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DESIGN:

DAVID RAFACHINHO

LEITURA REVISTA POR:


PEDRO DINIS CORREIA

EM CONFORMIDADE COM
O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
PREFÁCIO arrostar com o peso das multidões, de lutar contra as
convenções. Mas também a vivência plena de momentos
Quando, pelos bons ofícios da minha filha Mónica, me chegou isolados, mesmo quando se sabe de antemão que a seguir
o convite para escrever este prefácio, a minha reação foi virá, inevitavelmente, a desgraça, a solidão, o vazio.
dizer logo que sim.
Um livro que se lê depressa, ao ritmo de um mundo cada vez
Primeiro, pelo nome do autor do livro. Não sou amigo íntimo mais fragmentado pelo abuso das novas tecnologias e mais
de Edson Athayde, mas acompanho e admiro, há muitos anos, devastado pelos desequilíbrios da globalização. Mas um livro
o que ele fez pela publicidade em Portugal: a abordagem que, se quisermos deter-nos um pouco sobre o significado
completamente diferente, a capacidade de inovar, a imposição de cada um dos contos, nos obriga a pensar sobre o que
nem sempre pacífica de conceitos criativos que abalaram somos e para que servimos. Para chegarmos à conclusão
tabus. de que somos muito pouco e que o mais provável é que não
sirvamos para nada.
Depois, porque a própria distribuição do livro será uma
novidade. A obra não irá para as livrarias: poderá ser lida
gratuitamente pela Internet (e eu tenho um interesse crescente, Francisco Pinto Balsemão
pessoal e profissional pela Internet). Será, além disso, a
primeira, ou das primeiras, a ser publicada, em Portugal e no
Brasil, respeitando as regras do novo Acordo Ortográfico (e
eu sou a favor do novo Acordo Ortográfico).

Entendi, no entanto, que não devia deixar-me transportar


pelo meu impulso inicial sem, como manda a mais elementar
prudência, ler os contos que constituem o livro.

Li e gostei. Edson Athayde consegue dizer muito em poucas


palavras. Os seus contos são mais fábulas do que histórias
com princípio meio e fim. Procura tirar uma conclusão, uma
moral, por vezes através da citação de provérbios. Os seus
personagens, do Poema Feliz ao endireita, do anacrónico ao
rei Inconstitucional, de Raimundo ao rapaz sem braços nem
pernas, representam, de modos diferentes, a busca de algo
que não se encontra, a falsidade do êxito, o desgosto dos
amores de um dia.

Frustração? Não diria tanto. Talvez o desengano, a


impossibilidade de prolongar o que é bom, a dificuldade de
E então eu respondi que era apenas um publicitário com
pouco menos de quarenta anos, cliente especial de uns dois
ou três bancos, que adora filmes, livros, i-pods e coisas
moderninhas, que não sabe se acredita em Deus, mas que
tem a certeza que Deus acredita nele, que tem poucos amigos
ZERO
reais e muitos imaginários, que tem medo de chegar ao fim
da vida sem ter feito nada que valha realmente a pena
“Quem é que tu pensas que és?”
esquecer, que tem a mania de que é uma daquelas pessoas
Sempre que eu ouço essa pergunta tremo nas bases.
sensíveis que a gente encontra nos bares ou naquelas festas
“Quem é que tu pensas que és?”
de casamento em que não conhecemos os noivos e que
Nunca sei se a pergunta é a sério ou uma mera figura de
costuma dizer que o mundo é duro, injusto e cruel, enquanto
retórica.
pede mais um gin tónico com um ar superior, o tipo de gente
“Quem é que tu pensas que és?”
que não dá para confiar, pois ao mais pequeno descuido
Na dúvida, minto. Digo que penso que sou o que não sou.
apanha a sua alma, arranca-lhe os olhos, e aproveita-se dela
E depois passo a ser.
para escrever um conto sem lhe pagar mil contos.
É por isso que já fui mergulhador nas Antilhas, mensageiro
na Índia, piloto da Nasa.
E, o pior, é que dessa vez tenho a impressão de que eu disse
Já fui serial killer em Detroit, pop star na Cochinchina, bombeiro,
a verdade.
chulo, Bispo de Braga.
Já fui diplomata depois de uma crise matrimonial com uma
dona de bar no Arkansas.
Fiz carreira, cheguei a cônsul na Jamaica.
Mas, um dia, numa discussão de trânsito, alguém me
perguntou quem eu pensava que era e passei a ser
investigador científico renomado.
Estava a pesquisar uma misteriosa virose que atacava uma
minoria étnica, quando o meu irritadiço chefe me obrigou a
dizer que eu era um palhaço.
Desde então segui a vida num circo, onde as crianças vinham
rir das minhas piadas.
Viajei meio mundo, fui à Rússia, ao Ceilão, à ex-Jugoslávia.
Casei com a mulher barbada e tive três filhos: um trapezista,
um mágico e um anão.
Mais uns anos de trabalho e conseguiria dinheiro para comprar
a minha própria tenda.
Até que um dia, o domador, numa inexplicável crise de ciúmes
pelo leão, fez-me a pergunta fatídica: “Quem é que tu pensas
que és?”
Ela disfarçou o incómodo, sempre impávida e serena, assistiu
ao espetáculo com a altivez de uma sereia. Aproveitaram o
entreato para ir comprar farturas. Ele num rompante de
coragem aproximou-se da medusa. Tocou seu lindo braço e
sorriu com o aparelho. Ela desceu do pedestal, permitiu tal
UM investida. Apesar de tão miúdos, apaixonaram-se num segundo.
Deliraram no espaço, esqueceram o pobre mundo.
Como um lampião num poste, ele era anacrónico. Tinha uma
timidez intrínseca, uma desesperança anímica e um ar Ele era anacrónico. Ela era estupenda. Ele era desolado. Ela
levemente cómico. Ela, ao contrário, já nasceu em berço era uma encomenda. Ele era execrado. Ela era um pesadelo.
esplêndido, boca, lábios encarnados, pernas, coxas de Encantados que estavam nem toparam o grande pânico.
marquesa, seios fartos, generosos, como apóstolos numa Pipocas voaram pelo ar, gritos, corre-corre súbito. Fugia
santa ceia. lépido um leão, solto, livre, esfomeado. Terror total na multidão.
Enquanto eles parados como um quadro, freeze frame da
Ele tropeçava em vírgulas, era gago e muito feio. Apanhava paixão.
na escola dos miúdos, dos valentes encartados, seis gonçalos,
vários nunos e um talvez chamado pedro. Ela dava certo em A fera aproximou-se rápido, pronta para dar o bote, engolir
tudo, era a musa do recreio, frequentava os sonhos lúbricos a rapariga, estraçalhar a princesinha e arrotar seu laçarote.
de todos os caixa d'óculos, onde sempre aparecia nua e lívida, Ele num gesto de magia, improvável Harry Potter, paralisou
enigmática, uma minimonalisa. a grande besta. Valente como nunca, agarrou a sua cauda
e rodou no ar o mau leão, provocando a sua morte afogado
Como um velho cromo do jovem Eusébio, ele era anacrónico. num tufão. Raios e coriscos, cobras e lagartos, grande
Fazia ilusionismo no intervalo para um escasso público: duas tempestade, chovia por todos os lados. Ele levitou incrédulo.
professoras gordas, um amigo cego e outro surdo. Ela desmaiou de medo. Perderam-se de vista ia a tormenta
Transformava lenços em flores, tirava pombas da cartola, a meio.
sem receber um simples aplauso, um elogio, uma gala. Houdini
desencantado, deixou-se prender aos livros, gostava de Nunca mais se encontraram. E os anos se passaram. Ele
Pessoa, de Eça, de O'Neill mesmo sem perceber palavra. seguiu com aquele circo, tal Mandrake redivivo, deu a volta
Ela, ao contrário, era fútil, inconsequente. Miúda rica, filha ao planeta, só não voltou, no grande giro, a passar pela
única de um demente, estava mal acostumada. cidade. Dela quis o destino pouco mais que o medonho.
Formou-se em contabilidade. Casou, pariu, enviuvou. Sem
Encontraram-se, por acaso, numa ida ao circo. Ela de vestido esquecer aquela noite do sorriso, da fera e do sonho. De
e brinco, simplesmente um arraso. Ele quase teve um treco como ela era tão menina. Que ele tinha um aparelho. Que
só de ver tal epifania, meio metro de beleza, tão rara quanto ela era tão bonita. Que ele era grande, bobo e feio. Mas, o
estranha. E jurou amor para sempre, sem nem saber seu que é irónico, foi o único que ela amou. Ele que era anacrónico.
nome. Mas sabendo lá por dentro que o que é do homem o Como um trenó no inverno. Como uma pálida polaroid. Como
bicho não come. um conto de amor eterno.
DOIS Com tantos problemas, Inconstitucional sentia que algo estava
errado. Qual seria o futuro do seu país? Como não poderia
Inconstitucional era um rei triste. Disputava com o seu irmão deixar de ser, ele era um rei letrado. Mas o que aprendera
Paralelepípedo o trono do País das Palavras. Era uma refrega no passado já de nada servia. Os tempos eram outros.
sangrenta. Com um incontável número de línguas mortas em Recordava-se amargurado de antigos aliados. Suspirava de
combate. Houve mesmo palavras que de tão estropiadas saudades por Aristóteles e Platão. Os gregos, esses sim, é
caíram em desuso. E crescia cada vez mais, naquele que eram bons. Mas o que fazer num tempo em que
empobrecido país, a quantidade de blasfémias e termos dominavam os fundamentalistas do Calão, uma estranha
chulos. religião, um tempo em que nada mais era estupendo, glorioso,
magnífico, no máximo era giro, era fixe. E o pior,
Inconstitucional preocupava-se. Paralelepípedo perdera a Inconstitucional já não tinha mais sequer adjetivos bons para
última batalha mas não a guerra. Paralelepípedo era duro expressar o tamanho da sua tristeza. Se ainda mantinha a
como uma pedra. E, junto com a sua amante chamada realeza era porque os adjuntos, adverbiais e nominais,
Quimera, a despeitada marquesa careca, tramava o seu ajudavam. Mas eram cada vez maiores os problemas de
regresso ao poder com um plano de guerrilhas, executado conjugação.
por um grupo de mercenários chamados Gírias. Segundo
rumores, o Reino dos Números ajudava-o de maneira Inconstitucional estava diante do espelho a refletir,
camuflada, infiltrando zeros, disfarçados de ós, em palavras metaforicamente falando, sobre a situação, quando o palácio
dúbias como Orangotangos e Quiproquós. foi invadido por uma horda de ícones chineses, liderados por
um indecifrável anagrama alemão. Inconstitucional quis resistir
Os números desejavam destruir o País das Palavras. Eram mas fora abandonado por todos. Só lhe restava a fidelidade
invejosos. Sempre foram ricos, somavam e multiplicavam da sua secreta amada Esperanto, mas que era, obviamente,
cifras ao infinito, mas sabiam que as palavras quando queriam uma língua inútil. Desesperado, ainda tentou escrever uma
eram muito mais simpáticas. Os números odiavam carta de suicida mas lhe faltaram palavras. E assim morreu
principalmente o Exército das Poesias, pois sabiam que era Inconstitucional. Ao lado do seu corpo foi encontrado apenas
o mais poderoso. É que as Poesias usavam armas ardilosas, um papel com o seu nome, umas aspas e um ponto final.
eram difíceis de atacar, ao colocar as palavras foram do
habitual contexto. Para ter uma ideia, uma vez os números
despejaram uma carga na simplória palavra «cesto», sem
saber que fazia parte de um poema de um desconhecido
escritor bissexto. Quando perceberam já era tarde, o «cesto»
afinal representava o próprio universo, num sentido, é claro,
pouco concreto. Não foram poucos os pares e os ímpares
que no ataque desapareceram, como que engolidos por
buracos negros.
Rita Maria (ou Maria Rita) tinha ido à cidade fazer uma
promessa, pois sofria de uma terrível mazela: amava ao
próximo como a si mesma. O problema é que o próximo era
sempre o que estava mais perto, fosse branco, preto ou
amarelo, sem nenhuma discriminação de idade, sexo ou
credo. Maria Rita com tanto amor para dar, recebia muito
pouco. Sofria com aquele amor sem morada, sem nome, sem
nexo, sem cara. Daí ter feito uma promessa tão rara: se
pudesse não amar algum homem, fosse ele um político, um
mendigo ou artista, subiria o Evereste de joelhos.

Raimundo, reparou em Rita Maria na igreja e apaixonou-se


à primeira vista. Para quem não tinha coração, aquilo era
muito, um despautério, um absurdo. Daí que Raimundo sentiu
uma dor no peito. Era um coração que ali nascia meio que
sem jeito. Quanto mais ele mirava Maria Rita mais o órgão
crescia, crescia, crescia. Rita Maria, demorou mas deu pelo
Raimundo, o outrora dono do mundo, agora um simples mortal.
TRÊS Como por um milagre, não se apaixonou. Pelo contrário, sentiu
escárnio, viu em Raimundo um pobre, um lixo, um chulo.
Não tinha coração. Nasceu sem. Não que isso fosse um Raimundo, apaixonado, perdeu o rumo, perdeu o chão, perdeu
problema, uma crise no sistema, uma questão por aí além. tudo. Passou a andar pelas ruas como um cão, a beber, a
Não tinha coração. E isso era até uma vantagem, sublime fazer poesias bobocas, típicas de um idiota que amava pela
malandragem, tendo em vista que quem tem coração costuma primeira vez. Maria Rita sabia daquele amor impossível e se
ser bobo. E ele, que não era nenhum menino de coro, nasceu ria por dentro do amante falhado, sem eira nem beira, vestido
para se dar bem. de trapos, que fazia vénias quando ela passava em direção
da padaria, da farmácia ou da missa.
Como não tinha coração, também não tinha sangue, como
as santas, as baratas e as vamps. Mas tinha um propósito Em pouco tempo o coração de Raimundo já estava do tamanho
na vida, seria o dono do mundo, ou não se chamava Raimundo, de uma bomba, daquelas de cartoon, tipo assim redonda,
o que além de uma rima, era uma solução. Viveu sem com um pavio aceso na ponta, prestes a rebentar. Rita Maria
escrúpulos, roubou doces aos miúdos, vendeu a mãe várias sabia da triste história e alimentava a paródia, fazia olhinhos
vezes mas nunca entregou. Seguia à risca o seu plano sempre que o encontrava, mas depois travava qualquer
selvagem, para tudo tinha coragem, até que um dia, daqueles investida. Várias foram as vezes em que na tasca a sacripanta
normais em que apetece dar banho ao cão ou visitar a tia, entrou para tripudiar do cretino, que chorava aos seus pés
Raimundo encontrou Maria Rita (ou Rita Maria, nunca soube como um Deus menino, enquanto ela, indiferente, bebia uma
ao certo), doce menina dos olhos verdes e sorriso aberto. Fanta.
Depois de uns tempos e de uns ventos de monção, Raimundo
não aguentou e a bomba do seu coração estoirou, voando
pedaços de paixão para todos os lados, emporcalhando
jardins, muros, telhados. Raimundo morreu num instante,
desprezado enquanto amante, mas misteriosamente feliz.
Como todos os apaixonados, mesmo os renegados, Raimundo
teve, por um triz, a sorte madrasta de saber para que servia
um coração de verdade. E Maria Rita, na sua sublime maldade,
aquela que amava a todos menos um, decidiu, um bocado
na pressa, pagar a sua promessa, rumando para o Nepal.

Mal lá chegou, apaixonou-se por um monge budista, chamado


Ming, meio santo, meio autista, que diziam as más-línguas
tinha sido amante do Sting. O monge, com um certo azedume,
desprezou solenemente a donzela. Que morreu como uma
cadela, congelada de joelhos bem pertinho do cume. O monge,
não sem uma suspeita alegria, no lugar onde Rita Maria jazia,
tentou sem sucesso plantar um arvoredo. De Raimundo, o
que queria ser dono do mundo, ninguém guardou memória.
Mas fica a mensagem da sua história: quem tem coração,
tem medo.
QUATRO não seria mais o rapaz que braços e pernas não tinha, seria
um herói nacional, mundial, interplanetário. Dedicaria a vitória
O rapaz sem braços e sem pernas queria nadar. Sonhava a todos os que ultrapassaram barreiras algum dia. E mostraria
em atravessar o Canal da Mancha. Queria mesmo bater o que, mesmo sem metade do corpo, estava no páreo.
recorde mundial dessa travessia. E por isso ele podia ser
visto pelas manhãs nas margens do canal a passear na sua A enfermeira nem viu quando o rapaz, a utilizar apenas a
cadeira de rodas prateada. Era nesses passeios que ele força da mente, soltou o travão da cadeira, que saiu ladeira
treinava. Dava braçadas ilusórias contra ondas irreais. Não abaixo em desabalada carreira. Não demorou a cair na água.
tinha braços, não tinha pernas, mas tinha sonhos. E então o rapaz sem braços e sem pernas descobriu o que
era um mergulho de verdade. Sentiu as ondas a acariciarem-
O rapaz não tinha pais, parentes, descendentes. A única -lhe o corpo, a deixarem-no louco. Nesse momento ele tornou-
pessoa que algum dia vi com ele foi a sua enfermeira, gorda -se um puro de espírito, um ser sem vaidade. Riu, sorriu,
como uma baleia. Era ela que empurrava, de cá para lá, de gargalhou. O seu sonho mais secreto tornara-se verdade.
lá para cá, a sua cadeira. Gostava de levá-lo para passear
no canal por causa das gaivotas e dos ventos. Havia lido, Foi aí que o rapaz deixou de ser ele mesmo e passou a
nuns quaisquer documentos, que os espaços abertos simbolizar todos nós, a representar na sua débil estrutura os
contribuíam para a tranquilidade de uma alma sofrida. Mal nossos mais íntimos desejos, as nossas mais estúpidas
sabia das intenções secretas do pobre rapaz. De qualquer loucuras. Ele iria atravessar o Canal da Mancha não mais
maneira, pensava, «passear mal não faz.» A enfermeira, além para ganhar um prémio, para vencer uma aposta, nem porque
de gorda, também se achava muito sabida. gosta, ele iria fazer aquilo como um santo moderno para
salvar-nos do inferno. E, pela primeira vez em décadas, parou
Passados alguns anos, o rapaz sem braços e sem pernas já de chover na Mancha e os raios de um sol muito forte
era um atleta. Nadara milhares de quilómetros dentro da sua iluminaram as águas.
cabeça. Ganhara medalhas de ouro, prata e bronze, todas
atribuídas por um juiz que existia apenas em seu cérebro. E, Quem lá estava relata, talvez num exagero de prosa, que as
por mais que pareça absurdo, dentro do seu ranking etéreo, nuvens tornaram-se algumas azuis e outras cor-de-rosa. É
ele ocupava o primeiro lugar do mundo. pouco provável, mas o rapaz pensa ter visto um golfinho a
indicar-lhe o caminho. E ao mover a cabeça, ao girar o tronco,
Um belo dia, o rapaz sem braços e sem pernas cansou-se ao agitar o dorso, bendito seja, encontrou a paz necessária
da ilusão. Se ele queria atravessar o canal, teria que cair na para cumprir o seu destino, para sentir-se uno, para sentir-se
água, sair do chão. Faria isto de qualquer maneira, contra inteiro, para sentir-se todo.
tudo, contra todos, contra a enfermeira. Ele não tinha braços,
nem pernas, mas era um homem duro. E depois de tantos Levaram uma semana para encontrar o seu corpo.
anos de treino, sentia-se seguro. Conhecia cada palmo da
Mancha, sabia que se o seu desejo fosse verdadeiro, se a
sua vontade fosse muita, podia atravessar o canal e ser
recebido na outra margem com uma grande festança. E então
Mas o mundo estava cheio, lembra-se? O sexo era difícil. Só
os mais desinibidos conseguiam fazer de conta que não
estavam ali durante o ato, a serem vistos por dezenas de
completos desconhecidos. Há muito que já não havia portas.
Todos viviam como em vidros de compota, agarrados uns
nos outros e, como é óbvio, sozinhos como ninguém. Mas a
vontade era tanta que eles se amaram mesmo assim, sob o
CINCO olhar de reprovação de cinco freiras que rezavam e diziam
amém.
Eles se encontraram no tempo em que o mundo estava cheio.
Lembra-se? Naquela época havia gente por todos os lados. Depois do amor dormiram, de pé como era o costume.
Cada um era para o outro um verdadeiro emplastro. O mundo Dormiram e sonharam com pradarias virgens, onde corriam
parecia, às vezes, uma imensa Tóquio. E Tóquio havia cavalos selvagens. Com nuvens fofinhas onde se podiam
afundado com o peso dos japoneses. deitar. Com praias desertas onde podiam rolar pela areia
como num filme americano antigo, daqueles que passam de
Com o mundo tão cheio não havia privacidade. Em cada madrugada na televisão. Mas a verdade é que não, tudo
canto da cidade, em cada casa, em cada quarto havia sempre aquilo era apenas sonhos.
vinte, trinta, quarenta pessoas a disputar uns parcos
centímetros. O mundo estava cheio e eles não podiam estar Quando acordaram, já trinta pessoas reclamavam para que
a sós nem só com o seu amor. Foi num elevador. eles fossem um pouco mais para o lado, pois queriam passar.
Ela ainda pensou que ele iria agarrar na sua mão e tentar
Nas pequenas colunas do teto, Aretha Franklin cantava. fugir dali, correndo contra a multidão. Ele, um espírito prático,
Talvez tenha sido aquele leve toque no braço ou a maneira despediu-se em silêncio, deixando-se levar pela corrente. Ela
dela respirar, o facto é que ele, se houvesse espaço, teria chorou desesperada enquanto ele sumia no meio daquele
caído para o lado no exato instante em que se apaixonou. turbilhão de gente. E pensou, horas depois, resignada, que
Com ela não foi diferente. Muitos homens já haviam passado certa estava a sua avó que sempre que sempre que podia
pela sua vida mas não como aquele. E, de repente, era como dizia "minha filha, antes só do que mal acompanhada."
se não houvesse mais ninguém na sua frente.

Saíram do elevador e foram para o lounge do hotel. Ao fundo,


sob a luz de um lustre cor de mel, "Garota de Ipanema" era
executada por uma pianista claramente derrotada pela vida.
Não deixava de ser irónico que uma música tão ensolarada
fosse tocada por pessoa tão sombria. Ele lhe fez um sinal
com o olhar. Ela respondeu levantando ligeiramente a pestana.
E, isso é que foi bacana, dali teriam, se possível fosse, ido
diretamente para a cama.
Sobretudo, tinha a sua estranha visão do mundo e propostas
concretas para salvar a humanidade ou para ajudar quem
tinha problemas de estrias.

Na boleia da fama, fez um filme e gravou um CD. Participou


em anúncios, deu entrevistas na rádio, posou para fotografias
SEIS ao lado de belas modelos, simulou dois ou três romances
com algumas loiras de plantão, até que casou com uma
O cidadão anónimo por acaso tinha um nome e uma morada morena e foi de lua de mel para o Ceilão. Na volta, deparou-
e um BI. Era anónimo, mas era feliz. Nunca tinha aparecido -se com um dilema: na sua ausência, tendo em vista as
na TV, nem respondido aos inquéritos dos jornais sobre a necessidades da assistência, outro anónimo havia sido
incrível moda dos gelados de banana, nem mandado SMS promovido e era o famoso da hora. O anónimo ficou uma fera,
para os concursos vários que dão bilhetes para festivais de saudoso da exclusividade de outrora, pois o outro nem era
rock de Verão ou elegem a rapariga mais bonita do quarteirão. assim tão anónimo, tendo participado quando jovem de uma
O cidadão anónimo, além de ser anónimo e feliz, cultivava cena marada qualquer e por isso sido preso e tido a fotografia
o saudável hábito da alienação. publicada num jornal regional ali para os lados de Alenquer.

Não lia Jornais, nem revistas, nem livros. Não que fosse Na briga entre os dois, o público dividiu-se. Uma parte preferia
analfabeto, pelo contrário, havia aprendido a ler muito cedo, a boçalidade de um enquanto outra parte preferia a
apenas não queria se chatear com o que quer que fosse, imbecilidade do outro. A disputa durou algumas semanas,
nem com as notícias sobre golfinhos enfermos nem com os tendo sido resolvida no dia em que em plena televisão o povo
comentários de políticos torpes. Não tinha mulher, nem filhos, pôde participar de uma mega eleição. O resultado foi um
tinha um cão, teve um gato, queria ter um papagaio e isso empate, o que não era nenhum disparate, tendo em vista que
já era o bastante, tendo em vista que o basta não precisa de entre os dois venha o diabo e escolha. Coisa que foi feito em
ser necessariamente muito, nem grande. seguida. Satanás, chamado para dar o seu voto de minerva,
O cidadão anónimo não dava nas vistas, mais que um preferiu o anónimo de segunda. Declarou o seu voto enquanto
personagem, ele fazia parte do cenário, objeto perdido, sem príncipe das trevas, soltando fogo e vomitando pus. Claro
brilho nem mácula, como urna espécie de candelabro barato está que o resultado era roubado, pois nos bastidores o
no castelo do Conde Drácula. vencedor já havia vendido a sua alma por três tostões e um
lugar numerado no novo estádio da Luz.
Até que o cidadão fez uma grande besteira ou cometeu um
ato genial ou, se calhar, mais do que banal, mas que caiu no Caído em desgraça, o cidadão anónimo voltou para a sua
gosto dos media, catapultando o anónimo para o vidinha sem graça. Hoje anda por aí, no papel de mais um
reconhecimento geral, tornando-o no novo ídolo dos ilustre desconhecido da praça. Parece um tipo comum, mas
reformados, dos miúdos rebeldes, dos betos, dos queques só por fora. Por dentro remói um plano de vingança. E mais
e até de algumas tias. Famoso da noite para o dia, o cidadão cedo ou mais tarde cometerá um desatino, provocará uma
anónimo deixou cair a sua máscara. Afinal, tinha ideias. guerra.
Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode
não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo
vai manifestar-se. Votando no partido errado, crucificando
um cristo, maltratando a manutenção de um avião, comprando
uma batalha diplomática desnecessária com o Gabão,
provocando numa feira popular um grande pânico ou
simplesmente desrespeitando as leis de trânsito. E aí, amigo,
vai ser o fim do mundo em cuecas. Pois o cidadão anónimo
pode ser invisível mas tem a marca da besta eternamente
tatuada na testa.
SETE um instante tão curto acreditar que o seu sonho absurdo
finalmente se realizou. Ela não vai seguir o movimento do
Se ele não entrar naquele elétrico, ele que é tão racional, tão elétrico com a cabeça, esquecendo que está a atender uma
terra a terra, tão cético, nunca vai ver, na outra esquina, a freguesa que pediu três rosas, dois lírios e um cravo, um
rapariga que vende flores embrulhadas num jornal. ramalhete que servirá de desagravo no encontro com uma
paixão antiga, do tempo em que ainda era tão menina que
Ela, tão magra, mirrada, pequenina, fugiu daquele filme do nem tinha todos os dentes.
Chaplin e jurou nunca mais voltar. A rapariga vive em câmara
lenta, sempre com um solo de piano a sublinhar os seus Se ele não entrar no elétrico, não poderá olhar pela janela,
gestos. Passa a vida a olhar os carros que passam, as nem a rapariga das flores terá vontade de se levantar e correr
pessoas que passam, à espera do seu grande amor, de um atrás daqueles olhos febris, que circulam pela cidade num
homem que lhe dê valor, mesmo sabendo que ela é muda veículo amarelo da Carris, nem ficará afinal sentada, assistindo
como uma porta, daquelas que falam com os olhos, a tudo desesperada. Ela não irá agarrar, transtornada, numa
acreditando por todos os poros, num ardor temerário, que o qualquer flor, nem irá ferir a sua mão nos espinhos, nem
amor não é um filme falado, muito pelo contrário, que o amor sangrará na calçada.
é gesto e silêncio, é um momento sublime suspenso no vento.
Se ele não entrar no elétrico não terá motivos para sentir-se
Se ele não entrar naquele elétrico não vai, numa obra do tal o melhor dos homens quando, depois de correr toda a rua
acaso, esse sujeito tão imprevisível e tão parvo, apaixonar- Augusta, avistar do outro lado da praça aquela rapariga que
-se pela rapariga das flores. Não vai descer quatro paragens vende flores e que saiu de um filme raro da cinemateca. Nem,
antes da sua, voltando correndo e suando para o Terreiro do por causa disso, irá saltar distraído para a frente de um
Paço, com o coração aos saltos, esbarrando em homens autocarro da linha Benfica-Marateca que perdeu os travões.
baixos e altos, que circulam pela Baixa com propósitos Não irá ser atropelado e morrer. Não irá ficar estendido na
desconhecidos, talvez a caminho dos empregos ou apenas rua, motivo de pena e escárnio de anónimos peões. Nem
a fugir de medo, o que é normal entre aqueles que não sabem terá o corpo coberto pelos jornais do dia enquanto não chega
o próprio destino. a polícia. Nem irá emocionar-se, apesar de morto que está,
quando a rapariga depositar sobre o seu corpo todas as flores
Se ele não entrar naquele elétrico não terá motivo para, que teria que vender naquele dia. Nem vai chorar, nem vai
enquanto corre debaixo da chuva fina, repassar toda a vida. sorrir quando ela se afastar e decidir regressar para a sua
Não lembrará o primeiro beijo, nem a última noite de desejo, velha fita. Onde ao lado do Charlot vai tentar, sem conseguir,
nem o vazio da manhã seguinte, o cheiro de cigarro no quarto, esquecer que um dia o seu grande amor encontrou.
nem aquela dor no peito, espécie poética de enfarte, típica
de quem está sentado na beira da cama, ao lado de uma Se ele não entrar no elétrico nada disso irá acontecer. E a
qualquer fulana, perto de quem acaba de fazer amor mas sua vida seguirá, sem graça, patética e vulgar, até morrer de
longe de alguém que possa chamar de amor. velho, de gripe, de sarna ou de nada.

Se ele não entrar naquele elétrico não vai, dali a pouco, trocar Mas, graças a Deus, ele entrou.
olhares de louco com a rapariga das flores. E ela não vai por
E conta uma história sobre uma viagem ao Evereste, no dorso
de um lhama. Fala de uma seita exótica e de um longo período
de jejum, que durou meses. E de como encontrou a chama
divina primeiro que todos os homens. E de como o seu corpo
foi elevado ao ar até onde a vista não alcança, tendo quase
sido ceifado por um misterioso avião da Lufthansa. Fala de
como depois caiu em cima de um pântano e de como passou
OITO a vaguear pelo mundo à procura da sua tribo. Fala tudo isso
em pouco mais de um segundo e já ia estender a mão com
O seu nome é Meridional. Tem um enorme sorriso no rosto um ar de até mais ver quando é surpreendido com a imagem
como a dividir os polos. Meridional é negro mas ninguém do coreano a ajoelhar-se no chão.
percebe. Acham que é mulato, compram gato por lebre. Ele
é lobista de um hotel da Baixa. Fica pelos cantos do lobby E todos os coreanos em volta, ao entenderem o sinal, erguem
o tempo todo a dizer "bom-dia". Mete conversa com franceses, os braços aos céus a agradecer a dádiva recebida. E então
chineses, ingleses, faz-se de turista. Quem olha diz que o mais velho dos coreanos, pelo menos duzentos anos em
acabou de chegar, quando na verdade nunca foi nem há de cada perna, debruça-se sobre o ombro de Meridional e sopra-
voltar. -lhe no ouvido: «Mestre!».

O gerente põe-no louco, quer que invente histórias para daqui Desde então Meridional nunca mais deu notícias. Consta que
a pouco. É que está a chegar um lote novo de coreanos e o gerente teve um destino terrível.
Meridional tem de ser rápido. Para deixar claro, Meridional
não é vigarista. Apenas é pago para falar com turistas. Houve
um tempo em que não tinha hotel fixo, era lobista freelancer,
alugado à hora, ao tempo, ao tanque. Depois do bom dia,
Meridional conta sempre histórias de malas perdidas, de voos
calmíssimos e filhos distantes. Os viajantes ficam tranquilos
ao ouvir tal falar, e pensam: “há alguém parecido comigo
nesse mundo que está a acabar.” Meridional então simula
um ataque de tosse, pede desculpas e parte para outra.

Mas hoje Meridional está assustado. É que história para


coreanos ele nunca teve. A sua especialidade são histórias
para texanos e malteses. O gerente assobia, Meridional
desconfia e treme. Os coreanos entram pelo lobby adentro.
Entre a cruz e a caldeirinha, Meridional não hesita, improvisa.
E aos primeiros olhos puxados que esbarra, Meridional abre
a boca, solta a fala.
Então, porque já não tinha piada, porque já não era um poema,
porque já não era feliz, foi abandonado por todos a troco de
nada, a troco de um novo poema que abusava da letra xis e,
isso que era de mais, praticamente não tinha vogais. Daí para
a prostituição foi um pulo. Vendeu as suas rimas para um
trovador caolho e burro. As metáforas, perdeu-as nas Docas
de Alcântara, numa rusga onde uma navalha cortou do seu
corpo a palavra esperança.

O Poema agora era uma triste figura, dormia na rua a pensar,


NOVE nas noites sem Lua, em praticar um haikai. Foi quando o Lar
do Poema Abandonado o recolheu e ofereceu tratamento.
O Poema Feliz era de amor. Que, é claro, rimava com a Passado um tempo, o Poema era outro. Recuperado, hoje
palavra flor. Como todos os poemas felizes, era estúpido, vive numa vila ao sul do Tejo. Mas o Poema sabe que Feliz
envergonhado, deserdado pelo próprio autor. Durante anos nunca mais. Perdeu aquele seu ar de criança, que alguns
viveu escondido num caderno mas, como nenhum segredo chamavam pateta, mas que era apenas a opção de um esteta
é eterno, um dia foi descoberto por um literato que tirou o inábil com as palavras mas cheio de amor. E quanto à sua
Poema Feliz da sua aldeia e o levou para a cidade, com o flor, definitivamente morreu, nunca mais germinou.
objetivo confesso de exibi-lo numa grande feira.

O Poema Feliz não era inteligente, diria mesmo que, apesar


do grande coração, tinha pouca cabeça. Confrontado com a
súbita fama, reagiu de estranha maneira. Em pouco tempo
podia ser visto acompanhado de críticos, artistas, intelectuais,
políticos e rameiras. Comprou roupas de marca, passou todas
as marcas, acreditou poder ser modelo, sem perceber que
o que hoje é belo amanhã é feio. Na boleia da fama,
frequentava os bares da moda, sem entender que os seus
novos amigos de borga, não eram amigos, não eram felizes,
eram a sua perdição.

O Poema Feliz, que fora um ingénuo, passou a beber demais,


a fumar demais, a cheirar coca. Estava sempre trémulo pelo
Bairro Alto à procura de drogas. Aos poucos o seu estilo
mudou. Esqueceu-se que era um poema. Soberbo, imaginava-
-se prosa. E nem reparou quando a flor da sua poesia murchou.
Foi então que o presidente dos Estados Unidos da América,
que não estava preparado para reconhecer a bondade,
DEZ declarou guerra. Mandou prender o novo homem para fazer
uns exames, antes que os vírus supostamente presentes no
Quando acordou, ele não se sentia um homem novo, ele era seu sangue contaminassem o planeta.
um novo homem. Literalmente. É verdade que todos os
homens são iguais, mas aquele, por destino, magia ou milagre, O novo homem, que apesar de tudo continuava sem eira nem
ficara diferente. Não tinha mais os defeitos banais da raça, beira, foi uma presa fácil. Ninguém lhe quis dar abrigo, pois
nem tão pouco as suas reduzidas qualidades, sequer era em relação ao presidente dos Estados Unidos o melhor é ser
gente como a gente. Não era um homem de trazer por casa, amigo. O novo homem, depois de abatido, foi dissecado ao
nem um daqueles que as mulheres do interior mandam milímetro. Não encontraram, claro, nada de errado. Mas o
comprar na cidade. equívoco até deu jeito. Morto e enterrado, o novo homem
deixou de ser um problema, deixou de, só pela sua existência,
O novo homem, para passar a sua mensagem, apareceu na ser urna pedra incómoda no sistema.
televisão. Surpreendendo todos, ele não queria poder, dinheiro
ou ouro. Não queria ser rei, presidente nem papa. Ele dizia De uma forma ou de outra, o novo homem não tinha futuro.
que não queria nada. E, como é óbvio, ninguém acreditava. Passada a novidade, os seus produtos já não vendiam mais.
Por mais que por detrás dos seus três lindos olhos só A sua mensagem de amor e de paz era muito quadrada. E
emanasse sinceridade. a Madonna, que não era boba nem nada, já estava noutra,
compondo um rock bacana em parceria com uma banana
O novo homem virou uma moda sem igual. E ele nem percebeu profeta, a fruta que nascera dizendo ser a encarnação de um
que estava a ser usado, nem mesmo quando a sua imagem deus asteca que previa o apocalipse para o fim do ano. Coisa
apareceu numa embalagem de cereal. Até Madonna fez uma que ninguém levou a sério. O que explica o grande mistério
música em sua homenagem, que resultou num clip onde ela de o mundo ter entrado, naquele Dezembro, alegremente
fazia sexo com três doninhas e um texugo selvagem. pelo cano.

Em pouco tempo, em todos os supermercados do planeta,


as prateleiras estavam cheias com os produtos do novo
homem: o iogurte que fazia crescer cabelos, o sabonete sem
cheiro, a pasta de dentes para banguelas, a carne que vinha
da vaca que nadava e tinha guelras, o peito do frango que
cantava tango em vez de fazer cocorocó.

O novo homem a tudo assistia sem perceber o que se passava


na realidade. O novo homem nascera para pregar a
honestidade, para defender tudo o que tinha um bom valor,
esquecendo que não era o primeiro a sofrer nas mãos dos
vendilhões do templo do senhor.
Foi aí, numa conferência de imprensa, que aconteceu o
impensável. Pressionado pelos jornalistas, ele finalmente
ONZE tomou uma atitude e exigiu silêncio. Primeiro ficaram todos
em suspenso. “Silêncio?” O que era aquilo? Os mais velhos
Era quieto. Ficara assim há tanto tempo que já ninguém ainda se lembravam vagamente da coisa.
lembrava da sua voz. Não que fosse mudo, o que de resto
nem seria um desígnio assim tão atroz, mas não falava, só Claro está que o debate foi intenso. Todos falavam ao mesmo
pensava e, por pensar, era diferente de nós. Olhava o mundo tempo e ninguém ouvia ninguém. O ruído foi tanto que quebrou
como um voyeur olha por uma janela. Com um interesse a barreira do som. E isso é que foi bom, o estrondo ecoou
absurdo, uma reverência completa até pelas coisas mais por todo o planeta, como um trovão enviado pela grande
singelas. Como era quieto não incomodava, não era ator, era besta. O resultado foi que ficaram todos surdos, com os
cenário. O seu silêncio era uma gaiola, ele, velho canário. tímpanos estoirados. Menos o nosso rapaz, que do alto do
seu silêncio doirado, sobreviveu ao desastre, talvez por não
Talvez tenha sido exatamente isso: o seu silêncio. passar a vida a ouvir e a dizer disparates.
Provavelmente, já que não era bonito. O certo é que a mulher
que falava pelos cotovelos apaixonara-se de súbito por ele. Com todos surdos, logo também ficaram mudos. Sem
Aquilo foi uma grande surpresa, tendo em vista que ela era comunicação, não tardou a começar o declínio de toda a
uma celebridade, dessas de cama e mesa. Numa época em civilização. Passadas algumas gerações, estavam como
que ninguém mantinha a boca fechada, ela contribuía com primatas. Regrediram ao macaco e até mais além. Fora os
a fantochada com os seus cotovelos poliglotas, capazes de descendentes do homem quieto. Estes como aprenderam a
recitar poemas inteiros em cinco línguas vivas e sete mortas. ouvir, aprenderam a falar também. Reunidos numa tribo onde
primava o bom senso, onde só era dito o essencial, passaram,
O romance era estranho. Ele quieto, ela inquieta. As diferenças uns para os outros, todos os conhecimentos. Só é pena que
de personalidades eram de tal tamanho que nem um louco trouxessem nos genes a herança materna. Cedo ou tarde a
acharia suposto que aquilo pudesse dar certo. Mas, como o história iria repetir-se, pois nenhuma coisa boa é eterna.
destino é esperto, o namoro prosseguiu até ao fim, culminando
num casamento ao som de uma canção da Adriana Partimpim. Mas isso ainda demora, e como brincadeira tem hora, só falta
a moral dessa história que fala de um homem tão quieto e
O pior foi depois, quando os cotovelos dela calaram. Foi sábio como um touro: “acreditem, amigos, o silêncio é de
assim de uma hora para outra, sem aviso prévio, sem nem ouro.”
um recado. Com os cotovelos mudos, ela rendeu-se a um
triste recato. Perdeu o seu programa de TV, deixou de poder
gravar CDs, e o pior, vejam vocês, começou a drogar-se e
a beber. Tal situação só gerou mais barulho. A comunicação
social não largava o casal, o que era normal, exigindo uma
declaração qualquer. Mas ela, com os cotovelos calados não
podia falar. E ele, por não estar habituado, não sabia como
defender a mulher.
FICHA TÉCNICA
DESIGN: DAVID RAFACHINHO
REVISÃO: PEDRO CORREIA
DOZE que cuspia por cada narina um trovão, fazendo do mundo um
lugar obscuro.
Ele era um endireita, gostava de endireitar o mundo, o tudo,
o todo. Gostava mas não conseguia. E, portanto, endireitava O mordomo anão era uma boa pessoa e gostava do presidente,
colunas, ajeitava espinhas, deixava ereto quem chegava apesar de ser tratado sempre com extrema desfeita. E um
afoito ao seu consultório feito num oito. dia, visitando uma tia na Hungria, soube da fama do endireita.
Contratou os seus serviços na esperança dele curar o
Por força do ofício, acostumara-se a sentir-se como um presidente do mundo e com isso acabar com aquele triste
palhaço de circo, daqueles que arrancam sorrisos até de absurdo. O endireita vestiu a sua roupa de missa e foi até a
quem está cheio de dor. Cada cliente era um número, uma casa do presidente tratar da tarefa. Assustou-se com o que
cena, um sistema. Cada coluna, um palco, um picadeiro, um viu. No lugar do antigo senhor do planeta, líder sereno e
teorema. impávido, encontrou um homem pequeno, contorcido e inválido.

Em seus sonhos secretos, imaginava-se um mago capaz de O trabalho não foi fácil. O endireita passou sete dias e sete
transformar a gorda com a marreca numa ginasta romena noites a tentar endireitar o enfermo. Não comeu, não bebeu,
hirta e bela. O reformado reumático, após uma massagem, não dormiu. Gritou, blasfemou e até sussurrou algo que
saltava da maca como nadador salvador de um colorido pareceu vagamente uma puta que o pariu. Foi quando o
parque aquático algarvio. A grávida problemática, dona de presidente finalmente reagiu. Num movimento brusco, levantou-
um ar pesado e doente, tornava-se uma lasciva dançarina -se da cama e deu três pulinhos. Depois rodopiou pelo quarto
do ventre, daquelas que seduzem serpentes e encantam como se o mordomo anão tivesse um violino e tocasse uma
meninos. Ele era um endireita dos corpos alheios, só não valsa. E, sem pestanejar, deu um salto mortal e fez o pino.
conseguiu endireitar o próprio destino.
O endireita de tão cansado só conseguiu esboçar um sorriso.
Um dia, o presidente do planeta caiu de uma escada, durante Caiu para o lado e deu o seu último suspiro, com a certeza
uma gala e magoou a espinha. Ficou preso numa cama de de ter feito o certo, o justo, o reto. Endireitara o homem mais
um quarto sem janelas, onde o Sol não entrava, nenhum poderoso do mundo. E, quem sabe, com isso o futuro de
pássaro voava e nem uma flor nascia. O presidente perdeu todos. Nem viu quando o presidente, num estabanado
o contacto com o mundo. O que acontecia fora do quarto movimento, tropeçou no anão, caindo de cara no penico,
passou para ele a ser apenas um relatório diário lido, num morrendo afogado no próprio excremento. O mordomo, ao
tom monocórdico, por um mordomo com um leve sotaque contemplar a cena final, pensou em chorar, não sem antes
húngaro e que, por acaso, era anão. E o presidente, que já exclamar naquele momento a fala final deste conto triste e
havia dado a volta ao planeta a bordo de um balão, contentava- porco: “Mundo que nasce torto, morre torto.”
se em dizer nem que sim, nem que não, sem poder levantar-
se do seu leito nem que fosse para beijar a mão de uma doce
princesa ou abraçar um amigo do peito. E ele que antes era
um governante alegre, sábio e justo, passou a tratar o planeta
com desprezo e escárnio. Tomou-se num déspota rezingão
TREZE Lloyd Cole.
E antes que o sol se ponha e que o mundo expluda,
“Eu tenho tudo. mergulho e conto até cento e cinquenta e cinco.
Eu tenho tudo, vejam vocês. E, por instantes, não vou ter nada na cabeça e no bolso.
Tenho mulher, dinheiro, saúde. Vou ser só um pobre yuppie louco.
Celular? Tenho três. E, pela primeira vez na vida,
Carro, diploma, cartão do Sporting. Quando o oxigénio acabar e eu vencer
Ano passado tive um jacto, mas passei adiante os meus primários instintos de sobrevivência,
pois, hoje em dia, o que interessa é não ter nada quando o meu corpo começar a contorcer-se à procura de
de interessante. luz
Não moro numa casa, vivo num estúdio. quando pela minha boca entrar
Tenho um loft no Soho e uma vizinha chamada a água, o sal e todo o poder da mãe Terra,
Socorro. quando eu começar a grunhir e ganir
Tenho um cão, uma catatua que canta boleros, e a chamar pela minha vizinha
um mastim assassino e uma chinchila. Socorro,
Nunca mostro os documentos. eu serei por um milionésimo de segundo,
Quem é não precisa provar. acredite amigo, eu serei feliz.
Tenho trinta, mas aparento menos, nem que seja por uma unha,
muita água francesa é o meu elemento. por um casco,
Comprei dois laptops e fiz milhões: por um triz.»
de euros, de inimigos, de escudos.
Não gosto da pobreza, o meu negócio é a beleza.
De pobre basta o meu karma, o meu porteiro, o meu berço.
Já tentei vários suicídios, alguns bem sucedidos.
Também tenho as paranoias da moda.
Sonho com o dia do juízo final, o meu loft a arder e a catatua
em chamas a cantar «Besame Mucho».

Nesse dia enforco o mastim e dou para o cão comer.


A chinchila uso como casaco.
Apanho o primeiro voo para Bali.
Hospedo-me num Holliday Inn para manter as aparências.
Alugo um carro desportivo de um ano indefinido
e vou para uma praia qualquer em que se assaltem as pessoas.
Ataco um ou dois turistas, com os meus próprios dentes
arranco-lhes as orelhas vermelhas.
Depois mergulho na água e começo a cantar uma música do

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