começar a se envolver num estilo de vida pecaminoso, sem arrependimento, a Bíblia
me concede um nível ainda maior de responsabilidade e autoridade.
Eu seria chamado a participar, juntamente com minha igreja local, da execução
de uma cerimônia pública que tivesse todo o significado simbólico que o batismo de
Shane teve, mas que indicasse que Shane havia tomado uma direção oposta a ele.
Assim como o batismo de Shane simbolizava sua reconciliação com Cristo e seu
recebimento na comunhão da igreja universal de Cristo, o ato coletivo de disciplina
ou excomunhão da igreja local simbolizaria seu distanciamento de Cristo e seu
afastamento da comunhão da igreja universal de Cristo. Assim como o batismo,
esse é um ato público, executado localmente, que tem um significado universal. A
responsabilidade e a autoridade não pertencem a mim como indivíduo, mas as
compartilho com toda a congregação com a qual Shane e eu temos um compromisso
especial. Conforme temos visto, Jesus deu à igreja local um poder que ele não dá às
pessoas individualmente — o poder para ligar na terra algumas coisas e para
desligar outras (Mt 18.18, cf. 16.19).

AS OBRIGAÇÕES DA IGREJA
Como então as igrejas devem ver os crentes que pertencem a outras igrejas? Por
exemplo, minha igreja deve respeitar a confirmação que a igreja de Doug deu a ele?
Ele pode receber a Ceia do Senhor em nossa igreja? Se ele for um membro batizado
de outra igreja local que prega o evangelho, sim292. Se o membro de igreja Doug
estiver visitando nossa igreja, devemos recebê-lo como um irmão, e isso deve ser
assim não apenas porque ele professa a fé, mas porque outra congregação que
oferece supervisão a esse irmão o confirma na fé. Isso testemunha em favor dele.
É isso o que vemos no Novo Testamento. Paulo diz a Filemon para receber
Onésimo como um irmão (Fm 17), e Paulo parece pretender que a igreja que se
reúne na casa de Filemon observe se ele fará isso (Fm 2). João se alegra porque a
igreja de Gaio recebeu amorosamente os obreiros que a igreja de João havia enviado
(3 Jo 3-8), e ele despreza Diótrefes por não lhes ter dado acolhida (3 Jo 10). A linha
divisória da confirmação, da supervisão e da submissão praticada por uma igreja
local de modo algum significa que a igreja pode isolar os membros de outras igrejas.
Na verdade, é exatamente o oposto. Ela deve respeitar a autoridade de todas as
outras igrejas que creem no evangelho e deve receber seus membros, exatamente
como uma família deve receber convidados.
Ao mesmo tempo, essa aceitação deve ser temporária. Quanto mais um membro
ficar longe de sua igreja de origem, menos essa igreja de origem se tornará capaz de
lhe oferecer uma supervisão significativa. No final, uma igreja que tiver acolhido
alguém de outra igreja deve encorajar esse indivíduo a voltar para o lugar e para o
povo com quem ele se comprometeu ou a transferir sua membresia, ou seja, ele
deve estar sujeito à supervisão da nova igreja. De qualquer modo, o indivíduo deve
estar vivendo em submissão ao corpo de Cristo, submetendo-se a uma
manifestação específica desse corpo.
Justamente por isso, uma igreja deve respeitar e prestar atenção ao ato
disciplina de outra igreja. Se Doug tiver que suportar a disciplina de sua igreja, a
minha igreja deve respeitar a autoridade daquela igreja. É isso o que encontramos
nas Escrituras. O apóstolo João diz a outra igreja: “Se alguém vem ter convosco e
não traz esta doutrina, não o recebais em casa [provavelmente significando igreja],
nem lhe deis as boas-vindas” (2 Jo 10). João pode não estar se referindo a um
indivíduo disciplinado em si, mas ele está se referindo a um mestre que não leva o
evangelho apostólico e, nesse sentido, ele está sob a disciplina de toda igreja
apostólica. Tal indivíduo não deve ser acolhido ou recebido por uma igreja local.
Isso não significa que um indivíduo que foi tratado e disciplinado injustamente
por uma igreja deve ser evitado em toda igreja local. Nada impede uma igreja de ter
um pouco de cautela nessas questões. Na verdade, toda igreja deve fazer isso, a fim
de administrar adequadamente a sua autoridade.
Ao mesmo tempo, devemos enfatizar o fato de que as igrejas hoje em dia
precisam retomar o respeito e a consideração que elas devem a outras congregações
que também pertencem ao corpo de Cristo. Por exemplo, quando um crente
batizado deixa uma igreja e se apresenta para se tornar membro de outra igreja, a
igreja que o recebe reforça potencialmente uma concepção individualista de
cristianismo, por não demonstrar interesse algum na confirmação prévia que a
outra igreja fez do indivíduo. Seria errado exigir que as pessoas mostrassem para a
nova igreja em potencial a sua licença ou identidade, ou credencial da igreja
anterior, da forma como podemos pedir para ver o distintivo de um policial à
paisana. Afinal, toda igreja local tem autoridade para outorgar tal licença. Ainda
assim, uma igreja que falha em perguntar a um cristão batizado sobre sua afiliação
com a igreja anterior pode estar comunicando implicitamente que todos os crentes
são agentes independentes, livres para ir e vir quando desejarem.
Em resumo, toda igreja local deve adotar uma postura de abertura e de amor,
bem como de consideração e respeito em relação a outras igrejas e seus membros,
visto que todos nós juntos somos participantes de um único corpo de Cristo.
Talvez, poucas igrejas tenham exemplificado melhor essa postura do que as igrejas
da Macedônia, a quem Paulo encontra “pedindo com muitos rogos a graça de
participarem da assistência aos santos”, apesar de sua “profunda pobreza” (2 Co
8.4).
Ao mesmo tempo, a aliança de união entre um crente e uma igreja local significa
que adquirimos mais responsabilidade — tanto formal quanto informalmente —
pelos membros de nossa própria igreja do que pelos membros de outras igrejas. Isso
é o que as famílias fazem, é lógico, ao cuidarem de seus filhos. Não é que eu, sendo
pai, não me importe com os filhos de outras famílias ou que não me daria
sacrificialmente a eles se a ocasião o exigisse. Todavia, Deus me tem feito o
despenseiro exclusivo de meus filhos, o que significa que devo dar mais tempo e
amor a eles do que aos filhos dos outros. Isso também significa que estou
encarregado de instruí-los e discipliná-los de um modo que não estou encarregado
de fazer com os filhos dos outros.

CONCLUSÃO
Em 1 Coríntios 5, Paulo implora para que os membros da igreja de Corinto
protejam o evangelho, não mais se identificando com o homem que cometeu um
pecado que até os descrentes questionariam. Eles são o povo da cidade de Corinto
que publicamente se “reúne no nome de nosso Senhor Jesus”, por meio da
autoridade do alvará de Cristo. Por essa razão, eles são responsáveis, em nome de
Jesus, por garantir que esse homem não tenha permissão para se identificar
publicamente com Jesus. Eles devem prestar atenção ao alvará, rompendo sua
ligação com o seu nome corporativo. Eles devem retirar sua confirmação e
supervisão. Devem excluí-lo. Devem afastá-lo da membresia. A profissão de fé dele
não parece mais fidedigna, porque suas decisões na vida se parecem com as de
alguém que está no caminho da condenação. Paulo não pode saber com certeza se
esse homem é ou não um crente, mas a igreja ainda assim precisa falar em nome de
Jesus. Visto que esse homem está agindo sem arrependimento, como um
descrente, Paulo, em amor, exorta-os a tratá-lo como tal, expulsando-o. O alvo de
Paulo vai claramente além do de manter as pessoas juntas. Ele está interessado em
distinguir o povo de Deus, por causa dos crentes na igreja, do público de Corinto
como um todo, do nome de Cristo e desse homem — a fim de preservar e proteger
o evangelho.
Paulo sabe que existe um relacionamento simbiótico entre a forma e o conteúdo
da igreja, entre a sua estrutura e seu evangelho. Não podemos jogar as questões
sobre a estrutura da igreja na categoria das coisas “secundárias e sem importância”
e esperar preservar o evangelho diante dos hipócritas e hereges. Certamente as
igrejas precisam “renovar os seus pontos essenciais” e articular a doutrina
corretamente, a fim de preservá-los. Mas as igrejas também precisam de limites,
estruturas e autoridade. Não estou me referindo apenas aos limites doutrinários
designados pelos líderes das várias sociedades e movimentos do evangelicalismo ou
dos limites que um seminário possa impor. Refiro-me aos limites em torno da
instituição bíblica que são as igrejas locais. Essa é a ferramenta que Cristo deu à
igreja na terra para impor tais afirmações de fé e principais pontos doutrinários,
visto que Satanás usa os hipócritas e hereges para destruir a igreja.
Quando um seminário caminha para a falta de ortodoxia, por exemplo, a falha
não recai, enfim, no seminário; ela recai sobre qualquer igreja que esses professos
desviados frequentam293. O teólogo Carl Trueman esclarece exatamente isso
quando diz:
O problema com a forma como o evangelicalismo funciona hoje é que ele tem enfraquecido a
igreja. Porque ele exige que releguemos as particularidades eclesiásticas, como os pontos de vista
sobre o batismo e o governo da igreja. O evangelicalismo e suas instituições não podem, em
tese, substituir a igreja. Além disso, todo o problema com a prestação de contas é uma ideia que
é sempre discutida nas organizações paraeclesiásticas, desde os seminários até as comunhões
acadêmicas como a Evangelical Theological Society (Sociedade Teológica Evangélica). O
problema é que, na prática, as instituições evangélicas chegam a substituir a igreja, mesmo que
elas não tenham sido designadas para desempenhar esse papel. Para alguns, elas se tornam o
palco principal das ação, os fóruns nos quais alguém insignificante pode ser um figurão, e o
desviado e herege pode se exibir sem prestar contas adequadamente. Para outros, elas se
tornam os principais centros de identidade cristã, razão pela qual as pessoas se tornam primeiro
evangélicas, e somente depois se tornam presbiterianas, batistas ou pentecostais294.

É a igreja local, e não as inexplicáveis organizações e editoras motivadas


financeiramente, que é chamada para disciplinar tais membros, não importa
quantas graduações acadêmicas eles possuam ou quantos livros eles tenham
publicado. O mesmo é verdade sempre que os pastores, bispos, movimentos ou
denominações inteiras caem na falta de ortodoxia. Paulo torna isso notavelmente
claro em Gálatas 1. Ele não critica os falsos mestres, mas as próprias igrejas por
ouvirem um falso evangelho. São os membros da igreja que finalmente terão que
levantar diante de Deus e prestar contas pelo fato de terem tolerado um falso
evangelho. Uma ilustração recente disso aconteceu quando inúmeras igrejas locais,
pertencentes à Igreja Episcopal da América, votaram para que as congregações se
separassem da Igreja Episcopal e se unissem a vários bispos anglicanos na África.
Começamos este capítulo com a “simples eclesiologia” de Kevin Vanhoozer.
Pudemos apreciar o coração pulsante do evangelho de sua proposta, bem como a
tendência evangélica de afirmar o essencial e de não se dividir pelo que não é
essencial, embora a fórmula não seja tão simples quanto: evangelho = essencial;
política organizacional = não essencial, principalmente quando aquilo que não é
essencial é o que Deus pretende usar para proteger o que é essencial. As estruturas
concretas inflexíveis não são tão importantes quanto os seres humanos. Mas,
durante um furacão, elas são muito importantes, e queremos que os nossos
amados se revistam com essas estruturas. Sendo assim, precisamos fazer com que a
nossa eclesiologia esteja a um ou dois passos longe de ser simples, encorajando os
líderes e os membros a perceberem uma vez mais a importância de sua política
organizacional.
O que ainda não fizemos em nossa argumentação acerca da membresia foi
considerar com um pouco mais de cuidado o próprio cerne do ensaio de Vanhoozer,
a saber, explicar como a igreja na terra é um resultado do evangelho. O nosso foco
tem estado no lado institucional das coisas — no alvará. A fim de entendermos o
quadro geral, precisamos gastar um pouco mais de tempo considerando o coração
pulsante do evangelho da igreja e o modo como o evangelho se enquadra nesse
alvará. Isso requer que consideremos a ideia bíblica de aliança, para a qual nos
voltaremos agora.

225. Citações extraídas de William Faulkner, As I Lay Dying, New York: Vintage International, 1990, pp.
177-79, traduzido para o português como Enquanto Agonizo, Porto Alegre: L&PM, 2009.
226. Frederick L. Gwynn, et al., Eds., Faulkner in the University [Faulkner na Universidade],
Charlottesville, VA: University of Virginia Press, 1959, 114.
227. “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel,” in The Futures of Evangelicalism:
Issues and Prospects [Evangelicalismo e a Igreja: O que Acompanha o Evangelho em O Fututo do
Evangelicalismo: Questões e Perspectivas], ed. Craig Bartholomew, Robin Parry e Andrew West, Grand
R apids: Kregel, 2003, p. 46 nota 13.
228. Ibid., pp. 46-55.
229. J. L. Reynolds, “Church Polity or The Kingdom of Christ, In its Internal and External
Development” [“Política Organizacional da Igreja ou o Reino de Cristo em seu Desenvolvimento Interno
e Externo”] in Polity [Política Organizacioal], Ed. Mark Dever, Washington DC: Center for Church
Reform, 2001, p. 296.
230. Veja a obra de Jonathan Pennington sobre o contraste entre o céu e a terra em Heaven and Earth
in the Gospel of Matthew [O Céu e a Terra no Evangelho de Mateus], Grand R apids, Baker, 2009; uma
versão breve de seu argumento pode ser encontrada em “ The Kingdom of Heaven in the Gospel of
Matthew ” in Southern Baptist Journal of Theology [Periódico de Teologia dos Batistas do Sul], vol. 12,
Spring 2008; pp. 44-51.
231. Veja também a linguagem sobre “filhos” em Mt 5.9, 16, 45, 48; 6.1, 8-9, 26, 32; 7.11; 10.29.
232. Veja Mt 6.1, 2-3, 5-6, 16-17; 13.24-30, 36-43, 47-50; 22.1-14; 23.3, 8-10; 24.45-51; 25.1-13.
233. Frank Thielman, Theology of the New Testament, Grand R apids: Zondervan, 2005, pp. 105-9,
traduzido para o português como Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2007.
234. O comentarista John Nolland descreve a frase de Mateus “em nome de” como uma expressão de
solidariedade com Jesus em “ The Gospel of Matthew ” in The New International Greek Testament
Commentary [O Evangleho de Mateus no Comentário do Novo Testamento Grego Internacional],
Grand R apids: Eerdmans, 2005, 1268.
235. Para resumir esta seção, vale a pena citar um trecho completo de Jonathan Pennington: “Outra
função evidente do contraste entre o céu e a terra em Mateus é oferecer uma identidade clara dos
seguidores de Jesus. Mateus deseja que seus ouvintes compreendam que aqueles que seguem a Cristo são
o povo verdadeiro de Deus e quer encorajá-los com essa realidade. Jesus define esse novo, ou
verdadeiro, povo não por meio de uma linhagem étnica, que incluía ter Abraão como seu pai (3.9-10,
8.11-12, 23.9), nem por meio de posições de honra (23.2-11), mas como aqueles que fazem a vontade do
Pai que está no céu (7.21, 12.50), como aqueles cujas vidas produzem os frutos de quem segue de coração
os mandamentos de Deus (3.7-10, 7.15-23, 12.33-38). Esse tema cria uma identidade guiada pelo céu
para os discípulos em meio a um mundo hostil. O mundo é representado como estando dividido em
duas partes — céu e terra — e os discípulos são o povo verdadeiro de Deus, ajustados com o céu, ao
contrário dos governantes (romanos e judeus) da terra. Desse modo, o tema céu-terra, em Mateus, é
uma parte importante de sua eclesiologia (veja principalmente 16.17-19, 18.14-20). “ The Kingdom of
Heaven in the Gospel of Matthew ” [O Reino dos Céus no Evangelho de Materus], p. 49.
236. A rocha como sendo “Pedro” e a rocha como sendo “a confissão de Pedro” são, quem sabe, as duas
interpretações mais comumente apresentadas.
Outras interpretações também têm sido propostas, como a do próprio Jesus ou de seu ensino como
sendo a rocha (cf. Mt 7.24). Por exemplo, Robert H. Gundry, Matthew [Mateus], 2a ed., Grand R apids:
Eerdmans, 1982, 1994, pp. 333-34.
237. Por exemplo, D. A . Carson escreve: “Se não fosse pelas reações protestantes contra os extremos da
interpretação católica romana, seria de se duvidar que muitos tomassem “rocha” como algo ou alguém
que não fosse Pedro”. “Matthew ” in The Expositor’s Bible Commentary [Comentário Bíblico
Expositivo], vol. 8, Grand R apids: Zondervan, 1984, p. 368. Veja também Craig Blomberg, Matthew,
New American Commentary [Novo Comentário Americano], Nashville: Broadman, 1992, pp. 251-53;
Leon Morris, The Gospel According to Matthew [O Evangelho Segundo Mateus], Grand R apids:
Eerdmans, 1992, pp. 422-24; Donald A . Hagner, Matthew 14-28, Word Biblical Commentary
[Comentário Bíblico de Palavras], vol. 33b, Dallas: Word, 1995, p. 470; Craig S. Keener, A Commentary
on the Gospel of Matthew [Um Comentário sobre o Evangelho de Mateus], Grand R apids: Eerdmans,
1999, p. 427; R . T. France, “ The Gospel of Matthew ” [O Evangelho de Mateus], The New International
Commentary on the New Testament [O Novo Comentário Internacional do Novo Testamento], Grand
R apids: Eerdmans, 2007, pp. 620-23; David L. Turner, “Matthew ” [Mateus], Baker Exegetical
Commentary on the New Testament [Comentário Exegético de Baker sobre o Novo Testamento],
Grand R apids: Baker, 2008, 404-5, 406-7.
238. Keener, Commentary on the Gospel of Matthew [Comentário do Evangelho de Mateus], p.427;
ênfase no original. Sugestões semelhantes são feitas por Morris, Gospel According to Matthew [O
Evangelho Segundo Mateus], p. 423; e Nolland, The Gospel of Matthew [O Evangelho de Mateus], p.
669.
239. In The Church, Contours of Theology [Na Igreja, Esboços de Teologia], Ed. Gerald Bray, Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1995, p. 40; veja também Kevin Giles in W hat on Earth Is the Church? An
Exploration in New Testament Theology [O Que É a Igreja na Terra? Uma Exploração da Teologia do
Novo Testamento], 1995; reimpressão: Eugene, OR: Wipf & Stock, 2005, p. 54.
240. Para uma discussão mais proveitosa sobre Pedro como “símbolo” versus Pedro como “alguém sem
igual”, veja Carson, “Matthew ” [Mateus], p. 364; ou Ulrich Luz, Matthew 8-20, tradução de James E.
Crouch, Hermeneia: Minneapolis, MN: Fortress, 2001, pp. 366-68.
241. O comentarista Ulrich Luz liga de forma concisa os versículos 18 e 19, dizendo: “Aquilo que o
versículo 18a expressou de modo estrutural, o 19 diz de forma funcional. Agora, a função de Pedro como
uma rocha está determinada”, ou seja, isso é o que Pedro faz como o fundamento; in Matthew 8-20, p.
364.
242. O que são as chaves? As chaves foram dadas exclusivamente a Pedro ou a todos os apóstolos? Que
relação há entre a autoridade das chaves e a autoridade para ligar e desligar? Qual é objeto — seja ele
qual for — do ligar e desligar? O particípio perfeito passivo deve ser traduzido? Qual é a relação entre a
ação de Pedro na terra e as decisões tomadas no céu?
243. Turner, Matthew, p. 405.
244. Craig Blomberg, “Matthew,” in Commentary on the New Testament Use of the Old Testament
[Mateus no Comentário Sobre o Uso que o Novo Testamento Faz do Antigo Testamento], ed. G. K .
Beale and D. A . Carson, Grand R apids: Baker, 2007, p. 35; W. D. Davies and Dale C. Allison Jr.,
Matthew, vol. 2, The International Critical Commentary [Comentário Crítico Internacional], ed. J. A .
Emerton, et AL; Edinburgh: T&T Clark, 1991, p. 603.
245. (1) Jesus fez a pergunta aos discípulos; (2) Pedro respondeu provavelmente em nome de todos eles;
(3) Jesus diz a todos eles para guardarem silêncio sobre a resposta de Pedro. Clowney também
argumenta que “Pedro não é a rocha em contraste com os outros onze, mas em contraste com aqueles
que alegam ter a chave do conhecimento (Lc. 11.52), assentar-se na cadeira de Moisés (Mt 23.1-2) e ser
a descendência de Abraão (Jo 8.33)”. Edmund Clowney, “ The Church as a Heavenly and Eschatological
Entity” [A Igreja como uma Entidade Celestial e Escatológica] in The Church in the Bible and the World
[A Igreja na Bíblia e no Mundo], Ed. D. A . Carson, 1987; reimpressão Eugene, OR: Wipf & Stock, 2002,
p. 40.
246. Mais especificamente, a igreja é “apostólica” porque (1) ela é edificada sobre o fundamento dos
apóstolos (Ef 2.20; Ap 21.14) e (2) porque ela guarda e proclama o ensino dos apóstolos (2 Tm 1.13-14).
A Igreja Católica Romana acrescentou um terceiro elemento a isso, a saber, a sucessão apostólica por
meio do suposto ofício papal de Pedro.
247. Carson descreve 18.18 como uma “aplicação especial” da autoridade das chaves em 16.19, em
Matthews, p. 374.
248. Discordo de Carson, para quem o uso de eclesia nos capítulos 16 e 18 “não dá ênfase à instituição,
organização, forma de adoração ou a uma sinagoga separada” (“Matthew ”, p. 369). Carson argumenta
que o contexto no qual Jesus utiliza a palavra edificar (16.18) não aponta necessariamente para algo
institucional, visto que a ideia de “edificar” um povo brota do Antigo Testamento (ele destaca Rt 4.11; 2
Sm 7.13-14; 1 Cr 17.12-13; Sl 28.5; 118.22; Jr 1.10, 24.6, 31.4, 33.7; Am 9.11). Talvez ele queira dizer
algo diferente do que eu quero dizer com “instituição”, mas gostaria de usar a palavra “instituição” para
descrever elementos da vida conjunta do Israel do Antigo Testamento; elementos representados em
algumas dessas mesmas passagens (por exemplo, as estruturas de autoridade, limites de membresia, leis
que são aplicáveis somente aos membros). Se for esse o caso, então parece que aquilo que venho
chamando de uma mudança de forma de governo quase que ordena a substituição de um conjunto de
estruturas institucionais por outro. Em resumo, não basta dizer que o envolvimento de pessoas significa
que não há “instituição”, conforme admitirei em meu argumento ao longo desta seção.
249. Por exemplo, veja o Capítulo 30, “Of Church Censures”, da Confissão de Westminster, ou a Questão
83 do Catecismo de Heidelberg.
250. Por exemplo, Davies e Allison escrevem: “Em nossa estimativa, é mais natural pensar no versículo
19a como sendo explicado pelo que se segue: ter as chaves é ter o poder de ligar e desligar.”, in Matthew,
p. 254.
251. O próprio desafio de fazer isso parece levar aqueles que estão dentro da tradição crítica a fugirem
das respostas, quer seja nas fontes de informação, quer seja nas críticas redigidas; veja, por exemplo,
Davies e Allison, Matthew, pp. 640-41.
252. Por exemplo, Luz, Matthew 8-20, pp. 362-63; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 670-72.
253. Veja nota 24 acima.
254. Davies e Allison, Matthew, p. 603
255. Davies e Allison apresentam treze possibilidades, ibid., pp. 630-32.
256. Considere, por exemplo, que a palavra variavelmente traduzida como “violar”, “infringir” ou
“anular”, em Mateus 5.19 (“aquele, pois, que violar um destes mandamentos”), é a mesma palavra para
“desligar” (Iyo), a qual se refere claramente a um mandamento. Discussões sobre esse ponto podem ser
encontradas na maioria dos comentários ou nos dicionários teológicos de grego, como o Gerhard Kittel’s
Theological Dictionary of the New Testament [Dicionário Teológico do Novo Testamento] ou Colin
Brown’s Dictionary of New Testament Theology (traduzido para o português como Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 2000), no registro da palavra deo
e lyo. Veja também BDAG (léxico Grego/Português de Bauer).
257. Por exemplo: Davies and Allison, Matthew, pp. 638-39; France, The Gospel of Matthew, pp. 625-
26.
258. Por exemplo, Luz, Matthew 8-20, 365; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 677-82.
259. Por exemplo, Carson, “Matthew ”, p. 372; Blomberg, Matthew, p. 254; Keener, Commentary on
the Gospel of Matthew, p. 430; Turner, Matthew, 408. Essa também parece ter sido a posição de pelo
menos alguns batistas ao longo da história. Em 1697, o batista Benjamin Keach escreveu: “O Poder das
Chaves ou de receber pessoas na congregação e excluí-las é confiado à Igreja” (“A glória da verdadeira
igreja e sua demonstração de disciplina” in Dever, Polity, 71). O pastor batista Benjamin Griffith
escreveu de forma semelhante em 1743: “As chaves são o poder de Cristo, o qual ele deu a toda
congregação em particular, para abrir-se e fechar-se a si mesma, por causa do alvará e do poder
supracitado... elas são capacitadas para receber novos membros e para excluir os membros indignos,
conforme a situação exija”. In Short Treatise Concerning a True and Orderly Gospel Church [Um Breve
Tradado Sobre a Igreja Evangélica Verdadeira e Oficial], replublicado em Dever, Polity, p. 99.
260. As raízes das palavras para ligar e desligar (deo e lyo) são geralmente usadas no Novo Testamento
em referência a pessoas. Mateus utiliza a palavra ligar com referência a pessoas em 12.29, 14.3, 22.13 e
27.2. Ele não usa a palavra “desligar” nesse contexto, mas, em 21.2, ele utiliza “ligar e desligar”, juntas,
para se referir ao fato de amarrar ou desamarrar um jumento. A raiz da palavra “desligar” é geralmente
usada no Novo Testamento para se referir às leis ou aos mandamentos (exemplo, Mt 5.19), mas a raiz
da palavra ligar, que é usada quarenta vezes, é, de fato, usada somente para se referir a animais ou
pessoas (independentemente dos versículos em questão), com uma única exceção. A única exceção é no
contexto do casamento e, até certo ponto, ela tem aplicação direta a uma pessoa: “a mulher casada está
ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive” (Rm 7.2).
261. Carson adverte contra a falácia do estudo das palavras: “Nessa falácia, um intérprete assume
falsamente que as palavras sempre ou quase sempre possuem um significado técnico — um significado
que geralmente se origina de um subconjunto de evidências ou da teologia sistemática pessoal do
intérprete”. Exegetical Fallacies, 2a ed., Grand R apids: Baker Academic, 1996, p. 45, traduzido para o
português como Os Perigos da Interpretação Bíblica. 2. ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
262. Reconhecidamente, existem maneiras diferentes de chegarmos à mesma conclusão. Por exemplo,
Ulrich Luz insiste em que ligar e desligar tem a ver com a interpretação da Lei, mas é preciso admitir
deduz da metáfora das chaves algo semelhante ao que acabei de dizer: “Pode-se concluir a partir desse
texto que é tarefa de Pedro abrir o Reino dos Céus para as pessoas, e fazê-lo por meio de sua
interpretação conclusiva da Lei” (Mattew 8-20, p. 365, ênfase minha).
263. Davies e Allison, Matthew, p. 635; Luz, Matthew 8-20, p. 364.
264. Nolland, The Gospel of Matthew, p. 681.
265. Mais adiante, farei uma distinção entre a concepção católica romana e a protestante acerca da igreja
como o procurador terreno.
266. Compare, por exemplo, Luz, Matthew 8-20, p. 364, e France, The Gospel of Matthew, p. 625, com
Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 676, 681.
267. Morris, The Gospel According to Matthew, p. 427. Craig Keener diz algo semelhante: “Em ambas
as funções — na de avaliar os que entram e aqueles que já estão na igreja — o povo de Deus deve agir
com a autoridade do tribunal celestial... Por essa razão, Pedro deve aceitar na igreja somente aqueles que
compartilham de sua confissão sobre a verdadeira identidade de Jesus.” (Commentary on the Gospel of
Matthew, p. 430); cf. João 20.22-23; veja também Turner, Matthew, p. 408.
268. Luz, Matthew 8-20, p. 365; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 672; Davies e Allison, Matthew,
p. 639.
269. Michael Horton resume de maneira ordenada o poder das chaves desse modo: “O poder das chaves
do reino é exercido por meio da pregação, do batismo e da admissão (ou rejeição) na Comunhão.” People
and Place [Pessoas e Lugares], Louisville: Westminster, 2008, p. 243. Além disso, a ligação entre a
ordenança e o exercício do poder das chaves possui uma posição respeitável na história da interpretação.
Por exemplo, lemos na Confissão de Augsburgo: “O poder das chaves ou dos bispos é usado e exercido
somente pelo ensino e pregação da Palavra de Deus, e pela administração dos sacramentos... Desse
modo, são transmitidas não coisas corpóreas, mas dons eternos, a saber, a retidão eterna, o Espírito
Santo e a vida eterna. Esses dons não podem ser obtidos a não ser por meio do ofício da pregação e da
administração dos santos sacramentos.” Artigo 28, “Power of the Bishops”, Creeds of the Churches
[Credos das Igrejas], 3ª ed., Ed. John H. Leith, Louisville: Westminster, 1982, p. 98.
270. Muito provavelmente traduzi-los como futuro simples — “ligares”/“será ligado” — parece-me mais
apropriado dado o versículo que se segue: 18:18: “Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós,
sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida
por meu Pai, que está nos céus” (v. 19). Em primeiro lugar, a frase no indicativo “ser-lhes-á”, do
versículo 19, ocorre no mesmo tempo verbal e aspecto (futuro médio) que os indicativos (“será”),
precedendo os particípios do versículo 18. Em segundo lugar, esse versículo afirma que as decisões na
terra serão tomadas no céu pelo Pai. Isso se harmoniza com a promessa de Jesus, no capítulo 16, de que
as portas do inferno não prevalecerão contra essa igreja — ele está falando da verdadeira igreja, não de
algumas falsas igrejas contra as quais o inferno, sim, prevalecerá.
271. De fato, observe que a referência no tempo passado é mais tensa, provavelmente porque, mais
uma vez, uma autoridade representativa, embora seja eterna em um sentido, tem um aspecto presente
e futuro. Sua vindicação acontece quando a autoridade suprema retorna.
272. Pelo menos desde Cipriano a Igreja Católica Romana vem utilizando a metáfora da igreja como uma
mãe: “ Você não poderá ter Deus como seu Pai se não tiver a igreja como sua mãe”, Cipriano, The Unity
of the Catholic Church, Ancient Christian Writers [A Unidade da Igreja Católica: Antigos Escritores
Cristãos], traduzido por Maurice Bévenot, New York: The Newman Press, 1956, p. 48 (seção 6).
Evidentemente, a “metáfora” é uma versão ainda mais forte do papel de representante do que a de um
corretor de imóveis. O Catecismo da Igreja Católica, que traz a Imprimi Potest de Joseph R atzinger,
define ligar e desligar desta forma: “As palavras ligar e desligar significam: quem quer que você exclua da
sua comunhão será excluído da comunhão com Deus; quem quer que você receba de novo em sua
comunhão, será bem recebido de volta na comunhão dele. A reconciliação com a Igreja é inseparável da
reconciliação com Deus.” (itálicos no original); Catecismo da Igreja Católica, New York: Doubleday, 1995,
403.
273. Os críticos da membresia regenerada da igreja às vezes encarregam seus defensores de fazer essa
reivindicação; por exemplo, veja os comentários de James Bannerman na nota 51.
274. Considero a questão da discordância da autoridade na igreja no Capítulo 7.
275. É exatamente nesse ponto que os críticos presbiterianos da membresia regenerada da igreja me
parecem estar mal orientados. Veja, por exemplo, o livro do presbiteriano James Bannerman, The Church
of Christ [A Igreja de Cristo], vol. 1, Edinburgh: Banner of Truth, 1991, pp. 73-80. A questão da
membresia regenerada da igreja é simplesmente que a igreja visível aspira representar a igreja invisível
da forma mais rigorosa possível, não porque uma igreja pode dar “testemunho do trabalho secreto de
Deus feito na alma de um irmão” (79), mas porque as igrejas devem fazer exatamente o que prescreve
Bannerman — tentar avaliar “as profissões de fé inteligentes” (74). A “tendência donatista”, pela qual
ele e outros criticam a membresia regenerada da igreja, parece omitir a distinção entre o esforço e a
expectativa de ter uma igreja totalmente regenerada.
276. O que sempre foi um tanto surpreendente para mim é Calvino ter utilizado a metáfora de Cipriano,
da igreja como mãe. Falando da igreja visível, Calvino diz: “Pois não há outra forma de entrar na vida a
não ser que essa mãe nos conceba em seu ventre, faça-nos nascer e nos nutra em seu peito”, Institutes, p.
1016. Reconheço que Calvino tinha em mente coisas bastante diferentes das que tinha a Igreja Católica
Romana, desejando afirmar o papel instrumental da igreja em nossa salvação. No entanto, essa
linguagem sobre nascimento dá um crédito indevido à igreja. O Espírito Santo é quem faz com que
nasçamos de novo (Jo 3.1-8). O papel instrumental da igreja é mais bem descrito da forma diplomática e
declarativa.
277. John H. Leith, Creeds of the Churches, pp. 156-57.
278. George Barna, Revolution, Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, pp. 37-38, traduzido para o português
como Revolução, Santo Amaro, SP: Abba Press, 2007.
279. Novamente, Atos 9.31 é o único exemplo que conheço dessa ocorrência. Entretanto, F. F. Bruce
descreve esse texto como uma referência à igreja de Jerusalém, agora dispersa no capítulo 9, o que faria
sentido à luz do fato de que a última referência à “igreja” é a da igreja de Jerusalém sendo perseguida e
dispersada por Saulo. Isso parece razoável quando comparamos Atos 8.3 com Atos 9.31. The Book of
Acts, New International Commentary on the New Testament, Grand R apids: Eerdmans, 1988, p. 196.
280. Veja Miroslav Volf, After Our Likeness, (Grand R apids: Eerdmans, 1998), pp. 130-31.
281. Tim Chester e Steve Timmis, Total Church, W heaton, IL: Crossway, 2008, p. 18.
282. Observe o título perspicaz da teologia de Michael Horton sobre a igreja, People and Place: A
Covenant Ecclesiology.
283. John Angell James, Christian Fellowship [Comunhão Cristã] ou The Church Member’s Guide [Guia
para o Membro da Igreja], edição e resumo de Gordon T. Booth, extraído da 10a edição do vol. 11 do
livro Works of John Angell James [As Obras de John Angell James], 1861, Shropshire, England: Quinta
Press, 1997, p. 7.
284. Clowney, “ The Church as a Heavenly and Eschatological Entity”.
285. Veja Ibid., pp. 93-98.
286. Veja também 1 Co 10.32, 11.22, 15.9; 2 Co 2.1; Gl 1.13; Fl 3.6; 1 Tm 3.15.
287. Para um exemplo de alguém que opta por uma concepção de não existência de autoridade na
Trindade e na igreja, o que acaba por produzir uma concepção de ecesia que, de alguma forma, leva a ter
algum conceito de “ajuntamento” real, Kevin Giles, W hat on Earth Is the Church? Ele escreve: “A
maioria dos usos da palavra eclesia nos escritos de Paulo são utilizados para crentes de forma geral, sem
nenhuma alusão ao fato de que eles se eventualmente se encontravam cara a cara. Isso significa,
portanto, que o sentido de ‘assembleia’ nesses exemplos desapareceu completamente” (121). Não existe
assembleia? Isso não significa que minha vida cristã passa a girar toda ela ao redor de mim mesmo, que
fica no controle de tudo? Temo que os teólogos que, por razões compreensíveis, almejam o
igualitarismo, acabem ironicamente com um atomismo — um tipo de “sacerdócio para todos os crentes”
reductio ad absurdum.
288. Visto que os três títulos para supervisor ou bispo (episcopos), presbítero (presbuteros) e pastor
(poimaim) são utilizados de modo intercambiável no Novo Testamento, entendo que eles se referem ao
mesmo ofício. Veja, por exemplo, At 20.17 e 20.28; 1 Pe 5.1-2; ou compare 1 Tm 3.1 e Tt 1.5.
289. Veja At 16.18; 1 Co 5.3; 2 Co 2.10; 8.8; Fl 4.8; 2 Ts 4.4, 6, 10.
290. Alguns poderiam dizer que a autoridade para aconselhar não é autoridade, por exemplo, James
Bannerman, The Church of Christ, vol. 2, Carlisle, PA: Banner of Truth, 1974, pp. 239-40.
291. Veja Kevin Vanhoozer, “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel” in The
Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects, Grand R apids: Kregel, 2003. Cf. Michael Sandel,
Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982.
292. Para minha discussão sobre como esse assunto diz respeito à Ceia do Senhor e sobre “restringir a
ceia”, veja o capítulo 6.
293. Esse argumento surgiu com Mark Dever.
294. Carl Trueman, “Confessions of a Bog-Standard Evangelical” [Confissões de um Evangélico Comum],
in Reformation 21: The Online Magazine of the Alliance of Confessing Evangelicals [Reforma 21:
Revista Online da Aliança dos Evangélicos Confessos], assunto 28 (Janeiro de 2008), disponível em:
<http://www.reformation21.org/Counterpoints/ Counterpoints/373/vobId__6997/>.
Capítulo 5

A ALIANÇA DO AMOR

“O amor é algo que queima e cria um círculo flamejante.” — Johnny Cash

Pergunta principal: O que é exatamente esse compromisso ou “aliança” da


membresia com a igreja local?

Resposta principal: O compromisso que os crentes fazem uns com os outros


para formar uma igreja local é uma aliança semelhante a um compromisso. Visto
que Cristo os identificou com ele por meio de sua nova aliança, e já que ele os
autorizou a se identificarem com ele por meio de seu alvará, eles estão juntos numa
aliança, de um modo em que o nome de Cristo é protegido e o bem deles é
promovido.

DURANTE MUITOS ANOS, um amigo meu, Josh, queria ser missionário


numa nação de acesso restrito, no Oriente Médio. No entanto, ao longo do último
ano, o amor de Josh pela igreja local, no distrito de Washington, onde nós dois
somos membros, cresceu consideravelmente. Ele se tornou mais comprometido
com aquilo que Deus está fazendo por meio dessas pessoas, e isso afetou o modo
como Josh tem avaliado o seu desejo por missões estrangeiras. Recentemente, Josh
me descreveu a evolução de seus pensamentos a respeito dessa questão. Visto que
eu já havia começado a escrever este livro, eu o interrompi no meio de uma frase,
apanhei uma caneta e pedi a ele para começar de novo, de modo que pudesse tomar
nota de suas palavras. Eis aqui o que ele disse:
Sempre pensei que, já que eu tinha o desejo de ir para os povos que falam a língua persa, esse
deveria ser o plano de Deus para a minha vida. Mas visto que tenho permanecido nesta igreja e
pensado nas maneiras como Deus é glorificado pela submissão, conforme o modelo que
percebemos entre os filhos e os pais, maridos e esposas, membros da igreja e presbíteros,
comecei a considerar a possibilidade de que Deus possa ser mais glorificado e minha santificação
ser mais útil se eu submeter meus desejos e planos individuais em relação às missões à visão
missionária da igreja — mesmo que isso signifique ir a um grupo diferente de pessoas e a um
contexto diferente.

Eu esperava que alguns evangélicos respondessem ao meu amigo: “Josh, se Deus


o está chamando para ir àquelas pessoas, ele o está chamando para aquelas pessoas.
Você se negará, assim como fez Jonas?” Outros evangélicos que tivessem uma
compreensão menos mística acerca da vocação, talvez dissessem simplesmente:
“Josh, não entendo por que deva ser tarefa da igreja determinar aonde você deve
ir.”Concordo com o fato de que a igreja não pode dizer aonde ele deve ir, e
certamente não tenho a intenção de tratar da teologia do chamado ministerial.
Entretanto, vale a pena observar a postura do coração de Josh e sua linha de
pensamento. A sua compreensão acerca da vida cristã é centrada na congregação e
moldada pela congregação. Sua vida e seus dons pertencem ao Senhor, não a ele
mesmo, e ele não admite ter uma interpretação perfeita das intenções de Deus para
a sua vida. Em vez disso, ele sabe que precisa de ajuda. Ele entende, a partir das
Escrituras, que Deus colocou outros crentes ao redor e acima dele, para realizarem
a obra do ministério juntos, e que, às vezes, isso poderia significar não fazer o que
ele a princípio planejou. Ele não percebe a si mesmo como um agente superstar
independente, fechando acordos com esse ou aquele grupo de cristãos, a fim de
melhor realçar sua própria bagagem espiritual. Ele se assemelha mais a um filho,
conversando com a família na hora do jantar, pedindo conselhos àqueles que o
amam. Ele se parece com um marido ou uma esposa que não ousaria tomar uma
decisão de impacto sem consultar o outro. Ele é como um súdito que não se
atreveria a ter habilidosamente acesso imediato à mente do rei sem antes consultar
alguns de seus ministros. Ele se assemelha à mão ou ao pé de um corpo, os quais
não poderiam pensar em dizer ao restante do corpo: “Eu não preciso de você.” Será
que aquela pessoa que diz: “Josh, esqueça o que a igreja diz”, rendeu-se à nossa
cultura individualista muito mais do que imagina?
E se a igreja à qual Josh está pensando em se submeter não tiver uma visão
missionária? E se a igreja tiver alguns velhos diáconos intratáveis e aparentemente
não regenerados no comando? E se a igreja não puder ser confiável por inúmeras
razões? E se a igreja responder ao desejo de Josh de fazer missões da mesma forma
como J. R. Ryland supostamente respondeu a William Carey quando ele disse que
queria levar o evangelho à Índia: “Meu jovem, sente-se; se Deus se agradar em
converter os pagãos, ele o fará sem a sua ajuda ou minha.”? Essa é uma visão
missionária à qual Josh deve se submeter? É claro que não. Isso não é bíblico.
Provavelmente podemos imaginar um grande número de circunstâncias nas quais a
habilidade de Josh para se submeter confiantemente à visão missionária da igreja
poderia ser complicada, exigindo um equilíbrio cuidadoso e muita sabedoria; assim
como toda esposa que é chamada a se submeter a um marido pecador e todos os
cidadãos que são chamados a se submeterem a governantes corruptíveis. No
entanto, a verdade bíblica permanece. Josh não é uma pessoa independente numa
liga de esporte profissional. Ele é membro de uma família, de um casamento, de
uma nação santa, de um corpo. Essa é a sua identidade; portanto, ele está pensando
nas decisões a respeito da vida e do ministério à luz de quem ele é biblicamente.
Posso imaginar algumas situações nas quais Josh deva decidir vagarosa e
relutantemente, com temor de Deus em seu coração, rejeitar o conselho da igreja,
por este lhe parecer, em sua melhor capacidade de discernimento, tolo e antibíblico.
Posso imaginar outras situações nas quais Josh possa decidir colocar suas
esperanças na espera e se dedicar primeiramente, durante muitos anos, a ajudar
uma igreja doente a desenvolver uma visão sadia de missões; e depois, com esse
trabalho bem encaminhado, partir como alguém enviado alegremente pela igreja.
Posso ainda imaginar outras situações nas quais Josh pudesse persuadir uma igreja
a enviar um grupo de pessoas a essa nação de acesso restrito ou na qual eles
pudessem persuadi-lo a ir a outra nação.
Seja qual for o cenário, a questão é que Josh sabe que ele deve receber o
conselho da igreja à luz da ligação que há entre a sua identidade e a identidade dela.
Ele entende que está identificado com a igreja e que a igreja se identifica com ele,
porque ambos se identificam com Cristo. Ele tem, portanto, uma parceria com essa
igreja. O sucesso e as falhas da igreja são seus, e o sucesso e as falhas dele são da
igreja.

Ponto 1: Podemos responder à pergunta sobre o que é uma


“aliança com uma igreja local” considerando o relacionamento
entre o “alvará” de Cristo (descrito no Capítulo 4) e sua nova
aliança.

UM ALVARÁ E UMA ALIANÇA?


No Capítulo 4, vimos que Cristo concedeu à sua igreja uma comissão ou um
alvará que a mantém unida, que a distingue e que protege o evangelho. Mas
pulamos uma questão. Cristo deu seu alvará apostólico à igreja. Isso não sugeriria
que a igreja existe antes do alvará? A igreja universal não é criada por meio do
alvará, mas por meio de uma aliança, a nova aliança de Cristo. Meu amigo Josh,
assim como todo cristão, pertence à igreja universal por causa da nova aliança de
Cristo. Isso nos leva a perguntar: Como essa nova aliança se relaciona com esse
alvará? Será que essa nova aliança é a mesma coisa que a aliança da membresia?
Consideremos a narrativa da história do Novo Testamento uma vez mais. Toda
essa conversa sobre “alianças” e “alvarás” poderia parecer complicada, mas esse é o
desafio teológico com o qual nos deparamos à medida que tentamos compreender
como a linguagem sobre o “reino”, na Bíblia, ocorre juntamente com a linguagem
sobre a “aliança” com respeito à igreja local. Cristo veio declarando um reino,
dizendo às pessoas para se arrependerem. Ele tinha a intenção de vir governar e
abençoar todo aquele que o seguisse. Ao longo do tempo, ele comissionou doze
homens para edificar a igreja, uma sociedade de pessoas que declararam lealdade a
ele, dando um alvará a esses homens, alvará que eeles, por sua vez, confiaram a
toda a igreja. Depois, Cristo fez algo mais, algo com um sentido mais pessoal. Ele
firmou uma aliança — um juramento que ele selou com seu sangue. Essa aliança
prometia perdoar pecados e conceder o Espírito ao povo de Cristo que seria
formado depois disso. Afinal, aqueles a quem ele havia chamado ainda estavam em
inimizade com ele e uns com os outros, e eles não tinham o poder de mudar isso.
Essa aliança, de modo maravilhoso, ofereceu perdão e mudança eficazes.
Hoje em dia, Cristo implanta igrejas por meio de seu alvará e de sua nova aliança.
A fim de compreendermos plenamente a existência da igreja local e de sua
membresia, precisamos entender o quanto e como essas coisas se relacionam entre
si. Além disso, precisamos entender como essas duas coisas produzem uma aliança
com a igreja local. Em lugar algum do Novo Testamento encontramos a expressão
“membresia da igreja local” ou “aliança com a igreja local”, mas essas ideias podem
ser claramente inferidas. Os cristãos devem fazer esse compromisso semelhante a
uma aliança com um corpo de crentes, como uma indicação de que, em primeiro
lugar, eles pertencem à nova aliança e, em segundo, de sua submissão ao governo de
Cristo. Essa é uma exigência, assim como as obras são uma exigência para aqueles
que professam ter fé.

Ponto 2: A membresia na igreja envolve identificar a nós


mesmos com Cristo e com o povo de Cristo. A obra de
identificação mútua acontece por meio de alianças.

QUAL É O SEU NOME?


No âmago da membresia da igreja está a ideia de identidade. A membresia da
igreja diz respeito a unir os nossos nomes individuais ao nome de Cristo, por meio
da união de nossos nomes com os nomes das pessoas do povo de Cristo. É dessa
maneira coletiva que ele se identifica conosco como indivíduos, e nós, com ele.
Outras facetas da membresia, como a prestação de contas e a segurança, surgem,
portanto, dessa ideia básica. Eu, por exemplo, sendo filho, presto contas ao meu pai
porque ele se identifica comigo como sendo dele.
O nome de uma pessoa estabelece a sua identidade e a distingue dos outros.
Desde o jardim da infância até o final do ensino médio, meus professores
começavam cada ano acadêmico com uma lista de chamada. Quais nomes
pertenciam a quais rostos? Quando Deus une uma pessoa a ele mesmo, ele dá a ela
uma nova identidade, um novo nome, porque essa pessoa é uma nova criatura. A
pessoa nasce de novo. Em vários lugares das Escrituras, Deus até mesmo muda os
nomes de determinados indivíduos para ilustrar a nova identidade que ele dá a todo
o seu povo — o de Abrão para Abraão, o de Jacó para Israel, o de Simão para Pedro,
o de Saulo para Paulo, ou o de todos nós hoje, em certo sentido, para cristão295.
Mas ele não dá simplesmente uma nova identidade pessoal aos convertidos; ele
os convida para uma família, um corpo, uma comunidade em aliança no amor santo.
Ele dá a eles uma nova identidade coletiva e pública. Quando uma família adota uma
criança, a criança recebe o nome da família; o nome compartilhado pelo pai, pela
mãe, pela irmã e pelo irmão. O mesmo se dá na conversão e adoção do cristão. Deus
nos adota como indivíduos numa família, porque ele pretende se identificar não
apenas com você ou comigo, mas com toda uma família de filhos.
A nossa identidade pessoal não só está associada à nossa identidade coletiva,
como também a nossa membresia coletiva afirma publicamente a nossa nova
identidade pessoal. Quando a raça humana exclama: “Quem aqui pertence a Deus?”,
a igreja está autorizada a responder: “Nós pertencemos”, o que por sua vez
proporciona a cada membro o privilégio de dizer: “Eu pertenço.” A cerimônia de
renomeação é um acontecimento familiar em meio a muitas testemunhas — “Nós o
batizamos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19-20; 1 Tm
5.9)296.
Os cidadãos das democracias geralmente insistem na distinção entre seus
direitos e responsabilidades públicas e privadas, mas não há uma distinção nítida e
clara entre o público e o privado — ou melhor, entre o coletivo e o individual —
para o cristão. Quando uma pessoa se torna um cristão, sua vida e ações privadas
começam a representar tanto a Cristo quanto o corpo de Cristo, quer ela tenha a
intenção de representá-los ou não. Ela é um membro de uma família e, por essa
razão, ela porta o nome da família — em todas as coisas. Por exemplo, eu posso
cometer um crime por conta própria, mas, se eu for pego, minhas ações trarão má
reputação a toda a minha família. Semelhantemente, a vida de um cristão reflete e
representa a igreja, assim como a vida da igreja reflete e representa a Cristo.

É por isso que Lucas podia dizer que Saulo estava “assolando a igreja”, ao
entrar pelas casas e arrastar seus membros para a prisão (At 8.3). Os indivíduos
que estavam sendo perseguidos são identificados como representantes da igreja
local em Jerusalém.

Cristo podia falar da perseguição contra indivíduos cristãos e contra a igreja


como sendo uma perseguição contra “mim” (At 9.4). Cristo se identifica como
um representante de seu povo, quer eles fossem considerados de forma coletiva,
quer individual. (Vemos o mesmo em Mateus 18.5, 25.40, 45).

Paulo podia se referir a um cristão dormindo com uma prostituta como se ele
estivesse unindo os membros de Cristo a uma prostituta (1 Co 6.15). O
indivíduo pecador é identificado pelo menos como um representante de Cristo e
talvez da igreja (“membros de Cristo”).

Paulo nos adverte que quando pecamos “contra os irmãos, golpeando-lhes a


consciência fraca, é contra Cristo que pecamos” (1 Co 8.12). O indivíduo contra
quem pecamos é identificado como um representante de Cristo.
Paulo podia dizer: “De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com
ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam” (1 Co 12.26). Os
membros individuais de uma igreja são identificados como representantes uns dos
outros.

Observe o que acontece em cada uma dessas ilustrações: um nome é substituído


por outro nome ou nomes, assim como num anúncio de rádio que ouvi
recentemente sobre um show da Broadway: “A revista Time o chama de
‘Excelente!’!” A revista Time disse “Excelente!” ou a equipe de escritores da revista?
Um escritor o disse, tendo muito provavelmente a crítica sido publicada com
assinatura do autor na parte superior ou inferior do artigo, embora as críticas da
equipe de escritores possam ser atribuídas a um grupo de fora da própria revista. O
mesmo é verdade sobre a relação do cristão com sua igreja e com Cristo. Um cristão
fala e age em nome de sua igreja e de Cristo297. Muitas das metáforas para a igreja,
tais como a do corpo e da família, apontam para a mesma conclusão.
As igrejas locais receberam um alvará para ligar e desligar, incluir e excluir,
exatamente porque um cristão representa, de fato, a Cristo. Os descrentes da
sociedade não têm que compreender a teologia bíblica acerca da liderança para
terem suas opiniões sobre Jesus impactadas pelo comportamento estúpido dos
cristãos no escritório, na segunda-feira de manhã. Quando alguém começa a se
denominar cristão, os descrentes o associarão com Cristo. Por essa razão, as igrejas
devem tomar um grande cuidado quando confirmam alguém como cristão, por
meio do batismo e da Ceia do Senhor. Pois ao fazerem isso, elas lhes dão
autorização, por assim dizer, para representar Cristo publicamente.
Com certeza, a importância dos nomes e de ser identificado com um corpo maior
não é uma exclusividade dos cristãos e das igrejas. O chefe dos eunucos do rei da
Babilônia deu novos nomes a Daniel e aos três rapazes hebreus para que se
estabelecesse sua identidade babilônica (Dn 1.7). Os cidadãos de uma nação levam o
nome dessa nação. Os convertidos ao islamismo adotam um novo nome que indica
sua nova lealdade. Os fãs dos esportes enfeitam suas jaquetas e camisas com os
nomes de seus times favoritos. De forma geral, o nome de alguma coisa estabelece
suas associações, lealdades e muito mais.
Isso nos leva de volta ao argumento apresentado anteriormente no Capítulo 3: a
pergunta “O que mantém as pessoas unidas?” não é suficiente para os líderes de
igreja. Essa pergunta deve ser complementada pela pergunta sobre o que distingue
um povo e o identifica com Deus. Deus tem a intenção de fazer as duas coisas, e ele
o faz dando ao seu povo uma aliança de amor santo e colocando o seu nome sobre
eles. Abraão e seus descendentes foram distinguidos pelo sinal da aliança, a
circuncisão. O povo de Deus no deserto e na terra de Israel era distinguido pelas
restrições alimentares, pelas leis de higiene, pelos Dez Mandamentos, pelas várias
festas anuais e pelo sinal da aliança, o sábado. A igreja do Novo Testamento deve ser
distinguida e identificada com Cristo por seu amor e santidade, bem como pelos
sinais da aliança: o batismo e a Ceia do Senhor. Em todas as etapas da história da
redenção, Deus distingue seu povo com sua presença e nome, os quais ele concede
àqueles com quem ele faz uma aliança de amor santo.

Ponto 3: No Antigo Testamento, Deus utilizou alianças de


forma ampla para identificar um povo consigo e estabelecer
um reino.

UMA ALIANÇA FORMAL DE AMOR


Não é raro em nossos dias ouvir casais defendendo o seu amor um pelo outro, a
fim de justificar a atividade sexual fora do casamento ou até mesmo o concubinato.
A desculpa normalmente gira em torno de algo assim: “Não precisamos de um
certificado arbitrário para afirmar o nosso amor. O nosso amor é o que conta, não o
reconhecimento legal desse fato.”Suponho que Deus pudesse ter utilizado a mesma
desculpa ao declarar o seu amor por Abraão, pela nação de Israel, pelo rei Davi; e
quem sabe ele pudesse ter permitido a essa nação lhe pagar na mesma moeda. Mas
ele não fez assim. Em vez disso, ele presenteou Abraão, Israel e Davi com uma
aliança, um juramento formal (Gn 15, 17; Êx 24; 2 Sm 7). Na verdade, visto que o
“casamento” realizado no Sinai foi com uma geração que caiu sob o julgamento de
Deus e morreu no deserto, ele pediu para que essa nação “renovasse os seus votos”
em Moabe, antes de entrar na Terra Prometida298. Deus queria que a aliança, suas
cláusulas e promessas estivessem claras.
Assim como no caso do casal que estava defendendo o seu amor pré-existente
para justificar o concubinato, as alianças na Bíblia não produzem
relacionamentos299. Elas simplesmente afirmam um relacionamento que já existe e
lhe oferecem uma estrutura adicional300.
Deus já tinha um relacionamento com Noé antes de lhe presentear com uma
aliança, o mesmo se deu com Abraão, Israel e Davi. Se isso for verdade, a pergunta
passa a ser: O que há de errado com a desculpa do casal em concubinato? Ou no
caso de Deus e Israel, por que Deus insiste em formalizar seu relacionamento
amoroso com Israel por meio de uma aliança? Podemos responder a essa pergunta
de duas maneiras — de modo geral e de modo específico — que relembram a nossa
discussão sobre o amor santo. Falando de modo geral, Deus utiliza alianças a fim de
estabelecer seu reino ou de governar no meio de um povo identificado com ele
mesmo. Elas são os mecanismos pelos quais os bumerangues de seu amor santo são
lançados para longe e atraem o seu povo para uma conformidade amorosa com o
seu caráter. As alianças dizem respeito aos relacionamentos, os reinos dizem
respeito ao governo, e Deus está interessado em combinar as duas coisas. Deus está
interessado nos relacionamentos, mas nos relacionamentos de um tipo específico, a
saber, aqueles onde o seu governo é exibido.
Falando de modo específico, Deus usa alianças para fazer onze coisas: para
identificar um povo consigo; para distingui-lo do mundo; para chamá-lo à justiça;
para torná-lo sua testemunha; para exibir e compartilhar a sua glória; para
identificar as pessoas de um povo entre si; para agir como um testemunho para
eles; para atribuir responsabilidades a cada parte; para prestação contas; para
proteger o seu povo e para oferecer clareza em todas essas questões. E finalmente
argumentarei que Deus usa a membresia da igreja local para fazer todas essas
coisas — de forma geral — para estabelecer seu reino na terra; e de forma
específica, para identificar um povo consigo em todos esses propósitos. O amor une
afetuosamente aquele que ama com a pessoa amada, levando-o a dar a si mesmo por
ela com uma identidade compartilhada. É a aliança com a membresia da igreja local
que aspira tal definição. Começamos considerando a razão geral do motivo de Deus
utilizar alianças, ou seja, para estabelecer seu reino em meio a um povo identificado
com ele mesmo.

O REINADO POR MEIO DA ALIANÇA A palavra aliança nunca é utilizada


em Gênesis 1 e 2, talvez porque o pecado não havia entrado no mundo e
não havia acontecido qualquer interrupção no relacionamento entre Deus
e Adão que exigisse uma aliança formal. No entanto, a estrutura e a
natureza do relacionamento entre Deus e Adão possuem todas as
características daquilo que os relacionamentos de aliança afinal teriam
— duas partes designadas num relacionamento formalmente definido,
com obrigações e privilégios diferentemente prescritos. Ela deveria ser
um relacionamento de amor santo, no qual Deus unisse afetuosamente o
seu nome e sua imagem a Adão, desejando que Adão fizesse o mesmo. O
estudioso do Antigo Testamento Peter Gentry utiliza a expressão “reinado
por meio da aliança” para descrever o relacionamento prototípico com
Adão no jardim.
Adão se rebelou. Ele rompeu a aliança. Todavia, Deus inaugurou graciosamente
um novo plano para cumprir os propósitos de sua criação por meio da promessa
referente à semente de Adão. A linhagem de Adão finalmente chegou a Noé, que,
depois da destruição e recriação do dilúvio, recebeu a mesma ordem que Adão para
ser fecundo e se multiplicar (Gn 9.1). No entanto, os descendentes de Noé, assim
como os de Adão, não foram melhores do que eles e foram dispersos sobre a terra.

A ALIANÇA ABRAÂMICA
Deus então chamou Abraão e lhe deu dois mandamentos: “sai” e “sê uma bênção”
(Gn 12.1-2) — não muito diferentes do mandamento de Jesus: “ide e fazei
discípulos” (Mt 28.19-20). Em meio a esses dois mandamentos, Deus lhe fez várias
promessas. Ele prometeu fazer dele uma grande nação; abençoá-lo e engrandecer o
seu nome; traçar uma linha divisória entre aqueles que o abençoassem e aqueles
que o desonrassem, abençoando um grupo e amaldiçoando o outro; e abençoar
todas as famílias da terra por meio dele (Gn 12.2-3)301. Novamente, isso era uma
oferta do amor santo para unir seu nome ao nome de Abraão e para compartilhar
toda a sua glória com ele.
O que é impressionante em relação à promessa de Deus de fazer de Abraão uma
grande nação, observa Gentry, é a palavra hebraica usada, nesse texto, para “nação”,
goy. O termo goy é normalmente usado no Antigo Testamento para as nações
gentílicas e possui um significado básico de uma comunidade organizada, com uma
estrutura social, política e governamental. (As outras nações são descritas nessa
passagem com um termo que significa clãs ou famílias, mišpahâ). Isso é significativo
porque, em quase todas as outras passagens do Antigo Testamento, os
descendentes de Abraão, a nação de Israel, são descritos com outro termo que
sugere parentesco ou relações familiares, ‘am. E por que existe essa exceção nesse
texto? Gentry infere:
Gênesis 12 nos apresenta a estrutura política trazida à existência pela Palavra de Deus, com
Deus como o centro e Deus como cabeça e governante dessa comunidade. Em outras palavras,
temos o reino de Deus sendo trazido à existência por meio da aliança (entre Deus e Abrão). A
escolha de termos do autor enfatiza que a família de Abrão é um reino real, com poder e
importância eternos, ao passo que os assim chamados reinos desse mundo não possuem poder e
importância permanentes302.

Deus tem a intenção de estabelecer seu reino no meio de um povo a quem ele
identificará consigo, por meio de uma aliança. Essa aliança, é claro, é finalmente
formalizada em Gênesis 15 e 17. Gentry também observa que a palavra em grego
helenístico que melhor descreve essa estrutura é polis, ou cidade, um termo que
conota associações administrativas e governamentais. Isso nos ajuda a
compreender o que o autor de Hebreus tem em mente ao dizer que Abraão
“aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador”
(Hb 11.10), uma entidade que ele também chama de “a igreja dos primogênitos”
(Hb 12.22-23).

A ALIANÇA MOSAICA
Nós aprendemos, no primeiro capítulo de Êxodo, que Deus havia começado a
cumprir sua promessa de fazer de Abraão uma grande nação dando-lhe muitos
descendentes, mesmo que a sua administração piedosa dessa nação ainda não
estivesse em andamento. Na verdade, a administração opressora de faraó sobre os
israelitas indicava que algo mais era necessário, algo que afinal seria suprido com as
alianças mosaicas e davídicas. Deus começa a administrar as bênçãos da aliança
abraâmica, portanto, dando à nação de Israel a aliança mosaica303. Essa aliança
explica a sua vontade em termos de como eles deveriam se relacionar com ele, com
as nações ao redor e com a criação304. Após relembrá-los de que ele os levou sobre
asas de águia para fora do Egito, ele promete: “Se diligentemente ouvirdes a minha
voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre
todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e
nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel” (Êx 19.5-6). Essa
era uma oferta para pôr o seu amor santo sobre eles. Israel, ao obedecer a essa
aliança, seria “o agente usado por Deus para alcançar os propósitos mais amplos que
a aliança abraâmica incluía”305. Eles seriam abençoados com um nome grandioso
como seu “povo próprio” e seriam uma bênção para os outros como “reino de
sacerdotes”.
Assim como Adão, Israel foi criado para governar, mas seu domínio deveria
redefinir a autoridade para um mundo que a havia pervertido. O seu governo,
fundamentado na submissão a Deus, foi planejado para criar vida e esperança nas
nações, mediando o caráter e a glória de Deus para eles306. Mais uma vez, Deus
estava estabelecendo seu reino em um povo identificável por meio de uma aliança.

A ALIANÇA DAVÍDICA
A aliança concedida a Davi foi, portanto, estabelecida no contexto de duas
alianças anteriores. Especificamente, ela deu mais clareza à aliança mosaica,
tornando mais próximo o cumprimento da aliança abraâmica307. Esperava-se que o
ocupante do trono de Davi incorporasse preeminentemente os valores do Sinai,
refletindo assim a realeza de Deus, como seu vice-regente (Dt 17.18-20)308. Davi
também foi comissionado para demarcar os limites da terra, a fim de que uma
residência permanente para a presença de Deus pudesse ser construída309. Em tudo
isso, o rei de Israel tinha um relacionamento tão especial com Deus que o “filho de
Davi” era o “filho de Deus” (Sl 2.7; cf. 45.6, 89.26-28). E não somente isso, mas o rei
de Israel tinha um papel único em relação à aliança de Deus com Israel. Ele era o
mediador da aliança, representando Deus como o Senhor da aliança para o povo,
bem como representando o povo diante de Deus, personificando o povo e sua causa
diante dele310.
A obra de Deus de estabelecer um reino para si mesmo progrediu à medida que a
história da redenção passou da aliança abraâmica à mosaica, e depois para a aliança
davídica, cada uma delas edificando sobre a anterior311. As promessas abraâmicas
de uma grande nação e de um nome grandioso, além da de abençoar outras nações,
foram finalmente cumpridas por meio do filho davídico. Somente o filho de Davi
poderia estabelecer o reino de Deus por meio da aliança: “Nesse importante
sentido, o rei davídico se torna o mediador da bênção da aliança, relacionada a
Abraão e, enfim, a Adão, como o cabeça da aliança da raça humana312.

Ponto 4: No Novo Testamento, ele enviou seu Filho para


estabelecer uma aliança superior, efetiva. Essa nova aliança,
que nos une a Cristo pela representação, por meio do Espírito
e mediante a fé, é o fundamento da igreja.

UMA ALIANÇA EFETIVA DE AMOR


Obviamente, Davi e seus filhos falharam em guardar as alianças de Deus, assim
como Israel, Abraão e Adão, antes deles. Cada um deles era apenas um tipo ou uma
sombra.

O FILHO DE DAVI, O NOVO ISRAEL, A DESCENDÊNCIA DE ABRAÃO, O


ÚLTIMO ADÃO
No entanto, exatamente nas primeiras páginas do Novo Testamento,
aprendemos que Cristo é o filho davídico que media a nova aliança do amor santo de
Deus. Ele é o “filho de Davi, o filho de Abraão” (Mt 1.1), e o “descendente... a quem a
promessa havia sido feita” (Gl 3.19, 16). Na verdade, “todas as promessas de Deus
têm nele o sim” (2 Co 1.20). Ele é o verdadeiro Israel (Mt 2.15), e ele é o rei de Israel
(Mt 27.42; Jo 12.13). Ele é aquele a quem o grandioso Davi chamou de “meu
Senhor” (Sl 110.1; Mt 22.4; At 2.34; Hb 1.13), e aquele que veio para declarar a
inauguração do reino de Deus (Mc 1.15).
Cristo também, em seu amor santo pelo Pai, cumpriu as exigências de todas as
três alianças. Em sua circuncisão, ele cumpriu as exigências da aliança abraâmica313.
Ele era o Filho de Davi que não precisaria ser disciplinado (apenas compare as
versões exílicas e pós-exílicas da aliança davídica — 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17.3ss.)
e que agradaria ao Pai com perfeição (veja Hb 1.5, 8-9, 13). No entanto, apesar
disso, ele sofreu disciplina, e assim cumpriu as cláusulas da aliança mosaica por
meio da “aliança no meu sangue”. Jesus utilizou essa expressão no cenáculo com
seus discípulos principalmente para se referir à sua inauguração de uma nova
aliança. No entanto, não podemos ouvir essas palavras sem escutar a velha aliança
ressoando levemente ao fundo, já que sua obra cancelaria a dívida contraída na
antiga aliança (Rm 3.25-26; Cl 1.13; Hb 9.15, 10.10)314.
No entanto, Cristo não é apenas o Filho de Davi, o novo Israel, a descendência de
Abraão; mas é também o último Adão (1 Co 15.22, 45; cf. Lucas 3.23-38). Enquanto
Adão falhou em retratar o Pai com perfeição (assim como Abraão, Israel e Davi),
Jesus era sua perfeita imagem e o filho perfeito (2 Co 4.4; Cl 1.15; cf. Hb 1.3)315.
Ele inaugurou toda uma nova criação, simbolizada em seu ministério por meio de
suas curas, da ressurreição de mortos e da alimentação das massas, concluída mais
tarde em sua própria ressurreição como as “primícias” (1 Co 15.23). Assim como a
morte entrou no mundo por meio do primeiro cabeça geral, a vida e a promessa
entraram no mundo por meio do segundo (Rm 5.12-19)316.
É à luz de quem Jesus é que ele poderia oferecer uma aliança superior (Hb 7.22;
8.6). Ele é o Deus-Homem que era capaz de prover um sacrifício e uma aliança
efetivos317. Isso nos leva ao fundamento da igreja.

O QUE É A IGREJA?
O que é a igreja? As muitas metáforas para igreja no Novo Testamento oferecem
uma rica fonte de identificação e descrição: o templo, a vinha, a noiva, a
comunidade, o ajuntamento, o corpo, a casa, as ovelhas, a família — a lista é
longa318. Com muita frequência, as obras de Eclesiologia privilegiam uma metáfora
acima das outras, a fim de definir a essência da igreja. Além disso, determinadas
metáforas ficam em voga por um tempo, apenas para serem substituídas por
outras, uma ou duas décadas mais tarde. A Igreja Católica Romana, por exemplo, já
mudou várias vezes a definição de o povo Deus e o corpo de Cristo, cada uma delas
trazendo consigo uma série de implicações políticas e abusos em potencial319. Uma
abordagem popular nos dias de hoje tanto entre os escritores católicos quanto
protestantes é argumentar em favor de uma igreja trinitariana, privilegiando as três
metáforas: o povo de Deus, o corpo de Cristo e o templo do Espírito. A ênfase
trinitariana é boa, mas por que usar essas três metáforas em vez de dizer: família de
Deus, noiva de Cristo e templo do Espírito? Ou outro conjunto de palavras?
Hermeneuticamente, é difícil saber como podemos justificar o fato de colocar um
conjunto de metáforas acima das outras como sendo a mais importante.
Outra abordagem para definir a igreja é considerar o fato de que o enredo da
história de toda a Bíblia é movido pela obra de Deus para o estabelecimento do seu
reino por meio da aliança. Em vez de pegar a nossa metáfora favorita, ao acaso, eu
proporia que começássemos a nossa definição de igreja com a pessoa e a obra de
Cristo, assim como a igreja tem feito há muito tempo. Ele é o Deus-Homem que
veio como o último Adão, é a descendência de Abraão, o novo Israel e o filho de
Davi. De acordo com o plano de Deus e pelo poder do Espírito, ele cumpriu as
alianças de Deus e, por essa razão, conquistou todas as suas bênçãos e promessas.
Ele herdou a terra, assim como Adão. Seu nome foi feito grandioso e se tornou uma
benção para a terra, assim como Abraão. Ele conquistou o descanso prometido,
como Israel. Seu trono é um trono eterno, assim como o de Davi. Mas depois, da
forma mais notável e graciosa, esse Deus-Homem declarou uma nova aliança para
todos quantos se arrependerem e crerem.
Pouco depois de dar aos seus discípulos as chaves do reino, ele os levou para o
cenáculo e lhes deu um cálice, dizendo: “Este é o cálice da nova aliança no meu
sangue derramado em favor de vós”, e lhes ordenou que continuassem a fazer “isso
em memória de mim”. Ele estava aludindo à promessa de Deus do passado, dada por
Jeremias, de que ele “lhes imprimiria a sua lei”, de que ele “seria o seu Deus... desde
o menor até ao maior deles”, e que ele “perdoaria as suas iniquidades” (Jr 31.33-34;
Hb 8.6-13). Ele estava aludindo à morte futura que estava prestes a suportar.
Portanto, Cristo veio declarar um reino, mas depois ele fez algo um pouco mais
pessoal. O rei passou pela morte como um substituto pessoal para os pecadores. Ele
lhes ofertou uma nova aliança e a selou com seu sangue. Com esse ato, ele uniu um
povo a si mesmo como coerdeiros e vice-regentes. Eles também herdariam a terra,
assim como Adão; teriam um grandioso nome e seriam uma bênção, assim como
Abraão; entrariam no descanso de Deus, como Israel, e governariam junto com
Cristo, assim como Davi. O que é a igreja? É o povo da nova aliança de Cristo. É o
povo do seu amor santo. É o povo que está unido a ele e que compartilha da sua
identidade, porque ele se identificou com eles em sua encarnação, batismo, morte e
ressurreição. Ele trocou a sua vida e retidão pela vida deles. Considerando que um
dia Adão foi o cabeça da nossa aliança, agora Cristo é o cabeça da nossa aliança.
Começamos a nossa definição de igreja, portanto, com a aliança de Cristo.
No entanto, quase tão rapidamente quanto dizemos que a igreja é o povo da
aliança de Cristo, também devemos dizer que ela é o povo do reino de Cristo. Afinal,
Cristo os adquiriu para o seu reino e lhes deu as suas chaves. Ele compartilhou sua
identidade com eles para que a igreja pudesse compartilhar do governo de um reino
com ele. Os teólogos geralmente reconhecem que a pessoa e a obra de Cristo não
podem ser separadas. Cristo somente poderia realizar a obra que realizou por causa
de quem ele é — o Deus-Homem. O mesmo é verdade para a igreja. A igreja só pode
realizar a obra à qual foi chamada a realizar por causa de quem ela é. É por isso que
Pedro nos chama de sacerdócio real (1 Pe 2.9). Esse título transmite tanto a ideia de
quem somos como do que fazemos. Fomos feitos sacerdotes e reis associados a
Cristo, de modo que podemos mediar a glória do Pai à medida que estendemos os
limites do domínio de Cristo.
Ao começarmos com a pessoa e a obra de Cristo, edificamos nossa doutrina da
igreja sobre as estruturas da aliança e do reino de todo um Cânon, em vez de fazê-lo
com arbitrariedade, privilegiando uma metáfora em detrimento de outra. Ele nos
impede de dizer coisas filosoficamente especulativas como: “a igreja é a continuação
da encarnação”, com base numa compreensão enganosa da metáfora sobre o corpo;
ou: “nós somos a noiva mística de Cristo”, com base numa compreensão
exageradamente entusiástica da metáfora da noiva; ou: “Cristo, o cabeça, não é
completo sem o seu corpo e, juntos, eles formam um Cristo total”, com base numa
incapacidade de ver a metáfora do corpo no contexto da liderança davídica. Esses
são alguns dos erros mais notáveis na história da doutrina da igreja.
Ao mesmo tempo, começar com a pessoa e a obra de Cristo permite que cada
metáfora tenha a liberdade para refletir o multiforme esplendor da igreja. Esse
povo da aliança e do reino realmente tem os atributos de um corpo, de um rebanho,
de uma família, de uma videira, do baluarte da verdade, de um templo, de uma
nação com “fronteiras” e leis, e assim por diante320. A igreja está unida à pessoa e à
obra de Cristo assim como Eva estava unida a Adão. Ela compartilhou o nome dele
(varoa), para que pudesse ser uma auxiliadora em sua obra (Ef 5.22-32). Mas a
analogia do marido e da mulher não é suficiente. A igreja está unida a Deus assim
como um filho está unido ao pai, ou seja, como um filho do Israel antigo que se
parecesse com seu pai, seguisse as pegadas da profissão de seu pai e recebesse sua
herança (Mt 5.9, 45; Gl 4.4-7). Isso não é tudo: a igreja está unida a Cristo como um
povo está unido a seu rei. O rei governa sobre todos, mas o rei os representa, e eles
representam ao rei; e todos compartilham da cidadania e dos símbolos, da pompa e
da glória do reino. E poderíamos continuar prosseguindo. Algumas metáforas são
mais fundamentais do que outras, mas, enfim, é impossível (e hermeneuticamente
irresponsável) privilegiar qualquer uma das metáforas. Todas elas agem juntas para
descrever o povo escolhido por Deus e adquirido pelo Filho na nova aliança de seu
sangue, pelo poder do Espírito.
Como então colocamos a aliança e o reino juntos? Pense nisso dessa maneira:
Um rei derrota outro rei e ocupa sua terra, a plebe, porém, continuando hostil,
como se o seu antigo rei ainda reinasse. Agora, em certo sentido, o novo rei governa
sobre todos; por outro lado, seu governo continua limitado, estendendo-se somente
aos corações daqueles que o afirmam como rei. Em resposta a essa rebelião, o rei
promete que um dia punirá todos quantos continuarem hostis, mas também
promete clemência e perdão a todos quantos jurarem lealdade a ele. E não apenas
isso, ele também promete prover as moedas para pagar as taxas impostas sobre a
população. Essa analogia não é perfeita, mas o que é o reino de Cristo? É o governo
que ele possui por ter deposto o antigo rei, bem como o governo que ele possui no
coração daqueles que se arrependeram. Sua nova aliança é essa promessa de
clemência e perdão dos pecados. É também a capacidade dada pelo Espírito Santo de
suportar essa nova lealdade (pagar as taxas). A aliança é o que nos torna cristãos ou
cidadãos honrados de seu reino.

A UNIÃO TRÍPLICE
Exatamente de que forma essa aliança une a igreja a Cristo? Podemos falar de
nossa união com ele de pelo menos três maneiras, possuindo cada uma delas
implicações significativas para a nossa vida coletiva.
Em primeiro lugar, essa aliança nos une a Cristo de modo representativo (Rm
5.12-21). Existe um compromisso formal ou um juramento por meio do qual
aceitamos sua identidade e obra, assim como uma esposa que toma o nome do
marido ou um filho adotivo que leva o nome do pai, ou um imigrante que se torna
um cidadão. É uma aliança de casamento, porque o noivo ama a sua noiva de
maneira exclusiva e afetuosa. É uma aliança de adoção, porque o Pai e o Filho
desejam compartilhar a herança do Filho com muitos irmãos e irmãs. É uma aliança
de um corpo político, porque o rei tem autoridade sobre o todo. Uma identidade
compartilhada significa que todos compartilham todas as coisas, mas não de forma
a ignorar as diferenças entre o rei e a nação, o pai e o filho, o marido e a esposa, e
assim por diante.
Cristo toma a nossa culpa, enquanto nós adquirimos sua retidão e todas as
bênçãos que provêm dela. Ele leva os nossos fardos e tristezas, enquanto nós
adquirimos sua glória e conforto. Ele recebe o nosso trabalho diligente, enquanto
nós recebemos sua comissão e responsabilidade. Ele leva as nossas fraquezas,
enquanto nós adquirimos sua força. A nossa união representativa com Cristo é
extensa. Ele a estende a toda a experiência humana, em tudo o que ele tem feito por
nós (Rm 6.1ss.; Gl 2.20; Cl 2.20-3.4).
Por essa razão, nós compartilhamos sua vida, morte, ressurreição, ascensão, seu
sepultamento, governo e reino321. Na verdade, é bom ser membro dessa família!
Estar “em Cristo”, diz o teólogo Sinclair Ferguson, “significa que tudo o que ele fez
por mim de forma representativa se torna meu de verdade”322. Dizer que a igreja é
o corpo de Cristo, portanto, não é dizer que somos o seu corpo místico ontológico.
É falar em termos gerais ou em termos de aliança, assim como poderíamos falar de
um corpo político. Nossos congressistas votam por nós porque eles nos
representam. O rei Davi falava em nome do povo de Deus porque ele os
representava. O fato de Cristo ser o “cabeça do corpo” significa que ele é o mediador
da aliança e o cabeça geral da igreja (1 Co 11.3; Ef 1.22, 4.15, 5.23; Cl 1.18; 2.10, 19).
Em segundo lugar, essa aliança nos une a Cristo espiritualmente, porque
recebemos o seu Espírito (1 Co 12.13; cf. Rm 8.9-11; 1 Co 6.17-19; 1 Jo 3.24; 4.13).
O Espírito regenera, sela, é o penhor, dá dons, faz perseverar e glorifica aqueles que
pertencem a Cristo. Por essa razão, a aliança de Cristo é efetiva. Ela cumpre aquilo
que promete. Ela concede aquilo que exige. A igreja é trinitariana, na verdade,
porque a obra da aliança de Cristo é fundamentada na eleição do Pai e aplicada pelo
Espírito.
Em terceiro lugar, a aliança une a igreja a Cristo por meio da fé (Jo 2.11, 3.16;
Rm 10.14; Gl. 2.16; Fl 1.29). Nós nos incorporamos a Cristo por meio da fé. A nova
aliança de Cristo pode ser unilateral e eficaz, mas seus efeitos agem no contexto de
uma interpretação compatibilista da soberania divina e da liberdade humana. A
aliança fornece aquilo que ela exige, e ela exige uma decisão humana. Um indivíduo
deve se arrepender do pecado e colocar sua confiança em Cristo. Devemos escolher
a Cristo com as faculdades mentais da vontade que ele nos deu. Por essa razão, o
autor de Hebreus ainda adverte seus leitores para não “profanar o sangue da
aliança” com o qual eles foram separados para a salvação (Hb 10.29, cf. 6.4-6, 10.26-
27). Jesus adquire eficazmente um povo para si mesmo, mas os membros da igreja
visível podem “renegar o Soberano Senhor que os resgatou” (2 Pe 2.1). Uma pessoa
está unida a Cristo pela fé. Os crentes realmente compartilham uma “união
política” sob um rei, por causa de Mateus 16.18-19, conforme consideramos no
Capítulo 4 — uma união política que deve ser expressa na igreja “na terra”. No
entanto, deve ficar claro, a partir da conversa anterior sobre as alianças do Antigo
Testamento e sobre a nova aliança, que essa nova aliança também produz os
elementos de sua união política ou cidadania. As associações governamentais e
políticas da nação (goy) prometidas a Abrão, as quais tomaram uma forma
específica na “nação-estado” sob o governo de Davi e Salomão, acham sua forma
reconstituída nos cidadãos do governo de Cristo — nos membros da igreja!
Trazendo isso para o nosso tempo, as igrejas locais, de fato, são menos análogas aos
clubes ou às sociedades do que às embaixadas da “nação-estado” final de Cristo —
um reino que “não é deste mundo” (Jo 18.36).

IMPLICAÇÕES DESSA UNIÃO TRÍPLICE


Diversas implicações para a igreja podem ser extraídas dessa união tríplice. Em
primeiro lugar, o fato de a igreja compartilhar a identidade de Cristo significa que os
membros da igreja compartilham uma identidade uns com os outros. Isso significa
que também compartilhamos, uns com os outros, todas as coisas que constituem
essa identidade, como o trabalho, os relacionamentos, as alegrias e as tristezas.
Conforme eu disse anteriormente, essa união amorosa é extensa. Se uma parte
pranteia, todos nós pranteamos. Se uma parte se regozija, todos nós nos
regozijamos. Se uma parte peca, todos nós falhamos. Em nossa vida juntos,
compartilhamos as responsabilidades, a culpa, a vitória e as oportunidades, porque
representamos uns aos outros, assim como representamos a Cristo. É isso o que
significa sermos membros de uma família, cidadãos de uma nação, tijolos de um
templo. O sucesso e o fracasso de cada membro são meus, mesmo daqueles que eu
talvez não tenha encontrado pessoalmente. Isso não significa que todas as
diferenças entre os membros do corpo são eliminadas; assim como a diferença
entre o criador, Cristo, e a criatura, o cristão, não é eliminada. O fato de que todos
nós representamos uma identidade — a de Cristo — é significativo exatamente
porque somos diferentes. A vida cristã possui necessariamente uma forma
congregacional.
Em segundo lugar, o fato de compartilharmos a identidade de Cristo significa
que a nossa doutrina sobre a membresia da igreja não depende simplesmente do
voluntarismo, decisionismo ou do consumismo. Os crentes devem escolher se unir
a uma igreja por uma questão de responsabilidade e liberdade humana, mas eles
realmente não têm escolha sobre o fato de se unir a uma igreja, por uma questão de
relação entre a fé e as obras. Manter-se indiferente acerca da igreja local é “profanar
a aliança” (Hb 10.26-29).
Em terceiro lugar, o fato de estarmos unidos a Cristo pela fé significa que a
entrada e a participação na igreja acontecem sem a cooperação voluntária do
indivíduo. Cada um deve escolher se unir, escolher permanecer e pode escolher ir
embora. A aliança da graça é unilateral porque Cristo conquista com eficácia
exatamente aquilo que ele tem a intenção de conquistar, mas Cristo ainda invoca
uma decisão. A igreja tem o direito de declarar alguém como um verdadeiro crente,
embora ao mesmo tempo reconheça que seu selo de aprovação está condicionado à
perseverança do crente até o fim (Mt 10.22, 18.15-17; Ap 2.7, 17, 26). Assim é a
natureza da autoridade declaratória da igreja. O que aconteceria se privássemos a
membresia da igreja de seu elemento voluntarista, assim como a igreja de Roma e
outras tentam fazer? Criaríamos um espaço amplo para o cristianismo nominal e
para a hipocrisia, por meio do qual a igreja declararia unilateralmente os indivíduos
como pertencentes a si mesma, com base tanto em seu nascimento como em sua
conversão na idade adulta; mas depois, minimizando os processos da tomada de
decisão humana, ela negligenciaria a exigência para que perseverassem na fé. Em
quarto lugar, o Espírito foi dado à igreja não para que a igreja pudesse jogar fora
todas as restrições da política organizacional e adaptar sua estrutura organizacional
a qualquer ambiente no qual se encontrasse, conforme muitos argumentam hoje
em dia. Pelo contrário, Cristo deu o seu Espírito à igreja para que ele possa realizar
o governo do reino de sua aliança na vida das pessoas — para regenerar, santificar,
selar, dar-lhes dons, ser o seu penhor e fazê-las perseverar. Ele o deu para tornar
sua aliança efetiva. Ele o deu por causa da fé e da obediência. Considerando que o
Israel étnico não regenerado não pôde guardar as leis da nação-estado, a igreja
regenerada está aprendendo a guardar as leis do “estado” de Cristo (reino) por meio
do Espírito.
O fato de termos o Espírito tem outras implicações institucionais, mas isso não
significa que podemos jogar fora todas as hierarquias e autoridades humanas, a
menos que elas sejam missiologicamente propícias a um determinado contexto.
Paulo reage exatamente a essa questão quando diz aos coríntios: “Chegastes a
reinar sem nós!” (1 Co 4.8). Um rei é soberano sobre pessoas em relação às quais
ninguém mais poderá reivindicar ter autoridade. Tornar a estrutura bíblica da igreja
uma questão de mera conveniência contextual e pragmatismo é o mesmo que
declarar cada cristão como seu próprio soberano, os quais juntos fazem um acordo
voluntário para uma tarefa (ou missão) específica e permanecem associados
somente enquanto eles escolherem fazer isso. Isso é simplesmente voluntarismo. É
perder de vista a identidade de aliança que os cristãos compartilham, uma
identidade que é mais importante do que o sangue que eles compartilham com sua
mãe, irmão e irmã biológicos (Mt 12.50). Observe, portanto, que definir a igreja
unicamente por sua missão, à medida que isso minimiza a nossa identidade
compartilhada na obra da aliança de Cristo, pode nos levar de volta ao
individualismo e à independência.
Quais são as implicações institucionais que a obra eficaz do Espírito tem para a
igreja? Primeiramente, as reuniões da igreja devem ser organizadas (1 Co 14). Em
segundo lugar, os líderes de uma igreja se tornarão líderes, pelo menos em parte,
por causa de suas características e dons concedidos pelo Espírito Santo. Suas vidas
são irrepreensíveis, e eles são aptos para ensinar. Os líderes são líderes, pelo menos
em parte, por causa das qualidades que podem ser reconhecidas e confirmadas
publicamente pela congregação e não por causa de algo místico. Em terceiro lugar,
todo exercício de autoridade, quer seja o exercício pastoral de aconselhamento,
quer o exercício apostólico de mandamento, apela para a vontade do indivíduo. Ele
aspira comandar aquilo que o crente deseja, crendo que o Espírito Santo é poderoso
exatamente para reordenar os desejos. Paulo diz a Filemon: “Pois bem, ainda que eu
sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, prefiro, todavia,
solicitar em nome do amor” (Fm 8-9).
Tanto a autoridade pastoral quanto a apostólica sempre deve apelar para a nova
aliança, as realidades concedidas pelo Espírito Santo no íntimo do indivíduo. É isso o
que nós, sendo pastores, fazemos sempre que apelamos para o novo homem, em
contraste com o velho homem. Obviamente, às vezes, a igreja terá que tomar
decisões que contrariam a vontade de um indivíduo. É claro que esse é um caso em
que há um ato disciplinar, quando a igreja anuncia formalmente que não há razão
para acreditar que um indivíduo possua o Espírito Santo. E haverá outros
momentos em que a igreja deve tomar decisões com as quais nem todos concordam.
De forma geral, no entanto, creio que devemos dizer que as autoridades
institucionais da igreja cristã, por causa da nova aliança, devem esperar (não
insistir) que as suas ordens e conselhos se alinhem progressivamente aos desejos
dos crentes.
Para quaisquer teólogos, deixe-me colocar desta forma: Numa escatologia
supervalorizada, seria de se esperar que a autoridade da igreja e os desejos de seus
membros se alinhassem perfeitamente, o que levaria a uma falta de estrutura e
prestação de contas. Numa escatologia subvalorizada, seria de se esperar apenas o
oposto, o que levaria a um autoritarismo e a uma forte dependência da autoridade
no comando. Uma escatologia adequada e equilibrada almejará o difícil e geralmente
enganoso meio-termo, sabendo que os crentes são ao mesmo tempo justificados e
pecadores, capazes tanto de autoengano quanto de fé genuína.

Ponto 5: A “aliança” de membresia com a igreja local é o que


acontece quando o alvará de Cristo reúne e distingue o novo
povo da aliança de Cristo.

UMA ALIANÇA COM A IGREJA LOCAL


No final do último capítulo, eu disse que uma aliança ou uma união entre uma
igreja específica e um cristão consiste na confirmação, na supervisão e na
submissão. As alianças da igreja são para confirmar e supervisionar o crente, ao
passo que as alianças do cristão são para se submeter à supervisão da igreja. Para
ser claro, não estou falando de um documento escrito ao qual as igrejas às vezes se
referem como sua “aliança”. Estou falando a respeito da realidade por trás de tal
documento: um acordo entre os membros de uma igreja. Devemos assumir que
esse compromisso semelhante a uma aliança, essa aliança com a igreja local, é a
mesma coisa que a nova aliança? O que é a aliança com a igreja local em relação à
nova aliança de Cristo? Afinal, essa palavra não é utilizada para as igrejas locais em
lugar algum das Escrituras.

ONDE O ALVARÁ E A ALIANÇA ENTRAM EM CONFLITO


A nova aliança e o compromisso semelhante a uma aliança com a igreja local, o
qual faço com os outros membros de minha igreja, não são a mesma coisa. Em vez
disso, esse compromisso é exatamente a altura onde o alvará e a nova aliança
entram em conflito. É o alvará que produz a membresia da igreja; entretanto, a
igreja em si é uma criação da nova aliança de Cristo. Podemos perceber esse
conflito, por assim dizer, nas duas ordenanças da igreja. Por um lado, a igreja local
pratica o batismo, conforme ordenado por Cristo no alvará de Mateus 16, 18 e 28.
Por outro lado, a igreja local pratica a Ceia do Senhor, conforme ordenada no
momento em que Jesus prometeu a nova aliança em Mateus 26. Se colocarmos
essas duas coisas juntas, teremos as duas marcas da membresia da igreja. Os
membros da igreja são simplesmente aqueles que são distinguidos pelo batismo e
pela Ceia do Senhor na congregação local. Isso é a igreja. No entanto, observar esse
conflito não responde como a aliança e o alvará agem juntos para produzir uma
aliança com a igreja local ou uma membresia da igreja local.
É importante reconhecer que a nova aliança vem primeiro. O alvará não cria o
corpo escatológico e celestial de Cristo; é a nova aliança que o faz. Mateus 16 (o
alvará) talvez possa vir antes de Mateus 26 (a promessa de uma nova aliança), mas,
em ambas as passagens, Cristo estava preparando as coisas para o nascimento da
igreja no Pentecostes, momento em que os poderes celestiais da nova aliança foram
liberados na terra pela primeira vez. A aliança é anterior ao alvará porque a igreja
universal existe antes da igreja local323. A salvação precede a membresia na igreja.
Por isso, Cristo deu ao povo desse corpo escatológico e celestial uma chave que
pode ser usada onde quer que dois ou três deles se reúnam de forma deliberada e
coerente na terra, em nome dele. Eles decidem quando ligar e desligar. Isso significa
que a igreja local — e a membresia da igreja local — não existe até que esses seres
humanos, de modo coletivo e público, digam que ela existe. A existência de uma
igreja na terra sempre é o resultado direto das ações humanas de natureza pública.
Esse povo deve dizer isso em alto e bom som. Certamente esse é um caso em que a
ação divina e a ação humana são necessárias para a existência da igreja universal;
um indivíduo deve se arrepender e crer para se unir ao corpo universal de Cristo.
Mas uma diferença significativa ainda permanece. A união com um corpo local exige
um acordo com mais de uma pessoa. Ela requer pelo menos duas ou três pessoas se
reunindo para dizer: “Submetamo-nos uns aos outros. Afirmem minha profissão de
fé e continuem vigiando minha alma em nome de Cristo. Eu, juntamente com os
outros, farei o mesmo por vocês. Portanto, todos nós juntos falaremos em nome de
Cristo.” Cristo deu a esse grupo de pessoas a autoridade para fazer exatamente isso.
Seria uma presunção dos seres humanos concordarem em falar juntamente em
nome do Cristo ressurreto, a não ser pelo fato de o próprio Cristo lhes ter dado
autoridade para fazê-lo. É esse acordo ou compromisso para ligar e desligar uns aos
outros que constitui a aliança com uma igreja local. A aliança de membresia entre
cristãos é nada mais nada menos do que a existência de uma igreja local — a igreja
visível na terra.
Imagine, por um segundo, que Cristo não tivesse dado esse alvará ao seu povo.
Em outras palavras, imagine que Cristo tenha decidido colocar em risco tanto o
evangelho quanto sua reputação, dando o direito para cada indivíduo do planeta
declarar de forma independente: “Eu sou um deles.” Quem garantiria a segurança
de cada uma das ovelhas? Quem as chamaria para prestar contas? Quem poderia
preservar o evangelho de geração em geração? Quem nos ensinaria a respeito de
tudo quanto Cristo nos ordenou? Quem impediria o povo de Cristo de cair num
caos total?
Louvado seja Deus porque ele deu a nós, seu corpo celestial e escatológico, a
autoridade para nos reunirmos de lugar em lugar como uma única igreja santa,
universal e apostólica sobre a terra. Ele determinou proteger suas ovelhas,
preservar seu evangelho e proclamar essa boa nova, por meio da autorização de
uma aliança entre indivíduos cristãos, a fim de que eles pudessem afirmar e afastar
uns aos outros do evangelho apostólico (cf. Gl 1.6-9).
A aliança com a igreja local é a própria vida e existência da igreja local. A igreja
local existe quando os crentes se comprometem a dar uns aos outros a autoridade
sobre si mesmos, o que eles fazem de forma expressa porque Cristo os instruiu a
ligar e desligar, a batizar e ensinar, com seu alvará.

UMA ALIANÇA É MAIS DO QUE UM COMPROMISSO


Por que nos referiríamos à membresia como uma “aliança”, se ela não é, de fato,
a mesma coisa que a nova aliança? Não seria suficiente simplesmente chamá-la de
“compromisso”, em vez de confundi-las, já que são duas coisas diferentes? Talvez, e
assim como a Trindade ou a substituição penal, termos que não são encontrados na
Bíblia, nada exige que os utilizemos. Entretanto, assim como os termos Trindade e
substituição penal, esse termo apreende proveitosamente a essência da ideia em si.
Ele explica o que a membresia da igreja é — um tipo de aliança entre pessoas que,
juntas, já pertencem à igreja por causa da nova aliança e do alvará apostólico.
Essa ação certamente envolve um compromisso, mas ela é mais do que um
compromisso. Ela é o ato de se dobrar ou se curvar em relação a outras pessoas, em
amor. Eu sujeito o meu discipulado cristão a elas, e elas sujeitam o delas a mim e aos
outros, porque amamos uns aos outros com a afeição de Cristo. Nós pretendemos
nos unir e dar a nós mesmos uns aos outros.
Quando minha então futura esposa e eu fomos ao aconselhamento pré-nupcial,
o pastor nos disse que a aliança do casamento não deveria ser mais que “um pedaço
da torta de nossa vida”, como se dissesse que uma fatia da torta era o casamento,
outra fatia o trabalho, outra fatia as amizades e assim por diante. Em vez disso,
deveríamos começar a ver toda a nossa vida juntos da perspectiva do outro. Somos
uma só carne, o que significa que cada um de nós, no casamento, deve ver todos os
pedaços através das lentes de nossa intimidade afetuosa. Eu estou comprometido
com minha esposa, mas o meu relacionamento com ela envolve mais do que isso.
Toda a minha identidade muda. Toda a minha pessoa está agora inclinada ou
curvada na direção dela e de nossa comunhão compartilhada. Com certeza, a
aliança com a igreja não é a mesma coisa que a aliança do casamento. Há inúmeras
diferenças entre elas. Mas há esta dinâmica semelhante: ela envolve um
compromisso do todo de uma pessoa, de um modo tão grave que muda a nossa
própria identidade.
Isso não significa que a nossa identidade muda em relação a esta ou àquela igreja
local. Eis uma situação em que a analogia com o casamento não funciona. Minha
aliança com minha esposa é exclusiva. A identidade de um cristão, no entanto, é
basicamente sujeita a Cristo e a todo o povo de Cristo. Afinal, a nossa união com
Cristo é extensa. No entanto, não podemos expressar nossa submissão a Cristo e ao
seu povo nos submetendo a todos os crentes em toda parte, pelo menos não num
sentido significativo. Imagine tentar orar por todo crente na terra citando nome por
nome, ou servir a cada um, ou pedir que cada um deles nos discipline se a nossa vida
começar a se desviar do caminho estreito. Essa submissão da nossa pessoa deve ser
expressa em algum lugar, entre algumas pessoas, e isso acontece numa igreja local.
Se virmos o discipulado cristão em cada área de nossa vida por meio das lentes de
nossa igreja local, tentaremos orar nominalmente pelos membros; servir a todos de
um modo ou de outro e pedir que todos coletivamente nos disciplinem se
começarmos a nos desviar do caminho estreito. Aspiraremos chorar com os que
choram e nos alegrar com os que se alegram, e esperaremos que todos aspirem o
mesmo que nós. Além disso, desejaremos que nossa igreja nos ajude a avaliar o
nosso trabalho no mercado de trabalho, o nosso envolvimento na esfera pública, o
nosso casamento, nossas amizades com os vizinhos descrentes e assim por diante.
Considere os recursos que seriam úteis a nós mesmos à medida que apelássemos
para os pontos fortes de todo o corpo para nos ajudar a estender o governo de
Cristo em nosso próprio cantinho da nações, onde quer que ele esteja. Os diversos
dons, talentos, pontos fortes e orações de todo o corpo produzirão vida em nós e
em nossos ministérios — nossas tentativas para expandir o governo de Cristo — à
medida que nos submetermos à autoridade desse corpo.
Ponto 6: Assim como nas alianças do Antigo Testamento, o
compromisso de aliança compartilhado pelos membros da
igreja local serve a nove propósitos específicos.

A OBRA DE UMA ALIANÇA


O argumento para descrever a membresia da igreja local como um tipo de aliança
é, porém, mais forte do que uma boa analogia que soe bem, proporcionada pelo
meu aconselhamento pré-nupcial. Na verdade, ele se baseia no padrão do
compromisso de aliança de acordo com o povo de Deus em toda a Escritura. Sempre
tem havido um lado de dentro e um lado de fora para o povo de Deus. O jardim do
Éden tinha um lado de dentro e um lado de fora; assim como o tinham a Arca de
Noé, os israelitas em Gósen, a noite da Páscoa, o deserto e a Terra Prometida. Em
cada etapa, o povo de Deus era distinguido por uma aliança ou outra.
Temos visto que Deus utiliza alianças para estabelecer seu reino no meio de um
povo que ele deseja identificar consigo mesmo; no entanto, para entender melhor o
compromisso que os crentes fazem uns com os outros quando eles se reunem,
devemos ir um pouco mais fundo. Falando de modo específico, Deus usa alianças
para fazer pelo menos nove coisas: para identificar um povo consigo; para distingui-
lo do mundo; para chamá-lo à justiça; para torná-lo sua testemunha; para exibir e
compartilhar a sua glória; para identificar as pessoas de um povo entre si; para agir
como um testemunho e um padrão para prestação de contas; para atribuir
responsabilidades a cada parte; para proteger o seu povo. Nós caracterizamos o
compromisso compartilhado entre os crentes numa igreja local como uma “aliança”
porque os crentes que se reúnem formalmente no nome de Cristo o fazem com
esses nove propósitos em mente, tanto para a glória de Cristo como para seu
próprio bem.
1) Uma aliança identifica um povo com Deus. Deus se identifica de modo formal
e público com um povo por meio de alianças. Às vezes, ele muda seus nomes, como
fez com Abrão e Jacó. Talvez, o mais notável é que ele se identifique a si mesmo por
meio dos nomes deles, como quando ele se identifica como o Deus de Abraão, de
Isaque e de Jacó (Êx 3.6, 15-16, 4.5). O mesmo Deus que, em sua magnificência, é
conhecido no meio de seu povo como infinito e sem antecedentes e precedentes —
Eu sou — também concorda em ser conhecido pelos nomes deles.
Quando Deus apresenta uma aliança para a nação de Israel, ele identifica
exatamente com quem ele está fazendo essa aliança: “Ouvi, ó Israel, os estatutos e
juízos que hoje vos falo aos ouvidos” (Dt 5.1); “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso
Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4). Deus não está fazendo um juramento com todo
o mundo — não é com os egípcios ou com os cananeus. Ele o está fazendo com
Israel.
Semelhantemente, quantas vezes Deus diz aos israelitas algo desse tipo: “Tomar-
vos-ei por meu povo e serei vosso Deus” (Êx 6.7)324? Quantas vezes ele se declara
como ciumento325 e os adverte para não fazerem alianças com as outras nações
(veja Êxodo 34.12-15; Dt 7.2)? Quantas vezes ele prometeu julgamento sobre as
nações, não só por pecado explícito contra ele, mas por eles maltratarem a sua
noiva, Israel? Na verdade, as várias metáforas usadas para descrever seu
relacionamento com Israel indicam essa estreita identificação entre Deus e seu
povo: filho, noiva virgem, vinha, rebanho, casa, herança, porção e muito mais.
A identificação de Deus com Davi, por meio da aliança davídica, fica clara em
outras passagens por meio da misericórdia que ele estende mais tarde aos piores
reis, “por causa de meu servo Davi”326. Entretanto, mais maravilhosa ainda é a
promessa de Deus ao filho de Davi: “Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho” (2
Sm 7.14; cf. Sl 2.7, 45.6, 89.26-28).
Em cada passo ao longo do caminho no Antigo Testamento, Deus habita com
aqueles sobre quem ele coloca o seu nome327. Ele habita com aqueles que estão em
sua aliança, enquanto abandona aqueles que quebram a aliança; por essa razão, a
analogia entre adultério e idolatria é apropriada em tantos níveis (por exemplo,
Jeremias 2, 3; Ezequiel 16, Oseias 2)328. O símbolo mais importante da presença de
sua aliança no Antigo Testamento, obviamente, é o seu templo (2 Sm 7.1-12; 1 Re
8.13).
Assim como no Antigo Testamento, Deus quer identificar um povo consigo no
Novo Testamento, sob uma nova aliança. A promessa estava presente desde o início:
“Eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo”, é o que Deus diz desse novo povo da
aliança (Jr 31.33; Ez 36.28; Hb 8.10). O povo de Deus no Novo Testamento é,
portanto, identificado com Deus porque ele está unido a Cristo, que possui a
mesma identidade do próprio Deus. Ser admitido numa igreja local significa ser
batizado no “nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28.19). De fato, o Filho
amado se identificou de modo tão íntimo com esse povo que, quando o Cristo
ressurreto confronta Saulo por perseguir os cristãos, ele não pergunta a Saulo por
que ele está perseguindo o seu povo, mas diz: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”
(At 9.4) Não é de surpreender que exatamente quase todas as epístolas do Novo
Testamento comecem com alguma referência à identificação de seus destinatários
com Deus: “A todos os amados de Deus, que estais em Roma” (Rm 1.7); “À igreja de
Deus que está em Corinto” (1 Co 1.2); “Aos chamados, amados em Deus Pai e
guardados em Jesus Cristo” (Jd 1). A igreja local é onde Deus pretende identificar
publicamente um povo consigo na terra.
Observe, portanto, o que está acontecendo aqui. Deus se identifica com o seu
povo do Novo Testamento por meio da nova aliança de Cristo. Ele coloca seu nome
sobre cada indivíduo unido a Cristo por essa aliança. Mas quem, então, tem a
autoridade para alegar ter essa identificação? Não somos nós por nós mesmos. São
aqueles que pertencem à igreja na terra — a igreja local em Roma, em Corinto e
assim por diante. Deus se identifica com os crentes da nova aliança sempre e onde
quer que o alvará seja posto em uso. Ele se identifica com qualquer grupo de crentes
que se reúna e submeta suas vidas uns aos outros numa aliança com uma igreja
local. A autoridade ou governo piedoso é a ação do amor. O amor se comunica e age,
e ele age por meio das ações que produzem vida ou das ações de autoridade. A nova
aliança do amor de Cristo é colocada em ação por meio da autoridade do alvará de
Cristo. Quando um homem descobre que pertence ao amor de Cristo no evangelho,
ele se entrega à autoridade de Cristo conforme ela é exercida por meio da igreja
local. Em resumo, a igreja local é onde Deus se identifica amorosamente com
pecadores arrependidos. A aliança com a membresia da igreja local significa isso.
Unir-se a uma igreja é algo significativo e impressionante. Significa o fato de você
ter entrado num tipo de casamento entre Cristo e o seu povo e de ter sido adotado
na família de Deus. Significa o fato de você ter mudado o seu nome, suas
associações anteriores, suas influências anteriores. A igreja é o lugar na terra onde
você faz essas coisas. A igreja local é onde você se identifica com o povo sobre quem
Deus colocou o seu nome real. Deus não habita mais num templo de pedras e
madeira de cedro, ele habita num templo de corpos e espíritos (1 Co 3.16; 2 Co 6.16;
Ef 2.21; 1 Pe 2.5). E é na presença da igreja local que você desfruta essa realidade.
2) Uma aliança distingue o povo de Deus do mundo. Deus também distingue o
seu povo de modo formal e público de todos os outros povos por meio de
alianças329. Deus se identifica com o seu povo para que possa distingui-los. Mas,
será que Deus distingue o seu povo das nações antes que qualquer voto de uma
aliança de casamento seja feito? Antes da aliança do Sinai ser estabelecida com todo
o Israel, Deus diz a faraó: “Farei distinção entre o meu povo e o teu povo”, na
ocasião da praga das moscas (Êx 8.23). Ele diz a Moisés que “fará distinção entre os
rebanhos de Israel e o rebanho do Egito” (Êx 9.4). Ele fez o mesmo em relação à
praga da saraiva (Êx 9.26) e com a praga final, a morte dos primogênitos: “para que
saibais que o SENHOR fez distinção entre os egípcios e os israelitas” (Êx 11.7).
Todavia, o amor distintivo de Deus por Israel em detrimento do Egito é, então,
formalmente expresso como o amor distintivo por Israel acima de todas as nações
da terra:
Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a mim. Se
diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha
propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino
de sacerdotes e nação santa (Êx 19.4-6a).

O amor de Deus e a ação do amor precederam a aliança do Sinai: “Tendes visto o


que fiz aos egípcios...” No entanto, essa aliança depois provê uma articulação
pública da natureza desse amor, a promessa de que Israel possui um lugar exclusivo
no amor de Deus, com suas cláusulas para que o povo permanecesse nesse amor:
“Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança.”330 Deus dá a sua aliança àqueles a quem ele escolhe discriminadamente,
assim como ele fez com Davi (por exemplo, Sl 89.3; cf. Dt 7.6ss.).
Os vários sinais das alianças, tais como a circuncisão e o sábado, distinguiam o
povo de Deus das nações ao seu redor. Além disso, os mandamentos e a presença
especial de Deus distinguiam o povo de Deus, como pode ser percebido quando
Deus ameaça remover sua presença na ocasião em que o seu povo adora o bezerro
de ouro. Moisés suplica em resposta:
Se a tua presença não vai comigo, não nos faças subir deste lugar. Pois como se há de saber que
achamos graça aos teus olhos, eu e o teu povo? Não é, porventura, em andares conosco, de
maneira que somos separados, eu e o teu povo, de todos os povos da terra? (Êx 33.15-16)
Mais uma vez, a presença de Deus, a qual está ligada à sua aliança, fazia a
distinção desse povo. Ser excluído — expulso — de sua presença os tornaria sem
distinção.
Semelhantemente, Deus ilustra o julgamento ao longo do Antigo Testamento à
medida que dispersa o seu povo entre as nações, deixando-os, por meio disso, sem
distinção em relação aos outros povos331. Por isso os profetas utilizam a linguagem
do “divórcio” — o fim de uma aliança — para descrever o exílio (Is 50.1; Jr 3.8; cf. Jr
31.32).
No Antigo Testamento, Deus pretendia que o povo da nova aliança fosse
distinguido do mundo. A continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento é
quanto a isso é inegável, mesmo se os sinais e os marcos limítrofes tenham mudado.
O chamado da igreja para ser diferente permeia todos os livros332. Em Mateus,
Jesus diz aos seus seguidores para serem distintos como o sal e brilhantes como a
luz (Mt 5.13-17). Em Marcos, ele divide a humanidade entre aqueles que são por ele
e aqueles que são contra ele (Mc 10.40). Em Lucas, ele se recusa a reconhecer Israel
e os seus líderes religiosos porque eles não produzem frutos, reivindicando um
povo que os produza (Lc 13.6-9). Em João, Jesus diz que ele e o Pai farão morada
em todo aquele que guardar sua palavra (Jo 14.23). Em Atos, toda a narrativa é
impulsionada à medida que a linha de demarcação entre aqueles que foram
batizados no Espírito e os que não foram se estende para fora de Jerusalém, para
Samaria, para as nações dos gentios333. Em Romanos, uma demarcação clara é
traçada entre aqueles que foram sepultados com Cristo no batismo, os que devem
andar no Espírito, e aqueles que não foram (Rm 6.1-14, 8.1-11). Em 1 Coríntios,
Paulo pergunta: “Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus
habita em vós?”, e completa: “Porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado”
(1 Co 3.16, 17b). Poderíamos estender essa lista ao longo de cada livro do Novo
Testamento. Não deve admirar, portanto, que Deus repita um mandamento do
Antigo Testamento para o seu povo no Novo Testamento: “Sede santos, porque eu
sou santo” (Lv 11.45; 1 Pe 1.16).
A continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento na questão da distinção
também pode ser vista à medida que as imagens da aliança do Antigo Testamento
são aplicadas à igreja. Israel não é mais a nação santa, o sacerdócio real, a videira, o
rebanho, a noiva, o povo e o templo de Deus; a igreja o é. Pedro até mesmo descreve
a igreja como “raça eleita” (1 Pe 2.9), o que é especialmente impressionante.
Aparentemente, os laços que unem e distinguem os membros de uma igreja são
mais fortes e íntimos do que os laços biológicos do sangue hebreu. Como poderia
ser isso? A igreja está definitivamente unida a Cristo, o Filho amado.
Um dos mais vívidos exemplos da continuidade entre o Antigo e o Novo
Testamento acontece quando Paulo se volta para as leis dos rituais de limpeza e
purificação do Pentateuco, segura-os em sua mão, e basicamente diz aos Coríntios:
“Igreja, seja diferente assim!” Ele escreve:
Não vos ponhais em jugo desigual com os incrédulos; porquanto que sociedade pode haver
entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunhão, da luz com as trevas? Que harmonia, entre
Cristo e o Maligno? Ou que união, do crente com o incrédulo? Que ligação há entre o santuário
de Deus e os ídolos? Porque nós somos santuário do Deus vivente, como ele próprio disse:
Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Por isso, retirai-vos do
meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em coisas impuras; e eu vos receberei, serei
vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso. Tendo, pois, ó
amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito,
aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus (2 Co 6.14-7.1).

Paulo compreende bem o limite que distingue o povo de Deus em Corinto da sua
população mais vasta. Não há sociedade. Não há comunhão. Não há harmonia. Não
há união. Não há ligação. Em vez disso: vão embora. Sejam separados. Purifiquem-
se. Aperfeiçoem a sua santidade.
Ele não está falando de geografia; ele está falando de identidade. Ele não está lhes
dizendo para que eles se abstenham de ser amigos dos descrentes ou se abstenham
de viver no meio deles. Ele está afirmando a igreja em sua identidade separada,
como o povo da aliança em meio ao qual Deus habita. Eles são o “santuário do Deus
vivente”. Por essa razão, eles não devem entrar em parcerias, comunhões e acordos
que levem os descrentes a pensar que pertencem a Deus ou os crentes a pensar que
pertencem ao mundo. Sim, as implicações morais são uma consequência disso, mas
tudo começa numa afirmação de suas novas identidades. A igreja do Novo
Testamento deve ser exatamente como se “fosse separada para Deus”, como o Israel
étnico que se alimentava conforme as leis dietéticas, que guardava o sábado, que
habitava em Canaã, que circuncidava os homens.
Podemos perguntar por que essa passagem desapareceu da eclesiologia
evangélica nas últimas décadas. Não há nem sinal da ideia de “pertencer antes de
crer” nesse texto. Usamos 2 Coríntios 6.14 para persuadir os adolescentes a não
namorarem com descrentes na escola, e esse texto fala disso.
Não é que Paulo esteja desatento à descontinuidade entre a antiga e a nova
aliança. Ele já gastou um capítulo inteiro explicando essa falta de continuidade (2 Co
3), seguido de mais dois capítulos que enfatizam a conclusão missionária externa da
nova aliança (2 Co 4-5), os quais ele conclui chamando a si mesmo de embaixador
em nome do Deus da reconciliação (5.19-20). Ele até mesmo usa a primeira metade
do capítulo 6 para explicar o limite exagerado ao qual ele chegaria para “enriquecer a
muitos” no evangelho (6.1-10). Depois, na segunda metade do capítulo 6, Paulo diz
à igreja para se “retirar” e se “separar”. Aparentemente, Paulo não vê contradição
alguma entre o chamado para ser um embaixador da reconciliação e o chamado para
excluir os descrentes da igreja. Missão e santidade não são coisas opostas entre si;
elas agem juntas. E não é de admirar que Jesus diga que se o sal vier a ser insípido,
ele se tornará inútil, assim como uma candeia debaixo de uma vasilha (Mt 5.13-16
— NVI).
Em minha mente, duas perguntas surgem da exortação de Paulo. A primeira, os
crentes e os líderes das igrejas de hoje percebem a ligação bíblica entre a distinção
santa da igreja e o seu testemunho? Segunda, como Paulo pretende que seus
leitores “aperfeiçoem a sua santidade”? Será que ele pretende que comecemos as
nossas próprias faculdades ou revistas? Que escrevamos mais livros? Que
afirmemos os pontos essenciais? Que comecemos conferências? Que estabeleçamos
denominações? Que descubramos a fórmula perfeita para relacionar Cristo com a
cultura? Cada uma dessas coisas poderia ter um papel suplementar e saudável, mas
não deixemos escapar a questão primordial para Paulo, para que não nos
esqueçamos do restante. Paulo sabe que Jesus especificou somente uma instituição
na terra com autoridade para disciplinar os crentes, para manter sua distinção e
para aperfeiçoar sua santidade — a igreja local.
À luz dessas questões, considere novamente o que significa se unir a uma igreja.
Isso não diz respeito a seguir a correnteza ou a seguir a multidão. Não diz respeito à
entrada numa sociedade, de modo que sejamos um adulto respeitado. É exatamente
o oposto. Isso diz respeito a nos identificarmos com um grupo que tem se
comprometido a ser rejeitado e a nadar contra a corrente. É como se unir a um
grupo de peregrinos em sua cidade natal ou se unir a um grupo falante de uma
determinada língua minotária em seu próprio país. A membresia na nova aliança
nos torna diferentes, mas como desempenhamos uma vida de distinção? Nós
unimos a nossa identidade à igreja local. Nós, juntos, fazemos uma aliança com ela,
o que caracteriza as boas novas. Isso significa que não somos deixados para nadar
contra a correnteza por nós mesmos. Comprometer-se a nadar contra a maré não é
um compromisso casual, e felizmente temos um grupo que firmou uma aliança
para fazer isso conosco.
3) Uma aliança fornece os fundamentos para a retidão pessoal e coletiva. Deus
também usa as alianças nas Escrituras para dizer ao seu povo como viver. Elas
explicam como deve ser a vida justa. Por essa razão, Moisés instruiu os israelitas
que entravam na Terra Prometida a ensinar seus filhos que guardar os
mandamentos de Deus seria a justiça deles. “Então, dirás a teu filho... ‘Será por nós
justiça, quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o
SENHOR, nosso Deus, como nos tem ordenado’.” (Dt 6.21, 25). A aliança abraâmica
também estava interessada na justiça de Abraão, mas Abraão recebeu um crédito de
justiça de acordo com o que ele creu: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado
para justiça” (Gn 15.6). Paulo obviamente adotou essa linha de pensamento para
ajudar a explicar a justiça do cristão em Cristo, por meio da nova aliança, um
“ministério da justiça” (2 Co 3.9). Cristo é perfeitamente justo, e sua justiça será
atribuída a “nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus,
nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou
por causa da nossa justificação” (Rm 4.23-25). Em resumo, ele é a nossa justiça (1
Co 1.30) e, por meio dele, nós nos tornamos “justiça de Deus” (2 Co 5.21).
Referi-me anteriormente à crítica que alguns fazem à doutrina reformada da
imputação da justiça de Cristo, como se isso fosse simplesmente uma ficção
judicial334. A crítica falha em compreender o que a aliança realiza. A justiça que eu
tenho sendo um cristão não se deve a ela ter flutuado “como um gás” pelo tribunal,
mas ao fato de a identidade que agora compartilhamos com Cristo na nova aliança
significar quecompartilhamos todas as posses e dívidas, assim como minha esposa e
eu fizemos no início de nossa aliança conjugal. A boa nova para os cristãos é que as
nossas dívidas se tornam dele, e as posses dele se tornam nossas.
A nova aliança também está interessada em ver que os cristãos se “revestem”
dessa justiça e demonstram obediência à lei de Deus. O que guia o cristão na justiça
é contemplar a imagem de Cristo e ser transformado nessa mesma imagem. Esse é
exatamente o argumento de Paulo na discussão acerca da nova aliança (2 Co 3.18; e
também Rm 8.29; 1 Co 15.49; Cl 3.9-10). O apóstolo João faz da justiça ética a linha
divisória entre a igreja e o mundo: “Nisto são manifestos os filhos de Deus e os
filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça não procede de Deus, nem
aquele que não ama a seu irmão” (1 Jo 3.10).
À luz do nosso chamado na aliança para a justiça, o que significa se unir a uma
igreja? Será que isso significa se apresentar a uma igreja, dizendo: “Eu satisfaço as
exigências, eu estou à altura da igreja.”? Sim e não. Sim, porque Jesus disse que
nossa justiça deve exceder a dos fariseus (Mt 5.20). As boas novas são que nós,
cristãos, temos a justiça de Cristo representada em nosso batismo. Quando nos
apresentamos para a membresia de uma igreja, precisamos dessa justiça nos
cobrindo. Mas não, ainda não aperfeiçoamos a vida de justiça. Apenas começamos a
fazer isso. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
fartos” (Mt 5.6). A igreja é a assembleia dos arrependidos. Ela é uma sociedade (ou
melhor, uma embaixada) que deu meia-volta e começou a nadar contra a corrente, e
não um povo que já chegou ao seu destino. Esse povo deseja a justiça. Ele luta por
ela. Ele suplica a Deus por mais justiça. Ele se humilha diante dos outros, pedindo
ajuda para buscá-la. Uma igreja não exige que um homem derrote a cobiça antes de
batizá-lo, mas ela deve exigir que ele pare de viver com uma mulher que não é sua
esposa. Os crentes cometem pecado, mas há uma diferença conforme a posição que
eles têm no céu e uma diferença em sua postura na terra. Eles lutam contra o
pecado.
Mais uma vez, considere o que significa se unir a uma igreja. Unir-se a uma igreja
não significa que chegamos com um certificado de mérito nas mãos, nem significa
que chegamos esperando um show, onde nos contentaremos em ver a apresentação
dos outros. Isso significa que estamos dispostos a abdicar de nossa vida porque
sabemos que devemos nos aliar a um grupo de irmãos e irmãs numa guerra contra o
inimigo: o mundo, a carne e o diabo.
A igreja local é um grupo de pessoas que possui a justiça de Cristo e, portanto, é
um grupo que tem empenhado suas vidas para lutar juntos em prol da revolução
divina. Eles assinaram um juramento. Eles fizeram um pacto. Estabeleceram uma
aliança. Um por todos e todos por um. Abandonar a aliança significa ter a disciplina
como consequência, assim como no caso de um desertor do exército. Assim é a
aliança com a membresia da igreja.
4) Uma aliança estabelece um testemunho terreno para Deus. As alianças, visto
que elas ajudam a identificar Deus com um povo distinto, permitiram que tanto
Israel quanto as nações soubessem quem estava desempenhando o papel de
testemunha de Deus335. Deus prometeu tornar seu nome grandioso entre as
nações, e que isso seria uma bênção para as nações (Gn 12.2-3), uma promessa que
no final estava ligada à sua aliança com Abraão (Gn 15, 17).
Embora não esteja claro que Abimeleque soubesse que Deus havia feito uma
aliança com Abraão, o leitor de Gênesis certamente vê o testemunho de Abimeleque
à luz disto: “Deus é contigo em tudo o que fazes” (Gn 21.22).
Antes que o povo entrasse na Terra Prometida, Moisés os lembrou tanto de seu
testemunho diante das nações quanto diante do próprio povo, por meio da
obediência às cláusulas da aliança de Deus.

Guardai-os [esses estatutos e juízos], pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o
vosso entendimento perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão:
Certamente, este grande povo é gente sábia e inteligente. Pois que grande nação há que tenha
deuses tão chegados a si como o SENHOR , nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E que
grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que eu hoje vos
proponho? (Dt 4.6-8)
Quando mais tarde os maus reis e os falsos profetas começaram a enganar Israel,
Deus usou seus verdadeiros profetas para apelar mais uma vez para as alianças e
reivindicar o direito de afirmar quem realmente falava em nome de Deus. No
Monte Carmelo, Elias apelou para a identificação na aliança feita com Abraão, bem
como para a sua própria participação no fato de dar testemunho dessa identificação
com base na aliança: “Ó Senhor, Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, que hoje
fique conhecido que tu és Deus em Israel e que sou o teu servo e que fiz todas estas
coisas por ordem tua” (1 Re 18.36 — NVI).
Justamente por isso, Deus se tornou muito preocupado com o testemunho
desfavorável, ou o “antievangelismo”, que seu povo apresentou ao desobedecer à
sua aliança. O profeta Jeremias explicou como as nações poderiam reagir à
destruição de Jerusalém, que se seguiria ao julgamento Deus:
Muitas nações passarão por esta cidade, e dirá cada um ao seu companheiro: Por que procedeu o
SENHOR assim com esta grande cidade? Então, se lhes responderá: Porque deixaram a aliança
do SENHOR , seu Deus, e adoraram a outros deuses, e os serviram (Je 22.8-9; e também Dt
29.25-26)336.

Do mesmo modo como fez com Abraão, Deus entrou em aliança com Davi, a fim
de tornar o nome de Davi grandioso (2 Sm 7.9). Essa foi uma aliança que Deus
promete estabelecer “para sempre” (7.13, 16), uma “aliança perpétua”, para que
Davi pudesse ser um “testemunho para os povos” (Is 55.3, 4).
Jesus é o Filho de Davi que provê um testemunho perfeito de Deus. Ele é a
Palavra e a imagem de Deus (Jo 1.1, Cl 1.15). Ele transmite Deus sem erros. No
entanto, Cristo une pessoas a si mesmo por meio de uma nova aliança e lhes dá um
alvará que as autoriza a agir como suas testemunhas até os confins da terra (Mt
28.19-20; At 1.8). Ele os envia, assim como ele foi enviado (Jo 20.21). Por essa
razão, Paulo diz repetidamente às igrejas para andarem de modo digno do nome que
elas representavam (Ef 4.1; Cl 1.10; 2 Ts 2.12). As igrejas o representam. E elas
devem agir com tal.
A tendência corrente entre muitos teólogos e líderes de igreja para enfatizar a
natureza missionária da igreja pode se tornar reducionista. Em outras palavras, ela
reduz a igreja à sua função, assim como reduz a identidade de uma pessoa às tarefas
que ela realiza, e somente a uma dessas tarefas. Entretanto, um ramo da literatura
da igreja missional chama a atenção, com razão, para como a obra central do
testemunho ou da missão deve se relacionar com a identidade da igreja. Conforme
já temos visto, a personalidade e a obra da igreja são inseparáveis, assim como a
pessoa encarnada de Cristo e a sua obra são inseparáveis. Cristo veio como o Deus-
Homem encarnado para salvar um povo.
Do mesmo modo, os discípulos de Cristo existem, em parte, para serem
pescadores de homens (Mt 4.19).
Eu sou especialmente grato pela ênfase que alguns escritores missionais dão ao
testemunho do corpo coletivo. Um autor escreve: “Na América do Norte, o que o
fato de uma igreja ser como uma cidade edificada sobre um monte e ser sal tem a
ver com a competência da missão?”337 Em outras palavras, o testemunho da igreja
não consiste simplesmente no fato de ela ir; consiste no fato de ela ter uma vida
coletiva diferente. Seu testemunho consiste no fato de que ela é diferente na
santidade, no amor e na união. Por isso, Jesus prometeu: “Nisto conhecerão todos
que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13.35). A obra
interna da igreja de santidade e amor entre os seus membros está
inextricavelmente ligada à sua obra de testemunho externo. Devemos exibir Cristo
em nossa vida coletiva se quisermos exibir Cristo em nossas vidas individuais. A
igreja, disse Mark Dever, é “o plano de evangelismo de Jesus”, porque somente ela
exibe a sabedoria de Deus. Paulo coloca a questão da seguinte maneira: “Para que,
pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos
principados e potestades nos lugares celestiais” (Ef 3.10). Somente um Deus sábio
poderia tomar um grupo de pessoas que um dia estava em guerra contra ele, e umas
contra as outras, e convertê-lo numa assembleia de amor. Que todo o cosmos
observe isso e fique maravilhado!
À luz da obra de testemunho da igreja, o que significa pertencer a uma igreja?
Significa que os crentes pertencem a uma igreja não apenas para ter suas
necessidades espirituais satisfeitas ou para ser edificados. Em vez disso, pertencer a
uma igreja significa se comprometer a viver de um modo específico e trabalhar para
alcançar um propósito específico. Isso envolve o nosso tempo, nosso dinheiro e, de
fato, toda a nossa pessoa, porque esse compromisso está arraigado à nossa nova
identidade. Um empresário, um advogado ou um médico do Ocidente nos dias de
hoje dedicará 80 horas de trabalho semanal para atingir suas ambições
profissionais, isso geralmente porque ele encontra dignidade, razão e identidade no
trabalho. O fato de nos tornarmos cristãos significa que agora Cristo é a fonte
principal de nossa dignidade, razão e identidade; o que significa que estamos livres
para derramar nossas vidas em prol da obra de testemunho do povo de Cristo —
tanto na obra interna de amor na igreja quanto na obra externa de missão. Cristo
na verdade nos ordena a nos reunirmos regularmente para pregar e praticar as
ordenanças “como uma igreja”. Ao mesmo tempo, o fato de pertencer a uma igreja
nos equipa a perceber que ser um cristão está mais relacionado com uma semana de
trabalho do que com um fim de semana de descanso.
5) Uma aliança promete o dom da glória de Deus ao seu povo. Deus compartilha
sua glória com o seu povo da aliança no Antigo Testamento. Assim como o
relacionamento de Deus com Israel existia antes da aliança estabelecida com todo o
Israel no Sinai (embora subsequente à aliança abraâmica; veja Êx 2.24, 6.4-5), ele
também concede a Israel alguns vislumbres de sua glória antes de estabelecer essa
aliança (Êx 16.7, 10; cf. Êx 14.4, 17-18). Entretanto, é nesse processo de
estabelecimento de sua aliança com todo o Israel que Israel encontra as maiores
demonstrações de sua glória (Êx 24.16-17, 40.34-35; Lc 9.6, 23), principalmente por
meio de Moisés (Êx 33.18ss.) Depois, a glória de Deus permaneceu com a arca da
aliança até quando encheu o templo (1 Re 8.11), seu lugar de habitação mais
proclamado na aliança.
Davi reconhece que a glória de Deus será conhecida no meio das nações por
causa da aliança de Deus com Abraão, Isaque e Jacó (1 Cr 16.10, 15-22, 24, 28-29; e
também Sl 105.8ss.). Davi também exulta pelo fato de Deus compartilhar sua
própria glória com o rei da aliança (Sl 21.5).
Infelizmente, o povo de Israel “trocou a glória” de seu Senhor pela glória dos
ídolos (Sl 106.20; Jr 2.11), ao que Deus respondeu finalmente removendo sua
glória de sua habitação na aliança, o templo (Ez 10.4, 18-19). A transgressão de
Israel se tornou tão grande, e o nome de Deus estava tão ligado ao deles, que ele
determinou “vindicar o seu nome” diante das nações por meio de um novo ato de
salvação e de uma nova aliança (Ez 36.22-32; cf. Rm 3.25-26).
De modo notável, Deus prometeu mais uma vez compartilhar sua glória por
meio de uma nova aliança (por exemplo: Is 60.1-2, 19; Jr 13.11, 33.9 cf. Sl 73.24; Is
28.5), um ministério, como diz Paulo, que, em todas as coisas, excede em glória o
ministério que o precedeu (2 Co 3.7-11; cf. Hb 3.3). A glória de Deus encheria o
novo templo (Ez 43.2-5; 44.4; Ag 2.7, 9). Ela seria compartilhada com sua noiva,
para que todas as nações contemplassem a justiça real e a beleza divina do povo de
Deus (Is 62.2-4).
Mais tarde, Cristo veio manifestando a glória de Deus (Jo 1.14, 8.50, 2.16, 13.31-
32, 17.4), e deu aos seus discípulos a glória que o Pai havia lhe dado (17.22). Assim
como Adão foi coroado com a glória de Deus na criação, a igreja também,
espantosamente, compartilhará a glória de Cristo (1 Ts 2.12; 2 Ts 2.14; 1 Pe 1.7, 5.4,
10; 2 Pe 1.3). Por essa razão, Paulo instrui a igreja a buscar a glória e a fazer todas as
coisas para a glória de Deus (Rm 2.7; 1 Co 10.31), prometendo que os crentes serão
transformados de glória em glória, à medida que contemplarem a glória de Deus na
face de Cristo (2 Co 3.18; 4.6).
O que significa se unir a uma igreja? Unir-se a uma igreja não significa
entretenimento, mesmo que os cultos tenham uma banda de adoração e um
pregador dinâmico. Significa fechar contrato com um time; comparecer para
treinar, disciplinar a mente e o corpo; para encorajar os colegas de time que às vezes
ficam zangados por causa do técnico; para sonhar com o prêmio e dar tudo, tudo no
grandioso projeto de ganhar o troféu — a glória de Deus, a glória que ele
compartilha de modo notável com seus filhos.
6) Uma aliança identifica o povo de Deus uns com os outros. As alianças do
Antigo Testamento não apenas identificavam Deus com seu povo, como também
permitiam que as pessoas do povo de Israel se identificassem umas com as outras.
Curiosamente, é nesse ponto que as alianças de Deus com Israel utilizam as
metáforas da família e as transcendem. Por meio da aliança de Deus com Abraão,
Israel compartilhava um pai comum, e um israelita poderia se referir a outro
israelita como “irmão”, indicando essa identidade familiar compartilhada. No
entanto, assim como a distinção entre os filhos de Abraão, Ismael e Isaque, poderia
indicar, a identidade da aliança também transcende a descendência biológica (veja
Rm 9.6-8; Gl 4.21-31). Em outras palavras, dois israelitas eram irmãos, sim, mas
eles também eram algo mais, algo ainda mais ligado, mais unido, mais “um” do que
irmãos biológicos. E, claro, isso faz sentido à medida que cada indivíduo israelita
estava identificado principalmente com o Senhor. Identificar-se com o Senhor é se
identificar com todos quantos se identificam com o Senhor. E se Deus é Deus, uma
simples reflexão pode revelar por que tal identificação é ainda mais forte do que a
identificação pelos laços biológicos. Deus é supremo, a biologia não.
A identificação coletiva proporcionada pelas alianças de Israel era manifesta
principalmente por meio das pessoas e da obra dos sacerdotes, reis e profetas. O
sumo sacerdote de Israel oferecia sacrifícios uma vez por ano por toda a nação (veja
Levítico 16). O rei davídico, o Filho de Deus, incorporou a filiação de toda a nação. O
profeta sofredor personificava a incredulidade ou a aflição de toda a nação (por
exemplo, Lamentações 3). Por meio da obra representativa desses três ofícios, cada
israelita compartilhava algo muito mais importante do que a cor da pele, uma
árvore genealógica, tradições e costumes culturais, passatempos partilhados, a
camisa de um time esportivo ou qualquer outra coisa das quais os seres humanos
geralmente dependem para estabelecer comunhão, coesão social e uma identidade
compartilhada. Eles compartilhavam uma salvação, uma herança, uma fé, um
batismo, um divino Senhor da aliança.
Cristo, portanto, veio como um profeta, sacerdote e rei representativo. Ele
falava ao povo de Deus, em nome de Deus; ele sofreu no lugar deles e se tornou o
novo cabeça geral de uma nova nação escolhida. Agora, todos aqueles que estão
unidos a Cristo compartilham a sua identidade, e isso significa que os crentes
compartilham a mesma identidade uns com os outros.
Por essa razão, os cristãos primitivos se referiam uns aos outros como “irmãos”.
Mais uma vez, o que significa se unir a uma igreja? Unir-se a uma igreja não é
apenas mais um passo no regime de disciplinas espirituais — algo que você faz para
crescer como um cristão individual. Conforme dissemos no capítulo anterior,
frequentar uma igreja é mais como sentar-se à mesa no jantar da família. É lá onde
os nossos irmãos e irmãs estão.
7) Uma aliança estabelece um testemunho para os propósitos da prestação de
contas mútua no meio do povo de Deus. As alianças de Deus não somente
articulavam quem entre as nações era testemunha de Deus, mas também agiam
como uma testemunha pública, um testemunho ou um registro para o próprio
Israel. Por isso Moisés ordenou aos levitas: “Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao
lado da arca da Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha
contra ti” (Dt 31.26). Os votos conjugais, alguém poderia fazer essa analogia,
servem para distinguir um casal diante dos outros, mas eles também fornecem um
registro daquilo que eles prometeram um ao outro. Ou seja, os votos oferecem uma
prova ou um testemunho externo e interno.
Esse testemunho, portanto, tornou-se o padrão pelo qual as partes envolvidas na
aliança prestam contas uma a outra. A aliança no Sinai, por exemplo, estabelecia
que os israelitas prestariam contas obviamente diante de Deus (por exemplo,
Deuteronômio 29.1, 28). A aliança davídica prometia que o filho de Davi seria
punido pela desobediência (2 Sm 7.14). As alianças capacitavam os israelitas a
continuarem prestando contas uns aos outros. Deus chamou os israelitas para
reagirem de modo decisivo em relação à desobediência mesmo entre os membros
mais próximos da família:
Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu
amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros
deuses... não concordarás com ele, nem o ouvirás. Mas, certamente, o matarás. A tua mão será
a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo (Dt 13.6-9; e também 21.18-
21).

Por que essa exigência tão radical? É simplesmente porque os votos conjugais de
Deus exigem fidelidade; o amor de Deus exige lealdade: “Porquanto o SENHOR,
vosso Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo o vosso
coração e de toda a vossa alma (Dt 13.3; e também 6.5). Embora a lei que exige a
morte de uma pessoa tenha sido com certeza alterada com a inauguração que
Cristo fez da nova aliança, ninguém deve pressupor que a lealdade que Jesus exige
de seu povo é de alguma forma menos radical (veja Lucas 14.26).
Não é de espantar, portanto, que o Novo Testamento enfatize repetidas vezes
que o cuidado com os membros da igreja deve ser aparentemente maior do que o
cuidado com as pessoas de fora. Jesus separa as ovelhas dos cabritos, com base no
fato de alguém cuidar dos mais pequeninos de seus irmãos (Mt 25.31-46). Paulo diz
às igrejas da Galácia para fazerem o bem a todos, “mas principalmente aos da
família da fé” (Gl 6.10). Pedro ordena seus leitores cristãos a demonstrarem
hospitalidade uns aos outros (1 Pe 4.9; e também Rm 12.13). Paulo até mesmo
equipa a igreja a exercer um tipo de cuidado moral em relação às pessoas de dentro
da igreja que não se aplica aos de fora. Ele diz aos Coríntios: “Pois com que direito
haveria eu de julgar os de fora? Não julgais vós os de dentro?” (1 Co 5.12). Ele
também os instrui a se aproximarem da mesa do Senhor sempre atentos para
“discernir o corpo” (11.29).
Alguém poderia contestar esse último argumento, dizendo que certamente o
nosso amor pelos nossos inimigos e pelos de fora demonstram uma forma mais
elevada de amar do que o amor que demonstramos pelos de dentro ou pelos
membros da família. No entanto, o amor pelos amigos membros da igreja é amor
por aqueles que um dia já foram inimigos338. Antes que viesse a salvação, nós
éramos inimigos de Deus e inimigos uns dos outros. O amor que é compartilhado
na igreja é poderoso exatamente porque demonstra o outro lado do amor
transformador de Deus pelos seus inimigos. Ele nos mostra o resultado — um
grupo de pessoas, antes inimigas, não só vivendo em harmonia, mas também dando
a si mesmas umas as outras.
Vez após vez, os cristãos são orientados a ajudar a manter o outro fora da zona
de perigo e a levar as cargas uns dos outros: “Irmãos, se alguém for surpreendido
nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e
guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e,
assim, cumprireis a lei de Cristo (Gl 6.1-2; e também 1 Co 4.21; Jd 22-23). Vez após
vez, aqueles que são fortes são instruídos a ajudar a impedir que os fracos
tropecem (Rm 14.20-21, 15.1; 1 Co 8.13).
O amor da prestação de contas cristã acontece melhor sob a autoridade da igreja
local, onde as ordenanças podem ser ministradas de forma disciplinada. Nesse
sentido, uma aliança com uma igreja local age como um tipo de testemunho.
Quando eu me associo a uma igreja, concordo que você ajude a supervisionar meu
discipulado cristão, e eu ajudarei a supervisionar o seu. Se um de nós falhar, quer
no discipulado, quer na supervisão, ambos poderemos retornar ao compromisso
original como um ponto de referência. “Você não se comprometeu a cuidar de
minha alma?” Durante séculos, muitas igrejas têm utilizado as “alianças formais
com a igreja” para atuarem como tal testemunho. Essas alianças escritas oferecem
uma versão mais elucidada sobre como os crentes concordam em viver juntos ao se
submeterem à supervisão de uma igreja.
Qual é a lição que tiramos sobre o que significa pertencer a uma igreja?
Pertencer a uma igreja não é como ser membro de um clube de compras, de uma
distribuidora de alimentos, como o Price Club ou Costco, no qual o fato de sermos
membros nos permite comprar com desconto todos os itens que queiramos. Antes,
significa se comprometer com um grupo de pessoas que me chamará para prestar
contas. Significa ter responsabilidade sobre os outros em relação às questões mais
profundas que possam ser compartilhadas entre dois seres humanos, e nos
tornarmos vulneráveis nesse processo.
8) Uma aliança especifica responsabilidades às partes envolvidas nela. As alianças
também especificam responsabilidades às várias outras partes envolvidas. Na antiga
aliança, por exemplo, Deus instruiu Israel a circuncidar seus corações (Dt 10.16).
Eles eram responsáveis, ao que parece, por produzir corações generosos, que
amassem a Deus e obedecessem aos seus mandamentos. Na nova aliança, por outro
lado, Deus assumiria essa responsabilidade (Dt 30.6; Jr 31.33; Ez 36.26). Ele lhes
concederia corações que o amariam e obedeceriam.
Além da questão da responsabilidade, uma aliança estabelece por quem as partes
envolvidas são responsáveis. Em sua aliança com Davi, por exemplo, Deus lembra
Davi que ele o havia feito “príncipe sobre o meu povo, sobre Israel” (2 Sm 7.8). Davi
não era responsável pelos filisteus ou pela adoração daqueles. Ele era responsável
por Israel e pela adoração destes. Portanto, a ira de Deus foi despertada exatamente
quando os reis e sacerdotes de Israel desencaminharam as ovelhas pelas quais eles
eram responsáveis: “Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu
pasto!... Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e delas não
cuidastes” (Jr 23.1-2; e também Ez 34.1-10; cf. Dt 17.18-20).
Uma aliança diz às partes envolvidas num acordo quem é responsável pelo quê. O
que é impressionante no Novo Testamento é que geralmente são atribuídas
responsabilidades a toda a igreja nas questões de controvérsia, disciplina e doutrina.
Em Mateus 18, toda a igreja é chamada a julgar as disputas entre os crentes, as
quais não podiam ser resolvidas em particular. Em 1 Coríntios 5, toda a igreja é
chamada para disciplinar um membro que se recusa a se arrepender de seu pecado.
Em Gálatas 1, toda a igreja é chamada para prestar contas do fato de terem tolerado
um falso mestre. Em 2 Coríntios 2.6-8, é dito a igreja para restaurar um pecador
arrependido por causa da disciplina posta anteriormente sobre ele pela grande
maioria.
Os presbíteros têm a supervisão do corpo e assim mantêm a prerrogativa de
liderança. Entretanto, não se pode negar que, seja qual for o sistema de liderança,
cada cristão — cada membro da igreja — é responsável por restabelecer as questões
de disputa; participar nas preliminares da disciplina por meio da admoestação e
repreensão; e defender a doutrina dos apóstolos.
Pertencer a uma igreja significa tomar posse de outras pessoas e do discipulado
delas. Significa receber do Senhor a tarefa de proclamar, exibir e proteger o
evangelho. Significa receber as próprias chaves do reino dadas por Cristo. Quando
nos unimos a uma igreja, encontramo-nos autorizados a ligar e desligar almas
eternas sobre a terra, assim como elas serão ligadas no céu. Nenhum presidente ou
general, nenhum líder dos direitos civis ou mocinha de cinema, recebeu tal
autoridade. O membro comum de igreja, por causa de sua ligação com o corpo,
possui uma autoridade inenarrável — a autoridade para declarar quem dentre a
humanidade viverá pela eternidade e quem morrerá; quem é filho do rei e quem não
é. Quando nos unimos a uma igreja, não apenas recebemos os “benefícios da
membresia”, mas recebemos também uma responsabilidade e um dever da mais alta
ordem. Não é, pois, espantosa a forma inconsequente como os crentes veem a
membresia da igreja hoje em dia?
9) Uma aliança protege o povo de Deus. As alianças de Deus no Antigo
Testamento proporcionavam proteção para o indivíduo israelita tanto contra os
perigos naturais quanto sociais, incluindo os abusos de autoridade. Embora pudesse
ser inadequado dizer que suas alianças continham uma “Declaração dos Direitos
Humanos”, poderíamos dizer que elas produziam um resultado semelhante, ou
seja, proteção contra as tiranias, quer fossem as tiranias da grande maioria, quer
fossem da minoria.
Além disso, já consideramos o ódio que Deus tem pela injustiça. Não é tão
surpreendente, portanto, perceber as prescrições das alianças feitas em prol das
viúvas, dos órfãos e dos necessitados em geral339. Israel também era o único país
antigo no Oriente Próximo com leis de proteção ao estrangeiro e forasteiro (Êx
23.9, Dt 10.19). Os juízes eram ordenados a tratar com imparcialidade os
estrangeiros e israelitas (Dt 1.16, 24.17). As cidades de refúgio estavam igualmente
abertas aos forasteiros e aos nativos (Nm 35.15; Js 20.9). Hóspedes estrangeiros
eram geralmente classificados com as viúvas, órfãos e pobres, como merecedores da
provisão e do tratamento justo da comunidade (Êx 22.21-24; Dt 24.17-18).
Esses são alguns exemplos de como a aliança de Deus com Israel provia proteção
tanto para os que eram de Israel quanto para os que estavam ao seu redor. A
questão mais importante, mais profunda, no entanto, é que, considerando que os
contemporâneos têm medo das estruturas de autoridade, Deus as providenciou na
aliança exatamente em função de seu abuso por parte dos seres humanos. Os
membros da aliança recebiam uma proteção maior do que os que não eram
membros, mas ambos recebiam proteção. Justamente por isso, os membros da
aliança que eram desobedientes se colocavam numa zona de perigo, que incluía o
perigo de opressão: “E tu serás oprimido e quebrantado todos os dias” (Dt 28.33;
veja também 28; 29.18-20; 30.15-20). A proteção que trazia a prosperidade também
era prometida aos membros obedientes da aliança: “Guardai, pois, as palavras desta
aliança e cumpri-as, para que prospereis em tudo quanto fizerdes” (Dt 29.9).
A nova aliança proporciona igualmente diversos níveis de proteção. Em primeiro
lugar, ela provê proteção contra a ira de Deus, porque o pecado é perdoado. Em
segundo, ela protege a alma contra aqueles que podem prejudicar somente o corpo.
Toda a proteção prometida nos Salmos se torna essencialmente do cristão, apesar
de numa forma reconstituída. Em terceiro, ela nos protege de nós mesmos e de
nossa incapacidade de cumprir as exigências da antiga aliança. Em quarto, ela
protege o cristão da escravidão do pecado, uma vez que o pecado não mais tem
domínio sobre ele. Em quinto lugar, ela acolhe os cristãos num domínio onde a
autoridade é exercida para criar, em vez de roubar; para edificar, em vez de
devastar; o que significa que os cristãos podem conhecer a proteção do povo de
Deus (Mt 20.25; 1 Pe 5.3).
E finalmente, o que significa pertencer a uma igreja? Significa se identificar com
o Filho de Deus e com o povo do Filho, e assim dispor de toda a proteção de seu
nome.
CLAREZA
Uma palavra que talvez resuma todas as nove razões para formalizar o amor
entre Deus e seu povo por meio de uma aliança seja a palavra clareza. Deus sempre
tem sido muito claro a respeito daqueles com quem ele se identifica; aqueles que ele
distingue; aqueles que são suas testemunhas; bem como acerca de quem é
responsável pelo quê; quem presta contas a quem e assim por diante. E o mais
importante de tudo: ele deseja que sua imagem seja claramente exibida em seu
povo. Outra maneira de dizer isso seria afirmando que ele quer definir todas essas
coisas para o seu povo e para o mundo. Da parte da igreja, esses nove benefícios da
aliança esclarecem a natureza de seu compromisso de uns para com os outros,
tanto para a glória de Deus quanto para o bem deles.
Pense novamente acerca do casal que coabita, mas não une suas vidas por meio
da aliança do casamento. Eles não querem identificar os seus nomes. Ela não quer o
nome dele, e ele não quer o dela. Eles não querem se comprometer a distinguir um
ao outro como seu único companheiro a vida toda. Eles não querem oferecer um
registro público de sua unidade, porque, de fato, não existe unidade. Eles
certamente não querem ser chamados para prestar contas a alguém ou a outras
pessoas.
Em outras palavras, não existe amor ou pelo menos o amor deles é
lamentavelmente deficiente. O que é o amor? É uma afirmação da pessoa amada e
uma afeição pelo bem dela de acordo com as prescrições de Deus. É o desejo de se
identificar com o outro em prol do progresso do outro em relação ao Santo. No
entanto, isso é exatamente aquilo que o casal que está coabitando nega em sua
recusa de formalizar uma aliança em suas vidas.
Voltando para aquilo que tenho chamado de aliança com a membresia da igreja
local — novamente, não como um documento escrito, mas como um acordo em si
— é importante lembrarmos que a nova aliança vem primeiro. Todas as nove
questões acima são qualidades inerentes à nova aliança. Deus se identifica com os
crentes da nova aliança. Ele os distingue; instrui-os na justiça; elege-os para serem
suas testemunhas; concede-lhes sua glória e assim por diante. Essa aliança é feita
com todos os crentes em toda parte. No entanto, é necessário haver algum lugar na
terra onde essas coisas são colocadas em prática. Onde isso acontece? Acontece
onde quer que dois ou mais crentes se comprometam a se reunir em nome de
Cristo, para exercer o poder das chaves. É esse compromisso que chamo de aliança,
uma aliança que tanto protege o nome de Cristo quanto facilita o bem dos crentes.
Exatamente por isso, esses nove propósitos são razões para nos submetermos a
uma igreja local.
Submeter-nos a uma igreja local:

1. Identifica-nos com Cristo.


2. Distingue-nos do mundo.
3. Guia-nos na justiça de Cristo, pelo fato de nos apresentar um padrão de justiça
pessoal e coletiva.
4. Age como um testemunho para os descrentes.
5. Glorifica a Deus e nos capacita a desfrutar sua glória.
6. Identifica-nos com o povo de Cristo.
7. Ajuda-nos a viver a vida cristã por meio da prestação de contas dos irmãos e
irmãs na fé.
8. Torna-nos responsáveis por crentes específicos.
9. Protege-nos do mundo, da carne e do diabo.

Existe provavelmente uma maneira melhor de sistematizar o que as alianças da


Bíblia fazem, bem como de apresentar razões para nos unirmos com uma igreja
local. Entretanto, espero que a maneira pela qual o fiz nos leve pelo menos na
direção certa.

Ponto 7: O compromisso da aliança com a igreja local torna


visível a nova aliança, que é invisível. Ele é um símbolo
terreno, um sinal ou uma analogia dessa maravilhosa
realidade celestial.

O INVISÍVEL SE FAZENDO VISÍVEL


Outra maneira de explicar a nossa membresia ou a nossa aliança com a igreja
local é dizendo que ela torna visível aquilo que é invisível — ela define o evangelho
do amor de Deus para o mundo. A nova aliança de Cristo aceita um indivíduo de
modo silencioso e invisível. Não podemos ver, ouvir ou cheirar o fato de uma pessoa
estar sendo unida a Cristo, recebendo o Espírito e fazendo isso pela fé. Essa é a
união mais forte e mais real que existe no mundo, mas sua visibilidade empalidece
quando comparada a outras formas de união. Podemos ver as camisas que unem
um time de futebol. Podemos ouvir os votos falados pela noiva e pelo noivo.
Podemos cheirar o sangue que unia um israelita ao outro. Mas não podemos ver,
ouvir ou cheirar os laços que unem um indivíduo a Deus, muito menos os laços de
união entre os membros do corpo escatológico e celestial chamado “a igreja”,
embora esses laços sejam eternos e indestrutíveis.
Cristo planejou que essa aliança fosse apresentada na terra. Ele queria ser visto,
ouvido e percebido. Ele queria que seu evangelho de amor fosse definido.
Obviamente, fazer exatamente isso não é fácil, porque a nova aliança é algo
multifacetado. Ela envolve o perdão do pecado. Envolve fé e obediência sob o
senhorio de Cristo, à medida que somos capacitados pelo Espírito. Envolve a união
entre Deus e o homem, bem como entre homem e homem. Então, como retratar
isso, e fazê-lo de um modo a estarmos atentos contra as ameaças da falsa profissão
de fé?
Cristo deu um alvará institucional à igreja exatamente com este propósito:
ajudar a retratar e a definir esse amor da nova aliança para o mundo. A submissão à
igreja local começa com o batismo: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado
em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do
Espírito Santo” (At 2.38). No batismo, nós retratamos a obra da nova aliança de sua
morte e ressurreição, mas também retratamos o fato de termos morrido para a
nossa velha identidade e de termos tomado a nova. Morte ao velho homem, vida ao
novo homem.
A submissão à igreja local continua com a Ceia do Senhor. Na noite anterior à
cruz, Jesus deu aos seus discípulos um cálice, dizendo: “Este é o cálice da nova
aliança no meu sangue derramado em favor de vós”, e lhes ordenou a continuarem
fazendo isso “em memória de mim” (Lc 22.19-20). A celebração repetida dessa
refeição também retrata a nova aliança.
O batismo e a Ceia do Senhor, portanto, apresentam as fronteiras e os limites da
membresia da igreja. Eles são retratos da nova aliança porque representam o
perdão de pecados por meio da morte e ressurreição de Cristo; porque são
ministrados pela autoridade de Cristo, o Rei; e porque devem ser ministrados
àqueles que reconhecem Cristo como rei. É aqui, nos limites da membresia da igreja
local, que o mundo vê, ouve e até mesmo cheira essa aliança. É aí onde essa aliança é
desempenhada e simbolizada. O batismo e a Ceia do Senhor são para os membros
da igreja aquilo que os nomes são para as pessoas. Eles são as marcas de identidade
que nos dizem algo acerca das realidades que eles representam. São os membros da
igreja que são os verdadeiros retratos do perdão, do amor e da autoridade da nova
aliança.

COMO A IGREJA DEFINE O AMOR


Seguindo o enredo da história dos Evangelhos, tudo começa com Jesus vindo
declarar o seu reino. O mundo estava em rebelião. Todavia, o Pai tinha um plano de
salvar e usar um povo para os seus propósitos na criação: proclamar sua glória por
meio da obediência ao seu governo. Meu amigo Josh, a quem mencionei
anteriormente, era um desses rebeldes, vivendo a vida por sua própria conta. Mas
Cristo estabeleceu o governo de seu reino no coração de Josh, salvando-o por meio
de sua nova aliança. Por meio de sua vida, morte e ressurreição, Cristo uniu Josh a
si mesmo de forma representativa, de modo que tudo o que era de Cristo passou a
ser de Josh, e tudo o que era de Josh passou a ser de Cristo. Josh, na verdade,
recebeu uma nova identidade. Cristo também uniu Josh a si mesmo por meio de
seu Espírito, de modo que Josh pudesse andar numa nova e genuína obediência. Ele
uniu Josh a si mesmo pela fé, à qual Josh deveria reagir e agir nela. No entanto, a
nova aliança do Senhor fez algo mais: ela uniu Josh a todo o povo que compartilha o
nome de Cristo, o que significa que o novo amor de Josh para afirmar o seu
Salvador e para responder a ele será demonstrado ao afirmar e responder ao povo
do Salvador, na verdade, o povo de Josh. Agora há algo dentro de Josh que o faz
buscar a glória e a santidade. Ele deseja que todos no mundo saibam quando e onde
na terra esse magnificente amor de Deus aparece.
A fim de cumprir o propósito de proclamar, exibir e proteger esse precioso
evangelho do amor de Deus, Josh se reúne com vários irmãos e irmãs que parecem
ter profissões fé fidedignas e, juntos, eles fazem uma aliança, com base na
autoridade de um alvará que Cristo de fato deixou para tais ocasiões. Juntos, cada
um deles diz aos outros: “Ouvi a sua profissão de fé. Ela parece fidedigna. Então,
deixe-me estender a destra da comunhão a você e chamá-lo de ‘irmão’. Além disso,
eu submeterei meu discipulado cristão a você, confiando que você, sendo um irmão,
me ensinará, me supervisionará e disciplinará a minha fé com fidelidade, enquanto
eu farei o mesmo por você. Juntos, nós proclamaremos, exibiremos e protegeremos
o evangelho de Cristo. Juntos, definiremos o amor de Cristo para o mundo.”
Observe o que essa aliança de membresia faz: ela os identifica com Cristo;
distingue-os do mundo; ajuda a guiá-los na justiça de Cristo; cria uma sociedade que
atua como um testemunho para os descrentes; identifica-os uns com os outros; faz
com que sejam responsáveis uns pelos outros; age como uma testemunha; protege-
os do mundo e glorifica a Deus.
O que Josh deve fazer se ele tiver uma visão missionária e os outros membros da
aliança tiverem outra? Se Josh realmente tiver tomado posse do discipulado deles e
confiar que eles tomaram posse do seu, ele não rejeitará a igreja e sua visão de
forma inconsequente. Ele não dirá: “Isso é entre mim e Deus. Esqueça-os.” Dizer
isso não só seria uma afronta às exigências do alvará, como transmitiria uma
significativa má interpretação da nova aliança de Cristo. Josh pertence a um corpo,
a um templo, a um rebanho, a uma videira e a um povo. Cada uma dessas metáforas
não descreve apenas a igreja universal; cada uma delas, na verdade, caracteriza os
relacionamentos na igreja local de Josh. As fibras de sua fé e de seu discipulado
estão entrelaçadas com as deles. Felizmente, ele sabe fazer algo melhor do que
simplesmente partir, desaparecer e buscar seus próprios interesses. Assim como
um pai ou um filho obediente, ele sabe ser paciente, orar e permanecer no amor,
por amor a eles e a si mesmo. Talvez ele vá para o país aonde sempre desejou ir.
Talvez ele vá para outro. Talvez ele permaneça em casa por um tempo e depois vá. O
que é certo é que Deus honrará a submissão e a fidelidade de Josh ao corpo, seja
qual for a forma que ela de fato tome, produzindo fruto em sua própria vida e na
deles. Entre outras coisas, a submissão de Josh à igreja nessa questão ajudará a
definir o amor para o mundo. O amor não é buscar os nossos próprios interesses. É
ser um com um povo, para a glória de Deus.
COLOCANDO ISSO EM PRÁTICA Sem dúvida, aplicar essas ideias e
doutrinas num contexto determinado exige muita sabedoria e
discernimento. Conforme observamos anteriormente, a doutrina da igreja
talvez seja a mais política de todas as doutrinas, porque ela envolve mais
diretamente as hierarquias e a vida real dos agentes em suas concepções.
Por essa razão, vale a pena continuar examinando algumas ramificações
práticas das nossas doutrinas sobre membresia e disciplina.

295. Com relação a Abraão e a Israel, não estou argumentando que eles eram “regenerados” no sentido
de João 3 (embora eu creia que eles fossem). Estou dizendo simplesmente que o fato de eles terem
recebido novos nomes representa tipologicamente ou prenuncia a ideia de novo nascimento do Novo
Testamento.
296. Veja W. W. J. Van Oene, “Before Many Witnesses” [Diante de Muitas Testemunhas], in J.
Geertsema, et al., Before Many Witnesses, Winnipeg, Manitoba: 1249 Plessis Road, 1975, pp. 9–13,
para uma meditação sobre a natureza coletiva de nossa confissão de fé. Conforme Van Oene coloca, “em
sua profissão de fé pública, você não está representando uma pessoa individualmente, mas o membro de
um Corpo... Sua profissão de fé é, por assim dizer, um assunto comunitário.”
297. Esses relacionamentos entre o cristão, a igreja e Cristo não são simétricos. Nós aspiramos
representá-lo na terra pelo que ele é em sua impecabilidade, assim como ele nos representa diante do Pai
no céu, não pelo que somos em nossa pecaminosidade, mas de acordo com o que ele é em sua
impecabilidade!
298. Para uma discussão sobre a relação entre a aliança conforme foi articulada no Sinai (ou Horebe) e
novamente em Moabe, veja Gary Millar, Now Choose Life: Theology and Ethics in Deuteronomy
[Escolhe pois a Vida: a Teologia e a Ética em Deuteronômio], New Studies in Biblical Theology [Novos
Estudos sobre a Teologia Bíblica], Ed. D. A . Carson, Downers Grove, IL: InterVarsity, nota 82; e também
Dumbrell, Covenant and Creation: A Theology of the Old Testament Covenants [Aliança e Criação:
Uma Teologia das Alianças do Antigo Testamento], Biblical and Theological Classics Library [Biblioteca
dos Clássicos Bíblicos e Teológicos], Kent, UK: Paternoster, 1997, p. 114.
299. T. D. Alexander, From Paradise to the Promised Land: An Introduction to the Main Themes of the
Pentateuch, Grand R apids: Baker, 1995, p. 166.
300. Paul Williamson, Sealed with an Oath: Covenant in God’s Unfolding Purpose [Selado com um
Juramento: A Aliança no Propósito Revelado de Deus], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2007, pp. 75–
76; e também Bruce Waltke e Cathi J. Fredericks, Genesis: A Commentary, Grand R apids: Zondervan,
2001, p. 136, traduzido para o português como Gênesis: Comentário do Antigo Testamento, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010.
301. Peter J. Gentry, “ The Covenant at Sinai,” in The Southern Baptist Journal of Theology, vol. 12
(Fall 2008): 39.
302. Ibid., p.40.
303. Ibid., 41. Veja também Stephen G. Dempster, Dominion and Dynasty: A Theology of the Hebrew
Bible [Domínio e Dinastia: Uma Teologia da Bíblia Hebraica], New Studies in Biblical Theology [Novos
Estudos sobre a Teologia Bíblica, Ed. D. A . Carson, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001, p. 174.
304. Dempster, Dominion and Dynasty, p. 172.
305. William Dumbrell, Covenant and Creation, 89; cf. Craig A . Blaising and Darrell L. Bock, Progressive
Dispensationalism [Dispensacionalismo Progressivo], Grand R apids: Baker, 1993, pp. 141–42; Andreas
J. Köstenberger e Peter T. O’Brien, Salvation to the Ends of the Earth: A Biblical Theology of Mission
[Salvação até os Confins da Terra: Uma Teologia Bíblica de Missões], New Studies in Biblical Theology;
Graeme Goldsworthy, According to Plan: The Unfolding Revelation of God in the Bible [Conforme o
Plano: A Revelação de Deus Explicada na Bíblia], Downers Grove, IL: InterVarsity, 1991, p. 141.
306. Veja Dempster, Dominion and Dynasty, pp. 101–2, citado em Gentry, “ The Covenant at Sinai”, p.
47. Fui tentado a citar Dempster na questão sobre Israel “redefinindo o domínio”, mas ele utiliza a
palavra serviço, como os evangélicos geralmente usam, para descrever o que eles entendem por governo
redimido. Considerando que eu concorde que a motivação para o serviço deva estar envolvida numa
concepção redimida da autoridade (por exemplo, Mc 10.45), não creio que isso seja suficientemente
forte para apreender tudo o que Deus planejava para Adão (ou retratou em Cristo) por meio de seus
respectivos domínios, assim como o elemento de mandamento ou julgamento.
307. Dumbrell, Covenant and Creation, p. 127; Blaising and Bock, Progressive Dispensationalism, pp.
168–69.
308. Dumbrell, Covenant and Creation, pp. 150–52.
309. Ibid., pp. 151, 162–63.
310. O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants, Phillipsburg, NJ: P&R , 1980, p. 235, traduzido
para o português como O Cristo dos Pactos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011; Stephen J. Wellum,
“Baptism and the Relationship between the Covenants” [O Batismo e a Relação entre as Alianças”] in
Believer’s Baptism: Sign of the New Covenant in Christ [O Batismo dos Crentes: O Sinal da Nova
Aliança em Cristo], Ed. Thomas R . Schreiner and Shawn D. Wright, NAC Studies in Bible and Theology,
Nashville: Broadman, 2006, p. 39.
311. Blaising and Bock, Progressive Dispensationalism, pp. 172–73; Robertson, Christ of the Covenants,
pp. 185–90, p. 268.
312. Wellum, “Baptism and the Relationship between the Covenants”, p. 39.
313. Conforme afirma Wellum: “Com relação a isso, Lucas 2.21 é importante. A circuncisão de Jesus não
é um acontecimento secundário; ela marca o cumprimento da circuncisão em seu propósito de preservar
uma linhagem da descendência de Abraão até Cristo”. Baptism and the Relationship between the
Covenants, p. 39.
314. D. A . Carson chama o uso que Jesus faz dessa expressão de Êxodo 24.8 de “antítipo do tipo”,
Matthew, Expositor’s Bible Commentary, vol. 8, Ed. Frank E. Gaebelein e J. D. Douglas, Grand R apids:
Zondervan, 1984, p. 537.
315. Veja G. K . Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place
of God, New Studies in Biblical Theology, pp. 169–76.
316. Liderança geral pode ser definida como as ações ou decisões de um indivíduo substituindo ou
representando a maioria, assim como um voto de um representante na assembleia do congresso dos
Estados Unidos “decreta”, ou “liga”, ou “representa” o voto de seus constituintes. Para uma descrição e
discussão adicionais sobre esse ponto de vista, veja Louis Berkhoff, Systematic Theology, Carlisle, PA:
Banner of Truth, 1958, 242–43, traduzido para o português como Teologia Sistemática, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010; Millard J. Erickson, Christian Theology [Teologia Cristã], 2a ed., Grand R apids:
Baker, 1998, pp. 651–52. Uma confrontação ligeiramente mais prolongada com esse ponto de vista pode
ser encontrada em Henri Blocher, Original Sin: Illuminating the Riddle [Pecado Original: Esclarecendo o
Enígma], New Studies in Biblical Theology, pp. 70–81, 96–99, 116, 129ss.
317. Wellum, Baptism and the Relationship between the Covenants, p. 55, 57.
318. Para uma lista até certo ponto exaustiva das ilustrações para a igreja, veja Paul S. Minear, Images of
the New Testament Church [Imagens da Igreja Neo-testamentária].
319. Veli-Matti Kärkkäinen, An Introduction to Ecclesiology: Ecumenical, Historical and Global
Perspectives [Uma Introdução à Eclesiologia: Perspectivas Globais, Históricas e Ecumênicas], Downers
Grove: InterVarsity, 2002, pp. 26–38.
320. Talvez uma ilustração possa ser útil aqui. Um marido e uma esposa poderiam ter muitas maneiras
de descrever a natureza de seu relacionamento: amigos, amantes, parceiros, colegas de viagem, almas
gêmeas, cooperadores e assim por diante. Suponha que alguém peça a um deles para definir a natureza
do casamento: “O que é o casamento?” Deveríamos privilegiar uma das descrições acima das outras?
Como na frase: “Um casamento é fundamentalmente amizade”, ou: “Um casamento é o ato da união
sexual”? Nenhuma dessas descrições assimila totalmente o todo do casamento. Seria melhor definir a
natureza do casamento como “uma aliança entre duas pessoas, que dura a vida toda”, ou algo paralelo a
isso. Por essa razão, podemos permitir que cada uma dessas imagens tenha a liberdade de melhorar e
colorir essa definição fundamental.
321. Agradeço a Steve Wellum por esse argumento.
322. Sinclair B. Ferguson, The Holy Spirit, Contours of Christian Theology [Contornos da Teologia
Cristã], Ed. Gerald Bray, Downers Grove, IL: InterVarsity, 1996, p. 109; veja também Robert Letham,
The Work of Christ, Contours of Christian Theology, Ed. Gerald Bray, Downers Grove, IL: InterVarsity,
1993, pp. 75-87.
323. Não tenho a intenção de dar prioridade à igreja universal em detrimento da igreja local com o
mesmo sentido em que um católico romano o faria. Um católico romano definiria a igreja universal
como a instituição visível na terra, a qual, depois, dá à luz a muitas igrejas locais. Em vez disso, tenho
definido a igreja universal como o corpo celestial e escatológico de Cristo, ao qual pertencemos mediante
a conversão. O nosso batismo numa igreja local simplesmente afirma a membresia anterior. Miroslav
Volf apresenta uma boa discussão sobre esse assunto em After Our Likeness: The Church as the Image
of the Trinity, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp. 139–41.
324. Aqui estão inúmeras passagens do Pentateuco onde Deus se refere a si mesmo como “Senhor teu
Deus” ao falar com a nação de Israel: Êx. 15.26; 16.12; 20.3, 5; Lv 11.44, 45; 18.2, 4, 30; 19.2–4, 10, 12,
25, 31, 34, 36; 20.7, 24; 22.33, 23.22, 43; 24.22; 25.17, 38, 55; 26.1, 12–13; Nm 10.10; 15.41; Dt 4.1;
5.6, 9; 11.2, 28; 13.18; 29.6.
325. Somente no Pentateuco: Êx 20.5; Dt 4.24, 5.9, 6.15, 32.21. Deus até mesmo descreve seu nome
como “ Zeloso” em Êx 34.14.
326. 1 Re 11.13, 32, 34; 2 Re 19.34; Is 37.35.
327. Por exemplo: Gn 26.3, 24, 28.15; Êx 3.12, 25.8, 29.45-46; Dt 12.11.
328. Veja R aymond Ortlund, God’s Unfaithful Wife: A Biblical Theology of Spiritual Adultery [A Esposa
Infiel de Deus: Uma Teologia Bíblica sobre o Adultério Espiritual], New Studies in Biblical Theology.
329. Veja a meditação de Mark Dever sobre a distinção que Deus faz de seu povo no Êxodo in The
Message of the Old Testament: Promises Made, W heaton, IL: Crossway, 2006, pp. 93–99, traduzido
para o português como A Mensagem do Antigo Testamento, Rio de Janeiro: CPAD, 2008; e também sua
meditação sobre Levítico, no mesmo volume, pp. 111–22 (no original).
330. Existem algumas controvérsias sobre se o versículo 5 se refere à aliança abraâmica ou à mosaica.
331. Lv 26.33; Dt 4.27; 28.64; 1 Re 14.15; Ne 1.8; Jr 9.15-16; 13.15-27; Ez 12.14-15.
332. Veja Kent E. Brower e Andy Johnson, Holiness and Ecclesiology in the New Testament [Santidade
e Eclesiologia no Novo Testamento], Grand R apids: Eerdmans, 2007, para um exame livro a livro ao
longo do Novo Testamento sobre o assunto da igreja como santa.
333. Veja David W. Pao, Acts and the Isaianic New Exodus [Atos e o Novo Êxodo Relacionado a Isaías] in
The Biblical Studies Library, Grand R apids: Baker, 2002.
334. Veja 110 n. 60.
335. Veja Christopher J. H. Wright, The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative,
Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, principalmente pp. 87-92; 324-56.
336. Veja também Dt 31.28; Is 30.8ss.; Jr 18.13-17.
337. Darrell Guder, Ed., Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America,
Grand R apids: Eerdmans, 1998, p. 128.
338. Veja D. A . Carson, Love in Hard Places, W heaton, IL: Crossway, 2002, p. 56.
339. Êx 22.21-25; Lv 19.14, 25.25, 35-55; Dt 24.17, 27.18-19.
Capítulo 6

A AFIRMAÇÃO E O
TESTEMUNHO DO AMOR

“Fizemos tudo pela glória do amor.” — Peter Cetera

Perguntas Principais: Como uma igreja deve confirmar, supervisionar e


excluir os membros de modo responsável? Ela deve levar em conta diferenças
culturais nessas atividades?

Respostas Principais: Em certa medida, as igrejas devem levar em conta as


diferenças culturais, principalmente em termos da complexidade de uma sociedade
e em relação ao cristianismo. Ao mesmo tempo, as igrejas devem confirmar,
supervisionar e excluir os membros com regularidade, prestando atenção contínua
à sua obra de dar testemunho do santo nome de Cristo.

As façanhas do homem que se tornaria o bandido mais famoso e amado do


Missouri (o assalto a banco e o sequestro de um trem), Jesse James, começaram
quando James era membro da Mount Olivet Baptist Church (Igreja Batista Monte
das Oliveiras) em Kearney, Missouri. Parece que James havia sido batizado para ser
membro da igreja em 1866, no mesmo ano do roubo da Savings Association
(Associação de Fundos de Poupança), do condado de Clay, em Liberty, Missouri,
ação na qual ele estava envolvido. Um transeunte inocente foi baleado e morto.
James também estava associado com o assalto a banco em 1867, em Richmond,
Missouri, no qual o prefeito da cidade e várias outras pessoas foram mortas, bem
como com um assalto em 1868, em Russellville, Kentucky, que resultou no
assassinato de outro homem.
Duas décadas depois, o vizinho de James, W. H. Price, forneceu uma avaliação
graciosa desses anos: “Acho que ele era batizado, e por um ano ou dois ele agiu como
se fosse um cristão sincero e verdadeiro. Em seus primeiros anos e depois que ele
saiu do exército, ele era calmo, afável e gentil em suas ações.”340
Em 1869, a Mount Olivert Baptist Church começou a considerar se o irmão Jesse
deveria ser excomungado de sua membresia. No entanto, de acordo com um
relatório não confirmado, a igreja estava preocupada com o fato de que Jesse
pudesse incendiar o prédio da igreja caso eles votassem por excluí-lo. Dois diáconos
foram comissionados para tratar da questão com James na casa de campo de sua
mãe, onde se sabia que ele estava. Os dois diáconos, aparentemente, nunca
puderam fazer essa visita. Em vez disso, o próprio James participou da assembleia
administrativa da igreja, em setembro de 1869, e se desligou de sua membresia
“porque se considerava indigno”341. Ao que toda igreja assentiu com muita alegria.
Três meses mais tarde, em dezembro, James e seu bando roubaram a Savings
Association, no Condado de Daviess, em Gallatin, Missouri. James atirou no caixa, o
capitão John Sheets, e o matou. Esse incidente trouxe James aos olhos do grande
público pela primeira vez, quando seu nome saiu nos jornais.
Mais de uma década de torpeza e infâmia o seguiu.
COMO EDIFICAR UMA IGREJA
Será que a igreja batista Mount Olivet fez a coisa certa ao permitir que James se
desligasse? Eles deveriam tê-lo excomungado de todo jeito? O que toda essa
conversa sobre amor, autoridade, alvarás e alianças tem a dizer sobre todos os
personagens pitorescos que Deus traz à porta de entrada da igreja?
A maioria das histórias sobre os membros se unindo e abandonando as igrejas
não são tão exóticas quanto a de Jesse James. O cristão Bob aparece um dia e diz
que acredita em Jesus. A igreja saúda Bob com um ensopado de frango no salão de
comunhão. Se for uma megaigreja, ela o saúda com um brilhante cartão de
membro. Seja como for, Bob se associa. Ele frequenta a igreja com certa
regularidade. Talvez duas ou três pessoas estejam familiarizadas com ele. Talvez ele
seja voluntário para alguma atividade de vez em quando. Mais tarde, o seu emprego
o manda para outra cidade, e Bob se muda.
Nós nos unimos às igrejas da mesma forma que nos unimos à academia ou a um
clube de esportes. Quando as coisas vão bem, nós aparecemos regularmente.
Quando não estão, tiramos umas semanas ou uns meses de folga. Dizemos a nós
mesmos que está tudo bem, porque a vida passa em estações. É claro, ter um
companheiro para “praticar exercícios” ajuda. Podemos estimular um ao outro, em
uma boa parceria, contanto que o nosso companheiro não seja muito zeloso. Se a
membresia se tornar muito custosa ou consumir muito do nosso tempo, sempre
podemos abandoná-la.
Mas Deus realmente pretendia que a igreja local definisse seu amor santo para o
mundo — não apenas o crente individualmente, mas todo o corpo da igreja, juntos
em sua vida coletiva. Com o que essa igreja se parece do ponto de vista da
membresia e da disciplina? Neste capítulo, consideraremos as responsabilidades da
igreja: como as igrejas devem receber, supervisionar e afastar os membros? No
último capítulo, consideraremos as responsabilidades dos membros: o que a nossa
submissão de aliança exige? O alvo nesses capítulos finais é pegar nossas marretas e
serrotes e sermos um pouco mais práticos. Como nos encarregamos de edificar a
igreja?
A primeira questão que precisamos considerar é a diferença cultural. Será que
uma igreja centrada no evangelho, em Baltimore, praticará a membresia e a
disciplina da mesma forma que uma igreja centrada no evangelho em Bangkok ou
Bishkek? A partir daí, passaremos para o processo de membresia da igreja — como
a igreja recebe, supervisiona e depois diz adeus aos membros.
Ponto 1: Muitas pessoas hoje em dia exageram a importância da diferença cultural; no
entanto, devemos prestar alguma atenção nelas.
Essa abordagem calculada das diferenças culturais pode ser ilustrada por três igrejas
em três nações diferentes.
DIFERENÇA CULTURAL
Um dos assuntos principais de nossa época, a era da pós-modernidade, é a
diferença e a particularidade cultural. Os acadêmicos supervalorizam
principalmente nossas diferenças e dedicam livros e livros à intraduzibilidade de
certas diferenças, uma vez que os seres humanos estão inescapavelmente
arraigados a seus contextos e não podem enxergar além deles.
Nos círculos cristãos, nós também podemos nos concentrar em como as pessoas
de outras culturas são diferentes; nas dificuldades de nos comunicarmos
ultrapassando os limites étnicos e culturais; na necessidade de contextualizar. Os
missiologistas têm desenvolvido uma escala para classificar a contextualização de
uma igreja implantada por missionários transculturais342. Eles podem considerar
questões como: As pessoas têm escrito suas próprias músicas ou apenas traduzido
nossas músicas? Os habitantes locais foram autorizados a usar as “formas
externas” de sua religião tradicional, como colocar a Bíblia no suporte do Alcorão? A
base bíblica para examinar as questões sobre contextualização vem do apóstolo
Paulo, que demonstrou ser sensível às realidades antropológicas, dizendo que ele se
faria “tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns” (1 Co
9.22).
O que me impressionou quando viajei ou morei no estrangeiro, no entanto, foi o
quão semelhantes são os seres humanos em toda parte. As culturas diferentes
possuem ídolos diferentes, mas são idólatras em essência. As etnias possuem
mecanismos diferentes de autojustificação, mas todos nós gastamos cada um de
nossos dias fazendo isso. As nacionalidades têm diferentes maneiras de passar a
culpa adiante, mas todas fazem isso. Os diferentes grupos econômicos podem amar
tesouros diferentes, mas todo homem ama o mundo. Pois durante todo o tempo
que gastamos falando sobre as diferenças entre os filhos de Adão, dispersos numa
comunicação confusa desde a Torre de Babel, todos eles ainda continuaram sendo
filhos de Adão. Se nós, como pós-modernos, tivéssemos uma visão mais santa de
Deus, poderíamos falar menos sobre as particularidades culturais e mais sobre
nossa previsível e patética semelhança.
Só recentemente tive o privilégio de passar algumas semanas ensinando pastores
locais na África do Sul. Em determinado momento, um jovem pastor-aprendiz
Khosa (tribo sul-africana) levantou a mão e perguntou: “Como posso lutar contra o
fato de me importar com o que as pessoas pensam de mim como um pastor?” Sendo
um americano, sou incapaz de me colocar no lugar dele e sentir todas as pressões
sociais de sua família, de sua tribo e até mesmo de seus antepassados, as quais
desempenham um papel muito maior na percepção que esse jovem tem do próprio
eu do que um americano comum poderia experimentar. Toda a sua cosmovisão é
provavelmente muito mais moldada por uma coisa africana chamada ubuntu, que é
a palavra Zulu para “humanidade”, do que a minha. Ela transmite a ideia de que nós
nos tornamos mais humanos por meio de outros seres humanos. Ao mesmo tempo,
como essa pergunta soa familiar! Creio que seria muito difícil para nós encontrar
um pastor nos Estados Unidos que nunca lutasse com o problema que esse jovem
tem. Um pastor americano pode experimentar o “temor do homem” de um modo
diferente de um pastor Khosa. Por exemplo, ele provavelmente pensará menos em
seus antepassados. Mas ambos experimentarão isso, e ambos são chamados para se
arrepender e temer mais a Deus do que o homem.
Deixe-me aconselhar o leitor a olhar outras passagens para ter pensamentos
mais cautelosos acerca dessas questões. De minha parte, eu encorajaria os crentes a
abordarem a questão das diferenças culturais com duas posturas. Em primeiro
lugar, seja sensível. Seja capaz de ouvir e aprender, e espere que alguma
flexibilidade seja exigida. Na formulação da doutrina da igreja, devemos estar
principalmente atentos à dimensão social dos seres humanos, uma vez que
pertencer a uma igreja significa pertencer a uma estrutura de autoridade. Pessoas
com várias experiências na bagagem terão a capacidade de ser pastoreadas e amadas
pelos presbíteros e pela congregação sensivelmente afetada.
Em segundo lugar, precisamos ser pelo menos um pouco receosos em relação a
toda essa conversa a respeito das nossas vastas diferenças. Os crentes devem
lembrar que os acadêmicos e o mundo têm um interesse espiritual especial em
bloquear os canais de comunicação do evangelho e em desobedecer à Palavra de
Deus. Não deveríamos nos surpreender quando as filosofias do mundo, falando por
meio do tom urbano e formal de um professor de literatura, disserem-nos que os
nossos conceitos acerca do ser de Deus, do evangelho da substituição penal, ou da
prática da membresia na igreja são modernos, ocidentais, platônicos, opressivos ou
algo semelhante. Pode haver um mérito ocasional nos aspectos de tais críticas, mas
também temos de manter a capacidade de responder: “Sim, isso é o que você diria”,
dado o nosso conhecimento sobre os compromissos espirituais do mundo.
Tampouco estou dizendo que os compromissos de um cristão são perfeitos, mas
essa é mais uma razão para nos submetermos à Palavra de Deus da melhor maneira
que pudermos. O apóstolo Paulo não só adaptou alguns aspectos de seu método de
cultura para cultura, mas também previu que os ataques contra o evangelho
variariam de cultura para cultura (1 Co 1.20-25).
Além disso, deixe-me novamente lançar um pouco de dúvida sobre a distinção
absoluta que os evangélicos às vezes fazem entre a forma e o conteúdo, ou entre os
métodos e a mensagem. Essa é a distinção que fazemos sempre que falamos sobre
usar novos métodos para ensinar a velha mensagem, ou sobre a necessidade de os
cristãos guardarem o Ramadam enquanto estiverem nos países islâmicos, a fim de
serem considerados como um povo santo. Por mais nítida e clara que essa distinção
possa soar para os nossos cérebros, nem a realidade nem a Bíblia permite essa nítida
separação. Na realidade, a forma e o conteúdo sempre afetam um ao outro. Na
Bíblia, são dadas prescrições para ambas as coisas. Por exemplo, Paulo nos diz que
ele havia “rejeitado as coisas vergonhosas, os caminhos da astúcia” e recomendado a
si mesmo “pela manifestação da verdade” (2 Cor 4.2). Essa é uma declaração
metodológica, e é uma declaração importante, porque esses métodos recomendam
inerentemente a mensagem. Semelhantemente, Jesus enumera vários passos
precisos sobre como confrontar as disputas numa igreja (Mt 18.15-17), uma
prescrição metodológica que se origina da própria natureza do evangelho.
Isso não quer dizer que a Bíblia não permita alguma flexibilidade nos métodos ou
formas à medida que passamos de um lugar para o outro. Algumas formas, como se
devemos usar microfones ou não, é melhor que sejam deixadas para as
considerações da prudência. Usar microfones ajudará todos a ouvirem? Precisamos
prestar atenção ao que a Bíblia diz tanto sobre a forma quanto sobre o conteúdo e,
depois, com isso em mente, buscar aplica-la com sensibilidade em determinado
contexto.

TRÊS NAÇÕES, TRÊS IGREJAS


Será que uma igreja centrada no evangelho, em Baltimore, praticará a
membresia e a disciplina da mesma forma que uma igreja centrada no evangelho em
Bangkok ou Bishkek? A resposta deve ser sim e não.
Comparemos três igrejas diferentes, uma na Ásia Central, uma no Golfo Pérsico
e uma na América do Sul.
ÁSIA CENTRAL
Essa igreja não tem nome ou prédio e não está registrada na cidade, porque o
governo a fecharia se soubesse de sua existência. Ela se reúne na casa de um
membro numa cidade da Ásia Central, na qual quase todos são muçulmanos. Ela
tem oito ou dez membros e nunca terá permissão para crescer além de
aproximadamente vinte pessoas. Quando os números começam a chegar a vinte, o
grupo tem que se dividir, pois as casas dos membros não são grandes o suficiente
para acomodar mais pessoas e porque eles precisam ficar invisíveis para as
autoridades da cidade, para o clérigo muçulmano e às vezes para o concílio da
vizinhança.
A igreja se reúne todo domingo com seus dois presbíteros, “Frank” e “Hanz”, a
fim de orar, cantar e aprender a Bíblia. Ambos são homens convertidos na última
década e que aprenderam a maior parte do que sabem da Bíblia com dois ou três
missionários, embora um deles tenha sido capaz de passar vários meses na capital
do país, fazendo um curso sobre a Bíblia. Outras várias casas-igrejas se reúnem na
mesma cidade, mas cada membro se une a essa igreja não pela transferência de uma
igreja para a outra, mas pela conversão e pelo batismo. Em determinados domingos,
convidados, vizinhos ou parentes aparecerão, mas aqueles que não foram batizados
não serão convidados para compartilhar a Ceia do Senhor. Obviamente, há pouco
incentivo para que esses convidados compartilhem a ceia. Numa cultura como essa,
que é totalmente hostil ao cristianismo, ninguém fingirá ser um membro. Não há
ganho social algum com a membresia na igreja, porque isso é muito custoso. Na
verdade, os seguidores de Jesus perderão sua identidade familiar, social, religiosa e
muito de sua identidade étnica.
Uma pessoa se torna membro por meio do batismo, embora o batismo sempre
seja precedido de várias semanas de entrevistas com os presbíteros e com a igreja.
Quando um indivíduo faz uma profissão de fé pela primeira vez, Frank e Hanz o
questionam a fim de se assegurarem de que ele entende o evangelho e está
arrependido. Quando é uma mulher que faz essa profissão, uma das mulheres
maduras da igreja é incluída nas conversas. A pessoa será chamada para fazer sua
profissão de fé diante de toda a igreja, momento este em que os membros farão
perguntas, mesmo que os novos crentes não sejam estranhos para os crentes
existentes, sendo geralmente seus amigos, colegas ou membros da família. Os
presbíteros lideram a discussão, mas encorajam cada um a participar, já que isso
serve para esclarecer a compreensão que todos têm acerca do evangelho. A
congregação nunca vota para admitir alguém na igreja, mas, eventualmente, surgirá
um consenso sobre o fato de a pessoa em questão ser um crente ou precisar crescer
mais.
Numa comunidade muçulmana como essa, é de se esperar que a conversão mude
a vida das pessoas e, por essa razão, a igreja procura evidências da conversão. Ela
não espera que tudo seja colocado em ordem na vida do convertido, mas deseja ver
o início de uma vida de fé, principalmente a disposição para se identificar como um
seguidor de Jesus. Como o passo final, a igreja dará sua afirmação por meio do
batismo, o que dá oficialmente as boas-vindas ao indivíduo na assembleia. É lógico,
os batismos são logisticamente difíceis de serem realizados na Ásia Central. Às
vezes, os batismos são conduzidos num lago ou rio a certa distância da cidade,
embora ocasionalmente seja feito numa piscina rasa de um membro rico. (Tive o
privilégio de testemunhar um batismo numa piscina rasa de uma pessoa mais rica).
Os membros dessa igreja específica certamente amam e reconhecem os
membros das outras igrejas de sua cidade — eles são alguns poucos perseguidos. Ao
mesmo tempo, eles reconhecem que Cristo os chama para submeterem seu amor e
obediência ao seu corpo de modo concreto. Por essa razão, eles se entregam
principalmente uns pelos outros. Eles encorajam uns aos outros a fazerem
evangelismo. Apoiam uns aos outros financeiramente quando o filho de alguém
acaba num hospital. Eles juntam dinheiro para enviar um presbítero para uma
seção de treinamento ministerial a várias centenas de quilômetros de distância, na
capital.
Não que eles nunca façam essas coisas pelos membros de outras igrejas, mas eles
realmente entendem que sua obrigação primordial é de uns para com os outros.
Eles não exercerão a autoridade para ligar ou desligar os membros de qualquer
outra igreja. Eles não unem os indivíduos de outras igrejas. Eles são obrigados a se
reunir regularmente uns com os outros, não com os membros de outras igrejas. E
eles não exerceriam a disciplina sobre um membro de outra igreja.
Em certa ocasião, um presbítero estava tendo problemas com sua família ao
ponto de outro presbítero interferir de um modo que ele não faria com um líder ou
membro de outra congregação. Felizmente, o arrependimento foi imediato, e o
processo de disciplina terminou. Ao mesmo tempo, quando uma excomunhão é
feita por uma igreja da cidade, toda a rede de igrejas é notificada, de modo que a
pessoa não arrependida não possa pular de um grupo para o outro. As igrejas são
independentes, mas não são autônomas. Elas são, em conjunto, parceiras no
evangelho e interdependentes.
Em resumo, não há classes para os membros, além das reuniões semanais e do
discipulado que acontece ao longo da semana, o que é mais comum nas sociedades
menos letradas. Não há um rol de membros escrito, porque todos sabem quem é da
igreja e quem não é. Não há visitas ao escritório do pastor para uma entrevista; os
pastores não recebem muito, e a maioria deles também não tem escritórios. Não há
voto congregacional ou um edital liderado pelo presbítero sobre os novos membros.
De qualquer forma, ninguém poderia se unir a uma comunidade desse tamanho
diante das fortes objeções de vários indivíduos. Fazer isso, por definição, semearia
divisão na igreja. Cabe a todos os dissidentes abandonar suas objeções ou
demonstrar por que elas são convincentes. É fácil perceber um consenso num
grupo de quinze ou vinte pessoas.
Creio que podemos ver essa pequena congregação na Ásia Central como mais ou
menos dentro do padrão bíblico. Ela poderia melhorar alguns aspectos de suas
práticas de membresia e disciplina, como articular uma declaração de fé mais
concisa ou uma aliança da igreja. Com o tempo, se Deus quiser, ela fará isso. Em
igrejas como essas, as declarações de fé e as alianças consistem geralmente de vários
versículos memorizados, que são recitados toda vez que a Ceia do Senhor é tomada.
No entanto, dado o seu contexto, ela está cumprindo o padrão bíblico de membresia
da igreja do Novo Testamento. Ela está cumprindo o que Cristo planeja para a igreja
local — a proclamação, a exibição e a proteção do evangelho por meio das vidas de
seus membros distinguidos. Está evidentemente claro quem são os seus membros,
embora não exista um rol de membros. Todos sabem quem se arrependeu e creu e
quem não, porque todos estavam presentes nos batismos de toda pessoa que tenha
se unido a eles. O limite entre a igreja e o mundo está claro, e a mesa da comunhão
está protegida para ajudar a manter esse limite claro. As profissões de fé são
consideradas com cautela, a fim de garantir sua credibilidade. A disciplina é
praticada com o intuito de manter a pureza na igreja e a saúde espiritual de cada
membro. Cada membro se submete à supervisão de toda a igreja, incluindo os
presbíteros, e cada membro compreende sua obrigação de apoiar o discipulado de
todos os outros membros. O nome e a reputação de Cristo estão sendo protegidos e
adornados, e esse é o alvo.
Para os nossos objetivos, é importante observarmos os fatores contextuais
envolvidos:
o tamanho das igrejas;
a hostilidade do ambiente político, religioso e social, e a adversidade que surge
em cada nível;
a falta de cristãos culturalmente nominais — todos são a primeira geração de
seguidores de Cristo;
a falta de incentivo social para batizar pessoas menores de idade (e o
desincentivo óbvio para isso);
a falta de divisões denominacionais;
a relativa falta de ramificações heréticas (por enquanto);
a escassez de recursos econômicos;
a baixa transitoriedade;
o fato de cada membro não ser apenas um novo crente, mas um novo crente
numa nação, numa cidade, numa vizinhança, num lar com nenhuma tradição
cristã conhecida ou recente (pelo menos nos últimos 600 anos).
Os membros dessa igreja não estão vivendo numa sociedade judaico-cristã, nem
mesmo numa sociedade secularizada. No que diz respeito a eles, a cisão entre Roma
e Constantinopla jamais aconteceu, nem a Reforma Protestante. Tudo é novo para
eles. O cristianismo deles é um cristianismo do primeiro século em muitos aspectos.
Após um ataque repentino na Páscoa alguns anos atrás, a igreja foi obrigada a
tomar uma medida de segurança, destruindo todos os seus materiais, exceto suas
Bíblias. Ouviu-se recentemente que a sua principal preocupação hoje em dia é
“encorajar uns aos outros na fé e manter seus líderes fora da prisão”.
São esses próprios fatores contextuais que simplificam o processo de membresia
na igreja. Se o cerne da membresia é identificar pessoas com Cristo e com o povo de
Cristo, então, fatores como congregações pequenas, baixa inconstância, a completa
falta de cristianismo cultural e a perseguição servem intensamente para esclarecer
quem está identificado com o povo de Cristo e quem não está. Conforme um
indivíduo me disse: “Adivinhar quem é de dentro e quem é de fora é relativamente
fácil.” O maior desafio para eles está no fato de ensinar os membros da igreja sobre
suas novas obrigações de uns para com os outros, bem como sobre o propósito da
disciplina da igreja. Obviamente, essas lições não são tanto questões de membresia,
mas de vida cristã. A vida cristã e a membresia da igreja quase que se justapõem
perfeitamente para esses santos abençoados. Elas são a mesma coisa.
Deveria ser assim conosco.

O GOLFO PÉRSICO
E se confundirmos alguns dos fatores contextuais? Imagine, por exemplo, que
entramos num avião e voamos incontáveis quilômetros para os Emirados Árabes
Unidos, onde um dos meus melhores amigos do seminário, John, pastoreia a Igreja
Cristã Unida de Dubai, na cidade mais populosa dos Emirados Árabes. Assim como a
igreja da Ásia Central, esta igreja está estabelecida numa nação muçulmana, embora
a Igreja Cristã Unida exista com a permissão do xeique local, como um incentivo aos
muitos trabalhadores estrangeiros que ajudam com a riqueza do petróleo e que
concordam com o fato de os árabes manterem as rodas da economia de seus países
em movimento. Na verdade, aproximadamente três quartos da população dos
Emirados Árabes tem nacionalidade estrangeira, a mais elevada porcentagem de
estrangeiros residentes do mundo.
No momento, a Igreja Cristã Unida é a maior igreja evangélica de língua inglesa
do país, e a única reconhecida oficialmente pelos governantes. Ela possui quase 600
membros e dispõe de um prédio relativamente bom e confortável, possuindo outras
dez congregações, sendo que em cada uma delas se fala uma língua diferente. O
governo não permitiu que a Igreja Cristã Unida implantasse outras igrejas e fechou
um de seus locais de reunião. Ajuntamentos religiosos não autorizados são ilegais.
O governo também proíbe a conversão dos cidadãos árabes e, portanto, a
membresia árabe na igreja. Por essa razão, a membresia da igreja consiste
totalmente de estrangeiros, que vêm de mais ou menos seis países e são
relativamente transitórios. Os indivíduos geralmente vêm a Dubai apenas por
alguns anos, antes de retornarem para casa.
Apesar das evidentes semelhanças contextuais entre nossa igreja na Ásia Central
e a Igreja Cristã Unida — ambas estão estabelecidas em nações muçulmanas, nas
quais a conversão é perigosa — os desafios da membresia e da disciplina são muito
diferentes. Quando John voltou, a Igreja Cristã Unida tinha as marcas típicas de
uma igreja internacional. Os indivíduos haviam vindo de todas as partes do mundo,
representando inúmeras denominações protestantes. A fim de promover a unidade,
portanto, os líderes anteriores sempre enfatizaram a abordagem do menor
denominador comum nas questões sobre política organizacional, na esperança de
manter o evangelho no centro e deixar de lado quaisquer discordâncias em
potencial. Seiscentas pessoas frequentavam as reuniões semanais, mas nenhuma
avaliação havia sido feita sobre o fato de aqueles indivíduos serem crentes ou não, e
não existia uma lista dizendo quem era membro. Tudo o que John encontrou
quando o seu pastorado começou foi uma lista de telefones com centenas de nomes,
cinquenta dos quais já haviam partido. Conforme John me descreveu: “Nós
estávamos numa desordem, não sabíamos quem ‘nós’ éramos.”Em certo sentido,
poderíamos dizer que a Igreja Cristã Unida adotou práticas de membresia e
disciplina semelhantes às da igreja da Ásia Central: não há classes para membros;
não há uma lista oficial de membresia; não há visitas ao escritório do pastor antes
de alguém se tornar membro; não há voto da congregação ou um edital liderado
pelo presbítero sobre os novos membros. No entanto, o resultado aqui foi
exatamente o oposto. Não estava claro quem “a igreja” era. Não estava claro quem
era responsável por quem. Não estava claro quem estava genuinamente
identificado com Cristo e quem não estava. Sendo assim, o evangelho e a suas
implicações estavam obscurecidos nas vidas daqueles que frequentavam as reuniões
semanalmente, vindo John a descobrir que o evangelho estava de alguma forma
obscurecido na mente de sua congregação — o que dificilmente seria uma maneira
de proteger e anunciar o evangelho de geração a geração.
Além do mais, a maioria dos frequentadores tinha, até certo ponto, pouco
compromisso com o corpo, em parte porque eles viajavam para Dubai para ganhar
dinheiro o mais rápido possível antes de voltarem para casa. Havia pouca percepção
da posse do discipulado dos outros. “Chorar com os que choram? Alegrar-me com
os que se alegram? Sinto muito, de quem você está falando? Eu tenho que voltar ao
trabalho.” É claro que a imoralidade aumenta quando os crentes não compartilham
a responsabilidade uns pelos outros, e qualquer observador muçulmano apenas
confirmaria o estereótipo de cristianismo como uma religião dissoluta e devassa.
À luz desses fatores contextuais (transitoriedade alta, concepções deficientes
sobre compromisso e responsabilidade mútua, grande comprometimento em
ganhar dinheiro enquanto se está no país, bagagem multidenominacional,
compreensão vaga do evangelho), John tem levado a igreja a uma transição para
práticas mais estruturadas e rigorosas quanto à membresia e à disciplina na igreja.
Os indivíduos agora começam o processo de membresia frequentando cinco classes
para novos membros. A Classe 1 se concentra no evangelho e em outras bases
doutrinárias. A Classe 2 se concentra na adoração, em como o todo da vida é
adoração e no que consiste a adoração coletiva em especial. A Classe 3 considera as
intenções de Deus para uma membresia bíblica da igreja. A Classe 4 explica a
abordagem da igreja sobre a liderança (presbíteros e diáconos). E a Classe 5 oferece
uma cartilha sobre as disciplinas espirituais.
Será que a Igreja Cristã Unida está pedindo que os indivíduos façam algo
extrabíblico, exigindo que todos frequentem essas cinco classes antes de se
tornarem membros? De modo algum. Considere o que está sendo solicitado de cada
membro em potencial em cada uma delas:
“A Bíblia diz que essas são as bases do evangelho e do cristianismo, pelo menos
pelo que entendemos deles aqui. É nisso que você crê?”· “A Bíblia diz que um
cristão existe para adorar a Cristo de modo individual e submisso, com seus
irmãos e irmãs em Cristo. É a esse Cristo que você submeteu sua vida?”
“A Bíblia diz que pertencer ao corpo de Cristo significa disponibilizar sua vida
para o bem de um corpo local. Você está disposto a fazer isso?”
“A Bíblia chama os crentes para se submeterem aos seus líderes e servirem uns
aos outros. Você está disposto a fazer isso?”
“A Bíblia diz que um cristão é alguém que fala com Deus e lê a sua Palavra.
Podemos encorajá-lo a se comprometer a fazer isso pelo seu bem e pelo
nosso?”Vários fatores contextuais obscurecem o evangelho na vida do povo de
Deus; portanto, mesmo num amplo estado muçulmano, fazer essas cinco
perguntas aos membros em potencial ajuda a esclarecer a questão um pouco
mais. Isso os força a parar e perguntar a si mesmos: “É nisso que eu realmente
creio? Estou, de fato, comprometido a seguir a Cristo e a amar seu corpo
conforme disse que estava?” Eu argumentei no Capítulo 4 que Cristo
autorizou a igreja apostólica a exercer supervisão sobre os crentes. Essas
classes são simplesmente um passo inicial para fazer tal supervisão. Elas
esclarecem o que significa ser um cristão diante de Deus e diante do corpo. E
não apenas isso, mas elas demonstram amor pastoral pelos membros em
potencial, levando-os a saberem exatamente com quem eles estariam “se
casando” ao se unirem à Igreja Cristã Unida.

Após as cinco classes, os membros em potencial são entrevistados por John ou


outro presbítero, juntamente com outras pessoas. Além das muitas perguntas
biográficas básicas, eles pedem que os membros em potencial forneçam seu
testemunho e uma explicação do evangelho. A entrevista oferece uma boa
oportunidade de expor a obscuridade em sua compreensão do evangelho. Ela
também ajuda os pastores a saberem como pastorear com mais cautela cada pessoa
que entra na igreja.
Eu me atrevo a dizer que essas cinco classes e a entrevista posterior são uma
parte necessária (ou pelo menos muito importante) daquilo que temos chamado de
“busca pela santidade”. Elas são uma tentativa de afirmar fidedignamente o amor
santo de Cristo com integridade, em vez de admiti-lo levianamente, e assim arriscar
chamar o que é pecaminoso de “santo”. Elas são o primeiro passo na direção de uma
supervisão significativa do discipulado do cristão. E são um modo de chamar o
indivíduo para se submeter a Cristo por meio da submissão à sua igreja apostólica
na terra. Sendo assim, essa abordagem levemente mais rigorosa em relação à
membresia da igreja, em Dubai, cumpre os mesmos propósitos que a abordagem
levemente menos institucional da igreja na Ásia Central. Ela serve para distinguir a
igreja do mundo. Esclarece quem pertence a Deus, em Cristo, e quem não pertence.
Ela ajuda a identificar o amor do evangelho e a distingui-lo de qualquer coisa que
não seja o amor do evangelho.
Dessa maneira, a Igreja Cristã Unida foi obrigada a disciplinar inúmeros
indivíduos recentemente por buscarem concepções falsas sobre o amor. Uma
mulher da igreja foi disciplinada por se casar com um homem descrente e
desapareceu silenciosamente da igreja. Outro membro foi disciplinado quando
abandonou sua esposa e filhos. Quando John lhe perguntou se ele tinha algum
sentimento de culpa em relação a sua esposa, filhos ou irmãos da igreja, o homem
negou furiosamente que tivesse qualquer responsabilidade por sua igreja,
principalmente por aqueles que ele não conhecia.
Essas ações disciplinares são, com certeza, decepcionantes e difíceis, mas
podemos confiar que esses pequenos exemplos de julgamento no presente ajudam a
salvar muitos do julgamento maior que está por vir. Elas demonstram amor pela
igreja, pelo membro excluído, pela comunidade descrente e por Cristo.

AMÉRICA DO SUL
Eis mais um exemplo num contexto totalmente diferente, que nos permitirá
extrair várias lições adicionais. A Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos,
Brasil, foi fundada em 1984, por dois missionários estrangeiros e um pastor
brasileiro. No presente, ela é pastoreada pelo pastor nativo, Gilson Carlos de Sousa
Santos. A IBG tem aproximadamente 130 membros, a maioria deles é brasileira, e a
maior parte deles se tornou cristã por meio do ministério da igreja. (Essa é a igreja
onde ouvi o sermão sobre o amor do Pai pelo Filho, no batismo de Jesus, que
descrevi no Capítulo 2).
A igreja sempre exigiu entrevistas como um requisito para alguém se tornar
membro, mas, como quase todos que se unem à igreja desde a sua criação têm sido
novos convertidos, a entrevista é essencialmente uma oportunidade para pedir uma
profissão de fé; para testar essa profissão com perguntas; para se alegrar com o
novo crente e para encorajá-lo nos primeiros passos do discipulado. Além disso,
visto que quase todos têm chegado como novos convertidos, a igreja nunca realizou
classes para novos membros. Ela nunca teve que explicar: “Isto é o que somos, em
comparação com outras igrejas que você possa ter conhecido.” Em vez disso, apenas
são oferecidas classes para novos crentes, com títulos como “Fé e Arrependimento”,
“O Evangelho”, “Conversão”, “Batismo”, “A Bíblia” e “A Igreja”. Na mente de todos os
novos convertidos, tornar-se um cristão é sinônimo de se tornar um membro da
igreja, assim como vimos na igreja da Ásia Central. O Brasil possui uma longa
tradição católica, com a qual muitas pessoas concordam nominalmente (quase três
quartos da população brasileira, em contraste com os 15% que se identificam como
protestantes), o que pode influenciar a dinâmica das conversas evangelísticas, bem
como determinados aspectos da classe para novos crentes.
Curiosamente, a Igreja Batista da Graça alcançou um tamanho razoável nos
últimos anos, de modo que os crentes de outras igrejas a têm notado e se decidido a
unir-se a ela. No entanto, isso vem se apresentando como dilema para a igreja, em
relação a como considerar sabiamente a condução do processo de união entre ela e
os membros em potencial. A igreja não quer exigir que os crentes batizados em
outras igrejas frequentem as classes para novos crentes, nem deseja falhar na
obrigação de supervisionar e pastorear responsavelmente nem mesmo os membros
em potencial. Por essa razão, ela faz perguntas como essas: Como podemos dar aos
crentes batizados de outras igrejas a oportunidade de conhecer exatamente o que
nossa igreja crê acerca do evangelho e todas as implicações disso antes de se
comprometerem conosco?
Como podemos dar a esses crentes a oportunidade de saber exatamente o que
ensinamos sobre as outras doutrinas importantes, e relacionadas ao evangelho, que
às vezes dividem os cristãos professos, tais como as Escrituras, a Trindade, a
conversão, os dos do Espírito ou a prometida volta de Cristo?
Como podemos dar a esses crentes a oportunidade de saber quais as obrigações
que Cristo nos obrigou a exigir deles à medida que pastoreamos suas almas?
Como podemos explicar a esses membros que estão chegando como os processos
de decisão funcionam nesta igreja, tanto na manutenção da vida e do discipulado do
corpo como nos momentos de discórdias e disputas, para que possa haver
harmonia?
Como podemos preparar os membros que estão chegando para o tipo de
responsabilidade para com este corpo e para o que eles podem esperar ao se
demonstrarem resistentes ao ensino e incorrigíveis diante dos mandamentos de
Cristo?
Em resumo, a IBG reconhece que Cristo lhe concedeu autoridade para
supervisionar, pastorear e instruir os crentes. Por essa razão, ela deseja garantir
sabiamente que os crentes batizados vindos de outras igrejas saibam o que a igreja
crê acerca dessas questões importantes desde o início, em vez de deixar que as
pessoas se associem e descubram mais tarde a importante área de divergência. Por
essas razões, a IBG está planejando exigir classes para novos membros em breve. O
que são as classes de novos membros, senão ferramentas amorosas para promover
a unidade no corpo?
Isso é particularmente importante para uma igreja no Brasil, nesse momento,
devido (1) à presença do liberalismo nas principais linhas luteranas, presbiterianas
e batistas que dominaram o cenário protestante até os anos 1970 e (2) ao
crescimento espantoso das igrejas carismáticas e pentecostais que pregam um falso
evangelho da prosperidade (ou algo parecido) desde os anos 1970. A IBG tem
encontrado nos últimos anos membros em potencial vindo de uma ou outra igreja
como essas, com concepções erradas sobre o cristianismo ou, pelo menos,
superficiais. Uma mulher que havia sido membro de uma igreja carismática durante
anos descobriu, durante o processo de entrevista, que não sabia o que o evangelho
era.

Ponto 2: Em outras palavras, as igrejas devem prestar


atenção ao quão complexa a cultura é, bem como ao quão
favorável ou desfavorável ela é em relação ao cristianismo, o
que exige que as igrejas garantam que tanto a igreja quanto o
cristão tenham a oportunidade de “explicar” adequadamente
a si mesmos.

A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO
Será que uma igreja centrada no evangelho, em Baltimore, praticará a
membresia e a disciplina da mesma forma que as igrejas centradas no evangelho em
Bangkok ou Bishkek? Por um lado, acho que a resposta é não. Consideremos apenas
um dos propósitos da membresia bíblica da igreja, o da identificação. Temos dito
que Cristo autorizou as igrejas a identificarem os crentes com ele mesmo e com o
povo dele. O cumprimento desse propósito pode parecer um pouco diferente de
situação para situação, conforme duas considerações da prudência: a complexidade
da sociedade e o fato de a sociedade ser favorável à igreja.
A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE
Para começar, quanto maior e mais complexa uma sociedade se tornar, mais
difícil será identificar os crentes com Cristo e com o povo de Cristo. Isso se torna
difícil por causa da transitoriedade profissional, da mobilidade social, do tamanho
da igreja, da expansão urbana, dos horários de trabalho mais exigentes, do
pluralismo religioso, do preconceito étnico, do multidenominacionalismo, das
igrejas hereges e com evangelhos falsos, do fato de as pessoas pularem de igreja em
igreja, e por fatores sociais, tais como o individualismo e o consumismo. É muito
simples, quanto maior e mais complexa a sociedade se tornar, mais difícil será saber
“quem está com quem”, é como tentar encontrar um rosto numa grande multidão,
em vez de num grupo pequeno.
Imagine que um homem jovem apareça na porta de sua igreja nos Estados
Unidos, hoje, e diga: “Sou um cristão, por favor, deixem que eu me associe a vocês.”
Você nunca o viu. Não conhece seus pais, seus amigos ou colegas. Afinal de contas,
ele mora a mais de trinta quilômetros de onde sua igreja se reúne e trabalha ainda
mais longe. Você pode lhe perguntar quais igrejas ele frequentou antes, mas você
não sabe qual “Jesus” e qual “evangelho” essas igrejas lhe ensinaram. Pode ter sido
um evangelho fácil, um evangelho do senhorio de Cristo, um evangelho emergente,
um evangelho do reino, um evangelho greco-ortodoxo, um evangelho liberal do
censo comum ou um evangelho mórmon. Ele lhe diz que continuará a frequentar
um empolgante ministério para solteiros nas noites de domingo, promovido por
outra igreja, o que lhe dará alguma indicação de seu nível de compromisso com sua
igreja. Além disso, ele gasta todo o tempo em que está acordado tentando ficar no
topo do mercado de trabalho. Como é a vida dele no trabalho? Será que é um pouco
diferente da de seus colegas descrentes? Você não espera saber como é, a menos
que algo drástico aconteça envolvendo a lei. Além do mais, não há tempo para
verificar isso com ele regularmente. Sua agenda é muito cheia. Se ele se unir à sua
igreja, você esperará ver seu rosto pairando mais tarde na multidão, nas manhãs de
domingo, e só isso. Talvez você se lembre do nome dele, talvez não.
Em comparação, imagine que um homem jovem apareça na porta de sua igreja
numa minúscula cidade da Ásia Central, dizendo: “Sou um cristão, por favor,
deixem que eu me associe a vocês.” Claro, isso não seria, de fato, na porta de um
prédio de uma igreja, seria na casa dele, após os dois compartilharem um grande
prato de arroz pilaf.343
Você sabe quem ele é, porque ele vive na mesma casa com paredes de blocos de
concreto e telhado de metal ondulado em que nasceu, a qual está a dois minutos de
caminhada da sua casa. Você saberia que seus pais foram convertidos, vindos de
uma forma supersticiosa e popular do Islã havia apenas dois anos antes, e que
durante três meses seu pai não havia recebido pagamento em dinheiro da fábrica de
toalha onde trabalha, mas que estaria sendo pago com toalhas, as quais ele vende na
rua, a fim de pôr comida na mesa da família. A falta de dinheiro não tem sido tão
preocupante para a família (eles estão acostumados com isso) quanto o fato de
encontrar uma boa maneira de compartilhar o evangelho com o barulhento avô
muçulmano antes que ele morra, o evangelho que eles ouviram de você pela
primeira vez. Você saberia que esse jovem homem é brilhante, porque você o
ensinou a jogar xadrez quando ele tinha dezessete anos, e ele o venceu na quarta
vez em que vocês jogaram; mas você também saberia que ele não tem perspectivas
profissionais devido à falta de ligação com os oficiais da cidade. Esses oficiais não
podem ser subornados com toalhas (não que você recomende o suborno). Quando
ele dissesse: “Sou um cristão”, você saberia exatamente o que ele estaria dizendo,
pois você tem discutido esse assunto com ele há meses, ou até anos, e ninguém mais
fez isso com ele no mundo em que ele vive.
Qual é a diferença entre essas duas situações? A primeira ilustra uma sociedade
que é religiosa, cultural e economicamente mais complexa. Não sei se eu diria que
uma sociedade é preferível a outra. Ambas possuem suas vantagem e desvantagens,
e nenhuma delas é a sociedade prometida na glória. A questão aqui é que é muito
mais difícil identificar alguém com Cristo de forma significativa na primeira
situação. Há muito mais coisas para explicar sobre os dois lados. Por essa razão,
poderíamos resumir como as igrejas nas sociedades simples e complexas podem
precisar praticar a membresia e a disciplina na igreja de modo diferente, dando uma
palavra de esclarecimento. Numa sociedade complexa, ambas as partes envolvidas
no acordo precisam dar mais explicações, como no caso: “Quando digo ‘cristão’, não
estou querendo dizer ‘isso’, mas sim ‘aquilo’.” Estou usando a palavra “explicar” de
forma vaga, é lógico. Não estou falando sobre algo que você possa fazer em cada
uma dessas conversas. Antes, estou buscando uma maneira para que nós, em nosso
cenário urbano pluralístico e de comunicação acelerada, possamos nos dar ao
menos o mínimo de informação que teríamos a respeito de alguém que cresceu em
nossa vizinhança.
A igreja de meu amigo Robin, em Deli, na Índia, uma cidade com muita
transitoriedade de pessoas, com dezoito milhões de habitantes, tenta preencher
essa lacuna de conhecimento exigindo um período de espera de seis meses antes de
admitir alguém na membresia (a IBG, no Brasil, faz a mesma exigência). A igreja
decidiu usar essa ferramenta específica como uma oportunidade para que a igreja e
o cristão conheçam um ao outro antes de fazer uma aliança de compromisso. Não
estou recomendando um período de teste. Na verdade, posso pensar em razões para
não termos esse período, mas eu diria que contextos diferentes podem exigir que as
igrejas encontrem maneiras diferentes de explicar o que significa entrar numa
aliança de membresia com a igreja, por meio do batismo e da Ceia do Senhor.
Correndo o risco de soar pouco inovador, uma solução simples, que funciona na
maioria dos contextos hoje em dia, é uma classe para novos membros. Chame-a de
“classe de explicação”, se você quiser. Também gostaria de recomendar muitas
ferramentas que as igrejas utilizavam um século atrás, como entrevistas,
declarações de fé, alianças eclesiásticas escritas, lista de membros e até mesmo
cartas de transferência. Todas essas são maneiras simples de a igreja explicar aos
membros em potencial: “Isto é o que somos”, e de eles explicarem à igreja: “Isto é o
que eu sou.”Exigir explicações cuidadosas de ambos os lados é no mínimo uma
questão de prudência. E deveria ser uma questão de integridade. Isso certamente é
uma questão de amor de ambas as partes, já que promove transparência, instrução
e unidade.

SOCIEDADE FAVORÁVEL OU DESFAVORÁVEL


Os mesmos princípios básicos se aplicam quando consideramos o quanto um
contexto poderá diferir do outro em termos da atitude da sociedade em relação ao
cristianismo. A sociedade, como um todo, é favorável ou desfavorável ao
cristianismo?
Considere duas sociedades, uma na qual há uma resistência veemente contra o
cristianismo e outra na qual ele é tolerado ou até mesmo favorecido. Quando uma
sociedade se opõe ao cristianismo, como no primeiro século ou nas terras
muçulmanas nos dias de hoje, haverá uma imensa falta de incentivo para que uma
pessoa se identifique com uma igreja. Quando ela favorece o cristianismo, como em
alguns rincões dos Estados Unidos e certamente em meio a famílias cristãs em toda
parte, a conversão e a membresia são incentivadas. E, é claro, há uma ampla escala
de variações entre ser favorável e desfavorável.
Quando me refiro aos incentivos ou falta de incentivos sociais, estou falando da
aprovação ou reprovação que uma pessoa receberá dos amigos, da família, dos
colegas e das autoridades civis por se tornar um cristão e ser batizado. Um menino
com sete anos de idade, de uma família cristã do Mississipi, sabe que receberá a
aprovação de seus pais por se tornar um cristão e pedir para ser batizado. Um
homem de vinte e sete anos, numa comunidade hindu em Orissa, na Índia, sabe que
não receberá tal aprovação. A conversão em primeira instância não é incentivada.
Em segunda instância ela é desestimulada.
De um lado, os crentes devem louvar a Deus por quaisquer incentivos sociais que
dirijam as pessoas na direção do cristianismo. Em todas as situações, esses
incentivos podem fazer parte daquilo que Deus está usando para atrair alguém para
si mesmo. Por outro lado, as igrejas devem exercer a prudência de tomar um
cuidado maior quando tais fatores estão presentes, porque a aprovação ou mesmo a
tolerância de uma sociedade em relação ao cristianismo pode obscurecer a
capacidade de perceber se uma pessoa está respondendo ao cristianismo ou a
alguma outra coisa. Será que Johnny quer ser batizado porque o Espírito Santo está
agindo verdadeiramente em seu coração ou porque sua irmã mais velha acabou de
ser batizada, e todos nós a parabenizamos e a levamos para comer em seu
restaurante preferido?
Se um dos alvos da membresia da igreja for identificar indivíduos com Cristo,
então a questão da clareza é muito importante. Quando Frank batiza alguém em
sua igreja na Ásia Central, o significado desse batismo fica claro para qualquer
pessoa de fora da igreja — para os pais muçulmanos desonrados, para os vizinhos
muçulmanos espantados, para o os clérigos locais enfurecidos e para os pérfidos
oficiais da cidade. Para eles, um batismo significa: “Ele está nos abandonando e
escolhendo aquela religião falsa, o cristianismo. Ele não é mais um de nós.” O
significado de um batismo também é bastante claro para qualquer pessoa de dentro
da igreja: “Ele está se identificando com o nosso Salvador. Ele é um de nós!” E está
bem claro para aquele que está sendo batizado: “Estou arriscando minha reputação,
família, profissão, perspectivas e até minha própria vida, mas o que mais posso
fazer? Somente Cristo é meu Salvador, e este é agora o meu povo.”Dificilmente
poderíamos dizer que o significado do batismo é assim tão claro no Ocidente atual.
Sim, ser um cristão é menos popular hoje em dia do que há cinquenta anos, mas
isso ainda está muito longe de ser como era no primeiro século ou como é para
nossos irmãos e irmãs cristãos nas terras muçulmanas.
O que é interessante é que alguns líderes de igreja no Ocidente agora apontam
para o fato de vivermos numa sociedade pós-cristã como justificativa para afastar
todos os elementos institucionais da membresia da igreja, como entrevistas, róis ou
classes. Eles dizem que essas coisas impedem uma comunidade de ser autêntica.
Talvez seja verdade que há menos incentivos sociais para nos unirmos a uma igreja
numa sociedade pós-cristã do que numa sociedade cristã, mas será que o Ocidente
pós-moderno é menos complexo? Será que ele está menos confuso acerca do
significado do cristianismo? Minha percepção é de que a sociedade ocidental está
ainda mais confusa acerca do que um cristão é. Não é que o cristianismo tenha
partido de nossa sociedade pós-cristã (se você quiser chamá-la assim). É que o
cristianismo tem tomado milhares de faces, assim como uma pessoa de pé numa
sala de espelhos. “Que o verdadeiro Jesus dê um passo à frente, por favor.” Até
mesmo muitos europeus seculares que desaprovam o cristianismo continuam
sendo membros de sua igreja nacional. Essa confusão total exige uma clareza maior,
não menor.

OS DIFERENTES DESAFIOS DA SUPERVISÃO


À medida que o planeta se torna cada vez mais urbanizado e globalizado, a
maioria dos líderes de igreja enfrenta os mesmos desafios crescentes quando se
trata de confirmar as profissões de fé fidedignas. Mas, na verdade, esse é o desafio
mais fácil. Até agora, tocamos apenas na questão dos limites da membresia da
igreja. O desafio mais difícil é saber como supervisionar os membros de modo
significativo, mês após mês e ano após ano. Como os pastores e presbíteros
supervisionam pessoas que estão a quase 50 quilômetros de distância? Como uma
congregação executa a disciplina com integridade sobre o membro 1281, com quem
ela nunca se encontra? Como uma jovem mãe encontra uma mulher mais velha
para discipulá-la, quando todas as mulheres mais velhas estão tão ocupadas?
Trabalhei durante vários meses como pastor interino numa das ilhas
relativamente ricas do Caribe. Essa ilha é bem conhecida pelo paraíso fiscal dos
bancos, o que significa que a igreja estava repleta de banqueiros, contadores e
outros profissionais. Eu era apenas um pastor interino; por essa razão, os membros
às vezes sentiam liberdade para ser um pouco mais sinceros comigo. Um dia,
durante o almoço, um membro do comitê financeiro da igreja se queixou dos
pastores que pediram vale refeição à igreja. Ele era contador, e sua empresa não lhe
oferecia vale refeição, disse ele. Ele era econômico. Costumava levar uma marmita
para o trabalho.
Aquele não seria o único dia daquela semana no qual eu almoçaria com um
membro da igreja com o objetivo de discipulá-lo. Eu estava prestes a ter dois ou
quatro outros almoços, sem mencionar cafés da manhã e jantares. Para ele, um
almoço como aquele era algo que acontecia de vez em quando ou pelo menos uma
vez por mês. Para mim, tal almoço era uma ferramenta importante para
supervisionar a alma das ovelhas. Num contexto urbano moderno, um pastor não
pode ir de casa em casa, catequizando as pessoas como fez Richard Baxter no século
XVIII, na Inglaterra. Os pastores hoje em dia marcam encontros para o café da
manhã e para o almoço.
Para crédito daquele homem, acredito que ele pagou o almoço naquele dia, mas
quis encorajá-lo, como membro do comitê financeiro, a olhar favoravelmente para
qualquer pedido dos pastores por vale refeição. Eu lhe disse que essa era a maneira
de um pastor pastorear empresários ocupados, e que ele não desejaria colocar o
pastor numa situação em que os outros sempre tivessem que pagar a conta. “Não
atarás a boca ao boi.” Esse não é o conselho que eu daria a um membro da igreja de
Frank ou Hanz. Vale refeição? Eles não conseguem nem pagar seus pastores!
Não quero reduzir o modo como a igreja define o amor para o universo
espectador apenas às classes para novos membros e ao vale refeição pastoral. Estou
simplesmente argumentando que, à medida que mudamos de lugar para lugar e de
época para época, as questões sobre membresia podem parecer um pouco
diferentes. Qualquer um que tenha passado um tempo pastoreando sabe que o
trabalho é em grande parte terreno, como as classes de novos membros e o
pagamento do quarto almoço só naquela semana, mesmo que sejam apenas uns
lanches.

Ponto 3: Ao mesmo tempo, as igrejas em toda parte estão


incumbidas de distinguir um povo santo, que sempre será
resistido pelo mundo, pela carne e pelo diabo.

A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO
Precisamos voltar para o ponto mais importante, que é aquele ponto
relativamente imaterial, sobre onde sua igreja está, seja em Baltimore, Bangkok ou
Bishkek. Toda igreja em todo lugar está incumbida de distinguir um povo que seja
santo ao Senhor. Toda igreja foi encarregada, por Cristo, de confirmar as profissões
de fé fidedignas e de supervisionar os professos, discipulá-los e excluí-los quando
necessário. Toda igreja está incumbida de definir o amor de Deus para o mundo, o
que significa que todos estarão se opondo ao mundo, à carne e ao diabo. Não
importa onde isso aconteça geográfica ou culturalmente, a igreja habita em
território inimigo, num ponto fronteiriço desprezado pelo senhor da terra. O
ataque de uma multidão hindu com tochas na mão em Orissa é diferente do
subterfúgio do cristianismo cultural melado do Mississipi; mas, curiosamente, a
igreja protege o evangelho contra esses dois tipos de ataques ao fazer a cada
membro em potencial a mesma pergunta: “Você tem certeza que está pronto para
tomar a sua cruz e dar a si mesmo para se identificar com Cristo e com seu corpo?”
Ela protege o evangelho ao tomar um grande cuidado para unir membros a si
mesma e ao supervisionar cautelosamente as almas, mês após mês, ano após ano,
por meio do ensino da Palavra de Deus.
A QUARTA IGREJA
A insignificância do contexto pode também ser ilustrada com a quarta igreja,
uma que mencionei anteriormente de forma breve. Em Deli, na Índia, meu amigo
britânico, Robin, pastoreia uma igreja multiétnica, de maioria indiana, com
aproximadamente oitenta membros e o dobro de frequentadores. Deli é uma cidade
imensa. Há inúmeros trabalhadores imigrantes. Por essa razão, Robin enfrenta
alguns dos mesmos problemas enfrentados por John em Dubai, como
transitoriedade e falta de compromisso. Mas na igreja de Robin, a falta de
compromisso é uma consequência do fato de os indianos se sentirem fortemente
identificados com a região geográfica de onde vieram. Muitos crentes vivem no sul
da Índia, mudando-se para Deli, no norte, por razões profissionais. Apesar de se
mudarem, mantêm um forte sentimento de identificação com sua igreja natal,
móvito pelo qual nunca se associam à congregação de Deli e nunca contribuem com
parte de seu salário. Em vez disso, eles mandam o seu dízimo para a igreja de seus
pais.
A congregação em Deli não é atacada pelo mesmo tipo de individualismo que
caracteriza muitas igrejas no Ocidente. Na verdade, as pessoas dessa sociedade
baseada em castas mantêm um forte sentimento de ligação com formas mais
tradicionais de identidade, como família, classe social e região. A pobreza os enviou
para outros lugares na busca de empregos, mas a estrutura social presente continua
forte. No entanto, é essa mesma estrutura social que impede os indivíduos de
tomarem posse do corpo de Cristo onde eles de fato vivem e respiram. Isso os leva a
abandonar o amor pelos irmãos e irmãs a quem eles veem.
A questão é que se uma sociedade for individualista, ou centrada na família, ou
regionalista, as pessoas se identificarão com Cristo e seu povo de modo relutante,
porque isso vai contra a nossa natureza pecaminosa. Essa relutância é universal. É
uma condição da própria queda. Quando Jesus nos disse para abandonar os
membros de nossa família, deixar que os mortos enterrassem seus próprios
mortos, vender tudo, tomar a nossa cruz e segui-lo, ele estava invadindo todas as
culturas, todas as nações, todos os grupos sociais e todas as eras da história,
chamando-nos para participar de uma nova história e de uma nova criação. E nessa
nova história e criação, tudo o que definia o “eu” na antiga criação agora está
disponível a todos. Isso não significa que eu — para me usar como exemplo — não
mais verei o mundo através dos olhos masculinos, caucasianos, americanos e (mais
importante) pecaminosos pertencentes à família Leeman. Mas sim que todas as
incrustações culturais ligadas a cada uma dessas categorias não são mais
determinantes. Elas não me prendem mais. Eu fui crucificado com Cristo. Nasci de
novo. Sou uma nova criatura. Somente Cristo tem a autoridade para determinar
totalmente o que sou do começo ao fim. Sempre pensarei como um homem, em
certo sentido, mas agora eu tomo minha masculinidade e minha cidadania
americana e tudo o mais que me define e os coloco aos pés de Cristo. “O que o
Senhor quer que eu faça com tudo isso? Defina a masculinidade para mim. Ajude-
me a administrar sabiamente minha cidadania americana.” É por isso que Paulo
podia dizer que no reino não há homem ou mulher, escravo ou livre, judeu ou
grego. Cristo determina quem somos, porque essa é uma identidade que será
exibida por toda a eternidade.
A nova identidade não é apenas uma nova identidade individual, é uma nova
identidade coletiva ou familiar. Por essa razão, Cristo dá à igreja local a autoridade
para nos ligar. Isso não é estranho? Todavia, é na igreja local na terra que essa nova
identidade cristã — individual e coletiva — encontra sua expressão plena aqui e
agora. É na membresia de uma igreja local que nós devemos “vestir” o amor e a
santidade que nos faz retratar o próprio Criador (veja as instruções de Paulo para as
igrejas locais em Colossenses 3, principalmente nos versículos 9 a 17). Isso significa
que o mais incrível é que eu, agora, compartilho uma união mais íntima com Priya,
uma mulher com cidadania zambiana de minha igreja, de ascendência indiana, do
que a união que compartilho com meu irmão de sangue, pelo menos por causa do
fato de, sendo meu irmão de sangue, nosso relacionamento terminará com a morte.
A membresia da igreja em Baltimore, Bangkok e Bishkek trata de afirmar esse fato
eterno e de dar substância a ele na vida cotidiana: o batismo e a ceia do Senhor
distinguem pessoas como Priya e eu. O ministério de ensino da igreja nos discipula,
e depois nós começamos a agir de modo a vivenciar a unidade amorosa de Cristo.
Isso é uma realidade, não importa onde a igreja esteja localizada. A membresia da
igreja confirma os crentes individuais como o povo de Deus, e depois ela os mostra
como testemunhas para a o mundo.

O QUE A IGREJA ESTÁ FAZENDO AO ACEITAR MEMBROS


Quando reduzimos a membresia da igreja à sua essência mais básica, ela é uma
lista de nomes confirmados pela igreja apostólica local, com o propósito de dar
testemunho do nome de Cristo. Os que estão do lado de dentro e os que são de fora
precisam saber quem pertence a Deus. Eles precisam saber quem está vestindo a
camisa do time de Cristo ou carregando sua bandeira, ou portando o seu nome.
Quando uma igreja recebe alguém na membresia por meio do batismo e da Ceia do
Senhor, os crentes estão dizendo ao indivíduo e a todo o mundo: “Ele é um de nós
— um seguidor de Cristo. Um representante de Cristo. Mundo, você tem o nosso
endosso como igreja para olhar para esse indivíduo como se ele fosse um retrato
daquilo que Jesus é. Bem aqui, nesta pessoa, você pode testemunhar a santidade, o
amor e a sabedoria de Deus” (veja Ef 3.10). Talvez seja apenas uma centelha da
santidade, do amor e da sabedoria de Deus que esteja visível, mas o fogo foi aceso.
Que coisa importante e estupenda é a membresia da igreja.
Quando reduzimos a disciplina corretiva da igreja à sua essência mais básica, ela
é a ameaça de remoção de um nome da lista ou a ação de removê-lo de fato. As
pessoas de dentro e de fora precisam saber que algumas ações e talvez alguns
indivíduos não pertencem a Deus. A disciplina corretiva da igreja começa com uma
palavra de repreensão e termina no ato de remoção. Que coisa importante e terrível
é a disciplina da igreja.
Num planeta bem suprido com canetas e papel, não tenho certeza da razão de
uma igreja não escrever os nomes de seus membros, a não ser em casos de ameaça
de perseguição e prisão. Tenho conversado com líderes de igreja que se opõem à
ideia de membresia da igreja como se isso fosse antibíblico. Afinal, não há menção
de um rol de membros no Novo Testamento. No entanto, o que está evidentemente
claro em todo o Novo Testamento é que os apóstolos estavam muito interessados
em garantir que os indivíduos certos fossem confirmados pela igreja, e que os
indivíduos errados não fossem. A igreja apostólica deveria ligar na terra aquilo que
seria ligado no céu, porque há uma lista de nomes muito clara no céu, encontrada
no o livro da vida (Ap 20.12-15). Alguns nomes estarão naquela lista e muitos não.
Além disso, a igreja está totalmente interessada em afirmar a presença de Cristo em
quem quer que ele tenha achado, de modo que igreja possa dar testemunho dele.
Em última análise, portanto, suponho que a questão não seja se existe uma lista
escrita, uma vez que fique claro para qualquer pessoa de dentro ou de fora da igreja
quem exatamente pertence a ela.
Ao reduzir a membresia e a disciplina da igreja a uma “lista de nomes”, não estou
querendo sugerir em momento algum que colocar ou tirar alguém da lista seja tudo
o que importa. Quero dizer exatamente o contrário: devido ao fato de os nomes
estarem na lista com o objetivo de representar ou dar testemunho de Cristo, a
igreja tem um interesse em supervisionar, disciplinar e equipar todos esses nomes
na direção de uma conformidade cada vez maior com Cristo, até que ele venha.

Ponto 4: A fim de confirmar os membros de modo


responsável, uma igreja deve, para proteger a mesa do
Senhor, assegurar-se de que os membros em potencial
compreendam com quem eles estão comprometidos por meio
de classes, declarações doutrinárias e palavras; a igreja deve
também garantir que os membros em potencial
compreendam o evangelho.

A CONFIRMAÇÃO DE UM MEMBRO
A fim de ajudar as igrejas a abordarem de modo responsável a tarefa de
confirmar, supervisionar e disciplinar os santos, gastaremos o restante deste
capítulo passando pelos processos de membresia e disciplina da igreja do ponto de
vista da igreja.
Algo em meus genes anti-institucionais reluta em chamar o que vem a seguir de
programa, mas acho que é isso o que estou oferecendo. É um plano para cumprir
um determinado propósito, e essa é a definição de programa. Espero que também
seja um cristianismo bíblico e responsável. Ele também é uma série de atividades
que, creio eu, são úteis para distinguir a igreja do mundo. O programa a seguir
almeja ajudar as igrejas a confirmarem indivíduos como cristãos e depois exibi-los
como testemunhas de Cristo. Algumas das ideias são explicitamente bíblicas;
algumas podem ser inferidas a partir do texto bíblico; e algumas são apenas
maneiras prudentes de cumprir a ordem bíblica de distinguir um povo do mundo.
Em termos de contexto, estou escrevendo principalmente para o contexto urbano
ocidental contemporâneo; todavia, tento estar atento aos demais.

REUNINDO-NOS PARA OUVIR A PALAVRA DE DEUS; DISPERSANDO-NOS


PARA PROCLAMÁ-LA A membresia da igreja começa com a Palavra de
Deus, porque a vida sempre começa e se desenvolve à medida que o
Espírito de Deus usa a Palavra de Deus para convencer do pecado e
recriar a vida na imagem de Deus. Juntos, a Palavra de Deus e o Espírito
de Deus criaram o universo. Juntos, a Palavra de Deus e o Espírito de
Deus deram origem à nova criação nos corações de todos aqueles que se
arrependem e creem. Os descrentes não podem se voltar para Cristo sem
ouvir a Palavra de Deus pregada a eles nem podem se voltar para ele sem
a obra graciosa de seu Espírito. Os discípulos são feitos e crescem por
meio da Palavra de Deus e do Espírito de Deus.
Os discípulos de Cristo se dispersam entre as nações para chamar pecadores, pela
fé, com a voz de Jesus e o poder de seu Espírito. Quando esses pecadores se
arrependem e se reúnem no nome do Pai, do Filho e do Espírito, por meio do
batismo, a igreja passa a existir. No entanto, a obra da igreja, da Palavra e do
Espírito não está consumada. Do mesmo modo como os discípulos começaram, eles
devem continuar. Agora eles devem ensinar tudo o que Cristo ordenou. Eles se
reúnem principalmente para ouvir a Palavra de Deus, para adorar e para se
coformarem à imagem de Cristo, por meio do Espírito de Cristo, e depois eles se
dispersam, a fim de chamar outros, com a voz de Cristo, por meio do Espírito de
Cristo, para também vir e adorar. O bumerangue vai e depois retorna.
Você quer uma membresia de igreja que defina o amor de Deus para o mundo?
Então centralize sua igreja na Palavra de Deus. Isso começa no púlpito, sim; mas a
Palavra de Deus, depois, precisa reverberar em conversa após conversa, por toda a
igreja, até que ela instrua sua própria vida e respiração; até que ela informe as mãos
em toda a sua capacidade de serem mãos, os ouvidos em toda a sua capacidade de
serem ouvidos e os pés em toda a sua capacidade de serem pés. Então, as mãos, os
ouvidos e os pés se dispersam, às vezes juntos e às vezes separados, para
proclamarem essa mesma Palavra e reunir outros mais.

NOVOS CRENTES E AS CLASSES PARA NOVOS MEMBROS


Cristo encarregou a igreja de ensinar aos discípulos todas as coisas que ele
ordenou, incluindo o que significa estar unido ao corpo de Cristo. Uma classe para
novos crentes ou uma classe para novos membros é uma ferramenta da prudência
para ensinar os crentes acerca de diversos aspectos da vida da igreja local. As classes
para novos membros
São úteis para ensinar com clareza o que a igreja acredita acerca de Jesus e de
seu evangelho.
São úteis para ensinar aos recém-chegados todas as coisas que uma igreja
acredita e, por meio disso, promover a unidade entre todos os que se unem a
ela.
São úteis para ensinar aos recém-chegados o modo como a igreja espera que os
membros vivam uns em relação aos outros. Promovem cuidado e interesse
mútuos.
Podem ser usadas para distinguir uma igreja específica das outras, de forma
teológica e denominacional. Muitos líderes de igreja nos dias de hoje estão
ansiosos para minimizar essas distinções e diferenças; no entanto, tenho
observado que as pessoas, principalmente as descrentes, apreciam essa
honestidade. Estar no caminho certo acerca dessas distinções demonstra
integridade. Essas classes ajudam a evitar problemas que possam surgir mais
tarde.
Podem ser usadas para explicar questões sobre a política organizacional e como
as decisões são tomadas numa igreja específica. Fazer isso promove unidade no
corpo. Quando as discórdias e as disputas surgirem na vida do corpo, todos
saberão que elas serão resolvidas.

Cristo chama os crentes para se submeterem à autoridade da igreja local. Por


essa razão, não creio que seja uma imposição biblicamente injustificada pedir que os
membros em potencial frequentem uma classe para novos crentes ou uma classe de
novos membros. Na verdade, essa é uma forma de cumprir a responsabilidade da
igreja de ensinar sobre a relação entre a igreja e o indivíduo, e discípulá-lo desde o
início.
Tenho ouvido que os crentes contestam a exigência de participarem de uma
classe de novos membros; todavia, nunca ouvi falar de novos crentes que fizessem
tal objeção. Os novos crentes geralmente ficam felizes em aprender tudo o que
puderem e em se submeter rapidamente a tais oportunidades. Infelizmente, ao que
parece, são os crentes antigos que se opõem, ou porque não estão acostumados com
essa ideia ou porque eles se opõem ao fato de exigirem que eles façam qualquer
coisa. Se esse for o caso, eles estarão demonstrando uma falta de submissão que é
contrária à própria essência de uma membresia de igreja e de um cristianismo
bíblico.
Quer essa classe introdutória seja chamada de “classe para novos crentes”, quer
seja chamada “classe para novos membros”, o importante é compreender que elas
promovem uma compreensão compartilhada sobre uma série de tópicos e,
portanto, promovem a unidade. Nesse sentido, elas facilitam o amor. Essas classes
não são essenciais, e pode haver contextos em que elas sejam desnecessárias e
embaraçosas. Por exemplo, eu posso imaginar uma igreja numa casa, com doze
pessoas, no coração de uma grande cidade ocidental, na qual uma classe para novos
membros poderia ser indevidamente formal e impraticável. Talvez o que seja
necessário nesse tipo de cenário é uma série de conversas deliberadas e planejadas
sobre o que a igreja crê e sobre o que significa estar comprometido com aquele
corpo local.
Entretanto, eu encorajaria as igrejas implantadas e as igrejas nas casas a terem
conversas deliberadas desde o início, imitando a estrutura de uma classe para novos
membros, perguntando: “Qual é a nossa declaração de fé? Como as decisões serão
tomadas? Como prestaremos contas uns aos outros? Com quem nos
associaremos?” As respostas a essas perguntas devem ser desenvolvidas dentro do
DNA de uma igreja por causa do amor e da unidade. Se uma igreja espera o
crescimento de dez para cinquenta membros até responder formalmente a essas
perguntas, ela poderá acabar descobrindo que seus cinquenta membros não
compartilham das mesmas respostas. Ouvi que isso aconteceu mais de uma vez. As
igrejas devem ser claras a respeito da prática da disciplina na igreja principalmente
com os membros que estão chegando. Cada indivíduo que se une a uma igreja deve
ser informado com muita clareza desde o início: “Nós praticamos a disciplina na
igreja. Fazemos isso por tais razões. Fazemos isso dessa maneira e por tais
motivos.”Deixe-me tentar ilustrar o que essas classes realizam da seguinte maneira:
antes de me casar, nosso pastor de aconselhamento pré-nupcial incentivou minha
noiva e eu a desenvolvermos um orçamento familiar bem no início do nosso
casamento, mesmo que soubéssemos não ter todo aquele dinheiro para distribuir
entre as categorias. Por quê? Porque nós dois havíamos tomado decisões sobre
como gastar com base num conjunto implícito de valores pessoais durante anos. Eu
dava um alto valor para o fato de comer fora, o que se refletiu em meu orçamento
pessoal. Ela dava um alto valor às férias, o que se refletiu no orçamento dela. Ter
uma conversa sobre orçamento nessa fase inicial exigia que minha esposa e eu
fôssemos claros acerca de nossos diferentes valores nesse ambiente tranquilo de
planejamento compartilhado — e minha esposa e eu somos apenas dois, não 10, 12
ou 200. Um orçamento familiar é evidentemente uma questão de prudência, e as
classes para novos membros ou para novos crentes também o são, além de
promoverem unidade e amor.

A DECLARAÇÃO DE FÉ
O mesmo princípio permanece em relação à declaração de fé de uma igreja. Uma
igreja serve melhor aos seus membros ao ser explícita sobre o que ela crê. As
declarações de fé são bíblicas? Elas podem ser pelo menos inferidas das Escrituras:
Jesus estava interessado nos detalhes sobre quem Pedro cria que ele era (Mt
16.15-17).
Paulo disse aos gálatas para rejeitarem qualquer um que ensinasse um
evangelho diferente daquele que ele ensinou (Gl 1.6-9). Aparentemente, ele
supunha que eles compartilhavam uma mesma compreensão acerca do que era
o evangelho.
João disse às igrejas que elas deveriam acreditar que Jesus é o Cristo, que ele
veio em carne e que ele é o Filho de Deus. Ele também insistiu para que as
igrejas tivessem uma doutrina correta sobre o pecado. Se qualquer pessoa
alegasse não ter pecado, ela seria mentirosa (Jo 3.16; 1 Jo 1.8-9; 4.2, 15; 5.1,
10, 13; 2 Jo 7, 10).
Pedro e Judas dedicaram cartas inteiras ao preparo das igrejas contra os
mestres que possuíam um entendimento falso da vida e da doutrina cristã.
O autor de Hebreus adverte seus leitores: “Não vos deixeis envolver por
doutrinas várias e estranhas” (Hb 13.9).
Jesus advertiu contra o falso ensino dos nicolaítas e de Jezabel (Ap 2.15, 20).
Paulo disse que pontos de vista errôneos sobre a escatologia fariam com que a
pregação e a fé dos coríntios se tornassem vãs (1 Co 15.12ss.).

Nenhum versículo do Novo Testamento afirma: “As igrejas devem ter uma
declaração de fé”, mas as epístolas ensinam regularmente que as igrejas precisam
abraçar a doutrina correta e evitar todas as doutrinas falsas. Embora as epístolas
corrijam e ensinem a doutrina por direito, elas também falam como se as igrejas
tivessem uma compreensão comum acerca da doutrina dos apóstolos (veja também
Gl 2.2, 7-9).
Às vezes, os crentes se queixam de que as declarações de fé sistematizam ou
forçam excessivamente a narrativa bíblica. Outros gostam de dizer que “não
possuem um credo, mas somente a Bíblia”. Ambas as respostas, ouso dizer,
demonstram uma falta de compreensão de si mesmos. Todo mundo tem uma
declaração de fé. Todos creem em coisas específicas a respeito das Escrituras, de
Deus, da criação, da Queda, da pessoa e da obra de Cristo, da igreja e dos últimos
dias. E não apenas isso, mas essas crenças pessoais sistematizam invariavelmente as
Escrituras. Podemos chegar para qualquer cristão e perguntar “Quem é Deus?”, ou
“O que é a Bíblia?”, ou “Como podemos ser salvos?”, e ele terá uma resposta que vai
além de uma coleção de versículos bíblicos. Reconhecidamente, nem todo cristão
poderia articular suas respostas a algumas dessas perguntas. Com esse propósito,
uma declaração de fé cumpre a obra de pastoreio sábio ajudando as pessoas a
fazerem isso e, consequentemente, determinando se suas respostas se ajustam às
crenças de uma determinada igreja.
Embora a existência de uma declaração de fé seja uma questão de inferência
bíblica, a criação de uma declaração de fé nos dirige para o domínio da prudência.
Em conformidade com isso, uma boa declaração de fé é uma tentativa de equilibrar
inúmeras considerações opostas. Ela almeja ser abrangente e concisa, universal e
específica, histórica e atual, cautelosa e simples. Acima de tudo, uma declaração de
fé deve pedir que os crentes afirmem somente aquilo que a Bíblia lhes pede para
afirmar. Alcançar esse equilíbrio exige, sabiamente, alguma sensibilidade em relação
ao próprio contexto.
Abrangente e Concisa. Por um lado, uma declaração de fé deve fornecer uma
síntese abrangente das principais categorias da doutrina cristã, visto que as
doutrinas cristãs estão interligadas. Uma declaração de fé poderia parecer uma lista
numerada, mas ela é muito mais do que isso. Ela também é uma teia de aranha na
qual cada doutrina condiciona todas as outras doutrinas344. Toque uma teia de
aranha em qualquer um dos pontos e toda a teia vibrará. Semelhantemente, se
tocarmos a doutrina da pessoa de Cristo, a nossa doutrina sobre a obra de Cristo
tremerá com as implicações daquela. Se tocarmos a doutrina do amor de Deus,
tudo, desde a nossa compreensão acerca do evangelho até a nossa política
organizacional da igreja, será abalado. À luz de tamanha interligação, uma boa
declaração de fé apresenta uma maneira unificada de olhar para a vida cristã e para
o mundo através das Escrituras, ou pelo menos uma compreensão que a igreja tem
acerca das Escrituras. Ela ajuda os crentes a perceberem que todas essas questões
estão interligadas.
Por outro lado, uma declaração de fé deve fazer isso de modo breve e conciso. Ela
deve fornecer indicadores doutrinários em vez de explicações doutrinárias. Ela
poderia afirmar “justificação somente pela fé”, mas não necessita explicar
totalmente esse assunto. O alvo é simplesmente permitir que as pessoas saibam a
posição da igreja.
Universal e Específica. Por um lado, uma declaração de fé deve afirmar aquelas
coisas que são universais para todos os crentes em todos os lugares, tal como a
proposição de que Cristo é totalmente Deus e totalmente homem — uma pessoa
com duas naturezas345.
Por outro lado, uma declaração de fé talvez precise responder aos desafios
doutrinários relevantes para um tempo ou lugar específicos. Por exemplo, hoje,
uma igreja da África do Sul que é cercada por igrejas pentecostais que pregam um
evangelho da prosperidade pode decidir articular o evangelho ou uma doutrina
sobre os dons espirituais de uma forma que contrabalance os excessos e os erros
dessas igrejas. Obviamente, essas decisões precisam ser ponderadas
cuidadosamente.
Histórica e Atual As declarações de fé devem ser tanto históricas quanto atuais.
Por um lado, há sabedoria e humildade em posicionar uma igreja dentro da vasta
torrente da tradição teológica cristã, por meio de uma declaração de fé antiga,
mesmo com o risco de usar uma linguagem antiquada. As nossas igrejas fazem bem
em admitir que não temos examinado a Bíblia por nossa conta. Em vez disso,
permanecemos sobre os ombros dos santos fiéis que nos precederam.
Por outro lado, a maioria dos membros se identifica mais facilmente com a
linguagem escrita em vernáculo, o que pode recomendar o uso de uma nova
declaração de fé. Eu encorajo as igrejas a procurarem maneiras de combinar ambas
as considerações.
Cautelosa e Simples. Por um lado, uma declaração de fé deve articular
cuidadosamente o que uma igreja crê, reconhecendo a capacidade de os falsos
mestres explorarem excessivamente uma linguagem abrangente e vaga. Eis aqui a
doutrina completa sobre Deus de uma igreja americana enorme, pelo menos
conforme está afirmada naquilo que eu chamaria de sua declaração de fé
“principal”: “Deus é maior, melhor e está muito mais perto do que podemos
imaginar.”Para seu próprio crédito, essa mesma igreja também possui uma
declaração mais extensa e abrangente “por debaixo dos panos” (disponível mediante
pedido). O que está errado com a declaração “principal” dessa igreja? Ela é
certamente amigável e calorosa. O problema é que qualquer pessoa, desde um
unitariano até um hindu poderia afirmá-la (com as qualificações corretas).
Por outro lado, as declarações de fé devem ser simples e claras. Os crentes
precisam ser capazes de compreender o que estão afirmando.
Contextual. Quão abrangente e quão concisa? Quão cautelosa e quão simples?
Em certa medida, encontrar o equilíbrio correto depende do contexto. Uma
congregação alfabetizada e com escolaridade poderia exigir um equilíbrio diferente
de uma não alfabetizada e sem escolaridade. Ao afirmar isso, receio que as
tendências democráticas e antielitistas que ressoam pelo Ocidente levem muitos
líderes de igreja a errarem em relação à simplicidade e a não exigirem muito de suas
congregações. Como resultado, exigimos que nossas igrejas contemporâneas,
formadas nas universidades, compreendam menos do que os escritores das
Epístolas do Novo Testamento exigiam de seus leitores. O quão comparativamente
mais escolarizados presumimos que fossem os primeiros leitores (ou ouvintes) de
Hebreus? Devemos exigir menos de nossas igrejas do que o autor de Hebreus
exigiu?
Bíblica. Acima de qualquer outra coisa, uma igreja jamais deve ligar a consciência
de um crente naquilo que as Escrituras não a ligam. As declarações de fé nunca
devem ir além das Escrituras. Além disso, as declarações de fé geralmente fazem
bem em exigir que os crentes afirmem somente aquelas coisas que possuem um
vasto grau de testemunho bíblico, em vez de apenas um ou dois textos-prova.

A ALIANÇA DE UMA IGREJA


Se uma declaração de fé articula o que uma igreja crê, uma aliança com a igreja
elucida a forma como ela concorda em viver sua vida comunitária.
No último capítulo, discuti o conceito teológico de uma aliança com a igreja e
utilizei a palavra aliança para caracterizar a natureza de nossos compromissos de
uns para com os outros na igreja local. Esse compromisso entre os crentes e a igreja
é a realidade biblicamente ordenada. Se uma igreja escolhe dar corpo ou articular
esse compromisso em algo semelhante a um documento de uma página, isso é uma
questão de prudência. Todavia, isso é uma questão razoável da prudência, com
todos os seus prós e contras, principalmente se a igreja faz um uso regular da
aliança, e não simplesmente a afirma e depois a deixa guardada numa gaveta de
arquivo. Minha própria igreja, por exemplo, lê a nossa aliança em voz alta toda vez
que compartilhamos a Ceia do Senhor. Isso significa que falamos aquelas promessas
uns aos outros mais de doze vezes ao ano. Como resultado disso, suas restrições são
familiares a todos nós. Ainda assim, se o povo de Deus escolhesse sacramentar os
seus compromissos numa aliança escrita, como os personagens bíblicos fizeram em
várias ocasiões (por exemplo: Gn 21.27; 1 Sm 18.3, 23.18; 2 Sm 5.3; Ed 10.3; Ne
9.38), isso continua sendo uma questão de liberdade cristã.
A ENTREVISTA PASTORAL
A fim de executar fielmente suas obrigações bíblicas de ligar e desligar, uma
igreja deve perguntar aos crentes professos em que eles acreditam e como eles
pretendem viver. A formalidade ou informalidade dessa conversa pode ficar na
dependência do contexto e do juízo, mas o fato de que isso deve acontecer de
alguma forma faz parte integrante do chamado da igreja para proteger o
testemunho do Evangelho, confirmando somente aqueles que fazem profissões de
fé fidedignas.
À luz das complexidades sociais que caracterizam a maior parte do mundo hoje
em dia, deixe-me valorizar isso um pouco mais. Uma vez eu me uni a uma igreja
indo à sua frente numa manhã de domingo, quando o pastor me perguntou diante
de toda a congregação: “Então, você quer entrar para a igreja?”“Sim, senhor”,
respondi.
“Você acredita que Jesus é o Senhor e que ele morreu pelos seus pecados?”“Sim,
senhor.”Finda essa entrevista de sondagem, ele se virou para a congregação e disse:
“Todos aqueles que são a favor de confirmarmos Jonathan como membro de nossa
igreja, digam sim.” Um exemplo fantástico do congregacionalismo em ação, correto?
De modo algum. São práticas descuidadas como essas que roubam a integridade da
igreja e conduzem ao nominalismo e à hipocrisia. (A igreja específica que acabei de
descrever não existe mais, pelo menos não da mesma forma). Os líderes das igrejas
fariam bem em considerar o tanto de cuidado que os empregadores tomam antes de
oferecerem vagas de emprego ou o quanto de cuidado as empresas de seguro
tomam antes emitir apólices. Será que a igreja não tem muito mais em jogo do que
qualquer empregador ou companhia de seguros? Em nossas cidades anônimas e
ocupadas, as igrejas devem tirar, pelo menos, de trinta a sessenta minutos para
sentar com todos os crentes professos e lhes perguntar sobre sua formação, sua
família próxima e sua história, sobre sua conversão, seu batismo, sobre como tem
sido o seu discipulado desde a conversão, com quais igrejas ele esteve envolvido e se
ele afirmará a declaração de fé e a aliança da igreja. Mas a pergunta mais importante
do que qualquer outra é: “O que é o evangelho?”O nosso alvo com essas perguntas é
discernir se a pessoa está à altura do padrão de Mateus 18.3-5. Ela professa o nome
de Jesus e sua vida apresenta uma renúncia básica em relação ao mundo de pecado,
tendo ela se tornado como uma criança que confia em Jesus? Ela não precisa ser
perfeita, mas deve estar arrependida, o que pode ser visto, por exemplo, em sua
capacidade de perdoar os outros (vs. 23-35).
Não há coisa alguma nas Escrituras que diga explicitamente que tal entrevista ou
conversa deve acontecer com um presbítero, mas podemos inferir isso da Bíblia. São
os pastores que permanecem à porta do aprisco para proteger as ovelhas e afastar
os lobos. Visto que os presbíteros foram encarregados de supervisionar todo o
rebanho, eles são aqueles que estão mais adequadamente equipados para liderar a
congregação apostólica no uso das chaves do reino para ligar e desligar. Há razões
previdentes também para se usar um presbítero: uma entrevista de membresia
estabelece uma base pessoal para pastorear esse indivíduo nos meses e anos
seguintes.
Assim como em relação às classes para novos membros, tenho ouvido falar de
crentes antigos que se opõem aos que os entrevistam, mas nunca de crentes novos.
Isso pode parecer estranho e indesejável para eles, talvez até mesmo anticristão.
Isso é o resultado da falha das igrejas em ensinar os membros sobre o que as igrejas
são. Um dos pastores que mencionei anteriormente nesse capítulo recebeu
recentemente um e-mail com a seguinte crítica ao processo filiação à sua igreja,
especificamente em relação à entrevista:
Nunca estive numa igreja onde você se sente como se exigissem que você passasse num teste
como cristão a fim de pertencer à família. Espera-se que a experiência na igreja como um todo
seja uma experiência amorosa e cuidadosa. O fato de nem todos os membros serem anunciados
de uma só vez deixará obviamente os outros membros com perguntas... Certamente você
precisa primeiro convidar amorosamente os membros para a igreja e, depois, se você sentir que
eles precisam de orientação ou aconselhamento extra para crescer como cristãos, você pode
estabelecer alguma coisa... Por essa razão, não entendo por que minha esposa deva ser colocada
contra a parede com perguntas feitas diretamente a ela e, quando ela não consegue respondê-
las, ela não é carinhosamente liberada, mas recebe um olhar vago, seguido de mais perguntas.
Você sabe o quanto você a fez se sentir indigna?

Talvez o pastor dessa igreja específica tivesse modos não muito receptivos. Se for
assim, ele deve corrigir isso. O que fica evidente é que o homem que escrevia a carta
nunca foi ensinado por suas igrejas anteriores que se submeter ao senhorio de
Cristo significa se submeter ao procurador autorizado por Cristo na terra — a
igreja apostólica local. Não há nenhum senso da responsabilidade que a igreja tem
de guardar o evangelho, e não há espaço na mente desse homem para a
possibilidade de autoengano, para o fato de as pessoas poderem acreditar que são
crentes quando não o são. Por essa razão, as perguntas que o pastor fez à sua
esposa o ofenderam.
Se eu posso adivinhar, ele estava provavelmente embaraçado pelo fato de sua
esposa não conseguir ter respondido às perguntas básicas do pastor, como: “O que é
o evangelho?” Presumo que seja isso porque, mais adiante, em sua carta, o homem
escreveu: “Você também disse que, visto que minha mulher havia se encontrado
com uma senhora cristã madura algumas vezes, nós nos encontraríamos de novo. É
como se precisássemos passar por uma nova prova antes de poder ser membros.”
Isso soa como se o pastor não tivesse certeza de que a esposa do homem fosse
cristã, que é motivo de ele tê-la encorajado carinhosamente a passar algum tempo
com outra mulher cristã primeiramente. Mesmo que o pastor estivesse errado em
seu julgamento, ele não estava fortalecendo sua fé ao garantir que ela soubesse
como articular o evangelho? Ele não a estaria equipando para o evangelismo e para
a maternidade de seus próprios filhos? Por que, senão por orgulho, um marido
cristão se oporia a um pastor que estivesse pedindo que sua esposa fosse
discipulada por outra mulher? Ele provavelmente nunca havia sido ensinado que o
amor é centrado em Deus; que o amor chama os crentes para uma conformidade
obediente com Cristo; que Cristo nos deu sua igreja para cumprir exatamente esses
propósitos em nossas vidas e para participar do cumprimento deles na vida dos
outros.
O que um pastor deve fazer quando alguém que está sendo entrevistado é
incapaz de articular o evangelho? Para começar, ele pode tentar estimular essa
articulação com perguntas de investigação. Uma mulher que ainda estava
aprendendo inglês veio à minha igreja para uma entrevista de membresia. Quando
lhe perguntei o que era o evangelho, ele respondeu: “O evangelho?”, como se não
reconhecesse a palavra em si. Então, eu respondi simplesmente: “As boas novas de
Jesus Cristo.” Ela então forneceu uma explicação razoável sobre a morte e a
ressurreição substitutiva de Cristo. A conversa me deu a oportunidade de garantir
que dali em diante ela conhecesse a palavra “evangelho”. As entrevistas fornecem
boas oportunidades de ensino.
Quando estão respondendo, as pessoas às vezes podem omitir uma parte
importante do evangelho, tal como a ressurreição ou o chamado para o
arrependimento. Mais uma vez, as perguntas de investigação podem aumentar
amorosamente sua compreensão, bem como ser utilizadas para ensinar. Quando
uma pessoa falha em mencionar algo sobre o arrependimento, eu posso dizer algo
como: “Imagine alguém que alegue crer na mensagem de que Jesus morreu pelo
nosso pecado, mas, após ser batizado, nada muda em sua vida. Ele continua a
dormir com sua namorada; não demonstra interesse algum em amar os fracos;
evita se reunir com os santos e, de forma geral, vive exatamente como um
descrente. O que você diria sobre ele?” Na maioria das vezes, a pessoa entrevistada
diz algo como: “Isso não pode ser assim, ele não entendeu a questão principal.” A
pessoa entrevistada talvez não conheça a palavra arrependimento, embora
compreenda sua ideia básica.
De forma geral, os pastores e presbíteros devem exercer um grau significativo de
caridade em suas entrevistas. Não estamos buscando confirmar teólogos, mas
cristãos. Quando os discípulos perguntaram a Jesus quem era o maior no reino dos
céus, ele respondeu: “Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o
maior no Reino dos Céus. E quem receber uma criança, tal como esta, em meu
nome, a mim me recebe” (Mt 18.4-5). Em outras palavras, não estamos ouvindo
uma articulação perfeita da verdade teológica, estamos ouvindo o início do
quebrantamento e da humildade diante de Deus, concebido pelo Espírito Santo.
Estamos ouvindo aqueles que são pobres de espírito; que lamentam o seu pecado;
que sabem humildemente que não estão autorizados a ter o perdão de Cristo ou a
membresia na igreja e que têm fome e sede da justiça de Cristo (Mt 5.3-6).
Quando o Espírito dá essa pobreza de espírito a alguém, ele também o leva a
perceber que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo”, que “derramou [o sangue] em
favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 16.16; 26.28). Se as pessoas que
estão sentadas para a entrevista estiverem verdadeiramente com fome de uma
justiça que não vem delas mesmas, mas ainda não tiverem descoberto que essa
justiça vem de Cristo, ainda não será a hora de trazê-las para a membresia. É hora
para estudos extras, o que o verdadeiramente pobre de espírito sempre acolherá de
bom grado. Quando elas finalmente chegarem com o nome de Cristo em suas bocas,
a igreja poderá se alegrar em confirmá-las, já que elas serão aquelas que citarão o
seu nome como o nome daquele que lhes estendeu misericórdia; aquelas que
viverão em pureza de coração; que serão pacificadoras; e que de bom grado sofrerão
perseguição por causa da justiça. Elas serão aquelas que darão testemunho de
Cristo, sendo sal e luz para o seu reino, trazendo glória ao Pai que está nos céus (Mt
5.13-16). É exatamente aqui, à porta do aprisco, que os pastores são chamados para
realizar a obra de proteção das ovelhas e de ficarem firmes contra os lobos.
Finalmente, uma entrevista de membresia oferece uma oportunidade para que
uma pessoa afirme formalmente a declaração de fé e a aliança da igreja, e se
submeta a elas, em qualquer que seja a forma cultural que comunique com mais
clareza essa autoidentificação. Na maior parte do mundo de hoje, as pessoas dão
sua aprovação por meio de uma assinatura. Essa é a maneira mais comum e
reconhecida de dizer: “Reconheço todas as palavras que estão neste pedaço de papel.
Dou a mim mesmo para apoiá-las com minha vida e ações.” Embora não haja uma
autorização bíblica direta para que as igrejas exijam uma assinatura, isso faz parte
do senso comum, já que colocamos a nossa assinatura nos compromissos de
natureza mais ou menos importantes, tais como cheques bancários, requerimentos
para a faculdade e formulários de impostos.

OUTRAS QUESTÕES ESPECÍFICAS DO SISTEMA DE LIDERANÇA Após a


conclusão da entrevista pastoral de membresia, os mecanismos
específicos da política organizacional de uma igreja entram em ação. Se
for um sistema de liderança episcopal, o supervisor poderá receber o
recém-chegado na igreja nesse exato momento. Se for uma igreja
governada por presbíteros, como no sistema de liderança presbiteriano,
um presbítero levará sua recomendação de volta à seção para uma decisão
final.
Se for um sistema congregacional liderado por um presbítero, ele poderá levá-la
a todos os presbíteros, que considerarão a inscrição e depois, por sua vez, farão sua
recomendação à congregação para uma confirmação final. Se a igreja for liderada
por um único pastor, ele fará a recomendação à congregação para uma decisão final.
Minha compreensão das Escrituras me levaria a endossar um modelo
congregacional liderado por um presbítero, mas não gastarei tempo com isso.
Antes, eu encorajaria todos esses modelos a buscarem maneiras práticas de
permitir que a igreja participe na confirmação de cada pessoa que estiver entrando
na membresia. Mesmo o bispo episcopal, que acredita que a igreja está presente em
sua própria pessoa, sabe que ele não é, enfim, a congregação em si. Por essa razão,
ele deve desejar que a própria congregação participe tanto quanto ela for capaz na
confirmação de um novo membro no corpo, um novo representante de Cristo. Ele
deve desejar que toda a congregação perceba que o nome e a reputação de Cristo
agora estão em jogo na vida dessa pessoa, e que cada membro da igreja tem agora
um interesse em seu discipulado e em sua perseverança na fé. A vantagem do
sistema de liderança congregacional, é claro, é que toda a congregação é chamada a
participar dessa confirmação por meio de um voto. Mesmo que você, na função de
pastor, abomine o som das palavras voto da igreja, você poderá buscar alguma outra
maneira de ajudar os membros de sua congregação a tomar posse de cada membro
do corpo pelo nome — o que é uma implicação clara de 1 Coríntios 12 e de muitas
outras passagens do Novo Testamento.
RESTRINGINDO A MESA
Outro elemento que ajuda a manter claro o limite entre a igreja e o mundo na
hora de entrar na igreja é chamado de “restrição da mesa”. Antes que a igreja sirva a
Ceia do Senhor, ela precisa estabelecer restrições em relação àqueles que têm
permissão para tomá-la. Afinal, Paulo adverte que se alguém comer ou beber a ceia
indignamente estará comendo e bebendo juízo para si (1 Co 11.27). A Ceia do
Senhor é uma refeição reservada para os crentes, já que a Ceia é, no mínimo, uma
maneira de simbolizar o fato de que eles compartilham o seu corpo e sangue. Ela é
um dos dois únicos sinais que Jesus deu à igreja para se distinguir do mundo. Isso
significa que as igrejas devem encorajar os descrentes a não participarem da Ceia.
Entretanto, as igrejas devem restringir a mesa de forma ainda mais cuidadosa do
que essa. Se a submissão a Cristo por meio da conversão deve se traduzir
imediatamente em submissão a uma igreja local, por meio do batismo, logo a Ceia
do Senhor é uma refeição reservada para os membros batizados das igrejas. O fato
de um crente participar da Ceia do Senhor sem antes ter se submetido à autoridade
de alguma igreja local, por meio do batismo, é reivindicar uma autoridade que Jesus
jamais deu a um crente individualmente. É “usurpar o poder das chaves”, nas
palavras de Benjamin Griffith. É dizer: “Jesus pode ter autorizado a igreja apostólica
a ligar e desligar, o que por sua vez declara que alguns indivíduos possuem o direito
de representar a Jesus na terra e outros não, mas isso não importa. Eu sei quem eu
sou! Que se dane a igreja.” Em resumo, participar da Ceia do Senhor sem ser um
membro batizado de uma igreja local é um ato de presunção e desdém em relação à
autoridade do próprio Cristo.
Conforme observamos anteriormente, as igrejas locais devem exemplificar a
consideração e o respeito pelas outras igrejas locais que creem no evangelho, visto
que elas pertencem ao mesmo Senhor e agem pela sua autoridade. Elas devem
considerar umas às outras como um general do exército faz, sempre que possível,
reconhecendo e considerando cordialmente outro general de igual posição. Por essa
razão, as igrejas podem permitir que os visitantes de outras igrejas participem da
Ceia do Senhor, contanto que eles sejam membros que estejam em boa condição, ou
seja, não estejam sob a disciplina de outra igreja.
Por todas essas razões, a minha própria igreja faz observações como estas todas
as vezes que participamos da Ceia do Senhor: “Se você for membro de nossa igreja
ou um membro batizado de outra igreja local que pregue o mesmo evangelho que
você tem ouvido ser pregado aqui, se você estiver em boa condição com sua igreja,
você é bem-vindo para desfrutar dessa refeição conosco.” Restringir a mesa dessa
maneira é cumprir a responsabilidade da igreja diante de Deus. O restante pode
deixado para a consciência de cada indivíduo.
Ponto 5: O alvo da supervisão do membro é apresentar um
testemunho fidedigno de Cristo na terra. Toda a igreja,
líderes e membros, participa desse cuidado fundamentado no
evangelho e guiado pelo discipulado, por meio do ministério
da Palavra.

A SUPERVISÃO DO MEMBRO
Até agora, temos considerado a porta de entrada para a membresia da igreja.
Conforme passarmos agora a considerar a responsabilidade da igreja de
supervisionar as vidas daqueles a quem ela confirma, descobriremos que a maior
parte da supervisão da igreja é exercida à medida que os indivíduos cuidam e
discipulam uns aos outros.

O ALVO DA SUPERVISÃO
Qual é o alvo da igreja na supervisão das vidas de seus membros? Poderíamos
responder a essa pergunta de inúmeras maneiras. Poderíamos falar sobre o alvo de
ajudar os membros da igreja a perseverarem até o fim, assim como Jesus faz vez
após vez em suas cartas às sete igrejas de Apocalipse. Poderíamos falar sobre ajudar
os membros a definirem o amor para o mundo, assim como João em especial parece
discorrer em seu Evangelho e em suas epístolas. Poderíamos falar sobre equipar os
membros da igreja para as obras do ministério até que eles alcancem unidade,
maturidade e a estatura da plenitude de Cristo, como Paulo faz em Efésios 4, ou
sobre preparar a igreja como uma noiva santa e radiante, como ele faz em Efésios 5.
Seja qual for a passagem para qual apontemos, esse alvo pode ser resumido na
manutenção e no desenvolvimento de um testemunho fidedigno de Cristo na terra.
Se isso soar como algo muito mecânico ou uma exploração, do ponto de vista do
membro da igreja, como se ele tivesse pedido para não fazer nada além do que ficar
por aí como uma placa de rua, tenha em mente que ser uma placa de rua (ou
imagem) no Reino de Deus significa experimentar a plenitude do amor e da glória
Deus, à medida que participamos de seu governo.

O PODER DA SUPERVISÃO
No entanto, à medida que mostramos esses retratos de um povo obediente e de
uma noiva radiante, precisamos parar imediatamente e nos lembrar de uma das
principais diferenças entre o Israel do Antigo Testamento e a igreja do Novo.
Também se esperava que Israel desse testemunho de Deus na terra como um povo
obediente e uma noiva radiante, tendo eles todas as leis que poderíamos imaginar
para ajudá-los a se tornarem esse retrato. O problema era que a lei não mudava os
corações.
À medida que os pastores e as congregações supervisionam a vida uns dos outros
na preparação para o dia da volta de Cristo, essa verdade fundamental informa a
cada ato de instrução e disciplina: somente Deus muda os corações, por meio de seu
evangelho. Isso é verdade na conversão e continua sendo verdade a cada passo de
crescimento na vida cristã. Por essa razão, os supervisores da igreja, como se
fossem pais, devem orar e lutar não só por uma conformidade externa à lei, mas por
mudanças fundamentais no coração. A melhor ilustração que conheço para essa
questão vem do conselheiro Paul David Tripp:
Faça de conta que eu tenho uma macieira no meu quintal. A cada ano ela faz brotar e crescer
maçãs, mas quando as maçãs amadurecem, elas ficam secas, enrugadas, amarronzadas e moles.
Após vários anos, decidi que era tolice ter uma macieira e nunca poder comer seu fruto. Então,
eu decidi que deveria fazer algo para “consertar” a árvore. Numa tarde de sábado, você olha
pela janela e me vê carregando para o quintal um cortador de galhos, uma pistola de pregos,
uma escada e um alqueire de maçãs vermelhas deliciosas. Você observa, à medida que eu corto
cuidadosamente as maçãs ruins e prego as belas maçãs vermelhas nos galhos da árvore. Você
vem e me pergunta o que estou fazendo, e eu digo orgulhosamente: “Finalmente consertei
minha macieira!” 346

A diferença entre uma supervisão fundamentalista, legalista e autoritária e uma


supervisão movida pelo evangelho é que a primeira apenas ordena comportamentos
externos, ao passo que a segunda se preocupa com o comportamento, mas apela
para o coração e para a profissão de fé das pessoas.
Não estou dizendo que devemos dispensar a lei de Deus quando estamos
pastoreando ou supervisionando outros, quer sejam nossos filhos, quer sejam os
membros de nossa igreja. A lei ainda apresenta um retrato do caráter santo de
Deus. Mas a lei não pode pegar o que é de pedra e transformá-lo em carne. Eu não
posso criar o desejo de obedecer, em si. À medida que a igreja se esforça unida na
direção desse retrato de uma noiva radiante, ela deve lembrar continuamente que
somente Deus tem o poder para transformar, e que Deus é um Deus de
misericórdia e compaixão.

POSSUÍDO E REALIZADO PELA CONGREGAÇÃO


Quem então é responsável por supervisionar a igreja? Deixe-me, mais uma vez,
correr o risco de nos aproximar perigosamente das fronteiras do
congregacionalismo (não posso deixar de fazê-lo!), afirmando que toda a igreja tem
responsabilidade na atividade de supervisão. Mas isso não significa simplesmente a
responsabilidade que cada membro possui. Falo da responsabilidade coletiva que a
igreja possui como um todo, por causa do alvará de Cristo em Mateus 16, 18 e 28.
Quando vários membros não conseguem resolver a disputa, Jesus lhe diz para levar
o caso à igreja (Mt 18.17). Quando os mestres das igrejas da Galácia se afastaram do
evangelho, Paulo acusou as próprias igrejas (Gl 1.6-9).
Acho que podemos extrair algo dessas passagens de tipo “congregacionalista” que
os anglicanos, luteranos, presbiterianos, metodistas e outros devem ser capazes de
afirmar nas estruturas de seus respectivos sistemas de governos. Quando o temível
dia do julgamento vier, cada membro de igreja terá que prestar contas, cada um por
sua parte, se essa igreja tiver abandonado o evangelho. Os bispos e presbíteros
serão mais responsáveis do que os membros leigos (os anglicanos e batistas talvez
possam discordar disso um pouco mais entre si). Mas todos serão responsáveis em
alguma medida. Semelhantemente, cada membro se alegrará na participação que
cada um teve na salvação das almas por meio do ministério daquela igreja. O ouvido
terá participado de maneira diferente das mãos ou dos pés, mas cada um terá feito a
sua parte, e cada um partilhará da celebração daquilo que o Espírito de Cristo fez
por meio de todos.
Se há uma coisa que as igrejas precisam recuperar hoje em dia é a compreensão
de que uma igreja é coletivamente responsável pelo discipulado de cada membro da
congregação. Porque isso é verdade, cada membro é em alguma medida responsável
por todos os outros membros, até mesmo por aqueles que não conhecemos: “Se um
membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se
regozijam” (1 Co 12.26). Parte do crescimento do meu pequeno coração egoísta,
para que ele envolva amorosamente os círculos cada vez mais amplos do povo de
Deus, é ensiná-lo a permanecer em minha própria congregação local, da forma mais
plena e clara que Deus me permitir.

GUIADO PELO LÍDER


Ao mesmo tempo, não há dúvidas de que Cristo e os apóstolos deram a
responsabilidade de supervisão aos pastores, presbíteros ou bispos — três palavras
usadas de modo intercambiável, a última delas significando literalmente
“supervisor”. Não discutirei aqui todos os aspectos da supervisão pastoral. Outros
recursos úteis estão disponíveis para isso347. Visto que já discutimos, no Capítulo 4,
a natureza da autoridade pastoral versus a autoridade da igreja apostólica, farei aqui
apenas dois comentários convencionais e um comentário inovador.
Primeiro, a supervisão de um presbítero é conduzida principalmente por meio do
ensino e da oração. Foi para fazer isso que os apóstolos se separaram em Atos 6,
mesmo quando a igreja estava sendo separada pelas divisões étnicas. A capacidade
para ensinar é um dos atributos que distinguem um presbítero de um diácono, em 1
Timóteo 3 e Tito 1. Não que o trabalho de sanar as divisões étnicas ou de conduzir
atos de culto não fossem importantes; mas simplesmente que, na administração da
família de Deus, os pastores e mestres equipam os santos para fazerem tal trabalho,
já que é a própria Palavra de Deus que traz vida e crescimento, por meio do Espírito
de Deus. Ele separou indivíduos específicos para se entregarem a si mesmos de
forma marcante ao ensino e à oração.
Segundo, a supervisão de um presbítero é conduzida por meio do governo. Paulo
escreve: “Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os
presbíteros que presidem bem” (1 Tm 5.17). Já consideramos o fato de o governo de
um presbítero não lhe dar permissão para forçar ou ordenar os membros da igreja a
agirem de maneiras específicas. Um presbítero possui o governo a fim de que possa
liderar a congregação a tomar boas decisões, mas essa liderança está sempre
condicionada à submissão de bom grado por parte da congregação, a qual é dada
pelo Espírito Santo.
Ambas as observações, penso eu, são bastante convencionais, pelo menos em
alguns círculos, mas uma proposta um pouco mais inovadora é esta: parte de uma
boa administração significa ser capaz de prestar contas de toda a igreja nome por
nome. Não proponho isso como uma exigência bíblica; em vez disso, apresento essa
proposta como um anseio bíblico. Moisés se achou incapaz de desempenhar
obedientemente as responsabilidades dos julgamentos com base em cada caso (uma
parte do pastoreio). Por essa razão, ele designou outros que pudessem fazê-lo.
Jeremias e Ezequiel criticaram os pastores de Israel por deixarem as ovelhas
perambularem pelos montes. O próprio Jesus era o bom pastor que não
abandonaria uma delas pelas noventa e nove e não perderia nenhuma daquelas que
o Pai havia lhe dado (exceto aquele designado para a perdição). Cada um desses
exemplos apresenta um momento único da história da redenção, mas cada um deles
também estabelece um padrão sobre o qual Paulo edifica quando diz aos presbíteros
de Éfeso: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos
constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu
próprio sangue” (At 20.28). A mesma ideia está por trás destas palavras: “Obedecei
aos vossos guias e sede submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como
quem deve prestar contas” (Hb 13.17).
Não estou sugerindo que cada presbítero deva ser capaz de prestar contas de
cada membro pelos seus nomes, mas a maneira mais clara de ler essas duas
passagens é dizendo que os presbíteros de uma igreja, coletivamente, devem ser
capazes de prestar uma atenção cuidadosa a cada membro do rebanho, porque eles
prestarão contas de cada membro do rebanho diante de Deus. Por analogia, um pai
de cinco filhos não seria considerado fiel se fosse um bom pai apenas para quatro
deles, abandonando o quinto. Ele seria um pai sem fé. Ele será chamado a prestar
contas por todos os seus cinco filhos, nominalmente. Da mesma forma, os
presbíteros precisam se assegurar que, de um modo ou de outro, cada nome do
rebanho está sendo cuidadosamente pastoreado.
Os presbíteros não podem fazer isso por meio do apoio de outro líder, como um
líder de pequenos grupos? Ainda não formei minha opinião sobre esse assunto,
razão pela qual me abstenho de chamar isso de exigência bíblica. A razão para
minha restrição é que os apóstolos poderiam ter delegado algo como uma
supervisão do tipo “um a um” em Atos 6. Isso não fica claro porque Atos 6 é também
algo sobre um momento único na história da redenção. No mínimo, eu quero dizer
que cada passo dado na mediação entre um crente e um presbítero — assim como
essa categoria não bíblica de “líder de pequenos grupos” — dirige o indivíduo um
passo além no pastoreio cuidadoso. Sendo um presbítero, não posso olhar para os
padrões e circunstâncias da vida de alguém a fim de lhe dar um conselho
indiretamente, quando posso dá-lo diretamente. Não posso saber quem são os
lobos, a menos que eu (juntamente com todos os presbíteros) conheça as ovelhas
pelos seus nomes. Isso deve ser muito evidente. As Escrituras não estabelecem
limites sobre o tamanho das igrejas, e a igreja em Jerusalém chegava na casa dos
milhares (At 4.4). No entanto, em Atos, vemos os apóstolos se envolvendo com os
detalhes das vidas dos indivíduos (At 5.1-10), reunindo todos os discípulos (At 5.12,
6.2) e, de forma geral, esforçando-se para dar a supervisão necessária. Então, no
mínimo devemos concluir que os pastores de congregações grandes devem se
esforçar para supervisionar cada membro pelo nome e almejar isso. Uma solução
simples é pedir que Cristo conceda mais presbíteros à igreja.
Os presbíteros de uma igreja, tanto individual como coletivamente, devem
almejar orar nominalmente por todos os membros de sua igreja. Devido ao fato de a
membresia de nossa igreja ser muito extensa, os presbíteros e a congregação
tentam orar pelas pessoas que estão em cada duas páginas do diretório da igreja a
cada dia. Quando estou com pouco tempo, posso fazer isso em dez minutos: “Pai,
mantenha este irmão afastado dos ídolos. Dê crescimento a esta irmã no
evangelismo. Traga um esposo para esta irmã. Traga encorajamento espiritual para
este.” Se Deus o fez despenseiro de cinco mil pessoas, você acha que não existe uma
forma de você orar por essas muitas pessoas? Você acha que ele lhe daria mais
pessoas para que você pudesse orar menos? Por que você acha que ele lhe confiou
tantas pessoas? O que você acha que aconteceria com sua igreja se você orasse
particularmente por todos os membros de sua igreja, com cinco mil membros, pelos
seus nomes, mensalmente (167 membros por dia) ou a cada dois meses (84
membros por dia) ou até mesmo duas vezes por ano (27 membros por dia). Que
efeito você esperaria ter em sua igreja? Pessoalmente, espero ouvir sobre isso na
glória, à medida que as grandes histórias das obras da igreja forem recontadas.
Os membros da igreja devem seguir o exemplo dos presbíteros, supervisionando
uns aos outros. O autor de Hebreus escreve: “Lembrai-vos dos vossos guias, os
quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando atentamente o fim da sua
vida, imitai a fé que tiveram” (13.7).
As igrejas hoje em dia precisam recuperar a compreensão de que toda a
congregação, líderes e leigos, é coletivamente responsável pelo discipulado de cada
um de seus membros. O cristianismo deve ter uma forma congregacional. Quando
os falsos mestres entraram na igreja em Colossos e tentaram levar seus membros
na direção do asceticismo individualista e zeloso, Paulo lembrou à igreja que o
verdadeiro crescimento vem de Cristo, por meio de toda a congregação. Esses
indivíduos, ele afirmou, não “retiveram a cabeça, da qual todo o corpo, suprido e
bem vinculado por suas juntas e ligamentos, cresce o crescimento que procede de
Deus” (Cl 2.19). O corpo depende de todas as suas partes para ter o crescimento
dado por Deus, e ele sempre cresce junto, na direção da unidade.

OUTROS MINISTÉRIOS DA IGREJA Como os vários ministérios da igreja


agem na responsabilidade coletiva da igreja de confirmar e supervisionar
por causa do nome de Cristo? O que devemos fazer com os ministérios
para jovens, os ministérios para solteiros, os ministérios para os sem-teto
e outros nichos ministeriais?
Trabalhei por pouco tempo como pastor interino na Igreja Batista de Louisville,
em Kentucky. Certa noite, numa reunião de presbíteros, surgiu uma discussão
sobre como lidar com o ministério para universitários da classe média. O prédio da
igreja estava localizado a um quarteirão da Universidade de Louisville, e a igreja
decidira havia pouco tempo pagar um aluno de seminário para trabalhar como
coordenador do ministério na faculdade. Esse jovem, que não era presbítero, mas
era muito cativante, acabou se tornando popular entre os estudantes
universitários. Os presbíteros estavam considerando como deveríamos ver o
ministério universitário em relação ao todo da igreja, bem como deveríamos ver o
coordenador do ministério universitário em relação aos presbíteros.
Os presbíteros tinham duas preocupações. Primeira, eles não queriam que os
estudantes da faculdade começassem a se aproximar do coordenador do ministério
universitário como se ele fosse seu pastor. Os presbíteros não estavam tentando
restringir o poder do coordenador, antes, eles queriam vê-lo crescendo e
amadurecendo para ser um pastor, já que ele estava sendo treinado para isso. Os
presbíteros queriam que os alunos da faculdade tivessem o benefício de desenvolver
relacionamentos com os homens a quem a congregação havia reconhecido como
pastores, o que seria útil tanto para os alunos quanto para os presbíteros.
Segunda, os presbíteros queriam garantir que os alunos da faculdade fossem
integrados na vida do corpo como um todo. Lembro-me de um presbítero, chamado
Greg, ter dito algo que ajudou a esclarecer a questão em minha mente. Ele disse:
“Não queremos que o ministério universitário forme um desdobramento separado
da igreja, no qual eles se reúnam em seu próprio espaço, tenham seus próprios
líderes e tenham bem pouco relacionamento com o restante do corpo.” A expressão
que ficou cravada em minha mente foi: “um desdobramento separado da igreja”. O
comentário de Greg estava baseado na percepção bíblica de que “todo o corpo”
cresce junto, à medida que é “suprido e bem vinculado por suas juntas e
ligamentos”, o “crescimento que procede de Deus” (Cl 2.19). Ele estava baseado na
percepção bíblica de que nenhum membro ou parte do corpo (ouvido, mão, pé) deve
se separar do restante do corpo. O problema hoje em dia é que muitas igrejas
parecem bem felizes em permitir que a supervisão da igreja seja transferida para
um subgrupo dentro do corpo, e esses subgrupos geralmente se reúnem em torno
de algum ponto de afinidade sociológica como idade, estado civil ou posição
profissional. Os estudantes da faculdade são deixados para supervisionar um ao
outro; o mesmo se dá com os jovens casais e com os aposentados. Nesse processo, é
lógico, eles se privam da sabedoria e dos dons do todo.
Deixe-me propor o seguinte: ministérios para jovens, ministérios universitários,
ministérios de pequenos grupos, ministérios para solteiros, ministérios para
mulheres, ministérios para homens, ministérios para crianças, ministérios de
assistência, ministérios para motoqueiros e outros nichos ministeriais da igreja
podem ser vistos tanto como ministérios paraeclesiáticos quanto como ministérios da
igreja. Essas divisões não são exatas, e confio que qualquer leitor poderia pensar em
alguma configuração ministerial que contestaria essas duas categorias; mas eu as
ofereço como modelos básicos que devem nos ajudar a considerar como esses vários
nichos ministeriais se encaixam na vida da igreja.
Um modelo paraeclesiástico. Um ministério paraeclesiástico é aquele no qual os
crentes, que podem ou não pertencer à mesma igreja local, trabalham juntos com
algum propósito evangelístico ou social. Um exemplo comum disso é uma
organização missionária como a Missão Novas Tribos, ou uma organização para
campus universitário, como a Campus Crusade for Christ (Cruzada Universitária
para Cristo). No passado, alguns ministérios paraeclesiásticos cometeram o erro de
desencorajar, de forma intencional ou não, o envolvimento dos crentes na vida da
igreja local. Por todas essas razões enumeradas, isso é problemático. No entanto, os
ministérios paraeclesiásticos podem desempenhar um papel útil na obra de
conclusão do reino, sendo capazes de servir tanto às igrejas locais quanto aos
descrentes, e creio que eles geralmente sejam dignos do sustento das igrejas locais,
pelo menos enquanto eles não se confundirem com elas.
O que eu gostaria de propor é que as igrejas devem começar a examinar todos os
ministérios que atuem dentro de suas paredes como ministérios paraeclesiásticos.
Os ministérios para jovens geralmente misturam membros e não membros, crentes
e descrentes. Visto que o ministério para jovens é usado para alcançar os
descrentes, conforme qualquer ministério paraeclesiástico o faria, ele é um
ministério útil. À medida que ele permitir que os jovens que são membros da igreja
formem um desdobramento separado da igreja, ele prejudicará o discipulado deles,
porque roubará deles a sabedoria e os dons do corpo como um todo. Ele também
obscurecerá o limite entre a igreja e o mundo tanto nas mentes dos crentes quanto
nas dos descrentes.
Outros ministérios de extensão, digamos, como o de alimentação aos pobres,
devem igualmente ser considerados ministérios paraeclesiásticos, mesmo que
sejam mantidos diretamente pela igreja. Além de ajudar a manter limites mais
claros entre a igreja e o mundo, denominar esse tipo de ministério como
paraeclesiástico ajuda a igreja apostólica local a distinguir entre as
responsabilidades básicas que foram dadas pelo alvará de Cristo e as demais
responsabilidades das quais ela possa se encarregar, de vez em quando, a fim de
promover o testemunho de Cristo.
Ministérios para a Igreja. No curso normal da vida de uma igreja, podem surgir
necessidades específicas que não podem ser tratadas nas reuniões regulares. Talvez
a igreja tenha um grande número de mães solteiras ou de estudantes universitários,
ou de indivíduos lutando contra a atração por pessoas do mesmo sexo. As igrejas
possuem obviamente demografias diferentes. Para satisfazer essas necessidades
particulares, a igreja poderia decidir responsavelmente começar um ministério fora
de suas reuniões regulares, que possa tratar com mais cuidado e equipar esse
subconjunto de membros. Entretanto, esses subconjuntos seriam mais bem
servidos se o seu ministério fosse restringido ao tema que os distingue. Ele não
deve tentar formar um desdobramento separado da igreja para esses subgrupos ou
se encarregar de todo o discipulado dessas pessoas. Por exemplo, um ministério
para mães solteiras pode dar uma atenção mais concentrada ao fato de ser mãe,
mais do que um membro comum da igreja precisaria provavelmente ouvir. Ao
mesmo tempo, ele deve provavelmente fazer isso com o propósito de ajudar as mães
solteiras a se integrarem ao corpo como um todo, e de ajudar o corpo, como um
todo, a saber como ministrar às mães solteiras.
A Covenant Life Church (Igreja Aliança para a Vida) em Gaithersburg, Maryland,
não considera seu ministério para jovens como um ministério de extensão para
jovens descrentes, mas como um ministério para os seus próprios jovens e pais. Ele
equipa os pais para equiparem seus jovens, e isso encoraja os jovens a reagirem com
amor e obediência aos seus pais. O ministério para jovens não tenta tomar posse
nem do discipulado dos jovens nem do discipulado dos pais, o que é
responsabilidade de toda a igreja. Ele dá simplesmente uma ênfase maior ao tipo de
temas que os pais e os jovens precisam em seu discipulado juntos.

A SUPERVISÃO POR TODA A IGREJA A supervisão feita por toda a igreja


começa em suas reuniões regulares. À medida que os crentes se unem
para serem moldados pelas mesmas pregações, orações de confissão,
cânticos de louvor e imagens do batismo e da Ceia do Senhor, eles
recebem uma linguagem comum ou um comportamento para as
negociações da vida diária. Quando as tentações, tragédias e triunfos da
semana surgem, eles têm essa linguagem ou comportamento
compartilhados para encorajar e desafiar uns aos outros por meio de
todas essas coisas. É aí, ao longo da semana, que o ministério da Palavra
do domingo ecoa de lá para cá entre outras pessoas.
Portanto, a supervisão feita por toda a igreja começa nas reuniões, mas depois se
estende por inúmeras vezes nas orações individuais, nas conversas, nas refeições,
nos atos de culto, nas obras ou ministérios paraeclesiásticos. Por outro lado, se as
reuniões da igreja duram somente uma hora; se as músicas são superficiais; se os
sermões duram pouco mais de vinte e cinco minutos; e se apenas dez minutos do
sermão são concedidos às Escrituras, não é de admirar que os cristãos acreditem
que o evento da reunião e da pregação não seja importante. “O que é importante em
relação às reuniões semanais?” Se permitirmos que os meios de comunicação
(rádio, cinema, televisão, internet) nos moldem hora após hora ao longo da semana,
mas resistirmos que a igreja faça o mesmo no domingo por mais de uma hora, não
serão os meios de comunicação que nos fornecerão toda a nossa linguagem e
comportamento? Quando descobrimos, no domingo depois do sermão, que alguém
viu o mesmo filme que nós na noite anterior, é mais natural falarmos sobre o filme
ou sobre o sermão?
DISCIPULADO
A supervisão feita por toda a igreja acontece à medida que pastores e membros
discipulam uns aos outros. O discipulado age por meio de inúmeros atos de amor e
disciplina, tanto formativa quanto corretiva. Dois homens decidem se encontrar
para prestar contas um ao outro. Duas mulheres decidem ler um livro cristão
juntas. Um pequeno grupo se reúne semanalmente para meditar um pouco mais no
sermão de domingo. Um pai mais velho faz uma repreensão a um pai mais jovem.
Uma jovem esposa pede um conselho a uma esposa mais velha. Uma família oferece
hospitalidade semanalmente aos novos membros e visitantes da igreja. Um pastor
distribui bons livros todo semana. Todas essas pequenas ações, à medida que elas
passam a caracterizar a vida do corpo reunido, começam a formar e a moldar um
povo à imagem de Cristo.
O discipulado, assim como a disciplina, envolve avaliação e correção, que é a
razão de tão poucos crentes parecerem tirar proveito dele nos dias de hoje. A nossa
carne pecaminosa não só despreza a possibilidade de ser avaliada, como também
temos absorvido as filosofias deste mundo, as quais nos dizem que ninguém tem o
direito de avaliar a outra pessoa. “Você nunca leu sua filosofia pós-moderna? O
quanto você ousaria dizer àquele jovem que alguns caminhos são sábios e outros
são tolos? Você não sabe que você está arraigado sociologicamente e que é incapaz
de falar de fora de seu próprio contexto e perspectiva?” A figura do pai do livro de
Provérbios está proibida de falar, expulso sob a acusação de ser intolerante e
intratável. Quando isso acontece, o discipulado se transforma gradualmente em
pouco mais que uma afirmação mútua. As igrejas se tornam um berçário de tolos.
As igrejas às vezes transformam o discipulado num programa, como se o livro de
Provérbios ou a criação de filhos pudesse ser programada. Falando francamente,
tais programas podem ser úteis até certo ponto, principalmente para os propósitos
de instrução e para o cultivo de relacionamentos. O que é importante reconhecer,
no entanto, é que o discipulado exige basicamente a mudança dos corações e a
mudança da cultura de uma igreja. De igual modo, sabemos que temos discipulado o
nosso filho com sucesso quando ele começa a perceber a diferença entre a sabedoria
e a insensatez, e escolhe a sabedoria para si, mesmo quando estamos ausentes.
Semelhantemente, a igreja funciona melhor quando cultiva uma cultura de
discipulado, onde cada vez mais os membros participam para amar, confortar,
desafiar e atrair uns aos outros para o caminho de Cristo. Uma cultura de
discipulado é aquela na qual a disciplina informal na igreja é normal, e a disciplina
formal da igreja é praticada. É lógico, quanto mais dispostos os membros estiverem
para receber admoestações pessoais de seus irmãos e irmãs em Cristo em
particular, mais raros se tornarão os processos de exclusão.
O discipulado pode ser difícil de suportar. “Toda disciplina, com efeito, no
momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto,
produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb
12.11). É difícil nos humilharmos diante da correção. É difícil receber instrução de
outro cristão, principalmente daqueles que são mais jovens do que nós. É difícil
manter os horários organizados com o propósito de encontrar com outros
membros da igreja. É difícil encontrar tempo. É difícil praticar aquilo que foi
pregado. É difícil não pensar secretamente: “Quem é você para dizer isso? O que o
torna tão sábio?” É difícil orar, é difícil amar e, estranhamente, é difícil ser amado.
Mas o discipulado é essencial para o crescimento na semelhança com Cristo. As
igrejas praticam a supervisão por meio da disciplina e do discipulado.

Ponto 6: Visto que a aliança com a igreja é um compromisso


de duas vias, tanto a igreja como o membro devem concordar
com o fim do relacionamento. As igrejas devem disciplinar
formalmente os membros que demonstram ser impenitentes
e infiéis em seu discipulado cristão.

O AFASTAMENTO E A EXCLUSÃO DO MEMBRO


Há três maneiras de deixar uma igreja. Um membro morre, afasta-se ou é
excluído. Consideremos as duas últimas, mais uma vez, da perspectiva das
responsabilidades da igreja.
O QUE O AFASTAMENTO SIGNIFICA
No Ocidente atual, os indivíduos e as famílias geralmente se afastam da
membresia de suas igrejas da mesma forma que deixam os hotéis. Eles se certificam
de que estão com todos os seus pertences, informam o gerente e se vão. Na
verdade, muitos membros de igreja nem isso fazem. As pessoas deixam a igreja e
não dizem a ninguém. Imagino que só prestemos essa cortesia aos hotéis porque
estes possuem o nosso número de cartão de crédito nos arquivos.
Visto que essa prática é muito difundida, as próprias igrejas são culpadas, pelo
menos em partes. Não temos ensinado os nossos membros de outra maneira. Não
temos lhes ensinado que a membresia da igreja decreta na terra a nossa unidade
com Cristo e com seu povo no céu. Nós não temos lhes ensinado sobre a natureza
da autoridade da igreja e sobre o mandamento de Cristo para nos submetermos a
ela. Não temos lhes ensinado que Jesus disse que a obediência define o amor.
Sendo assim, nossa primeira preocupação não é descrever os passos corretos
para alguém se afastar da membresia, embora cheguemos lá. Em vez disso, a nossa
primeira preocupação deve ser entender o que está acontecendo quando um crente
deixa a igreja. Devido ao fato de a membresia ser uma aliança entre um crente e
uma igreja, sua partida representa, portanto, o fim de uma aliança. Seus
relacionamentos com os membros da congregação podem muito bem continuar,
mas ele não estará mais sujeito à sua supervisão coletiva. A igreja perde sua
autoridade, quer seja para atestar sua fé ou para discipliná-lo.
Se a membresia da igreja envolve realmente dar a nós mesmos aos outros
membros de nossa igreja; se isso significa nos identificar com eles porque, assim
como nós, eles estão identificados com Cristo; e se isso significa que fomos
encarregados de supervisionar o seu discipulado durante todo período de tempo
que Cristo nos der esse privilégio, então, a saída dos membros deve ser sempre um
assunto amargo, assim como quando um filho ou filha em idade adulta sai de casa.
Nós nos alegramos com aquilo que o Senhor tem reservado para eles, mas
lamentamos perdê-los, porque amamos sua presença.

A IMPORTÂNCIA DE NOS REUNIRMOS COLETIVAMENTE


Deixar a igreja, portanto, não é uma questão totalmente institucional, como se
alguma regra pudesse declarar quando uma aliança deve ser considerada nula. Os
relacionamentos na igreja são mantidos unidos por meio de diversos aspectos,
sendo um deles o aspecto institucional. O ajuntamento ou a presença pessoal é
outro. Não podemos prestar contas um ao outro estando separados por mais de 600
quilômetros de distância da mesma forma que prestaríamos estando a um metro e
vinte. Se um de nós se mudar e começar a frequentar outra igreja, poderemos nos
comunicar por outros meios, mas não poderemos mais perceber a vida uns dos
outros com a mesma perspicuidade. Nem poderemos ser moldados pelas mesmas
pregações, orações e pelos mesmos louvores se não estivermos reunidos na mesma
congregação. Cada igreja, cidade e cultura possui uma personalidade diferente,
formada por suas ênfases especiais, as quais nos levam a adquirir a linguagem ou o
comportamento do lugar no qual estamos estabelecidos. É claro que todo o corpo
de Cristo é enriquecido pela diversidade de comportamentos ou linguagens; no
entanto, o aspecto da autoridade, ou o aspecto institucional dos relacionamentos
entre os crentes, funciona melhor quando um comportamento e uma linguagem
são compartilhados. Se eu souber, de primeira mão, que tipo de pregação você tem
se sentado para ouvir, terei uma percepção melhor do conhecimento do qual o
próprio Deus o chamará para prestar contas. Estarei numa posição melhor para
falar de forma significativa à sua vida; juntamente com toda a nossa congregação,
estarei numa posição melhor para afirmar ou negar, para ligar ou desligar, sua
profissão de fé na terra.
Por essa razão, quando uma pessoa para de se reunir com a igreja, a capacidade
da igreja de cumprir essas responsabilidades de confirmar, supervisionar e
disciplinar o crente de forma significativa diminui conforme o período de tempo
que o indivíduo ficar ausente. Se uma igreja não vir uma irmã por um mês, ela pode
continuar a confirmar e a supervisionar sua fé? Provavelmente. Mas e se ela estiver
ausente por quatro meses ou um ano? Até certo ponto, a igreja não poderá mais
cumprir suas responsabilidades com alguém que a deixou; nem um membro que
estiver ausente por um longo período poderá cumprir suas responsabilidades para
com a igreja. Reunir-se regularmente com uma igreja é um componente essencial da
membresia. O que é lamentável é que os crentes geralmente se denominam
membros das igrejas às quais eles não têm frequentado por um ano, como se a
palavra membresia pudesse significar algo a essa altura.
Há exceções ocasionais a esse princípio de insistir na frequência dos membros.
Minha igreja, no distrito de Washington, às vezes diz adeus aos membros por um
ou dois anos, enquanto eles viajam com o Departamento de Estado dos Estados
Unidos ou com o exército para algum lugar no estrangeiro, onde eles não serão
capazes de se unir a uma igreja por uma razão ou por outra. Em tais circunstâncias,
nossa igreja pode decidir fazer o melhor para continuar o discipulado por meio da
oração e do contato regular, principalmente porque não há outra igreja local para
assumir essa responsabilidade por eles.
Entretanto, normalmente, quando as pessoas deixam a nossa igreja em
Washington, nós as encorajamos a se unir a outra igreja assim que possível, porque
sabemos que não poderemos mais cumprir a supervisão designada por Cristo na
vida delas, e desejamos que elas encontrem alguma outra igreja que possa fazê-lo.
Duas implicações muito práticas surgem da necessidade de se reunir
regularmente. Primeira, a falta de frequência prolongada e sem arrependimento é
base para a disciplina formal da igreja. Em conformidade com Mateus 18 e Hebreus
10, alguém que se recusa a se reunir com a igreja deve ser advertido várias vezes e,
depois, excluído. Esse processo pode levar meses, mas é necessário, mesmo
independentemente dos mandamentos bíblicos, a fim de refletir a realidade da
situação. A igreja, no final, não terá outra escolha, senão dizer: “Não podemos mais
afirmar com credibilidade a sua profissão de fé e supervisionar o seu discipulado,
porque você não está aqui. Não sabemos onde você está ou o que você está
fazendo.” Quando uma igreja não remove aqueles que estão ausentes de sua
membresia por um longo período, ela está cometendo uma espécie de fraude. Está
afirmando algo que não tem o direito de afirmar. A Bíblia fala com muita severidade
àqueles que falham em se reunir regularmente com a igreja:
Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não
deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto
mais quanto vedes que o Dia se aproxima. Porque, se vivermos deliberadamente em pecado,
depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos
pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir
os adversários (Hb 10.24-27).

A pessoa que negligencia a reunião com os santos está no caminho do julgamento


de Deus, e a imagem ofuscada desse julgamento, representada pela disciplina na
igreja, é um ato misericordioso de advertência. Quando os membros param de
frequentar a igreja e não se unem a outra, eles geralmente estão pecando ou estão
no caminho do pecado. Há algo em suas vidas que eles não querem que seja visto.
Há uma prestação de contas e um amor os quais eles preferem não ter.
Segunda, quando um indivíduo ou família se muda permanentemente, a igreja
deve encorajá-los a se unir a outra igreja o mais rápido possível. Se já tiver passado
tempo suficiente, ela deve também adverti-los de que eles serão removidos do rol,
como um ato de disciplina. Reconheço que essa ideia talvez possa chocar muitos
evangélicos. No entanto, o amor de Deus é centrado no próprio Deus e é
demonstrado a nós por meio da salvação dos nossos pecados e do chamado para
vivermos em conformidade com seu caráter belo. A igreja local é o lugar na terra
onde aprendemos a fazer isso. Por essa razão, nós os amamos quando insistimos
para que se submetam à comunhão de uma igreja. Quando as pessoas deixam a
igreja, mudam-se e falham em se unir a outra igreja à medida que os meses e os
anos passam, nós demonstramos amor por elas lembrando-as de que Jesus nos
chamou para conhecer e demonstrar o amor de Deus por meio da obediência. Não
dizer ou não fazer coisa alguma para desviar as pessoas do pecado não é amoroso!
Todavia, as nossas concepções de amor foram viradas de cabeça para baixo pela
queda, e temos dificuldade de perceber esse fato — de tão convencidos que estamos
de que o amor nunca impõe, estabelece condições ou faz julgamentos. Mas isso não
é verdade. O amor realmente impõe, estabelece condições e faz julgamentos.
Uma antiga geração de pastores estava certa quando disse: “Não é razoável
permitir que eles [os membros] vão para o mundo, de forma geral.”348 A nossa
aliança para afirmar e supervisionar o discipulado do cristão só está cumprida de
forma responsável quando os vemos pastoreados em segurança numa outra
congregação.

O AFASTAMENTO SÓ ACONTECE COM O CONSENTIMENTO MÚTUO


Visto que Cristo ordena os crentes a se submeterem às igrejas locais, alguém
pode perguntar, com razão, se os membros têm o direito de se afastar da
membresia independentemente da transferência geográfica. Mais uma vez, muitos
pastores antigamente teriam respondido a essa pergunta de forma negativa.
Benjamin Griffith, que pastoreou uma igreja batista na Pensilvânia, de 1725 a 1768,
acreditava que se a Palavra de Deus estiver sendo pregada corretamente, e se as
ordenanças do evangelho estiverem sendo administradas corretamente, uma
pessoa não deve deixar aquela igreja, “ainda que haja fraquezas, imperfeições e
fragilidades” que a pessoa considere questionáveis. Griffith escreve:
Não é, portanto, razoável dispensar qualquer membro de uma igreja que fique próximo de sua
residência para que ele vá para qualquer outra igreja mais distante, devido a algum
descontentamento com a administração de algum caso específico... não é razoável também
conceder o afastamento desse membro que o esteja exigindo de forma autoritária, sem oferecer
uma razão para tal exigência; em qualquer dos casos, esse afastamento não deve ser
concedido349.

Griffith chama de “cismático” o fato de alguém deixar uma igreja de forma


unilateral, quando quer, como se estivesse saindo de um hotel; ele descreve isso
como “usurpar as chaves, ou melhor, roubá-las”350. E Griffith não é o único com
esse ponto de vista entre muitos pastores ao longo dos séculos.
A postura de Griffith me parece um pouco autoritária, e não acho que devamos ir
tão longe quanto ele e dizer que o “afastamento não deve ser concedido” quando um
membro pedi-lo. Afinal, a nossa membresia na nova aliança precede a nossa
membresia na aliança com a igreja local, o que significa que um indivíduo deve
escolher se unir e ficar, e pode escolhe ir embora. Além disso, as pessoas poderiam
se beneficiar genuinamente com o fato de deixarem uma igreja e se unirem a outra
devido a uma série de circunstâncias, e não estou certo do motivo pelo qual Griffith
não levou isso em consideração, a menos que ele estivesse tentando forçar a lógica
da autoridade da igreja além da conta. Se Griffith tivesse sido o pai do filho pródigo,
talvez ele retivesse a herança e o proibisse de partir, mas não é assim que a parábola
acontece. O pai concordou com a partida do filho pródigo e até mesmo o abençoou
com a sua parte da herança. As igrejas devem fazer o mesmo quando os membros
partem, mesmo que seja por razões tolas. Conceda-lhes seus votos de felicidade e
bênçãos para sua jornada. Em momentos como esses, o nosso cálculo deve incluir
não apenas as regras de procedimento institucional, mas também a dinâmica do
coração humano, como ele age e não muda.
No entanto, aqui está o ponto em que penso que Griffith esteja certo: há boas e
más razões para deixar uma igreja. Deixá-la porque a pregação é antibíblica é uma
boa razão. Deixá-la por causa de preferências musicais não é tão bom. Deixá-la para
encontrar algo mais empolgante talvez seja tolice. Griffith também está
trabalhando com uma pressuposição correta: uma aliança com uma igreja termina
de forma apropriada somente quando ambas as partes consentem em pôr fim à
aliança. A entrada na igreja exige o acordo de ambas as partes, o mesmo se dá com a
saída351. Nem todo membro que tenta se afastar é um membro que está numa boa
relação com a igreja ou está se afastando a fim de se unir a outra igreja local, o que
nos leva ao tópico sobre a disciplina corretiva na igreja.

O QUE É DISCIPLINA NA IGREJA?


O que é disciplina corretiva na igreja? Conforme definida no Capítulo 4, a
disciplina na igreja é o processo de correção do pecado no corpo da igreja. Ela
começa informalmente com os apelos pessoais e privados à pessoa que está em
pecado. Se o pecador não se arrepende, a disciplina é concluída formalmente,
quando o pecado é explicado à igreja e o membro é excluído da Mesa do Senhor352.
Esse é o resumo básico para a disciplina corretiva na igreja apresentado por Jesus
em Mateus 18.15-17.
No entanto, há algumas ocasiões nas quais os passos informais e privados são
pulados, e a igreja prossegue imediatamente com o ato formal de exclusão do
membro de sua comunhão. Isso é o que Paulo exige no incidente descrito em 1
Coríntios 5. Ele havia ouvido que um membro da igreja estava dormindo com a
mulher do próprio pai, um pecado tão escandaloso que merecia o afastamento
imediato.
Nesse sentido, Mateus 18 e 1 Coríntios 5 apresentam dois propósitos para o
âmbito da disciplina corretiva na igreja. O primeiro texto descreve um processo
mais lento para tratar a disputa com um irmão, primeiro em particular, depois com
mais duas ou três pessoas e, mais tarde, publicamente. A igreja espera que o
pecador se arrependa a cada passo ao longo do caminho, e todo o processo pode
levar semanas ou meses. Isso não acontece em 1 Coríntios 5. Paulo diz à igreja para
entregar o homem a Satanás em sua próxima reunião, para agir imediatamente.

QUAIS PECADOS? QUAIS PECADORES?


O problema é que a vida real raramente aparece no escritório do pastor ou na
reunião de presbíteros exatamente como em Mateus 18 ou 1 Coríntios 5. Ela
aparece com uma variedade de formas, combinada com circunstâncias tão variadas
quanto há pessoas no planeta. Cada pastor sabe como os pecadores engenhosos
podem enredar a si mesmos em situações que desafiam qualquer solução simples.
Como então uma igreja poderá saber quando disciplinar e quanto tempo essa
disciplina levará?
Algumas das teologias antigas faziam listas sobre quando era apropriado
conduzir tal disciplina. Por exemplo, o pastor congregacionalista John Angell James
disse que cinco tipos de ofensas devem ser disciplinadas: (1) todos os vícios e
imoralidades escandalosas (1 Co 5.11-13); (2) a negação da doutrina cristã (Gl 1.8; 2
Tm 2:17-21; 1 Tm 6.35; 2 Jo 10ss.); (3) a fomentação de divisões (Tt 3.10); (4) a
falha em prover um parente próximo em caso de necessidade (1 Tm 5.8); e (5) a
inimizade irreconciliável (Mt 18.7)353.
Esse tipo de lista bíblica pode ser útil até certo ponto. Observe que todos os
pecados descritos são sérios e possuem uma manifestação externa. Eles não são
apenas pecados secretos do coração; há uma dimensão pública em relação a eles.
Eles enganam as ovelhas e enganam o mundo em relação ao cristianismo.
Entretanto, o que tal lista falha em fazer é em dar conta da vasta multidão de
pecados dos quais as Escrituras nunca tratam (por exemplo: ser um imigrante
ilegal), ou dos muitos pecados que o público amplo não considera mais como
escandaloso (como o concubinato ou divórcio).
Correndo o risco de ser impreciso, acho que é melhor simplesmente dizer que a
disciplina formal na igreja é para o pecado de natureza pública, grave e sem
arrependimento. Esse é o curso apropriado quando um indivíduo envolvido em
pecado grave foi confrontado em particular com os mandamentos de Deus nas
Escrituras, mas se recusa a abandonar o pecado. Pelo que se pode ver, essa pessoa
valoriza mais o pecado do que Jesus.
Esse foi o caso da minha primeira experiência com a disciplina corretiva na igreja.
A situação dizia respeito a um bom amigo e parceiro de corridas. Era óbvio tanto
para a nossa igreja quanto para mim o fato de que ele estava envolvido em pecado
sexual, pelo menos até ele ter me contado o caso enquanto almoçávamos juntos. Eu
lhe perguntei imediatamente se ele sabia o que a Bíblia dizia sobre a tal atitude que
ele tivera, mas ele disse que havia feito as pazes com Deus. Eu o constrangi a se
arrepender. Outros fizeram o mesmo, mas ele lhes disse o que mesmo que havia
dito para mim: “Deus está de acordo com isso.” Após vários meses de conversas
como essas, a igreja o afastou formalmente de sua comunhão. Seu pecado era grave
e sem arrependimento, e tinha uma manifestação externa. Ele poderia enganar
outros, tanto de dentro quanto de fora da igreja, a respeito do que significa ser um
cristão.
A igreja gastou vários meses buscando-o. Nós o amávamos. Queríamos que ele se
afastasse de seu pecado e soubesse que Jesus é mais valioso do que qualquer coisa
que esse mundo nos proporciona. No entanto, estava quase que manifestamente
claro que ele não tinha a intenção de se arrepender. Ele estava resoluto. Diante da
escolha entre o seu pecado e a Palavra de Deus, ele escolheu o pecado. Então a igreja
agiu.
Estive envolvido em outras situações nas quais o pecador não estava assim tão
resoluto. Um homem com quem geralmente me reunia foi rápido em confessar seu
pecado e parecia verdadeiramente odiá-lo, e às vezes ele se abstinha dele durante
meses. Depois, minha vida ficou ocupada, tendo-se passado algumas semanas, e me
ocorreu que eu não o havia visto ou ouvido falar dele. Não resta dúvida de que eu
acabaria descobrindo que ele havia se lançado abruptamente em seu vício mais uma
vez. Em algum momento, sua cabeça apareceria acima da superfície, respirando
com dificuldade e implorando por ajuda. Com pessoas como essas, as igrejas
geralmente precisam gastar mais tempo. Afinal, não é apenas a natureza do pecado
que precisa ser considerada, é a natureza do próprio pecador. Grosso modo,
pecadores diferentes exigem estratégias diferentes. Conforme o próprio Paulo
coloca: “Admoesteis os insubmissos, consoleis os desanimados, ampareis os fracos e
sejais longânimos para com todos” (1 Ts 5.14). Esse irmão em especial de alguma
forma se enquadrava na categoria “os fracos”. Ele precisava de ajuda — ajuda
contínua — quase como um homem mais velho que não pode caminhar com suas
próprias pernas sem que outra pessoa segure o seu braço. Esse irmão não poderia
suportar minhas semanas ocupadas. Em um episódio em particular, o seu pecado
parecia que poderia trazer prejuízos para outros de um modo escandaloso. Na
minha opinião, se ele tivesse continuado dessa maneira, a igreja poderia tê-lo
excluído imediatamente e com razão. Felizmente, ele deu atenção às advertências
dadas e se arrependeu.
Há múltiplas variáveis em cada situação. Por essa razão, nenhuma fórmula
simples pode ser dada. Contudo, em todas essas equações, uma igreja e seus líderes
devem se lembrar deste fato: a igreja foi chamada, acima de tudo, para proteger o
nome e a glória de Cristo. A disciplina na igreja diz respeito principalmente à
reputação de Cristo e se a igreja pode continuar a confirmar a profissão de fé de
alguém cuja vida corre o risco de difamá-lo. Os pecados e as circunstâncias do
pecado poderão variar tremendamente de forma, mas uma pergunta deve estar
sempre no foco de nossa mente: “Como o pecado deste pecador e a nossa reação a
ele refletirão o amor santo de Cristo?” Isso não é o mesmo que perguntar: “O que
tornará Cristo popular?” Algumas das coisas que Cristo disse e fez ofenderam a
muitos; e o mesmo acontecerá com a igreja. A percepção acerca de como refletir o
amor santo de Cristo nem sempre será óbvia, mas essa deve ser a preocupação que
nos dirige.
Por essa razão, a disciplina na igreja ajuda a igreja a crescer na reverência santa e
no temor do pecado. Sempre que um ato formal de disciplina acontece, os membros
são relembrados a tomarem um grande cuidado com suas próprias vidas. O
congregacionalista James entende isso perfeitamente:
As vantagens da disciplina são óbvias. Ela recupera apóstatas; detecta hipócritas; propaga um
temor salutar por meio da igreja; acrescenta um incentivo extra à vigilância e à oração;
comprova o fato da fragilidade humana e suas consequências inquestionáveis e, além disso,
testemunha publicamente contra a injustiça354.
OS AFASTAMENTOS ANTECIPADOS
Em inúmeras ocasiões, ouvi pastores perguntando se eles deveriam aceitar o
afastamento antecipado de alguém que esteja numa situação de disciplina por causa
de pecado sem arrependimento. Imagine, por exemplo, um homem que decide
deixar sua esposa por causa de outra mulher. Os indivíduos da igreja pedem para o
homem se arrepender e voltar para a sua esposa. Mas ele não faz isso. Eles pedem
novamente, mas dessa vez eles também o advertem sobre a possibilidade de
excomunhão, pelo que ele renuncia à sua membresia. Caso encerrado. Agora ele
está imune, certo? Bem, isso é o que o pecador não arrependido está dizendo.
O fim de uma aliança exige o consentimento de ambas as partes. Nós nos unimos
a uma igreja pelo consentimento da igreja e a deixamos com o consentimento da
igreja. A Mount Olivet Baptist Church (Igreja Batista Monte das Oliveiras) não
deveria ter aceitado o afastamento de Jesse James. Ela deveria tê-lo excomungado a
fim de cumprir fielmente a aliança que eles haviam feito com ele, sem se importar
se ele incendiaria o prédio da igreja (sim, eu sei, para mim é fácil dizer isso!). Nos
dias de hoje, os membros descontentes normalmente não ameaçam incendiar o
prédio, mas ameaçam mover ações judiciais contra as igrejas e a chamar a imprensa.
No entanto, Cristo deu à igreja a autoridade para ligar e desligar, não ao cristão
individual. O homem que continua a se denominar cristão enquanto tenta evitar o
ato disciplinar da igreja é culpado, nas palavras de Griffith, de usurpar as chaves, ou
melhor, de as roubar. Cristo fez da igreja o seu procurador na terra exatamente
para tais ocasiões, a fim de que os hereges e hipócritas não se atrevam a continuar
falando em seu nome.
As igrejas devem disciplinar os membros que renunciam explicitamente a fé? E
faz diferença se eles estão vivendo uma vida imoral? Não creio que a igreja deva
excomungar alguém que não alegue mais ser cristão, quer ele esteja vivendo uma
vida de imoralidade, quer não. A igreja deve fazer a mesma coisa que faz quando
alguém morre — admitir o fato e apagar o nome do diretório da igreja. Isso é tudo o
que ela pode fazer. Cristo não deu à igreja autoridade sobre os mortos ou sobre
aqueles que não se chamam pelo nome dele. Em cada um desses casos, a aliança com
a igreja é simplesmente considerada irrelevante. Vale a pena observar que duas das
passagens mais importantes sobre a disciplina na igreja (Mt 18.15-17 e 1 Co 5)
instruem a igreja sobre como responder a alguém que alega ser um irmão.

UM TEMA DIFÍCIL
A disciplina corretiva na igreja é um tema difícil, não há dúvidas. Pensamos
conosco: o cristianismo supostamente diz respeito ao amor e à graça, ao passo que a
disciplina na igreja pode soar como o oposto do amor e da graça, de onde hesitação.
Questionamos se esse é o melhor curso de ação. Os pastores se perguntam se eles
devem fazer mais para ajudar o indivíduo. Questionam se apenas endurecerão o
indivíduo em relação à igreja. Talvez, em nenhuma outra área sintamos de modo
tão severo a prerrogativa de agir como os procuradores de Cristo. “O Senhor tem
certeza? O Senhor quer que exerçamos esse poder das chaves para ligar e desligar?”
É fácil tomar as chaves quando estamos trazendo alguém para dentro, mas e
quando é para mandá-lo embora?
Devemos manter em mente que a disciplina corretiva na igreja é um pequeno ato
de julgamento na terra que aponta vagamente para o julgamento final, de Deus, no
céu. Ele é realizado na esperança de ajudar a trazer o pecador ao arrependimento
antes que venha o julgamento final. Por essa razão, quando nos empenhamos nisso,
creio que a disciplina na igreja é algo difícil de fazer, porque tratamos o juízo final de
Deus de forma bem inconsequente. Passamos dias, até mesmo meses, sem nunca
pensar sobre ele. Até mesmo questionamos secretamente se esse juízo será afinal
tão ruim. O maligno nunca parou de sussurrar em nossos ouvidos: “É certo que não
morrereis.” Além do mais, amamos muito a nós mesmos; e o conflito entre a
concepção que Deus tem sobre o amor, a qual é teocêntrica, e a nossa concepção
antropocêntrica grita mais alto diante da disciplina na igreja. Deus não julgará, de
fato, os que estão fora do evangelho, não é mesmo? O pastor reformado holandês
Wilhelmus à Brakel, escrevendo em um livro publicado pela primeira vez em 1700,
fornece uma advertência severa aos líderes de igrejas que são tentados a pensar
dessa maneira. Suas palavras poderiam soar como ríspidas para os nossos
sentimentos contemporâneos, mas acho que elas são dignas de serem ouvidas,
principalmente por qualquer líder de igreja que, assim como eu, pensa bem pouco
sobre aquele grande dia de prestação de contas. Brakel nos dá um vislumbre do que
significa prestar contas daqueles que foram confiados aos nossos cuidados ao
referir-se ao que ele chama de “chave da disciplina”:
Atentai para o fato de que essa chave vos foi confiada pelo Senhor Jesus. Vós sois, por assim
dizer, os porteiros de uma cidade. Esses porteiros são considerados os mais infiéis quando
permitem a entrada de um inimigo que se aproxima, vindo para destrui-la. Vós seríeis
igualmente porteiros infiéis se permitísseis que esses inimigos entrassem e permanecessem em
vosso meio e assim destruíssem a congregação que colocou sua cofiança em vossa fidelidade. Vós
sois a causa de a igreja estar se tornando degenerada em sua essência. Sois responsáveis por
todas as consequências disso. Por causa disso, o Nome de Deus é desonrado; muitas pessoas que,
doutra forma se uniriam à igreja, são impedidas de fazê-lo; almas que se arrependeriam por
meio do uso das chaves do reino de Deus estão sendo destruídas; e o florescimento da piedade
está sendo impedido. Vós sereis a causa de um membro imitar o outro na comissão do mal e de
os piedosos serem oprimidos, e de suspirarem secretamente por causa da condição miserável da
igreja. Saibais que o Senhor vos levará a juízo por todas essas coisas; e que lá tereis de prestar
contas pela forma como tendes governado a igreja confiada a vós, e das almas sobre as quais o
Senhor vos designastes bispos. O Senhor requererá o sangue de todas essas almas que perecerão
devido à negligência do uso dessa chave. Ah, quão importante é essa responsabilidade, e quão
temível será o juízo de Deus sobre todos os presbíteros infiéis! Oxalá muitos não houvessem se
tornado presbíteros355!
Considere o quão raramente as igrejas praticam a disciplina corretiva em nossa
época. Considere também a nossa busca por popularidade. Poderia ser o caso, mais
do que percebemos, de sermos como os antigos sacerdotes e profetas de Israel, que
pronunciavam “Paz, paz” quando não havia paz? Não, com certeza, não nós. Nós
somos sábios. Ao contrário de todos que tenham vindo antes de nós, nós temos
alcançado hoje em o equilíbrio, não é verdade?

CONCLUSÃO
A membresia e a disciplina da igreja ajudam a definir o amor para o mundo
porque distinguem o povo de Deus do mundo e o coloca em evidência. Portanto,
observar cuidadosamente os membros, dentro e fora de nossas igrejas, é uma das
coisas mais importantes que podemos fazer para edificar igrejas saudáveis,
evangelizar o mundo e trazer glória para Deus. No entanto, a membresia da igreja
não diz respeito apenas a limites; ela diz respeito à vida no meio do corpo, e é para
essa questão que passaremos finalmente.

340. Ted P. Yeatman, Frank and Jesse James: The Story Behind the Legend [Frank e Jesse James: A
História Por Trás da Lenda], Nashville: Cumberland, 2000, p. 91.
341. T. J. Stiles, Jesse James: Last Rebel of the Civil War [Jesse James: O Último Rebelde da Guerra
Civil], New York: Alfred A . Knopf, 2002, p. 203.
342. Veja Timothy C. Tennent, Theology in the Context of World Christianity [Teologia no Contexto do
Cristianismo no Mundo], Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 193-220.
343. John Angell James, Christian Fellowship or The Church Member’s Guide, Edição e Resumo de
Gordon T. Booth, da 10a edição do vol. 11 de Works of John Angell James, 1861 [As Obras de John
Angell James], Shropshire, England: Quinta Press, 1997, p. 53.
344. Obviamente, a analogia da teia de aranha não é perfeita. Há uma razão para que os
sistematizadores tenham dado prioridade tanto aos princípios gerais quanto à doutrina das Escrituras
por tanto tempo e para que muitos, hoje em dia, deem prioridade à doutrina de Deus (acho que
podemos dar bons argumentos para as duas coisas). De qualquer forma, não há um modo de apreender
um senso do que é prioritário ou fundamental com a analogia da teia de aranha. Apesar disso, creio que
essa analogia apreende determinados aspectos da teologia sistemática e as interligações entre as
doutrinas de um modo que uma lista linear não consegue fazer.
345. As tendências pós-modernas e globalizadas da teologia ridicularizariam a noção de que uma
declaração de fé possa oferecer tais declarações “universais”, já que toda doutrina é uma parte e uma
visão panorâmica do todo. Por exemplo, Steve Strauss fornece uma reflexão interessante sobre o modo
como as circunstâncias históricas da Igreja Ortodoxa Etíope consideram o Credo de Calcedônia
inadequado para comunicar as mesmas coisas que as igrejas ocidentais querem comunicar por meio da
Cristologia Calcedônica. Steve Strauss, “Creeds, Confessions, and Global Theologizing: A Case Study in
Comparative Christologies” [Credos, Confissões e Formulações Teológicas: Um Estudo de Caso em
Cristologia Comparativa] in Globalizing Theology [Teologia Globalizada] Ed. Craig Ott and Harold A .
Netland, Grand R apids: Baker, 2006, pp. 140–56. Considerando que eu concorde com o fato de que toda
teologia seja uma parte incompleta do todo, e que certa medida de sensibilidade em relação ao contexto
seja necessária em nossas formulações doutrinárias, também acredito que podemos nos tornar bem mais
entusiasmados acerca desse ponto e exagerar a importância das diferenças contextuais. Obviamente,
essa é uma discussão mais ampla do que a que posso me encarregar neste livro.
346. Paul David Tripp e Timothy S. Lane, Helping Others Change Workbook [Ajudando Outros a Mudar
- Livro de Tarefas], 3a ed., Greensboro, NC: New Growth Press, 2008, pp. 2-3, lição 2.
347. Veja a excelente teologia bíblica de Timothy Laniak sobre a metáfora do pastoreio ao longo das
Escrituras em Shepherds after My Own Heart [Pastores Segundo Meu Próprio Coração], Nottingham,
UK: Inter-Varsity, 2006. Para uma obra num nível mais popular, veja David Dickson, The Elder and His
Work [O Presbítero e sua Função], Phillipsburg, NJ: P&R , 2004.
348. Benjamin Griffith, “A Short Treatise Concerning a True and Orderly Gospel Church” [Um Breve
Tratado sobre uma Igreja Evangélica Verdadeira e Organizada] in Polity, Ed. Mark Dever, Washington
DC: Center for Church Reform, 2001, p. 103. 10 Ibid., p. 108-9.
349. Ibid., p. 102.
350. Ibid., p. 108-9.
351. Eu argumentei, no Capítulo 4, que as igrejas não têm o direito de impedir o batismo de um que o
Espírito Santo tenha convertido, mas que, ao mesmo tempo, permanece a prerrogativa da igreja para
batizar, visto que somente ela possui a autoridade do alvará de Cristo (veja Atos 10.47-48). A mesma
fórmula básica se aplica ao afastamento do membro. Quando um “membro que está num bom
relacionamento” decide deixar a igreja por causa de outra congregação local, creio que a igreja não tem
outra escolha senão aceitar seu afastamento. Pode haver razões pelas quais esse afastamento seja uma
tolice, mas a decisão de deixar uma igreja por outra não é base para disciplina na igreja. Ao mesmo
tempo, permanece a questão de que um afastamento da forma correta depende do consentimento da
igreja.
352. Estou fazendo uso da distinção informal/formal feita por Jay E. Adams in Handbook of Church
Discipline: A Right and Privilege of Every Church Member [Manual da Disciplina na Igreja: Um Direito
e um Privilégio de Cada Membro da Igreja], Grand R apids: Zondervan, 1974, p. 27.
353. John Angell James, Christian Fellowship or The Church Member’s Guide, Edição e Resumo de Gordon T.
Booth, da 10a edição do vol. 11 de Works of John Angell James, 1861 [As Obras de John Angell James],
Shropshire, England: Quinta Press, 1997, p. 53.
354. Ibid.
355. Wilhelmus à Brakel, The Christian’s Reasonable Service [O Culto R acional Cristão], vol. 2, Ligonier,
PA: Soli Deo Gloria, 1993, p. 185.
Capítulo 7

A SUBMISSÃO E A
LIBERDADE DO AMOR

“Se você ama alguém, deixe-o livre.” — Sting

Pergunta principal: O que significa se submeter a uma igreja local? Existe um


limite em relação à autoridade que a igreja tem sobre o indivíduo?

Resposta principal: Submeter-se à igreja significa submeter todo o nosso eu à


igreja, para o bem dela e para a glória de Cristo, assim como Cristo entregou a si
mesmo pelo nosso bem e para glória do Pai.

Deixei a questão mais difícil para o final. Essa é a parte que envolve a você e a
mim, e todo aquele que alega ser um seguidor de Cristo. É a parte na qual realmente
nos empenhamos em relação ao que significa se submeter a uma igreja local. Temos
falado ao longo deste livro sobre a membresia como sendo um tipo de submissão, e
sobre o fato de que o cristianismo tem uma forma congregacional. Mas como é isso?
Fomos realmente chamados para renunciar à nossa liberdade? Isso é algo difícil de
engolir.
Em nossas discussões sobre amor, autoridade e submissão ainda não
abrangemos o que acontece com a nossa liberdade. Jesus não veio para nos
libertar?E não é isso o que o amor sempre faz — deixa a pessoa amada livre? Ao que
parece, a liberdade é um pré-requisito do amor. Uma pessoa não pode ser forçada a
amar outra. Conforme diz a figura do Pai divino, Papai, no romance de
espiritualidade popular de William Young, A Cabana: “Não faz parte da natureza do
amor forçar um relacionamento, mas faz parte da natureza do amor abrir o
caminho para isso.”356 Como então os crentes podem ser compelidos pela
autoridade de uma igreja local, ou sob a autoridade dela, a se tornarem parte da
definição de amor? Com certeza precisamos falar sobre os limites da autoridade da
igreja.
Temos duas perguntas difíceis para responder neste capítulo: Como o
cristianismo vivido na submissão a uma local é para os cristãos? E como colocamos
limites sobre a autoridade da igreja para que não acabemos no antigo autoritarismo
ou no fundamentalismo legalista? Consideraremos primeiro a segunda pergunta, o
que exigirá que teologizemos um pouco mais. Mas depois passaremos rapidamente
para uma ilustração concreta sobre como é a vida moldada de forma congregacional.

Ponto 1: A liberdade cristã não é uma liberdade da restrição,


mas uma liberdade dada pelo Espírito para desejarmos o que
Deus deseja e coformarmos a nossa vida a dele.

LIBERDADE NEGATIVA VERSUS LIBERDADE POSITIVA


Era outono de 1995 quando li pela primeira vez o ensaio notável do filósofo
político Isaiah Berlin, “Dois Conceitos de Liberdade”. Não creio que eu fosse crente
naquela época e não conhecia teologia alguma além das ideias básicas que alguém
adquire quando cresce numa igreja. Entretanto, eu tinha uma familiaridade básica
com a Bíblia, graças a meus pais crentes obedientes e a alguns versículos
memorizados durante as programações. No entanto, enquanto eu estava sentado
na Biblioteca Britânica de Ciências Políticas e Econômicas, em Londres, na
Inglaterra, debruçado sobre a mesa da biblioteca, lembro-me de ter ficado
impressionado com as implicações teológicas óbvias do ensaio de Berlin em favor do
cristianismo à medida que ele comparava dois conceitos de liberdade (ou
autonomia). Como essas implicações foram perturbadoras!
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE
Nesse ensaio, Berlin distingue a liberdade negativa da liberdade positiva357. Ele
define a liberdade negativa como a autonomia que temos quando a nossa
capacidade de tomar decisões não é impedida pelos outros: “Geralmente sou
considerado livre até o ponto em que nenhum homem ou grupo de homens
interfere em minha atividade.”358 Ela é uma liberdade das cadeias, da lei, da
coerção, dos obstáculos e de qualquer coisa que possa nos impedir de escolher o que
quer que que queiramos escolher.
Berlin define a liberdade positiva, por outro lado, como a autonomia para a
autodeterminação e autodomínio. Ela é a liberdade de “estar consciente de mim
mesmo como um ser que pensa, tem vontade e age, que tem responsabilidade pelas
próprias escolhas e é capaz de explicá-las com relação às próprias ideias e
propósitos”359.
Ele admite que esses dois conceitos podem não parecer muito diferentes, mas a
chave é reconhecer que a liberdade negativa se concentra naquilo que é externo: há
algo externo que esteja impedindo a nossa liberdade? Se não houver, estamos livres.
A liberdade positiva se concentra naquilo que é interno: somos capazes de agir de
acordo com a nossa razão, nossos princípios e nossa verdade? A concepção positiva
de liberdade traz consigo um apelo implícito à razão, aos princípios, às leis ou a
verdades internas360.

O VERDADEIRO PERIGO DA LIBERDADE POSITIVA O perigo da liberdade


positiva, afirma Berlin, escrevendo após o Holocausto e no ápice da
Guerra Fria, é que alguma concepção social mais ampla do eu, da razão e
da verdade serão adotadas como sendo as concepções do próprio
indivíduo. Alguém que vive numa nação fascista, comunista ou católica
começará a pensar que é “livre” quando age de acordo com as verdades
fascistas, comunistas ou católicas, às quais ele absorveu dos sacerdotes
dessa propaganda política. O ensaio de Berlin é, de fato, uma crítica a
toda tradição da liberdade positiva e de seus propagadores como
Rousseau, Herder, Kant, Hegel e Marx.
Enquanto isso, Berlin apresenta abertamente a liberdade negativa e sua defesa.
Pensadores como Hobbes, Locke, Bentham, Mill ou Tocqueville, que são
provavelmente um pouco mais conhecidos dos estudantes britânicos e americanos,
concentravam-se menos em persuadir seus leitores acerca das grandes verdades da
história e mais em garantir algum âmbito mínimo de ação no qual o indivíduo
pudesse agir livremente.
A preferência de Berlin pela liberdade negativa em detrimento da positiva faz
perfeito sentido. E eu sugeriria que a história da política e da filosofia política pode
ser resumida na aceitação que a humanidade faz de uma forma de liberdade positiva
após a outra — um novo governante messiânico, um novo sistema, uma nova
ideologia ou utopia que as pessoas esperam que as liberte. No entanto, todas essas
coisas demonstram-se, afinal, ídolos (veja Daniel 2). Alguns desses ídolos são mais
exigentes que outros, tais como os ídolos do comunismo e do fascismo, mas todas as
formas de liberdade positiva — todos os ídolos — baseiam-se num sistema de
verdade que se opõe a Deus. O que é uma característica exclusiva do pós-
modernismo e das formas contemporâneas de liberalismo filosófico é a percepção
correta de que toda forma de liberdade positiva é, na verdade, um ídolo, que no final
levará à opressão e à escravidão. Por essa razão, aqueles que adotam esses pontos
de vista contemporâneos optam por aquilo que parece a solução menos ameaçadora
— a liberdade negativa. A liberdade negativa, até onde ela é capaz, não faz
reivindicação alguma da verdade, exceto da assim chamada verdade aguada de
concordar em discordar. Ela apenas pede para não ser incomodada. Não me impeça
de fazer as coisas e eu também não o impedirei, mas desde que concordemos em
não pisar no calo um do outro.
Tomei um pouco de tempo para entrar nos detalhes do ensaio de Berlin aqui
porque acho que a distinção que ele faz ajuda a esclarecer a diferença entre a nossa
compreensão de liberdade no Ocidente pós-moderno e compreensão bíblica sobre
liberdade. Não utilizei a linguagem “liberdade negativa” no Capítulo 1, mas, no final,
chegamos a isto: “Não me diga o que pensar, apenas fique fora do meu caminho.”
Ser livre, enfim, não significa agir de acordo com a verdade. Significa não ser
reprimido pelos pais, pelo professor ou pelo pastor. No Ocidente dos dias de hoje,
portanto, estabelecemos a nossa definição de amor diretamente dessa exata
concepção negativa de liberdade. Amar alguém é deixá-lo livre — é remover todos
os constrangimentos e julgamentos: “Se você me ama com condições e julgamentos,
você não me ama, porque você não está me deixando livre.” Anthony Giddens chama
isso de “simples relacionamento”, um relacionamento que é puro ou incontaminado
por qualquer obrigação moral, qualquer senso de dever ou responsabilidade,
qualquer compromisso a longo prazo, qualquer chamado para servir ou cuidar do
outro. Isso se harmoniza bem com a cultura como um todo; os evangélicos pós-
fundamentalistas geralmente são os primeiros a gritar “legalismo” e “falta de amor”
ao mais leve sinal de autoridade pastoral ou constrangimento congregacional.
Assim como diz o Papai de A Cabana, “faz parte da natureza do amor deixar o
caminho livre”. Remova essas restrições.

CRISTIANISMO, UM SISTEMA DE LIBERDADE POSITIVA O que me


perturbava, como alguém que se denominava “cristão” em 1995 mas era
muito inclinado a viver para si mesmo, era: todo o cristianismo diz
respeito à liberdade positiva 361. A liberdade na Bíblia é alguém conhecer a
verdade e viver por meio dela porque o deseja. O próprio Jesus diz isso:
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). A verdade é
que devemos conhecer e seguir a ele: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres” (v. 36).
Jesus é um totalitarista. Ele não é um monarca da antiguidade que sobrecarrega
os camponeses de impostos para construir seu castelo. Ele é como o antigo estado
soviético, que queria estar dentro da cabeça das pessoas e mudar sua própria
maneira de pensar, chamando “liberdade” a submissão à sua doutrina. A
reivindicação deles era total, assim como a de Jesus. É isso o que Jesus quer dizer
quando nos diz que devemos ser como a semente que cai no solo e morre, ou que
devemos nascer de novo, ou que devemos tomar a nossa cruz e segui-lo. Nós nos
tornamos livres quando a verdade dele se torna o nosso princípio de ação interno —
nossas afeições, motivações, desejos e adoração.
Paulo também fala a respeito da liberdade dessa maneira. Em Romanos 6 a 8, ele
descreve a liberdade e a escravidão nas categorias da concepção positiva de
liberdade. Liberdade não diz respeito apenas ao que nos constrange externamente,
mas também ao que nos motiva internamente. Ela é definida pelo nosso princípio
de ação interno. Isso fica evidente no fato de que a liberdade para agir de acordo
com nossas motivações e desejos é descrita ao mesmo tempo como “escravidão” ou
“obediência”. Quando descrentes, Paulo diz que nós éramos “escravos do pecado”
(6.6, 17, 20). Ele tinha “domínio” e “reinava” em nós para nos fazer “obedecer às
nossas paixões” (6.14, 12). Ao falar sobre o velho homem, Paulo não equivale
explicitamente essa “escravidão no pecado” ao estado de “liberdade para pecar”,
porque o seu alvo não é dar uma definição filosófica de liberdade, e também porque
isso depreciaria o seu sentido. Essa equiparação se torna explícita quando Paulo se
volta para o nosso novo estado em Cristo. Por meio de Cristo, o crente foi “libertado
do pecado” (6.7, 22). Nós somos “livres em Cristo Jesus” (8.2). Mas essa libertação
do pecado e essa liberdade em Cristo são ao mesmo tempo uma forma de
escravidão: “Agora, porém... [fostes] libertados do pecado, transformados em
servos de Deus” (6.22). Devemos nos apresentar a Deus como “instrumentos de
justiça” ou “escravos da justiça” (6.13, 19). É isto o que Paulo entende por liberdade:
ser um escravo da justiça.
Em Gálatas 3 a 5, entra em ação a mesma compreensão de liberdade. Antes que
Cristo viesse, “estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados” (3.23). Estávamos
impedidos externamente pela lei (negativa), o que significa que estávamos
impedidos internamente, porque não podíamos fazer o que queríamos
(positiva)362. No entanto, mais uma vez vemos que Cristo nos libertou: “Para a
liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais,
de novo, a jugo de escravidão” (5.1 e também 4.21-31). Mas essa liberdade não é
uma liberdade negativa, da restrição; é uma liberdade interna para viver de acordo
com as exigências amorosas de Deus: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à
liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos
uns dos outros, pelo amor” (Gl 5.13).
Pedro também possui essa compreensão acerca da liberdade: “Como livres que
sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como
servos de Deus” (1 Pe 2.16; e também 2 Pe 2.19). Ser livre é viver como servo de
Deus.

OS NOVOS DESEJOS DE UM CORAÇÃO DADO PELO ESPÍRITO


A liberdade bíblica é esse estado extraordinário no qual desejamos aquilo que
Deus deseja. Como isso acontece? Como somos libertados para desejar aquilo que
Deus deseja? Durante um tempo, a lei justa de Deus nos aprisionava. Agora, porém,
nós devemos ser “escravos da justiça”, e Jesus e Paulo querem chamar isso de
“liberdade”. Como isso é possível? Isso é possível por causa da nova aliança. O
Espírito nos dá corações novos. Ele cria novos desejos em nós, de modo que
desejamos amar a Deus e amar ao nosso próximo (veja Dt 30.6; Jr 31.33-34; Ez
36.26-27), que é cumprir a lei (Rm 13.8-10). Tanto Jesus como Paulo tratam disso
explicitamente363. Jesus liberta o seu povo concedendo a verdade e também o
Espírito às pessoas, criando toda uma nova realidade dentro delas, capacitando-as a
guardar o seus mandamentos. Uma pessoa deve nascer de novo por meio do
Espírito para entrar no Reino de Deus (Jo 3.5; vs. 6, 8). Uma pessoa só pode adorar
a Deus em espírito e em verdade (Jo 4.23-24). Somente o Espírito vivifica (Jo 6.63),
e o Espírito de Deus deve ser concedido para guiar o povo de Deus em toda a
verdade (Jo 14.17, 15.26, 16.13). Somente o Espírito convence o mundo do pecado,
da justiça e do juízo (Jo 16.8-11). Antes de ascender aos céus, Jesus soprou o
Espírito sobre os seus discípulos para que eles pudessem conhecer essa liberdade
(Jo 20.22, cf. 7.39). Paulo deixa bem claro que essa é a obra do Espírito, que cria
novas realidades em nosso coração: “Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo
Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8.2); e: “Onde está o Espírito do
Senhor, aí há liberdade” (2 Co 3.17).
A liberdade na Bíblia é consistentemente caracterizada como o conhecimento da
verdade, o desejo de prestar atenção à verdade e a capacidade de prestar atenção à
verdade. É a liberdade de ser capaz de fazer o que Deus criou você para fazer —
retratá-lo em toda a sua glória, quer tenhamos sido designados para ser um
corredor, quer um pensador, quer um engenheiro, quer um cantor. Somente Cristo,
portanto, era verdadeiramente livre, porque ele conhecia a lei e a cumpria,
exatamente como todo filho e filha de Adão deveria viver. Somos livres como
cristãos na proporção em que andamos pelo Espírito e não pela carne (veja Rm 7-8).
Naquilo que deixarmos a carne nos guiar, no entanto, não seremos livres. Os
padrões justos de Deus parecerão constrangedores e até mesmo escravizadores.
É compreensível que os crentes hoje em dia tenham sido atraídos para uma visão
de liberdade quase que exclusivamente negativa, quer seja de forma intuitiva, quer
de forma articulada (os teólogos a descrevem como liberdade libertária). Os
membros das igrejas, além de serem crentes, são seres humanos que têm sofrido
abuso e opressão juntamente com todas as demais pessoas ao longo da escada
rolante da história política dos ídolos. Consequentemente, os crentes estão
receosos de (quase) todas as formas de liberdade positiva, e com razão. Mas isso é
exatamente o que Jesus oferece — um sistema de verdade, uma metanarrativa,
uma cosmovisão, uma lei e um evangelho, independente dos quais a liberdade é
impossível.

Ponto 2: Visto que a liberdade cristã só pode ser concedida


pelo Espírito, e não pela carne, o uso piedoso da autoridade
na igreja não buscará coagir os indivíduos por meio da carne,
mas apelará para as realidades do evangelho, concedidas pelo
Espírito.

O AUTORITARISMO E OS LIMITES DA AUTORIDADE


Ao longo deste livro, tenho argumentado que a vida cristã envolve submissão à
autoridade, isso se a autoridade apostólica da igreja para ligar e desligar, ou a
autoridade pastoral para corrigir, repreender e exortar, estiverem de acordo com a
Palavra de Deus (Mt 16.19; 2 Tm 4.2). Todavia, essa discussão sobre liberdade
positiva versus liberdade negativa deveria nos ajudar a compreender tanto o que
está envolvido na submissão à igreja quanto os limites da autoridade da igreja.
Deixe-me extrair quatro lições em especial. Conforme faço, emprego uma distinção
entre autoridade e autoritarismo. O primeiro termo será usado tanto de forma
neutra quanto positiva, ao passo que o último será usado pejorativamente e
compreendido como pecado.
1) A liberdade cristã não é liberdade independentemente do Espírito. Sem a obra
do Espírito de Deus no coração de alguém, a liberdade do cristianismo não é
liberdade. É uma lei aprisionadora e condenadora. Lembre-se que o cristianismo
diz: uma pessoa deve aceitar as boas novas da vida, morte e ressurreição de Jesus a
fim de ter a verdadeira vida (por exemplo, Jo 3.18; 14.6; cf. Hb 10.28-29). Ele diz
que um cristão deve andar em obediência a Cristo (por exemplo, Jo 3.36; 8.51;
15.1ss., 14), mas ele também diz que uma pessoa não pode aceitar essas boas novas
e esse mandamento até que tenha nascido de novo pelo Espírito (Jo 3.5-8; cf. 5.21;
6.37, 44, 65; 8.43,47; 10.3, 16, 27). À medida que uma pessoa não andar no Espírito,
portanto, ela não será livre para crer e segui-lo. Isso é verdade para o descrente, e é
verdade para o cristão que caminha na carne.
Os descrentes odeiam o amor de Deus, o evangelho de Deus e a igreja de Deus,
porque essas coisas soam como falta de liberdade aos seus ouvidos descrentes a aos
seus olhos que não veem. Elas parecem nada mais que um constrangimento
exclusivista da liberdade. Isso é pisar no calo deles, motivo pelo qual Isaiah Berlin e
os demais descrentes associarem o cristianismo a todas as formas de liberdade
positiva, como o comunismo e o fascismo. Eles não podem crer nele.
2) A autoridade cristã sempre parecerá escravizadora para os seres humanos
caídos. Se a liberdade cristã não é liberdade onde quer que o Espírito de Deus não
esteja agindo, a autoridade cristã sempre parecerá escravizadora e penosa sem a
obra da nova aliança do Espírito. Se este capítulo fosse um sermão, eu diria a última
frase duas vezes, porque ela é muito importante. Independentemente da obra do
Espírito de Deus no coração, o uso piedoso da autoridade quase sempre soará como
autoritarismo.
Quando a igreja ou o pastor diz: “Deus nos chama para amar”, a carne do
descrente e do cristão se sente igualmente sobrecarregada e oprimida porque eles
não desejam amar. Eles querem amar somente a si mesmos, e esse mandamento
está fora de sincronia com esse desejo interno.
O mais curioso é que uma ação de um pastor cristão que pareça autoritária e
opressiva para determinado membro da igreja pode não ser nem autoritária nem
opressiva. No Capítulo 3, observamos que a nossa compreensão acerca da
autoridade na igreja deve ser complexa, porque as realidades tanto da queda quanto
da nova criação no Espírito estão presentes simultaneamente. Eu compararia a
presente época a uma tela de cinema sobre a qual dois projetores de filme
projetassem a sua luz. Temos dificuldade para discernir qual imagem na tela vem de
qual projetor, já que às vezes elas se sobrepõem.
Considere alguma ação de autoridade na igreja, talvez um pastor instruindo um
jovem, ou a igreja excluindo um pecador não arrependido. Em qualquer um dos
casos, essa ação poderia ser piedosa ou autoritária. Essa ação poderia ser feita no
Espírito, por causa do amor, ou na carne, por causa do poder. Em qualquer um dos
casos, o recebedor da ação da autoridade sentirá essa ação como uma ação
autoritária se ele não estiver no Espírito. Ele se sentirá como se estivesse sob uma
imposição. Por essa razão, quando um descrente ou um cristão imaturo vai embora
da igreja dizendo que ela é legalista ou pecaminosamente autoritária, eu assumo
que ou a igreja é autoritária ou o membro que está saindo simplesmente acha que
ela é autoritária.
Afinal, essa é a natureza de toda a disciplina (Hb 12.11). A disciplina não se
harmoniza com nossos desejos internos; na verdade, ela é necessária exatamente
porque os nossos desejos internos não estão de acordo com ela.
3) A autoridade cristã piedosa reconhece esses limites. O que tudo isso significa
para os limites da autoridade da igreja? De modo geral, quando as pessoas falam
sobre os limites da autoridade de uma igreja ou de um presbítero, elas se referem a
uma questão de domínio, como se dissessem: “Um presbítero pode agir com
autoridade neste domínio, mas não naquele.” Por exemplo, um presbítero possui
autoridade para pregar a Bíblia; mas não tem autoridade para realizar
apendicectomias, para operar torres de controle de tráfico aéreo ou para legislar no
Congresso. E deixe-me afirmar categoricamente o seguinte: nem a igreja, nem os
presbíteros possuem autoridade além de onde as Escrituras permitem que eles
vão364.
Ao mesmo tempo, pensar a respeito dos limites da autoridade da igreja em
termos de domínio poderia nos impedir de perceber o que realmente está em jogo
entre o uso piedoso da autoridade e o autoritarismo. A diferença-chave está no
coração daqueles que agem com autoridade, bem como no coração daqueles que
estão sujeitos à autoridade. Conforme vimos no C6, um coração autoritário confia
em suas próprias forças para produzir mudança. Ele grampeia maçãs nas árvores.
Um coração não autoritário, no entanto, sabe que somente Deus produz mudança.
Ele alimenta e rega a árvore, mas pede que Deus dê o crescimento.
Portanto, eis a lição três: a autoridade cristã piedosa reconhece os limites
descritos nas lições um e dois acima. Ou seja, a autoridade cristã piedosa reconhece
que é total e pateticamente dependente de Deus, o Espírito, para conceder a
verdadeira liberdade, o verdadeiro amor e a verdadeira luz para os olhos do pecador
(com base na lição um). Ela também reconhece que toda lei, todo mandamento,
toda reivindicação da verdade ou toda a paz das boas novas que ela coloca diante das
pessoas é, portanto, uma imposição sobre sua carne caída, e que sua carne resistirá
a ela (com base na lição 2). Esse é o risco onipresente do ministério cristão.
O uso correto da autoridade cristã, portanto, exige que uma igreja ou um
indivíduo reconheça sua total impotência e futilidade sem o Espírito de Deus. É um
ato de fé, não um ato da carne. Por essa razão, a pregação, a disciplina e o
evangelismo, que são na verdade ações de autoridade, devem sempre ser realizados
pela fé.
Podemos resumir os atributos da autoridade piedosa no contexto da igreja local
(ou do lar cristão) da seguinte maneira:
A autoridade piedosa é exercida por meio da fé. Ela confia em Deus para fazer
mudanças. Ela crê que Deus sempre tem o poder para transformar e que ele o
fará se assim determinar.

A autoridade piedosa exorta primeiro o coração e, só depois, a vontade. Em


outras palavras, a autoridade piedosa ajudará as pessoas a considerarem o que
elas verdadeiramente desejam antes de lhes dizer o que elas devem fazer365.

A autoridade piedosa apela aos crentes com base em sua posição no evangelho,
não na força de sua carne. Um pastor ou conselheiro cristão não deve dizer
coisas como: “Eu espero mais de você”, ou: “Você é melhor do que isso.” Em vez
disso, ele dirá: “Você não percebe que você morreu e foi ressuscitado com
Cristo? Você é uma nova criatura. O que isso deve significar agora?” Uma
autoridade cristã dará ordenanças (por exemplo: 2 Ts 3.6, 10, 12), mas essas
ordenanças surgirão da membresia no evangelho. Ela apela para as novas
realidades do Espírito. Os imperativos sempre devem seguir os indicativos
daquilo que Cristo concedeu.

A autoridade piedosa é excessivamente paciente e afável, sabendo que somente


Deus pode dar o crescimento (1 Co 3.5-9). Um cristão imaturo talvez precise
caminhar uma centena de passos até chegar à maturidade, mas um pastor
sábio raramente pede mais do que um ou dois passos. O nosso exemplo é
Jesus. “Tomai o meu jugo... e aprendei de mim”, ele diz (Mt 11.29). Tomar o
seu jugo é se tornar um discípulo. É aprender. Mas ele é manso e humilde de
coração, e seu jugo é suave e leve (11.29-30).

A autoridade piedosa está sempre medindo ou verificando cuidadosamente em


que estágio espiritual a pessoa está. O presbítero e a igreja piedosos jamais
fazem prescrições espirituais sem antes investigarem e se darem ao trabalho
médico do diagnóstico.

No entanto, a autoridade piedosa também está disposta a traçar limites e a


fazer exigências que ela sabe que não serão cumpridas. Um bom médico não só
faz perguntas cautelosas, mas identifica um câncer quando o vê.
Semelhantemente, uma igreja ou um presbítero não devem usar sua
autoridade para obscurecer as realidades do evangelho de Deus, mas para
iluminá-las. O poder das chaves, por exemplo, deve ser utilizado exatamente
com esse propósito.

Em resumo, não basta dizer que a autoridade do pastor ou da igreja deve estar
limitada a determinados domínios. Antes, devemos reconhecer que a autoridade
cristã — a autoridade do evangelho — tem uma natureza fundamentalmente
diferente da autoridade do mundo, já que ela age pelo poder do Espírito, não pelo
poder da carne. A autoridade do pastor ou da igreja não se origina do
consentimento daqueles a quem ela governa. Em vez disso, ela se origina da própria
autoridade de Jesus. Mas ela sempre apela para aqueles a quem governa, de modo
que eles possam consentir com uma só mente no Espírito. Ela reconhece que
qualquer coação ou manipulação não é um ato verdadeiro de fé e, por essa razão,
não é um ato da justiça verdadeira. Ela se abstém de ações coercivas ou
manipuladoras. Ela não estufa o peito e apresenta o seu cartão de autoridade
sempre que pode. Em vez disso, ela engaja as pessoas no amor. Gasta tempo com
elas e se adapta a elas. Ela apela ao Espírito Santo que está nelas, chamando-as para
uma santidade cada vez maior.
4) O autoritarismo na igreja não reconhece esses limites. A quarta lição é apenas
o oposto da terceira: uma igreja (ou um líder cristão) que tenha recebido autoridade
de Deus se torna pecaminosamente autoritária ou legalista quando não reconhece
seus limites de criatura, conforme compreendido nas lições um e dois. Ela grampeia
maçãs nas árvores em vez de alimentá-las e regá-las. Especificamente:
O autoritarismo dá ordens para a carne e não faz qualquer apelo ao novo
homem espiritual no evangelho.

O autoritarismo começa com os imperativos das Escrituras, não com os


indicativos daquilo que Cristo realizou.

O autoritarismo domina severamente sobre a vontade, fazendo tudo o que é


possível para que a vontade escolha corretamente, sem considerar onde a
vontade tem suas raízes plantadas — nos desejos do coração.

O autoritarismo exige uma conformidade externa em vez de arrependimento


do coração. Ao fazer isso, ele cria somente fariseus.

O autoritarismo geralmente ultrapassa os limites de onde a Bíblia nos dá


permissão para ir. Ele faz prescrições sobre coisas como “músicas com ritmo
marcado” ou partidos políticos. Esse tipo de presunção só é natural naqueles
que já começaram a pensar que têm o poder de transformar os outros pela
força de sua carne.

O autoritarismo é impaciente e enérgico. Visto que ele não reconhece que as


decisões têm sua base suprema nos desejos do coração, ele se sente bem-
sucedido sempre que produz uma decisão “correta”, tanto pela força quanto
pela manipulação.

O autoritarismo confia em sua própria força, em vez de se inclinar para o


Espírito, pela fé (veja Jo 3.6; 6.63).

À medida que as ações de autoridade da pregação, da disciplina e do evangelismo


forem realizadas na carne, eles levarão seu agente na direção do autoritarismo —
ao uso da força da carne para coagir e manipular. À medida que o coração de um
pastor confiar em seus poderes retóricos, sua confiança não será diferente da de
um ditador fascista. À medida que o coração de um pastor depender da retidão de
sua vida durante o discipulado, sua confiança não será diferente da dos padrões
professos no comitê do Partido Comunista soviético. À medida que o coração de um
pastor depender de suas capacidades intelectuais para a persuasão evangelística,
sua confiança não será diferente da dos piores partidos propagandistas e dos piores
trapaceiros da história.
Isso não é o mesmo que dizer que o ministro cristão deve descartar todos os
talentos da retórica ou todos os recursos intelectuais. É dizer simplesmente que
existe uma diferença entre empregar algo e confiar nele. Nós empregamos coisas
que são dispensáveis; nós confiamos em coisas que são necessárias. Empregamos
agricultores e comerciantes para ter o pão fabricado, mas confiamos em Deus para
nos dar alimento, uma distinção que fica implícita toda vez que abaixamos nossas
cabeças e agradecemos pela refeição que está diante de nós. A fé, de modo bem
simples, significa ter olhos para ver a diferença entre essas duas coisas. Não ter fé
significa assumir que o cérebro, o vigor muscular ou a beleza são necessários para
produzir a mudança. Em cada um dos casos, estamos usando a carne para
manipular a carne.
À medida que as estratégias contemporâneas de crescimento de igreja tentam os
líderes a confiarem nos artifícios do mundo — estilo, vivacidade, música, arte
retórica, design do prédio, inteligência, humor, autenticidade, relevância cultural —
elas tentam esses líderes a calcularem a mudança e a produtividade exatamente da
mesma forma como qualquer déspota da história tem feito. Na verdade, Hitler
tinha razões políticas para preferir a música de Beethoven e Wagner, ao passo que
os objetivos sociais de Lenin foram incorporados na arquitetura construtivista
soviética. Tais igrejas podem não intimidar seus membros, mas elas os coagem
emocional e intelectualmente. Ironicamente, o evangélico que pensa que o rock é
necessário para fazer com que sua igreja cresça não é diferente daquele
fundamentalista que diz que o rock é pecado. Exatamente por isso acusar uma
igreja de pragmatismo, caso ela tenha caído nisso, é ser muito generoso.
Para aqueles que estão em posição de autoridade, incluindo a igreja como um
todo, a discussão de Jesus e de Paulo acerca da liberdade significa que uma igreja
pode facilmente assumir que está agindo de acordo com os princípios bíblicos,
quando está, de fato, agindo de modo pecaminoso e autoritário. Essa imagem na
tela está vindo do projetor de filmes do mundo ou do de Cristo? Às vezes é fácil de
dizer, às vezes não. A autoridade terrena pode parecer impaciente, dominadora,
irrefletida, manipuladora e enérgica, mas também pode parecer bem-humorada,
sofisticada e agradável. A autoridade piedosa tende a parecer paciente, tardia para
falar, gentil e cuidadosa, mas pode também parecer desagradável, vigorosa e
agressiva. Deixe-me resumir essa questão com mais algumas comparações em
relação ao exercício da autoridade na igreja local ou por meio dela.

A autoridade do mundo ensina com convicção. A autoridade do evangelho ouve


e depois ensina com uma convicção ainda maior.
A autoridade do mundo envolve geralmente considerar um mestre terreno
como absoluto. A autoridade evangelho, de modo geral, celebra a pluralidade
de mestres humanos, porque ela confia num único Mestre.

A autoridade do mundo gosta de ouvir a si mesma enquanto fala. A autoridade


do evangelho ama falar a Palavra de Deus.

A autoridade do mundo é vigorosa. A autoridade do evangelho é ainda mais


vigorosa, com a força de Deus.

A autoridade do mundo gosta de salientar a humildade, o que faz expressando


dúvida ou falta de certeza366. A autoridade do evangelho é humilde, o que é
demonstrado cada vez que ela se submete à certeza da Palavra de Deus.

Será que podemos perceber por que tanto o pragmatismo das megaigrejas
voltadas para os frequentadores não convertidos quanto a humildade das cafeterias
emergentes são maçãs que não caem muito longe da macieira fundamentalista?

Ponto 3: Quando os indivíduos se encontram debaixo de uma


autoridade abusiva, eles devem sempre confiar na provisão e
nos propósitos de Deus; se for possível, eles devem fugir.
RESPONDENDO AO AUTORITARISMO
Há duas lições extras a serem extraídas dessa comparação entre a autoridade e o
autoritarismo que são de especial relevância para os indivíduos que estão sob
autoridade.

FUJA DE UM LÍDER ABUSIVO SE VOCÊ PUDER


Conheço muitos cristãos cujas vidas e cujo discipulado foram sensivelmente
prejudicados por um pai opressor, um pastor abusivo ou uma igreja legalista —
razão pela qual eu disse anteriormente que eu estava tentado a dizer a qualquer
líder de igreja que já afirmasse a ideia de autoridade que ele interromper a leitura.
Eu oro para que nada do que escrevi classifique qualquer líder como abusivo, seja
consciente ou inconscientemente. O melhor corretivo não é desprezar o que é
essencial junto com o que é ruim, por assim dizer, mas reformar o que está ruim. É
por essa razão que fiz uma breve tentativa de reformar o nosso conceito de
autoridade.
As igrejas e os líderes de igreja continuarão a abusar, tragicamente, da
autoridade que Deus lhes deu até que Cristo volte. Ao fazerem isso, eles mentem
horrivelmente a respeito do próprio Cristo que alegam servir. Como eu
aconselharia um cristão que está sofrendo nas mãos de uma igreja abusiva ou de
um líder de igreja abusivo? Em primeiro lugar, eu o aconselharia a escapar dessa
situação abusiva, se possível. Ao falar aos escravos, Paulo escreve: “Se ainda podes
tornar-te livre, aproveita a oportunidade” (1 Co 7.21).
O uso piedoso da autoridade gera vida; o uso abusivo e explorador da autoridade
não gera vida. E eu aconselharia a maioria das pessoas de uma igreja assim a deixá-
la, a fim de protegerem a si mesmas e de não serem culpadas de apoiar essa ação na
vida dos outros. Os pastores devem proteger suas ovelhas, não espoliá-las, e aqueles
que fazem isso serão julgados individualmente (por exemplo, Ez 34.1-10).
Avaliar se uma igreja ou líder é verdadeiramente abusivo ou explorador não é
algo fácil. Conforme acabei de dizer, pode ser difícil discernir qual projetor de filme
está lançando a imagem que estamos contemplando, e um cristão nunca deve
confiar totalmente em seu próprio coração para realizar essa obra de avaliação. Na
multidão de conselheiros, há sabedoria.

CONFIE NA PROVISÃO DE DEUS


Ao mesmo tempo, há muitas situações nas quais um cristão não pode escapar de
uma autoridade abusiva ou nas quais o abuso é uma dificuldade, mas não é tão
intolerável a ponto de o indivíduo se sentir impelido a fugir. Seja qual for o caso, os
crentes devem sempre se lembrar de que os reinos, os poderes e as autoridades
deste mundo não são supremos. Por essa razão, Paulo escreve:
Foste chamado, sendo escravo? Não te preocupes com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre,
aproveita a oportunidade. Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do
Senhor; semelhantemente, o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. Por preço fostes
comprados; não vos torneis escravos de homens (1 Co 7.21-23).

Isso não deve ser compreendido como uma aprovação de Paulo à escravidão.
Antes, Paulo está dizendo que nossa membresia no evangelho é mais importante do
que o nosso estado político, não importa o quão infeliz ele seja em termos
mundanos. Se isso não fosse verdade, então a liberdade política que qualquer
combatente pela liberdade humana oferecesse seria melhor notícia do que a
liberdade que Cristo veio nos dar. O alvo de Paulo é manter os nossos olhos fixos
basicamente no evangelho: “Por preço fostes comprados.” Por essa razão, seja qual
for a intensidade com que um crente sofra sob o domínio de um líder injusto,
secular ou religioso, ele pode ter conforto na provisão suprema de Deus e na
autoridade do evangelho. Temos a promessa de que Cristo derrotou todos os
poderes e autoridades deste mundo (Cl 2.15). Mesmo que essa vitória ainda não
possa ser vista com os olhos, é nisso que nossa fé deve descansar.
Esses dois últimos pontos provavelmente valem por todo esse capítulo — se não
valerem pelo livro todo —, mas deixe-me resumir o assunto, talvez de maneira
insatisfatória, desse modo: assim como devemos ver a autoridade neste mundo de
uma forma complexa, a nossa resposta a ela também deve ser complexa. Na
verdade, a própria resposta de Jesus às autoridades deste mundo foi complexa. Ao
mesmo tempo em que ele condenou a exploração do poder, em seu ato final ele se
submeteu a elas, porque confiava no governo e na provisão suprema de seu Pai no
céu.

Ponto 4: Filipenses 2 apresenta o modelo para a submissão


na igreja local: a encarnação e a crucificação de Cristo.

UM RETRATO BÍBLICO DA SUBMISSÃO À IGREJA Foi a própria disposição


de Cristo de submeter sua vida até a morte que Paulo usou para pintar o
retrato de uma vida cristã vivida em submissão à igreja local. Em
Filipenses 2.1-17, Paulo nos apresenta um retrato da vida cristã no
interior da igreja local, e dentro desse retrato, ele encaixa um segundo, o
da submissão sacrificial de Cristo. Esses dois retratos, quando colocados
juntos, apresentam essencialmente o argumento deste livro inteiro: O
amor de Deus, centrado em Deus, derrama-se misericordiosamente aos
pecadores rebeldes, a fim de distingui-los do mundo, reformá-los na
imagem obediente de seu Filho e exibi-los diante do universo que os
observa.
Ao final de Filipenses 1, Paulo diz aos membros da igreja em Filipos para viverem
uma vida digna do evangelho, uma vida na qual eles fiquem firmes num só espírito e
numa só alma. Passando para o capítulo 2, Paulo continua com sua descrição de
uma vida digna do evangelho, lembrando-os do encorajamento e do amor que eles
conheceram em Cristo e no Espírito. Ele lhes diz novamente para terem uma só
alma (duas vezes), bem como para compartilharem um só amor. Ele lhes diz para
considerarem humildemente os outros melhores do que eles mesmos, buscando os
interesses dos outros e não o deles mesmos. Ele então explica que a “uma só alma”
que eles devem compartilhar é a mente de Cristo, o qual se esvaziou, assumiu a
forma de servo, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz. Cristo fez isso para que todo joelho se dobre diante dele para a glória
do Pai.
Paulo então lhes relembra que eles foram obedientes no passado e os encoraja a
continuar sendo, à medida que desenvolvem sua salvação, confiando na obra de
Deus para o prazer do próprio Deus neles. Ele até entra no âmago da questão de
como essa “uma só mente” e esse “mesmo amor” devem ser desempenhados: sem
murmurações nem contendas em relação um ao outro. É quando eles vivem dessa
forma distinta, num mundo corrupto e pervertido, que eles podem esperar
resplandecer diante de todo o mundo como estrelas no céu escuro, preservando a
palavra da vida em todo o tempo. Esse é o retrato de uma vida vivida em submissão
à igreja local. É uma vida que imita o amor submisso de Cristo pelo Pai e seu amor
sacrificial pelos outros. É quando amamos os outros membros de nossa igreja desse
modo que definimos o amor para o mundo.
Receio que geralmente leiamos essa passagem sem ter a igreja local em vista. No
entanto, observe o que Paulo está escrevendo aos “santos em Cristo Jesus, inclusive
bispos e diáconos que vivem em Filipos” (1.1). Ele está escrevendo para uma igreja
local. Por essa razão, quando ele lhes diz para estarem num só espírito, no mesmo
amor e numa só alma, ele está se dirigindo principalmente a cada um de seus
leitores em relação aos outros membros da igreja deles. Quando ele lhes diz para
considerarem os outros melhores do que eles mesmos, ele está se dirigindo a eles,
novamente, em relação aos membros das igrejas deles. É no contexto da igreja local
que Paulo os chama para se submeterem e se tornarem obedientes uns aos outros,
assim como Cristo se submeteu e se tornou obediente ao Pai. Isso não é o mesmo
que dizer que os crentes devem tratar os membros de outras igrejas sem esse amor.
Mas é dizer que esse amor autossacrificial “começa em casa” — sob a supervisão da
própria congregação e dos presbíteros. Ele não está dizendo a eles para serem uma
só alma e estarem num mesmo amor com todos os crentes em todo lugar, embora
esse seja certamente o alvo supremo de Cristo. Ele está lhes dizendo para serem
uma só alma e estarem num mesmo amor com os crentes que estão bem ali ao
redor deles.
Ter uma vida vivida em submissão à igreja local é desenvolver a nossa salvação
conformando nossa mente e coração a esse amor coletivo. É fazer isso com pessoas
que podem não se parecer conosco e a quem não conhecemos muito bem. É
interagir com elas sem rivalidade ou presunção. É considerar humildemente cada
uma delas mais importante do que nós mesmos. É buscar os interesses delas acima
dos nossos próprios. É não murmurar contra elas ou contender com elas, mesmo
quando somos tentados a fazê-lo. E o mais importante, é imitar a completa
autoentrega de Jesus.

Ponto 5: Os crentes imitam o exemplo de Cristo ao se


submeterem uns aos outros de forma física, social, afetiva,
financeira, vocacional, ética e espiritual.

OS DIFERENTES ASPECTOS DA SUBMISSÃO


As obras antigas sobre membresia e disciplina da igreja às vezes enumeravam as
obrigações ou responsabilidades que os membros da igreja tinham em relação aos
outros, tais como se reunir com eles, orar por eles e vigiá-los. Essas listas são úteis
para propósitos práticos; todavia, se a submissão de Cristo for o nosso modelo para
buscar os interesses dos outros, então somos chamados a fazer algo mais
complicado do que escrever uma lista. Somos chamados a envolver as nossas
identidades com as delas e compartilhar suas vidas. Isso envolve dar a nós mesmos à
igreja, não apenas dar de nós mesmos enquanto nos mantemos a uma distância
segura. Como damos a nós mesmos à igreja para a glória de Cristo? Envolvendo
todas as áreas de nossa vida. Damos a nós mesmos de forma física, social, afetuosa,
financeira, vocacional, ética e espiritual. Consideraremos essas categorias no
contexto de uma igreja não autoritária, guiada pelo evangelho, e saudável.
PUBLICAMENTE
Os crentes devem se submeter às suas igrejas locais publicamente. Com isso,
quero dizer: de modo formal ou oficial. Eles devem se unir a uma igreja se
comprometendo com o corpo local de crentes. Esse ato formal ou público simboliza
o fato de que nos submetemos a toda uma nova realidade. Unir-se a uma igreja vai
muito além de acrescentar o nosso nome ao rol de membros.

DE FORMA FÍSICA E GEOGRÁFICA


Os crentes devem se submeter às suas igrejas locais de forma física e talvez
geográfica. Nós nos submetemos de forma física nos reunindo regularmente com a
igreja (At 2.42-47; Hb 10.25). Apesar de todos os avanços tecnológicos feitos nos
meios de comunicação e transporte, nada substitui a presença humana. Até mesmo
o autor de Hebreus afirma isso nas primeiras linhas de seu livro. Ele compara a
comunicação de Deus com seu povo no passado, por meio dos apóstolos e profetas,
com a revelação preeminente de si mesmo na pessoa física de seu Filho. Os crentes
devem igualmente submeter seus corpos à presença dos membros de sua igreja
local. Aonde o corpo vai, o restante da pessoa geralmente vai.
Se este livro estivesse sendo escrito há 150 anos ou num mundo menos urbano
do que o de hoje, eu poderia ser capaz de concluir essa questão simplesmente com a
reunião semanal regular, já que a vida comunitária das pessoas ao longo da semana
seria mais naturalmente integrada. Nas comunidades pequenas e não
desenvolvidas, a comunhão compartilhada na reunião de domingo se traduz mais
facilmente em momentos de comunhão durante a semana. Quando uma pessoa
vive a uma distância em que pode caminhar até a igreja, é mais fácil convidar
pessoas para jantar em casa, cuidar dos filhos dos outros enquanto eles se
encarregam de algum serviço, comprar pão ou leite para alguém quando se vai ao
mercado. É mais fácil integrar a vida diária quando existe uma proximidade
geográfica relativa — ou até mesmo uma proximidade que pode ser vencida a pé.
Quando eu disse a um estudioso que estava escrevendo um livro sobre
membresia da igreja, ele me incentivou a procurar maneiras de explicar o fato de
vivermos numa sociedade em que as pessoas às vezes viajam 48 quilômetros para
congregarem. Uma solução óbvia é a pessoa não morar a 48 quilômetros da igreja.
Morar perto da igreja de modo algum é uma exigência bíblica, mas isso pode ser
prudente e até mesmo amoroso. O critério de nossa cultura para selecionar uma
casa é simples: como eu consigo mais por menos? Mas um cristão não pertence
mais a si mesmo. Ele pertence a Cristo e ao povo de Cristo. Essa fórmula para
selecionar uma casa não deveria, portanto, parecer um pouco diferente? Por que
não escolher uma residência que nos permita considerar os outros mais
importantes do que nós mesmos e nos permita buscar seus interesses? Parte disso
inclui a disponibilidade de boas escolas para as famílias com filhos, mas deve
também incluir o preço e a proximidade geográfica com a igreja. Será que a hipoteca
ou o pagamento de aluguel nos permitirá ser generosos com os outros? Essa
residência dará aos outros um rápido acesso a nós e à nossa hospitalidade? A
procura de uma residência a poucos passos de sua igreja pode ser mais realista num
ambiente urbano do que num subúrbio, mas o mesmo princípio básico se aplica a
ambos os cenários. É mais provável que uma mãe jovem planeje encontros com
outras mães jovens de seu condomínio do que com mães de outras partes da cidade.
Às vezes, as variáveis como preço e proximidade geográfica funcionam com
objetivos cruzados. Meu argumento é simplesmente que um cristão deve pensar de
forma diferente de um descrente a respeito da escolha de uma casa, valorizando
principalmente os relacionamentos dentro da igreja.
Tenho testemunhado inúmeras pessoas, tanto em minha igreja quanto em
outras, decidindo deliberadamente se mudar para mais perto da igreja, a uma
distância que dê para ir a pé, se possível. Tenho conhecido outras pessoas que,
quando se mudam para trabalhar em uma nova cidade, encontram deliberadamente
uma igreja saudável para se associar antes de começarem a busca por uma casa.
Para a minha família, submeter-se geograficamente à igreja não significou mudar
para perto da igreja, mas mudar para uma vizinhança onde várias outras famílias da
igreja moravam.
Quando nos mudamos para a nossa cidade atual, há vários anos, minha esposa e
eu nos sentimos divididos entre adquirir uma casa mais nova, melhor e mais barata,
a quinze minutos de qualquer pessoa da igreja ou uma casa mais velha, menos
conveniente e mais cara onde podíamos ir a pé a casa dessas outras famílias.
Busquei o conselho de vários presbíteros, os quais me aconselharam
separadamente a priorizar os relacionamentos, o que fiz. Isso resultou na escolha
de uma casa com uma varanda da frente podre, portas que permitiam a entrada de
vento e um porão inundado ocasionalmente — por mais dinheiro do que uma casa
bem decorada, mais bem projetada, mais atraente e sem necessidade de reparos
imediatos (no meu entendimento). Mas como tem sido enriquecedor para toda a
nossa família priorizar os relacionamentos da igreja! Minha esposa e filhos
interagem com outras famílias da igreja quase que diariamente. Eu me encontrei
com um irmão durante um ano e meio, todas as manhãs, para orar e ler a Bíblia e
ainda me encontro regularmente com outros irmãos. Todas as famílias da igreja que
estão nessa vizinhança encorajam umas às outras a levar a cabo o evangelismo e a
tirar vantagens das oportunidades ministeriais em nossa vizinhança. Enquanto
falava, neste livro, sobre conceitos sociológicos como o individualismo, perguntei-
me se um dos melhores artifícios do diabo para esvaziar o significado da membresia
da igreja não é a nossa cobiça cultural por casas novas e mais agradáveis. Quantos
crentes, com efeito, têm se limitado à comunhão das manhãs de domingo devido ao
lugar em que moram? Essa não é uma exigência para que os crentes se isolem numa
bolha cristã. É uma exigência para que eles edifiquem de forma mais ativa sua vida
juntos, por causa deles mesmos e com o propósito de alcançar suas comunidades.
SOCIALMENTE
Um dos objetivos de nos submetermos de forma física e, talvez, geográfica a uma
igreja local é a oportunidade para nos submetermos socialmente. Não pretendo
sugerir que as igrejas devem apenas aspirar ser clubes sociais, mas elas não devem
ser menos do que clubes sociais. Os crentes devem buscar amizades em suas igrejas
locais e por meio delas.
Nossos amigos são aqueles a quem imitamos e seguimos. Adotamos a linguagem
deles e seus padrões de vida. Temos a tendência de gastar dinheiro onde eles
gastam. Valorizamos aquilo que eles valorizam. Educamos nossos filhos do modo
como eles educam os filhos deles. Oramos da forma como eles oram. Confiamos no
conselho deles e prestamos atenção às repreensões deles mais facilmente do que
nas daqueles que não são nossos amigos. Há uma razão para Paulo dizer: “As más
conversações corrompem os bons costumes” (1 Co 15.33; cf. Dt 13.6). É porque os
nossos amigos desempenham um papel abrangente para formar aquilo em que nos
tornamos, visto que imitamos uns aos outros (veja Tg 4.4).
Na verdade, é por essa razão que não existe intimidade melhor do que a
intimidade com o Senhor, uma intimidade que é dada àqueles que guardam a sua
aliança e cumprem os seus mandamentos (Sl 25.14; Jo 15.14). Dizer que ele é nosso
amigo é dizer que nós o imitamos.
Ser um amigo, por outro lado, é dar, assim como Deus dá. Deus dá àqueles a
quem ele favorece, assim como Cristo nos favoreceu por meio de seu sacrifício (Jo
15.13, 15). Semelhantemente, devemos favorecer os membros de nossa igreja
dando a nós mesmos a eles. (Tomás de Aquino, na verdade, desenvolveu a maior
parte dessa discussão sobre o amor numa linguagem de amizade).
A comunidade da igreja local deve ser um lugar onde os crentes participam para
formar e moldar uns aos outros para o bem, por meio de todas as dinâmicas
interpessoais e da amizade. Os amigos crentes são certamente valiosos dentro ou
fora da igreja local, mas os amigos de dentro da igreja local serão formados pelo
mesmo ministério da Palavra, o que lhes dá a oportunidade de estender esse
ministério com mais cuidado na vida um do outro ao longo da semana. As amizades
são um veículo dado por Deus, por meio do qual o ministério da Palavra da igreja
viaja. As amizades na igreja, em outras palavras, compartilharão geralmente toda a
intensidade das amizades, mas elas devem também ser caracterizadas pelo
elemento do discipulado.
Em muitos aspectos, o discipulado é simplesmente uma amizade com uma
direção ou objetivo cristão — o de ver o outro conformado cada vez mais à imagem
de Cristo, à medida que uma pessoa dá ou ambas dão a si mesmas, a fim de que a
outra receba. Na verdade, as amizades cristãs requerem humildade, pois requerem
humildade tanto para dar como para receber. À medida que Deus dá humildade às
igrejas, essas igrejas devem ser cada vez mais caracterizadas por amizades de
discipulado: homens jovens ajudando outros homens jovens, com o propósito de
encorajar um ao outro em sua fé; mulheres jovens fazendo o mesmo com outras
mulheres jovens; homens mais velhos ajudando um ao outro e aos homens mais
jovens; e assim por diante.
Às vezes as pessoas riem por causa de como frases e trejeitos particulares se
tornam contagiosos e passam a ser usados com exagero dentro de um grupo de
amigos ou da comunidade da igreja, mas é exatamente assim que funciona o
discipulado entre criaturas que retratam imagens. Nós observamos e imitamos, ao
menos se formos humildes. “Sede meus imitadores, como também eu sou de
Cristo”, Paulo diz aos coríntios duas vezes numa única carta (1 Co 11.1, 4.16; e
também 2 Ts 3.7,9). O autor de Hebreus, do mesmo modo, disse aos seus leitores
para imitarem a fé de seus líderes (Hb 13.7), e João disse à igreja para a qual ele
estava escrevendo para imitar o que é bom, não o que é mau (3 Jo 11).
Dar a si mesmo socialmente à igreja local também fornece aos crentes a
oportunidade de sair de sua zona de conforto social nas amizades — velhos com
jovens, ricos com pobres, iletrados e cultos, afrodescendentes e caucasianos, e
assim por diante. Uma coisa é os membros de diferentes etnias serem amigos um
dos outros, mas é preciso um pouco mais de humildade para buscar a instrução e a
disciplina uns dos outros. Todavia, o Espírito se deleita em capacitar os membros de
diferentes etnias a perseverar em um só espírito, no mesmo amor e numa só alma.
Ele se deleita em fazer o mesmo por aqueles que estão separados pela riqueza,
classe social, escolaridade e outros divisores demográficos tradicionais.
Em resumo, as amizades na igreja devem ser parecidas e ao mesmo tempo
diferentes das amizades no mundo. Quando conduzidas sem brigas ou discussões,
numa geração corrupta e depravada, elas brilharão como luzeiros no mundo.
AFETUOSAMENTE
Um componente da amizade, é claro, é o compartilhamento de afeições; e outra
maneira à qual os crentes são chamados para se submeter à igreja local é
submetendo seus afetos uns aos outros. O que é isso que me dá alegria ou aflição?
O que é isso que me leva a comemorar ou lamentar?
O cumprimento do mandamento de Paulo para “considerar os outros mais
importantes do que nós mesmos” e “não buscar os nossos próprios interesses”
significa dar mais do que apenas o nosso corpo ou até mesmo a nossa amizade.
Paulo nos diz em outra passagem que podemos entregar o nosso corpo para ser
queimado e ainda assim não dar algo que devemos dar — nosso amor e afeição. Por
essa razão, ele instrui a igreja de Filipos a ser uma só alma e ter o mesmo amor. Esse
mesmo amor se eleva, primeiramente e acima de tudo, à adoração do Filho e à glória
do Pai, mas esse mesmo desejo de que o Filho seja adorado envolve o cristão para
que ele deseje esse mesmo bem para os membros de sua igreja. Assim, ele diz aos
romanos: “Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-
vos em honra uns aos outros” (Rm 12.10). Ele diz aos coríntios: “Cooperem os
membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros. Se um deles é honrado, com
ele todos se regozijam” (1 Co 12.25-26).
É difícil considerar como uma abordagem consumista na igreja possa coexistir
com esse amor. O que eu temo é que o amor e as emoções que normalmente
experimentamos no cinema sejam aqueles que nos esforçamos para ter em nossas
igrejas. Considere por um segundo as lágrimas que são derramadas nos assentos do
cinema. Acontece um momento de romance ou tragédia com o qual o espectador
pode se identificar remotamente, e num instante a mente e o coração se sentem
presos, até mesmo imersos, nessas sensações de empatia. As lágrimas surgem
aparentemente do nada. Então, a cena passa, as lágrimas secam, e tudo é esquecido
rapidamente. Quando tudo acaba, a pessoa fica se sentindo nada mais nada menos
que um ser humano, por ter experimentado esse ímpeto estranho de emoção.
Como pessoa, você é deixado inalterado.
Não é assim quando a vida real nos leva a chorar, é claro. As circunstâncias que
levam as lágrimas reais a caírem geralmente nos mudam, tanto para melhor quanto
para pior. As lágrimas num cinema, pelo menos para mim, são uma experiência
estranha. Num momento estou totalmente absorto. No momento seguinte, é como
se nada tivesse acontecido, pois o filme acabou e se acenderam as luzes.
Francamente, isso sempre me deixa me sentindo manipulado. Mais uma vez, a
minha preocupação é que os crentes de hoje em dia, treinados pelas emoções do
cinema, sejam encorajados a sentir e a amar da mesma maneira em suas igrejas.
Uma ilustração num sermão que arrebata o coração; uma música especial que se
eleva cada vez mais com todas as modulações harmônicas; o refrão de um cântico
que se repete vez após vez são maneiras de produzir lágrimas e as sensações
agradáveis de alegria, amor e até mesmo de convicção. Mas o quanto essas emoções
são transformadoras, uma vez que o culto acabe, não está tão claro.
Compare isso com a afeição ordenada por Paulo. Ela combina sentimento e ação;
deleite e autossacrifício. Ele nos diz para nos revestirmos de ternos afetos de
misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade, de
tolerância, de perdão e, acima de tudo isso, de amor, que liga todas essas coisas
numa união perfeita (Cl 3.12-14). Essas não são as emoções insípidas de um
cinema. Ele nos ordena a nos alegrar com o irmão que ganhou uma grande
promoção no emprego e com todo o dinheiro e prestígio que vem com isso.
Podemos fazer isso? Ele ordena que a mulher solteira de trinta anos, que anseia por
um casamento, alegre-se com a mulher de vinte anos quando esta se casa. Ela
consegue fazer isso? O homem pobre pode lamentar com o homem rico quando
este perde seu emprego? A mulher mais velha pode chorar com a mulher mais
jovem cuja melancolia lhe parece trivial e sentimental? Dizer sim a essas perguntas,
em vez de dizer sim para a ambição egoísta e a vã presunção, exige algo mais do que
simples emoção. Exige um coração transformado pelo evangelho e pelo poder do
Espírito. A mulher solteira se alegra por causa da mulher casada e o homem pobre
lamenta com o homem rico quando ambos encontram toda a sua identidade e
alegria em Cristo. Eles se sentem afirmados em seu amor, o qual eles veem no
sacrifício dele. Eles sabem que nenhum casamento e nenhuma riqueza satisfarão
mais do que Cristo. Eles não desejam nada além da exaltação dele. Por essa razão,
eles se encontram inesperadamente ternos de coração em relação a todos aqueles
que pertencem ao seu corpo, e desejam o mesmo conhecimento e alegria para eles.
Enquanto virmos a igreja como um lugar para o nosso próprio enriquecimento
espiritual, será que amaremos dessa forma? Enquanto gastarmos mais tempo
preocupados com a boa utilização dos nossos dons; com a qualidade da música e o
envolvimento da pregação, será possível darmos a nós mesmos para nos alegrar e
lamentar com os outros? Não, a alegria e o lamento verdadeiros acontecem quando
nos identificamos com o outro, uma coisa que o consumidor e o espectador, por
definição, sempre se recusam a fazer.
Cumprir o mandamento de Paulo para “considerar os outros mais importantes
do que nós mesmos”, com “um mesmo amor”, significa conhecer o amor de Cristo
(que não considerou o fato de ser igual a Deus como algo a ser agarrado) e, depois,
amar do mesmo modo como ele ama.
FINANCEIRAMENTE
Os crentes devem se submeter financeiramente às suas igrejas locais. Isso
parecerá diferente de contexto para contexto. Em alguns contextos, isso significa
colocar regularmente um cheque no prato de coleta. Em outros contextos, onde a
economia não permite esse tipo de regularidade, isso pode significar ajudar
regularmente outros membros da igreja com o essencial para a vida. Seja como for,
os crentes devem buscar maneiras de cumprir mandamentos bíblicos como esses:
“Compartilhem o que vocês têm com os santos em suas necessidades.
Pratiquem a hospitalidade (Rm 12.13 — NVI; e também Gl 2.10; 1 Jo 3.17).

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da
Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa,
conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas
quando eu for (1 Co 16.1-2; e também Rm 15.26).

Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas,
se mostraram voluntários, pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de
participarem da assistência aos santos... Como, porém, em tudo, manifestais
superabundância... assim também abundeis nesta graça.

Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do
evangelho (1 Co 9.14; e também 9.11-13; Mt 10.10; Lc 10.7; Gl 6.6; 1 Tm 5.17-
18).

A maioria dos crentes reconhece que devemos contribuir financeiramente, mas,


além disso, eu proponho que as primícias das ofertas regulares de um cristão devem
ir para a sua igreja local. Há várias razões para isso. Primeira, Paulo diz que “aquele
que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as coisas boas aquele
que o instrui” (Gl 6.6). Assim como temos a obrigação de sustentar os nossos filhos,
temos a obrigação de sustentar os pregadores da Palavra de Deus em nossa igreja
local.
Segunda, essa é uma maneira de nos submetermos à autoridade de nossa igreja.
O fato de darmos as nossas primícias autoriza os líderes da igreja e demonstra a
nossa confiança na forma como eles usarão o dinheiro para o crescimento da igreja
e sua expansão. Alguém que alegue se submeter à igreja e à sua liderança, mas não
contribui financeiramente com ela demonstra que sua alegação de submissão pode
não ser sincera. O modo como as pessoas gastam o dinheiro, mais provavelmente do
que qualquer outra coisa, com exceção do tempo, revela o que o coração delas
valoriza e ama. Um homem que doa pouco ou nada à sua igreja é alguém com uma
estimativa elevada de seu próprio domínio e soberania.
Entretanto, eu compreendo bem os membros de igreja que se sentem relutantes
em doar porque seus líderes possuem um histórico financeiro desfavorável.
Pessoalmente, eu teria dificuldades de sustentar financeiramente uma igreja que
demonstrasse pouco interesse com a obra do reino, como missões ou implantação
de igrejas, e gastasse a maior parte de seu dinheiro embelezando o prédio da igreja
ou em outras questões desnecessárias. Ainda assim, Jesus deu autoridade à igreja
local para supervisionar o nosso discipulado, o que inclui como gastamos o nosso
dinheiro e onde contribuímos para a obra de Deus. De alguma forma, precisamos
contrabalançar o chamado para nos submetermos a essa autoridade com o chamado
para administrar com sabedoria os recursos financeiros que Deus nos dá, mesmo
quando esses dois chamados estiverem eventualmente em desacordo.
VOCACIONALMENTE
Para alguns, submeter-se a Deus e à igreja local significa deixar um emprego
secular e ir para um ministério vocacional de tempo integral numa igreja. Para cada
cristão, no entanto, submeter-se a Deus e à igreja local significa reconhecer que a
vida de nossos colegas membros se estenderá até a eternidade, ao passo que nossos
empregos não. Assim como um crente poderia considerar escolher uma residência
próxima de onde sua igreja se reúne, o mesmo é verdade em relação ao emprego
secular. As decisões sobre a profissão de um crente recaem sobre o domínio da
liberdade e da prudência, exceto nos assuntos que dizem respeito à moralidade
bíblica. No entanto, os crentes devem também ponderar como eles podem
“considerar os outros mais importantes do que eles mesmos” por meio das decisões
profissionais que eles tomam.
Conheço muitos homens e mulheres no emprego secular que, com o propósito
de servir em sua igreja local, rejeitaram promoções e mais dinheiro; mudaram-se de
empresas grandes e bem conceituadas para outras menores; rejeitaram propostas
de emprego atraentes e se recusaram a mudar para outra cidade. Em cada um dos
casos, a escolha foi feita geralmente de modo a não impedir a capacidade de cuidar
da igreja. Também conheci outros que se recusaram a trabalhar aos domingos ou
deixaram seus empregos porque isso era exigido deles. Eles deixaram o emprego
não porque guardavam o shabat, mas porque esse era o dia em que sua igreja se
reunia.
O que é lamentável é que muitas igrejas hoje em dia tenham a tendência de
escolher seus presbíteros entre os líderes bem-sucedidos do mercado de trabalho,
dando menos atenção às qualificações bíblicas e espirituais desses homens. Alguns
dos homens a quem eu mais respeitava como presbíteros fizeram sacrifícios em
suas carreiras com o propósito de servir à igreja.
Não tenho a intenção de sugerir que a maturidade cristã exige que alguém faça
sacrifícios na carreira. No entanto, devemos ponderar se valorizamos o crescimento
e o movimento ascendente em nossas carreiras da mesma maneira que os nossos
colegas descrentes o fazem. A ambição é uma coisa boa. Ela é um aspecto da imagem
de Deus. Nós, cristãos, devemos ser mais ambiciosos do que os descrentes porque
temos mais coisas a ambicionar do que eles! Entretanto, como o fato de sermos
ambiciosos acerca do reino de Deus e da sua justiça implica na relação de nossos
empregos seculares e nossas igrejas locais? Será que amar e servir podem ter de
fato um efeito palpável em nosso plano de carreira? Fica difícil de saber, quando nós
não estamos nem mesmo dispostos a fazer essa pergunta.
Quando os crentes entram num ministério vocacional de tempo integral, eles
devem se submeter de forma ainda mais explícita à supervisão e confirmação da
igreja local. As igrejas, do mesmo modo, devem tomar posse dos crentes que
aspiram entrar em tal obra e ser responsáveis por eles. Eu estava trabalhando com
jornalismo quando comecei a pensar sobre a vocação ministerial. Um dia, mencionei
isso a meu pastor durante o almoço, e ele me disse que, de modo geral, um homem
não deve entrar no ministério até que seus desejos internos se ajustem com o
reconhecimento de seu caráter e talentos por parte da igreja. Os indivíduos que
estão considerando entrar na vocação ministerial devem submeter esses desejos à
sabedoria e à orientação da igreja local. Não conseguimos ver o nosso caráter ou os
nossos dons de forma tão clara quanto os outros veem. Não estou querendo sugerir
que aqueles que se sentem chamados para o ministério devam permitir que a igreja
tenha a palavra absoluta sobre o fato de se eles devem entrar no ministério e
quando. Mas, de forma geral, devemos prestar atenção ao conselho da igreja.
ETICAMENTE
Os crentes devem se submeter eticamente à autoridade de sua igreja local. É
claro que não estou querendo dizer que eles devem fazer da igreja a sua autoridade
absoluta, do mesmo modo como um filho não deve fazer de seus pais uma
autoridade absoluta. Antes, o crente deve confiar na igreja para ter uma instrução,
uma orientação, uma opinião, uma prestação de contas e uma disciplina ética, assim
como um filho faz com o pai, sempre de acordo com a Palavra de Deus. Os
presbíteros, portanto, são ordenados a ensinar as Escrituras, que são “úteis para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2 Tm 3.16),
ao passo que os membros estão encarregados de ajudar a manter um ao outro no
caminho da justiça. Paulo escreve: “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma
falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e guarda-te para
que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a
lei de Cristo” (Gl 6.1-2). Judas escreve semelhantemente: “E compadecei-vos de
alguns que estão na dúvida; salvai-os, arrebatando-os do fogo; quanto a outros, sede
também compassivos em temor, detestando até a roupa contaminada pela carne”
(Jd 22-23). A igreja local é o principal lugar onde buscamos ajudar outros crentes a
vencerem seus pecados e onde, em contrapartida, devemos nos abrir para receber a
mesma ajuda.
Submeter-se a uma igreja local significa suportar de bom grado sua disciplina
corretiva quando tivermos sido enganados pelo pecado e estivermos andando no
erro. O grande número de passagens no livro de Provérbios que comparam o filho
sábio com o filho tolo serve como um excelente manual para membros:
O sábio de coração aceita os mandamentos, mas o insensato de lábios vem a
arruinar-se (Pv 10.8).

O caminho do insensato aos seus próprios olhos parece reto, mas o sábio dá
ouvidos aos conselhos (Pv 12.15).

O filho sábio ouve a instrução do pai, mas o escarnecedor não atende à


repreensão (Pv 13.1).

O insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu


interior (Pv 18.2).

A igreja local é onde praticamos como ser o filho sábio e onde ajudamos os outros
a fazerem o mesmo.
De modo específico, nós ajudamos os outros instruindo, aconselhando e
corrigindo-os quando necessário. Se um irmão tiver algo contra nós, nós buscamos
a reconciliação antes de irmos adorar (Mt 5.23-24). Se um irmão pecar contra nós,
nós vamos e lhes mostramos suas falhas (18.15). Se ele nos ouvir, ganhamos o
nosso irmão. Se ele não nos ouvir, tomamos mais dois ou três conosco e voltamos a
ele. Se ele não os ouvir, então levamos o caso à igreja (Mt 18.16-17). Tudo isso faz
parte do que significa se submeter à igreja local.
Não estou querendo dizer que os crentes nunca devem aconselhar ou receber
conselho de crentes de outras igrejas. O que de fato quero dizer é que os crentes
têm uma obrigação maior de abrir suas vidas para a congregação que afinal é
responsável por ligá-los ou desligá-los. Se revelarmos os níveis mais profundos de
nosso pecado para alguém de fora de nossa igreja local, isso priva a nossa igreja de
sua responsabilidade, designada por Jesus, de continuar velando por nossa alma.
Isso nos mantém em segurança, fora do alcance da disciplina da igreja e, portanto,
coloca nossa alma numa zona de perigo. Além disso, isso impede os mestres da
Palavra de saberem como pregar de forma mais significativa para a congregação. Se
os mestres ignorarem como os membros estão lutando moralmente, eles serão
menos capazes de pastorear. Além disso, isso nos engana, levando-nos a pensar que
estamos totalmente encarregados de nosso próprio discipulado. Um colega de fora
da igreja, selecionado por ela mesma para prestação de contas, pode ser facilmente
dispensado.
ESPIRITUALMENTE
Os crentes devem se submeter à igreja local espiritualmente. Em alguns aspectos
essa última categoria é uma categoria que engloba qualquer coisa que ainda não
tenha sido abrangida, já que ela resume tudo o que a precedeu, mas inclui três
coisas específicas. Primeira, a igreja local é onde os crentes devem ir para edificar
uns aos outros na fé. Segundo, ela é onde devemos buscar exercer os nossos dons
espirituais. Terceiro, ela abriga o povo por quem devemos interceder regularmente
em nossas orações. “A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um
fim proveitoso” (1 Co 12.7; e também 12.4-11; e Rm 12.4-8).
Mais uma vez, não estou querendo sugerir que esse tipo de submissão e cuidado
espiritual jamais devam ser estendidos aos crentes de outras igrejas. Estou dizendo
simplesmente que os crentes devem encarregar sua própria congregação com a
responsabilidade principal de supervisioná-los espiritualmente. Isso é bíblico, sábio
e natural.
A nossa submissão espiritual à igreja é mais ativa do que passiva. Ela começa
passivamente, quando ouvimos as palavras espirituais de alguém ensinando a
Palavra de Deus (veja 1 Co 2.13). A Palavra de Deus, quer seja falada por meio de
um sermão, quer seja pronunciadadurante uma repreensão em particular, é a fonte
de toda vida espiritual — a Palavra de Deus agindo junto com o Espírito de Deus no
crente. No entanto, uma vez que a Palavra tenha sido ouvida e recebida, ela deve se
converter em atividade imediata na igreja local. Nós respondemos àquilo que
ouvimos. Começamos a orar pela igreja, pelos seus membros e líderes, pelo seu
testemunho e adoração. Buscamos edificar os outros com as nossas palavras de
conforto e correção ocasionais (2 Co 1.3-7). Exercemos os nossos dons concedidos
pelo Espírito. Quando falta essa atividade, surge a pergunta sobre o fato de termos
ouvido verdadeiramente a Palavra, por meio do Espírito. Em resumo, a submissão
espiritual, embora comece recebendo algo, tem mais a ver com o fato de dar.
Ao dividir os nossos atos de submissão separadamente em submissão física,
social, afetiva, financeira, vocacional, ética e espiritual, não estou querendo sugerir
que essas categorias sejam aspectos da nossa pessoa que não se relacionam entre si.
Conforme utilizei aqui, esses são simplesmente temas diferentes que constituem a
submissão integral de um crente e sua liberdade na igreja local. Amar envolve dar a
nós mesmos para a glória de Deus, e não dar de nós mesmos para a glória do eu.
Amar o outro é dar toda a nossa pessoa em todos os aspectos, por amor a Deus. É se
identificar com o outro por amor a Deus. É se submeter ao outro por amor a Deus.
É nos tornarmos, de certa maneira, vulneráveis ao outro, mesmo quando isso pode
nos prejudicar ou prejudicar a nossa reputação. O amor nunca é sem riscos ou
sacrifícios. Ele arrisca tudo, aqui e agora, com o propósito de ganhar tudo na
eternidade (veja Mt 16.26).
Apesar do fato de a maioria das pessoas quererem separar o amor e a submissão,
todo mundo sabe que o amor e a submissão envolvem riscos. Vemos as sombras
disso nas histórias infantis, nas quais o herói arrisca tudo pelo “felizes para sempre”
do final, com a bela donzela. O que é inesperado em relação ao cristianismo é que
seu grandioso herói não arrisca tudo por uma donzela, mas sim por uma
pervertida. Depois, ele chama a todos quantos ele salva para se submeterem a essa
pervertida — a noiva que ainda está sendo preparada, a igreja. Quando se dão conta
disso, as pessoas não ficam com medo de se submeter. Elas têm medo de se
submeter à feiura. Nós amamos nos submeter à beleza. Até mesmo algo no
mercado de pornografia reflete esse fato de um modo mais ou menos obscuro e
trágico.
Submeter-se à igreja local é, em certo sentido, submeter-se a amar a feiura. É
nos submetermos a amar os nossos inimigos — outros pecadores que têm sua
própria visão de glória, a qual não combina com a nossa. Mas esta é a forma como
Cristo nos amou: “Assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”
(Jo 13.34). Cristo nos ama com um amor que transforma o que é feio em belo (veja
Ef 5.22-31). Assim também deve ser o nosso amor por nossas igrejas.
Quem pode amar assim? Somente aquele cujos olhos foram abertos e cujos
corações foram libertados da escravidão de amar a este mundo. “Se, pois, o Filho
vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36).

Ponto 6: Quando a igreja contraria as Escrituras ou o


testemunho do evangelho, um indivíduo deve falar e agir em
discordância com ela, mas somente de modo reverente e no
temor de Deus.
QUANDO E COMO DISCORDAR
Toda essa discussão se fundamentou em como os membros devem se submeter a
igrejas saudáveis e guiadas pelo evangelho. Mas será que Cristo espera que os
crentes se submetam a igrejas doentes? Além disso, será que o nosso chamado para
a submissão nos impede totalmente de discordar de nossos líderes? É admissível
discordar, mas quando e como devemos fazer isso?
A primeira coisa a se ter em mente é que nenhuma igreja terrena é perfeita,
assim como nenhum governo é perfeito. Apesar disso, Cristo ainda chama os
crentes para se submeterem às suas igrejas e os cidadãos a se submeterem aos seus
governos (Rm 13.1). Ao que parece, Deus tem os seus propósitos em chamar os
seres humanos para se submeterem a outros seres humanos imperfeitos.
Primeiramente, é claro, um crente deve ser submeter à igreja local por causa de
sua submissão suprema às Escrituras. Nem a igreja nem qualquer um de seus
representantes tem a autoridade suprema; somente Cristo e sua Palavra a têm.
Assim como Pedro e João disseram às autoridades judaicas que eles deviam ouvir a
Deus em vez dos homens (At 4.19), assim também a consciência de um crente está,
enfim, ligada a Deus e a nenhum outro com respeito à vida na igreja. “Os
presbíteros verdadeiros”, diz Alexander Strauch, “não dão ordens para a consciência
de seus irmãos, mas apelam para que seus irmãos sigam fielmente a Palavra de
Deus.”367
Às vezes, as divergências e os abusos podem ser suportados. Às vezes não, e a
autoridade da igreja deve ser rejeitada. Infelizmente, não existe uma fórmula exata
para determinar quando um cristão deve fazer uma coisa ou outra, a não ser a de
que um cristão não é obrigado a se submeter a uma igreja sempre que ela exigir algo
que contradiga explicitamente as Escrituras ou contrarie implicitamente o espírito
da sabedoria bíblica e reflita o evangelho de forma deficiente. Discernir essa última
situação depende, enfim, do exercício da própria consciência de alguém.
Vale a pena observar que se submeter à igreja local significa se submeter ao seu
bem e santidade. Às vezes, isso de fato significa que a nossa própria submissão
exigirá que discordemos de nossos líderes, e até mesmo os repreendamos, caso
necessário, sempre que suas palavras, ações ou liderança contradigam
explicitamente as Escrituras ou reflitam o evangelho de forma deficiente. Quando
esse for o caso, expressamos as nossas divergências ou preocupações de forma
discreta, cuidadosa, respeitosa e até mesmo de modo a confirmá-los. Fazemos isso
com mansidão e na ânsia de nos submetermos, mas o fazemos. Em última análise,
se a submissão à autoridade da igreja ou dos presbíteros for levar a igreja a algo
indigno de Cristo e de sua noiva, a Bíblia nos instrui a falar e a agir em discordância
com eles368.
Quando uma acusação real de natureza moral precisa ser feita contra um
presbítero, duas ou três testemunhas são exigidas (1 Tm 5.19). Supostamente,
Paulo exige isso porque os líderes estão na linha de fogo dos seres humanos
pecadores, os quais consideram geralmente seus descontentamentos como os
únicos que são importantes ou justos.
O que os membros da igreja devem fazer quando expressaram as suas
discordâncias ou preocupações e foram ignorados? É claro que eles não devem
fofocar e começar uma divisão. Se a discordância puder ser tolerada, então eles
devem perdoar qualquer coisa que precise ser perdoada, não falar mais do assunto e
apoiar a igreja de todas as formas. Uma pessoa não deve de modo algum permitir
que o ressentimento se desenvolva em seu coração, nem deve dizer nada a ninguém
— nem mesmo ao próprio cônjuge — que possa arruinar a autoridade da liderança
da igreja.
Quando eu discordo dos outros líderes de minha igreja, desejo ser cauteloso para
não arruinar a autoridade deles na vida de minha esposa. Quero que ela seja capaz
de se sentar diante da pregação deles, semana após semana, e se beneficiar da
Palavra de Deus sem um coração que tenha ficado amargurado por causa das
reclamações de seu marido. Isso não significa que sempre escolho não dizer coisa
alguma, embora eu geralmente faça isso. Isso significa que se eu disser algo a ela
sobre a questão, eu só o farei quando souber que minhas palavras poderão ser
usadas para ajudá-la a amar a igreja ainda mais. Nesse processo, eu também
tentarei dirigir sua atenção para alguma falha minha responsável pela discordância,
como a minha impaciência ou a minha falta de amor. Sendo o seu marido, amigo e
companheiro de igreja, meu alvo sempre deve ser o de proteger e adornar o amor
dela por Cristo e sua noiva, e não pisar nele. Esse cuidado deve se estender a cada
membro da igreja. Se alguém tiver uma queixa contra alguém na igreja, diz Paulo,
ele deve perdoar (Cl 3.13, tradução literal).
Se a discordância não puder ser tolerada, um membro pode decidir deixar a
igreja, mas somente de um modo que não semeie divisão ou descontentamento
entre aqueles que permanecerem. Além disso, uma pessoa deve tomar a decisão de
deixar a igreja por causa de uma discordância somente com grande relutância e após
ter tomado todas as medidas prudentes para alcançar a reconciliação ou o
entendimento. Jeremias Burroughs, um pastor congregacionalista do século XVII,
explicou a devoção e a relutância do coração que devem acompanhar tal decisão:
Imaginem que haja homens piedosos e conscienciosos na igreja, e que tenha sido feito algo na
igreja que eles não acreditam fazer parte da mente de Cristo. E que depois de examinarem tudo,
orando e buscando a Deus, eles continuam achando que isso não faz parte da mente de Cristo, e
que estariam pecando ao se manterem unidos àqueles homens. E que eles podem testemunhar
a Deus, com suas próprias consciências, que de bom grado se juntariam à sua igreja em todas as
formas de adoração a Deus, mas que não poderiam se unir à igreja em tais e tais circunstâncias
sem pecar contra suas próprias consciências. Então, eles se esforçam para ser instruídos, indo
até os presbíteros e aos outros com toda humildade, comunicando suas dúvidas em relação ao
assunto. E que após ouvirem o que os outros tinham a dizer, saíram e, com total integridade de
consciência, examinaram o que havia sido dito, entre Deus e suas almas, orando por essas
coisas. Orando para que Deus revelasse essas coisas a eles, já que tinham a mente de Cristo. E
que, depois que tudo isso é feito, eles ainda não podendo concordar, o que vocês acham que
esses homens têm de fazer? Imaginem que haja uma centena de homens como esses. E que eles
não possam tomar a Ceia do Senhor, embora não devam se separar da igreja, nesse momento,
devendo esperar que Deus os convença. E que, depois de terem usado todos os meios para
chegar a uma mente comum, eles não tenham podido ser convencidos. Por acaso esses homens
deverão viver sem a ordenança da Ceia do Senhor todos os dias de suas vidas? Será que Cristo
ligou um membro a uma igreja de tal forma que ele jamais possa se unir a outra, mesmo que a
permanência nela o leve a acreditar que está pecando contra Cristo? Precisaria haver uma
autorização verdadeiramente clara sobre essa questão, se alguém quisesse afirmar tal coisa.369

Compare a atitude de Burroughs com a atitude de nossa cultura em relação aos


pastores e à liderança, de forma geral. Como somos rápidos e descuidados para
discordar daqueles que Deus tem colocado sobre nós. Nós assumimos que esse é o
nosso direito, a nossa prerrogativa e a maneira pela qual um bom governo funciona.
Deixem que as pessoas tenham a palavra! Isso pode fazer de nós bons democratas,
mas não faz de nós bons membros de igreja. Por essa razão, deixem que demos a
Locke e a Jefferson o que é de Locke e Jefferson, e a Deus o que é de Deus. As
divergências precisam ser tratadas, e tratadas de forma muito relutante, discreta,
cuidadosa, respeitosa, com oração e um coração pesaroso. Devemos, enfim, agir de
acordo com a nossa consciência, mas devemos fazê-lo com temor, sabendo que (1)
Cristo deu autoridade à igreja, e que (2) um dia teremos de explicar a Cristo por que
pensamos que era necessário discordar.

Ponto 7: Nossa submissão à igreja local pode ser bem


articulada numa aliança escrita com a igreja, a qual serve
como lembrança dos compromissos de uns para com os
outros.

UMA ALIANÇA ESCRITA COM A IGREJA


Durante os últimos séculos, algumas igrejas têm sacramentado votos de
submissão por meio de uma aliança escrita com a igreja. Conforme eu disse
anteriormente, escrever uma aliança com a igreja é uma questão de liberdade
bíblica. Inúmeras pessoas no Antigo Testamento se ligaram voluntariamente em
alianças com outras pessoas, como Jonatas e Davi. Na verdade, somos informados
de que “Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria
alma” (1 Sm 18.3). É exatamente disso que as alianças com a igreja local devem ser
feitas.
Minha própria igreja pede a todos os membros que chegam para assinarem essa
aliança, e depois nos levantamos e lemos essa aliança em voz alta uns para os outros
todas as vezes que recebemos a Ceia do Senhor, a qual acontece mensalmente.
Mensalmente, portanto, nós lembramos uns aos outros a maneira como almejamos
dar e receber cuidado.
A aliança a seguir — a aliança de minha igreja — começa com a expressão daquilo
que Cristo fez; ela começa com o evangelho. O nosso amor uns pelos outros nasce
de seu amor por nós. Ela reflete a nossa esperança de nos submetermos uns aos
outros de forma física, social, afetiva, financeira, vocacional, ética e espiritual:
Tendo sido levados, conforme confiamos, pela Graça Divina a nos arrepender e crer no Senhor
Jesus Cristo e a dar-nos a ele; e tendo sido batizados por meio de nossa profissão de fé, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós agora, confiando em sua ajuda graciosa,
renovamos solene e alegremente a nossa aliança com cada um.
Trabalharemos e oraremos pela unidade no Espírito, no vínculo da paz.
Caminharemos juntos no amor fraternal, sendo feitos membros de uma Igreja Cristã;
exerceremos um cuidado e uma vigilância afetuosos sobre cada um, admoestaremos fielmente e
apelaremos uns aos outros, conforme a ocasião exigir.
Não deixaremos de nos congregar nem negligenciaremos a oração uns pelos outros.
Nós nos empenharemos, conforme pudermos, e em qualquer tempo, para cultivar a busca da
salvação de nossa família e dos amigos que estiverem sob os nossos cuidados, no encorajamento
e na admoestação do Senhor, por meio de um exemplo puro e amoroso.
Nós nos alegraremos com a felicidade de cada um e nos empenharemos, com brandura e
compreensão, para levar os fardos e as tristezas uns dos outros.
Procuraremos, com a ajuda divina, viver cautelosamente no mundo, renunciando à impiedade e
às paixões mundanas, lembrando-nos de que, já que fomos voluntariamente sepultados pelo
batismo e ressuscitados do sepulcro simbólico; agora, portanto, há em nós uma obrigação
especial de levar uma vida nova e santa.
Trabalharemos juntos para a continuidade nesta igreja de um ministério evangélico fiel, à
medida que apoiarmos sua adoração, ordenanças, disciplina e doutrinas. Contribuiremos com
alegria e regularmente para sustentar o ministério, as despesas da igreja, a assistência aos
pobres e a propagação do evangelho em todas as nações.
Quando nos mudarmos desse lugar, nós nos uniremos, o mais rápido possível, com alguma
outra igreja onde pudermos cumprir o espírito dessa aliança e os princípios da Palavra de Deus.
Que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam
com todos nós. Amém.

A leitura dessa aliança em voz alta mensalmente lembra os membros da igreja de


que o nosso discipulado cristão não é um assunto independente, mas sim um
assunto da vida do corpo. “Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti;
nem ainda a cabeça, aos pés: Não preciso de vós” (1 Co 12.21). A vida cristã não é
algo que podemos fazer por nós mesmos, porque sua própria natureza exige
ligação, obediência e amor sacrificial. Nós crescemos à medida que ajudamos outros
a crescerem. Nós nos tornamos livres à medida que ajudamos outros a serem livres.
Às vezes, manter essa aliança pode significar revolver a grama de alguém. À
vezes, pode significar liderar um pequeno grupo. Às vezes, pode significar refrear a
nossa língua em vez de retaliar. Às vezes, pode significar empregar os dons dados
pelo Espírito. Às vezes, porém, pode significar fazer coisas nas quais não somos
bons, porque ninguém mais as fará. Às vezes, pode significar votar de modo
diferente do que tínhamos a intenção de votar, porque o pastor nos pediu para
fazer isso. E sempre significa amar.
CONCLUSÃO
Submeter-se à igreja local não diz respeito a se submeter a uma figura
importante e distante, em Roma ou Cantuária. Não diz respeito a se submeter a
uma tradição histórica de desenvolvimento doutrinário e de garantia epistêmica.
Quando Cristo chama os crentes para se submeterem às igrejas locais, ele tem em
mente algo que envolve muito mais do que essas coisas. Ele tem a intenção de que
nos amemos. Ele tem a intenção de que amemos as pessoas que se sentam ao nosso
lado no banco da igreja, numa cadeira dobrável ou num pedaço de terra. Devemos
amar pessoas de carne e osso, com nomes como Jeanette, Charlie e Jessie, Marco,
Paul, Alice e Beth.
Você conhece Jeanette? Ela é aquela que fica um pouco irritada para ter a
certeza de que os bancos voltaram ao seu lugar após cada reunião de domingo. E
Charlie? Você tem que falar alto com Charlie, porque ele não ouve muito bem, mas
ama cantar louvores a Jesus. E tem o Marco, que luta com o vício. Paul e Alice —
esse casal bondoso. Você nunca verá Paul parar de falar sobre o quanto ele ama
Alice, embora eles estejam casados há sessenta anos. E finalmente tem a Beth. Ela é
uma mãe solteira que está aprendendo a amar mais a Jesus a cada mês que passa.
Todos esses nomes e muitos outros — devemos considerá-los mais importantes do
que nós mesmos. Devemos buscar ter uma só alma e um mesmo amor com eles.
Devemos nos submeter àqueles de quem gostamos e àqueles de quem não
gostamos, aos que são maduros e aos que são menos maduros.
Compartilhar um só amor com Jeanette, Charlie e Jessie, Marco, Paul, Alice e
Beth significa dar a nós mesmos a eles por amor a Cristo, e não apenas dar de nós
mesmos por amor a nós mesmos. Nós os consideramos mais importantes do que
nós mesmos ao ligarmos a nossa identidade com a deles e ao dar a eles toda a honra
que queremos para nós mesmos — a honra de Cristo. Empenhamos a nossa alegria
e a nossa tristeza para o progresso deles na fé, já que o amor sempre espera, sempre
crê, sempre suporta.
À medida que amamos dessa forma, definimos o amor de Cristo para o mundo.

356. William P. Young, The Shack, Newbury Park, CA: Windblown Media, 2007, p. 192, traduzido para o
português como A Cabana, São Paulo: Arqueiro, 2008.
357. As duas concepções de Berlin possuem uma analogia clara com o que os teólogos cristãos
distinguem como liberdade libertária e liberdade compatibilista.
358. Isaiah Berlin, “ Two Concepts of Liberty” [Dois Conceitos de Liberdade] in Four Essays on Liberty
[Quatro Ensaios Sobre Liberdade], Oxford: Oxford University Press, 1958, p.122.
359. Ibid., 131.
360. Outra maneira de formular esse contraste é dizendo que a liberdade negativa se baseia numa
concepção “aguada” da verdade, ao passo que a liberdade positiva se baseia numa concepção “densa” da
verdade. Uma concepção aguada almeja não fazer reivindicação alguma a respeito dos assuntos
metafísicos supremos da vida, mas simplesmente edifica sua ética e filosofia política sobre algum tipo de
contrato social entre os seres humanos. Não é de surpreender que a credibilidade desse projeto tenha
sido amplamente criticada. Uma concepção densa, por outro lado, fundamenta explicitamente sua
filosofia política e ética numa base metafísica.
361. Berlin diz muito mais acerca do cristianismo (Two Concepts of Liberty, p. 123 nota 2; p. 129 nota
2).
362. Enquanto a concepção negativa de liberdade exclui a positiva, a concepção positiva incorpora a
negativa.
363. Pedro não liga explicitamente a liberdade e a obra do Espírito de forma tão clara quanto Jesus e
Paulo o fazem, mas fica evidente que a mesma teologia do Espírito fundamenta a compreensão que
Pedro tem sobre a santificação e o crescimento cristão (veja 1 Pe 1.2, 2.2, 5; 3.18; 4.14).
364. Um exemplo clássico acontece no livro do presbiteriano James Bannerman, num capítulo
intitulado: “ The Extent and Limits of Church Power” [A Extensão e os Limites do Poder da Igreja], no
qual ele limita a autoridade da igreja (1) ao domínio espiritual em oposição ao domínio do Estado; (2) ao
fato de ela ser originária da própria autoridade de Cristo; (3) ao que está prescrito na Palavra de Deus; e
(4) ao direito da consciência cristã. James Bannerman, The Church of Christ [A Igreja de Cristo], vol. 2,
Carlisle, PA: Banner of Truth, 1974, pp. 247-48.
365. Aqui, encontramos uma estranha convergência entre o liberalismo cristão e o fundamentalismo.
Ambos geralmente preferem uma concepção libertária de liberdade, o que evita qualquer papel da
natureza e do desejo. Em consequência disso, ambos tendem a realizar o ministério da mesma forma,
apesar de nos referirmos a um como moralista e a outro como legalista.
366. As observações de Benjamin Franklin sobre como ele tentava cultivar a humildade por meio da
imitação da fraseologia da humildade, sem obter sucesso, são instrutivas para os nossos dias, quando um
galardão tão elevado é colocado sobre a humildade aparente no discurso religioso. Franklin escreve:
“Minha lista de virtudes continha a princípio doze virtudes, mas um amigo quacre havia me informado
bondosamente que eu era geralmente interpretado como orgulhoso... E eu acrescentei a humildade à
minha lista... Não posso me orgulhar de ter adquirido a realidade dessa virtude, mas fiz um bom
trabalho com relação à aparência dela... Eu até proibi a mim mesmo... o uso de cada palavra ou
expressão que significasse uma opinião taxativa, tais como “certamente”, “indubitavelmente” etc.; e, em
vez delas, adotei “eu considero”, “eu entendo” ou “eu imagino que algo seja assim ou assado”; ou “no
momento, isso me parece”... Na verdade, talvez não haja outra de nossas paixões naturais que seja tão
difícil de subjugar quanto o orgulho. Disfarce-o, lute com ele, espanque-o, sufoque-o, mortifique-o o
mais que lhe aprouver, ele ainda estará vivo, e de vez em quando ele despontará e se mostrará... Porque
mesmo que eu pudesse considerar tê-lo vencido totalmente, eu provavelmente teria orgulho de minha
humildade.” Benjamin Franklin, The Autobiography and Other Writings [Autobiografia e Outros
Escritos], New York: Viking Penguin Books, 1984 ed., pp. 102-3. Eu entendo que um escritor ou líder de
igreja evidencia uma falsa humildade sempre que apela para algo como o pós-modernismo como aquilo
que deve fundamentar a humildade cristã. Nenhuma epistemologia produz humildade verdadeira;
somente o Espírito faz isso.
367. Alexander Strauch, Biblical Eldership: An Urgent Call to Restore Biblical Church Leadership
[Presbitério Bíblico: Um Chamado Urgente para Restaurar a Liderança Bíblica na Igreja], edição revisada,
Colorado Springs, CO: Lewis and Roth, 1995, p. 98.
368. É nessa discordância que pode ocorrer uma má interpretação entre uma concepção elevada da igreja
em relação à autoridade e aquilo que estou defendendo aqui (o que se aplica às igrejas independentes).
Ao criticar o sistema de liderança batista ou congregacional, James Bannerman, um presbiteriano do
século XIX, escreveu: “Uma autoridade que seja tão condicionada e controlada pela necessidade de
consentimento das partes sobre as quais ela se exerce não pode, no sentido próprio da palavra, ser,
enfim, uma autoridade. É um conselho ou um parecer, administrado por uma parte a outra; mas ela não
pode ser um poder autoritativo, exercido por uma das partes sobre a outra, quando a concordância de
ambas as partes é exigida antes que ela possa ser exercida afinal, ou quando ambas as partes podem se
recusar, caprichosamente, a entrarem em acordo.” Até certo ponto, concordo com ele. É verdade que a
autoridade da igreja não depende do consentimento do governado, pois ela se origina da própria
autoridade de Cristo. No entanto, se basearmos nisso nossa compreensão sobre a autoridade da igreja,
veríamos produzido um autoritarismo ou, pelo menos, uma lei um pouco diferente da lei que foi dada no
Sinai. Isso tentará os líderes a dizerem: “Minha autoridade vem de Cristo, portanto façam o que eu digo,
e assunto encerrado.” Devemos também reconhecer a autoridade do Espírito de Deus agindo em seu
povo (Mt 18.15-17; 1 Co 2.6; Gl 1.6-9). A autoridade evangélica sempre reconhece que a autoridade da
igreja se demonstrará eficaz somente até o ponto em que o Espírito de Deus tiver mudado o coração de
seu povo. Em outras palavras, a autoridade da igreja nunca vai além da Palavra, e a utilidade da
autoridade nunca vai além do Espírito. Ela reconhece, conforme disse anteriormente, que qualquer ação
que deve ser forçada não é um ato de fé. Por essa razão, a autoridade evangélica não exige uma
obediência cega; ela apela para as realidades do evangelho no indivíduo e pede uma obediência
voluntária. O mesmo é verdade em relação a como Cristo exerce sua própria autoridade. Sua autoridade
não depende de nosso consentimento; entretanto, ele não só pede o nosso consentimento, como então
nos dá esse consentimento, por meio do Espírito. Ele nos pede para exercermos nossa vontade em
obediência a ele, e nossa submissão a ele é uma submissão voluntária. Podemos, portanto, discordar de
Cristo? Não, porque ele é Deus e é nossa autoridade suprema; mas isso não é verdade em relação à
igreja. Os crentes devem discordar da autoridade da igreja, não por capricho, como afirma Bannerman,
deturpando a posição das igrejas independentes, mas sempre que essa autoridade contrariar a autoridade
da Palavra de Cristo ou o testemunho do evangelho. É claro que o próprio Bannerman admite esse
último argumento em sua discussão acerca dos limites da autoridade igreja (Bannerman, Church of
Christ). Por essa razão, visto que a autoridade evangélica não age em oposição à consciência, mas de
acordo com ela, e visto que sempre há a possibilidade de qualquer autoridade terrena errar, deve haver
espaço para a discordância.
369. Jeremiah Burroughs, “ The Difference between Independency and Presbytery” [A Diferença entre
Independência e Presbitério] in The Reformation of the Church: A Collection of Reformed and Puritan
Documents on Church Issues [A Reforma da Igreja: Uma Coletânea de Documentos Reformados e
Puritanos Sobre Assuntos da Igreja], Ed. Iain H. Murray, Carlisle, PA: Banner of Truth, 1997
reimpressão, p. 287. Tentei simplificar a linguagem dessa citação em várias passagens.
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