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Traduzido do original em inglês The Church and the Surprising Offense of God’s Love: Reintroducing the Doctrines of
Church Membership and Discipline
Copyright © 2010 by 9Marks
•
Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers
1300 Crescent Street
W heaton, Illinois 60187, U.S.A
Copyright©2012 Editora FIEL
Primeira Edição em Português 2013
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária
PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA
DOS EDITORES, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
•
Diretor: James Richard Denham III.
Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Waleria Coicev Revisão: Gustavo Nagel Capa e Diagramação:
Rubner Durais Ebook: Yuri Freire ISBN: 978-85-8132-212-4
13-09970 CDD-262.8
Apresentação
Agradecimento
Introdução
Mark Dever,
Washington D.C.,
31 julho de 2009.
AGRADECIMENTOS
Minha maravilhosa esposa, Shannon, apoiou-me em humildade, de um
modo semelhante a Cristo, à medida que eu gastava muitos meses e longas horas
escrevendo este livro ou andando pela casa com minha mente fixa nele. Por essa
razão, ela merece ser mencionada em primeiro lugar. Obrigado, meu amor, por todo
o seu trabalho, oração e afeição. Sou muito grato por você.
Matt McCullough e Bobby Jamieson leram todo o rascunho inicial deste livro, e
Robert Cline e Tom Schreiner leram dois capítulos. Todos vocês o melhoraram.
Obrigado, irmãos. Agradeço também a Josh Coover, meu colega, pelo
encorajamento e pelo interesse ao longo desse projeto e também por ter sido
paciente comigo à medida que eu frequentemente pisava na bola em outras
questões no trabalho!
Sou grato a Al Fisher e a Crossway pela disposição da equipe em dar uma chance
para um autor principiante como eu. Agradeço também a Lydia Brownback, uma
editora complacente, paciente e ajudadora.
O leitor deve saber que Mark Dever forneceu a ideia original para este livro, ou
seja, ele concentrou o tópico sobre membresia e disciplina da igreja na ideia do
amor. Ele fez o mesmo no capítulo que escreveu sobre membresia da igreja.1 Eu
simplesmente enriqueci seu tema. Obrigado por isso e por muito mais, irmão.
Meu imenso agradecimento a Matt Schmucker por seu tempo e paciência
enquanto eu trabalhava neste projeto. Matt é um homem humilde, que dedica sua
vida a providenciar oportunidades para os outros. Sou privilegiado por me
beneficiar regularmente de sua liderança, sabedoria e, o melhor de tudo, de sua
amizade.
Finalmente, talvez a Igreja Batista de Capitol Hill mereça a maior parte do
crédito por moldar o coração e a mente daquele que escreveria sobre essas questões
específicas aqui apresentadas. Minha oração é para que este livro seja útil para
muitos. Por mais extenso que ele seja, o leitor deve entender que nenhuma página
dele teria sido escrita sem a instrução e o amor dessa igreja.
O meio é a mensagem. Você já ouviu essa frase? Ela foi dita pela primeira vez
por um estudioso das mídias, o canadense Marshall McLuhan, em 1964, e significa
simplesmente que o meio pelo qual uma mensagem é comunicada afeta seu próprio
conteúdo. Por exemplo, ler acerca de uma batalha estrangeira no jornal é diferente
de assisti-la pela televisão. O primeiro é uma notícia; o segundo, além de ser notícia,
é um espetáculo.
A frase de McLuhan é apenas mais uma forma de descrever o relacionamento
simbiótico entre a forma e o conteúdo. Pergunte a qualquer poeta, artista,
arquiteto e eles lhe garantirão que a forma de algumas coisas afeta o seu conteúdo,
e o conteúdo afeta a sua forma. Um ambiente com teto alto e abobadado, colunas
maciças e com luz natural sendo emitida através de janelas com vitrais coloridos
comunica um tipo de mensagem; ao passo que um lugar com paredes brancas de
gesso, um teto falso, luzes fluorescentes e fileiras de baias acinzentadas comunica
outro. É certo que essas formas e suas mensagens estão culturalmente
condicionadas, mas meu argumento é simplesmente o de que há uma ligação entre
a forma e o conteúdo — em todas as culturas.
Há uma relação semelhante a essa na vida de qualquer organização quando
comparamos o propósito pelo qual ela existe, o que poderíamos classificar como a
mensagem e a estrutura dessa organização, ou seja, o seu meio. Como um
fabricante de automóveis se organiza da melhor maneira para vender carros? Como
um exército se organiza da melhor maneira para defender a nação? Como um grupo
de militância política se organiza da melhor maneira para defender sua mensagem?
O propósito ou mensagem de uma organização afetará a sua estrutura, e sua
estrutura, em contrapartida, moldará sua mensagem ou propósito.
Imagine que três crentes, que estão sentados para tomar café, decidam começar
uma organização cujo propósito é definir o amor de Deus para o mundo. Essa é a
mensagem ou conteúdo da organização. Eles querem que ela diga a todos, em toda
parte: “Aqui está o amor de Deus, e ele é desse jeito.” É claro que essa mensagem
sobre o amor de Deus não é outra, senão o evangelho de Jesus Cristo: “Nisto
consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos
amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” (1 Jo
4.10)Sendo assim, os três crentes concordam que sua organização existe com esse
propósito. E todos concordam, a princípio, que a estrutura de sua organização não
só afetará o modo como eles poderão realizar esse propósito, mas também terá
potencial para moldar a própria mensagem. Por exemplo, uma organização
autoritária que diga: “Deus é amor”, comunicará ao mundo, com efeito, uma
mensagem diferente da mensagem de uma organização igualitária que diga: “Deus é
amor”.
O problema é que os três crentes discordam sobre como abordar a questão da
estrutura. Um deles observa que as pessoas em diferentes países e culturas podem
exigir diferentes tipos de estruturas. Assim, ele utiliza demasiadamente a palavra
“contextualizar” e conclui que a estrutura da organização precisa ser flexível e
adaptável. O segundo crente acha que a conversa a respeito da estrutura é
interessante, mas, no fim, conclui que não é isso o que importa, o que importa é
divulgar a mensagem. O terceiro crente, no entanto, acha que isso é extremamente
importante. Ele insiste que os outros dois, com suas soluções, desconsideraram o
problema, apesar de haverem concordado, da boca para fora, com o fato de que
existe uma ligação entre forma e conteúdo. E, além disso, ele sugere que Deus
ordenou determinada estrutura na Bíblia, em vez de outra, e que essa estrutura
combina perfeitamente com a própria mensagem, quase como se ela fosse uma
consequência vital da mensagem, como o DNA produzindo o esqueleto de um
corpo; e que é exatamente essa estrutura que Deus tem a intenção de usar para
realizar o propósito da organização — definir o seu amor para o mundo. Essa é a
sua maneira de proteger a mensagem, mantê-la em exposição, torná-la atraente e
colocá-la em ação.
Este livro apresenta essencialmente o argumento desse terceiro crente. A
estrutura da vida coletiva da igreja está intimamente ligada ao conteúdo do
evangelho, e o conteúdo do evangelho está intimamente ligado à estrutura da vida
coletiva da igreja. Elas moldam uma à outra, e uma coisa resulta na outra. Este livro
não tenta abranger todos os aspectos da estrutura da igreja. Seu foco está
principalmente nas questões acerca da membresia e da disciplina da igreja local.
Numa linguagem que é popular entre os evangélicos de hoje, alguém poderia
dizer que as práticas em relação à membresia e à disciplina da igreja local são
resultado do evangelho. Não basta simplesmente dizer que “a igreja” é resultado do
evangelho. É a igreja, de uma forma específica e diferenciada, que é resultado da
mensagem. A membresia e a disciplina não são estruturas erigidas artificialmente.
Elas não são imposições judiciais sobre a nova aliança da graça. Elas são uma
consequência vital e inevitável da obra redentora de Cristo e do chamado do
evangelho para o arrependimento e a fé. Omitir a membresia da igreja local é como
omitir o fato de que os crentes são chamados para buscar as boas obras ou amar ao
próximo, ou cuidar dos pobres, ou orar a Deus, ou seguir no caminho de Cristo.
Submeter-se a uma igreja local é o que um verdadeiro crente faz, assim como um
verdadeiro crente busca as boas obras, ama o seu próximo e assim por diante.
Alguém que se recusa a se unir — ou melhor, a se submeter — a uma igreja local é
como alguém que se recusa a buscar uma vida de justiça. Isso põe em xeque a
autenticidade de sua fé.
À medida que o evangelho presenteia o mundo com um exemplo mais vívido do
amor de Deus, e à medida que a membresia e a disciplina da igreja são resultados do
evangelho, a membresia e a disciplina da igreja local, de fato, definem o amor de
Deus para o mundo. Em apenas uma frase, esse é o argumento deste livro. Ao longo
dele, observaremos que as mesmas coisas que nos ofendem com relação à
membresia da igreja se originam nas coisas que consideramos ofensivas em relação
ao próprio amor de Deus.
O que é impressionante, portanto, é como a maioria dos evangélicos tem lançado
a questão da estrutura da igreja na categoria das coisas não essenciais e,
consequentemente, sem importância. Dizemos que o evangelho é importante, até
mesmo essencial, mas não a estrutura da igreja. E, visto que as questões sobre a
estrutura da igreja apenas dividem os crentes, assim como dividiu aqueles
indivíduos que estavam sentados para tomar café, é melhor desconsiderá-las
totalmente. Certo?
Mas e se isso estiver errado? E se Deus, em sua sabedoria, de fato tiver revelado
tanto o conteúdo quanto a forma; tanto a mensagem quanto o meio; tanto o
evangelho quanto o sistema de liderança, de modo que uma coisa combine
perfeitamente com a outra? O fato de lançar as questões sobre a estrutura da igreja
na categoria das “coisas sobre as quais os evangélicos respeitáveis não devem ter
opiniões categóricas” não arruinaria consequentemente o próprio evangelho?
Ah, deixe que ela cubra a marca como certamente cobrirá, mas o tormento dessa marca estará
sempre em seu coração.
Depois, a quinta:
Essa mulher trouxe vergonha sobre todos nós e deve morrer. Não existe lei para isso? Na
verdade há, tanto nas Escrituras quanto no livro de estatutos. Então, deixe que os magistrados
que as tornaram ineficazes agradeçam a si mesmos se suas próprias filhas e esposas se
extraviarem.
Li A Letra Escarlate, romance clássico de Nathaniel Hawthorne, escrito em 1850,
para minha aula de inglês no ensino fundamental. Toda a classe ficou escandalizada
— não com a trágica heroína Hester, mas com a população da cidade. Será que
pessoas como essas realmente existiram? Nós as encaramos com todo o desdém que
elas lançaram sobre Hester. Como elas podiam ser tão hipócritas, cruéis,
ignorantes?
A compaixão de Hawthorne em sua história dificilmente se esconde. Suas
descrições sobre as cinco fofoqueiras faz com que elas pareçam carrancas
monstruosas. Essa última mulher, ele descreve como “a mais feia, bem como a mais
impiedosa dessas juízas autoconstituídas”. Compare a descrição dessa mulher com a
descrição que Hawthorne faz da mulher a quem ela está atacando, Hester. A jovem
Hester
era alta, com uma aparência de perfeita elegância em larga escala. Ela tinha cabelos escuros e
abundantes, tão brilhantes que lançou fora a luz do sol com seu resplendor; e um rosto que,
além de ser lindo pela simetria dos traços e vivacidade da pele, possuía uma tenacidade que se
devia a uma sobrancelha marcada e profundos olhos negros... E Hester Prynne jamais havia se
apresentado de forma mais distinta... do que quando deixou a prisão. Aqueles que a haviam
conhecido anteriormente e esperavam contemplá-la ofuscada e obscurecida por uma nuvem
desastrosa ficaram surpresos e começaram a perceber como sua beleza resplandecia,
transformando a desgraça e a ignomínia na qual estava envolvida numa auréola.
Ligar e Desligar
Por que alguém desejaria fazer isso? O mais importante é porque Jesus deu a
igreja esse tipo de autoridade institucional. Os autores do evangelho registraram
Jesus utilizando a palavra que nós traduzimos como “igreja” apenas duas vezes.
Talvez seja irônico, portanto — à luz da nossa própria repulsa cultural a qualquer
coisa que tenha resquícios de institucionalismo — que, em ambas as passagens, ele
conceda a esse ajuntamento de pessoas a autoridade para “ligar e desligar”.
“Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16.18-19).
Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá
sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito
de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles (Mt 18.18-20).
Essas passagens têm sido debatidas pelos clérigos desde que Mateus as escreveu,
e compreender tudo o que elas envolvem não é fácil. Voltaremos a uma discussão
mais extensa sobre isso no capítulo 4. Por enquanto, vale a pena destacar algumas
questões que creio bastante simples. Nessa passagem, Jesus descreve esse poder
com a metáfora de uma chave, a qual é a razão de os pastores e os teólogos ao longo
da história da igreja se referirem ao “poder das chaves”. Essa metáfora é bem
simples. O que as chaves fazem? As chaves trancam e destrancam portas. As chaves
permitem que algumas pessoas entrem, mantendo as outras pessoas do lado de
fora, o que é exatamente o que Jesus queria que esse grupo de pessoas reunidas em
seu nome fizesse — controlasse quem entrava e quem ficava de fora.
Onde Jesus diz que essa chave deveria ser usada? Onde esse ligar e desligar
acontece? Novamente, sua resposta é simples e proveitosa: na terra. Jesus chama
essa assembleia de pessoas reunidas em seu nome para ligar e desligar pessoas na
terra. O que não está muito claro é exatamente o que esse ligar e desligar na terra
significa no céu. Os católicos romanos dizem uma coisa, os protestantes outra, mas
apenas para esclarecer: esse ligar e desligar acontece em meio a pessoas reais, de
carne e osso, na terra — não em meio a realidades abstratas e idealizadas. Isso
acontece necessariamente de maneira local, porque os seres humanos existem de
maneira local. Jesus concede aos ajuntamentos reais, constituídos de pessoas reais,
tanto o poder como a obrigação de decidir se Evódia ou Ciro, ou Catherine, ou
Friedrich, ou McKenzie, ou Farhod, ou Jeng é, de fato, “um deles” — um crente,
um seguidor de Cristo, um discípulo. Se esse ajuntamento real e não abstrato
determina que a profissão de fé de um indivíduo é fidedigna, ele une esse indivíduo
a eles mesmos. Caso contrário, não o une. Como essas pessoas exercem sua
autoridade para unir? Elas os unem por meio de dois mecanismos externos, visíveis
e institucionais, concedidos a eles por Jesus: uma iniciação através do batismo e a
participação contínua por meio da ceia da nova aliança. Como eles desobrigam ou
desligam alguém? Eles negam ao indivíduo a oportunidade de participar dessa ceia
contínua.
É em meio a esse poder para ligar e desligar, para supervisionar e disciplinar no
meio desses ajuntamentos reais de cristãos na terra, que encontramos as doutrinas
da membresia e da disciplina da igreja.
A Confusão Eclesiológica
Em primeiro lugar, o pragmatismo que reinou nas igrejas americanas pelo menos
desde o século XX, principalmente desde o advento (semelhante a de Donald
McGavran) da ideia de crescimento de igreja em meados do século passado, deixou a
nossa compreensão a respeito da própria igreja em alguma medida sem doutrina,
sem preceitos e sem estrutura. É quase como se as correntes de ar do pragmatismo
e a pressão barométrica do pós-modernismo viessem junto com a queda de
temperatura do “essencialismo” evangélico (o jeitinho evangélico para descartar
qualquer doutrina não considerada essencial para a salvação), a fim de produzir a
“tempestade perfeita”, uma tempestade que dizimou a capacidade de pensar com
seriedade e vigor renovado acerca da igreja local.
Do lado dos evangélicos de direita, estão os pensadores cautelosos, que são
completamente escrupulosos em outras áreas da doutrina, mas tendem a seguir a
correnteza pragmática na forma como conduzem e estruturam suas igrejas.
Quando os conservadores escrevem sobre a igreja, eles geralmente repetem o que
os Pais disseram a respeito de a igreja ser única, santa, universal e apostólica ou o
que os reformadores descreveram como as duas marcas da igreja. Essa última
ênfase geralmente se traduz num compromisso com a pregação, levando a sério as
ordenanças, o que é certamente essencial, mas nem sempre oferecem uma
orientação imediatamente evidente nas questões que confrontam a igreja
contemporânea, como o local das programações, ministérios de pequenos grupos,
cultos múltiplos, múltiplos locais de culto, pastoreio por meio de vídeo transmissão,
o relativismo, o papel da contextualização, os desafios da globalização, a relutância
cultural quanto ao comprometimento ou à afiliação, o consumismo, o cinismo, as
concepções contemporâneas sobre tolerância e muito mais.
Enquanto isso, do lado dos evangélicos de esquerda, novas conversas
interessantes estão acontecendo em relação a como a igreja se relaciona com a
Trindade ou como a essência da igreja está intimamente ligada a missões. Contudo,
muitos desses mesmos escritores estão construindo suas doutrinas sobre a igreja
com base nas doutrinas do Deus trino e num evangelho que se demonstra
insatisfatório para os conservadores. A consequência disso é uma espécie de
confusão, com evangélicos de todo tipo de concepções construindo suas igrejas com
base numa mistura aleatória de tradição, pragmatismo e novas ideias, as quais
possuem alguma utilidade, mas que se baseiam em concepções inadequadas sobre
Deus e o evangelho.
A Oposição à Membresia
Em segundo lugar, o tópico sobre a membresia e a disciplina da igreja é
particularmente relevante agora porque um número crescente de livros escritos
por pastores e líderes de igreja nas várias últimas décadas se opõem explicitamente
à prática da membresia da igreja. Alguns argumentam que a membresia da igreja
local é irrelevante, desnecessária ou antiquada e, por essa razão, pode ser
dispensada. Outros argumentam que a linha divisória exclusivista da membresia da
igreja apresenta um exemplo distorcido do evangelho e, por isso, deve ser
dispensada. Entre essas vozes, as palavras que se repetem vez após vez são: “menos
institucionalismo” e “mais comunhão autêntica”, ou “menos estrutura e mais
amor”. Conforme mencionado alguns momentos atrás, determinados autores
católicos romanos e protestantes liberais têm dito isso desde meados do século XIX,
e cada vez mais nas décadas anteriores e posteriores ao Concílio Vaticano II, mas
inúmeros evangélicos, e os assim chamados pós-evangélicos, têm dito o mesmo nas
duas últimas décadas. Isso quase se tornou um mantra: o institucionalismo é ruim,
a comunhão amorosa é boa25.
Literatura
Além disso, o leitor perceberá ao longo do livro que geralmente utilizo
referências de obras bem conhecidas da literatura, como fiz ao usar A Letra
Escarlate. Tenho feito isso por duas razões. Primeiro, porque isso tem sido divertido
para mim no processo de escrita do livro. Em segundo lugar, e ainda mais
importante, acredito que a boa literatura, com suas imagens e pathos, pode
transmitir melhor o zeitgeist — o espírito da época — do que as pesquisas de
opinião, que é o que a maioria dos livros daqueles dias parece empregar para
caracterizar o panorama cultural. Uma boa teologia deve estar constantemente
atenta quanto ao modo como todos nós estamos arraigados em nossa própria
época, e espero que essas referências literárias nos ajudem a nos tornar mais
cientes de nossas pressuposições.
2. Kevin Vanhoozer expressa isso de uma forma mais eloquente: “A igreja evangélica é a súmula da
teologia evangélica”. “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel” [O Evangelicalismo e
a Igreja: A Companhia do Evangelho] in The Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects [O Futuro do
Evangelicalismo: Discussões e Perspectivas], ed. Craig Bartholomew, Robin Parry, e Andrew West, Grand
R apidis: Kregel, 2003, p. 52.
3. Para começar, isso obscurece a distinção criador/criatura; anuvia a singularidade do episódio da
encarnação; cria uma identificação exagerada entre Cristo e sua igreja; ignora as diferenças essenciais
entre o Cristo sem pecado e a igreja ainda pecadora; supervaloriza este mundo e minimiza a importância
da parousia e a esperança da Igreja nela. Veja Michael S. Horton, People and Place [Pessoas e Lugares]
(Louisville: Westminster John Knox, 2008) p. 166-70; e também Ronald Y. K . Fung, “Body of Christ” [O
Corpo de Cristo] in Dictionary of Paul and His Letters [Dicionário sobre Paulo e suas Cartas], ed. Gerald F. P.
Hawthorne e R alph P. Martin (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993) p. 81.
4. Essa ideia se tornou proeminente tanto entre os seguidores protestantes do idealismo alemão quanto
entre os católicos, a começar por Friedrich Schleiermacher (veja Douglas Farrow, Ascension and Ecclesia
[Ascensão e Eclesia], Edinburgh: T&T Clark, Continuum, 1999, pp. 182-83; J. A . Möhler (veja Michael J.
Himes, Ongoing Incarnation: Johann Adam Möhler and the Beginnings of Modern Ecclesiology [Encarnação
Continuada: Johann Adan Möhler e o Início da Eclesiologia Moderna], Herder and Herder, 1997, e o
aluno de Möhler, K arl Adam. Michael Horton também segue essa trilha, do começo ao fim, até o
presente momento, junto com escritores como o Papa Bento XVI, o teólogo luterano Robert Jenson, o
teólogo batista Stanley Grenz e o círculo de escritores conhecido como Ortodoxia R adical, como
Graham Ward
(http://sites.silaspartners.com/partner/Article_Display_Page/0,,PTID314526|CHID598014|CIID2376346,00.htm
acessado em 18 de janeiro de 2008). Veja também o capítulo 6 de Horton, People and Place, principalmente
pp. 156-64.
5. John Webster, “ The Church and the Perfection of God” [A Igreja e a Perfeição de Deus] in The
Community of the Word: Toward an Evangelical Ecclesiology [Na Comunhão da Palavra: Rumo a uma Eclesiologia
Evangélica], ed. Mark Husbands e Daniel J. Treier, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005, p.78.
6. Ibid., p. 76, cf. Vanhoozer, “Evangelicalism and the Church” [O Evangelicalismo e a Igreja], pp. 70-77.
7. Uma mulher que violou a lei.
8. Esta citação e as outras que se seguem fazem parte da mesma conversa extraída de uma cópia do livro
de Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter, que li no ensino médio (Nova Iorque: Washington Square
Press, 1972, traduzido para o português como A Letra Escarlate, pp. 51-52. Modernizei levemente a
linguagem em vários trechos.
9. Ibid., p. 62.
10. Para uma útil introdução ao Romantismo do final do século XVIII e início do século XIX, veja Jacques
Barzun, From Dawn to Decadence: 500 Years of Western Cultural Life, New York: HarperCollins, 2000, pp. 465–89,
traduzido para o português como Da Alvorada à Decadência: a História da Cultura Ocidental, de 1500 aos
nossos dias, Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002.
11. Veja Roger Haightm, Christian Community in History, vol. 2: Comparative Ecclesiology, [A Comunidade Cristã
na História, v.2: Eclesiologia Comparativa] New York: Continuum, 2005, pp. 312–13.
12. Entre eles, Johann Adam Möhler, em especial, ajudou a inaugurar uma “revolução conceitual” na
doutrina da igreja entre os católicos no ano de 1820 e seguintes, com seu livro Unity of the Church
[Unidade da Igreja]; e Haight, Christian Community In History [Comunidade Cristã na História], p. 355.
Veja também o útil resumo de Dennis Doyle, Communion Ecclesiology [Eclesiologia da Comunhão],
Maryknoll, NY: Orbis, 2000 e o capítulo de Avery Cardinal Dulles, “ The Church as Mystical
Communion” [A Igreja como a Comunhão Mística] in Models of the Church, edição ampliada, New York:
Image Books, 2002, pp. 39–54, traduzida para o português como A Igreja e seus Modelos, Brasília, DF:
Paulinas, 1978. Seguindo a obra de Johann Adam Möhler, os pensadores-chave do último século da
eclesiologia da comunhão católica romana que geralmente são citados incluem Charles Journet, Yves
Congar, Henri de Lubac e Jean-Marie Tillard; veja a obra de Tillard, Church of Churches [Igreja das
Igrejas]. Tanto João Paulo II quanto Bento XVI também fizeram contribuições significativas.
13. Haight, Christian Community, p. 356; Doyle, Communion Ecclesiology, pp. 23–37.
14. Uma pesquisa proveitosa sobre a influência de George W hitefield na percepção eclesiológica
evangélica pode ser encontrada em Bruce Hindmarsh, “Is Evangelical Ecclesiology an Oxymoron? A
Historical Perspective” [A Eclesiologia Evangélica é um Oxímoro? Uma Perspectiva Histórica] in
Evangelical Ecclesiology: Reality or Illusion? [Eclesiologia Evangélica: Realidade ou Ilusão?], ed. John G.
Stackhouse, Grand R apids: Baker, 2003, pp.15–37.
15. Não é coincidência que o teólogo Dietrich Bonhoeffer, bem conhecido por sua crítica à graça barata
em The Cost of Discipling [O Preço do Discipulado], seja o mesmo homem que também escreveria “ The
whole interpretation of the organizational forms of the Protestant Church as being those of an
institution must therefore be dismissed as erroneous” [A Interpretação de todas as formas
organizacionais da Igreja Protestante como sendo as de uma instituição que deve ser rejeitada como
errada] in Dietrich Bonhoeffer, Sanctorum Communio, London: Collins, 1963, p. 178.
16. Essa está longe de ser uma amostragem exaustiva dos trabalhos acadêmicos e não acadêmicos dos
evangélicos e pós-evangélicos, listados cronologicamente, os quais, em graus variados, exigem uma
maior ênfase na comunhão e menos na instituição em relação às práticas protestantes comuns nos
últimos dois séculos: Colin Gunton, “ The Church on Earth: The Roots of Community” [A Igreja na
Terra: As R aízes da Comunhão] in On Being the Church: Essays on the Christian Community [Sobre o que é Ser
Igreja: Ensaios sobre a Comunhão Cristã], ed. Colin E. Gunton e Daniel W. Hardy, Edinburgh: T&T
Clark, 1989, pp. 48–80; Greg Ogden, Unfinished Business: Returning the Ministry to the People of God
[Empreendimento Inacabado: Um Retorno ao Ministério para o Povo de Deus (Grand R apids:
Zondervan, 1990), 62–108; David J. Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission,
Marynoll, NY: Orbis, 1991, pp. 50–51, traduzido para o português como Missão Transformadora: Mudanças de
Paradigma na Teologia da Missão, São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002; Paul G. Hiebert, Anthropological Reflections on
Missiological Issues, Grand R apids: Baker Books, 1994, pp. 107–36; 159–72, traduzido para o português
como O Evangelho e a Diversidade das Culturas: Um Guia de Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999;
Kevin Giles, What on Earth Is the Church: An Exploration in New Testament Theology [O que é a Igreja, Afinal? Uma
Exploração da Teologia do Novo Testamento], Eugene, OR: Wipf and Stock, 2005; orig. SPCK , 1995, pp.
8–22; Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America [Igreja Missional: Uma Visão do
Envio Feito pela Igreja da América do Norte], ed. Darrell L. Guder, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp.
80, 84, 93–94, 221ss; Darrell L. Guder, The Continuing Conversion of the Church [A Conversão Contínua da
Igreja], Grand R apids: Eerdmans, 2000, pp.181–204; Craig Van Gelder, The Essence of the Church: A
Community Created by the Spirit [A Essência da Igreja: Uma Comunidade Criada pelo Espírito], Grand
R apids: Baker, 2000, pp. 55–58, 74–75, 125, 157–58; Eddie Gibbs, Church Next: Quantum Changes in How We
Do Ministry, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2000, pp. 65–91, traduzido para o português como Para
Onde Vai a Igreja? Mudanças na Maneira de Conduzir Ministérios, Curitiba, PR: Editora Esperança, 2012; Stanley
Grenz, The Social God and the Relational Self: A Trinitarian Theology of the Imago Dei [O Deus Social e o Ser
Relacional: Uma Teologia Trinitariana da Imago Dei], Louisville: Westminster, 2001, pp. 331–36; Doug
Pagitt, Church Re-Imagined: The Spiritual Formation of People in Communities of Faith [A Igreja Repensada: A
Fomação Espiritual das Pessoas nas Comunidades de Fé], Grand R apids: Zondervan, 2003, pp. 23–31,
47–48; Stuart Murray, Church After Christendom [A Igreja Após a Cristandade], Milton Keynes, UK:
Paternoster, 2004, pp. 135–64; Brian McLaren, A Generous Orthodoxy, Grand R apids: Zondervan, 2004, p.
62, traduzido para o português como Uma Ortodoxia Generosa, Brasília, DF: Palavra, 2007; Reggie McNeal,
The Present Future: Six Tough Questions for the Church [O Futuro Presente: Seis Questões Difíceis para a Igreja],
San Francisco: Jossey-Bass, 2003, pp. 26–27, 34–36; Eddie Gibbs and Ryan K . Bolger, Emerging Churches:
Creating Community in Postmodern Cultures [Igrejas Emergentes: Criando Comunhão nas Culturas Pós-
modernas], Grand R apids: Baker, 2005, pp. 89–115; Neil Cole, Organic Church: Growing Faith Where Life
Happens, San Francisco: Jossey-Bass, 2005, traduzida para o português como Igreja Orgânica: Plantando a Fé
Onde a Vida Acontece, Rio de Janeiro: Habacuc, 2008; Trinity in Human Community: Exploring Congregational Life in
the Image of the Social Trinity [A Trindade na Comunidade Humana: Explorando a Vida Congregacional na
Imagem da Trindade Social], Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, 1–3; R ay Anderson, An Emergent
Theology for Emerging Churches [Uma Teologia Emergente para Igrejas Emergentes], Downers Grove, IL:
InterVarsity, 2006, p.92; Dan Kimball, They Like Jesus but Not the Church: Insights from Emerging Generations,
Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 73–95 traduzido para o português como Eles Gostam de Jesus, Mas Não
da Igreja: Insights das Gerações Emergentes Sobre a Igreja, São Paulo: Vida, 2011.
17. 16 Miroslav Volf, After Our Likeness [Consequência da Nossa Semelhança], Grand R apids: Eerdmans,
1998, 148 n. 84.
18. Ibid., 151 n. 97
19. Paul Avis, Authority, Leadership, and Conflict in the Church [Autoridade, Liderança e Conflitos na
Igreja], Philadelphia: Trinity Press International, 1992, p. ix.
20. Dulles, Models of the Church, p. 27.
21. Peter L. Berger e Thomas Luckmann oferecem uma introdução muito proveitosa à ideia de
institucionalização e suas origens in The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of
Knowledge, New York: Anchor Books, 1966, pp. 47–79, traduzido para o português como A Construção
Social da Realidade, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. “A institucionalização acontece” — dizem eles
— “sempre que existe uma simbolização das ações habituais por modelos ou agentes principais. Em
outras palavras, qualquer simbolização é uma instituição”, p. 54. Penso que uma maneira mais simples
de dizer “simbolização das ações habituais” é dizendo “tradição”; uma ideia que não é intrinsecamente
problemática, mas que se torna problemática quando, conforme Jesus disse aos fariseus: “ Vocês
negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens” (Mc 7:8 - NVI). Uma
maneira pela qual poderíamos definir “institucionalismo” seria dizendo que nossas instituições se
tornam “institucionalizadas” sempre que nossas tradições prevalecem sobre os mandamentos de Deus.
22. Paul G. Hiebert apresenta uma análise útil das características de uma igreja que está sucumbindo à
institucionalização, bem como dos perigos de se fazer isso, em Anthropological Reflections [Reflexões
Antropológicas], pp. 159–64.
23. O livro de Miroslav Volf, After Our Virtue: The Church as the Image of the Trinity [A Consequência
da Nossa Virtude: A Igreja como a Imagem da Trindade], promove a concepção relacional da igreja local,
mas ele o faz sem rejeitar os elementos institucionais da igreja: “Conforme uma visão muito difundida
nos círculos protestantes, o Espírito de Deus e as instituições da igreja estão em contradição. ‘Onde está
o Espírito do Senhor, aí há liberdade’ (2 Co 3.17); em contraste a isso, as instituições são entendidas
como mecanismos de repressão. Se essa visão estivesse correta, então a ‘anarquia espiritual’ resoluta
seria a única ‘estrutura’ adequada para uma igreja carismática. Essa visão, no entanto, é preconceituosa,
e qualquer um que compartilhe dela falha em reconhecer tanto o caráter das instituições eclesiásticas
quanto o modo de agir do Espírito de Deus”, em After Our Virtue, Grand R apids: Eerdmans, 1998, p.
234.
24. Dulles, Models of the Church, p. 27, cf. Giles, W hat on Earth Is the Church, pp. 21–22.
25. Veja n. 15.
26. Extraído de “Barna Update”, intitulado “Americans Have Commitment Issues, New Survey Shows”
[Os Americanos Têm Assuntos Comprometedores, Apontam as Novas Pesquisas”, pelo Grupo Barna, 18
de abril de 2006. Os dados se baseiam em 1003 entrevistas telefônicas com adultos de todos os EUA .
http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=235; acessado em 23 de
janeiro de 2008.
27. The Book of Church Order of the Presbyterian Church in America, 6th ed.; [Livro de Ordem da Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos, 6a ed], Gabinete do Secretário Estadual da Assembleia Geral da Igreja
Presbiteriana nos Estados Unidos, conforme aprovado pela 35a Assembleia Geral em Memphis, TN,
junho de 2007: 2–1, 4–1.
28. E.g., Thomas Witherow, The Apostolic Church, 1858; reimpresso por Glasgow, Scotland: Free
Presbyterian Publications, 2001, p. 15 traduzido para o português como A Igreja Apostólica - Que Significa
Isto?, Recife: Editora Os Puritanos, 2005. Sobre esse tópico, veja Miroslav Volf, After Our Likeness, p.
138.
Capítulo 1
A IDOLATRIA DO AMOR
Resposta Principal: Temos feito do amor um ídolo que nos serve e, desse
modo, redefinido o amor como algo que jamais impõe julgamentos, condições ou
ligações obrigatórias.
Giddens não especula sobre as origens ou causas do amor romântico. Será que
isso foi uma reação à sensação que as pessoas tinham de se sentirem à deriva, já que
muitas de suas amarras tradicionais haviam sido cortadas pelo individualismo
racionalista do Iluminismo? Por mais que os românticos quisessem definir a si
mesmos como contrários ao Iluminismo, eles continuavam como originários dele,
do mesmo modo como a pós-modernidade é originária da modernidade (sendo
simultaneamente uma reação contra ela, apesar de compartilhar algumas de suas
pressuposições mais básicas).
De uma maneira interessante, Giddens caracteriza os homens como
“vagarosos”45 nessas concepções transformadoras acerca do amor, já que o amor
romântico é “essencialmente um amor feminizado”46. Ao contrário das mulheres
passivas dos contos medievais, as mulheres dos romances românticos são
determinadas e independentes, capazes de enternecer os corações dos homens que
anteriormente eram indiferentes ou hostis a elas. Giddens não elucida o que ele
quer dizer com feminização do amor de modo tão claro quanto se poderia esperar,
mas parece que essa ideia repousa no fato de que as mulheres são as produtoras do
amor romântico e as únicas responsáveis pela manutenção de um casamento
baseado em tal amor, em face da contínua ameaça da infidelidade masculina. Os
homens que instigam o amor romântico não são homens masculinos, e sim
“sonhadores dengosos” que estão dispostos a construir toda a sua vida em torno de
uma mulher específica47. A feminização do amor também parece se encontrar em
seu caráter doméstico. Giddens caracteriza a família como sendo transformada pelo
advento do amor romântico, na medida em que as crianças estão cada vez mais
sendo reconhecidas como vulneráveis, necessitando de cuidados emocionais e
compaixão materna a longo prazo. O homem vitoriano permaneceu como a
autoridade de seu lar, mas sua autoridade foi cada vez mais enfraquecida por uma
ênfase crescente na ternura emocional entre pais e filhos48.
O PRAGMATISMO É INEVITÁVEL
Sempre que uma verdade, um dogma e as linhas divisórias forem deixadas de
lado nas igrejas, o que vem em seguida quase sempre é o pragmatismo, assim como
acontece nos círculos filosóficos. “Isso vai funcionar?” se torna a principal pergunta
que os líderes da igreja fazem ao considerarem suas reuniões, ministérios e
programações. Portanto, o fato de o pragmatismo reinar de forma suprema nas
igrejas do Ocidente pós-moderno não deveria nos surpreender, quer as igrejas
sejam avivadas, liberais abastadas, voltadas para os frequentadores não
convertidos, emergentes ou simplesmente lideradas por indivíduos realmente
legais, que fazem tudo o que podem para evitar os desentendimentos que às vezes
são provocados pela doutrina. Muitas igrejas reavivalistas abertamente ortodoxas,
pertencentes à geração da Segunda Guerra Mundial, muitas igrejas supostamente
voltadas para os ortodoxos, da geração posterior à Segunda Guerra, e muitas igrejas
emergentes não ortodoxas da geração das décadas de 60 a 80 entregaram as rédeas
da igreja para “aquilo que funciona”. Cada geração tem simplesmente descoberto
que algo diferente funciona para a sua época e localização.
Pensar de modo pragmático, por si só, não é algo ruim. O problema aparece
quando o pragmatismo preenche o vácuo deixado pela rejeição aos princípios
bíblicos, de modo que o pragmatismo se torna o único princípio. O pragmatismo,
por sua própria natureza, exige que baseemos nossas decisões em resultados
visíveis, e até mesmo computáveis. Mas certamente a utilidade das estatísticas em
uma igreja cristã, na melhor das hipóteses, é limitada, e na pior delas, é enganadora.
Uma igreja grande é sinônimo de uma pregação sadia ou de entretenimento? Isso é
difícil de dizer. Como podemos quantificar a ação daquilo que é sobrenatural? Como
podemos avaliar com precisão aquelas coisas que a Bíblia nos garante que só podem
ser vistas com os olhos da fé? Com que eficiência podemos discernir o que está na
mente de Deus?
Em outras palavras, as mesmas coisas que dão vida e fôlego à igreja não podem
ser vistas ou medidas. Uma centena de escoteiros pode se reunir numa sala, assim
como uma centena de maçons, assim como uma centena de muçulmanos, assim
como uma centena de pessoas que se autodenominam “cristãs”. Qual é a diferença
entre esses grupos? Estatisticamente, nenhuma. Qual é a diferença espiritual entre
eles? Como se espera, a diferença é total. Mas as diferenças espirituais só podem ser
vistas com olhos espirituais. Elas não podem ser pesquisadas com o tipo de
perguntas que os seres humanos são capazes de responder marcando um X num
quadradinho, pelo menos não até que os pastores e as igrejas se tornem capazes de
discernir quais conversões são genuínas e quais não o são; e se o crescimento
numérico de uma igreja é sinal da decisão de Deus na eternidade de abençoar a
igreja com fertilidade, ou simplesmente da eficácia das programações cativantes.
As estatísticas podem ter a sua utilidade para as igrejas, mas as coisas mais
importantes em relação à igreja não podem ser medidas — as diferenças entre o
falso e o verdadeiro, entre a carne e o espírito, entre a mente dos homens e a mente
de Deus. Somente quando estivermos diante de Deus, no dia do julgamento, a real
medida das coisas será revelada. Infelizmente, muitos pastores e igrejas tentam
medir seu ministério por aquilo que pode ser visto, em vez de medir por aquilo que
é invisível.
É irônico, mas exatamente nessa questão acerca do que é invisível a aniquilação
da doutrina leva a igreja não só ao pragmatismo, mas também pode levar a uma
nova ênfase na liderança do Espírito Santo82. É quase como se a perda do
pensamento doutrinário, que cria limites, permitisse que as igrejas pudessem se
voltar para a contagem dos números ou para a perseguição ao Espírito (ou para
ambas as coisas). Esta última opção permite que os evangélicos apelem cada vez
mais para aquilo que o Espírito possa estar nos dizendo ou para a forma como Deus
poderia estar agindo, aqui e agora. “Vamos apoiar o que Deus está fazendo!” Henry
Blackaby, de linha teológica conservadora, fala dessa maneira, como também o
“emergista” Rob Bell. E será que isso não contradiz o meu ponto de vista a respeito
de os evangélicos se renderem àquilo que pode ser visto e medido? Renderse à ação
do Espírito é um sinal de humildade, certo?
Eu certamente não estou propondo que os crentes não devam submeter seus
planos ao Espírito. Ele inclina os corações dos crentes de modo maravilhoso em
várias direções. Estou simplesmente observando que algumas igrejas que falam
muito a respeito de nos submetermos humildemente àquilo que o Espírito possa
estar nos dizendo falham, ao mesmo tempo, em se submeter de modo
consciencioso àquilo que o Espírito tem falado nas Escrituras. Não quero misturar
as Escrituras com as doutrinas formuladas pelos homens, mas assumo que as
Escrituras devam ter algum valor para os seres humanos. Devemos ser capazes de
fazer afirmações reais em relação ao que ela está dizendo — ou seja, afirmações
doutrinárias. Se nem as Escrituras nem a doutrina guiar o modo como nossas
igrejas se reúnem, organizam-se e cumprem a ordem de sua Grande Comissão, não
seria este o caso de estarmos invocando o nome do Espírito simplesmente para
justificar nossas próprias ideias? Numa era cética com respeito a todos os dogmas,
isso não seria ao menos uma tentação maior?
LIGANDO OS PONTOS
Não é difícil ligar os pontos entre o individualismo da nossa cultura, o
consumismo, a dificuldade em assumir compromisso e o ceticismo com respeito a
todas as formas de dogma à relutância que os crentes têm para se associarem às
igrejas, ou, pelo menos, para considerarem o seu cristianismo como sendo
profundamente dependente de sua associação como membro em uma igreja.
Qualquer regra de uma organização institucional que ligue ou desligue os
indivíduos e os coloque numa estrutura hierárquica será inevitavelmente
impopular.
Numa cultura onde os heróis históricos têm nomes como Franklin, Douglass ou
Earhart, e onde os heróis da ficção têm nomes como Jason Bourne ou Indiana
Jones; numa cultura onde o ambiente físico de nossas vidas — desde casas e roupas
até pratos — são o produto de nossas escolhas; onde o divórcio está em voga e a
permanência no emprego é baixa; onde toda a verdade é considerada como algo do
qual possamos abrir mão, e onde as pessoas estão enamoradas pelas estatísticas —
nesse tipo de cultura, cresceremos relativamente convencidos da nossa capacidade
de fazer escolhas sábias sobre a nossa condição espiritual83. Pensaremos que
podemos conduzir nossa vida espiritual muito bem. Portanto, em comparação com
pessoas de outras épocas e lugares, nós seremos provavelmente mais propensos a
enxergar o compromisso e a submissão a uma igreja local com indiferença e
desconfiança, e justificaremos isso através de uma redefinição da palavra amor.
Muitas vezes, fico desconfiado com declarações sociológicas generalizadas,
porque, em última análise, elas são inevitavelmente especulativas. Quem, a não ser
Deus, sabe por que as pessoas — quanto mais sociedades inteiras — fazem o que
fazem? Ainda assim, se o leitor me permitir algum grau de especulação, acredito
que, até certo ponto, é razoável a conjectura de que os crentes que vivem numa
sociedade individualista são mais propensos a considerar as doutrinas sobre
membresia e disciplina da igreja como uma pedra de tropeço, pelo menos em
comparação com os crentes que vivem numa cultura menos inclinada a definir os
indivíduos como unidades isoladas.
A partir desse nosso ponto de vista, o problema com esse Howard Roark fictício
não é simplesmente o fato de ele ter uma concepção mal compreendida de seu
enraizamento social e da necessidade de comunidade, embora isso seja verdade. O
problema está na idolatria do “eu”. O problema é que ele pensa que é Deus, e as
filosofias tanto do modernismo quanto do pós-modernismo legitimam essa
ambição86.
Se alguém alegar que a A Nascente, de Ayn Rand, é uma peça obscura da
literatura do século XX que a maioria dos crentes provavelmente ainda não leu, eles
estarão fugindo da questão. Mesmo que não possamos traçar uma linha direta de
causalidade genealógica entre um determinado livro e as cosmovisões adotadas
numa cultura, precisamos apenas nos lembrar da pressuposição comunitarista
razoável de que uma autora como Rand, seus muitos leitores e os escritores que
vieram antes e depois dela surgiram do mesmo solo — o solo no qual ainda vivemos
hoje. Howard Roark não é apenas mais um Adão americano? Partindo do ponto de
vista de como os crentes definem a liderança, muitas igrejas não estão procurando
por pastores visionários como Roark — homens que criam novos impérios inteiros
com um planejamento, um livro, algum dinamismo pessoal e, ah, claro, com as
orações da igreja? O exibido Roark é uma ilustração muito familiar do homem dos
dias de hoje, líder bem-sucedido, empresário e que venceu na vida, tanto secular
quanto religioso87. E tal figura não conhece autoridade alguma, senão os limites de
sua própria imaginação.
Mas é provavelmente um exagero dizer que os ocidentais de hoje acreditam que
toda autoridade seja sempre ruim. A maioria das pessoas reconhece sua utilidade
temporária na organização da vida no dia a dia. Alguém tem que fazer as leis.
Alguém tem que ensinar na sala de aula. Alguém tem que administrar o escritório.
Dito isso, a autoridade é algo que usamos para os nossos “contratos”, para usar a
linguagem dos antigos teoristas democráticos. É algo para o qual nós, os
governados, devemos dar o nosso consentimento. A autoridade final e absoluta
sobre o que acreditar e como viver continua com o indivíduo. O indivíduo pode
ceder temporariamente sua autoridade a outro por causa de uma vantagem
estratégica. Desse modo, um homem pode concordar em ceder sua própria
autoridade a uma constituição. Uma mulher pode concordar em ceder um pouco de
sua autoridade a um contrato de trabalho. Um casal pode concordar em ceder parte
de sua autoridade ao outro num voto de casamento. Mas todos esses arranjos são,
no final, temporários, porque eles são contratuais e fiados sobre o consentimento
livre e igual das partes.
Em resumo, não existe uma concepção verdadeira de autoridade, segundo a visão
que o filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, Søren Kierkegaard, demonstra
em seu ensaio Of the Difference between a Genius and an Apostle [A Diferença entre
um Gênio e um Apóstolo], ao escrever: “Honrar o pai de alguém porque ele é
inteligente é impiedade”88. O que Kierkegaard quer dizer? Nós seguimos os gênios
quando o que eles dizem está de acordo com a nossa própria percepção sobre o que
é racional ou direito. Não há reconhecimento verdadeiro algum da autoridade deles.
Nesse sentido, seria impiedade transportar a linguagem do quinto mandamento
para tal domínio: o filho que honra o seu pai porque ele é inteligente não está
verdadeiramente honrando ao seu pai. A diferença entre o gênio e o apóstolo,
portanto, é que, ao contrário do gênio, um apóstolo fala com uma autoridade
divinamente outorgada, e quer suas palavras soem como sábias, quer como tolas
(cf. 1 Co 1.18ss.), ele deve ser obedecido.
A AUTORIDADE NAS IGREJAS
A autoridade é uma ideia popular nas igrejas? Tudo, desde os debates a respeito
do papel das mulheres na igreja e no lar até os debates acerca da autoridade de Deus
sobre o futuro e sobre a salvação sugere o contrário. Os evangélicos falam e pensam
a respeito da linguagem da autoridade com a mesma frequência com que praticam a
disciplina na igreja, o que significa dizer: quase nunca. O que é impressionante é o
modo como esses debates a respeito da autoridade entre os crentes geralmente
esgotam a linguagem do amor. Impedir que as mulheres se tornem pastoras ou
compartilhem uma igualdade de liderança no lar é considerado como uma falha em
respeitar, honrar e amar as mulheres. Excluir um indivíduo da comunhão da igreja
por causa de pecado sem arrependimento é chamado de falta de amor. Sustentar
que Deus é soberano sobre a salvação e o futuro é considerado como uma falha em
reconhecer o amor de Deus. “Mas Deus é amoroso,Ele não faria isso!”, é o que
muitos dizem prontamente.
Na mente de muitos crentes ocidentais, as ideias acerca do amor e da autoridade
permanecem quase que completamente em desacordo. Talvez, o sinal mais
importante a respeito desse fato seja a escassez de pregação bíblica ou de pregação
expositiva. Uma igreja que adota uma pregação sadia, expositiva, é uma igreja que
ao menos tem começado a reconhecer a intenção de Deus em empregar
pronunciamentos autoritativos por meio de mediadores humanos, em nossa vida e
em nosso crescimento como cristãos. Uma igreja que adota uma pregação sadia,
expositiva, é uma igreja que ao menos tem começado a reconhecer que Cristo entra
na vida do crente com a autoridade de um rei que ordena arrependimento e
obediência. Por isso essa igreja se reúne para ouvir o que o rei tem dito de modo
autoritativo em sua Palavra. Infelizmente, bem poucas igrejas adotam tal pregação
como o centro de sua vida comum. Em vez disso, os pregadores escolhem seus
tópicos terapêuticos de acordo com aquilo que eles entendem que a congregação
precisa. Eles desejam coçar onde a congregação tem coceira. Novamente, a igreja
que não adota uma pregação expositiva é uma igreja que provavelmente tem
colocado o amor em oposição à autoridade.
Talvez, mais do que qualquer outro tema cultural que tenhamos discutido, a
questão da autoridade é relevante para a discussão acerca da membresia e da
disciplina da igreja local porque membresia e disciplina envolvem uma vida de
submissão. A membresia da igreja é, entre outras coisas, a submissão à disciplina de
uma congregação em especial. Em certo sentido, acredito que esse ato de submissão
seja contratual e temporal pelo fato de nenhuma igreja local ser suprema. Em outro
sentido, acredito que esse ato de submissão não seja contratual pelo fato de estar
baseado nas realidades supremas realizadas pela obra da morte e da ressurreição de
Jesus Cristo e em suas reivindicações sobre a vida dos crentes como rei e senhor.
Se o DNA de nossa natureza caída e de nossa mentalidade cultural for
inerentemente desconfiado de qualquer autoridade, as práticas de membresia e de
disciplina da igreja, grosso modo, serão difíceis de serem vendidas. Crentes
diferentes e igrejas diferentes enxergarão a autoridade com maior ou menor
desconfiança. E não resta dúvidas, uma das dificuldades mais reais que temos que
esclarecer nessa discussão é saber o que significa submissão num mundo caído,
onde a autoridade — incluindo a autoridade da igreja — costuma ser tão abusiva. O
que fazemos com os cultos de Jim Jones que existem no mundo, nos quais a
autoridade é usada para induzir ao suicídio em massa? Como compreendemos a
autoridade e seus usos, quando os oficiais nazistas como Adolph Eichmann utilizam
exatamente este argumento: — “Nós estávamos apenas cumprindo ordens.” —
para justificar o massacre de milhões de pessoas? Em outras palavras, essa
discussão consequentemente terá de levar em consideração a questão sobre como
equilibramos as concepções sobre a autoridade da igreja com a autoridade da
consciência do indivíduo diante de Deus, a fim de não repetirmos os erros e terrores
da história, contra os quais tanto o modernismo quanto o pós-modernismo
corretamente se posicionam.
Ao longo dessas linhas, talvez seja conveniente nesse ponto oferecer um
conselho ao leitor. Uma parte de mim, com sinceridade, está preocupada em falar
favoravelmente acerca da autoridade na sequência deste livro, levando em conta a
grande quantidade de líderes cristãos que continuam abusando dela, seja na igreja
ou no lar. Quantos cristãos magoados têm recebido nada menos do que egoísmo das
mãos dos pastores, dos maridos, dos pais ou das igrejas, em nome de Deus ou da
autoridade. Uma parte de mim está, portanto, inclinada a dizer a qualquer leitor
que já afirma o papel da autoridade na igreja para ir mais além, pelo próprio temor
de afirmá-la em suas formas abusivas. Meu argumento, em certo sentido, dirige-se
principalmente ao grupo contrário — igrejas e líderes que não podem imaginar
qualquer tipo de papel para as autoridades. Dito isso, espero que um exame bíblico
mais cuidadoso desse conceito demonstre que a autoridade piedosa não é algo que
rouba a vida, mas sim que produz vida. Isso é algo que, creio eu, tanto os que
abusam quando os que evitam a autoridade precisam ouvir.
De onde quer que venhamos, um componente crucial da investigação cristã
sobre membresia e disciplina deve incluir a questão de saber se nossas suspeitas e
afirmações em relação à autoridade coincidem com as suspeitas e afirmações da
Bíblia.
CONCLUSÃO
Eis o que podemos extrair deste capítulo: entre os crentes díade hoje, os tópicos
sobre membresia e disciplina da igreja têm sido criticados explicitamente por alguns
e rejeitados silenciosamente por muitos. E isso acontece, conforme tenho
argumentado, porque em nossa época individualista, cética, antiautoridade e
depreciadora de Deus, nós temos uma aversão instintiva à ideia de sermos
constrangidos a fazer qualquer coisa. Portanto, temos redefinido Deus e as
expectativas acerca de seu amor de um modo que não é permitido que façamos.
Temos levantado um ídolo e o chamado de “amor”. E esse ídolo chamado amor tem
dois grandes mandamentos: “Saiba que Deus o ama pelo fato de não obrigá-lo a
fazer coisa alguma (principalmente se você não quiser realmente fazê-lo)” e, em
seguida, “Saiba que o seu próximo o ama melhor quando permite que você se
expresse de forma completa e sem julgamentos”.
Minha esperança é que a identificação desses problemas nos ajude quando, no
restante do livro, voltarmos a considerar como o fato de pertencer a uma igreja
local e se submeter à sua disciplina deve ser parte da forma básica da vida cristã.
29. Por exemplo, John Smyth estabeleceu uma das primeiras igrejas batistas antes que Hobbes
escrevesse o Leviathan (traduzido para o português como Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2008) ou
que Locke escrevesse Two Treatises of Government, traduzido para o português como Dois Tratados do
Governo Civil, Lisboa: Edições 70, 2006, isso sem falar de grupos como os valdenses.
30. Jürgen Moltmann, The Church in the Power of the Spirit, Minneapolis: Fortress, 1993; orig. pub.
1975 (traduzido para o português como A Igreja no Poder do Espírito, 1975), p. xx.
31. Reggie McNeal, The Present Future: Six Tough Questions for the Church, San Francisco: Jossey-Bass, 2003,
pp. 26–27, 34–36.
32. Eis um exemplo dessa tendência antilimites dando forma ao modo como a igreja local é vista: Tony
Jones, um líder da igreja emergente, disse numa entrevista: “As declarações de fé [nas igrejas] dizem
respeito a fronteiras, que precisam ser defendidas por soldados armados. Você tem que verificar os
passaportes das pessoas quando passam por essas fronteiras. Isso se torna uma obsessão — guardar as
fronteiras. Esse simplesmente não é o ministério de Jesus. Também não era o ministério de Paulo ou de
Pedro.” Citado em Kevin DeYoung e Ted Kluck, W hy We’re Not Emergent [Por que Não Somos
Emergentes], Chicago: Moody, 2008, p. 117. Outro exemplo notável pode ser visto em Brian McLaren,
A Generous Orthodoxy, Grand R apids: Zondervan, 2004, p. 109.
33. Benjamin Franklin, The Autobiography and Other Writings [Autobiografia e Outros Escritos], New
York: Penguin, 1986, p. 27.
34. Frederick Douglass, Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave [A Narrativa da
Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano], New York: Penguin, 1982, 86-87.
35. Donald M. Goldstein e K atherine V. Dillon, Amelia: A Life of the Aviation Legend [Amelia: A Vida
da Lenda da Aviação], nova ed., Dulles, VA: Brassey’s, 1999), p. 9.
36. R .W.B. Lewis descreveu de forma excelente esse Adão americano como sendo “emancipado da
história, felizmente desprovido de ascendência, intocado e imaculado pelas heranças comuns da família e
da raça; um indivíduo independente, autoconfiante, autopropulsionado, pronto para enfrentar qualquer
coisa que o espere, com a ajuda de seus próprios recursos exclusivos e inerentes... e em sua
inexperiência, ele era fundamentalmente inocente”; The American Adam [O Adão Americano],Chicago,
University of Chicago Press, 1959, p. 5.
37. George F. Custen, “Debuting: One Spy, Unshaken” [Estreando: Um Espião Inabalável] in New York
Times, “ Week in Review ” [Revendo a Semana], 23 de junho de 2002; também descrito em Heather
Clark, The Myth of the American Adam Re-Bourne [O Mito do Adão Americano Renasce], uma tese de
mestrado não publicada, outono de 2004, Purdue University disponível em
<http://www.calumet.purdue.edu/engphil/recenttheses.html> acessado em 17 de janeiro de 2008.
38. Robert Bellah et al., Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life [Hábitos
do Coração: Individualismo e Comprometimento na Vida Americana], New York: Harper and Row,
1985, pp. 235, 220.
39. Em Jon D. Levenson, “ The Problem with Salad Bowl Religion” in First Things 78 [“O Problema com
a Religião da Tigela de Salada” em “Primeiras Coisas” 78, dezembro de 1997: 10-12.
40. Robert Bellah, Habits of the Heart, pp. 72-73.
41. Anthony Giddens, Transforming Intimacy: Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies, Palo
Alto, CA: Stanford University Press, 1992, p. 38, traduzido para o português como Transformação da
Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas, São Paulo: Unesp, 1992.
42. Ibid., p. 43.
43. Ibid., 39-40, Bellah, Habits of the Heart, p. 73.
44. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 44-45.
45. Ibid., p. 59.
46. Ibid., p. 43.
47. Ibid., p. 43, 59.
48. Ibid., p. 42.
49. Citado em Justin Taylor, “Martin Luther’s Reform of Marriage” in Sex and the Supremacy of Christ,
ed. John Piper e Justin Taylor, W heaton, IL: Crossway, 2005, p. 240, traduzido para o português como
Sexo e a Supremacia de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
50. Ibid., p. 239.
51. Ibid., p. 239-40.
52. Ibid., p. 231.
53. John Piper, God Is the Gospel, W heaton, IL: Crossway, 2005, pp. 149-50 traduzido para o português
como Deus é o Evangelho, São José dos Campos: Editora Fiel, 2006.
54. David Powlison, “ Therapeutic Gospel” [O Evangelho Terapêutico], in Journal of Biblical Counseling
[Periódico de Aconselhamento Bíblico] 25 (Verão de 2007): p. 3.
55. Veja Leon J. Podles, The Church Impotent: The Feminization of Christianity [A Igreja Impotente: A
feminização do Cristianismo], Dallas: Spence, 1999, pp. 3-4, 57-59; David Murrow, W hy Men Hate
Going to Church [Por que os Homens Odeiam Ir à Igreja?], Nashville: Nelson, 2005; Mark Chanski,
Manly Dominion: In a Passive-Purple-Four-Ball-World, Amityville, NY: Calvary Press, 2004. É notável
que essa crítica não seja recente; veja Cortland Myers, W hy Do Men Not Go to Church? [Por que os
Homens Não Vão à Igreja?], New York: Funk e Wagnalls, 1899.
56. Erich Fromm, The Art of Loving, 1956; reimpressão New York: Harper and Row, 1989, p. 3,
traduzido para o português como A Arte de Amar, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
57. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 62.
58. Mark Dever, W hat Is a Healthy Church?, W heaton, IL: Crossway, 2007, p. 96 traduzido para o
português como O que é uma Igreja Saudável, São José dos Campos: Editora Fiel.
59. Para uma discussão desse fenômeno na geração dos jovens de hoje, principalmente em relação aos
que pertencem a uma igreja local, veja os caps. 2 e 3 de Robert Wuthnow, After the Baby Boomers: How
Twenty-and Thirty-Somethings Are Shaping the Future of American Religion [Depois da Geração Pós-
MSegunda Guerra mundial: Como os Jovens e Adultos de Meia-idade Estão Moldando o Futuro da
Religião Americana], Princeton: Princeton University Press, 2007.
60. Veja Robert Putnam, “Bowling Alone: America’s Declining Social Capitol” [Jogando Boliche Sozinho:
O Declínio do Capitólio Social Americano] in Journal of Democracy 6 (janeiro de 1995): pp. 65-78; e
também Robert Putnam, Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community [Jogando
Boliche Sozinho: O Colapso e o Renascimento da Comunidade Americana], New York: Simon and
Schuster, 2000.
61. Putnam, Bowling Alone, p. 156.
62. Departamento do Trabalho dos EUA , Divisão de Estatísticas do Trabalho, “News” [Notícias], 26 de
Setembro de 2008, USDL 08-1344 disponível em
<http://www.bls.gov/news.release/archives/tenure_09262008.pdf>.
63. Roger Finke e Rodney Stark, The Churching of America [A Frequência à Igreja nos EUA], Piscataway,
NJ: Rutgers University Press, 2005, p. 275.
64. N.T. Geração X tem sido uma denominação da geração iniciada aproximadamente entre as décadas
de 60 a 80.
65. Ouvi que R . Albert Mohler utiliza essa frase em diversos discursos e artigos. Ela pode ser encontrada
em <www.almohler.com>; veja também Diana West, The Death of the Grown-Up: How America’s
Arrested Development Is Bringing Down Western Civilization [A Morte do Crescimento: Como o
Impedimento do Desenvolvimento Americano Está Prejudicando a Civilização Ocidental], New York:
St.Martin’s Press, 2007.
66. Giddens, Transforming Intimacy, pp. 58.
67. George Barna, Revolution, Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, p. 14, traduzido para o português como
Revolução - Cansado da igreja?, Santo Amaro, Abba Press.
68. Ibid., p. 29.
69. Ibid., p. 31.
70. Ibid., p. 49.
71. Ibid., p. 8.
72. Ibid., p. 62–63.
73. Hybels descreve isso em <http://revealnow.com/story.asp?storyid=49>. A citação foi extraída de
Greg L. Hawkins e Cally Parkinson, Reveal: W here Are You?, Barrington, IL: Willow Creek Association,
2007, pp. 65-66, traduzido para o português como Descubra Onde Você Está, São Paulo: Vida, 2008 .
74. Exatamente como pensam Jeremy Bentham e John Stuart Mill na Grã-Bretanha ou John Dewey e
Richard Rorty nos Estados Unidos.
75. Colin Gunton descreve como as concepções modernas sobre a liberdade são um engano no livro The
One, The Three, and the Many: God, Creation, and the Culture of Modernity [O Único, Os Três e os
Muitos: Deus, a Criação e Cultura da Modernidade], Cambridge, UK: Cambridge, 1993, pp. 13, 33-37.
76. Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982,
p. 179, traduzido para o português como O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa: Calouste
Gulbenkian/ Dinapress, 2005; Charles Taylor, Sources of the Self [A Origem do Eu], Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1989, p. 27.
77. Allan Bloom, The Closing of the American Mind [O Fechamento da Mente Americana], New York:
Touchstone, 1987, pp. 38-39.
78. Extraído de D. Martyn Lloyd-Jones, Maintaining the Evangelical Faith Today, Nottingham, UK:
Inter-Varsity, 1952, pp. 4-5, traduzido para o português como Mantendo a Fé Evangélica Hoje, São
Paulo: PES.
79. Friedrich Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers [Sobre a Religião:
Discursos aos Desdenhadores Cultos], tradução de John Oman, New York: Harper and Row, 1958, p. 17.
80. 51 Ibid., p. 36, 18.
81. Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory [Um Estudo sobre a Teoria Moral], 2a
ed., London: Duckworth, 1985, p. 22.
82. Por exemplo, Mark Noll escreve: “O novo movimento carismático obscureceu os limites
demarcatórios entre protestantes e católicos como coparticipantes e seguidores do vento do Espírito”. Is
the Reformation Over? [A Reforma Terminou?], Grand R apids, Baker, 2005, p. 65. Apesar de Noll não
apresentar isso como um exemplo negativo da deterioração doutrinária — à medida que seu livro tenta
promover o desmoronamento da parede que divide protestantes e católicos romanos — isso serve para
os nossos propósitos como um exemplo da relação inversa que há nas igrejas contemporâneas entre a
atenção dada às distinções doutrinárias e a que é dada à ação do Espírito Santo.
83. Não resta dúvida de que uma publicação lançada em 2007, intitulada American Individualism Shines
Through in People’s Self-Image [O Individualismo Americano Brilha Através da Autoimagem das
Pessoas], da organização de pesquisa de opinião George Barna, observa: “Com base em entrevistas com
amostras de 4000 adultos representantes da nação, a autoimagem dos adultos americanos prevaleceu de
forma clara e distinta. A maioria dos americanos vê-se como líderes (71%) e acredita que são bem
informados a respeito dos acontecimentos correntes (81%). Eles quase que unanimemente veem a si
mesmos como pensadores independentes (95%), e como pessoas leais e confiáveis (98%). Eles também
dizem que são capazes de se adaptar facilmente a mudanças; e uma quantidade colossal de pessoas,
quatro em cada cinco, acredita que eles estão fazendo uma diferença positiva no mundo. Dois em cada
três adultos notaram que eles gostam de estar no controle das situações. E embora a maioria dos
americanos argumente que são livres pensadores e que são “bem abertos” a pontos de vista morais
alternativos (75%), a grande maioria apoia os valores da família tradicional (92%), o que resulta numa
grande maioria que alega se preocupar com o estado moral da nação (86%). Embora, curiosamente,
apenas um em cada quatro adultos se preocupe suficientemente em tentar convencer outras pessoas a
mudarem seus pontos de vista a respeito de tais assuntos”, 23 de julho de 2007;
http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=275, acessado em 23 de
janeiro de 2008).
84. Charles Taylor, Sources of the Self, cap. 8, principalmente pp. 155-58, traduzido para o português
como As Fontes do Self, São Paulo: Edições Loyola, 1997.
85. Ayn R and, The Fountainhead, 1943; reimpresso por New York: Signet, 1993, pp. 15-16; traduzido para
o português como A Nascente, São Paulo: Landscape, 2008.
86. Se alguém contestar que o pós-modernismo, na verdade, abomina essas ambições imponentes e faz
tudo o que pode para desconstruir tais afirmações, é preciso apenas perguntar ao pós-modernista por
que ele acha que tem autoridade para desconstruir. A verdade é que a desconstrução pós-moderna do
indivíduo continua apenas como autônoma — autogovernada — assim como o indivíduo moderno,
mesmo que ele postule autoridade simplesmente em sua capacidade de declarar todas as verdades como
nulas e ineficazes. Nesse sentido, o desconstrutivismo desconstrói a si mesmo.
87. Assim como acontece com Ayn R and, no entanto, não é muito difícil especular sobre as possíveis
cadeias de causalidade quando consideramos a imensidão do impacto que alguém como o ex-presidente
do Banco Central dos EUA , Alan Greenspan, que geralmente se gabava de seu amor pela obra de R and,
poderia ter em toda a economia e na forma de vida dos Estados Unidos nas últimas décadas do século
XX. Seria irracionalidade pensar que as concepções econômicas de crescimento e vitalidade que captam
boa parte da nossa atenção consciente ao lermos o jornal da manhã, considerando em qual candidato
votar ou determinando se as taxas de juros são favoráveis para o refinanciamento da hipoteca de nossa
casa, não causarão também um profundo impacto em nossas expectativas de crescimento e vitalidade na
Igreja? Em seu livro Greed: The Seven Deadly Sins, New York: Oxford University Press, 2006, traduzido
para o português como Avareza, Coleção Sete Pecados Capitais, São Paulo: Saraiva, 2005, Phyllis A .
Tickle argumenta que “a trajetória desde Adam Smith até Ayn R and e Arthur Andersen tem sido
traçada de modo irreversível”; p. 40.
88. Citado em Gilbert Meilaender, “Conscience and Authority” [Consciência e Autoridade] em First
Things [Primeiras Coisas], November 2007, p. 33.
89. Ver Phyllis A . Tickle, Greed, pp. 38, 40.
90. Colin E. Gunton, The One, the Three and the Many, p. 38.
91. É assim que Stanley Grenz caracteriza Moltmann no livro Rediscovering the Triune God: The
Trinity in Contemporary Theology [Redescobrindo o Deus Triúno: A Trindade na Teologia
Contemporânea], Minneapolis, Fortress, 2004, p. 84, citando Moltmann em Trinity and the Kingdom
and God in Creation [A Trindade, o Reino e Deus na Criação], traduzido por Margaret Kohl,
Minneapolis: Fortress, 1993, p. 221.
92. Wolfhart Pannenberg, Anthropology in Theological Perspective [A Antropologia na Perspectiva
Teológica], Philadelphia: Westminster Press, 1985.
93. John D. Zizioulas, Being as Communion: Studies in Personhood and the Church [Existindo como
Comunhão: Estudos sobre a Personalidade e a Igreja], Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press,
1985, pp. 16-19; 36-65.
94. Tom Smail, Like Father, Like Son: The Trinity Imagined in Our Humanity [Tal Pai, Tal Filho: A Trindade
Representada em nossa Humanidade], Grand R apids: Eerdmans, 2005, p. 238.
95. Cf. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, vol. 1., ed. John T. McNeill, Philadelphia:
Westminster, 1960, p. 39, traduzido para o português como As Institutas, Ed. Clássica, São Paulo:
Cultura Cristã, 1985.
96. Extraído da oração intitulada “Humiliation,” in The Valley of Vision [Humilhação em O Vale da
Visão], Ed. Arthur Bennet, Edinburgh: Banner of Truth, 2002, p. 143.
97. Outro escritor da linha comunitarista, Miroslav Volf, espantosamente parece lançar uma luz num
Deus centrado no homem, bem no cerne de sua descrição da Glória de Deus, quando ele define a glória
de Deus como “o amor de Deus” para “o bem da criação”, no livro Free of Charge: Giving and Forgiving in a
Culture Stripped of Grace [Livre do Fardo: Ofertando e Perdoando numa Cultura Despojada da Graça],
Grand R apids: Zondervan, 2005, p. 62; e também p. 39. Eu digo “parece” porque suas afirmações são
breves e poderiam ser mais bem elaboradas.
Capítulo 2
A NATUREZA DO AMOR
Perguntas Principais: O que é o amor de Deus e por que ele nos ofende? Qual é
a ligação entre a nossa compreensão acerca do amor de Deus e a membresia na
igreja?
Principais Respostas: O amor de Deus nos cria e afirma, mas ele o faz com o
propósito de ganhar louvores para o próprio Deus. A santidade ou centralidade do
amor de Deus em Deus nos ofende porque ela traz tanto salvação quanto
julgamento. Por essa razão, a membresia e a disciplina da igreja nos ofendem
porque elas exemplificam tanto a salvação quanto o julgamento, trançando uma
linha divisória entre essas duas coisas.
Ao longo da história, o grande inquisidor lembra Jesus que o próprio Jesus deu à
igreja a autoridade para incluir ou excluir dela a quem quer que ela deseje: “Você fez
suas promessas, selou-as com sua palavra; você nos deu o direito de ligar e desligar,
e assim, obviamente, você não pode nem sonhar em tirar esse direito de nós
agora.”99
Não confunda Jesus com a igreja institucionalizada. Essa parece ser a moral
dessa história. Será? Talvez esse seja um dos pontos de vista de Dostoiévski.
“Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que
ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1
Jo 4.10).
Eis aí. Deus nos ama. Mais do que qualquer outra coisa. Essa é a sua natureza.
Discussão encerrada. Certo? Não exatamente.
Do amor providencial de Deus pela criação: a palavra amor não é usada neste
texto, mas ele afirma que tudo o que ele fez é “bom” e que promete vir chuvas sobre
justos e injustos igualmente.
Do amor específico e eletivo de Deus por um povo escolhido: “Não vos teve o
SENHOR afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que
qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR
vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos
tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó,
rei do Egito” (Dt 7.7-8). “Como está escrito: ‘Amei Jacó, porém me aborreci de
Esaú’” (Rm 9.13).
Do amor condicional de Deus em relação ao seu povo, com base na obediência:
“Guardai-vos no amor de Deus” (Jd 21). “Se guardardes os meus
mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 15.10).
Para Agostinho, existem dois tipos básicos de amor: um amor centrado em Deus
e um amor centrado em qualquer outra coisa. Um vem de Deus e volta para Deus; o
outro não. E há um limite claro entre esses dois tipos de amor. Além disso, amar
verdadeiramente outra pessoa significa simplesmente dirigi-la até Deus. Agostinho
escreve: “Aquele que ama legitimamente o seu próximo deve agir em relação a ele de
modo que ele também ame a Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e
com toda a sua mente.”112
Bernardo de Claraval, que é citado como um místico, deu mais ênfase à
experiência de amar a Deus do que Agostinho. Ele é bem conhecido por usar a
imagem do amor romântico e o êxtase do livro de Cantares para descrever a nossa
experiência de amar a Deus113. Todavia, a conclusão geral de Bernardo é
semelhante à de Agostinho. Deus nos ama nos capacitando para amá-lo: “Ele não
ama com outro propósito, senão o de ser amado, sabendo que aqueles que o amam
são abençoados pelo seu próprio amor.”114 Para Bernardo, o amor é a própria
recompensa do amor. Ele é tanto dar como receber. Nós fomos unidos a ele por
meio dele, mas ao nos unirmos a ele, recebemos tudo o que poderíamos desejar.
Tomás de Aquino, assim como Agostinho e Bernardo, também concebiam o amor
como vindo de Deus e retornando para Deus — como um bumerangue. Ele também
começou com uma concepção acerca do amor como paixão ou desejo e depois a
combinou com uma concepção sobre o amor como um dom ou um desejo pelo bem
do outro. O amor atrai uma pessoa para a outra e une aquele que ama à pessoa
amada, mas não apenas o une, como também o move externamente. O amor é como
uma fornalha, disse Aquino, que irradia para o exterior, levando calor para toda a
casa. Por essa razão, não é bom dizer: “Eu amo a Deus, mas não amo o meu
próximo.” Do mesmo modo como o amor de Deus arde exteriormente para o
mundo, a fim de trazer as pessoas para amá-lo e servi-lo, o nosso amor também
arde externamente pelos pecadores, para levá-los ao amor Deus115.
Note que o amor é completamente separado de minha atração por um objeto. Ele
não é outra coisa senão um dom autossacrificial. É uma escolha, despretensiosa e
sem constrangimento, de doar em favor do bem de outra pessoa — é mais um
efeito da vontade do que do coração. Ele nunca é condicional, mas sempre
incondicional. Não há necessidade alguma de atos de julgamento em tal amor,
porque ele é totalmente um dom. Ele é para o indigno, bem como para o digno; para
o pecador, bem como para o justo.
Karl Barth também pode ser enquadrado nessa tradição. Deus é “aquele que ama
sem restrições”, afirma Barth. Ele ama como “um fim em si mesmo”. Outros da
tradição agostiniana e reformada poderiam perguntar: “Mas Deus não ama por
causa de sua glória?” Mais ou menos, afirma Barth. Ele escreve: “Ao nos amar, Deus
deseja sua própria glória e a nossa salvação. Mas ele não nos ama porque ele deseja
isso. Ele deseja isso por causa do seu amor... Deus ama porque ele ama; porque esse
ato é o seu próprio ser, sua essência e sua natureza. Ele ama sem realizar esses
propósitos e antes de realizá-los.”124 Em outras palavras, ele não renuncia ao amor
por causa de sua glória. Ele nos ama porque ele é amoroso; isso é um fim em si
mesmo (Barth aponta para Dt 7.8 e Jr 31.3 para apoiar suas afirmações). Mas
então, sim, ele recebe a glória (e nós somos salvos) porque ele é amoroso. O amor
de Deus vem primeiro; sua glória e a nossa salvação vêm em segundo lugar, como
consequência do fato de ele amar. Assim, juntamente com esses últimos poucos
autores, Barth vê o amor de Deus totalmente como um dom; ele não é dado por
causa de qualquer coisa que ele contemple no objeto de seu amor125.
Hoje em dia, alguns teólogos têm retomado a frase de Lutero, “uma teologia da
cruz”, e se colocado explicitamente contra a “teologia da glória” (assim como ele o
fez). Entre outras ênfases, eles também negam que o amor de Deus possua algo
como o desejo ou atração em si; ele todo é um dom gratuito. Por exemplo, Gerhard
Forde escreve: “Esse amor de Deus, que cria o seu objeto, é completamente distinto
do amor dos homens. O amor humano é estimulado pela atração para aquilo que dá
prazer. Ele deve buscar encontrar o seu objeto, e, poderíamos acrescentar, ele
provavelmente o deixará de lado quando se cansar dele.”126 A ênfase que Jürgen
Moltmann dá ao amor sofredor de Deus baseia-se nessas mesmas pressuposições
básicas.
Mais uma vez, o velho pastor congregacional de Marilynne Robinson nos oferece
uma ilustração útil. Ele escreve: “O amor é santo porque é como a graça — a
dignidade de seu objeto nunca é o que realmente importa.”127
Nós temos uma abundância de riquezas nas observações de Lutero e na sua linha
de interpretação. Quando a afeição de Deus é posta sobre algo, nesse momento, e
apenas nesse momento, aquilo se torna algo digno, valioso e encantador. Seu amor
não é dado àquilo que, antes de seu amor, era de alguma forma intrinsecamente
encantador. Em vez disso, o amor de Deus cria aquilo que é encantador e valioso.
Quando ele olha para a criação e diz: “Isso é bom”, ela, de fato, torna-se boa e
encantadora, porque ele a fez ser assim.
É exatamente por isso que o evangelho de Deus chega às coisas desprezadas, às
coisas humildes e àquelas que não são. É exatamente aí que o amor de Deus cria, do
modo mais óbvio, algo encantador e amável. Ele interage com ladrões, assassinos,
com coletores de impostos, prostitutas e diz a um mundo que se autojustifica e
despreza essas coisas: “Observe o que vou fazer. Observe o modo como eu os
amarei e, por meio de meu amor por eles, os transformarei num povo belo,
resplendente, majestoso; um povo que excede os anjos em fulgor.”
O amor de Deus é um dom agape dado aos que não merecem. Frederick
Buechner, ao meditar sobre o amor aos inimigos, apreende essa ideia de um modo
doce: “E ainda há o amor pelo inimigo — amor por aquele que não o ama, mas o
escarnece, ameaça e lhe inflige dor. O amor do torturado pelo seu torturador. Esse
é o amor de Deus. Ele conquista o mundo.”128 Um amor como esse não é
maravilhoso de se contemplar? Anteriormente, eu afirmei que o amor de Deus
tanto nos repele quanto atrai. O que nos atrai especificamente? É o fato de doar a si
mesmo igualmente ao que é digno e ao que é indigno.
Ah, mas há o resplendor. Isso, de fato, nos atrai. E como não atrairia? Ele é belo,
e realmente o amamos por causa de tamanha beleza, não é mesmo? Paulo até chega
a dizer que o amor de Cristo “nos constrange” (2 Co 5.14). Então considere: não
estamos imitando o amor de Deus? Como então devemos amar a Deus? Devemos
amá-lo independentemente de sua beleza? O nosso amor por ele deve ser
totalmente como um dom benevolente e não como uma resposta de adoração?
Além disso, o que significa ter “a terna misericórdia de Jesus Cristo” por uma igreja,
conforme Paulo afirma que tem pelos Filipenses (1.8)?
A discussão acerca do amor cristão nos círculos teológicos tem ido além dessa
escolha entre agape e eros, voltando-se recentemente para as questões de
“mutualidade” e “relacionamento recíproco”129. Todavia, eu creio que essa distinção
básica delimita uma separação substancial em muitas mentes cristãs. Nós
associamos agape com a graça e com a ideia de o amor de Deus ser “incondicional”, e
associamos eros com obras, justiça, beleza e com a ideia de amor “condicional”. O
problema é que essa mesma ênfase verdadeira e maravilhosa no dom gratuito do
amor de Deus é reducionista. Ela ilustra apenas uma parte da informação bíblica a
respeito de Deus; a parte do evangelho e a parte na qual a igreja é chamada à
existência. Na verdade, essa definição dirigida pelo agape (o amor apenas como um
dom) ignora pelo menos duas coisas que estão no cerne do amor na Bíblia. Em
primeiro lugar, ela ignora o amor do divino Pai por seu Filho perfeito. Onde isso se
encaixa na definição de “amor”? Não existe sofrimento ou autossacrifício no amor
do Pai pelo Filho. Ele é simplesmente prazer, e esse prazer está baseado na beleza e
perfeição moral do Filho130. Em segundo lugar, ela ignora a questão do porquê de
Cristo ter que morrer para salvar pecadores. Por que ele não poderia apenas falar e
trazer a salvação à existência, assim como ele falou e trouxe a criação à existência?
Receio que definir o amor apenas como um dom agape coloca centralizado no
homem a concepção do amor centrado em Deus, de Agostinho131. Considere a
questão dessa forma: Por que Deus ama pecadores para a salvação? A resposta
agape é: “Porque ele os ama! E ponto final. Ele ama e ele dá. Isso é o que ele faz.” Não
existe qualquer incentivo extra para Deus. Seu amor por eles é um fim decisivo em
si mesmo. Ele ama os pecadores por causa deles e nada mais. Lembre-se, Jesus
morreu por nós. Ele deu tudo!
Sim, ele realmente morreu por nós, mas ele, de fato, renunciou tudo? Ele
renunciou a sua santidade? Sua missão? Ele renunciou o seu compromisso de
obedecer ao Pai? Ele desprezou sua ambição de glorificar o Pai e não espera coisa
alguma em retribuição por parte daqueles a quem ele salva? Ele fica feliz se eles,
uma vez salvos, viverem do modo como lhes agrada? Cristo foi crucificado na carne,
sim, mas ele fez isso por um propósito específico que era mais importante do que
salvar pessoas. Ele está salvando um povo a fim de que esse povo possa ser santo,
amoroso e unido. Ele está salvando um povo para que esse povo possa ser
consagrado para adorar a Deus132. Ele está salvando um povo não para a glória
desse povo, mas para a glória de Deus133. Assim que você disser que Cristo espera
algo daqueles a quem salva, como a obediência, você estará admitindo que Deus está
buscando algo. Ele tem algum alvo em mente. No entanto, note o que acontece
quando você segue verdadeiramente a linha de pensamento do amor agape em
direção a sua conclusão lógica. Se o amor de Deus é simplesmente uma dádiva
sacrificial e nada mais — quero dizer, de fato, um sacrifício totalmente puro —
então Deus renuncia a sua divindade, não é mesmo? Ele deve abandonar sua
santidade, sua justiça, tudo. Se eu abandonar tudo por sua causa, é porque eu o amo
mais do que a mim mesmo. Uma concepção agape do amor, que eu considero ser
uma tendência atual entre os evangélicos, assume implicitamente que, no final das
contas, Deus vive e ama por nossa causa. Nós somos o seu amor maior. Ele nos ama
mais do que qualquer outra coisa, até mesmo mais do que sua própria glória. Ele
nos idolatra.
E, sendo assim, a lei de Deus se curva diante de nós, e todo julgamento é
finalmente derrotado. O que é a lei de Deus, afinal? Ela é o conjunto de exigências
de sua natureza. E se sua natureza se define primeiramente e acima de tudo como
amar a humanidade, então não pode ser pecado amarmos a nós mesmos acima de
todas as coisas e sermos orgulhosos. Não devemos amar aquilo que Deus ama, e
valorizar o que ele valoriza? Não devemos considerar como bem e mal aquilo que
ele considera bem e mal? Se nós somos o que ele mais ama, devemos amar mais a
nós mesmos. A justiça de Deus se transforma em qualquer coisa que seja para o
meu bem. Não existe qualquer outro tipo de justiça “esquecida em algum lugar” que
possa exigir que ele nos julgue por odiá-lo e amarmos mais a nós mesmos. Todo
julgamento pode ser deixado de lado134. Se as pessoas não escolhem Deus, tudo
bem. Dê a elas o direito de dizer não a Deus. Mas não precisamos julgá-las. Não há
razão para isso. Envie-os para umas férias infinitas de felicidade do outro lado do
universo.
“Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”, diz o divino Pai a Jesus em seu
batismo (Lc 3.22). Esse versículo não é Gênesis 1.1, mas poderia ser. O amor do Pai
pelo Filho existe desde o início de tudo (veja Jo 17.5, 24).
(Estamos lidando agora com a primeira categoria de Carson, conforme descrita
acima.) Por que o pronunciamento de que o Pai se compraz com o Filho é repetido
sete vezes no Novo Testamento136? O contexto dessas palavras no Evangelho de
Lucas nos ajuda com a resposta. Seguindo imediatamente o batismo, Lucas
apresenta uma genealogia que se estende até Adão, que é mencionado, de fato,
como “o filho de Deus” (Lc 3.23-38, principalmente 38). Jesus, esse filho de Adão,
deve ser aquele para quem toda a história tem apontado, o último Adão, por assim
dizer (cf. 1 Co 15.45). Então, logo após traçar toda a história humana, Lucas
apresenta esse filho de Adão sendo conduzido pelo Espírito de Deus ao deserto,
onde ele encontraria o antigo adversário de Adão, Satanás. O palco está montado
para uma reconstituição da tentação do Éden, só que agora não é num magnífico
jardim, mas num deserto estéril, e Jesus estava jejuando por quarenta dias e noites.
Na verdade, essa cena não só reconstitui o Éden, como também encobre outra
reconstituição — os quarenta anos de Israel no deserto.
No entanto, em resposta a esses desafios, o Filho faz o que nem Adão nem Israel
poderiam fazer. Ele recusa uma provisão falsa e confia totalmente nas palavras de
Deus (Lc 4.4; Dt 8.3). Ele se recusa a se apegar a uma falsa oferta de autoridade e
glória, e adora somente a Deus (Lc 4.6, Dt 6.13, cf. Gn 3.5-6). Ele recusa uma falsa
reivindicação de direito, mas confia completamente no domínio de Deus (Lc 4.12;
Dt 8.16; Êx 17.2-7).
A perfeita obediência do Filho ao Pai é também o testemunho do Evangelho de
João. A comida do Filho é “fazer a vontade do Pai e realizar sua obra” (Jo 4.34; 6.38;
cf. Mt 4.4). Ele “nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o
Pai” (Jo 5.19, 30; 17.2). Ele fala e ensina apenas conforme o Pai o ensinou (7.17;
8.28; 12.49-50). Ele veio no nome e na autoridade do Pai, não em seus próprios
(5.27, 43; 7.17; 8.28). “Porque eu não tenho falado de mim mesmo, mas o Pai, que
me enviou, ele me deu mandamento sobre o que hei de dizer e sobre o que hei de
falar” (12.49 ARC; cf. 14.10).
UM AMOR CONDICIONAL?
O amor do Pai pelo Filho é “condicional” à obediência do Filho? Será que o Pai
tem um amor ardente pelo Filho porque o Filho lhe obedece? Isso soa como aquela
vez em que o Filho diz: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no
meu amor, assim como tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço
no seu amor” (Jo 15.10). O paralelismo nesse texto é impressionante. Nós
permanecemos no amor de Cristo por meio da obediência, assim como o Filho
permanece no amor do Pai por meio da obediência137.
Há um pano de fundo bíblico mais amplo que vale a pena mencionar aqui
também. Quando Deus fez uma aliança com Davi, ele prometeu a Davi que puniria
seu filho quando ele cometesse iniquidade (2 Sm 7.14). No entanto, quando essa
aliança é repetida nas Crônicas, após o exílio, essa ameaça específica é omitida (veja
1 Cr 17.13). Isso seria porque o único filho importante de Davi após o exílio foi
Cristo? Se voltarmos, portanto, para os Salmos, encontraremos um importante
personagem davídico que, de fato, é recompensado por sua justiça. Isso está mais
claro no Salmo 45, no qual se lê: “Amas a justiça e odeias a iniquidade; por isso,
Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria, como a nenhum dos teus
companheiros” (Sl 45.7). Deus ungiu esse rei porque ele amava a justiça e odiava a
iniquidade (veja também Sl 21.5-7) — o qual o livro de Hebreus afirma ser Cristo
(Hb 1.9). Vez após vez, esse importante personagem davídico diz: “Retribuiu-me o
SENHOR segundo a minha justiça” (Sl 18.20; cf. Sl 7.8; 26.1; 35.24). Jesus foi
ungido como Messias e rei não apenas porque ele era o Filho de Deus. Ele
conquistou a unção por meio de sua justiça (cf. Sl 2.7)!
Essa corrente específica de textos é somente uma das que fluem para o vasto e
profundo oceano da Cristologia e não deveria ser lida separadamente de outras que
afirmam o amor eterno e garantido do Pai pelo Filho. Entretanto, Jesus é o único
que “aprendeu a obediência” pelas coisas que sofreu (Hb 5.8). Jesus é o único que
pôde dizer aos seus discípulos: “Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor, assim como tenho guardado os mandamentos de meu
Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15.10). Jesus é o único de quem o Pai disse que
se comprazia nele, um comprazimento fundamentado, pelo menos em parte, na
perfeição moral do Filho. Na verdade, a declaração da satisfação do Pai em seu Filho
acontece no batismo de Jesus, um batismo que foi realizado para “cumprir toda a
justiça” (Mt 3.15).
No mistério da encarnação, parece que Jesus de Nazaré, o Deus-Homem, era o
recebedor daquilo que poderíamos chamar de amor “condicional” de Deus. Em sua
impecabilidade, é lógico, Jesus, o Deus-Homem, guardou a lei de modo perfeito, e o
julgamento pronunciado sobre ele foi “justo”. Como o Filho eterno, obviamente, o
amor do Pai pelo Filho é infinito e garantido. Entretanto, há pelo menos uma
corrente textual que segue o curso da história da redenção e que sugere que o Pai
presenteou o Filho encarnado com um tipo de amor condicional ou um amor que
era fundamentado na obediência de Cristo138. As boas novas, para nós, é que Jesus
cumpriu as condições139!
Há nisso uma lição crucial. Isso demonstra que o Pai ama o Filho por causa da
perfeição do Filho. Ele se descreve como sendo atraído para determinadas
qualidades de seu Filho, qualidades com as quais ele se “compraz”. Isso era verdade
durante a encarnação, e temos toda a razão para pensar que isso era verdade na
eternidade passada, e que o será também na eternidade futura. O Filho reflete o
próprio caráter do Pai e o glorifica, e o Pai o ama por essa razão. O amor do Pai pelo
Filho não é indiscriminado e arbitrário. Ele tem uma razão de ser. Podemos até
mesmo dizer que há uma condição para o amor eterno do Pai. E se o Filho não se
submetesse de modo perfeito à vontade do Pai e não refletisse perfeitamente a
imagem do Pai — será que o Pai deixaria de amá-lo? Bem, isso é uma situação
hipotética, e não temos como saber. O que, de fato, sabemos com certeza é o que o
salmista cantou e o que o autor de Hebreus atribui ao Pai no que concerne ao Filho:
“Amas a justiça e odeias a iniquidade.” “Por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com o
óleo de alegria, como a nenhum dos teus companheiros” (Sl 45.7; Hb 1.9). O amor
de Deus, até mesmo pelo Filho, está ligado à sua justiça. Deus não ama nem a si
mesmo independentemente de sua própria lei. Seu amor é intrinsecamente
condicionado por todos os seus outros atributos. Em resumo, Jesus, o Filho amado,
dá prazer ao Pai porque ele cumpriu o mandamento dado a Israel: “Amarás, pois, o
SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força”
(Dt 6.5; cf. 6.6).
O amor como atração e o amor como um dom não estão separados no amor do
Pai pelo Filho. O Pai é atraído para o Filho, e ele doa gratuitamente ao Filho tudo o
que tem. Ele se transmite ao Filho totalmente. O apóstolo Paulo explica que
“aprouve a Deus que residisse toda a plenitude” em Cristo (Cl 1.19). O próprio
Jesus testemunhou que: “O Pai ama ao Filho, e todas as coisas tem confiado às suas
mãos” (Jo 3.35; veja também Mt 11.27); e também: “o Pai ama ao Filho, e lhe mostra
tudo o que faz” (Jo 5.20); e também: “Porque assim como o Pai tem vida em si
mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo (Jo 5.26). Portanto, a
transmissão de si mesmo que o Pai faz ao Filho é completa, de modo que Jesus
podia dizer ao seu discípulo Filipe: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Paulo
também podia dizer: “Ele ‘é a imagem do Deus invisível’” (Cl 1.15); e o autor de
Hebreus escreveu: “Ele é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser” (Hb
1.3).
Recentemente, ouvi por acaso uma exposição de um pregador sobre o amor do
Pai pelo Filho, conforme expresso no batismo de Jesus. O pregador seguiu falando
sobre como o Pai podia amar o Filho sem reservas, porque não havia no Filho
pecado que impedisse o seu amor. O Filho era perfeito e sem defeitos, por isso o Pai
podia amá-lo sem restrições ou reservas. Imagine tal amor perfeito e doce fluindo
— o amor da perfeição infinita pela perfeição infinita140! No entanto, à medida que
ele pregava, eu sentia um peso crescente e opressivo em mim. “Nunca serei tão
perfeito”, eu pensava. “Deus jamais será capaz de me amar totalmente sem
reservas.” Esse peso aumentava até que, de modo notável, o pregador voltou a dizer
que exatamente esse mesmo amor foi dado a cada cristão em razão de... bem, isso
está adiantando a nossa história. Por enquanto, ofereço apenas esta observação: O
amor de Deus e a lei de Deus não estão tão separados quanto nós, os evangélicos,
temos a tendência de pensar. Na verdade, eles estão simultaneamente ligados.
UM AMOR PRÓPRIO?
O amor de Deus por Deus é amor-próprio? Não e sim. Não, porque no amor do
Pai pelo Filho, ele ama outra pessoa, o seu eterno filho unigênito.
E sim, porque no amor do Pai pelo Filho, ele ama o seu próprio ser — a expressão
exata do seu ser — Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
Ele contempla sua própria imagem maravilhosa no Filho.
Ao que parece, no amor de Deus por Deus, dar e receber se fundem. A glória é
dada. A glória é recebida. A glória é refletida. O dom da glória é redobrado e
compartilhado. Sim, ainda existe uma assimetria entre o Pai e o Filho. O Pai envia,
ao passo que o Filho vai. O Pai ordena, enquanto o Filho obedece. O Pai inicia, ao
passo que o Filho responde. Nas páginas do Novo Testamento, essa ordem nunca foi
invertida141. Ainda assim, não há perdedores em meio a esses diferentes papéis ou
vocações. A relação de autoridade e obediência não é uma ameaça à satisfação, à
glória e ao amor. Tanto o Pai quanto o Filho “saem ganhando” e compartilham da
glória da vitória redentora. A autoridade e a obediência se tornam o mesmo veículo
por meio do qual o amor é demonstrado.
Tudo isso é surpreendente em nosso presente contexto ocidental, em que
depreciamos todas as formas de hierarquia e autoridade, como adversas ao amor. O
amor é interpretado como sendo vulnerável e abnegado, ao passo que a autoridade
é considerada como exploradora, e a submissão, como degradante. A fim de
promover relacionamentos e comunidades de amor, dizem que devemos nivelar
todas essas hierarquias em nossas igrejas e lares, e substituí-las por estruturas
igualitárias, ou mesmo remover as estruturas. (Ironicamente, essa proposição em si
baseia-se num tipo de estrutura de poder capaz de produzir o amor.) Certamente,
qualquer uso egoísta do poder, quer seja exercido por uma hierarquia formal, quer
não, é por si só a antítese do amor — é a afirmação da força de uma pessoa sobre
outra para fins egoístas. Não é de se admirar que os homens, num mundo decaído,
concluíssem que amor e poder, ou amor e autoridade, são antitéticos e que todas as
hierarquias permanentes (não contratuais) devam ser niveladas. O que é ainda mais
surpreendente é o fato de que a Bíblia coloca o amor não decaído do Pai e do Filho
nesse tipo de estrutura autoritária. E não somente isso, mas ela usa os abusos de
poder horrivelmente corrompidos de Herodes e Pilatos, pelos quais um homem
inocente é levado a sofrer, a fim de fornecer a maior demonstração de amor do
Filho pelo Pai e pela humanidade.
Como então devemos entender a relação entre amor, autoridade e obediência? A
resposta sem dúvida afeta o modo como compreendemos o amor na igreja local,
bem como o amor que a igreja deve ter pelo mundo. Será que o amor, em algum
momento, toma uma posição de autoridade em relação aos membros da igreja ou ao
mundo?
Será que, em algum momento, na igreja, o amor exige obediência?
AMOR E SANTIDADE
Enquanto olhamos mais atentamente para o amor perfeito entre o Pai e o Filho,
há mais uma coisa que precisamos considerar: a relação entre o amor de Deus e a
santidade de Deus. Afinal, a relação entre o amor e a santidade na história da igreja,
assim como a relação entre amor e autoridade, é, no mínimo, diversificada.
Ao recontarmos essa história, somos tentados a caracterizar as igrejas desde a
época de Cristo como se estivessem sempre se desviando do rumo, ou para um lado
ou para o outro. Ou elas se desviavam muito na direção da santidade e da separação
do mundo e por causa disso abandonavam o amor, ou elas se desviaram muito na
direção do amor e da assimilação e, por isso, abandonavam a santidade. Os
puritanos e os fundamentalistas proveram estereótipos banais para as ênfases
exageradas do passado. Os românticos, os liberais e — mais recentemente — os
emergentes proveem estereótipos banais para os contemporâneos. É tentador
narrar a história desse modo, mas acho que seria melhor dizer que algumas igrejas
têm se desviado muito na direção daquilo que elas acham que é santidade, enquanto
outras igrejas têm se desviado demasiadamente para aquilo que elas acham que é
amor. Se uma igreja abandonou a santidade, ela abandonou o amor; e se ela
abandonou o amor, também abandonou a santidade. A santidade e o amor
envolvem um ao outro mutuamente e agem em acordo, não em oposição.
Ao descrever a relação entre a santidade e o amor de Deus, Jonathan Edwards
argumenta que a santidade de Deus é sua dedicação perfeita e pura ao prazer que
ele tem em si mesmo e em sua glória — o Pai dedicado ao Filho e o Filho dedicado ao
Pai. Sua santidade é seu amor por si mesmo. Edwards escreve: “A santidade de Deus
consiste em seu amor, principalmente na união perfeita e íntima e no amor que
existe entre o Pai e o Filho.”142 Ou, em outra passagem: “A santidade de Deus é ele
ter a consideração devida, adequada e apropriada por todas as coisas; portanto, ela
consiste principal e sumariamente em sua consideração infinita ou em seu amor
por si mesmo, já que ele é o Ser mais grandioso e mais excelente que existe.”143
Não estou certo se Edwards tinha a intenção de resumir a santidade de Deus
como um todo como sendo uma qualidade inerente das afeições de Deus, como se
afirmasse: “Deus é santo porque tem afeições santas.” Certamente que devemos
enfatizar que a santidade de Deus não é apenas uma qualidade inerente de suas
afeições, mas sim do seu ser144. O próprio ser de Deus é santo! Entretanto, visto
que estamos falando do amor ou das afeições de Deus, creio que Edwards esteja
absolutamente certo ao dizer que a santidade de Deus consiste em seu amor
infinito por si mesmo.
As pessoas definem geralmente a santidade como o fato de Deus estar
“separado”. Mas o fato de ele estar separado não nos diz do quê145. Se Deus odeia o
pecado, é porque o pecado se opõe a algo que Deus ama, e o que Deus mais ama? O
que ele mais ama é a sua glória (por exemplo, Is 48.8-11). O teólogo Wayne Grudem
demonstra ter essa compreensão em sua definição sobre a santidade de Deus: “A
santidade de Deus significa que ele é separado do pecado e dedicado a buscar sua
própria honra.”146 Isso ajuda a explicar a estranha justaposição da transcendência e
da imanência de Deus no cântico de louvor cantado pelo serafim na visão de Isaías:
“Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua
glória” (Is 6.3)! A santidade de Deus não separa sua presença da terra, mas faz
exatamente o oposto; ela enche a terra com a sua presença para que ele possa exibir
a sua glória única e exclusiva147. A santidade, ao que parece, exige não só um “não”
ao mundo, mas também um “ingresso” nele para que Deus seja glorificado148. Por
essa razão, Davi canta: “Tributai ao SENHOR a glória devida ao seu nome, adorai o
SENHOR na beleza da santidade” (SL 29.2). Tornar manifesta a sua santidade é o
mesmo que manifestar sua glória (Ez 28.22; veja também Êx 15.11).
Edwards nos ajuda a perceber, portanto, que a santidade de Deus e o amor de
Deus parecem ser duas perspectivas de uma mesma realidade149. Ao olharmos para
“dentro” do ser do Deustrino, vemos o amor. Ao olharmos para “fora” das suas três
pessoas, vemos a santidade. Em outras palavras, considere os relacionamentos
dentro da própria divindade; entre o Pai, o Filho e o Espírito. A partir desse ângulo,
podemos ver esses laços perfeitos de amor divino — três pessoas que possuem uma
afeição perfeita para com o bem e para com a glória um do outro. No entanto,
quando caminhamos para fora desse relacionamento e olhamos para a mesma coisa
em comparação a todas as outras coisas no universo, vemos o que a Bíblia chama de
“santidade” — o fato de ele ser, de modo puro e sem distrações, dedicado a amar a
sua própria glória.
Então, qual é exatamente a relação entre a santidade e o amor? A santidade é a
forma de medir a dedicação do amor a Deus ou, mais especificamente, a pureza da
dedicação do amor a Deus. O quão puramente Deus ama a Deus? Essa é a forma de
saber o quão santo Deus é. O quão puramente o homem ama a Deus? Essa é a
forma de saber o quão santo o homem é. Outra forma de dizer isso seria dizendo
que o amor de Deus é dirigido pela santidade de Deus. Ele sempre, e somente, se
move na direção de propósitos santos. Nesse sentido, o amor de Deus é
constrangido pela santidade de Deus, assim como a água é constrangida pelo cano
através do qual ela flui. É lógico, isso significa que a santidade de Deus, no final das
contas, serve aos propósitos de seu amor, assim como o cano em relação à água.
É essa afeição santa, ou amor santo, que divide o universo em dois. E há uma
linha divisória clara e brilhante entre os dois lados, uma linha tão clara como o
limite entre o interior do jardim do Éden e o lado de fora dele; entre o interior da
Arca de Noé e o lado de fora dela; entre o interior de uma casa coberta por uma
mancha de sangue na noite da Páscoa e o lado de fora dela; entre o interior do
arraial israelita no deserto e a parte externa dele; entre o interior da Terra
Prometida e a parte de fora dela. Ela é uma linha tão clara quanto o rio Jordão. De
um lado dessa linha estão os santos; do outro lado estão os ímpios. De um lado
estão aqueles que têm um amor centrado em Deus; do outro lado, aqueles que
amam os ídolos. De um lado estão aqueles que ouvem a Palavra e a Lei de Deus; do
outro lado estão aqueles que ouvem as opiniões dos outros (veja Gn 3.17).
Quando Paulo se refere ao povo escolhido de Deus como “santos e amados” (Cl
3.12), ele não está falando sobre duas coisas que não se relacionam entre si. A igreja
local que escolhe enfatizar o amor de Deus, mas não sua santidade, é uma igreja
que, de fato, não compreende o que é o amor de Deus; porque o amor de Deus é
completamente firmado sobre Deus e seu caráter glorioso, em todos os aspectos.
Tal igreja provavelmente colocará um ídolo no lugar do amor de Deus. E, como tal, a
igreja que hesita em traçar limites nítidos para a membresia ou em praticar a
disciplina, porque essas coisas não parecem ser amorosas, precisa saber que ela tem
se deixado enganar por uma caricatura de amor centrada no homem. Ela tem sido
atraída pela cultura. E bem pode estar adorando um ídolo.
Por outro lado, a igreja que, por uma razão ou por outra, parece enfatizar a
santidade de Deus e, no entanto, falha em fazê-lo a serviço do amor é uma igreja
que interpreta mal a santidade de Deus. A santidade de Deus significa encher a
terra com sua glória, incluindo o modo radicalmente distinto como ele enviou o seu
Filho para chamar não os justos, mas os pecadores ao arrependimento. Não resta
dúvida de que aquele a quem os demônios reconheceram como o “Santo de Deus”
era o mesmo que se aproximaria para tocar o homem com o espírito imundo de um
modo que o povo “santo” de Israel não tocaria (Mc 1.24). Uma igreja santa é uma
igreja que se abstém do pecado enquanto habita entre os pecadores, sendo ambas
essas coisas qualidades inerentes à santidade. Ela está no mundo, mas não é do
mundo; essas duas posturas, novamente, são qualidades inerentes à santidade.
Missões e evangelismo não são simplesmente uma consequência do amor de Deus,
mas de sua santidade. Ele é tão completamente consagrado à sua própria glória que
deseja que todos se consagrem à sua glória! E, novamente, a igreja que pensa que é
santa, mas não se envolve intensamente com o evangelismo e com ações de serviço
não é uma igreja santa. Aqueles que pertencem aos “eleitos congelados” de Deus
que tomem cuidado.
Note, portanto, que tanto o amor quanto a santidade possuem estímulos
internos e externos. Eles são internos pelo fato de cooperarem para atrair as
pessoas para o amor de Deus, e são externos pelo fato de desejarem que mais e mais
pessoas conheçam esse amor. A santidade e o amor de Deus é uma fornalha de
purificação nos corações do povo de Deus, que arde cada vez mais com amor pelos
perdidos — para que eles possam conhecer a Deus e para que ele possa ser exaltado
em suas vidas.
Considere mais uma vez a razão de o amor de Deus nos atrair e ofender ao
mesmo tempo. Ele nos atrai porque age exteriormente para nos abraçar. Ele nos
atrai porque é um dom que é misericordiosamente inclusivo — ele almeja incluir
mais e mais pessoas, apesar da indignidade delas. Ele é um dom dado àqueles que
são imanentemente indignos de tal amor. Todavia, ele nos ofende porque tudo nele
diz respeito a Deus, e nosso coração orgulhoso e idólatra não aprecia esse fato. Ele
nos ofende porque as pessoas são incluídas nele não por causa da honra de seus
nomes; elas são incluídas nele por causa da honra e do louvor do nome de Deus.
Elas são incluídas não por aquilo que elas podem trazer, mas por aquilo que será
pedido que elas entreguem: adoração. O fato de a adoração, de nossas vidas santas e
de nossas santas ambições estarem centradas em Deus nos ofende. Isso é
arbitrariamente excludente — isso exclui a adoração de todas as outras coisas além
de Deus. Isso exclui a adoração ao eu.
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito (Jo
3.16a).
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus (Ef. 2.8).
Nós não merecemos o amor redentor de Deus. Não podemos merecê-lo. Ele deve
dá-lo a nós não apenas independentemente de qualquer qualidade em nós, mas
numa espantosa contradição em relação ao que somos.
Do ponto de vista de Deus, no entanto, não é assim; o dom da salvação é dado em
resposta à pessoa e à obra de Cristo. Cristo conquistou a nossa salvação. Ele a
mereceu. Deus nos ama porque ele ama seu belo Filho e deseja que a beleza justa de
seu Filho seja difundida e proclamada por meio da transferência dessa justa beleza à
noiva de seu Filho.
Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti,
assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele
conceda a vida eterna a todos os que lhe deste (Jo 17.1-2).
Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e
pelos profetas; a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas —
justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os
que creem (Rm 3.21-22).
Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas
existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de
sofrimentos, o Autor da salvação deles. Pois, tanto o que santifica como os que
são santificados, todos vêm de um só. Por isso, é que ele não se envergonha de
lhes chamar irmãos (Hb 2.10-11).
Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo
sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe
obedecem (Hb 5.8-10).
O amor do Pai pelo Filho é dado a recebedores indignos com base no mérito de
Cristo — nisso encontramos o quarto aspecto do amor descrito por Carson, o amor
especial de Deus pelo seu povo.
Na verdade, até existe um sentido, “do nosso ponto de vista”, com o qual quero
qualificar minha afirmação de que ele nos dá a salvação simplesmente como um
dom. Devemos manter em mente que o dom possui um propósito que nos
transcende: Deus dá o dom de sua graça a recebedores indignos para que eles
também possam se parecer com o objeto supremo de seu amor — Cristo:
Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, tendo-a purificado por
meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja
gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem
defeito (Ef 5.25-27).
O ardor da afeição do Pai pelo Filho é tão grande que ele deseja que centenas de
milhares de rostos se pareçam exatamente com o rosto de Jesus. Essa afeição,
enfim, tem a ver com Jesus.
Kierkegaard distinguiu o amor cristão do amor romântico, dizendo que este
último se concentra no “nome do favorito... em discriminação ao restante do
mundo”, e que ele “se esforça na direção de um único ser amado”150. Mas esse é o
amor cristão! O nome do preferido que tanto o Pai quanto o cristão igualmente se
esforçam para evidenciar é o nome de Cristo, ao passo que Cristo, por sua vez, se
esforça para evidenciar o nome do Pai e conclama o seu povo a fazer o mesmo (veja
Jo 16.26-27; 1 Co 15.28).
O amor de Deus por qualquer outra coisa que não seja a glória do Filho está
condicionado àquele primeiro amor. Essa é a minha maneira breve e imprecisa de
dizer o que Jonathan Edwards leva cerca de uma dúzia de páginas para dizer em The
End for Which God Created the World [O Fim para o Qual Deus Criou o Mundo], já
que ele distingue os “propósitos supremos” dos propósitos “subordinados”,
“principais”, “mais elevados” ou “extremamente supremos”151. Todas as outras
atividades de Deus são contingentes a este único propósito mais elevado: a
proclamação de sua glória. Edwards escreve:
Todo o amor de Deus talvez se resuma ao seu amor por si mesmo e ao seu deleite em si
mesmo... Seu amor pela criatura é apenas a sua inclinação para glorificar a si mesmo e
transmitir-se a si mesmo para seu próprio deleite na glorificação e transmissão de si mesmo152.
No capítulo 10, Jesus diz que foi santificado pelo Pai (v. 36). No capítulo 17 ele
pede ao Pai para santificar seus discípulos (v. 17).
No capítulo 10, Jesus diz que Deus o enviou ao mundo (v. 36). No capítulo 17
ele pede ao Pai para enviá-los ao mundo (18, 21, 23).
No capítulo 10, Jesus diz que o Pai está nele e ele está no Pai (v. 38). No
capítulo 17, ao falar novamente sobre os seus discípulos, ele diz ao Pai: “A fim
de que... estejam eles em nós... eu neles, e tu em mim... para que o mundo
conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (vs. 21,
23, 26)154.
Naquele dia, pedireis em meu nome; e não vos digo que rogarei ao Pai por vós.
Porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes amado e tendes crido que
eu vim da parte de Deus (Jo 16.26-27).
Depois, orando ao Pai, Jesus diz: “Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei
conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles esteja”
(Jo 17.26). — Aqui encontramos o quinto aspecto do amor bíblico definido por
Carson, o qual ele chama de “amor condicional”.
O amor de Deus é dado aos pecadores por causa de Cristo, mas esse amor não é
separado de sua santidade. Ele é santo e produz santidade. Ele cria a obediência
santa do amor.
O QUE É O AMOR?
Portanto, o que é o amor? Será que podemos sistematizar os vários aspectos das
informações bíblicas? Creio que podemos, e, com uma pequena ajuda do jesuíta
Jules Toner e da feminista Margaret Farley, encontrar-nos-emos exatamente de
volta ao argumento de Agostinho e Edwards. No final das contas, descobriremos
que o amor é um bumerangue — o bumerangue de Deus.
Deus se identificou com todos os pecadores, em toda parte, pelo fato de colocar o
selo de sua imagem sobre eles. Ele diz em essência: “Todo filho de Adão é meu, e
todos eles refletem algo de mim.” Ou seja, ele os ama. Os crentes devem, portanto,
buscar a glória de Deus nos bares, becos e clínicas de aborto, nos escritórios de
advocacia, no chão dos mercados e nos campos de futebol.
Mais do que todas essas coisas, um cristão é alguém com olhos atentos
principalmente ao Santo, assim como a pessoa amada buscando por aquele a quem
ama, esforçando-se para ouvir seu nome sendo falado, para sentir o cheiro de sua
veste. Uma fotografia chamuscada não é suficiente. Ela deseja alcançá-lo e tocá-lo e
sentir seu abraço.
Neste mundo, o crente encontra o abraço vívido e santo de Cristo na igreja local,
à medida que a igreja colabora para afirmar, para se unir e se identificar com o
crente. “Sim, você pertence a Cristo. Você é dele. Ele ainda não voltou, mas estamos
no lugar dele até que ele venha. Se você sofrer, sofreremos com você. Se você se
alegrar, nós nos alegraremos com você, porque ele prometeu que a glória dele seria
nossa e que a nossa glória seria dele.”Uma igreja que ama com o amor de Cristo é
uma igreja que anseia afirmar toda a amabilidade divina, criada pelo evangelho, que
ela vê nas vidas dos outros:
Por amor de si mesma, a igreja deseja se unir à presença dessa amabilidade
divina na vida dos crentes individuais, porque todo crente exibe cada vez mais
tanto as características de Deus compartilhadas universalmente, tais como
compaixão e misericórdia, como qualquer outra perspectiva exclusiva da glória
de Deus que ele tenha dado a cada membro do seu corpo. A igreja anseia se
identificar com a beleza dada por Deus a cada um e compartilhar dela. Os
membros “anseiam” uns pelos outros “na terna misericórdia de Cristo Jesus”
(Fp 1.8). Os membros do corpo não apenas dão de si mesmos uns aos outros;
eles dão a si mesmos uns aos outros. Por essa razão, “se um membro sofre,
todos sofrem com ele; se um deles é honrado, com ele todos se regozijam” (1
Co 12.26).
Por amor aos indivíduos, a igreja anseia que cada membro seja protegido dos
ataques do mundo, da carne e do diabo, e seja guiado em toda a justiça e para
uma amabilidade maior, assim como uma mãe deseja essas coisas para os seus
filhos. À medida que os membros da igreja anseiam uns pelos outros na terna
misericórdia de Cristo Jesus, eles oram para que o amor deles “aumente mais e
mais em pleno conhecimento e toda a percepção”, para que cada um aprove “as
coisas excelentes e sejam sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo, cheios do
fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus”
(Fp 1.9-11). A igreja deseja o bem dos indivíduos, o bem que é Deus.
Por amor ao mundo, a igreja anseia que cada crente seja distinguido e exibido
como um exemplo de esperança, um modelo de amor inspirador, uma luz que
gera vida. A igreja deseja distinguir o indivíduo do mundo, de modo que o
mundo possa ver que há outro caminho, ainda melhor; para que ele possa
também dar glória ao Pai que está no céu e segui-lo (Mt 5.13-16; 1 Pe 2.12).
Por amor a Cristo, a igreja deseja unir e manter cada crente unido a si mesma
na preparação para a volta do noivo, lavando-o com a água da Palavra, para que
cada indivíduo possa ser santo e glorioso, sem mácula nem ruga na vinda do
noivo (2 Co 11.2; Ef 5.27; Fp 1.11).
Por amor a Deus, a igreja deseja exibir cada indivíduo diante do mundo inteiro
e proclamar: “Vejam, aqui está a glória de Deus, sua sabedoria, santidade e
amor” (veja Ef 3.10).
98. “Inquisition” [A Inquisição] in The Oxford Dictionary of the Christian Church, 3a d. F. L. Cross e E. A .
Livingstone, New York: Oxford University Press, 1997, pp. 836-37.
99. The Brothers K aramazov, tradução de David McDuff, New York: Penguin Books, 2003, pp. 325-26,
328, traduzido para o português como Os Irmãos K aramazov, São Paulo: Editora 34, 2008.
100. Kevin Vanhoozer compreende isso da forma correta, penso eu, quando escreve: “O amor de Deus,
talvez como nenhum outro assunto teológico, é particularmente vulnerável à suspeita de Feuerbach de
que as doutrinas são projeções dos ideais humanos”, em sua introdução ao livro Nothing Greater,
Nothing Better: Theological Essays on the Love of God [Nem Maior, Nem Melhor: Ensaios Teológicos
Sobre o Amor de Deus], Ed. Kevin J. Vanhoozer, Grand R apids: Eerdmans, 2001, p. 2 n. 1.
101. D. A . Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God, W heaton, IL: Crossway, 2000, pp. 16-21,
traduzido para o português como A Difícil Doutrina do Amor de Deus, Rio de Janeiro: CPAD.
102. Ibid., p. 21.
103. Platão, “Symposium” [Simpósio] in The Collected Dialogues of Plato, Ed. Edith Hamilton e
Huntington Cairns, Princeton: Princeton University Press, 1961, pp. 533, 544, 553, 555 (ou seções 178,
191, 200, 202), traduzido para o português como Os Diálogos de Platão: Estrutura e Método Dialético,
São Paulo: Loyola, 2002 .
104. Para obter duas discussões muito proveitosas de Agostinho acerca do amor, veja o capítulo sobre
Agostinho em Bernard V. Brady, Christian Love [O Amor Cristão], Washington, DC: Georgetown
University Press, 2003, pp. 77-124 e Lewis Ayres, “Augustine, Christology, and God as Love: An
Introduction to the Homilies on 1 John” [Agostinho, a Cristologia e o Amor de Deus: Uma introdução
às homilias sobre 1 João” in Nothing Greater, Nothing Better, pp. 67-93.
105. Agostinho, Confessions, Vol. I.ix (15), traduzido para o português como Confissões, São Paulo:
Martin Claret - Bb, 2002.
106. Agostinho não lia grego e, portanto, não pensou em termos de eros e agape. Geralmente, ele usava a
palavra latina caritas (de onde vem o termo caridade) para descrever o amor, mas também usava a
palavra “amor”, uma palavra mais associada com o amor apaixonado. Visto que sua concepção sobre o
amor combinava aspectos de cada uma delas, ele negava suas diferenças e dizia que elas poderiam ser
utilizadas de modo intercambiável. Veja Agostinho, “ The City of God against the Pagans” [A Cidade de
Deus Contra os Pagãos] in Cambridge Texts in the History of Political Thought [Escola Histórica do Pensamento
Político de Cambridge], editor e tradutor R . W. Dyson, Cambridge: Cambridge University Press, 1998,
livro 14, cap. 7.
107. Agostinho, The Trinity [A Trindade], 15.31; cf. 32. Mesmo que a formulação de Agostinho sobre a
trindade despersonalize o Espírito Santo, reduzindo-o ao amor compartilhado entre o divino Pai e o
Filho, conforme algumas pessoas argumentam, creio que podemos, pelo menos, afirmar o que Agostinho
diz aqui, ou seja, devemos acrescentar ao que Agostinho diz acerca do Espírito, mas não precisamos
extrair coisa alguma do que ele diz.
108. Ibid.
109. In Brady, Christian Love, p. 117.
110. Ibid., p. 105.
111. Agostinho, On Christian Doctrine [Sobre a Doutrina Cristã], Vol. 3,10,16.
112. Ibid., 1.23. E também em outra parte: “‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. E você ama a si
mesmo da forma adequada quando ama a Deus mais do que a você mesmo. Portanto, aquilo que você
almeja para si mesmo você deve almejar para o seu próximo, a saber, que ele possa amar a Deus com
uma afeição perfeita. Pois você não amará o seu próximo como a si mesmo, a menos que você tente
atraí-lo para aquele bem que você está buscando. Porque esse é o único bem no qual há lugar para todos
o buscarem com você. Os deveres da sociedade humana procedem desse preceito” (On the Morals of the
Catholic Church [Sobre a Moral da Igreja Católica], traduzido por Richard Stothart, in St. Augustine:
The Writings Against the Manicheans and Against the Donatists: Nicene and Post-Nicene Fathers of
the Christian Church [Os Escritos contra os Maniqueus e Contra os Donatistas: Os Pais da Igreja Cristã
nos Períodos Niceno e Pós-niceno], vol. 4, Ed. Philip Schaff, W hitefish, MT: Kessinger, sem data, cap.
26, p. 55).
113. Brady, Christian Love, pp. 125-40.
114. Ibid., p. 129.
115. Ibid., pp. 164-79, principalmente pp. 165-66, 171.
116. Itálicos no original; Marilynne Robinson, Gilead, New York: Farrar, Straus and Giroux, 2004, p.
136, traduzido para o português como Gilead, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
117. Veja D. A . Carson, Love in Hard Places [O Amor em Situações Difíceis], W heaton, IL: Crossway,
2002, pp. 42, 182.
118. In Brady, Christian Love, p. 174.
119. Extraído de Augustine’s Commentary on Paul’s Letter to the Galatians (57), in Garry Wills, Saint
Augustine, A Penguin Life series, New York: Viking, 1999, pp. 111-12, traduzido para o português como
Patrística, V. 25, Explicação da Carta aos Gálatas, São Paulo: Editora Paulus, 2009.
120. Anders Nygren chama isso de “Revolução Copérnica” na doutrina do amor. Agape and Eros [Agape
e Eros], traduzido por Philip S. Watson, London: SPCK , 1982, p. 681.
121. Esse argumento específico pode ser encontrado em Nygren, Agape and Eros, p. 681ss.
122. Søren Kierkegaard, Works of Love, traduzido por Howard Hong e Edna Hong, New York:
Torchbooks, 1962, pp. 36, 49, 63, 77, traduzido para o português como As Obras do Amor, Petrópolis:
Vozes, 2007.
123. Nygren, Agape and Eros, 210.
124. K arl Barth, Church Dogmatics, vol. 2.1, Ed. G. W. Bromiley and T. F. Torrance, New York: T&T
Clark, 2004, pp. 28.2.3 (p. 279) traduzido para o português como Dogmática Cristã, São Leopoldo:
Sinodal. Veja também Miroslav Volf, Free of Charge, Grand R apids: Zondervan, 2005, p. 39. Ele trata
explicitamente dessa questão em Barth e Lutero.
125. Barth escreve: “A expressão do amor de Deus está preocupada com a busca e a criação de uma
comunhão sem qualquer referência a uma capacidade ou mérito existente por parte do amor. O amor de
Deus não só não é condicionado por qualquer reciprocidade no amor, mas também não é condicionado
por qualquer mérito, para ser amado por parte de quem é amado, por nenhuma união ou comunhão de
sua parte [da parte da pessoa amada]”. Church Dogmatics, vol. 2.1, 28.2.2 (p. 278).
126. Gerhard O. Forde, On Being a Theologian of the Cross: Reflections on Luther’s Heidelberg
Disputation [Sobre Ser um Teólogo da Cruz: Reflexões Sobre a Disputa de Lutero em Heidelberg], 1518,
Grand R apids: Eerdmans, 1997, p. 113.
127. Robinson, Gilead, 209.
128. Frederick Buechner, The Magnificent Defeat [A Esplêndida Derrota], New York: HarperCollins,
1985, p. 105.
129. Veja o capítulo “Self Regard, Other Regard, and Mutuality” [Consideração Própria, Consideração
pelo Outro e Mutualidade] in Brady’s, Christian Love, pp. 240-64; veja também Kevin Vanhoozer,
“Introduction — The Love of God — Its Place, Meaning, and Function in Systematic Theology”
[Introdução — O Amor de Deus — Seu Lugar, Significado e Função na Teologia Sistemática] in Nothing
Greater, Nothing Better, pp. 1-29, principalmente pp. 18-19.
130. Veja Nygren, Agape and Eros, 678-80.
131. Os proponentes da definição agape argumentam explicitamente que sua definição é centrada em
Deus e a que veio antes dela era centrada no homem, e.g. Nygren, Agape and Eros, pp. 681-84. Eu
concordaria com isso se estivéssemos falando de todo o sistema soteriológico de Roma versus o de
Lutero. O que me preocupa é como o próprio amor vem a ser definido.
132. Como era de se esperar, os proponentes do amor exclusivamente agape desejam também um povo
transformado com seu sistema teológico. Nygren tenta evitar a graça barata dizendo, por exemplo, que
o amor de Deus “exige uma devoção ilimitada” (Agape and Eros, p. 104). Mas isso soa como uma
contradição interna em Nygren. Isso pode dar a impressão de que existe algo que afinal atrai o amor de
Deus — a perspectiva de uma devoção ilimitada!
133. É nesse ponto que eu discordo principalmente da afirmação de Miroslav Volf: “Deus é o doador
mais infinitamente rico e generoso, que não recebe coisa alguma em retribuição” (Free of Charge, p. 37).
Nada em retribuição? Então por que ele nos ordena adorá-lo?
134. Os teólogos que adotam exclusivamente a concepção do amor agape às vezes têm outros
mecanismos em seus sistemas teológicos para preservar o julgamento de Deus. Mas é de se esperar que
encontremos certa inconsistência em seu sistema teológico. Nygren, por exemplo, tenta tratar desse
mesmo argumento demonstrando que sua ideia sobre o amor, na verdade, permite, sim, o julgamento,
porque (1) Deus exige que aceitemos o seu amor e (2) seu amor exige uma devoção ilimitada. De outra
maneira, o que ele está dizendo é que seremos julgados (Agape and Eros, pp. 102-4). O problema é que
essas duas condições contradizem sua concepção do que é agape, camuflando o Deus agostiniano, que
deseja adoradores centrados em Deus.
135. Calvino escreve: “Mas a igreja desliga quem é excomungado — não que ela o lance na ruína e
desespero eternos, mas porque ela condena sua vida e sua moral e o adverte sobre sua condenação, caso
não se arrependa”. Institutes, tradução de Ford Lewis Battles, p. 1214.
136. Mt 3.17; 17.5; Mc 1.11; 9.7; Lc 3.22; 9.25; 2 Pe 1.17.
137. Veja Carson, The Difficult Doctrine of Love, 40.
138. Esses são os tipos de textos que levaram alguns teólogos do passado ora na direção da Cristologia
adocionista, ora na da Cristologia funcional.
139. O ponto principal estabelecido aqui é análogo ao questionamento sobre se Jesus, o Deus-Homem,
poderia ter pecado. Cristo era capaz de não pecar ou ele não era capaz de pecar? Em certo sentido, Cristo
poderia ter pecado, porque as tentações postas diante do homem Jesus eram reais. Em outro sentido,
não, ele não poderia ter pecado porque ele desejava, de modo perfeito, fazer a vontade de seu Pai. Nesse
ponto, estou seguindo a abordagem de G. C. Berkouwer sobre a impecabilidade de Cristo em The Person
of Christ, Grand R apids: Eerdmans, 1954, pp. 251-67, principalmente pp. 262-63, traduzido para o
português como A Pessoa de Cristo, São Paulo: Aste, 2011.
140. Veja também o capítulo de John Piper, “ The Pleasure of God in His Son” [Prazer de Deus em Seu
Filho] in The Pleasures of God [Os Prazeres de Deus], Sisters, OR: Multnomah, 2000, pp. 25-45.
141. Carson escreve: “Nenhuma vez sequer há qualquer indício de que o Filho comissione o Pai, que o
obedece. Nenhuma vez sequer há qualquer indício de que o Pai se submeta ao Filho ou dependa dele
para as suas próprias palavras e obras” (The Difficult Doctrine of Love, 40).
142. Jonathan Edwards, “ Treatise on Grace” [Tratado Sobre a Graça] in The Works of Jonathan
Edwards, Vol. 21, p.186.
143. Jonathan Edwards, “Miscellanies” [Coletâneas] número 1077 in The Works of Jonathan Edwards,
Vol. 20, p. 460.
144. Agradeço a Steve Wellum por esse esclarecimento.
145. Peter Gentry, comentando a obra do estudioso evangélico francês Claude-Bernard Costecalde,
argumenta que a palavra santidade na literatura bíblica é menos bem definida como “separado” e mais
bem definida como “consagrado a” ou “dedicado a”; veja Peter J. Gentry, “ The Covenant at Sinai” [A
Aliança no Sinai] in The Southern Baptist Journal of Theology [Periódico de Teologia dos Batistas do Sul
, vol. 12 (Outono de 2008): 48.
146. Wayne Grudem, Systematic Theology, Grand R apids: Zondervan, 1994, p. 201, traduzido para o
português como Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1994.
147. Cf. J. Alec Motyer, The Prophecy of Isaiah: An Introduction and Commentary [A Profecia de Isaías,
Introdução e Comentário], Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993, p. 77.
148. Michael J. Gorman, “ You Shall Be Cruciform for I Am Cruciform” [Vocês Serão Moldados Pela Cruz
Porque Eu Sou Moldado Pela Cruz], in Holiness and Ecclesiology in the New Testament [Santidade e Eclesiologia
no Novo Testamento, Ed. Kent E. Brower e Andy Johnson, Grand R apids: Eerdmans, 2007, p. 153.
149. Caldwell, Communion in the Spirit [Comunhão com o Espírito], pp. 50, 54.
150. Kierkegaard, Works of Love, p. 36.
151. Em sua versão reimpressa de God’s Passion for His Glory, W heaton, IL: Crossway, 1998, pp. 125-
36, traduzido para o português como A Paixão de Deus por Sua Glória: Vivendo a visão de Jonathan
Edwards, São Paulo: Cultura Cristã, 2008 .
152. Bruce W. Davidson, “ The Four Faces of Self-Love in the Theology of Edwards” [As Quatro Faces do
Amor-Próprio na Teologia de Edwards] in Journal of the Evangelical Theological Society, vol. 51 (março
2008): 89; originalmente encontrado em The Works of Jonathan Edwards, vol. 18: The “Miscellanies”
501-832, Ed. Ava Chamberlain, New Haven: Yale University Press, 2000, p. 239.
153. Veja o capítulo, de David Powlison, “God’s Love: Better than Unconditional” [O Amor de Deus é
Melhor do que Incondicional], em seu livro Seeing with New Eyes [Vendo com Novos Olhos],
Phillipsburg, NJ: P&R , 2003, pp. 163-70.
154. Richard Bauckham, “ The Holiness of Jesus and His Disciples in the Gospel of John” [A Santidade
de Jesus e de seus Discípulos no Evangelho de João], in Holiness and Ecclesiology in the New
Testament [Santidade e Eclesiologia no Novo Testamento] Ed. Kent E. Brower e Andy Johnson, p. 109;
cf. A . J. Köstenberger, The Missions of Jesus and the Disciples according to the Fourth Gospel [A
Missão de Jesus e de Seus Discípulos de Acordo com o Quarto Evangelho], Grand R apids: Eerdmans,
1998, pp. 186-97.
155. In Brady, Christian Love, 242-46.
156. Ibid., p. 245-46.
157. Ibid., p. 256.
158. É nesse ponto que penso que o argumento de Charles Taylor para definir a moralidade, a
identidade ou (para os nossos propósitos) o amor, de acordo com alguma concepção de bem, é muito
proveitoso; veja Charles Taylor, Sources of the Self, principalmente as páginas pp. 78-90.
159. Os teólogos e exegetas geralmente discutem a ideia protestante da imputação da justiça de Cristo
nos termos de um tribunal, visto que o grupo da palavra dikaios faz parte do grupo de palavras
legais/judiciais. No entanto, a metáfora do tribunal é exatamente uma metáfora que pode nos ajudar em
determinados aspectos da imputação, mas que não explica completamente o conceito teológico. A crítica
muito citada de N. T. Wright sobre a imputação é deficiente exatamente porque trata a metáfora, por
assim dizer, de modo unívoco. Ele escreve: “A justiça não é um objeto, uma substância ou um gás que
pode passar através do tribunal”, in What Saint Paul Really Said [O que São Paulo Realmente Disse], Oxford:
Lion Book, 1997, p. 98. Bem, certamente isso parece inteligente, mas ele não está, de fato, criticando a
imputação nesse ponto. A imputação é uma ideia judicial, sim, mas também é uma ideia de aliança.
Entrar em determinados tipos de aliança envolve minha identidade e tudo o que sou, de tal modo que
tudo o que é meu se torna seu e tudo o que é seu se torna meu. Quando eu me casei com minha esposa,
por exemplo, minha dívida do empréstimo estudantil se tornou dela, e o Honda Civic dela, na verdade,
tornou-se meu. Nem o Honda nem a dívida flutuaram pelo tribunal. Entretanto, houve de fato essa
“troca graciosa”, pelo menos desde a minha perspectiva. O mesmo se deu com a troca gentil entre a
justiça de Cristo e meu pecado. Pelo fato de dar-se a si mesmo ao seu povo, na nova aliança, o que ele
possuía passou a ser nosso e o que era nosso se tornou dele. Nesse sentido, Wright está correto em
apontar para os aspectos da aliança da justiça de Deus em Cristo. Eu até aprecio o argumento dele, no
mesmo capítulo dessa crítica, de que o livro de Romanos nos presenteia não com as realidades do
tribunal, mas com a “teologia do amor” (p. 110). Todavia, de alguma forma ele omite o fato de que a
identidade compartilhada das alianças bíblicas envolve troca; não apenas obrigações, mas também
dívidas e bênçãos. De alguma forma, ele omite o fato de que a troca do pecado pela justiça, entre Cristo e
o pecador — essas realidades legais e judiciais —, também é uma realidade da aliança, uma aliança
nupcial, nesse ponto.
160. Aquilo que a ilustração de Piper omite é maravilhosamente assimilado por uma ilustração mais
bíblica de Edwards: “A criação do mundo parece ter existido principalmente para este fim: para que o
Filho eterno de Deus pudesse obter uma esposa a quem ele pudesse exercer plenamente a benevolência
infinita de sua natureza, e diante de quem ele pudesse, por assim dizer, abrir e despejar toda essa imensa
fonte de complacência, amor e graça que estava em seu coração, para que, desse modo, Deus pudesse ser
glorificado”. Extraído do sermão de Jonathan Edwards: “Church’s Marriage to Her Sons, and to Her
God” [O Casamento da Igreja com Seus Filhos e com seu Deus], em Sermons and Discourses 1743-1758
[Sermões e Discursos], vol. 25, Ed. Wilson H. Kimmach, New Haven, CT: Yale University Press, 2006, p.
187.
161. Por essa razão, D. A . Carson escreve: “O único prazer e intimidade nesta vida que chegam perto do
antegozo do prazer que a igreja e seu Senhor terão, ao serem perfeitamente unidos no último dia, é a
união sexual de um bom casamento”. Love in Hard Places, p. 191. Semelhantemente, John Piper
escreve: “Deus nos criou com a paixão sexual, de modo que houvesse uma linguagem para descrever o
que significa nos unirmos a ele em amor e o que significa nos afastarmos dele na direção de outros”, in
Sex and the Supremacy of Christ, p. 28; e novamente: “Deus nos fez poderosamente sexuais, de modo
que ele pudesse ser conhecível com mais profundidade. Foi-nos dado o poder de conhecermos ao outro
sexualmente, a fim de que pudéssemos ter alguma ideia de como será conhecer a Cristo de forma
suprema”, p. 30.
162. D. A . Carson, Love in Hard Places, pp. 21-22.
163. Mt 6.24, 12.30; 1 Jo 2.15.
164. Paul David Tripp, “Instruments in the Redeemer’s Hands: People” in Need of Change Helping
People in Need of Change, Phillipsburg, NJ: P&R , 2002, p. 34, traduzido para o português como
Instrumentos nas Mãos do Redentor, São Paulo: NUTR A , 2009.
165. Veja a excelente discussão de T. D. Alexander acerca do amor e da lei, em seu capítulo sobre
Deuteronômio, intitulado “Love and Loyalty” [Amor e Lealdade] in T. D. Alexander, From Paradise to
Promised Land: An Introduction to the Main Themes of the Pentateuch, Grand R apids: Baker, 1995, p.
162, traduzido para o português como Do Paraíso à Terra Prometida: Uma introdução aos temas
principais do Pentateuco, Sto. Amaro - São Paulo: Shedd Publicações, 2010. Será que Deuteronômio, um
livro repleto de muitas leis, de fato é um livro a respeito de amor e lealdade? “No cerne dessa aliança”,
afirma Alexander, referindo-se ao fardo de Deuteronômio, “está um compromisso de ambas as partes
para amar uma a outra de modo sincero e fiel”.
166. Por exemplo, Donald G. Bloesch escreve: “A fé bíblica retrata Deus como tendo duas faces:
santidade e amor. Essas são as perfeições que configuram a interação de Deus com seu povo. Elas estão
integralmente relacionadas e ainda assim coexistem numa certa tensão, a qual destaca sua unidade
paradoxal, em vez de resolvê-la. A santidade de Deus é sua pureza majestosa que não pode tolerar o mal
moral. O amor de Deus é gregário, ele adota compassivamente o pecador. A santidade de Deus é sua
separação daquilo que é imundo e profano. O amor de Deus é sua disposição para se identificar com
aqueles que são imundos, a fim de ajudá-los. A santidade de Deus transcende esse mundo transitório de
morte e decadência. O amor de Deus se encarna neste mundo corrompido pelo pecado”. God the
Almighty: Power, Wisdom, Holiness, Love [O Deus Todo-poderoso: Poder, Sabedoria, Santidade e
Amor], Carlisle, UK: Paternoster, 1995, pp. 139-40.
167. A tensão que experimentamos entre o amor de Deus e a lei de Deus na era presente é resultado de,
pelo menos, uma destas três coisas: primeiro, podemos ter uma concepção antropocêntrica do amor de
Deus, a qual está colidindo com a natureza teocêntrica, quase que necessária, de sua lei. Creio que esse
seja, até certo ponto, o erro mais comum que os evangélicos cometem. Em segundo lugar, parece, haver
de fato uma tensão real entre o amor supremo de Deus por sua glória e seu amor condicional pelos
pecadores (por exemplo, 2 Pe 3.9). Em última análise, acho que devemos dizer que essa tensão se
dissolverá, mas, uma vez que essa é uma tensão que as Escrituras apresentam como uma realidade,
devemos esperar senti-la. Terceiro, parece que um Deus centrado no homem experimentaria tensão
entre o amor e a lei, à medida que os seres humanos escolhem as coisas que ele, em sua infinita
sabedoria, sabe que não são boas para eles.
168. Leon Morris, The Biblical Doctrine of Judgment [A Doutrina Bíblica sobre o Julgamento], 1960;
reimpressão, Eugene, OR: Wipf & Stock, sem data, pp. 22.
169. Richard Bauckham argumenta convincentemente que o Evangelho de João faz distinção entre a
“purificação” dos pecados, a qual os discípulos já haviam recebido (13.10, 15.3), e a santificação ou
consagração deles para a obra do ministério de Cristo. A consagração, ele argumenta, é uma melhor
tradução de hagiazō, no verso 17, visto que a palavra “santificar” sugere que Jesus tinha em mente,
nesse texto, a ideia de tornar alguém eticamente santo. O contexto do versículo 18, no entanto, sugere
que ele tem a ideia de que os seus discípulos sejam separados para a sua obra. Richard Bauckham, The
Holiness of Jesus and His Disciples in the Gospel of John, p. 111.
170. Ibid., p. 113.
171. Na conferência do Concílio Missionário de 1952, Wilhelm Anderson, complementando a obra de
K arl Barth, propôs que tanto a igreja quanto a missão deve ser realizada na missio Dei — a missão de
Deus. As missões não são apenas uma função da igreja, e a igreja não é apenas o desfecho das missões.
Em vez disso, ambas estão fundamentadas num Deus trino que está numa missão. A igreja tem uma
natureza missionária — agora dizemos “missional”. Johannes Blauw assimilou essa premissa básica no
título de seu livro de 1962, The Missionary Nature of the Church, traduzido para o português como A
Natureza Missionária da Igreja, São Paulo: Astes, 1966 . Os ecumênicos adotaram mais plenamente essa
forma de falar com o surgimento do Marketing de Comunicação Integrada e do Concílio Mundial de
Igrejas, em 1961, seguidos pelos católicos romanos e pelo pronunciamento do Concílio Vaticano II, que
afirmava que “a igreja na terra é missionária por sua própria natureza, de acordo com o plano do Pai, e
tem sua origem na missão do Filho e do Espírito Santo”. “Decreto da Atividade Missionária da Igreja”,
Ad Gentes Divinitus, in Vatican Council II [Concílio Vaticano II]: v. 1, The Conciliar & Post Conciliar
Documents [Documentos do Concílio e pós-concílio], edição revisada, Ed Austin Flannery, Costello
1987, p. 813. Sinalizando essa mudança de pensamento entre muitos, o Concílio Mundial das Igrejas de
1969 removeu o plural de seu Periódico Internacional de Missões, que passou a ser Periódico
Internacional de Missão. Essa história é relatada em Craig Van Gelder, The Essence of the Church: A
Community Created by the Spirit, Baker, 2000, pp. 32-36; e também em David Bosch, Transforming
Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission, Orbis, 1991), pp. 362-68. Darrell Guder reivindica o
crédito pela proliferação do termo “igreja com base missional” em seu livro editado com esse título The
Church as Missional Community [A Igreja como uma Comunidade Missional], The Community of the
Word: Toward an Evangelical Ecclesiology [A Comunidade do Mundo: Rumo à Eclesiologia Evangélica] ,
Ed. Mark Husbands and Daniel J. Treier, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005, p. 114.
172. Originalmente citado em Life in the Spirit: Reflections, Meditations, Prayers, Mother Teresa of Calcutta [Vida
no Espírito: Reflexões, Meditações, Orações de Madre Teresa de Calcutá], Ed. K athryn Spink (San
Francisco: Harper & Row, 1983), pp. 24-25.
Capítulo 3
O GOVERNO DO AMOR
PROGRAMAS DE RECOMENDAÇÕES
Como era de se prever: muitos programas de lições a serem seguidas pela igreja.
Para começar, devemos (dizem que devemos) recuperar a compreensão da igreja
como uma comunidade de pessoas, em vez de uma instituição impessoal179. Se os
relacionamentos são o que constitui a essência da igreja, qualquer estrutura que
exista deve ser orgânica, líquida ou natural. A igreja é um “organismo espiritual que
possui uma expressão vital”180. Apenas considere os títulos de vários livros recentes
escritos por líderes eclesiásticos: Natural Church Development, 1996 (traduzido para
o português como O Desenvolvimento Natural da Igreja, Editora Esperança); Liquid
Church [Igreja Líquida], 2002; Organic Church, 2005 (traduzido para o português
como Igreja Orgânica, Rio de Janeiro: Editora Habacuc, 2008); Seeds for the Future:
Growing Organic Leaders for Living Churches [Sementes para o Futuro:
Desenvolvendo Líderes Orgânicos para Igrejas Vivas], 2005; Organic Community
[Comunidade Orgância], 2007, e Reimagining the Church: Pursuing the Dream of
Organic Christianity, 2008 (traduzido para o português como Reimaginando a Igreja,
Brasília: Editora Palavra, 2009). Em seguida, navegue pelas opções deleitáveis no
cardápio de modelos de igreja (como um autor empolgadamente as relaciona): igreja
voltada aos frequentadores interessados, igreja com propósitos, igreja de células,
igreja de células G12, igreja-cafeteria, igreja estilo cafeteria, igreja das multidões,
igreja do local de trabalho, igreja-bar, igreja de clube cultural, igreja-empresa, cyber-
igreja, igreja online, igreja de culturas específicas, igreja do meio de semana, igreja-
projeto, igreja de sete dias por semana, igreja pós-Alfa, igreja das refeições juntos,
igreja nos lares, igreja-menu, igreja multicultural, igreja dispersa e muito mais181.
Emprestando uma expressão de Shakespeare, poderíamos exclamar: “Ó
maravilhoso novo mundo, que tem tais igrejas!”
Disseram-nos que a pregação não deve ser um monólogo, mas sim um diálogo.
Nossas igrejas devem falar e aprender a partir da multiplicidade dos pontos de
vista182. Ninguém, indivíduo ou grupo de indivíduos, tem a autoridade para dizer o
que Deus pensa.
Dizem-nos que a conversão não deve ser tratada como um acontecimento do
passado, porque a fé geralmente vem gradualmente e cresce gradualmente. É
melhor falar da conversão como uma jornada, um processo, uma conversa ou, pelo
menos, como uma “conversão contínua”, que, assim como uma conversa, implica
uma abertura contínua para novas perspectivas183. A experiência dos indivíduos
varia, e o mesmo se dá com as culturas. Além disso, na história das missões cristãs,
toda a ideia de um “momento decisivo” de conversão tem geralmente levado a igreja
na direção de práticas opressivas. Conforme determinado autor adverte:
Os cristãos sensíveis evitam essa terminologia (de conversão), cientes de que ela conota uma
pressão para se conformar a crenças e comportamentos específicos e implica na submissão à
sabedoria e à justiça superiores daqueles que já são “convertidos”. De modo geral, a conversão
tem historicamente significado uma exigência imperialista (e, às vezes, coerciva) para a
obediência às instituições, credos e normas éticas de uma igreja dominante184.
O nosso alvo como crentes não deve ser exigir que, num instante, os de fora se
coformem às nossas crenças e comportamentos, porque os relacionamentos levam
tempo e também porque os relacionamentos envolvem tanto ouvir quanto falar185.
A missão e o evangelismo cristão são atividades relacionadas. Eles estão
relacionados em seus processos — nós buscamos a missão de Cristo cultivando
relacionamentos — e eles estão relacionados em seu propósito, servindo ao
propósito da comunhão. “Basicamente”, afirma o teólogo Simon Chan, “todas as
coisas são levadas de volta à comunhão com o Deus trino. A comunhão é o
propósito supremo, não a missão.”186
Em tudo isso, o conceito de autoridade, e até mesmo da própria autoridade de
Deus, é deixado de lado ou pelo menos é relativizado187.
Viola, assim como um número crescente de pessoas hoje em dia, deseja algo
diferente:
Eu tenho um sonho de que inúmeras igrejas sejam transformadas de organizações comerciais
poderosíssimas em famílias espirituais — comunidades autênticas centradas em Cristo — onde
os membros se conheçam intimamente, amem uns aos outros incondicionalmente, sofram
profundamente uns pelos outros e se alegrem de forma infalível197.
Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que
é o homem, que dele te lembres?
E o filho do homem, que o visites?
Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois,
todos,
e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as
sendas dos mares (vs 3-8).
O salmista considera a magnificência do universo criado por Deus; ele considera
a estatura comparativamente diminuta do ser humano; considera o fato de que
Deus tornou cada filho e filha de Adão um governante sobre este universo, e ele
está maravilhado. Ele não pode fazer outra coisa senão proclamar em alta voz a
majestade de Deus. Ainda mais surpreendente, talvez, seja a linguagem que ele
utiliza para descrever o dom da autoridade dada por Deus à humanidade: Deus
coroou Adão, Eva e seus filhos com glória e honra — a própria glória e honra de
Deus compartilhadas conosco. Cada ser humano que já conhecemos ou que já
passou pela terra — coroado, por meio da criação, com a glória e a honra de Deus.
Que notável! Deus é onipotente, oniciente, infinito de todas as maneiras, mas ele
passou o governo da criação para nós, que somos finitos. O planeta Terra, Marte —
podemos nos saciar com qualquer coisa e subjugá-la (questões sobre escassez de
recursos à parte, no momento). Será que ele é como um pai dizendo ao seu filho:
“Construa esta casa na árvore comigo”, ou como uma mãe dizendo para a filha:
“Asse este bolo comigo”, mesmo que os pais saibam que as crianças não o farão tão
bem206? O governo que Deus dá a Adão não é outra coisa senão generosidade.
Cuidado, compartilhamento da glória, concessão de honra — ele usa sua autoridade
para autorizar. Ele se inclina, forma-nos e diz: “Você, governe em meu nome. Eu lhe
darei tudo o que você precisar. Eu o guiarei, porque desejo que você compartilhe do
prazer do meu trabalho e da minha glória.” Deus deseja que compartilhemos de sua
glória, porque à medida que fizermos isso, retrataremos ou exibiremos sua glória
para todos.
Em resumo, podemos ver a majestade Deus à medida que refletimos sobre sua
autoridade e sobre o modo como ele tem usado sua generosidade para criar a vida e
abençoá-la com sua própria glória e honra. Ó SENHOR, Senhor nosso, quão
magnífico em toda a terra é o teu nome.
O governo de Adão e Eva não era, portanto, para ser abusivo, um governo que
rouba a vida. Deus não os comissionou a dar origem a todos os grandes atos de
colonialismo, imperialismo ou autoritarismo que os pudessem suceder. Mas
exatamente para fazer o contrário. O governo de Adão e Eva deveria ser um
governo frutífero, desenvolvedor, capacitador, provedor e gerador de vida nos
outros. A raiz latina comum das palavras autor e autoridade fornece uma indicação
do propósito por trás da autoridade humana — gerar vida. Deus concedeu
autoridade ao homem, o direito de governar, a fim de produzir vida, assim como o
governo de Deus produz vida. O posto de governo, podemos dizer, é o direito que o
criador tem de criar. É tomar alguma coisa (ou nada, no caso de Deus) e lhe dar
ordem, forma ou função, com algum objetivo em mente — uma ordem, forma ou
função que não existia anteriormente. É o ensino do professor, o treinamento do
treinador, a maternidade da mãe. Ter autoridade é ter o direito e o poder de criar,
assim como o professor, o treinador e a mãe tem autorização para realizar suas
respectivas funções. Aquele que cria é normalmente aquele que tem o direito de
governar. O autor tem autoridade. É por isso que Deus, o criador, tem toda a
autoridade na criação; e é por isso que Cristo, o recriador, tem todo o governo na
nova criação. Outro rei, talvez melhor do que Adão, o rei Davi, assimilou a essência
de autoria e criação da vida da autoridade divina em suas palavras finais:
Aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz
da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz
brotar da terra a erva (2 Sm 23.3-4).
A SUBMISSÃO DO AMOR
Temos definido a autoridade conforme ela foi planejada na criação. Ela é a
autorização para criar ordem, forma e função de acordo com as ordens do amor
santo. Como então definiremos submissão ou obediência de acordo com o que foi
planejado na criação?
DESCONFIE DOS QUE ESTÃO POR CIMA E DOS QUE ESTÃO POR BAIXO
Em quinto lugar, a Bíblia nos chama para desconfiar tanto daqueles que estão em
autoridade quanto daqueles que se recusam a se submeter à autoridade — tanto
dos que estão por cima quanto dos que estão por baixo. Em certo sentido, conforme
diz o ditado, deve ser verdade que o “poder corrompe”. Maior poder e autoridade
leva a maiores oportunidades de pecado, o que pode levar a um coração mais
endurecido (pense no faraó). Ao mesmo tempo, deve ser verdade que uma pessoa
que recebe poder e depois abusa dele está simplesmente expondo a corrupção que já
está dormente em todo coração humano, a corrupção que odeia e rejeita a
autoridade de Deus. As pessoas se recusam a se submeter à autoridade, em parte,
somente porque temem a injustiça e o fato de serem prejudicadas. Esse foi o
embuste que Satanás usou com Adão e Eva. “Porque Deus sabe que no dia em que
dele comerdes se vos abrirão os olhos”, disse a Serpente, sugerindo que Deus estava
tentando negar-lhes algo que era deles por direito. De fato, foi sua cobiça pelo
autogoverno que induziu Adão e Eva a acreditarem na mentira.
A experiência deles é universal. Satanás nos diz: “Você será prejudicado se se
submeter”, ao que respondemos alegremente: “E não só isso, mas não serei capaz
de tomar e afirmar aquilo que é meu por direito.” A descrição do apóstolo Paulo
desse intercâmbio sugere que isso não era outra coisa senão uma conspiração (Ef
2.1-3).
Em resumo, uma doutrina resoluta sobre o pecado não só reconhece que o poder
corrompe, como também reconhece que ele corrompe aquilo que já estava
corrompido. Uma pessoa estará se autoenganando se desconfiar apenas daqueles
que estão no topo da hierarquia e não desconfiar dos que estão na base dela. A
Bíblia acusa a ambos.
O mais notável ainda é que esse rei vindouro exercerá um governo perfeito
porque estará em perfeita submissão ao Pai. Ele virá como um sacerdote, buscando
mediar a glória de outro. Deus dirá a ele: “Tu és o meu servo, és Israel, por quem hei
de ser glorificado” (Is 49.3); e ele, em perfeita humildade e submissão, dirá a Deus:
“Ele me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os
eruditos” (Is 50.4).
Portanto, Cristo veio como rei e sacerdote. Quando Jesus Cristo veio, ele
invocou Isaías explicitamente, quando anunciou: “Está próximo o reino dos céus”
(Mt 4.15-17, 11.4-6, 9-10, Is 9.1-2, 40.1-5, 61.1ss). Na vida e ministério de Jesus
Cristo, a autoridade de Deus foi retratada de modo perfeito, e a autoridade humana
foi redimida de modo perfeito. A autoridade de Cristo não roubou ou desperdiçou a
vida; ela a criou, gerou, capacitou e comissionou; e ela fez isso porque estava
perfeitamente fundamentada num amor santo por Deus e pelo povo de Deus.
Assim como o salmista louvou a majestade de Deus por conceder autoridade, glória
e honra à humanidade por meio da criação, o cristão pode louvar a majestade de
Cristo por conceder a sua autoridade, glória e honra à igreja por meio da
recriação213. Mais uma vez, o autor tem autoridade, mas somente o autor da
recriação tem autoridade entre os que foram recriados; e ele usa sua autoridade
para autorizar vida e governo aos outros, para a glória do Pai.
Jesus alegou ter “sobre a terra autoridade para perdoar pecados” e provou isso
ao curar o paralítico, levando a multidão a glorificar a Deus, “que dera tal
autoridade aos homens” (Mt 9.6-8).
Jesus não usou seu governo para impor um jugo pesado, mas um fardo leve,
que dá descanso, visto que ele é manso e humilde de coração (Mt 11.29).
Jesus contrastou de modo específico o seu governo com o governo dos
“grandes que exercem autoridade” ao “passar o domínio” para outros. Em vez
disso, ele “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos” (Mt 20.25, 26a, 28). O seu governo era um governo
sacerdotal. Ele dirigiu seus seguidores não apenas de volta ao rei prometido em
Isaías, mas também ao servo prometido em Isaías (cf. Mt 12.15-21; Is 42.1-3,
53.3-6).
Jesus declarou: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18).
Jesus veio para declarar um reino; amarrar o Diabo; demonstrar domínio sobre a
criação; libertar os cativos; curar os coxos; ressuscitar os mortos; chamar um povo
para si; conquistar a salvação e prenunciar uma nova criação e um sacerdócio real
para essa criação. Falando de forma geral, ele veio para reivindicar a identidade e as
prerrogativas do próprio Deus, incluindo a autoridade amorosa de Deus sobre tudo
o que ele criou214. Entretanto, Cristo exerceu seu governo entregando sua vida
como um sacrifício. Ele se levantou para liderar e, em seguida, rendeu-se aos
propósitos dessa liderança. O reino foi conquistado através de um ato de resgate
sangrento, e esse resgate produziu vida — uma nova vida e uma nova criação.
Jesus comissiona seus discípulos para agirem como sal e luz do mundo, de
modo que o mundo pudesse “glorificar a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.13-
16).
Jesus diz aos seus discípulos para não odiar; não explorar sexualmente os
outros; não se divorciar; não mentir e não pagar na mesma moeda (Mt 5.21-
42). Na verdade, eles devem amar seus inimigos e lhes fazer o bem exatamente
porque seu Pai celestial “faz vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.43-48).
De fato, Jesus resume toda a Lei e os Profetas dizendo aos seus seguidores que
fizessem aos outros o que eles queriam que fosse feito a eles (Mt 7.12).
Jesus chama as pessoas a deixarem tudo e perderem sua vida pelo fato de o
seguirem (Mt 8.22; 10.39; 16.24-26).
Jesus deus aos seus discípulos a autoridade para expelir demônios, curar,
ressuscitar mortos e pregar as boas novas do reino (Mt 10.1, 7-8).
Jesus diz ao seu povo para cuidar de seus filhos (Mt 10.42).
Jesus se identifica com aqueles que fazem a vontade de seu Pai que está no céu
(Mt 12.50).
Jesus diz que separará a humanidade entre aqueles que cuidam do menor de
seus pequeninos irmãos e aqueles que não o fazem (Mt 25.31-46).
Jesus comissiona seus seguidores a exercerem sua autoridade. Isso significa que
eles devem curar; oferecer vida e não explorá-la; pregar; evangelizar; excluir; ligar e
desligar; ensinar; pronunciar julgamentos sobre os impostores; importar-se com os
outros e fazer discípulos. Eles devem fazer essas coisas em toda a terra, exatamente
como Adão deveria ter feito. Eles devem fazer tudo isso tomando suas cruzes e se
entregando totalmente a Deus. Eles o amarão ao máximo, buscando autorizar
outros a viverem a vida em seu reino. A Grande Comissão em Mateus 28 não é
apenas o último episódio do Evangelho de Mateus. Ela é o clímax desse Evangelho.
Ela é a síntese e o ápice da comissão dos discípulos. Todo o trabalho que Cristo
comissiona seu povo a fazer na terra culmina nesse ponto, porque nada neste
mundo pode ser um ato mais amoroso e autorizar mais a vida em relação aos outros
do que conduzi-los a um relacionamento de obediência a Deus e ajudá-los a crescer
na obediência. É por isso que evangelizar, pregar, disciplinar e implantar igrejas são
ações do amor e do exercício da autoridade que Cristo comissionou ao amor. É por
isso também que essas ações constituem o foco primordial da igreja.
Tornar-se um crente é submeter-se ao governo de Cristo — em todas as áreas da
vida. Os crentes passaram de um reino para outro. Não é o corpo de alguém que
mudou de lugar, como quando mudamos de um país para outro. É o coração e a
sujeição desse alguém que mudam. Quer os crentes comam ou bebam, comandem
exércitos na construção de vinhas e de parques, quer os crentes compartilhem o
evangelho, eles devem fazê-lo pela fé, para a glória de Deus.
Com tal submissão, vem a autoridade ou a autorização. Quando nos
submetemos a Cristo, ele nos autoriza a ir e a fazer o que ele faz. Ele nos
comissiona a exercer a autoridade amorosa de chamar outros para o seu reino.
CONCLUSÃO
Como um calouro da faculdade, em certo ponto do romance Eu Sou Charlotte
Simmons, de Tom Wolfe, de 2004, Charlotte diz que a faculdade é um lugar onde
“ninguém pediria ninguém em namoro, a menos que eles já estivessem passando a
maioria das noites na cama um do outro, e mesmo assim o rapaz poderia expressar
isso de um modo semelhante a este: ‘O que você vai fazer hoje à noite? Quer ficar
comigo?’”224
A cultura de nossos dias gosta de falar sobre relacionamentos e comunidade.
Com relacionamentos como esses, isso não é de se admirar. Quando estudei teoria
política na universidade, o comunitarismo estava em alta entre muitos de meus
colegas seculares pós-modernos. Você não tem que ser cristão para desejar
comunidade e relacionamento, principalmente se os seres humanos foram criados
para os relacionamentos. A Bíblia utiliza um conceito semelhante ao de
“relacionamento”, mas é um conceito mais amplo. É a ideia de uma obediência santa
à autoridade de Deus, amorosa e geradora de vida. Ser santo é segurar firme todos
os relacionamentos de alguém e mudar sua conduta, seu propósito. É por isso que, à
medida que lermos toda a Bíblia, não encontraremos referências a
“relacionamento”, encontraremos referências à obediência, à santidade e ao
senhorio.
Quando um teólogo ou um pastor faz o discurso do relacionamento e da
comunidade, em vez do discurso da obediência e da santidade, ele pode apenas estar
apregoando o evangelho da prosperidade pós-moderno. O evangelho da
prosperidade para o homem pobre é: “Não interessa toda essa baboseira sobre
obediência e santidade, Jesus quer torná-lo rico e feliz!” Mas muitos de nós somos
ricos, hoje em dia, no ocidente. Não precisamos do evangelho da prosperidade para
os pobres. Em vez disso, nós sofremos com o tédio, a angústia e a sobrecarga da
mídia. Os relacionamentos que temos são superficiais e insatisfatórios. Por essa
razão, em vez daquele evangelho, o homem intelectualmente sofisticado oferece
um evangelho da prosperidade pós-moderno: “Não interessa toda essa baboseira
sobre obediência e santidade, Jesus lhe dará relacionamentos, um propósito e uma
comunidade.”
173. George Orwell, Nineteen Eighty-Four, edição do centenário, New York: Plume Harcourt Brace,
2003, p. 263.
174. Agradeço a Os Guinness, que me sugeriu que qualquer argumento acerca da membresia da igreja teria
que dar conta de explicar as condições peculiares da vida urbana moderna. Voltarei a essa questão de
forma mais prática nos Capítulos 6 e 7.
175. Para uma visão geral desta mudança, veja F. LeRon Shults, Reforming Theological Anthropology:
After the Philosophical Turn to Relationality [Reformando a Antropologia Teológica: após a mudança
filosófica para a relacionalidade], Grand R apids: Eerdmans, 2003, pp. 11-36.
176. Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982,
p. 179, traduzido para o português como O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa: Editora Calouste
Gulbenkian, 2005; e Charles Taylor, Sources of the Self, Cambridge, MA: Harvard University Press,
1989, p. 27.
177. Veja principalmente F. LeRon Shults, Reforming Theological Anthropology; e Reforming the
Doctrine of God [Reformando a Doutrina de Deus], Grand R apids: Eerdmans, 2005.
178. Os títulos de inúmeros livros-chave que desenvolvem esses argumentos falam por si só: The Trinity
and the Kingdom [A Trindade e o Reino], 1981, em Inglês; Being as Communion [Sendo uma
Comunhão], 1985; After Our Likeness: The Church as the Image of the Trinity [Consequência da Nossa
Semelhança: A Igreja como a Imagem da Trindade], 1998; The Social God and the Relational Self [O
Deus Social e o Ser Relacional], 2001; Like Father, Like Son: The Trinity Imaged in Our Humanity [Tal
Pai, Tal Filho: A Trindade Retratada em Nossa Humanidade], 2005; Trinity in Human Community:
Exploring Congregational Life in the Image of the Social Trinity [A Trindade na Comunidade Humana:
Explorando a Vida Congregacional na Imagem da Trindade Social], 2006.
179. Veja a discussão sobre esse tópico no Capítulo 1.
180. Frank Viola, “ W hy I Left the Institutional Church,” [Por que Deixei a Igreja Institucional],
disponível em <http://www.theooze.com/articles/article.cfm?id=2075>.
181. Stuart Murray, Church After Christendom [A Igreja Após a Cristandade], Milton Keynes, UK:
Paternoster, 2004, pp. 67-98.
182. Veja O. Wesley Allen Jr., The Homiletic of All Believers: A Conversational Approach [A Homilética
de Todos os Crentes: Uma Abordagem Sociável], Louisville: Westminster, 2005; Doug Pagitt, Preaching
Re-Imagined: The Role of the Sermon in Communities of Faith [A Pregação Reimaginada: o Papel do
Sermão nas Comunidades da Fé], Grand R apids: Zondervan, 2005.
183. Veja George R . Hunsberger, “Evangelical Conversion toward a Missional Ecclesiology” [Conversão
Evangélica à Eclesiologia Missional], in John Stackhouse, ed., Evangelical Ecclesiology [Eclesiologia
Evangélica], Grand R apids: Baker, 2003, pp. 123-26; Darrell L. Guder, The Continuing Conversion of
the Church [A Conversão Contínua da Igreja], Grand R apids: Eerdmans, 2000. Stuart Murray exclama
com admiração: “Uma descoberta-chave da Década da Evangelização [Anglicana e Ecumênica], nos anos
1990, foi que muitas pessoas tiveram uma trajetória de fé gradual, em vez de repentina”; in Church
After Christendom, p. 11. Será que alguém realmente nunca diz o contrário?
184. Murray, Church After Christendom, 31-32. O argumento mais abrangente ao longo dessas linhas é
apresentado por David Bosch, em sua crítica do que ele descreve como o paradigma missionário
iluminista, principalmente sua crítica às metáforas militaristas e ao que ele entende como a justaposição
do movimento ocidental missionário com o colonialismo e as ideias do destino manifesto, Transforming
Mission, Maryknoll, NY: Orbis, 1991, pp. 284-345, traduzido para o português como Missão
Transformadora, Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. Veja
também Brad W heeler, “One of the Dirtiest Words Today: C---------n” [Uma das palavras mais obscenas
hoje em dia c-------o], disponível em <ttp://www.9marks.org, “Conversion.”>.
185. Veja Bosch, Transforming Mission, pp. 427, 453; Tite Tienou, “Christian Theology in an Era of
World Christianity” [A Teologia Cristã numa Era de Cristianismo Mundial] in Globalizing Theology:
Belief and Practice in an Era of World Christianity [Teologia Globalizada: Fé e Prática numa Era de
Cristianismo Mundial], Ed. Craig Ott and Harold A . Netland, Grand R apids: Baker, 2006, pp. 45-51.
186. Entrevista de Simon Chan com Andy Crouch, “ The Mission in Trinity” [A Missão na Trindade] in
Christianity Today, Junho de 2007, p. 48, disponível em
<http://www.christianvisionproject.com/2007/06/the_mission_of_the_trinity.html>.
187. Exemplo, o teólogo Jürgen Moltmann exclama que o senhorio é de Cristo, mas apresenta um
retrato de Deus como Senhor, passando para um retrato de Deus como Pai, que depois dá lugar ao
retrato de Deus na Igreja como amigo, no poder do Espírito.
188. Veja Murray, Church After Christendom, pp. 10-23, para uma discussão surpreendente e elaborada
sobre esse tema.
189. Veja a história de Dan Kimball em relação a isso em They Like Jesus but Not the Church: Insights
from Emerging Generations, Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 160-61, traduzido para o português
como Eles Gostam de Jesus, Mas Não da Igreja, São Paulo: Vida, 2011.
190. Essas categorias podem ser encontradas em Murray, Church After Christendom, p. 25.
191. Paul Hiebert, Anthropological Reflections on Missiological Issue, Grand R apids: Baker, 1994, pp.
110-36, traduzido para o português como O Evangelho e a Diversidade das Culturas: Um Guia de
Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999. Murray, Church After Christendom, pp. 12-38;
Michael Frost e Alan Hirsch, The Shaping of Things to Come: Innovation and Mission for the 21st
Century [A Forma das Coisas Futuras: Inovação e Missão para o Século XXI], Peabody, MA: Hendrickson,
2003, pp. 47-50; cf. Darrell Guder, et al., que chamam mais atenção para uma congregação que tem uma
posição parcialmente limitada e parcialmente centrada em Missional Church: A Vision for the Sending
of the Church in North America [Igreja Missional: Uma Visão do Envio Feito pala Igreja da América do
Norte], Ed. Darrell L. Guder, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp. 205-12.
192. Hiebert, Anthropological Reflections, p. 134, traduzido para o português como O Evangelho e a
Diversidade das Culturas: Um Guia de Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999.
193. Doug Pagitt, Church Re-Imagined: The Spiritual Formation of People in Communities of Faith,
Grand R apids: Zondervan, 2003, 27, traduzido para o português como Reimaginando a Igreja, Brasília:
Editora Palavra, 2009.
194. Ibid.
195. Tim Chester e Steve Timmis, Total Church, W heaton, IL: Crossway, 2008, 50, traduzido para o
português como Igreja Total: Repensando radicalmente nossa apresentação do evangelho na
comunidade, Niterói: Tempo de Colheita, 2011 .
196. Frank Viola, Reimagining Church, Colorado Springs: David C. Cook, 2008, 17-18, traduzido para o
português como Reimagiando a Igreja, Brasília: Editora Palavra, 2009.
197. Ibid., p. 28.
198. John Zizioulas, Being as Communion: Studies in Personhood and the Church [Existindo como
Comunhão: Estudos sobre a Personalidade e a Igreja], Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press,
1985, pp. 44, 46.
199. As conversas contemporâneas a respeito da Trindade geralmente dão primazia às três pessoas de
Deus, em vez de sua natureza única. Pelas razões que acabei de explicar, não posso fazer outra coisa
senão seguir Robert Letham, que cita Gregório Nazianzeno para o argumento de se dar primazia a
ambas as coisas. Gregório escreve: “Assim que compreendo que sou iluminado pelo esplendor dos três,
logo reconheço que sou levado de volta para o único.”, in Robert Letham, Holy Trinity [Santíssima
Trindade] Phillipsburg, NJ: P&R , 2004, p. 463.
200. Veja R . S. Downie, “Authority” [Autoridade] in The Oxford Companion to Philosophy [Companhia
de Filosofia de Oxford], Ed. Ted Honderich, New York: Oxford University Press, 1995, pp. 68-69.
201. Minha compreensão acerca da autoridade foi auxiliada por Christopher J. H. Wright (que
reconheceu ser devedor de Oliver O’Donovan), que me forneceu a palavra “autorização”, extraído de
The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative [A Missão de Deus: Desvendando a
Grandiosa Narrativa Bíblica], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, p. 53. No entanto, quero ampliar
essa ideia de um modo um pouco diferente de Wright, que define essa “autorização” como uma
“permissão legítima” ou “liberdade para agir dentro de limites”. Acho que seria melhor dizer que a
autorização de Deus para a nossa atividade é a comissão legitimadora dele. Afinal de contas, a pessoa que
recebeu autoridade — tal como a de um presbítero ou de um primeiro-ministro — recebe essa
autoridade para realizar alguma tarefa ou para cumprir algum propósito. Isso significa que, sim, ela tem
liberdade de ação num domínio relevante. Mas o desígnio dessa autoridade não é ter liberdade para
fazer o que quer que lhe agrade (mesmo que dentro de limites), mas sim o propósito que essa pessoa
tem de cumprir a tarefa para a qual recebeu a autoridade (talvez Wright admita muito mais do que isso
em outras passagens. Cf. Oliver O’Donovan, Resurrection and Moral Order: An Outline for Evangelical
Ethics [A Ressurreição e a Ordem Moral: Uma Resumo da Ética Evangélica], 2ª. ed., Grand R apids:
Eerdmans, 1994, principalmente pp. 121-24. Acho que O’Donovan assimila essa diferença para a qual
estou caminhando, referindo-se à liberdade como “ação intencional” (p. 122) e à realidade como
teológica.
202. Veja Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality: A Treatise in the
Sociology of Knowledge, p. 157; cf. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 104.
203. Reservamo-nos uma espécie de autoridade de fato, mas não de jure, uma autoridade moralmente
legítima.
204. É nesse ponto que a abordagem sociológica da autoridade se torna inadequada para fins teológicos,
o que menciono em resposta aos exegetas bíblicos que adotam uma definição sociológica por atacado.
Desde a obra fundamental de Max Weber sobre a sociologia da autoridade, entende-se que o conceito de
autoridade deve incluir não apenas o direito ou legitimidade da figura de autoridade para governar, mas
também a complacência real e a aceitação subjetiva desse governo por parte daqueles que são
governados. O próprio Weber define a autoridade como “a probabilidade de que uma ordem com um
determinado conteúdo específico seja obedecida por um grupo determinado de pessoas”, uma definição
que mede a “autoridade” por essa probabilidade (The Theory of Social and Economic Organization, New
York: Free Press, 1947; reimpressão de 1964, p. 152). De um ponto de vista totalmente materialista,
que exclui uma concepção da autoridade divina e pressupõe que toda autoridade é construída
socialmente, essa definição faz sentido. Nesse sentido, ela serve para os propósitos descritivos da
sociologia. No entanto, é lamentável quando um estudioso cristão adota de modo simplista as definições
acadêmicas seculares. Por exemplo, Bengt Holmberg, ao escrever sobre a autoridade eclesiástica nas
epístolas paulinas, procura compreender a autoridade na igreja através das lentes de Weber e seus
sucessores. Por essa razão, ele escreve: “A característica ‘invisível’ de uma relação de autoridade é que
tanto o governante quanto o subordinado consideram que o dever deste último é obedecer... Isso
significa que a reivindicação de ser autorizado a dar ordens é justificada pela referência à legitimação que
é válida para aquele que se submete à autoridade”, in Paul and Power: The Structure of Authority in the
Primitive Church as Reflected in the Pauline Epistles [Paulo e o Peder: A Estrutura da Autoridade na
Igreja Primitiva Conforme Refletida nas Epístolas Paulinas], Eugene, OR: Wipf & Stock, 1978, p. 127.
Em uma cosmovisão cristã, porém, isso é evidentemente incorreto. Assim como acontece na ilustração
da criança que rejeita a autoridade de seus pais, a autoridade de Deus e a autoridade que ele dá aos
mediadores humanos podem ou não ser reconhecidas, conforme já vimos, devido às estruturas rivais de
legitimação. Alguns teoristas seculares compreendem muito bem isso, por exemplo, Joseph R az, The
Authority of Law [A Autoridade da Lei], New York: Oxford University Press, 1983, p. 8; e R . S. Downie,
“Authority” in The Oxford Companion to Philosophy, p. 69.
205. Berger e Luckmann, The Social Construction of Reality, p. 157.
206. Recebi esses exemplos de Bruce Ware.
207. Estou tomando emprestada a linguagem “base” de Oliver O’Donovan.
208. William H. Riker, Liberalism against Populism: A Confrontation between the Theory of Democracy
and the Theory of Social Choice [O Liberaslismo Contra o Populismo: Uma Confrontação Entre a Teoria
da Democracia e a Teoria da Escolha Social], Prospect Heights, IL: Waveland Press, 1982, pp. 8-11, 244.
Certamente, esses argumentos não são incontestáveis, mas acho que ele está certo quando escreve: “Na
visão liberal, a função do voto é controlar as pessoas que possuem cargos públicos e nada mais”, 9, itálico
no original. Veja também a abordagem legalista de Brian Barry em Democracy and Power: Essays in
Political Theory 1 [Democracia e Poder: Ensaios Sobre Teoria Política 1], Oxford: Oxford University
Press, 1991), cap. 2.
209. Em comparação com as antropologias ironicamente otimistas dos teóricos liberais
contemporâneos, como John R awls, a época anterior aos teóricos democráticos sabia muito bem que os
governos populares rapidamente passavam para os seus próprios tipos de tiranias. No famoso livro
Federalist 1, James Madison censura publicamente o “prejuízo das facções”, quer elas sejam constituídas
pela maioria, quer pelaminoria do todo; essas agitações prejudicam os interesses da nação, além do
potencial para oprimir aqueles que se opõem a elas. Essa tendência para prejudicar os outros não é
produzida pela autoridade, afirma Madison, mas pela liberdade: “A liberdade é para a facção aquilo que o
ar é para o fogo, um alimento sem o qual ele instantaneamente expira”. Afinal, a causa disso está na
natureza da humanidade: “As causas latentes da facção são semeadas desse modo na natureza do
homem... Essa propensão da humanidade para cair em animosidades mútuas é tão forte que onde não
houver uma ocasião substancial para isso, as diferenças mais frívolas e fantasiosas seriam suficientes
para incitar suas paixões hostis e estimular seus conflitos mais violentos”. Madison e outros defensores
da Constituição dos Estados Unidos sabiam que esse problema poderia não ser resolvido por meio da
remoção das causas da facção, mas somente por meio do “controle de seus efeitos” [sic]; por essa razão
existe: a separação dos poderes, o federalismo, as eleições populares, a revisão judicial e,
consequentemente, uma Declaração dos Direitos Humanos etc. Preocupações semelhantes a essas são
expressas no livro Federalist 51. Citações extraídas de Alexander Hamilton, et al., New York: Bantam
Classics, 1982, pp. 43-45.
210. E também 2 Re 21.16; Jr 2.5-9, 10.21, 23.1-3, 50.6-7; Ez 22.6, 34.1-10; Zc 11.17. Para uma
excelente discussão sobre essas passagens, veja Timothy S. Laniak, Shepherds after My Own Heart:
Pastoral Traditions and Leadership in the Bible [Pastores Segundo Meu Próprio Coração: As Tradições
Pastorais e a Liderança na Bíblia], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, caps. 7-8.
211. E também Is 61.8; Jr 2.34, 19:4; Ez 22.7.
212. Dt 27.18-19; 2 Re 23.26-27, 24.3-4.
213. Encorajo os leitores a lerem o livro de G. E. Ladd, Theology of the New Testament, traduzido para
o português como Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Hagnos, 2003, para o tratamento clássico
dado ao tópico sobre o governo invasivo de Cristo, e de Thomas Schreiner, New Testament Theology
[Teologia do Novo Testamento], para uma exposição mais moderna.
214. Para saber mais sobre a reivindicação de Jesus acerca da identidade e das prerrogativas de Deus,
veja Richard Bauckham, God Crucified: Monotheism and Christology in the New Testament [Deus
Crucificado: Monoteísmo e Cristologia no Novo Testamento], Grand R apids: Eerdmans, 1999, e
Christopher J. H. Wright, The Mission of God [A Missão de Deus], cap. 4.
215. Nesse ponto, eu me restringi principalmente às citações de Mateus. Muitas outras passagens
mencionam semelhantemente a autoridade da igreja, dentre as quais: Lucas 10.19, 24.46-48; João
14.26, 20.21-23 e Atos 1:8. Referências sobre o fim da autoridade da igreja podem ser encontradas em 2
Tm 2.12; Ap 2.26-27, 5.10 e 22.5.
216. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 109.
217. Ibid.
218. Ibid., p. 104.
219. Qualquer um que tenha visto a trilogia Matrix sabe que esses filmes são postulados numa analogia
semelhante.
220. O’Donovan, Resurrection and Moral Order, 104.
221. Hiebert, Anthropological Reflections, p. 134.
222. Hiebert divide as pessoas em: aqueles que estão interessados, crentes, membros batizados e
presbíteros; Guder as divide em: os sem igreja, o crente nominal, o que está interessado, a congregação e
a comunidade da aliança, Missional Churches [Igrejas Missionais], pp. 210-11.
223. Este versículo tem um papel de destaque no argumento de Anthony Thiselton de que uma das
causas primárias dos pecados dos Coríntios era uma escatologia superestimada; veja Anthony C.
Thiselton, “Realized Eschatalogy at Corinth” [A Escatologia Super-realizada Concretizada em Corinto]
in New Testament Studies 24 [Estudos no Novo Testamento] (1978), pp. 510-26, veja também as
qualificações de Thiselton dessa tese em “ The First Epistle to the Corinthians” in the The New
International Greek Testament Commentary [A Primeira Epístola aos Coríntios, Comentário do Novo
Testamento Grego Internacional], Grand R apids: Eerdmans, 2000, p. 40.
224. Tom Wolfe, I Am Charlotte Simmons, New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2004, pp. 362-63,
traduzido para o português como Eu Sou Charlotte Simmons, Alfragide, Portugal: Dom Quixote, 2009.
Capítulo 4
O ALVARÁ DO AMOR
Que sorte foi ele ter sentido o perdão de Deus antes de chegar à casa de
Bundren! Ela morreu antes de ele chegar. A necessidade de uma confissão confusa
havia passado, porque Deus “é misericordioso; ele aceitará o desejo de fazer aquela
obra”. Whitfield então entra no lar agoniado, reflete sobre a mulher falecida que
agora está enfrentando “o julgamento terrível e irrevogável” de seu pecado, e
pronuncia magistralmente: “A graça de Deus esteja sobre esta casa.”
Addie talvez estivesse jazendo no inferno, com seu pecado não confessado, mas
Whitfield pôde se regozijar por sua própria alma: “Louvores a ti por teu amor
copioso e onipotente, ó, louvores.”225
Após a publicação de Enquanto Agonizo, perguntaram a Faulkner, numa
entrevista, se Whitfield era um hipócrita. Ele respondeu: “Não, eu não diria que ele
era um homem hipócrita. Ele tinha que viver uma vida hipócrita. Ou seja, ele tinha
que viver em público a vida que as pessoas fanáticas e ignorantes do Sul isolado e
rural exigiam de um homem de Deus, quando, na verdade, ele era apenas um
homem como qualquer um deles.”226
Essa caricatura personifica bem como o mundo vê o cristianismo, a igreja e o
nosso discurso sobre amor, retidão e perdão. E há mérito nessa caricatura.
Realmente existem fanfarrões e salafrários como Whitfield, um tele-evangelista
espalhafatoso antes da era da televisão. Não é difícil pensar em líderes fracassados,
em cristãos fracassados ou em igrejas divididas que confirmam esse estereótipo.
O que é totalmente trágico, portanto, é o fato de que Whitfield parece não ser
cristão. Ele é uma falsificação, e, assim como todas as falsificações, ele nos deixa
céticos e nos endurece contra a coisa verdadeira. A ironia que as pessoas geralmente
omitem é que as falsificações ao mesmo tempo escondem e revelam algo
verdadeiro. Há algo de verdadeiro na religião do reverendo Whitfield que é belo e
glorioso, apesar da caricatura distorcida de Faulkner ser completamente
irreconhecível: há um Deus gracioso que exerce o seu amor copioso no próprio ato
de salvar alguns e a outros não. Existe um Deus gracioso que exibe seu amor
onipotente no próprio ato perdoar os piores hipócritas e adúlteros. E existe um
Deus gracioso que requer o louvor de um povo distinguido, com limites, à medida
que ele pronuncia suas bênçãos sobre ele e o chama a pronunciar essa bênção a
outros, a fim de que as nações louvem seu amor generoso e poderoso.
Mas quem acreditaria nisso, quando hipócritas como Whitfield estão nas
manchetes?
Exemplos de hipocrisia ou heresia sempre receberão mais publicidade quando
envolverem um líder de igreja como Whitfield, mas não são as manchetes que
devem nos preocupar. São as nossas próprias vidas. É a vida do membro comum das
igrejas. Porque, para cada ato de hipocrisia que atinge a imprensa, não haverá
milhares de exemplos de hipocrisia em nossas próprias vidas, alguns insignificantes
e outros nem tanto? Os nossos vizinhos, colegas e amigos descrentes nos ouvem
professar o nome de Cristo com a nossa boca e com a nossa filiação a uma igreja;
todavia, eles nos observam e se perguntam: “Se Jesus é tudo o que vocês dizem que
ele é, por que sua vida se parece com a minha? Será que o evangelho do nascer de
novo, do qual você fala, pode ser de fato verdadeiro?” Mais do que os títulos das
manchetes, o que basicamente forma a percepção que o mundo tem de Cristo e de
seu evangelho é a vida diária do cristão comum.
EXPULSAI-O
É com esse tipo de tragédia que o apóstolo Paulo luta em 1 Coríntios 5.
Um homem da igreja de Corinto estava dormindo com a esposa de seu pai, e
Paulo parece se colocar no lugar dos vizinhos descrentes da igreja quando exclama:
“Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade e imoralidade tal como nem
mesmo entre os gentios” (v. 1). É como se Paulo estivesse dizendo: “Nem os
mundanos fazem isso! O que vocês acham que eles vão pensar?” Com razão, ele
estava preocupado com o nome e a reputação de Cristo. Ele estava preocupado com
a igreja, com o testemunho dela e com sua vida de santidade. Ele estava preocupado
com aquele homem, porque ele estava se autoenganando e vivendo no perigo da
condenação. Na mente de Paulo, a solução era simples: expulsai-o. Ele escreve:
Eu, na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se
estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o
meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da
carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor [Jesus] (vs 3-5).
Paulo está chamando a igreja para exercer sua autoridade, dada por Cristo, de
excluir aquele homem. Isso suscita inúmeras perguntas. Em primeiro lugar, ele diz
à igreja para que aquele homem seja “explulso”, mas expulso exatamente de onde?
Além disso, por que ele admite que a igreja possui autoridade para expulsar aquele
homem? Aquele homem deve prestar contas a Deus, não a eles, certo? Quem lhes
deu o direito de expulsá-lo? E por que Paulo fala sobre o seu espírito “ser salvo no
Dia do Senhor”? Qual é a ligação entre sua filiação a essa igreja e sua salvação?
Finalmente, parece que Paulo tem outro alvo em mente além de manter as pessoas
unidas.
Se o seu alvo não é simplesmente manter a igreja unida, que alvo é esse?
Nós podemos, consequentemente, chegar a essas perguntas, mas uma coisa deve
ficar clara para nós: Paulo reivindica um ato de autoridade institucional a fim de
defender o testemunho do evangelho. Aparentemente, o evangelho e os princípios
institucionais da vida da igreja talvez não estejam tão desconectados como às vezes
pensamos.
UM ALVARÁ INSTITUCIONAL
Afinal, nós de fato os desconectamos. Certo teólogo, Kevin Vanhoozer, escreveu
sobre sua juventude como professor, durante a qual ele evitava ensinar a doutrina
da Igreja, pois ela parecia conter apenas os assuntos que historicamente têm
dividido os cristãos, como o batismo, a política, o papel das mulheres no ministério e
assim por diante227. Além disso, nenhuma dessas coisas é essencial para a salvação.
Mas Vanhoozer recuperou o seu interesse em eclesiologia porque escolheu não se
concentrar nessas questões que dividem; em vez disso, ele escreve sobre a “simples
eclesiologia”. A simples eclesiologia é aquela que se concentra no fato de que a igreja
é resultado do evangelho e se contenta em desprezar as questões externas da
política organizacional e da prática228. A pessoa e a obra de Cristo nos tornaram um
povo; portanto, concentremo-nos em afirmar isso, e não nas coisas que nos
dividem.
Entre os evangélicos com mente teológica, a abordagem de Vanhoozer me parece
até certo ponto comum. Conferências e livros ecoam a exigência de afirmar o que é
central, estabelecendo os princípios e redefinindo as doutrinas mais importantes
para uma nova geração. Talvez isso signifique definir o evangelho de um modo que
melhor se harmonize com a narrativa da história da redenção. Talvez isso signifique
definir essa conversa de um modo menos individualista. Talvez signifique definir a
essência da igreja como “em missão”. Mas não importa qual seja a abordagem, a
política organizacional da igreja raramente entra nessa conversa. Ela é deixada de
lado. Aquilo que J. L. Reynolds afirmou em 1846 soa como uma piada: “A política
organizacional da igreja tem se tornado um tema que chama a atenção do mundo
cristão.”229
Entre os evangélicos de mente pragmática de nossos dias, o futuro da igreja,
dizem eles, depende de termos as práticas exatamente corretas. A pressuposição é
que a política organizacional da igreja é infinitamente flexível. As igrejas devem
fazer qualquer coisa que funcione. As conferências e livros ecoam o chamado para a
contextualização, os múltiplos locais de cultos e a vídeo transmissão; o cultivo da
correta cultura interna da organização, dos ministérios de pequenos grupos, das
programações evangelísticas para os que estão interessados e muito mais.
Em resumo, alguns evangélicos recomendam que afirmemos a doutrina central,
outros recomendam que brinquemos com as estruturas. No entanto, o que é
irônico é que essas duas tendências podem produzir objetivos opostos. Com
certeza, as igrejas evangélicas devem afirmar a doutrina central, mas o que está
sendo ignorado por muitos teólogos e profissionais é o fato de que Jesus outorga
autoridade à igreja para propósitos estruturais bem específicos. Em Mateus 16, 18 e
28, na realidade, ele passa aos apóstolos o rolo de um livro selado com seu próprio
selo real. Quando os apóstolos abrem o rolo, encontram um alvará para algo
chamado a igreja, uma palavra que eles haviam ouvido anteriormente, mas para a
qual Jesus agora está dando um uso novo e formal. Esse alvará formaliza a
existência da igreja na terra, estabelece sua autoridade, resume seus direitos e
privilégios básicos e descreve os princípios para se pertencer a ela. O que esse alvará
diz? Isso é o que consideraremos neste capítulo.
O que descobriremos é que Jesus nunca imaginou uma igreja separada de toda a
sua autoridade, responsabilidade e estrutura — as mesmas coisas que nos
confundem nas questões que Vanhoozer diz que divide os cristãos, como a
administração apropriada das ordenanças e da membresia. É essa igreja estruturada
que Jesus planeja usar como o meio de transmitir a mensagem do evangelho —
para protegê-la, exibi-la, sustentá-la, torná-la atraente e colocá-la em ação. A igreja é
resultado do evangelho, conforme Vanhoozer argumenta. Sim, mas as estruturas
de autoridade são uma parte importante desse resultado. A forma e o conteúdo
estão ligadas. O que protege a igreja ano após ano, geração após geração, é o poder
de ligar e desligar. São as ações de identificação, as fronteiras, os limites, a
supervisão, as ordenanças, as ações de julgamento interno, o ensino e os rituais de
iniciação — todos exercidos na terra.
Esses são os tipos de questões que Paulo tem em mente em 1 Coríntios 5. Ele não
deseja simplesmente manter a igreja unida — unidade pela unidade. Ele tem a
intenção de distinguir a igreja do mundo e, ao fazer isso, a intenção de proteger e
exibir o evangelho.
Isso é também o que Jesus parece ter em mente no Evangelho de Mateus. Para
os propósitos de nossa discussão sobre membresia e disciplina da igreja em Mateus,
Jesus comissiona a igreja a exercer a autoridade amorosa de cinco maneiras:
1) Ele autoriza sua igreja a proclamar e proteger as boas novas de seu de seu reino
invasivo e de sua e da salvação.
2) Ele autoriza sua igreja a confirmar com alegria aqueles cujas vidas e profissão
de fé indicam que eles pertencem a ele, por meio da união com seu corpo e com sua
família.
3) Ele autoriza sua igreja a unir crentes a si mesma e ao seu ato de aceitação, que
envolve cuidados por parte dela.
4) Ele autoriza sua igreja a prover supervisão para esses filhos, guiando-os,
direcionando-os e equipando-os por meio de sua Palavra, para que tenham uma
união mais íntima com ele e com todos os filhos de Deus.
5) Ele autoriza sua igreja a afastar e excluir qualquer impostor que prejudique os
membros da família, degrade o seu nome e, desse modo, impeça o testemunho da
igreja ao mundo.
Em seu ministério, Jesus declarava que o Reino dos Céus estava próximo (3.2,
4.17).
Jesus professa saber quem receberá o Reino dos Céus e herdará a terra (5.3,
5).
Jesus ensina seus discípulos a orarem para que a vontade de Deus seja feita na
terra, assim como nos céus.
Jesus lhes diz para não acumularem seus tesouros na terra, onde a traça e a
ferrugem corroem, mas para acumularem tesouros no céu, onde nem traça
nem ferrugem corroem (6.19-20).
Jesus diz aos discípulos que a eles é dado conhecer os mistérios do Reino dos
Céus (13.11).
Lição após lição é dedicada àqueles que receberão o Reino do Céu e àqueles que
não o receberão. Os pobres de espírito o receberão (5.3). Os pequeninos o
receberão (11.25; 19.14). Aqueles que se humilham como uma criança o receberão
(18.4, 14). Aqueles que fazem a vontade de seu Pai celeste o receberão (12.50).
Aqueles que produzem frutos de arrependimento o receberão (3.7-10, 7.15-23,
12.33-38). Aqueles a quem Deus escolhe o receberão (19.25-26, 20.14-16, 22.14).
Em outras palavras, o Evangelho de Mateus está preocupado com a pergunta:
quem representa o céu na terra e como são as vidas dessas pessoas? Além do mais,
ele responde a essa pergunta, apontando para uma mudança de regime de governo
drástica e única na história. Sob a velha aliança, o Israel étnico falava em nome do
céu. Agora, Cristo e seus seguidores o fazem. Deus pode suscitar filhos a Abraão das
pedras, diz João Batista (3.7-9), e Jesus promete “que muitos virão do Oriente e do
Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no Reino dos Céus;
ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas” (8.11-12).
Jesus até chama outro grupo de 12 homens para serem os novos chefes de uma
nova nação e então promete que eles se sentarão em doze tronos, e julgarão a Israel
(10.1-4, 19.20). As linhas divisórias políticas, culturais e étnicas não mais separarão
a família de Deus. Em vez disso, “qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste,
esse é meu irmão, irmã e mãe” (12.50).
Quem então fala em nome do céu na terra? Em primeiro lugar, Jesus. Ele foi
explicitamente afirmado como “Filho Amado”, por uma “voz dos céus” no início de
seu ministério terreno (3.17, cf. 17.5), reivindicando, ao fim dele, ter “toda
autoridade no céu e na terra” (28.18). Todavia, não é só Jesus que representa o céu,
mas o seu povo também o faz: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém
conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a
quem o Filho o quiser revelar” (11.27)231.
Jesus diz a seus discípulos que receber, em seu nome, aqueles que se humilham
como uma criança é receber o próprio Jesus (18.5).
Jesus promete estar presente sempre que dois ou três estiverem reunidos em seu
nome (18.20), assim como a presença de Jeová entre seu povo no Antigo
Testamento.
Ao mesmo tempo:
Jesus alega ter autoridade vinda do céu e, com base nisso, autoriza seus
discípulos a fazerem mais discípulos, não só compartilhando o evangelho, como
também batizando e ensinando. Observe que Jesus não diz aos seus discípulos
simplesmente para segurar um megafone ou ligar o transmissor do rádio e gritar o
evangelho, deixando que as pessoas recebam a mensagem segundo a vontade de
Deus, para que possam começar a se denominarem cristãs e seguirem em frente
com suas vidas separadas da fonte da mensagem ou separadas umas das outras.
Não, é muito mais do que isso. Fazer um discípulo envolve batizar as pessoas e
depois ensinar-lhes tudo o que Cristo ordenou.
Por que as etapas extras? Com base nas preocupações mais importantes de
Mateus, podemos supor que Jesus se preocupa com quem leva o seu nome
publicamente (assim como o nome do Pai e do Espírito). Devemos lembrar que a
questão da hipocrisia aparece ao longo do livro. Jesus comissiona seus seguidores
não apenas a pregar, mas a se encarregar do trabalho “institucional” de confirmar as
profissões de fé fidedignas, por meio do batismo, para atestar publicamente: “Esta
pessoa usa o nome de Cristo e representa o céu na terra.” Ele deseja que aqueles que
são confirmados desse modo aprendam tudo o que ele tem ordenado.
Basicamente, acredito que descobriremos que a Grande Comissão não diz
respeito somente à evangelização, mas à implantação e à edificação da igreja.
Observe que Jesus promete “estar com” seus discípulos até a consumação do
século, exatamente como ele prometeu, no contexto eclesiástico de Mateus 18,
estar presente sempre que dois ou três estivessem reunidos em seu nome.
Será que alguém que não tenha passado pelas águas do batismo tem o direito de
falar em nome de Jesus e do Pai celestial? Será que Jesus simplesmente permite
que a consciência de cada homem ou mulher declare diante do mundo: “Eu falo em
nome de Jesus e do Pai que está no céu, portanto atendam ao que digo.”? Jesus
prometeu que os impostores fariam isso (7.21-23, 24.5), mas, em tese, há
problemas em fazer isso? Acho que a resposta depende de como compreendemos a
autoridade da igreja aqui em Mateus 28 e nos capítulos 16 e 18. Minha resposta é
que não, porque creio que Jesus deu a Pedro e à igreja local o poder das chaves
exatamente para que o povo de Deus na terra tivesse um mecanismo institucional,
por assim dizer, que distinguisse quem fala por ele com credibilidade; para mantê-
los unidos; para ensiná-los e para supervisionar suas vidas juntos. Creio que os
cristãos devem, portanto, estar unidos a uma igreja. Esse é o argumento que ainda
precisa ser elaborado.
Jesus é um rei que, nesses capítulos, concede aos nobres um alvará que os
autoriza a edificar em seu território.
Começa-se a perceber o quão extraordinariamente tolo é o fato de tantos
evangélicos suporem que eles mantêm essa autoridade por si mesmos, o que eles
fazem sempre que dizem que sua fé cristã pertence a eles, e que eles não precisam
de uma igreja para confirmá-la. Será que nos atreveríamos a recrutar alguém para
um time de futebol profissional ou nos atreveríamos a oferecer uma posição no
gabinete do Primeiro-Ministro britânico? É claro que não. Do mesmo modo, não
poderíamos tentar entrar no exército pedindo que o exército nos receba. Sabemos
que não temos essa autoridade. Então, quem tem a autoridade para afirmar e unir
formalmente alguém ao corpo de Cristo? Cristo certamente o tem. Além disso,
essas três passagens em Mateus nos dizem que ele deu sua autoridade aos
apóstolos, os quais foram exclusivamente comissionados com a mensagem
apostólica para estabelecer o fundamento da igreja. Mas, uma vez que o
fundamento tenha sido estabelecido e os apóstolos tenham morrido, essa
autoridade não passou adiante a todas as pessoas do planeta. Essa autoridade foi
repassada para a igreja. Somente a igreja apostólica tem autoridade para batizar.
Exatamente porque vivemos entre a inauguração do reino e sua consumação;
exatamente porque a autoridade continua a ser um assunto complexo nesta época;
exatamente porque os cristãos são ao mesmo tempo justificados e pecadores;
exatamente porque somos tão propensos ao autoengano; exatamente porque esses
dois aspectos são radicalmente opostos, mas suas imagens de amor são lançadas
justapostas na mesma tela; e exatamente porque o mundo precisa de quem distinga
o amor verdadeiro do amor mundano, Cristo não autorizou indivíduos, mas antes a
igreja apostólica, a distinguir um povo para si mesmo e a mantê-lo unido.
UM ALVARÁ TERRENO
Como então devemos entender o relacionamento entre o ligar e desligar da igreja
apostólica na terra e aquilo que acontece no céu? Os intérpretes tendem a se
concentrar no fato de se as expressões verbais de Mateus 16.19 e 18.18 devem ser
traduzidas no futuro simples (“ligares”/“será ligado” — King James, NVI, New
Revised Standard Version, English Standard Version) ou no particípio passado
(“tiver sido ligado”/“terá sido ligado” — New American Standard Bible). Ambas são
traduções tecnicamente legítimas, mas parecem levar à conclusões teológicas
diferentes; os protestantes geralmente optam pela última, e os católicos romanos,
pela primeira.
Não estou convencido de que a forma como a traduzimos realmente importa,
porque a questão é que Jesus está dando essa incumbência para estabelecer a igreja
como sua representante na terra270, e quando uma das partes exerce autoridade
em nome da outra, essa nova autoridade que representa a outra parte é, em certo
sentido, eterna. Muito provavelmente, essa expressão tem um sentido presente e
futuro. Pense numa babá que representa a autoridade dos pais. Os pais colocam–na
no encargo até que eles retornem, momento em que todas as promessas ou
advertências da babá serão vindicadas. Do mesmo modo, o encargo de Jesus para a
igreja, de agir como sua representante, poderia ser dado em termos passados,
presentes ou futuros. Deixe-me ilustrar isso com outra analogia.
Jesus é como o proprietário de um prédio dizendo ao corretor de imóveis: “Diga
aos inquilinos que as suas decisões são as minhas decisões.” Essa é uma referência
presente. Eis uma referência no passado: “Se você gostou dos inquilinos, então eu já
gostei deles.” E aqui está uma referência futura: “Se você tiver um problema com
eles, eles terão um problema comigo.”271 Será que isso significa que o proprietário
do edifício espera que o corretor leia o seu pensamento com perfeição, ou que ele
acha que concordará com todas as decisões que o corretor tomar, ou mesmo que ele
proibirá os inquilinos de apelarem diretamente a ele em caso de discordância com o
corretor? Certamente que não. O dono está simplesmente estabelecendo que, por
uma questão de princípio, o corretor fale em seu nome. Jesus elaborou um
argumento semelhante alguns capítulos antes desse: “Quem vos recebe a mim me
recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (Mt 10.40).
A verdadeira questão que divide protestantes e católicos é que tipo de
representante a igreja é, questão que pode ser ilustrada com as diferenças entre as
duas analogias que utilizei — a de um corretor de imóveis e a de um embaixador.
Um corretor, na função de representante, pode tanto fazer declarações quanto
executá-las. Ele não apenas declara que pode alugar um apartamento, mas tem a
procuração judicial para alugar o apartamento. Um embaixador, por outro lado,
somente pode fazer declarações em nome de seu rei. Ele pode dizer a um rei
inimigo: “Meu rei agirá de modo decisivo se você não remover suas forças”, ou até
mesmo: “Por meio desse pronunciamento, meu rei declara guerra a você.”
Enquanto a Igreja Católica Romana ensina essencialmente que a igreja é mais
como um corretor de imóveis (com o poder de execução)272, é melhor comparar a
igreja a um embaixador (com a autoridade para reproduzir declarações). Não há
nada nessa passagem que induza a responder àquela pergunta de um modo ou de
outro, incluindo o fato de a expressão em questão estar se referindo a algo no
passado ou no futuro. Precisamos do restante das Escrituras para respondê-la.
O que é importante reconhecermos aqui é que Jesus encarregou a igreja de falar
em nome dele na terra, e ele quer que todo o mundo saiba disso. Um membro de
igreja que esteja vivendo num pecado sem arrependimento precisa saber que a
igreja fala em nome de Jesus. Jesus voltará para cobrar as advertências da igreja
contra os pecados sem arrependimento. Um descrente que rejeite o evangelho da
igreja precisa saber que a igreja fala em nome de Jesus. Jesus voltará para cobrar o
chamado da igreja para o arrependimento. A questão não é se igreja pode discernir
de forma onisciente ou divina o estado fundamental de qualquer pessoa num
determinado momento273. A questão é que o mundo deve prestar atenção às
promessas e advertências da igreja porque Jesus deu à igreja a autoridade de falar
em seu nome, como uma embaixatriz, e ele voltará para cumprir as palavras dela.
Às vezes, a igreja fará isso de modo errado. Haverá situações em que ela afastará
ou excluirá pessoas que são cristãos verdadeiros, e às vezes ela receberá
erroneamente pessoas que não são cristãs. Mas isso não significa que a autoridade
da igreja desvaneceu. Quaisquer promessas ou advertências dadas por uma babá
poderão estar erradas, mas isso não diminui a autoridade da babá para comandar
enquanto os pais estiverem ausentes. O fato de que a igreja possa cometer erros
não serve de desculpa para que o mundo ignore suas advertências e promessas, do
mesmo modo como uma criança não pode dizer a uma babá: “É provável que você
esteja errada quanto ao horário em que eu supostamente tenho que ir para a cama.
Por essa razão, posso ignorá-la de modo legítimo, ficar acordado e assistir televisão.”
Se eu soubesse que minha filha disse isso a uma babá, eu a disciplinaria por rejeitar
a autoridade que dei à babá assim que retornasse274. Eu explicaria para ela que esse
rebeldia era uma rejeição à minha autoridade.
A igreja terrena, é importante lembrar, é um representante escatológico. Sua
vida e suas declarações apontam para uma realidade do final dos tempos. Ela aponta
para o que acontecerá. Todavia, exatamente como minha própria vida cristã aponta
de modo imperfeito para o que acontecerá, a igreja na terra o faz do mesmo modo.
A igreja na terra não representa o povo escatológico de Deus de modo perfeito, mas
deve fazê-lo da melhor forma possível275. Esse é o trabalho dela. Cristo deu à igreja
a autoridade para ligar e desligar — para fazer uma confirmação pública da inclusão
ou exclusão de uma pessoa com base na ligação dela com o evangelho. Ele pretendia
fazer uma ligação representativa clara e real entre a autoridade do Pai que está no
céu e a autoridade declarativa da igreja que está na terra276. A boa notícia é que ele
não é compelido a atestar os erros da igreja, assim como não sou compelido a
atestar os erros de uma babá. A Segunda Confissão Helvética descreve a autoridade
representativa e declarativa da igreja desta forma:
Pois vemos que o patrão dá ao mordomo autoridade e poder sobre a sua casa; e por causa disso
lhe oferece as chaves, para que ele possa receber ou expulsar do modo como o seu patrão
receberia ou expulsaria... O Senhor, de fato, ratifica e confirma aquilo que faz, reconhecendo as
obras de seus ministros e as considerando como se fossem as suas próprias277.
Jesus:
E , se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como
gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligares na terra terá sido ligado nos
céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que,
se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura,
pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles (Mt 18.17-20).
Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou
convosco todos os dias até à consumação do século (Mt 28.19-20).
Paulo:
Já sentenciei... que o autor de tal infâmia seja... em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o
meu espírito [talvez significando: o espírito dele na autoridade conferida como apóstolo], com o
poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o
espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus (1 Co 5.3-5).
Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e
eu, em parte, o creio. Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também
os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio (1 Co 11.18-19).
Os crentes, de fato, contêm “a igreja”, mas tanto Paulo quanto Jesus falam como
se fosse o ajuntamento que nos constituísse igreja, assim como um time de
basquetebol deve se reunir, a fim de ser considerado um “time”. Esse ajuntamento
formal possui uma existência e uma autoridade que nenhum de nós possui
separadamente. O todo é maior do que a soma de suas partes, porque Cristo deu ao
todo um alvará organizacional. O pastor congregacional do século XIX John Angel
James diz isso da seguinte forma: “Um membro da igreja é algo mais do que um
cristão, assim como um cidadão é algo mais do que um homem. Cada um deles tem
obrigações que procedem desse relacionamento — com o estado ou com a
igreja.”283
A igreja na terra está localizada na igreja local. Se Cristo nos chama para nos
submetermos a ele por meio de nossa submissão à igreja apostólica, ele pretende
que façamos isso por meio da igreja local. O fato de recusar seu senhorio ao nos
recusarmos a nos submeter a uma verdadeira igreja local, se vivemos onde uma
igreja subsiste geograficamente, põe em xeque o fato de sermos verdadeiramente
convertidos. É verdade que devemos escolher nos associar, e é verdade — em
alguns lugares do mundo — que temos de escolher com qual igreja nos associar.
Mas o fato de não nos associarmos, se existe uma igreja local ali, não é, na verdade,
uma opção. A membresia em uma igreja local é e não é voluntária.
Aparentemente, algumas pessoas da igreja primitiva falharam em reconhecer
esse fato, motivo pelo qual o autor de Hebreus adverte seus leitores sobre
“deixarem de congregar, como é costume de alguns” (Hb 10.25). Essa negligência
pecaminosa, diz ele, leva a uma “certa expectação horrível de juízo e fogo vingador
prestes a consumir os adversários” (Hb 10.27).
A fim de sistematizar a discussão acima e lhe dar um pouco mais de precisão,
acho que podemos dizer que se associar a uma igreja local é necessário por pelo
menos seis fatores: a natureza do que é a igreja universal, a natureza da autoridade,
nossas obrigações bíblicas para com o “corpo”, os mandamentos bíblicos para nos
submetermos aos anciãos ou aos bispos, a natureza da nossa salvação e a natureza
da nossa nova identidade em Cristo.
1) A natureza da igreja universal exige isso. Não se trata de pertencer a uma igreja;
trata-se de pertencer à igreja, dizem alguns. Isso está correto? Consideremos a
quem Jesus deseja que os crentes pertençam. Jesus disse que ele “edificaria a sua
igreja”, referindo-se à igreja universal, ao ajuntamento de crentes de todas as
épocas e de todos os lugares. Mas essa igreja já se reuniu? Em certo sentido, sim, ela
começou a ser reunida no céu (Hb 12.22-23; Ef 2.4-6; Cl 3.1, 3). Mas, em outro
sentido, não, ela ainda não está totalmente reunida. A igreja universal é um corpo
celestial e escatológico284. Quando Jesus diz que edificará a sua igreja, ele
certamente tem basicamente essa sociedade final em mente (Mt 16.18). Não tenha
dúvida de que, quando uma pessoa se torna um cristão, ela passa a pertencer à
igreja universal — ao corpo de Cristo. Isso diz respeito a pertencer à igreja.
No entanto, Jesus também diz aos seus discípulos para ligar e desligar, na terra,
esse ajuntamento celestial e escatológico. O amor, a santidade e a beleza desse
corpo do final dos tempos precisam ser demonstrados agora. A intimidade afetuosa,
perdoadora e misericordiosa da igreja precisa ser personificada agora. Cristo e sua
pessoa precisam ser exibidos agora. Os crentes não podem exibir a vida de sua
sociedade final, esse ajuntamento do final dos tempos, essa cidade celestial, esse
Cristo, somente por si mesmos. Eles precisam de outros crentes. Não podemos
perdoar, tolerar e amar, nem podemos receber perdão e tolerância, sentados
sozinhos numa ilha. É pelo fato de sermos cidadãos dessa sociedade do final dos
tempos, que ama uns aos outros, que o mundo saberá o que significa ser discípulo
de Cristo (Jo 13.34-35).
A igreja universal é um corpo celestial porque começou a ser reunida no céu, mas
é também um corpo escatológico, porque esse ajuntamento completo do final dos
tempos já começou na terra285. A pátria enviou embaixadores e construiu
embaixadas aqui e agora, razão pela qual Paulo se refere à “igreja de Deus em
Corinto” (1 Co 1.2; 2 Co 2.1)286. Esses crentes reunidos em Corinto são um posto
fronteiriço, um antegozo, uma colônia, uma representação do ajuntamento final.
Tudo isso diz respeito a pertencer à igreja; mas, aqui e agora, tudo isso diz respeito
a pertencer a uma igreja, porque é aqui onde damos substância à nossa proclamação
e à nossa fé.
Em resumo, a natureza da igreja universal exige que os crentes professos se
submetam à igreja local.
2) A natureza da autoridade e da submissão exige isso. A ideia de pertencer a uma
igreja local — na verdade, até o próprio conceito de uma igreja local — será
supérflua se a nossa ideia de relacionamento com Cristo e com outros crentes
estiver completamente baseada em alguma concepção vaga de relacionamento
mútuo entre soberanos, desprovida de qualquer necessidade de moral e de
autoridade. Se Cristo nos ordenasse apenas a cultivar um relacionamento com ele e
com outros crentes, ficaria difícil perceber por que deveríamos nos associar a uma
igreja, e muito menos por que existiriam igrejas, em primeiro lugar. Por que não
interagir simplesmente com outros crentes, à medida que isso se encaixar com
nossos horários, necessidades pessoais, preferências sociais, autoimagem e — ah,
certo — as necessidades de algumas poucas pessoas com quem por acaso nos
preocupamos? Na verdade, a própria ideia de “ajuntamento” pareceria
supérflua287. Por que afinal falar sobre a igreja, a não ser que seja em termos mais
abstratos? Por casualidade, isso nos dirige ao problema com qualquer concepção de
comunidade e relacionamento que seja desprovida de autoridade. Essa comunidade
é, enfim, nada mais do que um amálgama de indivíduos que podem ou não
compartilhar de uma relação sentimental uns com os outros. De fato, todo mundo
continua independente, porque o único antídoto verdadeiro para a independência
não é só o relacionamento, mas a submissão.
Se tentarmos conduzir o nosso discipulado com Cristo casualmente,
mordiscando e lambiscando onde quer que nos agrade, indo para lá e para cá entre
um campo e outro, será difícil perceber como nos submeteremos de forma contínua
à igreja de Deus. Podemos dar de nós mesmos para este ou aquele cristão ou para
esta ou aquela igreja, mas nunca daremos verdadeiramente a nós mesmos.
Submeter-se à igreja na terra significa caminhar até um grupo de pessoas e dizer:
“Eu creio no que vocês creem. Agora me coloquem para trabalhar, apoiando nossa
causa mútua, do modo como precisarem de mim. Vocês podem contar comigo.”
Em resumo, a natureza da autoridade e da submissão exige que os crentes
professos se submetam à igreja local. Ela exige comprometimento.
3) Nossas obrigações bíblicas para com o “corpo” exigem isso. Em 1 Coríntios 12,
Paulo descreve o corpo da igreja com uma variedade de dons, mas o mesmo Espírito;
variedade de serviços, mas o mesmo Senhor; variedade de realizações, mas o
mesmo Deus dando poder a todos eles por causa do todo: “A manifestação do
Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveito” (1 Co 12.4-7). Paulo
descreve então a interdependência desse corpo:
Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos,
constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito, todos
nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a
todos nós foi dado beber de um só Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas
muitos. Se disser o pé: Porque não sou mão, não sou do corpo, nem por isso deixa de ser do
corpo. Se o ouvido disser: Porque não sou olho, não sou do corpo, nem por isso deixa de ser do
corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo corpo fosse ouvido, onde o
olfato? Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve. Se
todos, porém, fossem um só membro, onde estaria o corpo? O certo é que há muitos membros,
mas um só corpo (1 Co 12.12-20).
É evidente que Paulo está usando as palavras membro e corpo nesse contexto
como metáforas biológicas, comparando a igreja com um corpo humano. Ele não
quer dizer que a igreja é, de fato, um corpo humano ou que os membros que são
incluídos nela são, de fato, braços e ouvidos. Ele está dizendo, de forma bem
concreta, que cada indivíduo na igreja é incompleto sem os outros, assim como
Adão estava incompleto sem Eva. Suas identidades e experiências devem ser
interligadas e mutuamente dependentes. Portanto, Paulo escreve: “De maneira que,
se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos
se regozijam” (1 Co 12.26).
Quando considerei pela primeira vez como 1 Coríntios 12 se aplicava à
membresia da igreja, eu queria confirmar se Paulo estava se referindo ao corpo
local em Corinto ou ao corpo de Cristo universal, usando a linguagem de um corpo
ou membro. Considere a frase: “Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente,
membros desse corpo” (1 Co 12.27). Será que ele quer dizer aqui que os coríntios
continham o seu próprio corpo, distinguível do corpo dos gálatas ou do corpo dos
romanos, e que eles são membros desse corpo? Se for assim, pareceria estranho
que ele se incluísse nesse corpo, conforme ele faz ao dizer: “Pois, em um só Espírito,
todos nós fomos batizados em um corpo” (v. 13). Paulo, que não é membro da igreja
de Corinto, parece admitir que foi batizado pelo mesmo Espírito e no mesmo corpo
que os coríntios foram. Logo, ele se refere ao corpo local ou ao corpo universal?
Essa questão não é tão difícil quando lembramos que o corpo local é uma
expressão ou uma embaixada do corpo universal escatológico. Em todos os usos
dessa palavra, Paulo poderia querer enfatizar um ou outro. Quando ele escreve: “Os
membros do corpo que parecem ser mais fracos são necessários” (1 Co 12.22), ele
tende a enfatizar o corpo local, com base nos fatores contextuais. No entanto,
quando ele escreve: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um
corpo” (v. 13), ele tende a dar ênfase no universal, lembrando-nos de que o local é
uma manifestação do universal. A linguagem é uma arte tanto quanto é uma
ciência, razão pela qual desconfio do comentarista do Novo Testamento que diz que
tem de ser uma coisa em vez da outra, mas Paulo tende a usar a imagem do corpo de
Cristo a fim de permitir que ambos os significados ressoem (veja também Rm 12.5;
Ef 4.12, Cl 2.19), uma vez que o corpo universal está presente no local.
Se isso estiver correto, 1 Coríntios 12 é uma ilustração maravilhosa sobre como a
igreja local dos dias de hoje deve começar a personificar o ajuntamento escatológico
final, por meio da submissão ao povo de Deus e de uns para com os outros. Deus
arranjou os membros no corpo, cada um deles conforme ele escolheu, de modo que
cada parte possa contribuir de modo único para o todo. Tanto o pé quanto a mão
devem submeter toda a sua “pésidade” e sua “mãosidade” ao corpo, não para acabar
com sua singularidade, mas disponibilizando-as para o bom uso, por causa da
totalidade do corpo. O corpo precisa de cada membro para ser completo. Cada
membro diferente submete seu dom ao bem comum: “A manifestação do Espírito é
concedida a cada um visando a um fim proveitoso” (1 Co 12.7). Todo o capítulo de 1
Coríntios 14 deixa claro a questão de se empenhar na busca dos dons que edificam a
igreja (vs. 3-4, 12, 17, 19).
Os dons do Espírito são dons escatológicos. Eles anunciam uma nova era e uma
nova autoridade, submetidos hoje a um uso. A união e o amor devem ser
exemplificados agora — mesmo que de modo imperfeito (1 Co 13.9) — como uma
testemunha da união e do amor que existirão na glória. “Seja tudo feito para
edificação” (14.26).
Os crentes de nossos dias têm dificuldades para se submeter ao corpo, não
apenas porque nos ofendemos com a ideia de autoridade, mas porque nossas
mentes não podem fazer outra coisa senão reagir como consumidoras. O
consumidor tem a autoridade. Um consumidor acha que ele é a cabeça e que o
restante do corpo existe para servi-lo e realizar sua história pessoal. E não apenas
isso, mas ele fica um pouco nervoso quando os outros são diferentes dele. Judeus e
gregos? Escravos e livres? Não, obrigado, vou ficar com os gregos livres. O
consumidor está sempre procurando o que se ajusta melhor. Ele está procurando
algo com cômodos suficientes, uma cozinha bem desenhada, um quintal de bom
tamanho para as crianças, e nada muito velho que possa dar muito trabalho. Claro,
e que tal algo com pouco apelo controlador?
Paulo responde: “Pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais
fracos são necessários; e os que nos parecem menos dignos no corpo, a estes damos
muito maior honra; também os que em nós não são decorosos revestimos de
especial honra” (1 Co 12.22-23). A mentalidade do consumidor e a mentalidade da
submissão à totalidade do corpo são diametralmente opostas uma a outra. Uma
emprega a igreja e todos os recursos dela para o seu próprio deleite. A outra dá a si
mesma e a todos os seus recursos para a igreja, para o deleite de Deus. Submeter-se
a todo o corpo não significa apenas se submeter à sua autoridade; significa se
entregar para o seu sustento e benefício. “Seja tudo feito para edificação” (14.26).
É nesse contexto que Paulo retoma os belos versos de 1 Coríntios 13 sobre uma
festa de casamento e os lê para sua igreja local. Vocês querem exercer, praticar,
desempenhar, personificar e definir o glorioso amor do céu, ele nos pergunta?
Então, façam isso numa igreja local, numa igreja onde as facções se opõem umas às
outras (1 Co 1.12-13); onde as pessoas são arrogantes (4.8); onde os membros estão
dormindo com a mulher de seus pais (5.2); onde os membros estão processando e
defraudando uns aos outros (6.1-8); onde os membros estão ficando bêbados com o
vinho da ceia do Senhor, não deixando o suficiente para os outros (11.21-22); onde
a competição entre os dons espirituais é frequente (cap. 12, 14); onde as reuniões
são ameaçadas pela desordem (14.40); e onde alguns estão dizendo que não existe
ressurreição de mortos (15.12). Ligue-se e submeta a você mesmo e aos seus dons a
esse tipo de pessoas. Ame-os com paciência e bondade, sem inveja ou orgulho, sem
arrogância ou grosseria; sem insistir no seu próprio jeito de fazer as coisas; não com
irritação ou ressentimento; não se alegrando com a injustiça, mas regozijando-se
com a verdade.
As pessoas geralmente se queixam dos pecadores que elas encontram na igreja
local, e com boas razões. Ela está cheia de pecadores, motivo pelo qual Paulo apela
para que os crentes amem uns aos outros, suportando todas as coisas; crendo em
todas as coisas; esperando todas as coisas; perseverando em todas as coisas. Se você
não amar traidores e defraudadores como esses, não fale sobre os seus dons
espirituais, seu vasto conhecimento bíblico ou sobre todas as coisas que você faz
pelos pobres. Você é só um bronze que soa. Não fale sobre seu amor pelos crentes
de toda parte; você é apenas um címbalo que retine. Mas se você realmente praticar
o amor por um povo específico, concreto, todos cujos nomes você não consegue
escolher, então você tomará parte na definição de amor para o mundo, o amor que
caracterizará perfeitamente a igreja no último dia, porque ele retrata
perfeitamente o amor autossacrificial e misericordioso de Cristo.
Em resumo, nossas obrigações para com o corpo exigem que nos submetamos a
uma igreja local. Quando um crente se compromete ou faz aliança com uma
determinada igreja local, ele toma posse do discipulado de cada membro, “para que
não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual
cuidado, em favor uns dos outros” (1 Co 12.25). Ele sofrerá junto com aqueles que
sofrem; ele se alegrará com aqueles que são honrados (v. 26). Submeter-nos a todo
o corpo e a cada membro significa não apenas dar de nós mesmos, mas significa dar
a nós mesmos ao corpo.
4) Os mandamentos bíblicos para nos submetermos aos nossos supervisores exigem
isso. Assim como submeter-se à igreja apostólica significa se submeter de forma
concreta a uma igreja local, submeter-se a uma igreja local também envolve se
submeter a pessoas reais. Às vezes, isso significará se submeter a outro membro,
como quando um irmão ou irmã nos chama para nos desviar do pecado. Jesus disse:
“Se teu irmão pecar [contra ti], vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste
a teu irmão” (Mt 18.15). Cada membro do corpo pode exercer essa autoridade sobre
todos os outros membros do corpo exatamente porque é a autoridade de Cristo
que, enfim, governa a congregação, e cada exemplo de governo é simplesmente uma
representação do governo dele.
Ao mesmo tempo, determinados indivíduos da congregação serão e devem ser
reconhecidos pelo fato de que suas vidas apresentam um exemplo recomendável
para todo crente. Ao longo do tempo, eles têm demonstrado que suas vidas são
irrepreensíveis, que eles são irrepreensíveis, esposos de uma só mulher,
temperantes, sóbrios, modestos, hospitaleiros, aptos para ensinar, não dados ao
vinho, não violentos, porém cordatos, inimigos de contendas, não avarentos (1 Tm
3.2-3). Eles têm demonstrado a capacidade de pastorear ou governar suas famílias,
sua “pequena igreja”, conforme Lutero a chamou, o que dá credibilidade ao fato de
que poderiam pastorear a “grande igreja” (veja 1 Tm 3.4-5). Eles têm demonstrado
essas coisas ao longo do tempo. Eles não são recém-convertidos (1 Tm 3.6). Como
parte da submissão à igreja, os crentes devem se submeter a esses supervisores,
anciãos ou pastores288. Paulo os descreve como pessoas que exercem essa
“supervisão” (At 20.28). Pedro diz para a congregação estar “sujeita” aos mais
velhos (1 Pe 5.5). O autor de Hebreus diz à igreja: “Obedecei aos vossos guias e sede
submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar
contas” (Hb 13.17a). O fato de fazer isso abençoa a pessoa que se submete. O autor
continua: “Para que façam isto com alegria e não gemendo; porque isto não
aproveita a vós outros” (v. 17b). Aparentemente, a submissão aos nossos líderes é
para o nosso próprio proveito.
A autoridade dos pastores e presbíteros da igreja está baseada na autoridade que
Jesus passou para a igreja apostólica em Mateus 16? Obviamente que a Igreja
Católica Romana, e talvez outras, digam que sim, mas não estou bem certo disso. A
autoridade de Mateus 16 é o poder efetivo para ligar e desligar na terra, quando
aqui é uma autoridade que deve ser exercida por toda a igreja. Por “efetivo” quero
dizer que ela cumpre aquilo ordena. Se a igreja disser que uma pessoa está excluída,
ela está excluída. No entanto, nem nessa passagem nem em qualquer outra vemos
uma ligação entre esse alvará organizacional e o ofício do presbítero ou supervisor.
A autoridade de um presbítero ou pastor é mais orgânica. Ela é algo que é
reconhecido e afirmado pela congregação. É verdade que Jesus dá pastores e
mestres para a congregação como dá os dons e deu apóstolos e profetas (Ef 4.8-11),
mas em lugar algum somos informados de que os pastores e mestres são usados
para estabelecer o fundamento da igreja, conforme somos informados a respeito
dos apóstolos e profetas (Ef 2.20). Portanto, enquanto Roma descreve o bispo como
a essência (esse) da igreja, os protestantes dizem normalmente que os pastores e
mestres não são a essência. Cristo os deu para o benefício da igreja (bene esse). E
como tal, a autoridade deles não é efetiva. Eles não podem ordenar ou exigir
formalmente que um membro ou mesmo que a igreja faça algo, da forma como um
apóstolo podia289. Os membros da igreja são ordenados a obedecê-los, mas essa
obediência não deve ser estendida para além do que a Bíblia prescreve, pois a
autoridade é de Jesus, não do pastor. Em outras palavras, Jesus pode me ordenar a
me submeter a você, mas você não pode me ordenar a me submeter a você.
Por exemplo, um pastor não pode ordenar um crente a se casar com determinada
mulher cristã. Um pastor não pode nem mesmo ordenar efetivamente que ele não
se case com uma mulher descrente. No entanto, um pastor pode instruir um
homem crente a não se casar com uma mulher descrente, à luz das Escrituras (2 Co
6.14). Na verdade, ele deve fazê-lo; e o crente deve se submeter, porque seu pastor o
está instruindo segundo as Escrituras. Todavia, não há passagem alguma nas
Escrituras que me diga que um presbítero ou supervisor, um ou muitos, tem a
autoridade efetiva de Mateus 16 para ligar e desligar por causa de desobediência. A
igreja, é claro, tem. Ela pode excluir unilateralmente alguém de sua membresia.
À medida que comparamos a autoridade da igreja com a autoridade do
presbítero, podemos empregar a distinção atiquíssima entre a autoridade para
aconselhar e a autoridade para ordenar290. Os presbíteros têm autoridade para
aconselhar; a igreja tem autoridade para ordenar. É interessante que a interação de
Paulo com Filemon apresenta uma situação na qual ele poderia ter apelado para a
autoridade de ordenar, mas, em vez disso, ele deu um bom exemplo para os
pastores, apelandopara a autoridade de aconselhar. Ele diz a Filemon: “Pois bem,
ainda que eu sinta plena liberdade em Cristo para te ordenar o que convém, prefiro,
todavia, solicitar em nome do amor” (Fm 8-9).
Não há dúvidas de que os presbiterianos, anglicanos e outros discordarão de mim
nessa questão, visto que eles consideram que a igreja está presente na reunião ou
presente no bispo, mas é aqui que eu recomendo o modelo congregacional como
mais coerente com o Novo Testamento e como uma proteção contra abusos de
autoridade, já que a autoridade para ordenar é estendida a toda a congregação.
Em resumo, a ordem do Novo Testamento para nos submetermos aos nossos
bispos exige que nos submetamos à igreja local, mesmo que seja numa base
levemente diferente da apresentada em Mateus 16. Com certeza, todas essas
questões agem em harmonia.
5) A natureza da nossa salvação exige isso. Em vários ocasiões até aqui eu
empreguei analogias a fim de que agora estivéssemos em posição de trazer essa
questão à tona de modo mais claro. Eu disse que a igreja local deve personificar a
vida da igreja escatológica, de modo que déssemos substância à nossa profissão de
fé por meio de nossa associação com a igreja local, e que essa submissão à igreja
local é o modo de nos submetermos a Cristo. Todas essas ideias dependem do
argumento subjacente de que há uma relação entre a nossa fé e as nossas obras, e
que essa relação se expressa na diferença entre a igreja universal e a igreja local. A
nossa fé é uma fé escatológica. Ela é dada pelo céu. E essa fé escatológica, se isso for
verdade, é aplicada nas obras. Semelhantemente, a nossa membresia na igreja
universal é uma membresia escatológica. Ela também é dada pelo céu. Sendo assim,
então ela será aplicada numa membresia terrena. A igreja universal é para a igreja
local o que a fé é para as obras. Na verdade, há uma razão por que as diferenças
protestantes e católicas acerca da igreja estejam intimamente ligadas às diferenças
acerca da fé e das obras. A Igreja Católica Romana funde a igreja escatológica e a
igreja visível na terra, assim como funde a fé e as obras.
Mas uma relação paralela permanece entre a justiça declaratória que temos em
Cristo e as obras de justiça que buscamos. A primeira é dada pelo céu, a segunda nós
a realizamos. Um homem que alega ser justo em Cristo e, no entanto, não faz
esforço algum para buscar uma vida de justiça está, na melhor das hipóteses, se
autoenganando. Do mesmo modo, uma mulher que alega amar todos os crentes,
em toda parte, mas não ama sua irmã crente, está igualmente autoenganada.
Ambos são hipócritas. São crentes nominais — crentes apenas no nome — porque
sua profissão de fé não se traduz em ação ou realidade. Eles alegam ter um status
diante do trono de Deus, mas nada em suas vidas confirma a veracidade desse
status, como se Deus fosse um tolo que pudesse ser zombado (Gl 6.7). A fé deles é
sem obras, o que Tiago nos diz que é uma fé morta. É uma fé sem sentido. É uma fé
vã, mesmo que eles realmente achem que ela tem sentido. O reino de Cristo diz
respeito à realidade — uma nova realidade, não uma realidade ilusória.
O mesmo se dá com alguém que alega pertencer à igreja sem pertencer a ela.
Receio que ele se pareça muito com um crente nominal e um hipócrita. Foi dada à
igreja apostólica a autoridade para ligar e desligar. O que mais podemos concluir
sobre alguém que professa pertencer à igreja, mas não se submete à igreja
apostólica na terra? Conforme diz o apóstolo: “Aquele que não ama a seu irmão, a
quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4.20).
Cristo ama o seu povo, e ele tem a intenção de transformar e dar crescimento a
ele. Ele faz isso afirmando sua autoridade sobre eles, porque a autoridade de Cristo
é o poder da criação, o poder da vida. A autoridade de Cristo é a autorização dada a
ele pelo Pai para produzir, moldar, organizar, edificar e executar de forma geral
todas as exigências de seu amor generoso e compassivo, conforme lhe aprouver.
Espantosamente, ele passou essa autoridade para os doze primeiros homens a
quem ele salvou e lhes disse para passar essa autoridade a outros, que por sua vez a
passariam a outros, e outros, e outros. A vida e o crescimento dos cristãos
acontecem no poderoso campo de energia da autoridade da igreja, porque essa
autoridade energiza a vida. Se ficarmos fora dos guarda-chuvas da autoridade da
igreja local, estaremos nos afastando do meio ordenado por Deus para o nosso
crescimento.
A maioria dos protestantes bem treinados responderá provavelmente a essas
afirmações dizendo: “Não, é a submissão à Palavra que importa. A Palavra, e não a
igreja, é o que faz a igreja crescer.” Essa objeção está parcialmente correta. A
submissão à Palavra de Cristo converte e dá crescimento ao cristão, porque o alvo é
nos conformarmos a Cristo, e não nos conformarmos à igreja em si. Mas é a igreja
que proclama a Palavra, e é a igreja o lugar onde cada crente tem a oportunidade de
se submeter à Palavra.
Por exemplo, a Palavra nos ordena a perdoar como temos sido perdoados. Esse é
um pronunciamento de autoridade vindo de Cristo. Se nos recusarmos a perdoar
um irmão, portanto, é a igreja que agirá em nome de Cristo, primeiramente nos
exortando e, depois, disciplinando-nos por nossa falha em nos arrependermos. A
igreja pode, de uma maneira ou de outra, estar errada no exercício da autoridade
que lhe foi dada. Entretanto, Cristo deixou a igreja responsável por isso, porque é
por meio de nossa prática da submissão a outros crentes que desempenhamos
nossa obediência a Cristo. Os filhos obedecem a Deus obedecendo aos seus pais, e
isso os faz crescer. Com termos um pouco diferentes e dentro de limites diferentes,
os crentes obedecem a Deus obedecendo aos seus companheiros crentes e à igreja
como um todo, e isso nos faz crescer. Nós nos sujeitamos uns aos outros, conforme
Paulo afirma, no temor de Cristo (Ef 5.21).
A ilustração de Paulo sobre o corpo físico ilustra exatamente isso. À medida que
o pé se submete à mão, visto que o pé tem algo a ganhar com a mão diferentemente
dotada, todo o corpo cresce (1 Co 12). À medida que cada membro se submete ao
ensino dos pastores e mestres, todo o corpo cresce (Ef 4.11-12). E à medida que
cada membro se submete aos outros membros, excedendo um ao outro na
demonstração de honra, todo o corpo cresce (Rm 12.10). O nosso discipulado
pessoal com Cristo e o nosso amor pelas outras pessoas devem se basear no mesmo
ponto de vista de nossa membresia na igreja. O crescimento no amor do evangelho e
a membresia da igreja devem trabalhar juntos, assim como o conteúdo e a forma
agem juntos. A membresia da igreja — nossa submissão à igreja local — é o que
Cristo planeja para que o nosso discipulado tome forma e cresça.
Em resumo, a natureza de nossa salvação e da relação entre a fé e as obras exige
que os crentes se submetam à igreja local. A submissão a uma igreja local, ou ao que
normalmente chamamos de “associação a uma igreja local”, é a fé sendo aplicada nas
obras. Usando outra analogia, ela é a palavra ganhando substância. Um crente deve
escolher se associar a uma igreja, do mesmo modo como um crente deve escolher se
submeter a Cristo; mas, após ter escolhido a Cristo, um crente não tem outra
escolha senão escolher uma igreja para se associar.
6) A natureza da nossa nova identidade exige isso. Os oponentes da membresia
regenerada na igreja geralmente criticam a prática de seu voluntarismo, ou seja, a
ideia de que um crente deva se unir a uma igreja voluntariamente. Afinal, os
anabatistas, batistas e outros que seguiram pelo caminho da Reforma Radical
defendiam o batismo dos crentes e a membresia regenerada na igreja em oposição
ao batismo infantil. A preocupação em relação ao voluntarismo é que ele leva ao
individualismo, à ação independente e à depreciação da igreja como o povo
corporativo de Deus.
Visto que sou um batista e um congregacionalista por convicção, creio que essa
crítica é, em parte, inapropriada. Ao mesmo tempo, pode ser que alguns defensores
da membresia regenerada na igreja, ao longo da história, tenham se inclinado muito
na direção das pressuposições voluntaristas a respeito da vida na igreja local. O que
raramente é assimilado nas confissões antigas, sejam elas de igrejas independentes
ou reformadas, é a noção de que a vida cristã deve ser vivida por meio da igreja local,
porque Cristo nos fez membros do seu corpo. As confissões antigas às vezes se
referem ao mandamento de Cristo para nos unirmos às igrejas locais, mas o que
elas omitem é o fato de que esse mandamento emerge de nossa nova identidade.
Cristo nos ordena a nos unirmos ao corpo local porque já somos membros de seu
corpo. O imperativo segue o indicativo. A estrutura de Efésios 2 apresenta esse
argumento. A primeira metade do capítulo descreve a nossa reconciliação com Deus
por meio de Cristo (2.1-10). A segunda metade então explica a implicação imediata
de nossa reconciliação com Deus. Somos reconciliados com todos aqueles que do
mesmo modo pertencem a Deus: Cristo criou em si mesmo “um novo homem no
lugar dos dois povos” (Ef 2.15). Aqueles que estavam divididos anteriormente agora
são “concidadãos dos santos, e são da família de Deus” (Ef 2.19). Já que
pertencemos, devemos pertencer. A fé deve se revestir das obras.
Exatamente por causa disso, dizer que os crentes devem pertencer a uma igreja
local simplesmente porque isso é vantajoso para viver a vida cristã ou, nas palavras
de Calvino, porque isso constitui os “meios ou auxiliares pelos quais Deus nos
convida para a sociedade de Cristo e nos mantém nela”, omite a questão de que o
corpo da igreja agora é uma parte essencial da identidade cristã291. Um filho adotivo
frequenta o jantar em família com seus novos irmãos e irmãs não só porque isso é
bom para ele, mas porque isso é o que ele é: um membro da família.
OBRIGAÇÕES PESSOAIS
Suponha que eu tenha dois amigos: Shane, um amigo, membro da minha igreja
local, e Doug, membro de uma igreja local diferente. As minhas obrigações bíblicas
em relação a Shane e Doug, de um crente para com outros crentes, diferem porque
um é membro de minha igreja local e o outro não? Com certeza, eu sou chamado, se
a ocasião permitir, a fazer estas coisas para cada um deles: incentivar, amar, servir,
carregar os fardos, perdoar, repreender, emprestar dinheiro e orar. Eles, por sua
vez, são obrigados a fazer o mesmo em relação a mim, se a ocasião permitir. Por
exemplo, Paulo recomenda o exemplo dos macedônios, que doaram de forma tão
generosa para a igreja de Jerusalém (2 Co 8.1-5). Não creio que haja muita
discordância entre os crentes a respeito disso. Todos veem os mandamentos sobre
“uns aos outros” nas Escrituras e admitem que devemos amar, servir e encorajar
outros crentes, porque todos pertencemos a um único corpo em Cristo. Mas as
minhas responsabilidades bíblicas em relação aos dois homens diferem de algum
modo, no que quer que seja, porque um é membro de minha igreja local e o outro
não?
Shane e eu temos formalmente submetido nossa vida e discipulado a um grupo
de crentes específico (consistindo de presbíteros, diáconos e leigos) ao qual Doug
não tem se submetido. Isso significa que um grupo específico de crentes tem
afirmado e tomado a responsabilidade pela minha fé e pela fé de Shane de uma
maneira que não tem feito em relação à fé de Doug. Isso significa que Shane e eu
temos feito uma aliança para supervisionar o discipulado um do outro, de um modo
que não temos feito em relação a Doug — mesmo que eu ame Doug e esteja
comprometido com ele de muitas maneiras como um amigo crente. Não significa
que não somos um com Doug, em Cristo. Mas isso é simplesmente porque, nesta
terra, nenhuma igreja possui os recursos infinitos capazes de supervisionar com
responsabilidade todo peregrino. A fim de administrar responsavelmente os nossos
recursos e nosso tempo, eu concordo em ajudar a supervisionar um corpo, ao passo
que você concorda em ajudar a supervisionar outro. Esse é um esforço em equipe.
Todos nós estamos jogando para o mesmo time, mas esse time se reúne em
inúmeros locais, com inúmeros técnicos.
A prática da disciplina na igreja apresenta uma ilustração concreta de como os
nossos compromissos em relação um ao outro diferem. Como membros da mesma
igreja, Shane deve prestar contas a mim, e eu, a Shane, de um modo que nenhum de
nós dois deve fazer com Doug. Se Doug começar a se envolver num estilo de vida
pecaminoso, sem dúvidas eu deveria ter algum nível de obrigação em repreendê-lo
como um irmão crente, quem sabe severamente. Dependendo das circunstâncias de
seu pecado, eu até poderia dizer: “Doug, dadas as decisões de seu estilo de vida sem
arrependimento, não sei por que você continua a se chamar de crente.” No entanto,
esse é o limite. Como um crente em relação a outro, isso é tudo o que posso fazer.
Meus poderes e responsabilidades vão até aqui e não vão além disso. Se Shane
começar a se envolver num estilo de vida pecaminoso, sem arrependimento, a Bíblia
me concede um nível ainda maior de responsabilidade e autoridade.
Eu seria chamado a participar, juntamente com minha igreja local, da execução
de uma cerimônia pública que tivesse todo o significado simbólico que o batismo de
Shane teve, mas que indicasse que Shane havia tomado uma direção oposta a ele.
Assim como o batismo de Shane simbolizava sua reconciliação com Cristo e seu
recebimento na comunhão da igreja universal de Cristo, o ato coletivo de disciplina
ou excomunhão da igreja local simbolizaria seu distanciamento de Cristo e seu
afastamento da comunhão da igreja universal de Cristo. Assim como o batismo,
esse é um ato público, executado localmente, que tem um significado universal. A
responsabilidade e a autoridade não pertencem a mim como indivíduo, mas as
compartilho com toda a congregação com a qual Shane e eu temos um compromisso
especial. Conforme temos visto, Jesus deu à igreja local um poder que ele não dá às
pessoas individualmente — o poder para ligar na terra algumas coisas e para
desligar outras (Mt 18.18, cf. 16.19).
AS OBRIGAÇÕES DA IGREJA
Como então as igrejas devem ver os crentes que pertencem a outras igrejas? Por
exemplo, minha igreja deve respeitar a confirmação que a igreja de Doug deu a ele?
Ele pode receber a Ceia do Senhor em nossa igreja? Se ele for um membro batizado
de outra igreja local que prega o evangelho, sim292. Se o membro de igreja Doug
estiver visitando nossa igreja, devemos recebê-lo como um irmão, e isso deve ser
assim não apenas porque ele professa a fé, mas porque outra congregação que
oferece supervisão a esse irmão o confirma na fé. Isso testemunha em favor dele.
É isso o que vemos no Novo Testamento. Paulo diz a Filemon para receber
Onésimo como um irmão (Fm 17), e Paulo parece pretender que a igreja que se
reúne na casa de Filemon observe se ele fará isso (Fm 2). João se alegra porque a
igreja de Gaio recebeu amorosamente os obreiros que a igreja de João havia enviado
(3 Jo 3-8), e ele despreza Diótrefes por não lhes ter dado acolhida (3 Jo 10). A linha
divisória da confirmação, da supervisão e da submissão praticada por uma igreja
local de modo algum significa que a igreja pode isolar os membros de outras igrejas.
Na verdade, é exatamente o oposto. Ela deve respeitar a autoridade de todas as
outras igrejas que creem no evangelho e deve receber seus membros, exatamente
como uma família deve receber convidados.
Ao mesmo tempo, essa aceitação deve ser temporária. Quanto mais um membro
ficar longe de sua igreja de origem, menos essa igreja de origem se tornará capaz de
lhe oferecer uma supervisão significativa. No final, uma igreja que tiver acolhido
alguém de outra igreja deve encorajar esse indivíduo a voltar para o lugar e para o
povo com quem ele se comprometeu ou a transferir sua membresia, ou seja, ele
deve estar sujeito à supervisão da nova igreja. De qualquer modo, o indivíduo deve
estar vivendo em submissão ao corpo de Cristo, submetendo-se a uma
manifestação específica desse corpo.
Justamente por isso, uma igreja deve respeitar e prestar atenção ao ato
disciplina de outra igreja. Se Doug tiver que suportar a disciplina de sua igreja, a
minha igreja deve respeitar a autoridade daquela igreja. É isso o que encontramos
nas Escrituras. O apóstolo João diz a outra igreja: “Se alguém vem ter convosco e
não traz esta doutrina, não o recebais em casa [provavelmente significando igreja],
nem lhe deis as boas-vindas” (2 Jo 10). João pode não estar se referindo a um
indivíduo disciplinado em si, mas ele está se referindo a um mestre que não leva o
evangelho apostólico e, nesse sentido, ele está sob a disciplina de toda igreja
apostólica. Tal indivíduo não deve ser acolhido ou recebido por uma igreja local.
Isso não significa que um indivíduo que foi tratado e disciplinado injustamente
por uma igreja deve ser evitado em toda igreja local. Nada impede uma igreja de ter
um pouco de cautela nessas questões. Na verdade, toda igreja deve fazer isso, a fim
de administrar adequadamente a sua autoridade.
Ao mesmo tempo, devemos enfatizar o fato de que as igrejas hoje em dia
precisam retomar o respeito e a consideração que elas devem a outras congregações
que também pertencem ao corpo de Cristo. Por exemplo, quando um crente
batizado deixa uma igreja e se apresenta para se tornar membro de outra igreja, a
igreja que o recebe reforça potencialmente uma concepção individualista de
cristianismo, por não demonstrar interesse algum na confirmação prévia que a
outra igreja fez do indivíduo. Seria errado exigir que as pessoas mostrassem para a
nova igreja em potencial a sua licença ou identidade, ou credencial da igreja
anterior, da forma como podemos pedir para ver o distintivo de um policial à
paisana. Afinal, toda igreja local tem autoridade para outorgar tal licença. Ainda
assim, uma igreja que falha em perguntar a um cristão batizado sobre sua afiliação
com a igreja anterior pode estar comunicando implicitamente que todos os crentes
são agentes independentes, livres para ir e vir quando desejarem.
Em resumo, toda igreja local deve adotar uma postura de abertura e de amor,
bem como de consideração e respeito em relação a outras igrejas e seus membros,
visto que todos nós juntos somos participantes de um único corpo de Cristo.
Talvez, poucas igrejas tenham exemplificado melhor essa postura do que as igrejas
da Macedônia, a quem Paulo encontra “pedindo com muitos rogos a graça de
participarem da assistência aos santos”, apesar de sua “profunda pobreza” (2 Co
8.4).
Ao mesmo tempo, a aliança de união entre um crente e uma igreja local significa
que adquirimos mais responsabilidade — tanto formal quanto informalmente —
pelos membros de nossa própria igreja do que pelos membros de outras igrejas. Isso
é o que as famílias fazem, é lógico, ao cuidarem de seus filhos. Não é que eu, sendo
pai, não me importe com os filhos de outras famílias ou que não me daria
sacrificialmente a eles se a ocasião o exigisse. Todavia, Deus me tem feito o
despenseiro exclusivo de meus filhos, o que significa que devo dar mais tempo e
amor a eles do que aos filhos dos outros. Isso também significa que estou
encarregado de instruí-los e discipliná-los de um modo que não estou encarregado
de fazer com os filhos dos outros.
CONCLUSÃO
Em 1 Coríntios 5, Paulo implora para que os membros da igreja de Corinto
protejam o evangelho, não mais se identificando com o homem que cometeu um
pecado que até os descrentes questionariam. Eles são o povo da cidade de Corinto
que publicamente se “reúne no nome de nosso Senhor Jesus”, por meio da
autoridade do alvará de Cristo. Por essa razão, eles são responsáveis, em nome de
Jesus, por garantir que esse homem não tenha permissão para se identificar
publicamente com Jesus. Eles devem prestar atenção ao alvará, rompendo sua
ligação com o seu nome corporativo. Eles devem retirar sua confirmação e
supervisão. Devem excluí-lo. Devem afastá-lo da membresia. A profissão de fé dele
não parece mais fidedigna, porque suas decisões na vida se parecem com as de
alguém que está no caminho da condenação. Paulo não pode saber com certeza se
esse homem é ou não um crente, mas a igreja ainda assim precisa falar em nome de
Jesus. Visto que esse homem está agindo sem arrependimento, como um
descrente, Paulo, em amor, exorta-os a tratá-lo como tal, expulsando-o. O alvo de
Paulo vai claramente além do de manter as pessoas juntas. Ele está interessado em
distinguir o povo de Deus, por causa dos crentes na igreja, do público de Corinto
como um todo, do nome de Cristo e desse homem — a fim de preservar e proteger
o evangelho.
Paulo sabe que existe um relacionamento simbiótico entre a forma e o conteúdo
da igreja, entre a sua estrutura e seu evangelho. Não podemos jogar as questões
sobre a estrutura da igreja na categoria das coisas “secundárias e sem importância”
e esperar preservar o evangelho diante dos hipócritas e hereges. Certamente as
igrejas precisam “renovar os seus pontos essenciais” e articular a doutrina
corretamente, a fim de preservá-los. Mas as igrejas também precisam de limites,
estruturas e autoridade. Não estou me referindo apenas aos limites doutrinários
designados pelos líderes das várias sociedades e movimentos do evangelicalismo ou
dos limites que um seminário possa impor. Refiro-me aos limites em torno da
instituição bíblica que são as igrejas locais. Essa é a ferramenta que Cristo deu à
igreja na terra para impor tais afirmações de fé e principais pontos doutrinários,
visto que Satanás usa os hipócritas e hereges para destruir a igreja.
Quando um seminário caminha para a falta de ortodoxia, por exemplo, a falha
não recai, enfim, no seminário; ela recai sobre qualquer igreja que esses professos
desviados frequentam293. O teólogo Carl Trueman esclarece exatamente isso
quando diz:
O problema com a forma como o evangelicalismo funciona hoje é que ele tem enfraquecido a
igreja. Porque ele exige que releguemos as particularidades eclesiásticas, como os pontos de vista
sobre o batismo e o governo da igreja. O evangelicalismo e suas instituições não podem, em
tese, substituir a igreja. Além disso, todo o problema com a prestação de contas é uma ideia que
é sempre discutida nas organizações paraeclesiásticas, desde os seminários até as comunhões
acadêmicas como a Evangelical Theological Society (Sociedade Teológica Evangélica). O
problema é que, na prática, as instituições evangélicas chegam a substituir a igreja, mesmo que
elas não tenham sido designadas para desempenhar esse papel. Para alguns, elas se tornam o
palco principal das ação, os fóruns nos quais alguém insignificante pode ser um figurão, e o
desviado e herege pode se exibir sem prestar contas adequadamente. Para outros, elas se
tornam os principais centros de identidade cristã, razão pela qual as pessoas se tornam primeiro
evangélicas, e somente depois se tornam presbiterianas, batistas ou pentecostais294.
225. Citações extraídas de William Faulkner, As I Lay Dying, New York: Vintage International, 1990, pp.
177-79, traduzido para o português como Enquanto Agonizo, Porto Alegre: L&PM, 2009.
226. Frederick L. Gwynn, et al., Eds., Faulkner in the University [Faulkner na Universidade],
Charlottesville, VA: University of Virginia Press, 1959, 114.
227. “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel,” in The Futures of Evangelicalism:
Issues and Prospects [Evangelicalismo e a Igreja: O que Acompanha o Evangelho em O Fututo do
Evangelicalismo: Questões e Perspectivas], ed. Craig Bartholomew, Robin Parry e Andrew West, Grand
R apids: Kregel, 2003, p. 46 nota 13.
228. Ibid., pp. 46-55.
229. J. L. Reynolds, “Church Polity or The Kingdom of Christ, In its Internal and External
Development” [“Política Organizacional da Igreja ou o Reino de Cristo em seu Desenvolvimento Interno
e Externo”] in Polity [Política Organizacioal], Ed. Mark Dever, Washington DC: Center for Church
Reform, 2001, p. 296.
230. Veja a obra de Jonathan Pennington sobre o contraste entre o céu e a terra em Heaven and Earth
in the Gospel of Matthew [O Céu e a Terra no Evangelho de Mateus], Grand R apids, Baker, 2009; uma
versão breve de seu argumento pode ser encontrada em “ The Kingdom of Heaven in the Gospel of
Matthew ” in Southern Baptist Journal of Theology [Periódico de Teologia dos Batistas do Sul], vol. 12,
Spring 2008; pp. 44-51.
231. Veja também a linguagem sobre “filhos” em Mt 5.9, 16, 45, 48; 6.1, 8-9, 26, 32; 7.11; 10.29.
232. Veja Mt 6.1, 2-3, 5-6, 16-17; 13.24-30, 36-43, 47-50; 22.1-14; 23.3, 8-10; 24.45-51; 25.1-13.
233. Frank Thielman, Theology of the New Testament, Grand R apids: Zondervan, 2005, pp. 105-9,
traduzido para o português como Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2007.
234. O comentarista John Nolland descreve a frase de Mateus “em nome de” como uma expressão de
solidariedade com Jesus em “ The Gospel of Matthew ” in The New International Greek Testament
Commentary [O Evangleho de Mateus no Comentário do Novo Testamento Grego Internacional],
Grand R apids: Eerdmans, 2005, 1268.
235. Para resumir esta seção, vale a pena citar um trecho completo de Jonathan Pennington: “Outra
função evidente do contraste entre o céu e a terra em Mateus é oferecer uma identidade clara dos
seguidores de Jesus. Mateus deseja que seus ouvintes compreendam que aqueles que seguem a Cristo são
o povo verdadeiro de Deus e quer encorajá-los com essa realidade. Jesus define esse novo, ou
verdadeiro, povo não por meio de uma linhagem étnica, que incluía ter Abraão como seu pai (3.9-10,
8.11-12, 23.9), nem por meio de posições de honra (23.2-11), mas como aqueles que fazem a vontade do
Pai que está no céu (7.21, 12.50), como aqueles cujas vidas produzem os frutos de quem segue de coração
os mandamentos de Deus (3.7-10, 7.15-23, 12.33-38). Esse tema cria uma identidade guiada pelo céu
para os discípulos em meio a um mundo hostil. O mundo é representado como estando dividido em
duas partes — céu e terra — e os discípulos são o povo verdadeiro de Deus, ajustados com o céu, ao
contrário dos governantes (romanos e judeus) da terra. Desse modo, o tema céu-terra, em Mateus, é
uma parte importante de sua eclesiologia (veja principalmente 16.17-19, 18.14-20). “ The Kingdom of
Heaven in the Gospel of Matthew ” [O Reino dos Céus no Evangelho de Materus], p. 49.
236. A rocha como sendo “Pedro” e a rocha como sendo “a confissão de Pedro” são, quem sabe, as duas
interpretações mais comumente apresentadas.
Outras interpretações também têm sido propostas, como a do próprio Jesus ou de seu ensino como
sendo a rocha (cf. Mt 7.24). Por exemplo, Robert H. Gundry, Matthew [Mateus], 2a ed., Grand R apids:
Eerdmans, 1982, 1994, pp. 333-34.
237. Por exemplo, D. A . Carson escreve: “Se não fosse pelas reações protestantes contra os extremos da
interpretação católica romana, seria de se duvidar que muitos tomassem “rocha” como algo ou alguém
que não fosse Pedro”. “Matthew ” in The Expositor’s Bible Commentary [Comentário Bíblico
Expositivo], vol. 8, Grand R apids: Zondervan, 1984, p. 368. Veja também Craig Blomberg, Matthew,
New American Commentary [Novo Comentário Americano], Nashville: Broadman, 1992, pp. 251-53;
Leon Morris, The Gospel According to Matthew [O Evangelho Segundo Mateus], Grand R apids:
Eerdmans, 1992, pp. 422-24; Donald A . Hagner, Matthew 14-28, Word Biblical Commentary
[Comentário Bíblico de Palavras], vol. 33b, Dallas: Word, 1995, p. 470; Craig S. Keener, A Commentary
on the Gospel of Matthew [Um Comentário sobre o Evangelho de Mateus], Grand R apids: Eerdmans,
1999, p. 427; R . T. France, “ The Gospel of Matthew ” [O Evangelho de Mateus], The New International
Commentary on the New Testament [O Novo Comentário Internacional do Novo Testamento], Grand
R apids: Eerdmans, 2007, pp. 620-23; David L. Turner, “Matthew ” [Mateus], Baker Exegetical
Commentary on the New Testament [Comentário Exegético de Baker sobre o Novo Testamento],
Grand R apids: Baker, 2008, 404-5, 406-7.
238. Keener, Commentary on the Gospel of Matthew [Comentário do Evangelho de Mateus], p.427;
ênfase no original. Sugestões semelhantes são feitas por Morris, Gospel According to Matthew [O
Evangelho Segundo Mateus], p. 423; e Nolland, The Gospel of Matthew [O Evangelho de Mateus], p.
669.
239. In The Church, Contours of Theology [Na Igreja, Esboços de Teologia], Ed. Gerald Bray, Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1995, p. 40; veja também Kevin Giles in W hat on Earth Is the Church? An
Exploration in New Testament Theology [O Que É a Igreja na Terra? Uma Exploração da Teologia do
Novo Testamento], 1995; reimpressão: Eugene, OR: Wipf & Stock, 2005, p. 54.
240. Para uma discussão mais proveitosa sobre Pedro como “símbolo” versus Pedro como “alguém sem
igual”, veja Carson, “Matthew ” [Mateus], p. 364; ou Ulrich Luz, Matthew 8-20, tradução de James E.
Crouch, Hermeneia: Minneapolis, MN: Fortress, 2001, pp. 366-68.
241. O comentarista Ulrich Luz liga de forma concisa os versículos 18 e 19, dizendo: “Aquilo que o
versículo 18a expressou de modo estrutural, o 19 diz de forma funcional. Agora, a função de Pedro como
uma rocha está determinada”, ou seja, isso é o que Pedro faz como o fundamento; in Matthew 8-20, p.
364.
242. O que são as chaves? As chaves foram dadas exclusivamente a Pedro ou a todos os apóstolos? Que
relação há entre a autoridade das chaves e a autoridade para ligar e desligar? Qual é objeto — seja ele
qual for — do ligar e desligar? O particípio perfeito passivo deve ser traduzido? Qual é a relação entre a
ação de Pedro na terra e as decisões tomadas no céu?
243. Turner, Matthew, p. 405.
244. Craig Blomberg, “Matthew,” in Commentary on the New Testament Use of the Old Testament
[Mateus no Comentário Sobre o Uso que o Novo Testamento Faz do Antigo Testamento], ed. G. K .
Beale and D. A . Carson, Grand R apids: Baker, 2007, p. 35; W. D. Davies and Dale C. Allison Jr.,
Matthew, vol. 2, The International Critical Commentary [Comentário Crítico Internacional], ed. J. A .
Emerton, et AL; Edinburgh: T&T Clark, 1991, p. 603.
245. (1) Jesus fez a pergunta aos discípulos; (2) Pedro respondeu provavelmente em nome de todos eles;
(3) Jesus diz a todos eles para guardarem silêncio sobre a resposta de Pedro. Clowney também
argumenta que “Pedro não é a rocha em contraste com os outros onze, mas em contraste com aqueles
que alegam ter a chave do conhecimento (Lc. 11.52), assentar-se na cadeira de Moisés (Mt 23.1-2) e ser
a descendência de Abraão (Jo 8.33)”. Edmund Clowney, “ The Church as a Heavenly and Eschatological
Entity” [A Igreja como uma Entidade Celestial e Escatológica] in The Church in the Bible and the World
[A Igreja na Bíblia e no Mundo], Ed. D. A . Carson, 1987; reimpressão Eugene, OR: Wipf & Stock, 2002,
p. 40.
246. Mais especificamente, a igreja é “apostólica” porque (1) ela é edificada sobre o fundamento dos
apóstolos (Ef 2.20; Ap 21.14) e (2) porque ela guarda e proclama o ensino dos apóstolos (2 Tm 1.13-14).
A Igreja Católica Romana acrescentou um terceiro elemento a isso, a saber, a sucessão apostólica por
meio do suposto ofício papal de Pedro.
247. Carson descreve 18.18 como uma “aplicação especial” da autoridade das chaves em 16.19, em
Matthews, p. 374.
248. Discordo de Carson, para quem o uso de eclesia nos capítulos 16 e 18 “não dá ênfase à instituição,
organização, forma de adoração ou a uma sinagoga separada” (“Matthew ”, p. 369). Carson argumenta
que o contexto no qual Jesus utiliza a palavra edificar (16.18) não aponta necessariamente para algo
institucional, visto que a ideia de “edificar” um povo brota do Antigo Testamento (ele destaca Rt 4.11; 2
Sm 7.13-14; 1 Cr 17.12-13; Sl 28.5; 118.22; Jr 1.10, 24.6, 31.4, 33.7; Am 9.11). Talvez ele queira dizer
algo diferente do que eu quero dizer com “instituição”, mas gostaria de usar a palavra “instituição” para
descrever elementos da vida conjunta do Israel do Antigo Testamento; elementos representados em
algumas dessas mesmas passagens (por exemplo, as estruturas de autoridade, limites de membresia, leis
que são aplicáveis somente aos membros). Se for esse o caso, então parece que aquilo que venho
chamando de uma mudança de forma de governo quase que ordena a substituição de um conjunto de
estruturas institucionais por outro. Em resumo, não basta dizer que o envolvimento de pessoas significa
que não há “instituição”, conforme admitirei em meu argumento ao longo desta seção.
249. Por exemplo, veja o Capítulo 30, “Of Church Censures”, da Confissão de Westminster, ou a Questão
83 do Catecismo de Heidelberg.
250. Por exemplo, Davies e Allison escrevem: “Em nossa estimativa, é mais natural pensar no versículo
19a como sendo explicado pelo que se segue: ter as chaves é ter o poder de ligar e desligar.”, in Matthew,
p. 254.
251. O próprio desafio de fazer isso parece levar aqueles que estão dentro da tradição crítica a fugirem
das respostas, quer seja nas fontes de informação, quer seja nas críticas redigidas; veja, por exemplo,
Davies e Allison, Matthew, pp. 640-41.
252. Por exemplo, Luz, Matthew 8-20, pp. 362-63; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 670-72.
253. Veja nota 24 acima.
254. Davies e Allison, Matthew, p. 603
255. Davies e Allison apresentam treze possibilidades, ibid., pp. 630-32.
256. Considere, por exemplo, que a palavra variavelmente traduzida como “violar”, “infringir” ou
“anular”, em Mateus 5.19 (“aquele, pois, que violar um destes mandamentos”), é a mesma palavra para
“desligar” (Iyo), a qual se refere claramente a um mandamento. Discussões sobre esse ponto podem ser
encontradas na maioria dos comentários ou nos dicionários teológicos de grego, como o Gerhard Kittel’s
Theological Dictionary of the New Testament [Dicionário Teológico do Novo Testamento] ou Colin
Brown’s Dictionary of New Testament Theology (traduzido para o português como Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 2000), no registro da palavra deo
e lyo. Veja também BDAG (léxico Grego/Português de Bauer).
257. Por exemplo: Davies and Allison, Matthew, pp. 638-39; France, The Gospel of Matthew, pp. 625-
26.
258. Por exemplo, Luz, Matthew 8-20, 365; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 677-82.
259. Por exemplo, Carson, “Matthew ”, p. 372; Blomberg, Matthew, p. 254; Keener, Commentary on
the Gospel of Matthew, p. 430; Turner, Matthew, 408. Essa também parece ter sido a posição de pelo
menos alguns batistas ao longo da história. Em 1697, o batista Benjamin Keach escreveu: “O Poder das
Chaves ou de receber pessoas na congregação e excluí-las é confiado à Igreja” (“A glória da verdadeira
igreja e sua demonstração de disciplina” in Dever, Polity, 71). O pastor batista Benjamin Griffith
escreveu de forma semelhante em 1743: “As chaves são o poder de Cristo, o qual ele deu a toda
congregação em particular, para abrir-se e fechar-se a si mesma, por causa do alvará e do poder
supracitado... elas são capacitadas para receber novos membros e para excluir os membros indignos,
conforme a situação exija”. In Short Treatise Concerning a True and Orderly Gospel Church [Um Breve
Tradado Sobre a Igreja Evangélica Verdadeira e Oficial], replublicado em Dever, Polity, p. 99.
260. As raízes das palavras para ligar e desligar (deo e lyo) são geralmente usadas no Novo Testamento
em referência a pessoas. Mateus utiliza a palavra ligar com referência a pessoas em 12.29, 14.3, 22.13 e
27.2. Ele não usa a palavra “desligar” nesse contexto, mas, em 21.2, ele utiliza “ligar e desligar”, juntas,
para se referir ao fato de amarrar ou desamarrar um jumento. A raiz da palavra “desligar” é geralmente
usada no Novo Testamento para se referir às leis ou aos mandamentos (exemplo, Mt 5.19), mas a raiz
da palavra ligar, que é usada quarenta vezes, é, de fato, usada somente para se referir a animais ou
pessoas (independentemente dos versículos em questão), com uma única exceção. A única exceção é no
contexto do casamento e, até certo ponto, ela tem aplicação direta a uma pessoa: “a mulher casada está
ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive” (Rm 7.2).
261. Carson adverte contra a falácia do estudo das palavras: “Nessa falácia, um intérprete assume
falsamente que as palavras sempre ou quase sempre possuem um significado técnico — um significado
que geralmente se origina de um subconjunto de evidências ou da teologia sistemática pessoal do
intérprete”. Exegetical Fallacies, 2a ed., Grand R apids: Baker Academic, 1996, p. 45, traduzido para o
português como Os Perigos da Interpretação Bíblica. 2. ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
262. Reconhecidamente, existem maneiras diferentes de chegarmos à mesma conclusão. Por exemplo,
Ulrich Luz insiste em que ligar e desligar tem a ver com a interpretação da Lei, mas é preciso admitir
deduz da metáfora das chaves algo semelhante ao que acabei de dizer: “Pode-se concluir a partir desse
texto que é tarefa de Pedro abrir o Reino dos Céus para as pessoas, e fazê-lo por meio de sua
interpretação conclusiva da Lei” (Mattew 8-20, p. 365, ênfase minha).
263. Davies e Allison, Matthew, p. 635; Luz, Matthew 8-20, p. 364.
264. Nolland, The Gospel of Matthew, p. 681.
265. Mais adiante, farei uma distinção entre a concepção católica romana e a protestante acerca da igreja
como o procurador terreno.
266. Compare, por exemplo, Luz, Matthew 8-20, p. 364, e France, The Gospel of Matthew, p. 625, com
Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 676, 681.
267. Morris, The Gospel According to Matthew, p. 427. Craig Keener diz algo semelhante: “Em ambas
as funções — na de avaliar os que entram e aqueles que já estão na igreja — o povo de Deus deve agir
com a autoridade do tribunal celestial... Por essa razão, Pedro deve aceitar na igreja somente aqueles que
compartilham de sua confissão sobre a verdadeira identidade de Jesus.” (Commentary on the Gospel of
Matthew, p. 430); cf. João 20.22-23; veja também Turner, Matthew, p. 408.
268. Luz, Matthew 8-20, p. 365; Nolland, The Gospel of Matthew, pp. 672; Davies e Allison, Matthew,
p. 639.
269. Michael Horton resume de maneira ordenada o poder das chaves desse modo: “O poder das chaves
do reino é exercido por meio da pregação, do batismo e da admissão (ou rejeição) na Comunhão.” People
and Place [Pessoas e Lugares], Louisville: Westminster, 2008, p. 243. Além disso, a ligação entre a
ordenança e o exercício do poder das chaves possui uma posição respeitável na história da interpretação.
Por exemplo, lemos na Confissão de Augsburgo: “O poder das chaves ou dos bispos é usado e exercido
somente pelo ensino e pregação da Palavra de Deus, e pela administração dos sacramentos... Desse
modo, são transmitidas não coisas corpóreas, mas dons eternos, a saber, a retidão eterna, o Espírito
Santo e a vida eterna. Esses dons não podem ser obtidos a não ser por meio do ofício da pregação e da
administração dos santos sacramentos.” Artigo 28, “Power of the Bishops”, Creeds of the Churches
[Credos das Igrejas], 3ª ed., Ed. John H. Leith, Louisville: Westminster, 1982, p. 98.
270. Muito provavelmente traduzi-los como futuro simples — “ligares”/“será ligado” — parece-me mais
apropriado dado o versículo que se segue: 18:18: “Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós,
sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida
por meu Pai, que está nos céus” (v. 19). Em primeiro lugar, a frase no indicativo “ser-lhes-á”, do
versículo 19, ocorre no mesmo tempo verbal e aspecto (futuro médio) que os indicativos (“será”),
precedendo os particípios do versículo 18. Em segundo lugar, esse versículo afirma que as decisões na
terra serão tomadas no céu pelo Pai. Isso se harmoniza com a promessa de Jesus, no capítulo 16, de que
as portas do inferno não prevalecerão contra essa igreja — ele está falando da verdadeira igreja, não de
algumas falsas igrejas contra as quais o inferno, sim, prevalecerá.
271. De fato, observe que a referência no tempo passado é mais tensa, provavelmente porque, mais
uma vez, uma autoridade representativa, embora seja eterna em um sentido, tem um aspecto presente
e futuro. Sua vindicação acontece quando a autoridade suprema retorna.
272. Pelo menos desde Cipriano a Igreja Católica Romana vem utilizando a metáfora da igreja como uma
mãe: “ Você não poderá ter Deus como seu Pai se não tiver a igreja como sua mãe”, Cipriano, The Unity
of the Catholic Church, Ancient Christian Writers [A Unidade da Igreja Católica: Antigos Escritores
Cristãos], traduzido por Maurice Bévenot, New York: The Newman Press, 1956, p. 48 (seção 6).
Evidentemente, a “metáfora” é uma versão ainda mais forte do papel de representante do que a de um
corretor de imóveis. O Catecismo da Igreja Católica, que traz a Imprimi Potest de Joseph R atzinger,
define ligar e desligar desta forma: “As palavras ligar e desligar significam: quem quer que você exclua da
sua comunhão será excluído da comunhão com Deus; quem quer que você receba de novo em sua
comunhão, será bem recebido de volta na comunhão dele. A reconciliação com a Igreja é inseparável da
reconciliação com Deus.” (itálicos no original); Catecismo da Igreja Católica, New York: Doubleday, 1995,
403.
273. Os críticos da membresia regenerada da igreja às vezes encarregam seus defensores de fazer essa
reivindicação; por exemplo, veja os comentários de James Bannerman na nota 51.
274. Considero a questão da discordância da autoridade na igreja no Capítulo 7.
275. É exatamente nesse ponto que os críticos presbiterianos da membresia regenerada da igreja me
parecem estar mal orientados. Veja, por exemplo, o livro do presbiteriano James Bannerman, The Church
of Christ [A Igreja de Cristo], vol. 1, Edinburgh: Banner of Truth, 1991, pp. 73-80. A questão da
membresia regenerada da igreja é simplesmente que a igreja visível aspira representar a igreja invisível
da forma mais rigorosa possível, não porque uma igreja pode dar “testemunho do trabalho secreto de
Deus feito na alma de um irmão” (79), mas porque as igrejas devem fazer exatamente o que prescreve
Bannerman — tentar avaliar “as profissões de fé inteligentes” (74). A “tendência donatista”, pela qual
ele e outros criticam a membresia regenerada da igreja, parece omitir a distinção entre o esforço e a
expectativa de ter uma igreja totalmente regenerada.
276. O que sempre foi um tanto surpreendente para mim é Calvino ter utilizado a metáfora de Cipriano,
da igreja como mãe. Falando da igreja visível, Calvino diz: “Pois não há outra forma de entrar na vida a
não ser que essa mãe nos conceba em seu ventre, faça-nos nascer e nos nutra em seu peito”, Institutes, p.
1016. Reconheço que Calvino tinha em mente coisas bastante diferentes das que tinha a Igreja Católica
Romana, desejando afirmar o papel instrumental da igreja em nossa salvação. No entanto, essa
linguagem sobre nascimento dá um crédito indevido à igreja. O Espírito Santo é quem faz com que
nasçamos de novo (Jo 3.1-8). O papel instrumental da igreja é mais bem descrito da forma diplomática e
declarativa.
277. John H. Leith, Creeds of the Churches, pp. 156-57.
278. George Barna, Revolution, Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, pp. 37-38, traduzido para o português
como Revolução, Santo Amaro, SP: Abba Press, 2007.
279. Novamente, Atos 9.31 é o único exemplo que conheço dessa ocorrência. Entretanto, F. F. Bruce
descreve esse texto como uma referência à igreja de Jerusalém, agora dispersa no capítulo 9, o que faria
sentido à luz do fato de que a última referência à “igreja” é a da igreja de Jerusalém sendo perseguida e
dispersada por Saulo. Isso parece razoável quando comparamos Atos 8.3 com Atos 9.31. The Book of
Acts, New International Commentary on the New Testament, Grand R apids: Eerdmans, 1988, p. 196.
280. Veja Miroslav Volf, After Our Likeness, (Grand R apids: Eerdmans, 1998), pp. 130-31.
281. Tim Chester e Steve Timmis, Total Church, W heaton, IL: Crossway, 2008, p. 18.
282. Observe o título perspicaz da teologia de Michael Horton sobre a igreja, People and Place: A
Covenant Ecclesiology.
283. John Angell James, Christian Fellowship [Comunhão Cristã] ou The Church Member’s Guide [Guia
para o Membro da Igreja], edição e resumo de Gordon T. Booth, extraído da 10a edição do vol. 11 do
livro Works of John Angell James [As Obras de John Angell James], 1861, Shropshire, England: Quinta
Press, 1997, p. 7.
284. Clowney, “ The Church as a Heavenly and Eschatological Entity”.
285. Veja Ibid., pp. 93-98.
286. Veja também 1 Co 10.32, 11.22, 15.9; 2 Co 2.1; Gl 1.13; Fl 3.6; 1 Tm 3.15.
287. Para um exemplo de alguém que opta por uma concepção de não existência de autoridade na
Trindade e na igreja, o que acaba por produzir uma concepção de ecesia que, de alguma forma, leva a ter
algum conceito de “ajuntamento” real, Kevin Giles, W hat on Earth Is the Church? Ele escreve: “A
maioria dos usos da palavra eclesia nos escritos de Paulo são utilizados para crentes de forma geral, sem
nenhuma alusão ao fato de que eles se eventualmente se encontravam cara a cara. Isso significa,
portanto, que o sentido de ‘assembleia’ nesses exemplos desapareceu completamente” (121). Não existe
assembleia? Isso não significa que minha vida cristã passa a girar toda ela ao redor de mim mesmo, que
fica no controle de tudo? Temo que os teólogos que, por razões compreensíveis, almejam o
igualitarismo, acabem ironicamente com um atomismo — um tipo de “sacerdócio para todos os crentes”
reductio ad absurdum.
288. Visto que os três títulos para supervisor ou bispo (episcopos), presbítero (presbuteros) e pastor
(poimaim) são utilizados de modo intercambiável no Novo Testamento, entendo que eles se referem ao
mesmo ofício. Veja, por exemplo, At 20.17 e 20.28; 1 Pe 5.1-2; ou compare 1 Tm 3.1 e Tt 1.5.
289. Veja At 16.18; 1 Co 5.3; 2 Co 2.10; 8.8; Fl 4.8; 2 Ts 4.4, 6, 10.
290. Alguns poderiam dizer que a autoridade para aconselhar não é autoridade, por exemplo, James
Bannerman, The Church of Christ, vol. 2, Carlisle, PA: Banner of Truth, 1974, pp. 239-40.
291. Veja Kevin Vanhoozer, “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel” in The
Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects, Grand R apids: Kregel, 2003. Cf. Michael Sandel,
Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982.
292. Para minha discussão sobre como esse assunto diz respeito à Ceia do Senhor e sobre “restringir a
ceia”, veja o capítulo 6.
293. Esse argumento surgiu com Mark Dever.
294. Carl Trueman, “Confessions of a Bog-Standard Evangelical” [Confissões de um Evangélico Comum],
in Reformation 21: The Online Magazine of the Alliance of Confessing Evangelicals [Reforma 21:
Revista Online da Aliança dos Evangélicos Confessos], assunto 28 (Janeiro de 2008), disponível em:
<http://www.reformation21.org/Counterpoints/ Counterpoints/373/vobId__6997/>.
Capítulo 5
A ALIANÇA DO AMOR
É por isso que Lucas podia dizer que Saulo estava “assolando a igreja”, ao
entrar pelas casas e arrastar seus membros para a prisão (At 8.3). Os indivíduos
que estavam sendo perseguidos são identificados como representantes da igreja
local em Jerusalém.
Paulo podia se referir a um cristão dormindo com uma prostituta como se ele
estivesse unindo os membros de Cristo a uma prostituta (1 Co 6.15). O
indivíduo pecador é identificado pelo menos como um representante de Cristo e
talvez da igreja (“membros de Cristo”).
A ALIANÇA ABRAÂMICA
Deus então chamou Abraão e lhe deu dois mandamentos: “sai” e “sê uma bênção”
(Gn 12.1-2) — não muito diferentes do mandamento de Jesus: “ide e fazei
discípulos” (Mt 28.19-20). Em meio a esses dois mandamentos, Deus lhe fez várias
promessas. Ele prometeu fazer dele uma grande nação; abençoá-lo e engrandecer o
seu nome; traçar uma linha divisória entre aqueles que o abençoassem e aqueles
que o desonrassem, abençoando um grupo e amaldiçoando o outro; e abençoar
todas as famílias da terra por meio dele (Gn 12.2-3)301. Novamente, isso era uma
oferta do amor santo para unir seu nome ao nome de Abraão e para compartilhar
toda a sua glória com ele.
O que é impressionante em relação à promessa de Deus de fazer de Abraão uma
grande nação, observa Gentry, é a palavra hebraica usada, nesse texto, para “nação”,
goy. O termo goy é normalmente usado no Antigo Testamento para as nações
gentílicas e possui um significado básico de uma comunidade organizada, com uma
estrutura social, política e governamental. (As outras nações são descritas nessa
passagem com um termo que significa clãs ou famílias, mišpahâ). Isso é significativo
porque, em quase todas as outras passagens do Antigo Testamento, os
descendentes de Abraão, a nação de Israel, são descritos com outro termo que
sugere parentesco ou relações familiares, ‘am. E por que existe essa exceção nesse
texto? Gentry infere:
Gênesis 12 nos apresenta a estrutura política trazida à existência pela Palavra de Deus, com
Deus como o centro e Deus como cabeça e governante dessa comunidade. Em outras palavras,
temos o reino de Deus sendo trazido à existência por meio da aliança (entre Deus e Abrão). A
escolha de termos do autor enfatiza que a família de Abrão é um reino real, com poder e
importância eternos, ao passo que os assim chamados reinos desse mundo não possuem poder e
importância permanentes302.
Deus tem a intenção de estabelecer seu reino no meio de um povo a quem ele
identificará consigo, por meio de uma aliança. Essa aliança, é claro, é finalmente
formalizada em Gênesis 15 e 17. Gentry também observa que a palavra em grego
helenístico que melhor descreve essa estrutura é polis, ou cidade, um termo que
conota associações administrativas e governamentais. Isso nos ajuda a
compreender o que o autor de Hebreus tem em mente ao dizer que Abraão
“aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador”
(Hb 11.10), uma entidade que ele também chama de “a igreja dos primogênitos”
(Hb 12.22-23).
A ALIANÇA MOSAICA
Nós aprendemos, no primeiro capítulo de Êxodo, que Deus havia começado a
cumprir sua promessa de fazer de Abraão uma grande nação dando-lhe muitos
descendentes, mesmo que a sua administração piedosa dessa nação ainda não
estivesse em andamento. Na verdade, a administração opressora de faraó sobre os
israelitas indicava que algo mais era necessário, algo que afinal seria suprido com as
alianças mosaicas e davídicas. Deus começa a administrar as bênçãos da aliança
abraâmica, portanto, dando à nação de Israel a aliança mosaica303. Essa aliança
explica a sua vontade em termos de como eles deveriam se relacionar com ele, com
as nações ao redor e com a criação304. Após relembrá-los de que ele os levou sobre
asas de águia para fora do Egito, ele promete: “Se diligentemente ouvirdes a minha
voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre
todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e
nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel” (Êx 19.5-6). Essa
era uma oferta para pôr o seu amor santo sobre eles. Israel, ao obedecer a essa
aliança, seria “o agente usado por Deus para alcançar os propósitos mais amplos que
a aliança abraâmica incluía”305. Eles seriam abençoados com um nome grandioso
como seu “povo próprio” e seriam uma bênção para os outros como “reino de
sacerdotes”.
Assim como Adão, Israel foi criado para governar, mas seu domínio deveria
redefinir a autoridade para um mundo que a havia pervertido. O seu governo,
fundamentado na submissão a Deus, foi planejado para criar vida e esperança nas
nações, mediando o caráter e a glória de Deus para eles306. Mais uma vez, Deus
estava estabelecendo seu reino em um povo identificável por meio de uma aliança.
A ALIANÇA DAVÍDICA
A aliança concedida a Davi foi, portanto, estabelecida no contexto de duas
alianças anteriores. Especificamente, ela deu mais clareza à aliança mosaica,
tornando mais próximo o cumprimento da aliança abraâmica307. Esperava-se que o
ocupante do trono de Davi incorporasse preeminentemente os valores do Sinai,
refletindo assim a realeza de Deus, como seu vice-regente (Dt 17.18-20)308. Davi
também foi comissionado para demarcar os limites da terra, a fim de que uma
residência permanente para a presença de Deus pudesse ser construída309. Em tudo
isso, o rei de Israel tinha um relacionamento tão especial com Deus que o “filho de
Davi” era o “filho de Deus” (Sl 2.7; cf. 45.6, 89.26-28). E não somente isso, mas o rei
de Israel tinha um papel único em relação à aliança de Deus com Israel. Ele era o
mediador da aliança, representando Deus como o Senhor da aliança para o povo,
bem como representando o povo diante de Deus, personificando o povo e sua causa
diante dele310.
A obra de Deus de estabelecer um reino para si mesmo progrediu à medida que a
história da redenção passou da aliança abraâmica à mosaica, e depois para a aliança
davídica, cada uma delas edificando sobre a anterior311. As promessas abraâmicas
de uma grande nação e de um nome grandioso, além da de abençoar outras nações,
foram finalmente cumpridas por meio do filho davídico. Somente o filho de Davi
poderia estabelecer o reino de Deus por meio da aliança: “Nesse importante
sentido, o rei davídico se torna o mediador da bênção da aliança, relacionada a
Abraão e, enfim, a Adão, como o cabeça da aliança da raça humana312.
O QUE É A IGREJA?
O que é a igreja? As muitas metáforas para igreja no Novo Testamento oferecem
uma rica fonte de identificação e descrição: o templo, a vinha, a noiva, a
comunidade, o ajuntamento, o corpo, a casa, as ovelhas, a família — a lista é
longa318. Com muita frequência, as obras de Eclesiologia privilegiam uma metáfora
acima das outras, a fim de definir a essência da igreja. Além disso, determinadas
metáforas ficam em voga por um tempo, apenas para serem substituídas por
outras, uma ou duas décadas mais tarde. A Igreja Católica Romana, por exemplo, já
mudou várias vezes a definição de o povo Deus e o corpo de Cristo, cada uma delas
trazendo consigo uma série de implicações políticas e abusos em potencial319. Uma
abordagem popular nos dias de hoje tanto entre os escritores católicos quanto
protestantes é argumentar em favor de uma igreja trinitariana, privilegiando as três
metáforas: o povo de Deus, o corpo de Cristo e o templo do Espírito. A ênfase
trinitariana é boa, mas por que usar essas três metáforas em vez de dizer: família de
Deus, noiva de Cristo e templo do Espírito? Ou outro conjunto de palavras?
Hermeneuticamente, é difícil saber como podemos justificar o fato de colocar um
conjunto de metáforas acima das outras como sendo a mais importante.
Outra abordagem para definir a igreja é considerar o fato de que o enredo da
história de toda a Bíblia é movido pela obra de Deus para o estabelecimento do seu
reino por meio da aliança. Em vez de pegar a nossa metáfora favorita, ao acaso, eu
proporia que começássemos a nossa definição de igreja com a pessoa e a obra de
Cristo, assim como a igreja tem feito há muito tempo. Ele é o Deus-Homem que
veio como o último Adão, é a descendência de Abraão, o novo Israel e o filho de
Davi. De acordo com o plano de Deus e pelo poder do Espírito, ele cumpriu as
alianças de Deus e, por essa razão, conquistou todas as suas bênçãos e promessas.
Ele herdou a terra, assim como Adão. Seu nome foi feito grandioso e se tornou uma
benção para a terra, assim como Abraão. Ele conquistou o descanso prometido,
como Israel. Seu trono é um trono eterno, assim como o de Davi. Mas depois, da
forma mais notável e graciosa, esse Deus-Homem declarou uma nova aliança para
todos quantos se arrependerem e crerem.
Pouco depois de dar aos seus discípulos as chaves do reino, ele os levou para o
cenáculo e lhes deu um cálice, dizendo: “Este é o cálice da nova aliança no meu
sangue derramado em favor de vós”, e lhes ordenou que continuassem a fazer “isso
em memória de mim”. Ele estava aludindo à promessa de Deus do passado, dada por
Jeremias, de que ele “lhes imprimiria a sua lei”, de que ele “seria o seu Deus... desde
o menor até ao maior deles”, e que ele “perdoaria as suas iniquidades” (Jr 31.33-34;
Hb 8.6-13). Ele estava aludindo à morte futura que estava prestes a suportar.
Portanto, Cristo veio declarar um reino, mas depois ele fez algo um pouco mais
pessoal. O rei passou pela morte como um substituto pessoal para os pecadores. Ele
lhes ofertou uma nova aliança e a selou com seu sangue. Com esse ato, ele uniu um
povo a si mesmo como coerdeiros e vice-regentes. Eles também herdariam a terra,
assim como Adão; teriam um grandioso nome e seriam uma bênção, assim como
Abraão; entrariam no descanso de Deus, como Israel, e governariam junto com
Cristo, assim como Davi. O que é a igreja? É o povo da nova aliança de Cristo. É o
povo do seu amor santo. É o povo que está unido a ele e que compartilha da sua
identidade, porque ele se identificou com eles em sua encarnação, batismo, morte e
ressurreição. Ele trocou a sua vida e retidão pela vida deles. Considerando que um
dia Adão foi o cabeça da nossa aliança, agora Cristo é o cabeça da nossa aliança.
Começamos a nossa definição de igreja, portanto, com a aliança de Cristo.
No entanto, quase tão rapidamente quanto dizemos que a igreja é o povo da
aliança de Cristo, também devemos dizer que ela é o povo do reino de Cristo. Afinal,
Cristo os adquiriu para o seu reino e lhes deu as suas chaves. Ele compartilhou sua
identidade com eles para que a igreja pudesse compartilhar do governo de um reino
com ele. Os teólogos geralmente reconhecem que a pessoa e a obra de Cristo não
podem ser separadas. Cristo somente poderia realizar a obra que realizou por causa
de quem ele é — o Deus-Homem. O mesmo é verdade para a igreja. A igreja só pode
realizar a obra à qual foi chamada a realizar por causa de quem ela é. É por isso que
Pedro nos chama de sacerdócio real (1 Pe 2.9). Esse título transmite tanto a ideia de
quem somos como do que fazemos. Fomos feitos sacerdotes e reis associados a
Cristo, de modo que podemos mediar a glória do Pai à medida que estendemos os
limites do domínio de Cristo.
Ao começarmos com a pessoa e a obra de Cristo, edificamos nossa doutrina da
igreja sobre as estruturas da aliança e do reino de todo um Cânon, em vez de fazê-lo
com arbitrariedade, privilegiando uma metáfora em detrimento de outra. Ele nos
impede de dizer coisas filosoficamente especulativas como: “a igreja é a continuação
da encarnação”, com base numa compreensão enganosa da metáfora sobre o corpo;
ou: “nós somos a noiva mística de Cristo”, com base numa compreensão
exageradamente entusiástica da metáfora da noiva; ou: “Cristo, o cabeça, não é
completo sem o seu corpo e, juntos, eles formam um Cristo total”, com base numa
incapacidade de ver a metáfora do corpo no contexto da liderança davídica. Esses
são alguns dos erros mais notáveis na história da doutrina da igreja.
Ao mesmo tempo, começar com a pessoa e a obra de Cristo permite que cada
metáfora tenha a liberdade para refletir o multiforme esplendor da igreja. Esse
povo da aliança e do reino realmente tem os atributos de um corpo, de um rebanho,
de uma família, de uma videira, do baluarte da verdade, de um templo, de uma
nação com “fronteiras” e leis, e assim por diante320. A igreja está unida à pessoa e à
obra de Cristo assim como Eva estava unida a Adão. Ela compartilhou o nome dele
(varoa), para que pudesse ser uma auxiliadora em sua obra (Ef 5.22-32). Mas a
analogia do marido e da mulher não é suficiente. A igreja está unida a Deus assim
como um filho está unido ao pai, ou seja, como um filho do Israel antigo que se
parecesse com seu pai, seguisse as pegadas da profissão de seu pai e recebesse sua
herança (Mt 5.9, 45; Gl 4.4-7). Isso não é tudo: a igreja está unida a Cristo como um
povo está unido a seu rei. O rei governa sobre todos, mas o rei os representa, e eles
representam ao rei; e todos compartilham da cidadania e dos símbolos, da pompa e
da glória do reino. E poderíamos continuar prosseguindo. Algumas metáforas são
mais fundamentais do que outras, mas, enfim, é impossível (e hermeneuticamente
irresponsável) privilegiar qualquer uma das metáforas. Todas elas agem juntas para
descrever o povo escolhido por Deus e adquirido pelo Filho na nova aliança de seu
sangue, pelo poder do Espírito.
Como então colocamos a aliança e o reino juntos? Pense nisso dessa maneira:
Um rei derrota outro rei e ocupa sua terra, a plebe, porém, continuando hostil,
como se o seu antigo rei ainda reinasse. Agora, em certo sentido, o novo rei governa
sobre todos; por outro lado, seu governo continua limitado, estendendo-se somente
aos corações daqueles que o afirmam como rei. Em resposta a essa rebelião, o rei
promete que um dia punirá todos quantos continuarem hostis, mas também
promete clemência e perdão a todos quantos jurarem lealdade a ele. E não apenas
isso, ele também promete prover as moedas para pagar as taxas impostas sobre a
população. Essa analogia não é perfeita, mas o que é o reino de Cristo? É o governo
que ele possui por ter deposto o antigo rei, bem como o governo que ele possui no
coração daqueles que se arrependeram. Sua nova aliança é essa promessa de
clemência e perdão dos pecados. É também a capacidade dada pelo Espírito Santo de
suportar essa nova lealdade (pagar as taxas). A aliança é o que nos torna cristãos ou
cidadãos honrados de seu reino.
A UNIÃO TRÍPLICE
Exatamente de que forma essa aliança une a igreja a Cristo? Podemos falar de
nossa união com ele de pelo menos três maneiras, possuindo cada uma delas
implicações significativas para a nossa vida coletiva.
Em primeiro lugar, essa aliança nos une a Cristo de modo representativo (Rm
5.12-21). Existe um compromisso formal ou um juramento por meio do qual
aceitamos sua identidade e obra, assim como uma esposa que toma o nome do
marido ou um filho adotivo que leva o nome do pai, ou um imigrante que se torna
um cidadão. É uma aliança de casamento, porque o noivo ama a sua noiva de
maneira exclusiva e afetuosa. É uma aliança de adoção, porque o Pai e o Filho
desejam compartilhar a herança do Filho com muitos irmãos e irmãs. É uma aliança
de um corpo político, porque o rei tem autoridade sobre o todo. Uma identidade
compartilhada significa que todos compartilham todas as coisas, mas não de forma
a ignorar as diferenças entre o rei e a nação, o pai e o filho, o marido e a esposa, e
assim por diante.
Cristo toma a nossa culpa, enquanto nós adquirimos sua retidão e todas as
bênçãos que provêm dela. Ele leva os nossos fardos e tristezas, enquanto nós
adquirimos sua glória e conforto. Ele recebe o nosso trabalho diligente, enquanto
nós recebemos sua comissão e responsabilidade. Ele leva as nossas fraquezas,
enquanto nós adquirimos sua força. A nossa união representativa com Cristo é
extensa. Ele a estende a toda a experiência humana, em tudo o que ele tem feito por
nós (Rm 6.1ss.; Gl 2.20; Cl 2.20-3.4).
Por essa razão, nós compartilhamos sua vida, morte, ressurreição, ascensão, seu
sepultamento, governo e reino321. Na verdade, é bom ser membro dessa família!
Estar “em Cristo”, diz o teólogo Sinclair Ferguson, “significa que tudo o que ele fez
por mim de forma representativa se torna meu de verdade”322. Dizer que a igreja é
o corpo de Cristo, portanto, não é dizer que somos o seu corpo místico ontológico.
É falar em termos gerais ou em termos de aliança, assim como poderíamos falar de
um corpo político. Nossos congressistas votam por nós porque eles nos
representam. O rei Davi falava em nome do povo de Deus porque ele os
representava. O fato de Cristo ser o “cabeça do corpo” significa que ele é o mediador
da aliança e o cabeça geral da igreja (1 Co 11.3; Ef 1.22, 4.15, 5.23; Cl 1.18; 2.10, 19).
Em segundo lugar, essa aliança nos une a Cristo espiritualmente, porque
recebemos o seu Espírito (1 Co 12.13; cf. Rm 8.9-11; 1 Co 6.17-19; 1 Jo 3.24; 4.13).
O Espírito regenera, sela, é o penhor, dá dons, faz perseverar e glorifica aqueles que
pertencem a Cristo. Por essa razão, a aliança de Cristo é efetiva. Ela cumpre aquilo
que promete. Ela concede aquilo que exige. A igreja é trinitariana, na verdade,
porque a obra da aliança de Cristo é fundamentada na eleição do Pai e aplicada pelo
Espírito.
Em terceiro lugar, a aliança une a igreja a Cristo por meio da fé (Jo 2.11, 3.16;
Rm 10.14; Gl. 2.16; Fl 1.29). Nós nos incorporamos a Cristo por meio da fé. A nova
aliança de Cristo pode ser unilateral e eficaz, mas seus efeitos agem no contexto de
uma interpretação compatibilista da soberania divina e da liberdade humana. A
aliança fornece aquilo que ela exige, e ela exige uma decisão humana. Um indivíduo
deve se arrepender do pecado e colocar sua confiança em Cristo. Devemos escolher
a Cristo com as faculdades mentais da vontade que ele nos deu. Por essa razão, o
autor de Hebreus ainda adverte seus leitores para não “profanar o sangue da
aliança” com o qual eles foram separados para a salvação (Hb 10.29, cf. 6.4-6, 10.26-
27). Jesus adquire eficazmente um povo para si mesmo, mas os membros da igreja
visível podem “renegar o Soberano Senhor que os resgatou” (2 Pe 2.1). Uma pessoa
está unida a Cristo pela fé. Os crentes realmente compartilham uma “união
política” sob um rei, por causa de Mateus 16.18-19, conforme consideramos no
Capítulo 4 — uma união política que deve ser expressa na igreja “na terra”. No
entanto, deve ficar claro, a partir da conversa anterior sobre as alianças do Antigo
Testamento e sobre a nova aliança, que essa nova aliança também produz os
elementos de sua união política ou cidadania. As associações governamentais e
políticas da nação (goy) prometidas a Abrão, as quais tomaram uma forma
específica na “nação-estado” sob o governo de Davi e Salomão, acham sua forma
reconstituída nos cidadãos do governo de Cristo — nos membros da igreja!
Trazendo isso para o nosso tempo, as igrejas locais, de fato, são menos análogas aos
clubes ou às sociedades do que às embaixadas da “nação-estado” final de Cristo —
um reino que “não é deste mundo” (Jo 18.36).
Paulo compreende bem o limite que distingue o povo de Deus em Corinto da sua
população mais vasta. Não há sociedade. Não há comunhão. Não há harmonia. Não
há união. Não há ligação. Em vez disso: vão embora. Sejam separados. Purifiquem-
se. Aperfeiçoem a sua santidade.
Ele não está falando de geografia; ele está falando de identidade. Ele não está lhes
dizendo para que eles se abstenham de ser amigos dos descrentes ou se abstenham
de viver no meio deles. Ele está afirmando a igreja em sua identidade separada,
como o povo da aliança em meio ao qual Deus habita. Eles são o “santuário do Deus
vivente”. Por essa razão, eles não devem entrar em parcerias, comunhões e acordos
que levem os descrentes a pensar que pertencem a Deus ou os crentes a pensar que
pertencem ao mundo. Sim, as implicações morais são uma consequência disso, mas
tudo começa numa afirmação de suas novas identidades. A igreja do Novo
Testamento deve ser exatamente como se “fosse separada para Deus”, como o Israel
étnico que se alimentava conforme as leis dietéticas, que guardava o sábado, que
habitava em Canaã, que circuncidava os homens.
Podemos perguntar por que essa passagem desapareceu da eclesiologia
evangélica nas últimas décadas. Não há nem sinal da ideia de “pertencer antes de
crer” nesse texto. Usamos 2 Coríntios 6.14 para persuadir os adolescentes a não
namorarem com descrentes na escola, e esse texto fala disso.
Não é que Paulo esteja desatento à descontinuidade entre a antiga e a nova
aliança. Ele já gastou um capítulo inteiro explicando essa falta de continuidade (2 Co
3), seguido de mais dois capítulos que enfatizam a conclusão missionária externa da
nova aliança (2 Co 4-5), os quais ele conclui chamando a si mesmo de embaixador
em nome do Deus da reconciliação (5.19-20). Ele até mesmo usa a primeira metade
do capítulo 6 para explicar o limite exagerado ao qual ele chegaria para “enriquecer a
muitos” no evangelho (6.1-10). Depois, na segunda metade do capítulo 6, Paulo diz
à igreja para se “retirar” e se “separar”. Aparentemente, Paulo não vê contradição
alguma entre o chamado para ser um embaixador da reconciliação e o chamado para
excluir os descrentes da igreja. Missão e santidade não são coisas opostas entre si;
elas agem juntas. E não é de admirar que Jesus diga que se o sal vier a ser insípido,
ele se tornará inútil, assim como uma candeia debaixo de uma vasilha (Mt 5.13-16
— NVI).
Em minha mente, duas perguntas surgem da exortação de Paulo. A primeira, os
crentes e os líderes das igrejas de hoje percebem a ligação bíblica entre a distinção
santa da igreja e o seu testemunho? Segunda, como Paulo pretende que seus
leitores “aperfeiçoem a sua santidade”? Será que ele pretende que comecemos as
nossas próprias faculdades ou revistas? Que escrevamos mais livros? Que
afirmemos os pontos essenciais? Que comecemos conferências? Que estabeleçamos
denominações? Que descubramos a fórmula perfeita para relacionar Cristo com a
cultura? Cada uma dessas coisas poderia ter um papel suplementar e saudável, mas
não deixemos escapar a questão primordial para Paulo, para que não nos
esqueçamos do restante. Paulo sabe que Jesus especificou somente uma instituição
na terra com autoridade para disciplinar os crentes, para manter sua distinção e
para aperfeiçoar sua santidade — a igreja local.
À luz dessas questões, considere novamente o que significa se unir a uma igreja.
Isso não diz respeito a seguir a correnteza ou a seguir a multidão. Não diz respeito à
entrada numa sociedade, de modo que sejamos um adulto respeitado. É exatamente
o oposto. Isso diz respeito a nos identificarmos com um grupo que tem se
comprometido a ser rejeitado e a nadar contra a corrente. É como se unir a um
grupo de peregrinos em sua cidade natal ou se unir a um grupo falante de uma
determinada língua minotária em seu próprio país. A membresia na nova aliança
nos torna diferentes, mas como desempenhamos uma vida de distinção? Nós
unimos a nossa identidade à igreja local. Nós, juntos, fazemos uma aliança com ela,
o que caracteriza as boas novas. Isso significa que não somos deixados para nadar
contra a correnteza por nós mesmos. Comprometer-se a nadar contra a maré não é
um compromisso casual, e felizmente temos um grupo que firmou uma aliança
para fazer isso conosco.
3) Uma aliança fornece os fundamentos para a retidão pessoal e coletiva. Deus
também usa as alianças nas Escrituras para dizer ao seu povo como viver. Elas
explicam como deve ser a vida justa. Por essa razão, Moisés instruiu os israelitas
que entravam na Terra Prometida a ensinar seus filhos que guardar os
mandamentos de Deus seria a justiça deles. “Então, dirás a teu filho... ‘Será por nós
justiça, quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o
SENHOR, nosso Deus, como nos tem ordenado’.” (Dt 6.21, 25). A aliança abraâmica
também estava interessada na justiça de Abraão, mas Abraão recebeu um crédito de
justiça de acordo com o que ele creu: “Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado
para justiça” (Gn 15.6). Paulo obviamente adotou essa linha de pensamento para
ajudar a explicar a justiça do cristão em Cristo, por meio da nova aliança, um
“ministério da justiça” (2 Co 3.9). Cristo é perfeitamente justo, e sua justiça será
atribuída a “nós que cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus,
nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou
por causa da nossa justificação” (Rm 4.23-25). Em resumo, ele é a nossa justiça (1
Co 1.30) e, por meio dele, nós nos tornamos “justiça de Deus” (2 Co 5.21).
Referi-me anteriormente à crítica que alguns fazem à doutrina reformada da
imputação da justiça de Cristo, como se isso fosse simplesmente uma ficção
judicial334. A crítica falha em compreender o que a aliança realiza. A justiça que eu
tenho sendo um cristão não se deve a ela ter flutuado “como um gás” pelo tribunal,
mas ao fato de a identidade que agora compartilhamos com Cristo na nova aliança
significar quecompartilhamos todas as posses e dívidas, assim como minha esposa e
eu fizemos no início de nossa aliança conjugal. A boa nova para os cristãos é que as
nossas dívidas se tornam dele, e as posses dele se tornam nossas.
A nova aliança também está interessada em ver que os cristãos se “revestem”
dessa justiça e demonstram obediência à lei de Deus. O que guia o cristão na justiça
é contemplar a imagem de Cristo e ser transformado nessa mesma imagem. Esse é
exatamente o argumento de Paulo na discussão acerca da nova aliança (2 Co 3.18; e
também Rm 8.29; 1 Co 15.49; Cl 3.9-10). O apóstolo João faz da justiça ética a linha
divisória entre a igreja e o mundo: “Nisto são manifestos os filhos de Deus e os
filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça não procede de Deus, nem
aquele que não ama a seu irmão” (1 Jo 3.10).
À luz do nosso chamado na aliança para a justiça, o que significa se unir a uma
igreja? Será que isso significa se apresentar a uma igreja, dizendo: “Eu satisfaço as
exigências, eu estou à altura da igreja.”? Sim e não. Sim, porque Jesus disse que
nossa justiça deve exceder a dos fariseus (Mt 5.20). As boas novas são que nós,
cristãos, temos a justiça de Cristo representada em nosso batismo. Quando nos
apresentamos para a membresia de uma igreja, precisamos dessa justiça nos
cobrindo. Mas não, ainda não aperfeiçoamos a vida de justiça. Apenas começamos a
fazer isso. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
fartos” (Mt 5.6). A igreja é a assembleia dos arrependidos. Ela é uma sociedade (ou
melhor, uma embaixada) que deu meia-volta e começou a nadar contra a corrente, e
não um povo que já chegou ao seu destino. Esse povo deseja a justiça. Ele luta por
ela. Ele suplica a Deus por mais justiça. Ele se humilha diante dos outros, pedindo
ajuda para buscá-la. Uma igreja não exige que um homem derrote a cobiça antes de
batizá-lo, mas ela deve exigir que ele pare de viver com uma mulher que não é sua
esposa. Os crentes cometem pecado, mas há uma diferença conforme a posição que
eles têm no céu e uma diferença em sua postura na terra. Eles lutam contra o
pecado.
Mais uma vez, considere o que significa se unir a uma igreja. Unir-se a uma igreja
não significa que chegamos com um certificado de mérito nas mãos, nem significa
que chegamos esperando um show, onde nos contentaremos em ver a apresentação
dos outros. Isso significa que estamos dispostos a abdicar de nossa vida porque
sabemos que devemos nos aliar a um grupo de irmãos e irmãs numa guerra contra o
inimigo: o mundo, a carne e o diabo.
A igreja local é um grupo de pessoas que possui a justiça de Cristo e, portanto, é
um grupo que tem empenhado suas vidas para lutar juntos em prol da revolução
divina. Eles assinaram um juramento. Eles fizeram um pacto. Estabeleceram uma
aliança. Um por todos e todos por um. Abandonar a aliança significa ter a disciplina
como consequência, assim como no caso de um desertor do exército. Assim é a
aliança com a membresia da igreja.
4) Uma aliança estabelece um testemunho terreno para Deus. As alianças, visto
que elas ajudam a identificar Deus com um povo distinto, permitiram que tanto
Israel quanto as nações soubessem quem estava desempenhando o papel de
testemunha de Deus335. Deus prometeu tornar seu nome grandioso entre as
nações, e que isso seria uma bênção para as nações (Gn 12.2-3), uma promessa que
no final estava ligada à sua aliança com Abraão (Gn 15, 17).
Embora não esteja claro que Abimeleque soubesse que Deus havia feito uma
aliança com Abraão, o leitor de Gênesis certamente vê o testemunho de Abimeleque
à luz disto: “Deus é contigo em tudo o que fazes” (Gn 21.22).
Antes que o povo entrasse na Terra Prometida, Moisés os lembrou tanto de seu
testemunho diante das nações quanto diante do próprio povo, por meio da
obediência às cláusulas da aliança de Deus.
Guardai-os [esses estatutos e juízos], pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o
vosso entendimento perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão:
Certamente, este grande povo é gente sábia e inteligente. Pois que grande nação há que tenha
deuses tão chegados a si como o SENHOR , nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E que
grande nação há que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que eu hoje vos
proponho? (Dt 4.6-8)
Quando mais tarde os maus reis e os falsos profetas começaram a enganar Israel,
Deus usou seus verdadeiros profetas para apelar mais uma vez para as alianças e
reivindicar o direito de afirmar quem realmente falava em nome de Deus. No
Monte Carmelo, Elias apelou para a identificação na aliança feita com Abraão, bem
como para a sua própria participação no fato de dar testemunho dessa identificação
com base na aliança: “Ó Senhor, Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, que hoje
fique conhecido que tu és Deus em Israel e que sou o teu servo e que fiz todas estas
coisas por ordem tua” (1 Re 18.36 — NVI).
Justamente por isso, Deus se tornou muito preocupado com o testemunho
desfavorável, ou o “antievangelismo”, que seu povo apresentou ao desobedecer à
sua aliança. O profeta Jeremias explicou como as nações poderiam reagir à
destruição de Jerusalém, que se seguiria ao julgamento Deus:
Muitas nações passarão por esta cidade, e dirá cada um ao seu companheiro: Por que procedeu o
SENHOR assim com esta grande cidade? Então, se lhes responderá: Porque deixaram a aliança
do SENHOR , seu Deus, e adoraram a outros deuses, e os serviram (Je 22.8-9; e também Dt
29.25-26)336.
Do mesmo modo como fez com Abraão, Deus entrou em aliança com Davi, a fim
de tornar o nome de Davi grandioso (2 Sm 7.9). Essa foi uma aliança que Deus
promete estabelecer “para sempre” (7.13, 16), uma “aliança perpétua”, para que
Davi pudesse ser um “testemunho para os povos” (Is 55.3, 4).
Jesus é o Filho de Davi que provê um testemunho perfeito de Deus. Ele é a
Palavra e a imagem de Deus (Jo 1.1, Cl 1.15). Ele transmite Deus sem erros. No
entanto, Cristo une pessoas a si mesmo por meio de uma nova aliança e lhes dá um
alvará que as autoriza a agir como suas testemunhas até os confins da terra (Mt
28.19-20; At 1.8). Ele os envia, assim como ele foi enviado (Jo 20.21). Por essa
razão, Paulo diz repetidamente às igrejas para andarem de modo digno do nome que
elas representavam (Ef 4.1; Cl 1.10; 2 Ts 2.12). As igrejas o representam. E elas
devem agir com tal.
A tendência corrente entre muitos teólogos e líderes de igreja para enfatizar a
natureza missionária da igreja pode se tornar reducionista. Em outras palavras, ela
reduz a igreja à sua função, assim como reduz a identidade de uma pessoa às tarefas
que ela realiza, e somente a uma dessas tarefas. Entretanto, um ramo da literatura
da igreja missional chama a atenção, com razão, para como a obra central do
testemunho ou da missão deve se relacionar com a identidade da igreja. Conforme
já temos visto, a personalidade e a obra da igreja são inseparáveis, assim como a
pessoa encarnada de Cristo e a sua obra são inseparáveis. Cristo veio como o Deus-
Homem encarnado para salvar um povo.
Do mesmo modo, os discípulos de Cristo existem, em parte, para serem
pescadores de homens (Mt 4.19).
Eu sou especialmente grato pela ênfase que alguns escritores missionais dão ao
testemunho do corpo coletivo. Um autor escreve: “Na América do Norte, o que o
fato de uma igreja ser como uma cidade edificada sobre um monte e ser sal tem a
ver com a competência da missão?”337 Em outras palavras, o testemunho da igreja
não consiste simplesmente no fato de ela ir; consiste no fato de ela ter uma vida
coletiva diferente. Seu testemunho consiste no fato de que ela é diferente na
santidade, no amor e na união. Por isso, Jesus prometeu: “Nisto conhecerão todos
que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13.35). A obra
interna da igreja de santidade e amor entre os seus membros está
inextricavelmente ligada à sua obra de testemunho externo. Devemos exibir Cristo
em nossa vida coletiva se quisermos exibir Cristo em nossas vidas individuais. A
igreja, disse Mark Dever, é “o plano de evangelismo de Jesus”, porque somente ela
exibe a sabedoria de Deus. Paulo coloca a questão da seguinte maneira: “Para que,
pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos
principados e potestades nos lugares celestiais” (Ef 3.10). Somente um Deus sábio
poderia tomar um grupo de pessoas que um dia estava em guerra contra ele, e umas
contra as outras, e convertê-lo numa assembleia de amor. Que todo o cosmos
observe isso e fique maravilhado!
À luz da obra de testemunho da igreja, o que significa pertencer a uma igreja?
Significa que os crentes pertencem a uma igreja não apenas para ter suas
necessidades espirituais satisfeitas ou para ser edificados. Em vez disso, pertencer a
uma igreja significa se comprometer a viver de um modo específico e trabalhar para
alcançar um propósito específico. Isso envolve o nosso tempo, nosso dinheiro e, de
fato, toda a nossa pessoa, porque esse compromisso está arraigado à nossa nova
identidade. Um empresário, um advogado ou um médico do Ocidente nos dias de
hoje dedicará 80 horas de trabalho semanal para atingir suas ambições
profissionais, isso geralmente porque ele encontra dignidade, razão e identidade no
trabalho. O fato de nos tornarmos cristãos significa que agora Cristo é a fonte
principal de nossa dignidade, razão e identidade; o que significa que estamos livres
para derramar nossas vidas em prol da obra de testemunho do povo de Cristo —
tanto na obra interna de amor na igreja quanto na obra externa de missão. Cristo
na verdade nos ordena a nos reunirmos regularmente para pregar e praticar as
ordenanças “como uma igreja”. Ao mesmo tempo, o fato de pertencer a uma igreja
nos equipa a perceber que ser um cristão está mais relacionado com uma semana de
trabalho do que com um fim de semana de descanso.
5) Uma aliança promete o dom da glória de Deus ao seu povo. Deus compartilha
sua glória com o seu povo da aliança no Antigo Testamento. Assim como o
relacionamento de Deus com Israel existia antes da aliança estabelecida com todo o
Israel no Sinai (embora subsequente à aliança abraâmica; veja Êx 2.24, 6.4-5), ele
também concede a Israel alguns vislumbres de sua glória antes de estabelecer essa
aliança (Êx 16.7, 10; cf. Êx 14.4, 17-18). Entretanto, é nesse processo de
estabelecimento de sua aliança com todo o Israel que Israel encontra as maiores
demonstrações de sua glória (Êx 24.16-17, 40.34-35; Lc 9.6, 23), principalmente por
meio de Moisés (Êx 33.18ss.) Depois, a glória de Deus permaneceu com a arca da
aliança até quando encheu o templo (1 Re 8.11), seu lugar de habitação mais
proclamado na aliança.
Davi reconhece que a glória de Deus será conhecida no meio das nações por
causa da aliança de Deus com Abraão, Isaque e Jacó (1 Cr 16.10, 15-22, 24, 28-29; e
também Sl 105.8ss.). Davi também exulta pelo fato de Deus compartilhar sua
própria glória com o rei da aliança (Sl 21.5).
Infelizmente, o povo de Israel “trocou a glória” de seu Senhor pela glória dos
ídolos (Sl 106.20; Jr 2.11), ao que Deus respondeu finalmente removendo sua
glória de sua habitação na aliança, o templo (Ez 10.4, 18-19). A transgressão de
Israel se tornou tão grande, e o nome de Deus estava tão ligado ao deles, que ele
determinou “vindicar o seu nome” diante das nações por meio de um novo ato de
salvação e de uma nova aliança (Ez 36.22-32; cf. Rm 3.25-26).
De modo notável, Deus prometeu mais uma vez compartilhar sua glória por
meio de uma nova aliança (por exemplo: Is 60.1-2, 19; Jr 13.11, 33.9 cf. Sl 73.24; Is
28.5), um ministério, como diz Paulo, que, em todas as coisas, excede em glória o
ministério que o precedeu (2 Co 3.7-11; cf. Hb 3.3). A glória de Deus encheria o
novo templo (Ez 43.2-5; 44.4; Ag 2.7, 9). Ela seria compartilhada com sua noiva,
para que todas as nações contemplassem a justiça real e a beleza divina do povo de
Deus (Is 62.2-4).
Mais tarde, Cristo veio manifestando a glória de Deus (Jo 1.14, 8.50, 2.16, 13.31-
32, 17.4), e deu aos seus discípulos a glória que o Pai havia lhe dado (17.22). Assim
como Adão foi coroado com a glória de Deus na criação, a igreja também,
espantosamente, compartilhará a glória de Cristo (1 Ts 2.12; 2 Ts 2.14; 1 Pe 1.7, 5.4,
10; 2 Pe 1.3). Por essa razão, Paulo instrui a igreja a buscar a glória e a fazer todas as
coisas para a glória de Deus (Rm 2.7; 1 Co 10.31), prometendo que os crentes serão
transformados de glória em glória, à medida que contemplarem a glória de Deus na
face de Cristo (2 Co 3.18; 4.6).
O que significa se unir a uma igreja? Unir-se a uma igreja não significa
entretenimento, mesmo que os cultos tenham uma banda de adoração e um
pregador dinâmico. Significa fechar contrato com um time; comparecer para
treinar, disciplinar a mente e o corpo; para encorajar os colegas de time que às vezes
ficam zangados por causa do técnico; para sonhar com o prêmio e dar tudo, tudo no
grandioso projeto de ganhar o troféu — a glória de Deus, a glória que ele
compartilha de modo notável com seus filhos.
6) Uma aliança identifica o povo de Deus uns com os outros. As alianças do
Antigo Testamento não apenas identificavam Deus com seu povo, como também
permitiam que as pessoas do povo de Israel se identificassem umas com as outras.
Curiosamente, é nesse ponto que as alianças de Deus com Israel utilizam as
metáforas da família e as transcendem. Por meio da aliança de Deus com Abraão,
Israel compartilhava um pai comum, e um israelita poderia se referir a outro
israelita como “irmão”, indicando essa identidade familiar compartilhada. No
entanto, assim como a distinção entre os filhos de Abraão, Ismael e Isaque, poderia
indicar, a identidade da aliança também transcende a descendência biológica (veja
Rm 9.6-8; Gl 4.21-31). Em outras palavras, dois israelitas eram irmãos, sim, mas
eles também eram algo mais, algo ainda mais ligado, mais unido, mais “um” do que
irmãos biológicos. E, claro, isso faz sentido à medida que cada indivíduo israelita
estava identificado principalmente com o Senhor. Identificar-se com o Senhor é se
identificar com todos quantos se identificam com o Senhor. E se Deus é Deus, uma
simples reflexão pode revelar por que tal identificação é ainda mais forte do que a
identificação pelos laços biológicos. Deus é supremo, a biologia não.
A identificação coletiva proporcionada pelas alianças de Israel era manifesta
principalmente por meio das pessoas e da obra dos sacerdotes, reis e profetas. O
sumo sacerdote de Israel oferecia sacrifícios uma vez por ano por toda a nação (veja
Levítico 16). O rei davídico, o Filho de Deus, incorporou a filiação de toda a nação. O
profeta sofredor personificava a incredulidade ou a aflição de toda a nação (por
exemplo, Lamentações 3). Por meio da obra representativa desses três ofícios, cada
israelita compartilhava algo muito mais importante do que a cor da pele, uma
árvore genealógica, tradições e costumes culturais, passatempos partilhados, a
camisa de um time esportivo ou qualquer outra coisa das quais os seres humanos
geralmente dependem para estabelecer comunhão, coesão social e uma identidade
compartilhada. Eles compartilhavam uma salvação, uma herança, uma fé, um
batismo, um divino Senhor da aliança.
Cristo, portanto, veio como um profeta, sacerdote e rei representativo. Ele
falava ao povo de Deus, em nome de Deus; ele sofreu no lugar deles e se tornou o
novo cabeça geral de uma nova nação escolhida. Agora, todos aqueles que estão
unidos a Cristo compartilham a sua identidade, e isso significa que os crentes
compartilham a mesma identidade uns com os outros.
Por essa razão, os cristãos primitivos se referiam uns aos outros como “irmãos”.
Mais uma vez, o que significa se unir a uma igreja? Unir-se a uma igreja não é
apenas mais um passo no regime de disciplinas espirituais — algo que você faz para
crescer como um cristão individual. Conforme dissemos no capítulo anterior,
frequentar uma igreja é mais como sentar-se à mesa no jantar da família. É lá onde
os nossos irmãos e irmãs estão.
7) Uma aliança estabelece um testemunho para os propósitos da prestação de
contas mútua no meio do povo de Deus. As alianças de Deus não somente
articulavam quem entre as nações era testemunha de Deus, mas também agiam
como uma testemunha pública, um testemunho ou um registro para o próprio
Israel. Por isso Moisés ordenou aos levitas: “Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao
lado da arca da Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha
contra ti” (Dt 31.26). Os votos conjugais, alguém poderia fazer essa analogia,
servem para distinguir um casal diante dos outros, mas eles também fornecem um
registro daquilo que eles prometeram um ao outro. Ou seja, os votos oferecem uma
prova ou um testemunho externo e interno.
Esse testemunho, portanto, tornou-se o padrão pelo qual as partes envolvidas na
aliança prestam contas uma a outra. A aliança no Sinai, por exemplo, estabelecia
que os israelitas prestariam contas obviamente diante de Deus (por exemplo,
Deuteronômio 29.1, 28). A aliança davídica prometia que o filho de Davi seria
punido pela desobediência (2 Sm 7.14). As alianças capacitavam os israelitas a
continuarem prestando contas uns aos outros. Deus chamou os israelitas para
reagirem de modo decisivo em relação à desobediência mesmo entre os membros
mais próximos da família:
Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu
amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros
deuses... não concordarás com ele, nem o ouvirás. Mas, certamente, o matarás. A tua mão será
a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo (Dt 13.6-9; e também 21.18-
21).
Por que essa exigência tão radical? É simplesmente porque os votos conjugais de
Deus exigem fidelidade; o amor de Deus exige lealdade: “Porquanto o SENHOR,
vosso Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo o vosso
coração e de toda a vossa alma (Dt 13.3; e também 6.5). Embora a lei que exige a
morte de uma pessoa tenha sido com certeza alterada com a inauguração que
Cristo fez da nova aliança, ninguém deve pressupor que a lealdade que Jesus exige
de seu povo é de alguma forma menos radical (veja Lucas 14.26).
Não é de espantar, portanto, que o Novo Testamento enfatize repetidas vezes
que o cuidado com os membros da igreja deve ser aparentemente maior do que o
cuidado com as pessoas de fora. Jesus separa as ovelhas dos cabritos, com base no
fato de alguém cuidar dos mais pequeninos de seus irmãos (Mt 25.31-46). Paulo diz
às igrejas da Galácia para fazerem o bem a todos, “mas principalmente aos da
família da fé” (Gl 6.10). Pedro ordena seus leitores cristãos a demonstrarem
hospitalidade uns aos outros (1 Pe 4.9; e também Rm 12.13). Paulo até mesmo
equipa a igreja a exercer um tipo de cuidado moral em relação às pessoas de dentro
da igreja que não se aplica aos de fora. Ele diz aos Coríntios: “Pois com que direito
haveria eu de julgar os de fora? Não julgais vós os de dentro?” (1 Co 5.12). Ele
também os instrui a se aproximarem da mesa do Senhor sempre atentos para
“discernir o corpo” (11.29).
Alguém poderia contestar esse último argumento, dizendo que certamente o
nosso amor pelos nossos inimigos e pelos de fora demonstram uma forma mais
elevada de amar do que o amor que demonstramos pelos de dentro ou pelos
membros da família. No entanto, o amor pelos amigos membros da igreja é amor
por aqueles que um dia já foram inimigos338. Antes que viesse a salvação, nós
éramos inimigos de Deus e inimigos uns dos outros. O amor que é compartilhado
na igreja é poderoso exatamente porque demonstra o outro lado do amor
transformador de Deus pelos seus inimigos. Ele nos mostra o resultado — um
grupo de pessoas, antes inimigas, não só vivendo em harmonia, mas também dando
a si mesmas umas as outras.
Vez após vez, os cristãos são orientados a ajudar a manter o outro fora da zona
de perigo e a levar as cargas uns dos outros: “Irmãos, se alguém for surpreendido
nalguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi-o com espírito de brandura; e
guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros e,
assim, cumprireis a lei de Cristo (Gl 6.1-2; e também 1 Co 4.21; Jd 22-23). Vez após
vez, aqueles que são fortes são instruídos a ajudar a impedir que os fracos
tropecem (Rm 14.20-21, 15.1; 1 Co 8.13).
O amor da prestação de contas cristã acontece melhor sob a autoridade da igreja
local, onde as ordenanças podem ser ministradas de forma disciplinada. Nesse
sentido, uma aliança com uma igreja local age como um tipo de testemunho.
Quando eu me associo a uma igreja, concordo que você ajude a supervisionar meu
discipulado cristão, e eu ajudarei a supervisionar o seu. Se um de nós falhar, quer
no discipulado, quer na supervisão, ambos poderemos retornar ao compromisso
original como um ponto de referência. “Você não se comprometeu a cuidar de
minha alma?” Durante séculos, muitas igrejas têm utilizado as “alianças formais
com a igreja” para atuarem como tal testemunho. Essas alianças escritas oferecem
uma versão mais elucidada sobre como os crentes concordam em viver juntos ao se
submeterem à supervisão de uma igreja.
Qual é a lição que tiramos sobre o que significa pertencer a uma igreja?
Pertencer a uma igreja não é como ser membro de um clube de compras, de uma
distribuidora de alimentos, como o Price Club ou Costco, no qual o fato de sermos
membros nos permite comprar com desconto todos os itens que queiramos. Antes,
significa se comprometer com um grupo de pessoas que me chamará para prestar
contas. Significa ter responsabilidade sobre os outros em relação às questões mais
profundas que possam ser compartilhadas entre dois seres humanos, e nos
tornarmos vulneráveis nesse processo.
8) Uma aliança especifica responsabilidades às partes envolvidas nela. As alianças
também especificam responsabilidades às várias outras partes envolvidas. Na antiga
aliança, por exemplo, Deus instruiu Israel a circuncidar seus corações (Dt 10.16).
Eles eram responsáveis, ao que parece, por produzir corações generosos, que
amassem a Deus e obedecessem aos seus mandamentos. Na nova aliança, por outro
lado, Deus assumiria essa responsabilidade (Dt 30.6; Jr 31.33; Ez 36.26). Ele lhes
concederia corações que o amariam e obedeceriam.
Além da questão da responsabilidade, uma aliança estabelece por quem as partes
envolvidas são responsáveis. Em sua aliança com Davi, por exemplo, Deus lembra
Davi que ele o havia feito “príncipe sobre o meu povo, sobre Israel” (2 Sm 7.8). Davi
não era responsável pelos filisteus ou pela adoração daqueles. Ele era responsável
por Israel e pela adoração destes. Portanto, a ira de Deus foi despertada exatamente
quando os reis e sacerdotes de Israel desencaminharam as ovelhas pelas quais eles
eram responsáveis: “Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu
pasto!... Vós dispersastes as minhas ovelhas, e as afugentastes, e delas não
cuidastes” (Jr 23.1-2; e também Ez 34.1-10; cf. Dt 17.18-20).
Uma aliança diz às partes envolvidas num acordo quem é responsável pelo quê. O
que é impressionante no Novo Testamento é que geralmente são atribuídas
responsabilidades a toda a igreja nas questões de controvérsia, disciplina e doutrina.
Em Mateus 18, toda a igreja é chamada a julgar as disputas entre os crentes, as
quais não podiam ser resolvidas em particular. Em 1 Coríntios 5, toda a igreja é
chamada para disciplinar um membro que se recusa a se arrepender de seu pecado.
Em Gálatas 1, toda a igreja é chamada para prestar contas do fato de terem tolerado
um falso mestre. Em 2 Coríntios 2.6-8, é dito a igreja para restaurar um pecador
arrependido por causa da disciplina posta anteriormente sobre ele pela grande
maioria.
Os presbíteros têm a supervisão do corpo e assim mantêm a prerrogativa de
liderança. Entretanto, não se pode negar que, seja qual for o sistema de liderança,
cada cristão — cada membro da igreja — é responsável por restabelecer as questões
de disputa; participar nas preliminares da disciplina por meio da admoestação e
repreensão; e defender a doutrina dos apóstolos.
Pertencer a uma igreja significa tomar posse de outras pessoas e do discipulado
delas. Significa receber do Senhor a tarefa de proclamar, exibir e proteger o
evangelho. Significa receber as próprias chaves do reino dadas por Cristo. Quando
nos unimos a uma igreja, encontramo-nos autorizados a ligar e desligar almas
eternas sobre a terra, assim como elas serão ligadas no céu. Nenhum presidente ou
general, nenhum líder dos direitos civis ou mocinha de cinema, recebeu tal
autoridade. O membro comum de igreja, por causa de sua ligação com o corpo,
possui uma autoridade inenarrável — a autoridade para declarar quem dentre a
humanidade viverá pela eternidade e quem morrerá; quem é filho do rei e quem não
é. Quando nos unimos a uma igreja, não apenas recebemos os “benefícios da
membresia”, mas recebemos também uma responsabilidade e um dever da mais alta
ordem. Não é, pois, espantosa a forma inconsequente como os crentes veem a
membresia da igreja hoje em dia?
9) Uma aliança protege o povo de Deus. As alianças de Deus no Antigo
Testamento proporcionavam proteção para o indivíduo israelita tanto contra os
perigos naturais quanto sociais, incluindo os abusos de autoridade. Embora pudesse
ser inadequado dizer que suas alianças continham uma “Declaração dos Direitos
Humanos”, poderíamos dizer que elas produziam um resultado semelhante, ou
seja, proteção contra as tiranias, quer fossem as tiranias da grande maioria, quer
fossem da minoria.
Além disso, já consideramos o ódio que Deus tem pela injustiça. Não é tão
surpreendente, portanto, perceber as prescrições das alianças feitas em prol das
viúvas, dos órfãos e dos necessitados em geral339. Israel também era o único país
antigo no Oriente Próximo com leis de proteção ao estrangeiro e forasteiro (Êx
23.9, Dt 10.19). Os juízes eram ordenados a tratar com imparcialidade os
estrangeiros e israelitas (Dt 1.16, 24.17). As cidades de refúgio estavam igualmente
abertas aos forasteiros e aos nativos (Nm 35.15; Js 20.9). Hóspedes estrangeiros
eram geralmente classificados com as viúvas, órfãos e pobres, como merecedores da
provisão e do tratamento justo da comunidade (Êx 22.21-24; Dt 24.17-18).
Esses são alguns exemplos de como a aliança de Deus com Israel provia proteção
tanto para os que eram de Israel quanto para os que estavam ao seu redor. A
questão mais importante, mais profunda, no entanto, é que, considerando que os
contemporâneos têm medo das estruturas de autoridade, Deus as providenciou na
aliança exatamente em função de seu abuso por parte dos seres humanos. Os
membros da aliança recebiam uma proteção maior do que os que não eram
membros, mas ambos recebiam proteção. Justamente por isso, os membros da
aliança que eram desobedientes se colocavam numa zona de perigo, que incluía o
perigo de opressão: “E tu serás oprimido e quebrantado todos os dias” (Dt 28.33;
veja também 28; 29.18-20; 30.15-20). A proteção que trazia a prosperidade também
era prometida aos membros obedientes da aliança: “Guardai, pois, as palavras desta
aliança e cumpri-as, para que prospereis em tudo quanto fizerdes” (Dt 29.9).
A nova aliança proporciona igualmente diversos níveis de proteção. Em primeiro
lugar, ela provê proteção contra a ira de Deus, porque o pecado é perdoado. Em
segundo, ela protege a alma contra aqueles que podem prejudicar somente o corpo.
Toda a proteção prometida nos Salmos se torna essencialmente do cristão, apesar
de numa forma reconstituída. Em terceiro, ela nos protege de nós mesmos e de
nossa incapacidade de cumprir as exigências da antiga aliança. Em quarto, ela
protege o cristão da escravidão do pecado, uma vez que o pecado não mais tem
domínio sobre ele. Em quinto lugar, ela acolhe os cristãos num domínio onde a
autoridade é exercida para criar, em vez de roubar; para edificar, em vez de
devastar; o que significa que os cristãos podem conhecer a proteção do povo de
Deus (Mt 20.25; 1 Pe 5.3).
E finalmente, o que significa pertencer a uma igreja? Significa se identificar com
o Filho de Deus e com o povo do Filho, e assim dispor de toda a proteção de seu
nome.
CLAREZA
Uma palavra que talvez resuma todas as nove razões para formalizar o amor
entre Deus e seu povo por meio de uma aliança seja a palavra clareza. Deus sempre
tem sido muito claro a respeito daqueles com quem ele se identifica; aqueles que ele
distingue; aqueles que são suas testemunhas; bem como acerca de quem é
responsável pelo quê; quem presta contas a quem e assim por diante. E o mais
importante de tudo: ele deseja que sua imagem seja claramente exibida em seu
povo. Outra maneira de dizer isso seria afirmando que ele quer definir todas essas
coisas para o seu povo e para o mundo. Da parte da igreja, esses nove benefícios da
aliança esclarecem a natureza de seu compromisso de uns para com os outros,
tanto para a glória de Deus quanto para o bem deles.
Pense novamente acerca do casal que coabita, mas não une suas vidas por meio
da aliança do casamento. Eles não querem identificar os seus nomes. Ela não quer o
nome dele, e ele não quer o dela. Eles não querem se comprometer a distinguir um
ao outro como seu único companheiro a vida toda. Eles não querem oferecer um
registro público de sua unidade, porque, de fato, não existe unidade. Eles
certamente não querem ser chamados para prestar contas a alguém ou a outras
pessoas.
Em outras palavras, não existe amor ou pelo menos o amor deles é
lamentavelmente deficiente. O que é o amor? É uma afirmação da pessoa amada e
uma afeição pelo bem dela de acordo com as prescrições de Deus. É o desejo de se
identificar com o outro em prol do progresso do outro em relação ao Santo. No
entanto, isso é exatamente aquilo que o casal que está coabitando nega em sua
recusa de formalizar uma aliança em suas vidas.
Voltando para aquilo que tenho chamado de aliança com a membresia da igreja
local — novamente, não como um documento escrito, mas como um acordo em si
— é importante lembrarmos que a nova aliança vem primeiro. Todas as nove
questões acima são qualidades inerentes à nova aliança. Deus se identifica com os
crentes da nova aliança. Ele os distingue; instrui-os na justiça; elege-os para serem
suas testemunhas; concede-lhes sua glória e assim por diante. Essa aliança é feita
com todos os crentes em toda parte. No entanto, é necessário haver algum lugar na
terra onde essas coisas são colocadas em prática. Onde isso acontece? Acontece
onde quer que dois ou mais crentes se comprometam a se reunir em nome de
Cristo, para exercer o poder das chaves. É esse compromisso que chamo de aliança,
uma aliança que tanto protege o nome de Cristo quanto facilita o bem dos crentes.
Exatamente por isso, esses nove propósitos são razões para nos submetermos a
uma igreja local.
Submeter-nos a uma igreja local:
295. Com relação a Abraão e a Israel, não estou argumentando que eles eram “regenerados” no sentido
de João 3 (embora eu creia que eles fossem). Estou dizendo simplesmente que o fato de eles terem
recebido novos nomes representa tipologicamente ou prenuncia a ideia de novo nascimento do Novo
Testamento.
296. Veja W. W. J. Van Oene, “Before Many Witnesses” [Diante de Muitas Testemunhas], in J.
Geertsema, et al., Before Many Witnesses, Winnipeg, Manitoba: 1249 Plessis Road, 1975, pp. 9–13,
para uma meditação sobre a natureza coletiva de nossa confissão de fé. Conforme Van Oene coloca, “em
sua profissão de fé pública, você não está representando uma pessoa individualmente, mas o membro de
um Corpo... Sua profissão de fé é, por assim dizer, um assunto comunitário.”
297. Esses relacionamentos entre o cristão, a igreja e Cristo não são simétricos. Nós aspiramos
representá-lo na terra pelo que ele é em sua impecabilidade, assim como ele nos representa diante do Pai
no céu, não pelo que somos em nossa pecaminosidade, mas de acordo com o que ele é em sua
impecabilidade!
298. Para uma discussão sobre a relação entre a aliança conforme foi articulada no Sinai (ou Horebe) e
novamente em Moabe, veja Gary Millar, Now Choose Life: Theology and Ethics in Deuteronomy
[Escolhe pois a Vida: a Teologia e a Ética em Deuteronômio], New Studies in Biblical Theology [Novos
Estudos sobre a Teologia Bíblica], Ed. D. A . Carson, Downers Grove, IL: InterVarsity, nota 82; e também
Dumbrell, Covenant and Creation: A Theology of the Old Testament Covenants [Aliança e Criação:
Uma Teologia das Alianças do Antigo Testamento], Biblical and Theological Classics Library [Biblioteca
dos Clássicos Bíblicos e Teológicos], Kent, UK: Paternoster, 1997, p. 114.
299. T. D. Alexander, From Paradise to the Promised Land: An Introduction to the Main Themes of the
Pentateuch, Grand R apids: Baker, 1995, p. 166.
300. Paul Williamson, Sealed with an Oath: Covenant in God’s Unfolding Purpose [Selado com um
Juramento: A Aliança no Propósito Revelado de Deus], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2007, pp. 75–
76; e também Bruce Waltke e Cathi J. Fredericks, Genesis: A Commentary, Grand R apids: Zondervan,
2001, p. 136, traduzido para o português como Gênesis: Comentário do Antigo Testamento, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010.
301. Peter J. Gentry, “ The Covenant at Sinai,” in The Southern Baptist Journal of Theology, vol. 12
(Fall 2008): 39.
302. Ibid., p.40.
303. Ibid., 41. Veja também Stephen G. Dempster, Dominion and Dynasty: A Theology of the Hebrew
Bible [Domínio e Dinastia: Uma Teologia da Bíblia Hebraica], New Studies in Biblical Theology [Novos
Estudos sobre a Teologia Bíblica, Ed. D. A . Carson, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001, p. 174.
304. Dempster, Dominion and Dynasty, p. 172.
305. William Dumbrell, Covenant and Creation, 89; cf. Craig A . Blaising and Darrell L. Bock, Progressive
Dispensationalism [Dispensacionalismo Progressivo], Grand R apids: Baker, 1993, pp. 141–42; Andreas
J. Köstenberger e Peter T. O’Brien, Salvation to the Ends of the Earth: A Biblical Theology of Mission
[Salvação até os Confins da Terra: Uma Teologia Bíblica de Missões], New Studies in Biblical Theology;
Graeme Goldsworthy, According to Plan: The Unfolding Revelation of God in the Bible [Conforme o
Plano: A Revelação de Deus Explicada na Bíblia], Downers Grove, IL: InterVarsity, 1991, p. 141.
306. Veja Dempster, Dominion and Dynasty, pp. 101–2, citado em Gentry, “ The Covenant at Sinai”, p.
47. Fui tentado a citar Dempster na questão sobre Israel “redefinindo o domínio”, mas ele utiliza a
palavra serviço, como os evangélicos geralmente usam, para descrever o que eles entendem por governo
redimido. Considerando que eu concorde que a motivação para o serviço deva estar envolvida numa
concepção redimida da autoridade (por exemplo, Mc 10.45), não creio que isso seja suficientemente
forte para apreender tudo o que Deus planejava para Adão (ou retratou em Cristo) por meio de seus
respectivos domínios, assim como o elemento de mandamento ou julgamento.
307. Dumbrell, Covenant and Creation, p. 127; Blaising and Bock, Progressive Dispensationalism, pp.
168–69.
308. Dumbrell, Covenant and Creation, pp. 150–52.
309. Ibid., pp. 151, 162–63.
310. O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants, Phillipsburg, NJ: P&R , 1980, p. 235, traduzido
para o português como O Cristo dos Pactos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011; Stephen J. Wellum,
“Baptism and the Relationship between the Covenants” [O Batismo e a Relação entre as Alianças”] in
Believer’s Baptism: Sign of the New Covenant in Christ [O Batismo dos Crentes: O Sinal da Nova
Aliança em Cristo], Ed. Thomas R . Schreiner and Shawn D. Wright, NAC Studies in Bible and Theology,
Nashville: Broadman, 2006, p. 39.
311. Blaising and Bock, Progressive Dispensationalism, pp. 172–73; Robertson, Christ of the Covenants,
pp. 185–90, p. 268.
312. Wellum, “Baptism and the Relationship between the Covenants”, p. 39.
313. Conforme afirma Wellum: “Com relação a isso, Lucas 2.21 é importante. A circuncisão de Jesus não
é um acontecimento secundário; ela marca o cumprimento da circuncisão em seu propósito de preservar
uma linhagem da descendência de Abraão até Cristo”. Baptism and the Relationship between the
Covenants, p. 39.
314. D. A . Carson chama o uso que Jesus faz dessa expressão de Êxodo 24.8 de “antítipo do tipo”,
Matthew, Expositor’s Bible Commentary, vol. 8, Ed. Frank E. Gaebelein e J. D. Douglas, Grand R apids:
Zondervan, 1984, p. 537.
315. Veja G. K . Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place
of God, New Studies in Biblical Theology, pp. 169–76.
316. Liderança geral pode ser definida como as ações ou decisões de um indivíduo substituindo ou
representando a maioria, assim como um voto de um representante na assembleia do congresso dos
Estados Unidos “decreta”, ou “liga”, ou “representa” o voto de seus constituintes. Para uma descrição e
discussão adicionais sobre esse ponto de vista, veja Louis Berkhoff, Systematic Theology, Carlisle, PA:
Banner of Truth, 1958, 242–43, traduzido para o português como Teologia Sistemática, São Paulo:
Cultura Cristã, 2010; Millard J. Erickson, Christian Theology [Teologia Cristã], 2a ed., Grand R apids:
Baker, 1998, pp. 651–52. Uma confrontação ligeiramente mais prolongada com esse ponto de vista pode
ser encontrada em Henri Blocher, Original Sin: Illuminating the Riddle [Pecado Original: Esclarecendo o
Enígma], New Studies in Biblical Theology, pp. 70–81, 96–99, 116, 129ss.
317. Wellum, Baptism and the Relationship between the Covenants, p. 55, 57.
318. Para uma lista até certo ponto exaustiva das ilustrações para a igreja, veja Paul S. Minear, Images of
the New Testament Church [Imagens da Igreja Neo-testamentária].
319. Veli-Matti Kärkkäinen, An Introduction to Ecclesiology: Ecumenical, Historical and Global
Perspectives [Uma Introdução à Eclesiologia: Perspectivas Globais, Históricas e Ecumênicas], Downers
Grove: InterVarsity, 2002, pp. 26–38.
320. Talvez uma ilustração possa ser útil aqui. Um marido e uma esposa poderiam ter muitas maneiras
de descrever a natureza de seu relacionamento: amigos, amantes, parceiros, colegas de viagem, almas
gêmeas, cooperadores e assim por diante. Suponha que alguém peça a um deles para definir a natureza
do casamento: “O que é o casamento?” Deveríamos privilegiar uma das descrições acima das outras?
Como na frase: “Um casamento é fundamentalmente amizade”, ou: “Um casamento é o ato da união
sexual”? Nenhuma dessas descrições assimila totalmente o todo do casamento. Seria melhor definir a
natureza do casamento como “uma aliança entre duas pessoas, que dura a vida toda”, ou algo paralelo a
isso. Por essa razão, podemos permitir que cada uma dessas imagens tenha a liberdade de melhorar e
colorir essa definição fundamental.
321. Agradeço a Steve Wellum por esse argumento.
322. Sinclair B. Ferguson, The Holy Spirit, Contours of Christian Theology [Contornos da Teologia
Cristã], Ed. Gerald Bray, Downers Grove, IL: InterVarsity, 1996, p. 109; veja também Robert Letham,
The Work of Christ, Contours of Christian Theology, Ed. Gerald Bray, Downers Grove, IL: InterVarsity,
1993, pp. 75-87.
323. Não tenho a intenção de dar prioridade à igreja universal em detrimento da igreja local com o
mesmo sentido em que um católico romano o faria. Um católico romano definiria a igreja universal
como a instituição visível na terra, a qual, depois, dá à luz a muitas igrejas locais. Em vez disso, tenho
definido a igreja universal como o corpo celestial e escatológico de Cristo, ao qual pertencemos mediante
a conversão. O nosso batismo numa igreja local simplesmente afirma a membresia anterior. Miroslav
Volf apresenta uma boa discussão sobre esse assunto em After Our Likeness: The Church as the Image
of the Trinity, Grand R apids: Eerdmans, 1998, pp. 139–41.
324. Aqui estão inúmeras passagens do Pentateuco onde Deus se refere a si mesmo como “Senhor teu
Deus” ao falar com a nação de Israel: Êx. 15.26; 16.12; 20.3, 5; Lv 11.44, 45; 18.2, 4, 30; 19.2–4, 10, 12,
25, 31, 34, 36; 20.7, 24; 22.33, 23.22, 43; 24.22; 25.17, 38, 55; 26.1, 12–13; Nm 10.10; 15.41; Dt 4.1;
5.6, 9; 11.2, 28; 13.18; 29.6.
325. Somente no Pentateuco: Êx 20.5; Dt 4.24, 5.9, 6.15, 32.21. Deus até mesmo descreve seu nome
como “ Zeloso” em Êx 34.14.
326. 1 Re 11.13, 32, 34; 2 Re 19.34; Is 37.35.
327. Por exemplo: Gn 26.3, 24, 28.15; Êx 3.12, 25.8, 29.45-46; Dt 12.11.
328. Veja R aymond Ortlund, God’s Unfaithful Wife: A Biblical Theology of Spiritual Adultery [A Esposa
Infiel de Deus: Uma Teologia Bíblica sobre o Adultério Espiritual], New Studies in Biblical Theology.
329. Veja a meditação de Mark Dever sobre a distinção que Deus faz de seu povo no Êxodo in The
Message of the Old Testament: Promises Made, W heaton, IL: Crossway, 2006, pp. 93–99, traduzido
para o português como A Mensagem do Antigo Testamento, Rio de Janeiro: CPAD, 2008; e também sua
meditação sobre Levítico, no mesmo volume, pp. 111–22 (no original).
330. Existem algumas controvérsias sobre se o versículo 5 se refere à aliança abraâmica ou à mosaica.
331. Lv 26.33; Dt 4.27; 28.64; 1 Re 14.15; Ne 1.8; Jr 9.15-16; 13.15-27; Ez 12.14-15.
332. Veja Kent E. Brower e Andy Johnson, Holiness and Ecclesiology in the New Testament [Santidade
e Eclesiologia no Novo Testamento], Grand R apids: Eerdmans, 2007, para um exame livro a livro ao
longo do Novo Testamento sobre o assunto da igreja como santa.
333. Veja David W. Pao, Acts and the Isaianic New Exodus [Atos e o Novo Êxodo Relacionado a Isaías] in
The Biblical Studies Library, Grand R apids: Baker, 2002.
334. Veja 110 n. 60.
335. Veja Christopher J. H. Wright, The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative,
Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, principalmente pp. 87-92; 324-56.
336. Veja também Dt 31.28; Is 30.8ss.; Jr 18.13-17.
337. Darrell Guder, Ed., Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America,
Grand R apids: Eerdmans, 1998, p. 128.
338. Veja D. A . Carson, Love in Hard Places, W heaton, IL: Crossway, 2002, p. 56.
339. Êx 22.21-25; Lv 19.14, 25.25, 35-55; Dt 24.17, 27.18-19.
Capítulo 6
A AFIRMAÇÃO E O
TESTEMUNHO DO AMOR
O GOLFO PÉRSICO
E se confundirmos alguns dos fatores contextuais? Imagine, por exemplo, que
entramos num avião e voamos incontáveis quilômetros para os Emirados Árabes
Unidos, onde um dos meus melhores amigos do seminário, John, pastoreia a Igreja
Cristã Unida de Dubai, na cidade mais populosa dos Emirados Árabes. Assim como a
igreja da Ásia Central, esta igreja está estabelecida numa nação muçulmana, embora
a Igreja Cristã Unida exista com a permissão do xeique local, como um incentivo aos
muitos trabalhadores estrangeiros que ajudam com a riqueza do petróleo e que
concordam com o fato de os árabes manterem as rodas da economia de seus países
em movimento. Na verdade, aproximadamente três quartos da população dos
Emirados Árabes tem nacionalidade estrangeira, a mais elevada porcentagem de
estrangeiros residentes do mundo.
No momento, a Igreja Cristã Unida é a maior igreja evangélica de língua inglesa
do país, e a única reconhecida oficialmente pelos governantes. Ela possui quase 600
membros e dispõe de um prédio relativamente bom e confortável, possuindo outras
dez congregações, sendo que em cada uma delas se fala uma língua diferente. O
governo não permitiu que a Igreja Cristã Unida implantasse outras igrejas e fechou
um de seus locais de reunião. Ajuntamentos religiosos não autorizados são ilegais.
O governo também proíbe a conversão dos cidadãos árabes e, portanto, a
membresia árabe na igreja. Por essa razão, a membresia da igreja consiste
totalmente de estrangeiros, que vêm de mais ou menos seis países e são
relativamente transitórios. Os indivíduos geralmente vêm a Dubai apenas por
alguns anos, antes de retornarem para casa.
Apesar das evidentes semelhanças contextuais entre nossa igreja na Ásia Central
e a Igreja Cristã Unida — ambas estão estabelecidas em nações muçulmanas, nas
quais a conversão é perigosa — os desafios da membresia e da disciplina são muito
diferentes. Quando John voltou, a Igreja Cristã Unida tinha as marcas típicas de
uma igreja internacional. Os indivíduos haviam vindo de todas as partes do mundo,
representando inúmeras denominações protestantes. A fim de promover a unidade,
portanto, os líderes anteriores sempre enfatizaram a abordagem do menor
denominador comum nas questões sobre política organizacional, na esperança de
manter o evangelho no centro e deixar de lado quaisquer discordâncias em
potencial. Seiscentas pessoas frequentavam as reuniões semanais, mas nenhuma
avaliação havia sido feita sobre o fato de aqueles indivíduos serem crentes ou não, e
não existia uma lista dizendo quem era membro. Tudo o que John encontrou
quando o seu pastorado começou foi uma lista de telefones com centenas de nomes,
cinquenta dos quais já haviam partido. Conforme John me descreveu: “Nós
estávamos numa desordem, não sabíamos quem ‘nós’ éramos.”Em certo sentido,
poderíamos dizer que a Igreja Cristã Unida adotou práticas de membresia e
disciplina semelhantes às da igreja da Ásia Central: não há classes para membros;
não há uma lista oficial de membresia; não há visitas ao escritório do pastor antes
de alguém se tornar membro; não há voto da congregação ou um edital liderado
pelo presbítero sobre os novos membros. No entanto, o resultado aqui foi
exatamente o oposto. Não estava claro quem “a igreja” era. Não estava claro quem
era responsável por quem. Não estava claro quem estava genuinamente
identificado com Cristo e quem não estava. Sendo assim, o evangelho e a suas
implicações estavam obscurecidos nas vidas daqueles que frequentavam as reuniões
semanalmente, vindo John a descobrir que o evangelho estava de alguma forma
obscurecido na mente de sua congregação — o que dificilmente seria uma maneira
de proteger e anunciar o evangelho de geração a geração.
Além do mais, a maioria dos frequentadores tinha, até certo ponto, pouco
compromisso com o corpo, em parte porque eles viajavam para Dubai para ganhar
dinheiro o mais rápido possível antes de voltarem para casa. Havia pouca percepção
da posse do discipulado dos outros. “Chorar com os que choram? Alegrar-me com
os que se alegram? Sinto muito, de quem você está falando? Eu tenho que voltar ao
trabalho.” É claro que a imoralidade aumenta quando os crentes não compartilham
a responsabilidade uns pelos outros, e qualquer observador muçulmano apenas
confirmaria o estereótipo de cristianismo como uma religião dissoluta e devassa.
À luz desses fatores contextuais (transitoriedade alta, concepções deficientes
sobre compromisso e responsabilidade mútua, grande comprometimento em
ganhar dinheiro enquanto se está no país, bagagem multidenominacional,
compreensão vaga do evangelho), John tem levado a igreja a uma transição para
práticas mais estruturadas e rigorosas quanto à membresia e à disciplina na igreja.
Os indivíduos agora começam o processo de membresia frequentando cinco classes
para novos membros. A Classe 1 se concentra no evangelho e em outras bases
doutrinárias. A Classe 2 se concentra na adoração, em como o todo da vida é
adoração e no que consiste a adoração coletiva em especial. A Classe 3 considera as
intenções de Deus para uma membresia bíblica da igreja. A Classe 4 explica a
abordagem da igreja sobre a liderança (presbíteros e diáconos). E a Classe 5 oferece
uma cartilha sobre as disciplinas espirituais.
Será que a Igreja Cristã Unida está pedindo que os indivíduos façam algo
extrabíblico, exigindo que todos frequentem essas cinco classes antes de se
tornarem membros? De modo algum. Considere o que está sendo solicitado de cada
membro em potencial em cada uma delas:
“A Bíblia diz que essas são as bases do evangelho e do cristianismo, pelo menos
pelo que entendemos deles aqui. É nisso que você crê?”· “A Bíblia diz que um
cristão existe para adorar a Cristo de modo individual e submisso, com seus
irmãos e irmãs em Cristo. É a esse Cristo que você submeteu sua vida?”
“A Bíblia diz que pertencer ao corpo de Cristo significa disponibilizar sua vida
para o bem de um corpo local. Você está disposto a fazer isso?”
“A Bíblia chama os crentes para se submeterem aos seus líderes e servirem uns
aos outros. Você está disposto a fazer isso?”
“A Bíblia diz que um cristão é alguém que fala com Deus e lê a sua Palavra.
Podemos encorajá-lo a se comprometer a fazer isso pelo seu bem e pelo
nosso?”Vários fatores contextuais obscurecem o evangelho na vida do povo de
Deus; portanto, mesmo num amplo estado muçulmano, fazer essas cinco
perguntas aos membros em potencial ajuda a esclarecer a questão um pouco
mais. Isso os força a parar e perguntar a si mesmos: “É nisso que eu realmente
creio? Estou, de fato, comprometido a seguir a Cristo e a amar seu corpo
conforme disse que estava?” Eu argumentei no Capítulo 4 que Cristo
autorizou a igreja apostólica a exercer supervisão sobre os crentes. Essas
classes são simplesmente um passo inicial para fazer tal supervisão. Elas
esclarecem o que significa ser um cristão diante de Deus e diante do corpo. E
não apenas isso, mas elas demonstram amor pastoral pelos membros em
potencial, levando-os a saberem exatamente com quem eles estariam “se
casando” ao se unirem à Igreja Cristã Unida.
AMÉRICA DO SUL
Eis mais um exemplo num contexto totalmente diferente, que nos permitirá
extrair várias lições adicionais. A Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos,
Brasil, foi fundada em 1984, por dois missionários estrangeiros e um pastor
brasileiro. No presente, ela é pastoreada pelo pastor nativo, Gilson Carlos de Sousa
Santos. A IBG tem aproximadamente 130 membros, a maioria deles é brasileira, e a
maior parte deles se tornou cristã por meio do ministério da igreja. (Essa é a igreja
onde ouvi o sermão sobre o amor do Pai pelo Filho, no batismo de Jesus, que
descrevi no Capítulo 2).
A igreja sempre exigiu entrevistas como um requisito para alguém se tornar
membro, mas, como quase todos que se unem à igreja desde a sua criação têm sido
novos convertidos, a entrevista é essencialmente uma oportunidade para pedir uma
profissão de fé; para testar essa profissão com perguntas; para se alegrar com o
novo crente e para encorajá-lo nos primeiros passos do discipulado. Além disso,
visto que quase todos têm chegado como novos convertidos, a igreja nunca realizou
classes para novos membros. Ela nunca teve que explicar: “Isto é o que somos, em
comparação com outras igrejas que você possa ter conhecido.” Em vez disso, apenas
são oferecidas classes para novos crentes, com títulos como “Fé e Arrependimento”,
“O Evangelho”, “Conversão”, “Batismo”, “A Bíblia” e “A Igreja”. Na mente de todos os
novos convertidos, tornar-se um cristão é sinônimo de se tornar um membro da
igreja, assim como vimos na igreja da Ásia Central. O Brasil possui uma longa
tradição católica, com a qual muitas pessoas concordam nominalmente (quase três
quartos da população brasileira, em contraste com os 15% que se identificam como
protestantes), o que pode influenciar a dinâmica das conversas evangelísticas, bem
como determinados aspectos da classe para novos crentes.
Curiosamente, a Igreja Batista da Graça alcançou um tamanho razoável nos
últimos anos, de modo que os crentes de outras igrejas a têm notado e se decidido a
unir-se a ela. No entanto, isso vem se apresentando como dilema para a igreja, em
relação a como considerar sabiamente a condução do processo de união entre ela e
os membros em potencial. A igreja não quer exigir que os crentes batizados em
outras igrejas frequentem as classes para novos crentes, nem deseja falhar na
obrigação de supervisionar e pastorear responsavelmente nem mesmo os membros
em potencial. Por essa razão, ela faz perguntas como essas: Como podemos dar aos
crentes batizados de outras igrejas a oportunidade de conhecer exatamente o que
nossa igreja crê acerca do evangelho e todas as implicações disso antes de se
comprometerem conosco?
Como podemos dar a esses crentes a oportunidade de saber exatamente o que
ensinamos sobre as outras doutrinas importantes, e relacionadas ao evangelho, que
às vezes dividem os cristãos professos, tais como as Escrituras, a Trindade, a
conversão, os dos do Espírito ou a prometida volta de Cristo?
Como podemos dar a esses crentes a oportunidade de saber quais as obrigações
que Cristo nos obrigou a exigir deles à medida que pastoreamos suas almas?
Como podemos explicar a esses membros que estão chegando como os processos
de decisão funcionam nesta igreja, tanto na manutenção da vida e do discipulado do
corpo como nos momentos de discórdias e disputas, para que possa haver
harmonia?
Como podemos preparar os membros que estão chegando para o tipo de
responsabilidade para com este corpo e para o que eles podem esperar ao se
demonstrarem resistentes ao ensino e incorrigíveis diante dos mandamentos de
Cristo?
Em resumo, a IBG reconhece que Cristo lhe concedeu autoridade para
supervisionar, pastorear e instruir os crentes. Por essa razão, ela deseja garantir
sabiamente que os crentes batizados vindos de outras igrejas saibam o que a igreja
crê acerca dessas questões importantes desde o início, em vez de deixar que as
pessoas se associem e descubram mais tarde a importante área de divergência. Por
essas razões, a IBG está planejando exigir classes para novos membros em breve. O
que são as classes de novos membros, senão ferramentas amorosas para promover
a unidade no corpo?
Isso é particularmente importante para uma igreja no Brasil, nesse momento,
devido (1) à presença do liberalismo nas principais linhas luteranas, presbiterianas
e batistas que dominaram o cenário protestante até os anos 1970 e (2) ao
crescimento espantoso das igrejas carismáticas e pentecostais que pregam um falso
evangelho da prosperidade (ou algo parecido) desde os anos 1970. A IBG tem
encontrado nos últimos anos membros em potencial vindo de uma ou outra igreja
como essas, com concepções erradas sobre o cristianismo ou, pelo menos,
superficiais. Uma mulher que havia sido membro de uma igreja carismática durante
anos descobriu, durante o processo de entrevista, que não sabia o que o evangelho
era.
A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO
Será que uma igreja centrada no evangelho, em Baltimore, praticará a
membresia e a disciplina da mesma forma que as igrejas centradas no evangelho em
Bangkok ou Bishkek? Por um lado, acho que a resposta é não. Consideremos apenas
um dos propósitos da membresia bíblica da igreja, o da identificação. Temos dito
que Cristo autorizou as igrejas a identificarem os crentes com ele mesmo e com o
povo dele. O cumprimento desse propósito pode parecer um pouco diferente de
situação para situação, conforme duas considerações da prudência: a complexidade
da sociedade e o fato de a sociedade ser favorável à igreja.
A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE
Para começar, quanto maior e mais complexa uma sociedade se tornar, mais
difícil será identificar os crentes com Cristo e com o povo de Cristo. Isso se torna
difícil por causa da transitoriedade profissional, da mobilidade social, do tamanho
da igreja, da expansão urbana, dos horários de trabalho mais exigentes, do
pluralismo religioso, do preconceito étnico, do multidenominacionalismo, das
igrejas hereges e com evangelhos falsos, do fato de as pessoas pularem de igreja em
igreja, e por fatores sociais, tais como o individualismo e o consumismo. É muito
simples, quanto maior e mais complexa a sociedade se tornar, mais difícil será saber
“quem está com quem”, é como tentar encontrar um rosto numa grande multidão,
em vez de num grupo pequeno.
Imagine que um homem jovem apareça na porta de sua igreja nos Estados
Unidos, hoje, e diga: “Sou um cristão, por favor, deixem que eu me associe a vocês.”
Você nunca o viu. Não conhece seus pais, seus amigos ou colegas. Afinal de contas,
ele mora a mais de trinta quilômetros de onde sua igreja se reúne e trabalha ainda
mais longe. Você pode lhe perguntar quais igrejas ele frequentou antes, mas você
não sabe qual “Jesus” e qual “evangelho” essas igrejas lhe ensinaram. Pode ter sido
um evangelho fácil, um evangelho do senhorio de Cristo, um evangelho emergente,
um evangelho do reino, um evangelho greco-ortodoxo, um evangelho liberal do
censo comum ou um evangelho mórmon. Ele lhe diz que continuará a frequentar
um empolgante ministério para solteiros nas noites de domingo, promovido por
outra igreja, o que lhe dará alguma indicação de seu nível de compromisso com sua
igreja. Além disso, ele gasta todo o tempo em que está acordado tentando ficar no
topo do mercado de trabalho. Como é a vida dele no trabalho? Será que é um pouco
diferente da de seus colegas descrentes? Você não espera saber como é, a menos
que algo drástico aconteça envolvendo a lei. Além do mais, não há tempo para
verificar isso com ele regularmente. Sua agenda é muito cheia. Se ele se unir à sua
igreja, você esperará ver seu rosto pairando mais tarde na multidão, nas manhãs de
domingo, e só isso. Talvez você se lembre do nome dele, talvez não.
Em comparação, imagine que um homem jovem apareça na porta de sua igreja
numa minúscula cidade da Ásia Central, dizendo: “Sou um cristão, por favor,
deixem que eu me associe a vocês.” Claro, isso não seria, de fato, na porta de um
prédio de uma igreja, seria na casa dele, após os dois compartilharem um grande
prato de arroz pilaf.343
Você sabe quem ele é, porque ele vive na mesma casa com paredes de blocos de
concreto e telhado de metal ondulado em que nasceu, a qual está a dois minutos de
caminhada da sua casa. Você saberia que seus pais foram convertidos, vindos de
uma forma supersticiosa e popular do Islã havia apenas dois anos antes, e que
durante três meses seu pai não havia recebido pagamento em dinheiro da fábrica de
toalha onde trabalha, mas que estaria sendo pago com toalhas, as quais ele vende na
rua, a fim de pôr comida na mesa da família. A falta de dinheiro não tem sido tão
preocupante para a família (eles estão acostumados com isso) quanto o fato de
encontrar uma boa maneira de compartilhar o evangelho com o barulhento avô
muçulmano antes que ele morra, o evangelho que eles ouviram de você pela
primeira vez. Você saberia que esse jovem homem é brilhante, porque você o
ensinou a jogar xadrez quando ele tinha dezessete anos, e ele o venceu na quarta
vez em que vocês jogaram; mas você também saberia que ele não tem perspectivas
profissionais devido à falta de ligação com os oficiais da cidade. Esses oficiais não
podem ser subornados com toalhas (não que você recomende o suborno). Quando
ele dissesse: “Sou um cristão”, você saberia exatamente o que ele estaria dizendo,
pois você tem discutido esse assunto com ele há meses, ou até anos, e ninguém mais
fez isso com ele no mundo em que ele vive.
Qual é a diferença entre essas duas situações? A primeira ilustra uma sociedade
que é religiosa, cultural e economicamente mais complexa. Não sei se eu diria que
uma sociedade é preferível a outra. Ambas possuem suas vantagem e desvantagens,
e nenhuma delas é a sociedade prometida na glória. A questão aqui é que é muito
mais difícil identificar alguém com Cristo de forma significativa na primeira
situação. Há muito mais coisas para explicar sobre os dois lados. Por essa razão,
poderíamos resumir como as igrejas nas sociedades simples e complexas podem
precisar praticar a membresia e a disciplina na igreja de modo diferente, dando uma
palavra de esclarecimento. Numa sociedade complexa, ambas as partes envolvidas
no acordo precisam dar mais explicações, como no caso: “Quando digo ‘cristão’, não
estou querendo dizer ‘isso’, mas sim ‘aquilo’.” Estou usando a palavra “explicar” de
forma vaga, é lógico. Não estou falando sobre algo que você possa fazer em cada
uma dessas conversas. Antes, estou buscando uma maneira para que nós, em nosso
cenário urbano pluralístico e de comunicação acelerada, possamos nos dar ao
menos o mínimo de informação que teríamos a respeito de alguém que cresceu em
nossa vizinhança.
A igreja de meu amigo Robin, em Deli, na Índia, uma cidade com muita
transitoriedade de pessoas, com dezoito milhões de habitantes, tenta preencher
essa lacuna de conhecimento exigindo um período de espera de seis meses antes de
admitir alguém na membresia (a IBG, no Brasil, faz a mesma exigência). A igreja
decidiu usar essa ferramenta específica como uma oportunidade para que a igreja e
o cristão conheçam um ao outro antes de fazer uma aliança de compromisso. Não
estou recomendando um período de teste. Na verdade, posso pensar em razões para
não termos esse período, mas eu diria que contextos diferentes podem exigir que as
igrejas encontrem maneiras diferentes de explicar o que significa entrar numa
aliança de membresia com a igreja, por meio do batismo e da Ceia do Senhor.
Correndo o risco de soar pouco inovador, uma solução simples, que funciona na
maioria dos contextos hoje em dia, é uma classe para novos membros. Chame-a de
“classe de explicação”, se você quiser. Também gostaria de recomendar muitas
ferramentas que as igrejas utilizavam um século atrás, como entrevistas,
declarações de fé, alianças eclesiásticas escritas, lista de membros e até mesmo
cartas de transferência. Todas essas são maneiras simples de a igreja explicar aos
membros em potencial: “Isto é o que somos”, e de eles explicarem à igreja: “Isto é o
que eu sou.”Exigir explicações cuidadosas de ambos os lados é no mínimo uma
questão de prudência. E deveria ser uma questão de integridade. Isso certamente é
uma questão de amor de ambas as partes, já que promove transparência, instrução
e unidade.
A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO
Precisamos voltar para o ponto mais importante, que é aquele ponto
relativamente imaterial, sobre onde sua igreja está, seja em Baltimore, Bangkok ou
Bishkek. Toda igreja em todo lugar está incumbida de distinguir um povo que seja
santo ao Senhor. Toda igreja foi encarregada, por Cristo, de confirmar as profissões
de fé fidedignas e de supervisionar os professos, discipulá-los e excluí-los quando
necessário. Toda igreja está incumbida de definir o amor de Deus para o mundo, o
que significa que todos estarão se opondo ao mundo, à carne e ao diabo. Não
importa onde isso aconteça geográfica ou culturalmente, a igreja habita em
território inimigo, num ponto fronteiriço desprezado pelo senhor da terra. O
ataque de uma multidão hindu com tochas na mão em Orissa é diferente do
subterfúgio do cristianismo cultural melado do Mississipi; mas, curiosamente, a
igreja protege o evangelho contra esses dois tipos de ataques ao fazer a cada
membro em potencial a mesma pergunta: “Você tem certeza que está pronto para
tomar a sua cruz e dar a si mesmo para se identificar com Cristo e com seu corpo?”
Ela protege o evangelho ao tomar um grande cuidado para unir membros a si
mesma e ao supervisionar cautelosamente as almas, mês após mês, ano após ano,
por meio do ensino da Palavra de Deus.
A QUARTA IGREJA
A insignificância do contexto pode também ser ilustrada com a quarta igreja,
uma que mencionei anteriormente de forma breve. Em Deli, na Índia, meu amigo
britânico, Robin, pastoreia uma igreja multiétnica, de maioria indiana, com
aproximadamente oitenta membros e o dobro de frequentadores. Deli é uma cidade
imensa. Há inúmeros trabalhadores imigrantes. Por essa razão, Robin enfrenta
alguns dos mesmos problemas enfrentados por John em Dubai, como
transitoriedade e falta de compromisso. Mas na igreja de Robin, a falta de
compromisso é uma consequência do fato de os indianos se sentirem fortemente
identificados com a região geográfica de onde vieram. Muitos crentes vivem no sul
da Índia, mudando-se para Deli, no norte, por razões profissionais. Apesar de se
mudarem, mantêm um forte sentimento de identificação com sua igreja natal,
móvito pelo qual nunca se associam à congregação de Deli e nunca contribuem com
parte de seu salário. Em vez disso, eles mandam o seu dízimo para a igreja de seus
pais.
A congregação em Deli não é atacada pelo mesmo tipo de individualismo que
caracteriza muitas igrejas no Ocidente. Na verdade, as pessoas dessa sociedade
baseada em castas mantêm um forte sentimento de ligação com formas mais
tradicionais de identidade, como família, classe social e região. A pobreza os enviou
para outros lugares na busca de empregos, mas a estrutura social presente continua
forte. No entanto, é essa mesma estrutura social que impede os indivíduos de
tomarem posse do corpo de Cristo onde eles de fato vivem e respiram. Isso os leva a
abandonar o amor pelos irmãos e irmãs a quem eles veem.
A questão é que se uma sociedade for individualista, ou centrada na família, ou
regionalista, as pessoas se identificarão com Cristo e seu povo de modo relutante,
porque isso vai contra a nossa natureza pecaminosa. Essa relutância é universal. É
uma condição da própria queda. Quando Jesus nos disse para abandonar os
membros de nossa família, deixar que os mortos enterrassem seus próprios
mortos, vender tudo, tomar a nossa cruz e segui-lo, ele estava invadindo todas as
culturas, todas as nações, todos os grupos sociais e todas as eras da história,
chamando-nos para participar de uma nova história e de uma nova criação. E nessa
nova história e criação, tudo o que definia o “eu” na antiga criação agora está
disponível a todos. Isso não significa que eu — para me usar como exemplo — não
mais verei o mundo através dos olhos masculinos, caucasianos, americanos e (mais
importante) pecaminosos pertencentes à família Leeman. Mas sim que todas as
incrustações culturais ligadas a cada uma dessas categorias não são mais
determinantes. Elas não me prendem mais. Eu fui crucificado com Cristo. Nasci de
novo. Sou uma nova criatura. Somente Cristo tem a autoridade para determinar
totalmente o que sou do começo ao fim. Sempre pensarei como um homem, em
certo sentido, mas agora eu tomo minha masculinidade e minha cidadania
americana e tudo o mais que me define e os coloco aos pés de Cristo. “O que o
Senhor quer que eu faça com tudo isso? Defina a masculinidade para mim. Ajude-
me a administrar sabiamente minha cidadania americana.” É por isso que Paulo
podia dizer que no reino não há homem ou mulher, escravo ou livre, judeu ou
grego. Cristo determina quem somos, porque essa é uma identidade que será
exibida por toda a eternidade.
A nova identidade não é apenas uma nova identidade individual, é uma nova
identidade coletiva ou familiar. Por essa razão, Cristo dá à igreja local a autoridade
para nos ligar. Isso não é estranho? Todavia, é na igreja local na terra que essa nova
identidade cristã — individual e coletiva — encontra sua expressão plena aqui e
agora. É na membresia de uma igreja local que nós devemos “vestir” o amor e a
santidade que nos faz retratar o próprio Criador (veja as instruções de Paulo para as
igrejas locais em Colossenses 3, principalmente nos versículos 9 a 17). Isso significa
que o mais incrível é que eu, agora, compartilho uma união mais íntima com Priya,
uma mulher com cidadania zambiana de minha igreja, de ascendência indiana, do
que a união que compartilho com meu irmão de sangue, pelo menos por causa do
fato de, sendo meu irmão de sangue, nosso relacionamento terminará com a morte.
A membresia da igreja em Baltimore, Bangkok e Bishkek trata de afirmar esse fato
eterno e de dar substância a ele na vida cotidiana: o batismo e a ceia do Senhor
distinguem pessoas como Priya e eu. O ministério de ensino da igreja nos discipula,
e depois nós começamos a agir de modo a vivenciar a unidade amorosa de Cristo.
Isso é uma realidade, não importa onde a igreja esteja localizada. A membresia da
igreja confirma os crentes individuais como o povo de Deus, e depois ela os mostra
como testemunhas para a o mundo.
A CONFIRMAÇÃO DE UM MEMBRO
A fim de ajudar as igrejas a abordarem de modo responsável a tarefa de
confirmar, supervisionar e disciplinar os santos, gastaremos o restante deste
capítulo passando pelos processos de membresia e disciplina da igreja do ponto de
vista da igreja.
Algo em meus genes anti-institucionais reluta em chamar o que vem a seguir de
programa, mas acho que é isso o que estou oferecendo. É um plano para cumprir
um determinado propósito, e essa é a definição de programa. Espero que também
seja um cristianismo bíblico e responsável. Ele também é uma série de atividades
que, creio eu, são úteis para distinguir a igreja do mundo. O programa a seguir
almeja ajudar as igrejas a confirmarem indivíduos como cristãos e depois exibi-los
como testemunhas de Cristo. Algumas das ideias são explicitamente bíblicas;
algumas podem ser inferidas a partir do texto bíblico; e algumas são apenas
maneiras prudentes de cumprir a ordem bíblica de distinguir um povo do mundo.
Em termos de contexto, estou escrevendo principalmente para o contexto urbano
ocidental contemporâneo; todavia, tento estar atento aos demais.
A DECLARAÇÃO DE FÉ
O mesmo princípio permanece em relação à declaração de fé de uma igreja. Uma
igreja serve melhor aos seus membros ao ser explícita sobre o que ela crê. As
declarações de fé são bíblicas? Elas podem ser pelo menos inferidas das Escrituras:
Jesus estava interessado nos detalhes sobre quem Pedro cria que ele era (Mt
16.15-17).
Paulo disse aos gálatas para rejeitarem qualquer um que ensinasse um
evangelho diferente daquele que ele ensinou (Gl 1.6-9). Aparentemente, ele
supunha que eles compartilhavam uma mesma compreensão acerca do que era
o evangelho.
João disse às igrejas que elas deveriam acreditar que Jesus é o Cristo, que ele
veio em carne e que ele é o Filho de Deus. Ele também insistiu para que as
igrejas tivessem uma doutrina correta sobre o pecado. Se qualquer pessoa
alegasse não ter pecado, ela seria mentirosa (Jo 3.16; 1 Jo 1.8-9; 4.2, 15; 5.1,
10, 13; 2 Jo 7, 10).
Pedro e Judas dedicaram cartas inteiras ao preparo das igrejas contra os
mestres que possuíam um entendimento falso da vida e da doutrina cristã.
O autor de Hebreus adverte seus leitores: “Não vos deixeis envolver por
doutrinas várias e estranhas” (Hb 13.9).
Jesus advertiu contra o falso ensino dos nicolaítas e de Jezabel (Ap 2.15, 20).
Paulo disse que pontos de vista errôneos sobre a escatologia fariam com que a
pregação e a fé dos coríntios se tornassem vãs (1 Co 15.12ss.).
Nenhum versículo do Novo Testamento afirma: “As igrejas devem ter uma
declaração de fé”, mas as epístolas ensinam regularmente que as igrejas precisam
abraçar a doutrina correta e evitar todas as doutrinas falsas. Embora as epístolas
corrijam e ensinem a doutrina por direito, elas também falam como se as igrejas
tivessem uma compreensão comum acerca da doutrina dos apóstolos (veja também
Gl 2.2, 7-9).
Às vezes, os crentes se queixam de que as declarações de fé sistematizam ou
forçam excessivamente a narrativa bíblica. Outros gostam de dizer que “não
possuem um credo, mas somente a Bíblia”. Ambas as respostas, ouso dizer,
demonstram uma falta de compreensão de si mesmos. Todo mundo tem uma
declaração de fé. Todos creem em coisas específicas a respeito das Escrituras, de
Deus, da criação, da Queda, da pessoa e da obra de Cristo, da igreja e dos últimos
dias. E não apenas isso, mas essas crenças pessoais sistematizam invariavelmente as
Escrituras. Podemos chegar para qualquer cristão e perguntar “Quem é Deus?”, ou
“O que é a Bíblia?”, ou “Como podemos ser salvos?”, e ele terá uma resposta que vai
além de uma coleção de versículos bíblicos. Reconhecidamente, nem todo cristão
poderia articular suas respostas a algumas dessas perguntas. Com esse propósito,
uma declaração de fé cumpre a obra de pastoreio sábio ajudando as pessoas a
fazerem isso e, consequentemente, determinando se suas respostas se ajustam às
crenças de uma determinada igreja.
Embora a existência de uma declaração de fé seja uma questão de inferência
bíblica, a criação de uma declaração de fé nos dirige para o domínio da prudência.
Em conformidade com isso, uma boa declaração de fé é uma tentativa de equilibrar
inúmeras considerações opostas. Ela almeja ser abrangente e concisa, universal e
específica, histórica e atual, cautelosa e simples. Acima de tudo, uma declaração de
fé deve pedir que os crentes afirmem somente aquilo que a Bíblia lhes pede para
afirmar. Alcançar esse equilíbrio exige, sabiamente, alguma sensibilidade em relação
ao próprio contexto.
Abrangente e Concisa. Por um lado, uma declaração de fé deve fornecer uma
síntese abrangente das principais categorias da doutrina cristã, visto que as
doutrinas cristãs estão interligadas. Uma declaração de fé poderia parecer uma lista
numerada, mas ela é muito mais do que isso. Ela também é uma teia de aranha na
qual cada doutrina condiciona todas as outras doutrinas344. Toque uma teia de
aranha em qualquer um dos pontos e toda a teia vibrará. Semelhantemente, se
tocarmos a doutrina da pessoa de Cristo, a nossa doutrina sobre a obra de Cristo
tremerá com as implicações daquela. Se tocarmos a doutrina do amor de Deus,
tudo, desde a nossa compreensão acerca do evangelho até a nossa política
organizacional da igreja, será abalado. À luz de tamanha interligação, uma boa
declaração de fé apresenta uma maneira unificada de olhar para a vida cristã e para
o mundo através das Escrituras, ou pelo menos uma compreensão que a igreja tem
acerca das Escrituras. Ela ajuda os crentes a perceberem que todas essas questões
estão interligadas.
Por outro lado, uma declaração de fé deve fazer isso de modo breve e conciso. Ela
deve fornecer indicadores doutrinários em vez de explicações doutrinárias. Ela
poderia afirmar “justificação somente pela fé”, mas não necessita explicar
totalmente esse assunto. O alvo é simplesmente permitir que as pessoas saibam a
posição da igreja.
Universal e Específica. Por um lado, uma declaração de fé deve afirmar aquelas
coisas que são universais para todos os crentes em todos os lugares, tal como a
proposição de que Cristo é totalmente Deus e totalmente homem — uma pessoa
com duas naturezas345.
Por outro lado, uma declaração de fé talvez precise responder aos desafios
doutrinários relevantes para um tempo ou lugar específicos. Por exemplo, hoje,
uma igreja da África do Sul que é cercada por igrejas pentecostais que pregam um
evangelho da prosperidade pode decidir articular o evangelho ou uma doutrina
sobre os dons espirituais de uma forma que contrabalance os excessos e os erros
dessas igrejas. Obviamente, essas decisões precisam ser ponderadas
cuidadosamente.
Histórica e Atual As declarações de fé devem ser tanto históricas quanto atuais.
Por um lado, há sabedoria e humildade em posicionar uma igreja dentro da vasta
torrente da tradição teológica cristã, por meio de uma declaração de fé antiga,
mesmo com o risco de usar uma linguagem antiquada. As nossas igrejas fazem bem
em admitir que não temos examinado a Bíblia por nossa conta. Em vez disso,
permanecemos sobre os ombros dos santos fiéis que nos precederam.
Por outro lado, a maioria dos membros se identifica mais facilmente com a
linguagem escrita em vernáculo, o que pode recomendar o uso de uma nova
declaração de fé. Eu encorajo as igrejas a procurarem maneiras de combinar ambas
as considerações.
Cautelosa e Simples. Por um lado, uma declaração de fé deve articular
cuidadosamente o que uma igreja crê, reconhecendo a capacidade de os falsos
mestres explorarem excessivamente uma linguagem abrangente e vaga. Eis aqui a
doutrina completa sobre Deus de uma igreja americana enorme, pelo menos
conforme está afirmada naquilo que eu chamaria de sua declaração de fé
“principal”: “Deus é maior, melhor e está muito mais perto do que podemos
imaginar.”Para seu próprio crédito, essa mesma igreja também possui uma
declaração mais extensa e abrangente “por debaixo dos panos” (disponível mediante
pedido). O que está errado com a declaração “principal” dessa igreja? Ela é
certamente amigável e calorosa. O problema é que qualquer pessoa, desde um
unitariano até um hindu poderia afirmá-la (com as qualificações corretas).
Por outro lado, as declarações de fé devem ser simples e claras. Os crentes
precisam ser capazes de compreender o que estão afirmando.
Contextual. Quão abrangente e quão concisa? Quão cautelosa e quão simples?
Em certa medida, encontrar o equilíbrio correto depende do contexto. Uma
congregação alfabetizada e com escolaridade poderia exigir um equilíbrio diferente
de uma não alfabetizada e sem escolaridade. Ao afirmar isso, receio que as
tendências democráticas e antielitistas que ressoam pelo Ocidente levem muitos
líderes de igreja a errarem em relação à simplicidade e a não exigirem muito de suas
congregações. Como resultado, exigimos que nossas igrejas contemporâneas,
formadas nas universidades, compreendam menos do que os escritores das
Epístolas do Novo Testamento exigiam de seus leitores. O quão comparativamente
mais escolarizados presumimos que fossem os primeiros leitores (ou ouvintes) de
Hebreus? Devemos exigir menos de nossas igrejas do que o autor de Hebreus
exigiu?
Bíblica. Acima de qualquer outra coisa, uma igreja jamais deve ligar a consciência
de um crente naquilo que as Escrituras não a ligam. As declarações de fé nunca
devem ir além das Escrituras. Além disso, as declarações de fé geralmente fazem
bem em exigir que os crentes afirmem somente aquelas coisas que possuem um
vasto grau de testemunho bíblico, em vez de apenas um ou dois textos-prova.
Talvez o pastor dessa igreja específica tivesse modos não muito receptivos. Se for
assim, ele deve corrigir isso. O que fica evidente é que o homem que escrevia a carta
nunca foi ensinado por suas igrejas anteriores que se submeter ao senhorio de
Cristo significa se submeter ao procurador autorizado por Cristo na terra — a
igreja apostólica local. Não há nenhum senso da responsabilidade que a igreja tem
de guardar o evangelho, e não há espaço na mente desse homem para a
possibilidade de autoengano, para o fato de as pessoas poderem acreditar que são
crentes quando não o são. Por essa razão, as perguntas que o pastor fez à sua
esposa o ofenderam.
Se eu posso adivinhar, ele estava provavelmente embaraçado pelo fato de sua
esposa não conseguir ter respondido às perguntas básicas do pastor, como: “O que é
o evangelho?” Presumo que seja isso porque, mais adiante, em sua carta, o homem
escreveu: “Você também disse que, visto que minha mulher havia se encontrado
com uma senhora cristã madura algumas vezes, nós nos encontraríamos de novo. É
como se precisássemos passar por uma nova prova antes de poder ser membros.”
Isso soa como se o pastor não tivesse certeza de que a esposa do homem fosse
cristã, que é motivo de ele tê-la encorajado carinhosamente a passar algum tempo
com outra mulher cristã primeiramente. Mesmo que o pastor estivesse errado em
seu julgamento, ele não estava fortalecendo sua fé ao garantir que ela soubesse
como articular o evangelho? Ele não a estaria equipando para o evangelismo e para
a maternidade de seus próprios filhos? Por que, senão por orgulho, um marido
cristão se oporia a um pastor que estivesse pedindo que sua esposa fosse
discipulada por outra mulher? Ele provavelmente nunca havia sido ensinado que o
amor é centrado em Deus; que o amor chama os crentes para uma conformidade
obediente com Cristo; que Cristo nos deu sua igreja para cumprir exatamente esses
propósitos em nossas vidas e para participar do cumprimento deles na vida dos
outros.
O que um pastor deve fazer quando alguém que está sendo entrevistado é
incapaz de articular o evangelho? Para começar, ele pode tentar estimular essa
articulação com perguntas de investigação. Uma mulher que ainda estava
aprendendo inglês veio à minha igreja para uma entrevista de membresia. Quando
lhe perguntei o que era o evangelho, ele respondeu: “O evangelho?”, como se não
reconhecesse a palavra em si. Então, eu respondi simplesmente: “As boas novas de
Jesus Cristo.” Ela então forneceu uma explicação razoável sobre a morte e a
ressurreição substitutiva de Cristo. A conversa me deu a oportunidade de garantir
que dali em diante ela conhecesse a palavra “evangelho”. As entrevistas fornecem
boas oportunidades de ensino.
Quando estão respondendo, as pessoas às vezes podem omitir uma parte
importante do evangelho, tal como a ressurreição ou o chamado para o
arrependimento. Mais uma vez, as perguntas de investigação podem aumentar
amorosamente sua compreensão, bem como ser utilizadas para ensinar. Quando
uma pessoa falha em mencionar algo sobre o arrependimento, eu posso dizer algo
como: “Imagine alguém que alegue crer na mensagem de que Jesus morreu pelo
nosso pecado, mas, após ser batizado, nada muda em sua vida. Ele continua a
dormir com sua namorada; não demonstra interesse algum em amar os fracos;
evita se reunir com os santos e, de forma geral, vive exatamente como um
descrente. O que você diria sobre ele?” Na maioria das vezes, a pessoa entrevistada
diz algo como: “Isso não pode ser assim, ele não entendeu a questão principal.” A
pessoa entrevistada talvez não conheça a palavra arrependimento, embora
compreenda sua ideia básica.
De forma geral, os pastores e presbíteros devem exercer um grau significativo de
caridade em suas entrevistas. Não estamos buscando confirmar teólogos, mas
cristãos. Quando os discípulos perguntaram a Jesus quem era o maior no reino dos
céus, ele respondeu: “Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o
maior no Reino dos Céus. E quem receber uma criança, tal como esta, em meu
nome, a mim me recebe” (Mt 18.4-5). Em outras palavras, não estamos ouvindo
uma articulação perfeita da verdade teológica, estamos ouvindo o início do
quebrantamento e da humildade diante de Deus, concebido pelo Espírito Santo.
Estamos ouvindo aqueles que são pobres de espírito; que lamentam o seu pecado;
que sabem humildemente que não estão autorizados a ter o perdão de Cristo ou a
membresia na igreja e que têm fome e sede da justiça de Cristo (Mt 5.3-6).
Quando o Espírito dá essa pobreza de espírito a alguém, ele também o leva a
perceber que Jesus é “o Cristo, o Filho do Deus vivo”, que “derramou [o sangue] em
favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 16.16; 26.28). Se as pessoas que
estão sentadas para a entrevista estiverem verdadeiramente com fome de uma
justiça que não vem delas mesmas, mas ainda não tiverem descoberto que essa
justiça vem de Cristo, ainda não será a hora de trazê-las para a membresia. É hora
para estudos extras, o que o verdadeiramente pobre de espírito sempre acolherá de
bom grado. Quando elas finalmente chegarem com o nome de Cristo em suas bocas,
a igreja poderá se alegrar em confirmá-las, já que elas serão aquelas que citarão o
seu nome como o nome daquele que lhes estendeu misericórdia; aquelas que
viverão em pureza de coração; que serão pacificadoras; e que de bom grado sofrerão
perseguição por causa da justiça. Elas serão aquelas que darão testemunho de
Cristo, sendo sal e luz para o seu reino, trazendo glória ao Pai que está nos céus (Mt
5.13-16). É exatamente aqui, à porta do aprisco, que os pastores são chamados para
realizar a obra de proteção das ovelhas e de ficarem firmes contra os lobos.
Finalmente, uma entrevista de membresia oferece uma oportunidade para que
uma pessoa afirme formalmente a declaração de fé e a aliança da igreja, e se
submeta a elas, em qualquer que seja a forma cultural que comunique com mais
clareza essa autoidentificação. Na maior parte do mundo de hoje, as pessoas dão
sua aprovação por meio de uma assinatura. Essa é a maneira mais comum e
reconhecida de dizer: “Reconheço todas as palavras que estão neste pedaço de papel.
Dou a mim mesmo para apoiá-las com minha vida e ações.” Embora não haja uma
autorização bíblica direta para que as igrejas exijam uma assinatura, isso faz parte
do senso comum, já que colocamos a nossa assinatura nos compromissos de
natureza mais ou menos importantes, tais como cheques bancários, requerimentos
para a faculdade e formulários de impostos.
A SUPERVISÃO DO MEMBRO
Até agora, temos considerado a porta de entrada para a membresia da igreja.
Conforme passarmos agora a considerar a responsabilidade da igreja de
supervisionar as vidas daqueles a quem ela confirma, descobriremos que a maior
parte da supervisão da igreja é exercida à medida que os indivíduos cuidam e
discipulam uns aos outros.
O ALVO DA SUPERVISÃO
Qual é o alvo da igreja na supervisão das vidas de seus membros? Poderíamos
responder a essa pergunta de inúmeras maneiras. Poderíamos falar sobre o alvo de
ajudar os membros da igreja a perseverarem até o fim, assim como Jesus faz vez
após vez em suas cartas às sete igrejas de Apocalipse. Poderíamos falar sobre ajudar
os membros a definirem o amor para o mundo, assim como João em especial parece
discorrer em seu Evangelho e em suas epístolas. Poderíamos falar sobre equipar os
membros da igreja para as obras do ministério até que eles alcancem unidade,
maturidade e a estatura da plenitude de Cristo, como Paulo faz em Efésios 4, ou
sobre preparar a igreja como uma noiva santa e radiante, como ele faz em Efésios 5.
Seja qual for a passagem para qual apontemos, esse alvo pode ser resumido na
manutenção e no desenvolvimento de um testemunho fidedigno de Cristo na terra.
Se isso soar como algo muito mecânico ou uma exploração, do ponto de vista do
membro da igreja, como se ele tivesse pedido para não fazer nada além do que ficar
por aí como uma placa de rua, tenha em mente que ser uma placa de rua (ou
imagem) no Reino de Deus significa experimentar a plenitude do amor e da glória
Deus, à medida que participamos de seu governo.
O PODER DA SUPERVISÃO
No entanto, à medida que mostramos esses retratos de um povo obediente e de
uma noiva radiante, precisamos parar imediatamente e nos lembrar de uma das
principais diferenças entre o Israel do Antigo Testamento e a igreja do Novo.
Também se esperava que Israel desse testemunho de Deus na terra como um povo
obediente e uma noiva radiante, tendo eles todas as leis que poderíamos imaginar
para ajudá-los a se tornarem esse retrato. O problema era que a lei não mudava os
corações.
À medida que os pastores e as congregações supervisionam a vida uns dos outros
na preparação para o dia da volta de Cristo, essa verdade fundamental informa a
cada ato de instrução e disciplina: somente Deus muda os corações, por meio de seu
evangelho. Isso é verdade na conversão e continua sendo verdade a cada passo de
crescimento na vida cristã. Por essa razão, os supervisores da igreja, como se
fossem pais, devem orar e lutar não só por uma conformidade externa à lei, mas por
mudanças fundamentais no coração. A melhor ilustração que conheço para essa
questão vem do conselheiro Paul David Tripp:
Faça de conta que eu tenho uma macieira no meu quintal. A cada ano ela faz brotar e crescer
maçãs, mas quando as maçãs amadurecem, elas ficam secas, enrugadas, amarronzadas e moles.
Após vários anos, decidi que era tolice ter uma macieira e nunca poder comer seu fruto. Então,
eu decidi que deveria fazer algo para “consertar” a árvore. Numa tarde de sábado, você olha
pela janela e me vê carregando para o quintal um cortador de galhos, uma pistola de pregos,
uma escada e um alqueire de maçãs vermelhas deliciosas. Você observa, à medida que eu corto
cuidadosamente as maçãs ruins e prego as belas maçãs vermelhas nos galhos da árvore. Você
vem e me pergunta o que estou fazendo, e eu digo orgulhosamente: “Finalmente consertei
minha macieira!” 346
UM TEMA DIFÍCIL
A disciplina corretiva na igreja é um tema difícil, não há dúvidas. Pensamos
conosco: o cristianismo supostamente diz respeito ao amor e à graça, ao passo que a
disciplina na igreja pode soar como o oposto do amor e da graça, de onde hesitação.
Questionamos se esse é o melhor curso de ação. Os pastores se perguntam se eles
devem fazer mais para ajudar o indivíduo. Questionam se apenas endurecerão o
indivíduo em relação à igreja. Talvez, em nenhuma outra área sintamos de modo
tão severo a prerrogativa de agir como os procuradores de Cristo. “O Senhor tem
certeza? O Senhor quer que exerçamos esse poder das chaves para ligar e desligar?”
É fácil tomar as chaves quando estamos trazendo alguém para dentro, mas e
quando é para mandá-lo embora?
Devemos manter em mente que a disciplina corretiva na igreja é um pequeno ato
de julgamento na terra que aponta vagamente para o julgamento final, de Deus, no
céu. Ele é realizado na esperança de ajudar a trazer o pecador ao arrependimento
antes que venha o julgamento final. Por essa razão, quando nos empenhamos nisso,
creio que a disciplina na igreja é algo difícil de fazer, porque tratamos o juízo final de
Deus de forma bem inconsequente. Passamos dias, até mesmo meses, sem nunca
pensar sobre ele. Até mesmo questionamos secretamente se esse juízo será afinal
tão ruim. O maligno nunca parou de sussurrar em nossos ouvidos: “É certo que não
morrereis.” Além do mais, amamos muito a nós mesmos; e o conflito entre a
concepção que Deus tem sobre o amor, a qual é teocêntrica, e a nossa concepção
antropocêntrica grita mais alto diante da disciplina na igreja. Deus não julgará, de
fato, os que estão fora do evangelho, não é mesmo? O pastor reformado holandês
Wilhelmus à Brakel, escrevendo em um livro publicado pela primeira vez em 1700,
fornece uma advertência severa aos líderes de igrejas que são tentados a pensar
dessa maneira. Suas palavras poderiam soar como ríspidas para os nossos
sentimentos contemporâneos, mas acho que elas são dignas de serem ouvidas,
principalmente por qualquer líder de igreja que, assim como eu, pensa bem pouco
sobre aquele grande dia de prestação de contas. Brakel nos dá um vislumbre do que
significa prestar contas daqueles que foram confiados aos nossos cuidados ao
referir-se ao que ele chama de “chave da disciplina”:
Atentai para o fato de que essa chave vos foi confiada pelo Senhor Jesus. Vós sois, por assim
dizer, os porteiros de uma cidade. Esses porteiros são considerados os mais infiéis quando
permitem a entrada de um inimigo que se aproxima, vindo para destrui-la. Vós seríeis
igualmente porteiros infiéis se permitísseis que esses inimigos entrassem e permanecessem em
vosso meio e assim destruíssem a congregação que colocou sua cofiança em vossa fidelidade. Vós
sois a causa de a igreja estar se tornando degenerada em sua essência. Sois responsáveis por
todas as consequências disso. Por causa disso, o Nome de Deus é desonrado; muitas pessoas que,
doutra forma se uniriam à igreja, são impedidas de fazê-lo; almas que se arrependeriam por
meio do uso das chaves do reino de Deus estão sendo destruídas; e o florescimento da piedade
está sendo impedido. Vós sereis a causa de um membro imitar o outro na comissão do mal e de
os piedosos serem oprimidos, e de suspirarem secretamente por causa da condição miserável da
igreja. Saibais que o Senhor vos levará a juízo por todas essas coisas; e que lá tereis de prestar
contas pela forma como tendes governado a igreja confiada a vós, e das almas sobre as quais o
Senhor vos designastes bispos. O Senhor requererá o sangue de todas essas almas que perecerão
devido à negligência do uso dessa chave. Ah, quão importante é essa responsabilidade, e quão
temível será o juízo de Deus sobre todos os presbíteros infiéis! Oxalá muitos não houvessem se
tornado presbíteros355!
Considere o quão raramente as igrejas praticam a disciplina corretiva em nossa
época. Considere também a nossa busca por popularidade. Poderia ser o caso, mais
do que percebemos, de sermos como os antigos sacerdotes e profetas de Israel, que
pronunciavam “Paz, paz” quando não havia paz? Não, com certeza, não nós. Nós
somos sábios. Ao contrário de todos que tenham vindo antes de nós, nós temos
alcançado hoje em o equilíbrio, não é verdade?
CONCLUSÃO
A membresia e a disciplina da igreja ajudam a definir o amor para o mundo
porque distinguem o povo de Deus do mundo e o coloca em evidência. Portanto,
observar cuidadosamente os membros, dentro e fora de nossas igrejas, é uma das
coisas mais importantes que podemos fazer para edificar igrejas saudáveis,
evangelizar o mundo e trazer glória para Deus. No entanto, a membresia da igreja
não diz respeito apenas a limites; ela diz respeito à vida no meio do corpo, e é para
essa questão que passaremos finalmente.
340. Ted P. Yeatman, Frank and Jesse James: The Story Behind the Legend [Frank e Jesse James: A
História Por Trás da Lenda], Nashville: Cumberland, 2000, p. 91.
341. T. J. Stiles, Jesse James: Last Rebel of the Civil War [Jesse James: O Último Rebelde da Guerra
Civil], New York: Alfred A . Knopf, 2002, p. 203.
342. Veja Timothy C. Tennent, Theology in the Context of World Christianity [Teologia no Contexto do
Cristianismo no Mundo], Grand R apids: Zondervan, 2007, pp. 193-220.
343. John Angell James, Christian Fellowship or The Church Member’s Guide, Edição e Resumo de
Gordon T. Booth, da 10a edição do vol. 11 de Works of John Angell James, 1861 [As Obras de John
Angell James], Shropshire, England: Quinta Press, 1997, p. 53.
344. Obviamente, a analogia da teia de aranha não é perfeita. Há uma razão para que os
sistematizadores tenham dado prioridade tanto aos princípios gerais quanto à doutrina das Escrituras
por tanto tempo e para que muitos, hoje em dia, deem prioridade à doutrina de Deus (acho que
podemos dar bons argumentos para as duas coisas). De qualquer forma, não há um modo de apreender
um senso do que é prioritário ou fundamental com a analogia da teia de aranha. Apesar disso, creio que
essa analogia apreende determinados aspectos da teologia sistemática e as interligações entre as
doutrinas de um modo que uma lista linear não consegue fazer.
345. As tendências pós-modernas e globalizadas da teologia ridicularizariam a noção de que uma
declaração de fé possa oferecer tais declarações “universais”, já que toda doutrina é uma parte e uma
visão panorâmica do todo. Por exemplo, Steve Strauss fornece uma reflexão interessante sobre o modo
como as circunstâncias históricas da Igreja Ortodoxa Etíope consideram o Credo de Calcedônia
inadequado para comunicar as mesmas coisas que as igrejas ocidentais querem comunicar por meio da
Cristologia Calcedônica. Steve Strauss, “Creeds, Confessions, and Global Theologizing: A Case Study in
Comparative Christologies” [Credos, Confissões e Formulações Teológicas: Um Estudo de Caso em
Cristologia Comparativa] in Globalizing Theology [Teologia Globalizada] Ed. Craig Ott and Harold A .
Netland, Grand R apids: Baker, 2006, pp. 140–56. Considerando que eu concorde com o fato de que toda
teologia seja uma parte incompleta do todo, e que certa medida de sensibilidade em relação ao contexto
seja necessária em nossas formulações doutrinárias, também acredito que podemos nos tornar bem mais
entusiasmados acerca desse ponto e exagerar a importância das diferenças contextuais. Obviamente,
essa é uma discussão mais ampla do que a que posso me encarregar neste livro.
346. Paul David Tripp e Timothy S. Lane, Helping Others Change Workbook [Ajudando Outros a Mudar
- Livro de Tarefas], 3a ed., Greensboro, NC: New Growth Press, 2008, pp. 2-3, lição 2.
347. Veja a excelente teologia bíblica de Timothy Laniak sobre a metáfora do pastoreio ao longo das
Escrituras em Shepherds after My Own Heart [Pastores Segundo Meu Próprio Coração], Nottingham,
UK: Inter-Varsity, 2006. Para uma obra num nível mais popular, veja David Dickson, The Elder and His
Work [O Presbítero e sua Função], Phillipsburg, NJ: P&R , 2004.
348. Benjamin Griffith, “A Short Treatise Concerning a True and Orderly Gospel Church” [Um Breve
Tratado sobre uma Igreja Evangélica Verdadeira e Organizada] in Polity, Ed. Mark Dever, Washington
DC: Center for Church Reform, 2001, p. 103. 10 Ibid., p. 108-9.
349. Ibid., p. 102.
350. Ibid., p. 108-9.
351. Eu argumentei, no Capítulo 4, que as igrejas não têm o direito de impedir o batismo de um que o
Espírito Santo tenha convertido, mas que, ao mesmo tempo, permanece a prerrogativa da igreja para
batizar, visto que somente ela possui a autoridade do alvará de Cristo (veja Atos 10.47-48). A mesma
fórmula básica se aplica ao afastamento do membro. Quando um “membro que está num bom
relacionamento” decide deixar a igreja por causa de outra congregação local, creio que a igreja não tem
outra escolha senão aceitar seu afastamento. Pode haver razões pelas quais esse afastamento seja uma
tolice, mas a decisão de deixar uma igreja por outra não é base para disciplina na igreja. Ao mesmo
tempo, permanece a questão de que um afastamento da forma correta depende do consentimento da
igreja.
352. Estou fazendo uso da distinção informal/formal feita por Jay E. Adams in Handbook of Church
Discipline: A Right and Privilege of Every Church Member [Manual da Disciplina na Igreja: Um Direito
e um Privilégio de Cada Membro da Igreja], Grand R apids: Zondervan, 1974, p. 27.
353. John Angell James, Christian Fellowship or The Church Member’s Guide, Edição e Resumo de Gordon T.
Booth, da 10a edição do vol. 11 de Works of John Angell James, 1861 [As Obras de John Angell James],
Shropshire, England: Quinta Press, 1997, p. 53.
354. Ibid.
355. Wilhelmus à Brakel, The Christian’s Reasonable Service [O Culto R acional Cristão], vol. 2, Ligonier,
PA: Soli Deo Gloria, 1993, p. 185.
Capítulo 7
A SUBMISSÃO E A
LIBERDADE DO AMOR
Deixei a questão mais difícil para o final. Essa é a parte que envolve a você e a
mim, e todo aquele que alega ser um seguidor de Cristo. É a parte na qual realmente
nos empenhamos em relação ao que significa se submeter a uma igreja local. Temos
falado ao longo deste livro sobre a membresia como sendo um tipo de submissão, e
sobre o fato de que o cristianismo tem uma forma congregacional. Mas como é isso?
Fomos realmente chamados para renunciar à nossa liberdade? Isso é algo difícil de
engolir.
Em nossas discussões sobre amor, autoridade e submissão ainda não
abrangemos o que acontece com a nossa liberdade. Jesus não veio para nos
libertar?E não é isso o que o amor sempre faz — deixa a pessoa amada livre? Ao que
parece, a liberdade é um pré-requisito do amor. Uma pessoa não pode ser forçada a
amar outra. Conforme diz a figura do Pai divino, Papai, no romance de
espiritualidade popular de William Young, A Cabana: “Não faz parte da natureza do
amor forçar um relacionamento, mas faz parte da natureza do amor abrir o
caminho para isso.”356 Como então os crentes podem ser compelidos pela
autoridade de uma igreja local, ou sob a autoridade dela, a se tornarem parte da
definição de amor? Com certeza precisamos falar sobre os limites da autoridade da
igreja.
Temos duas perguntas difíceis para responder neste capítulo: Como o
cristianismo vivido na submissão a uma local é para os cristãos? E como colocamos
limites sobre a autoridade da igreja para que não acabemos no antigo autoritarismo
ou no fundamentalismo legalista? Consideraremos primeiro a segunda pergunta, o
que exigirá que teologizemos um pouco mais. Mas depois passaremos rapidamente
para uma ilustração concreta sobre como é a vida moldada de forma congregacional.
A autoridade piedosa apela aos crentes com base em sua posição no evangelho,
não na força de sua carne. Um pastor ou conselheiro cristão não deve dizer
coisas como: “Eu espero mais de você”, ou: “Você é melhor do que isso.” Em vez
disso, ele dirá: “Você não percebe que você morreu e foi ressuscitado com
Cristo? Você é uma nova criatura. O que isso deve significar agora?” Uma
autoridade cristã dará ordenanças (por exemplo: 2 Ts 3.6, 10, 12), mas essas
ordenanças surgirão da membresia no evangelho. Ela apela para as novas
realidades do Espírito. Os imperativos sempre devem seguir os indicativos
daquilo que Cristo concedeu.
Em resumo, não basta dizer que a autoridade do pastor ou da igreja deve estar
limitada a determinados domínios. Antes, devemos reconhecer que a autoridade
cristã — a autoridade do evangelho — tem uma natureza fundamentalmente
diferente da autoridade do mundo, já que ela age pelo poder do Espírito, não pelo
poder da carne. A autoridade do pastor ou da igreja não se origina do
consentimento daqueles a quem ela governa. Em vez disso, ela se origina da própria
autoridade de Jesus. Mas ela sempre apela para aqueles a quem governa, de modo
que eles possam consentir com uma só mente no Espírito. Ela reconhece que
qualquer coação ou manipulação não é um ato verdadeiro de fé e, por essa razão,
não é um ato da justiça verdadeira. Ela se abstém de ações coercivas ou
manipuladoras. Ela não estufa o peito e apresenta o seu cartão de autoridade
sempre que pode. Em vez disso, ela engaja as pessoas no amor. Gasta tempo com
elas e se adapta a elas. Ela apela ao Espírito Santo que está nelas, chamando-as para
uma santidade cada vez maior.
4) O autoritarismo na igreja não reconhece esses limites. A quarta lição é apenas
o oposto da terceira: uma igreja (ou um líder cristão) que tenha recebido autoridade
de Deus se torna pecaminosamente autoritária ou legalista quando não reconhece
seus limites de criatura, conforme compreendido nas lições um e dois. Ela grampeia
maçãs nas árvores em vez de alimentá-las e regá-las. Especificamente:
O autoritarismo dá ordens para a carne e não faz qualquer apelo ao novo
homem espiritual no evangelho.
Será que podemos perceber por que tanto o pragmatismo das megaigrejas
voltadas para os frequentadores não convertidos quanto a humildade das cafeterias
emergentes são maçãs que não caem muito longe da macieira fundamentalista?
Isso não deve ser compreendido como uma aprovação de Paulo à escravidão.
Antes, Paulo está dizendo que nossa membresia no evangelho é mais importante do
que o nosso estado político, não importa o quão infeliz ele seja em termos
mundanos. Se isso não fosse verdade, então a liberdade política que qualquer
combatente pela liberdade humana oferecesse seria melhor notícia do que a
liberdade que Cristo veio nos dar. O alvo de Paulo é manter os nossos olhos fixos
basicamente no evangelho: “Por preço fostes comprados.” Por essa razão, seja qual
for a intensidade com que um crente sofra sob o domínio de um líder injusto,
secular ou religioso, ele pode ter conforto na provisão suprema de Deus e na
autoridade do evangelho. Temos a promessa de que Cristo derrotou todos os
poderes e autoridades deste mundo (Cl 2.15). Mesmo que essa vitória ainda não
possa ser vista com os olhos, é nisso que nossa fé deve descansar.
Esses dois últimos pontos provavelmente valem por todo esse capítulo — se não
valerem pelo livro todo —, mas deixe-me resumir o assunto, talvez de maneira
insatisfatória, desse modo: assim como devemos ver a autoridade neste mundo de
uma forma complexa, a nossa resposta a ela também deve ser complexa. Na
verdade, a própria resposta de Jesus às autoridades deste mundo foi complexa. Ao
mesmo tempo em que ele condenou a exploração do poder, em seu ato final ele se
submeteu a elas, porque confiava no governo e na provisão suprema de seu Pai no
céu.
Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da
Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa,
conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas
quando eu for (1 Co 16.1-2; e também Rm 15.26).
Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas,
se mostraram voluntários, pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de
participarem da assistência aos santos... Como, porém, em tudo, manifestais
superabundância... assim também abundeis nesta graça.
Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do
evangelho (1 Co 9.14; e também 9.11-13; Mt 10.10; Lc 10.7; Gl 6.6; 1 Tm 5.17-
18).
O caminho do insensato aos seus próprios olhos parece reto, mas o sábio dá
ouvidos aos conselhos (Pv 12.15).
A igreja local é onde praticamos como ser o filho sábio e onde ajudamos os outros
a fazerem o mesmo.
De modo específico, nós ajudamos os outros instruindo, aconselhando e
corrigindo-os quando necessário. Se um irmão tiver algo contra nós, nós buscamos
a reconciliação antes de irmos adorar (Mt 5.23-24). Se um irmão pecar contra nós,
nós vamos e lhes mostramos suas falhas (18.15). Se ele nos ouvir, ganhamos o
nosso irmão. Se ele não nos ouvir, tomamos mais dois ou três conosco e voltamos a
ele. Se ele não os ouvir, então levamos o caso à igreja (Mt 18.16-17). Tudo isso faz
parte do que significa se submeter à igreja local.
Não estou querendo dizer que os crentes nunca devem aconselhar ou receber
conselho de crentes de outras igrejas. O que de fato quero dizer é que os crentes
têm uma obrigação maior de abrir suas vidas para a congregação que afinal é
responsável por ligá-los ou desligá-los. Se revelarmos os níveis mais profundos de
nosso pecado para alguém de fora de nossa igreja local, isso priva a nossa igreja de
sua responsabilidade, designada por Jesus, de continuar velando por nossa alma.
Isso nos mantém em segurança, fora do alcance da disciplina da igreja e, portanto,
coloca nossa alma numa zona de perigo. Além disso, isso impede os mestres da
Palavra de saberem como pregar de forma mais significativa para a congregação. Se
os mestres ignorarem como os membros estão lutando moralmente, eles serão
menos capazes de pastorear. Além disso, isso nos engana, levando-nos a pensar que
estamos totalmente encarregados de nosso próprio discipulado. Um colega de fora
da igreja, selecionado por ela mesma para prestação de contas, pode ser facilmente
dispensado.
ESPIRITUALMENTE
Os crentes devem se submeter à igreja local espiritualmente. Em alguns aspectos
essa última categoria é uma categoria que engloba qualquer coisa que ainda não
tenha sido abrangida, já que ela resume tudo o que a precedeu, mas inclui três
coisas específicas. Primeira, a igreja local é onde os crentes devem ir para edificar
uns aos outros na fé. Segundo, ela é onde devemos buscar exercer os nossos dons
espirituais. Terceiro, ela abriga o povo por quem devemos interceder regularmente
em nossas orações. “A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um
fim proveitoso” (1 Co 12.7; e também 12.4-11; e Rm 12.4-8).
Mais uma vez, não estou querendo sugerir que esse tipo de submissão e cuidado
espiritual jamais devam ser estendidos aos crentes de outras igrejas. Estou dizendo
simplesmente que os crentes devem encarregar sua própria congregação com a
responsabilidade principal de supervisioná-los espiritualmente. Isso é bíblico, sábio
e natural.
A nossa submissão espiritual à igreja é mais ativa do que passiva. Ela começa
passivamente, quando ouvimos as palavras espirituais de alguém ensinando a
Palavra de Deus (veja 1 Co 2.13). A Palavra de Deus, quer seja falada por meio de
um sermão, quer seja pronunciadadurante uma repreensão em particular, é a fonte
de toda vida espiritual — a Palavra de Deus agindo junto com o Espírito de Deus no
crente. No entanto, uma vez que a Palavra tenha sido ouvida e recebida, ela deve se
converter em atividade imediata na igreja local. Nós respondemos àquilo que
ouvimos. Começamos a orar pela igreja, pelos seus membros e líderes, pelo seu
testemunho e adoração. Buscamos edificar os outros com as nossas palavras de
conforto e correção ocasionais (2 Co 1.3-7). Exercemos os nossos dons concedidos
pelo Espírito. Quando falta essa atividade, surge a pergunta sobre o fato de termos
ouvido verdadeiramente a Palavra, por meio do Espírito. Em resumo, a submissão
espiritual, embora comece recebendo algo, tem mais a ver com o fato de dar.
Ao dividir os nossos atos de submissão separadamente em submissão física,
social, afetiva, financeira, vocacional, ética e espiritual, não estou querendo sugerir
que essas categorias sejam aspectos da nossa pessoa que não se relacionam entre si.
Conforme utilizei aqui, esses são simplesmente temas diferentes que constituem a
submissão integral de um crente e sua liberdade na igreja local. Amar envolve dar a
nós mesmos para a glória de Deus, e não dar de nós mesmos para a glória do eu.
Amar o outro é dar toda a nossa pessoa em todos os aspectos, por amor a Deus. É se
identificar com o outro por amor a Deus. É se submeter ao outro por amor a Deus.
É nos tornarmos, de certa maneira, vulneráveis ao outro, mesmo quando isso pode
nos prejudicar ou prejudicar a nossa reputação. O amor nunca é sem riscos ou
sacrifícios. Ele arrisca tudo, aqui e agora, com o propósito de ganhar tudo na
eternidade (veja Mt 16.26).
Apesar do fato de a maioria das pessoas quererem separar o amor e a submissão,
todo mundo sabe que o amor e a submissão envolvem riscos. Vemos as sombras
disso nas histórias infantis, nas quais o herói arrisca tudo pelo “felizes para sempre”
do final, com a bela donzela. O que é inesperado em relação ao cristianismo é que
seu grandioso herói não arrisca tudo por uma donzela, mas sim por uma
pervertida. Depois, ele chama a todos quantos ele salva para se submeterem a essa
pervertida — a noiva que ainda está sendo preparada, a igreja. Quando se dão conta
disso, as pessoas não ficam com medo de se submeter. Elas têm medo de se
submeter à feiura. Nós amamos nos submeter à beleza. Até mesmo algo no
mercado de pornografia reflete esse fato de um modo mais ou menos obscuro e
trágico.
Submeter-se à igreja local é, em certo sentido, submeter-se a amar a feiura. É
nos submetermos a amar os nossos inimigos — outros pecadores que têm sua
própria visão de glória, a qual não combina com a nossa. Mas esta é a forma como
Cristo nos amou: “Assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”
(Jo 13.34). Cristo nos ama com um amor que transforma o que é feio em belo (veja
Ef 5.22-31). Assim também deve ser o nosso amor por nossas igrejas.
Quem pode amar assim? Somente aquele cujos olhos foram abertos e cujos
corações foram libertados da escravidão de amar a este mundo. “Se, pois, o Filho
vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36).
356. William P. Young, The Shack, Newbury Park, CA: Windblown Media, 2007, p. 192, traduzido para o
português como A Cabana, São Paulo: Arqueiro, 2008.
357. As duas concepções de Berlin possuem uma analogia clara com o que os teólogos cristãos
distinguem como liberdade libertária e liberdade compatibilista.
358. Isaiah Berlin, “ Two Concepts of Liberty” [Dois Conceitos de Liberdade] in Four Essays on Liberty
[Quatro Ensaios Sobre Liberdade], Oxford: Oxford University Press, 1958, p.122.
359. Ibid., 131.
360. Outra maneira de formular esse contraste é dizendo que a liberdade negativa se baseia numa
concepção “aguada” da verdade, ao passo que a liberdade positiva se baseia numa concepção “densa” da
verdade. Uma concepção aguada almeja não fazer reivindicação alguma a respeito dos assuntos
metafísicos supremos da vida, mas simplesmente edifica sua ética e filosofia política sobre algum tipo de
contrato social entre os seres humanos. Não é de surpreender que a credibilidade desse projeto tenha
sido amplamente criticada. Uma concepção densa, por outro lado, fundamenta explicitamente sua
filosofia política e ética numa base metafísica.
361. Berlin diz muito mais acerca do cristianismo (Two Concepts of Liberty, p. 123 nota 2; p. 129 nota
2).
362. Enquanto a concepção negativa de liberdade exclui a positiva, a concepção positiva incorpora a
negativa.
363. Pedro não liga explicitamente a liberdade e a obra do Espírito de forma tão clara quanto Jesus e
Paulo o fazem, mas fica evidente que a mesma teologia do Espírito fundamenta a compreensão que
Pedro tem sobre a santificação e o crescimento cristão (veja 1 Pe 1.2, 2.2, 5; 3.18; 4.14).
364. Um exemplo clássico acontece no livro do presbiteriano James Bannerman, num capítulo
intitulado: “ The Extent and Limits of Church Power” [A Extensão e os Limites do Poder da Igreja], no
qual ele limita a autoridade da igreja (1) ao domínio espiritual em oposição ao domínio do Estado; (2) ao
fato de ela ser originária da própria autoridade de Cristo; (3) ao que está prescrito na Palavra de Deus; e
(4) ao direito da consciência cristã. James Bannerman, The Church of Christ [A Igreja de Cristo], vol. 2,
Carlisle, PA: Banner of Truth, 1974, pp. 247-48.
365. Aqui, encontramos uma estranha convergência entre o liberalismo cristão e o fundamentalismo.
Ambos geralmente preferem uma concepção libertária de liberdade, o que evita qualquer papel da
natureza e do desejo. Em consequência disso, ambos tendem a realizar o ministério da mesma forma,
apesar de nos referirmos a um como moralista e a outro como legalista.
366. As observações de Benjamin Franklin sobre como ele tentava cultivar a humildade por meio da
imitação da fraseologia da humildade, sem obter sucesso, são instrutivas para os nossos dias, quando um
galardão tão elevado é colocado sobre a humildade aparente no discurso religioso. Franklin escreve:
“Minha lista de virtudes continha a princípio doze virtudes, mas um amigo quacre havia me informado
bondosamente que eu era geralmente interpretado como orgulhoso... E eu acrescentei a humildade à
minha lista... Não posso me orgulhar de ter adquirido a realidade dessa virtude, mas fiz um bom
trabalho com relação à aparência dela... Eu até proibi a mim mesmo... o uso de cada palavra ou
expressão que significasse uma opinião taxativa, tais como “certamente”, “indubitavelmente” etc.; e, em
vez delas, adotei “eu considero”, “eu entendo” ou “eu imagino que algo seja assim ou assado”; ou “no
momento, isso me parece”... Na verdade, talvez não haja outra de nossas paixões naturais que seja tão
difícil de subjugar quanto o orgulho. Disfarce-o, lute com ele, espanque-o, sufoque-o, mortifique-o o
mais que lhe aprouver, ele ainda estará vivo, e de vez em quando ele despontará e se mostrará... Porque
mesmo que eu pudesse considerar tê-lo vencido totalmente, eu provavelmente teria orgulho de minha
humildade.” Benjamin Franklin, The Autobiography and Other Writings [Autobiografia e Outros
Escritos], New York: Viking Penguin Books, 1984 ed., pp. 102-3. Eu entendo que um escritor ou líder de
igreja evidencia uma falsa humildade sempre que apela para algo como o pós-modernismo como aquilo
que deve fundamentar a humildade cristã. Nenhuma epistemologia produz humildade verdadeira;
somente o Espírito faz isso.
367. Alexander Strauch, Biblical Eldership: An Urgent Call to Restore Biblical Church Leadership
[Presbitério Bíblico: Um Chamado Urgente para Restaurar a Liderança Bíblica na Igreja], edição revisada,
Colorado Springs, CO: Lewis and Roth, 1995, p. 98.
368. É nessa discordância que pode ocorrer uma má interpretação entre uma concepção elevada da igreja
em relação à autoridade e aquilo que estou defendendo aqui (o que se aplica às igrejas independentes).
Ao criticar o sistema de liderança batista ou congregacional, James Bannerman, um presbiteriano do
século XIX, escreveu: “Uma autoridade que seja tão condicionada e controlada pela necessidade de
consentimento das partes sobre as quais ela se exerce não pode, no sentido próprio da palavra, ser,
enfim, uma autoridade. É um conselho ou um parecer, administrado por uma parte a outra; mas ela não
pode ser um poder autoritativo, exercido por uma das partes sobre a outra, quando a concordância de
ambas as partes é exigida antes que ela possa ser exercida afinal, ou quando ambas as partes podem se
recusar, caprichosamente, a entrarem em acordo.” Até certo ponto, concordo com ele. É verdade que a
autoridade da igreja não depende do consentimento do governado, pois ela se origina da própria
autoridade de Cristo. No entanto, se basearmos nisso nossa compreensão sobre a autoridade da igreja,
veríamos produzido um autoritarismo ou, pelo menos, uma lei um pouco diferente da lei que foi dada no
Sinai. Isso tentará os líderes a dizerem: “Minha autoridade vem de Cristo, portanto façam o que eu digo,
e assunto encerrado.” Devemos também reconhecer a autoridade do Espírito de Deus agindo em seu
povo (Mt 18.15-17; 1 Co 2.6; Gl 1.6-9). A autoridade evangélica sempre reconhece que a autoridade da
igreja se demonstrará eficaz somente até o ponto em que o Espírito de Deus tiver mudado o coração de
seu povo. Em outras palavras, a autoridade da igreja nunca vai além da Palavra, e a utilidade da
autoridade nunca vai além do Espírito. Ela reconhece, conforme disse anteriormente, que qualquer ação
que deve ser forçada não é um ato de fé. Por essa razão, a autoridade evangélica não exige uma
obediência cega; ela apela para as realidades do evangelho no indivíduo e pede uma obediência
voluntária. O mesmo é verdade em relação a como Cristo exerce sua própria autoridade. Sua autoridade
não depende de nosso consentimento; entretanto, ele não só pede o nosso consentimento, como então
nos dá esse consentimento, por meio do Espírito. Ele nos pede para exercermos nossa vontade em
obediência a ele, e nossa submissão a ele é uma submissão voluntária. Podemos, portanto, discordar de
Cristo? Não, porque ele é Deus e é nossa autoridade suprema; mas isso não é verdade em relação à
igreja. Os crentes devem discordar da autoridade da igreja, não por capricho, como afirma Bannerman,
deturpando a posição das igrejas independentes, mas sempre que essa autoridade contrariar a autoridade
da Palavra de Cristo ou o testemunho do evangelho. É claro que o próprio Bannerman admite esse
último argumento em sua discussão acerca dos limites da autoridade igreja (Bannerman, Church of
Christ). Por essa razão, visto que a autoridade evangélica não age em oposição à consciência, mas de
acordo com ela, e visto que sempre há a possibilidade de qualquer autoridade terrena errar, deve haver
espaço para a discordância.
369. Jeremiah Burroughs, “ The Difference between Independency and Presbytery” [A Diferença entre
Independência e Presbitério] in The Reformation of the Church: A Collection of Reformed and Puritan
Documents on Church Issues [A Reforma da Igreja: Uma Coletânea de Documentos Reformados e
Puritanos Sobre Assuntos da Igreja], Ed. Iain H. Murray, Carlisle, PA: Banner of Truth, 1997
reimpressão, p. 287. Tentei simplificar a linguagem dessa citação em várias passagens.
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