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DAVID RAFACHINHO
EM CONFORMIDADE COM
O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
PREFÁCIO arrostar com o peso das multidões, de lutar contra as
convenções. Mas também a vivência plena de momentos
Quando, pelos bons ofícios da minha filha Mónica, me chegou isolados, mesmo quando se sabe de antemão que a seguir
o convite para escrever este prefácio, a minha reação foi virá, inevitavelmente, a desgraça, a solidão, o vazio.
dizer logo que sim.
Um livro que se lê depressa, ao ritmo de um mundo cada vez
Primeiro, pelo nome do autor do livro. Não sou amigo íntimo mais fragmentado pelo abuso das novas tecnologias e mais
de Edson Athayde, mas acompanho e admiro, há muitos anos, devastado pelos desequilíbrios da globalização. Mas um livro
o que ele fez pela publicidade em Portugal: a abordagem que, se quisermos deter-nos um pouco sobre o significado
completamente diferente, a capacidade de inovar, a imposição de cada um dos contos, nos obriga a pensar sobre o que
nem sempre pacífica de conceitos criativos que abalaram somos e para que servimos. Para chegarmos à conclusão
tabus. de que somos muito pouco e que o mais provável é que não
sirvamos para nada.
Depois, porque a própria distribuição do livro será uma
novidade. A obra não irá para as livrarias: poderá ser lida
gratuitamente pela Internet (e eu tenho um interesse crescente, Francisco Pinto Balsemão
pessoal e profissional pela Internet). Será, além disso, a
primeira, ou das primeiras, a ser publicada, em Portugal e no
Brasil, respeitando as regras do novo Acordo Ortográfico (e
eu sou a favor do novo Acordo Ortográfico).
Não lia Jornais, nem revistas, nem livros. Não que fosse Na briga entre os dois, o público dividiu-se. Uma parte preferia
analfabeto, pelo contrário, havia aprendido a ler muito cedo, a boçalidade de um enquanto outra parte preferia a
apenas não queria se chatear com o que quer que fosse, imbecilidade do outro. A disputa durou algumas semanas,
nem com as notícias sobre golfinhos enfermos nem com os tendo sido resolvida no dia em que em plena televisão o povo
comentários de políticos torpes. Não tinha mulher, nem filhos, pôde participar de uma mega eleição. O resultado foi um
tinha um cão, teve um gato, queria ter um papagaio e isso empate, o que não era nenhum disparate, tendo em vista que
já era o bastante, tendo em vista que o basta não precisa de entre os dois venha o diabo e escolha. Coisa que foi feito em
ser necessariamente muito, nem grande. seguida. Satanás, chamado para dar o seu voto de minerva,
O cidadão anónimo não dava nas vistas, mais que um preferiu o anónimo de segunda. Declarou o seu voto enquanto
personagem, ele fazia parte do cenário, objeto perdido, sem príncipe das trevas, soltando fogo e vomitando pus. Claro
brilho nem mácula, como urna espécie de candelabro barato está que o resultado era roubado, pois nos bastidores o
no castelo do Conde Drácula. vencedor já havia vendido a sua alma por três tostões e um
lugar numerado no novo estádio da Luz.
Até que o cidadão fez uma grande besteira ou cometeu um
ato genial ou, se calhar, mais do que banal, mas que caiu no Caído em desgraça, o cidadão anónimo voltou para a sua
gosto dos media, catapultando o anónimo para o vidinha sem graça. Hoje anda por aí, no papel de mais um
reconhecimento geral, tornando-o no novo ídolo dos ilustre desconhecido da praça. Parece um tipo comum, mas
reformados, dos miúdos rebeldes, dos betos, dos queques só por fora. Por dentro remói um plano de vingança. E mais
e até de algumas tias. Famoso da noite para o dia, o cidadão cedo ou mais tarde cometerá um desatino, provocará uma
anónimo deixou cair a sua máscara. Afinal, tinha ideias. guerra.
Se você ainda tem alguma, pode perder a esperança. Pode
não ser hoje, pode não ser amanhã, mas o cidadão anónimo
vai manifestar-se. Votando no partido errado, crucificando
um cristo, maltratando a manutenção de um avião, comprando
uma batalha diplomática desnecessária com o Gabão,
provocando numa feira popular um grande pânico ou
simplesmente desrespeitando as leis de trânsito. E aí, amigo,
vai ser o fim do mundo em cuecas. Pois o cidadão anónimo
pode ser invisível mas tem a marca da besta eternamente
tatuada na testa.
SETE um instante tão curto acreditar que o seu sonho absurdo
finalmente se realizou. Ela não vai seguir o movimento do
Se ele não entrar naquele elétrico, ele que é tão racional, tão elétrico com a cabeça, esquecendo que está a atender uma
terra a terra, tão cético, nunca vai ver, na outra esquina, a freguesa que pediu três rosas, dois lírios e um cravo, um
rapariga que vende flores embrulhadas num jornal. ramalhete que servirá de desagravo no encontro com uma
paixão antiga, do tempo em que ainda era tão menina que
Ela, tão magra, mirrada, pequenina, fugiu daquele filme do nem tinha todos os dentes.
Chaplin e jurou nunca mais voltar. A rapariga vive em câmara
lenta, sempre com um solo de piano a sublinhar os seus Se ele não entrar no elétrico, não poderá olhar pela janela,
gestos. Passa a vida a olhar os carros que passam, as nem a rapariga das flores terá vontade de se levantar e correr
pessoas que passam, à espera do seu grande amor, de um atrás daqueles olhos febris, que circulam pela cidade num
homem que lhe dê valor, mesmo sabendo que ela é muda veículo amarelo da Carris, nem ficará afinal sentada, assistindo
como uma porta, daquelas que falam com os olhos, a tudo desesperada. Ela não irá agarrar, transtornada, numa
acreditando por todos os poros, num ardor temerário, que o qualquer flor, nem irá ferir a sua mão nos espinhos, nem
amor não é um filme falado, muito pelo contrário, que o amor sangrará na calçada.
é gesto e silêncio, é um momento sublime suspenso no vento.
Se ele não entrar no elétrico não terá motivos para sentir-se
Se ele não entrar naquele elétrico não vai, numa obra do tal o melhor dos homens quando, depois de correr toda a rua
acaso, esse sujeito tão imprevisível e tão parvo, apaixonar- Augusta, avistar do outro lado da praça aquela rapariga que
-se pela rapariga das flores. Não vai descer quatro paragens vende flores e que saiu de um filme raro da cinemateca. Nem,
antes da sua, voltando correndo e suando para o Terreiro do por causa disso, irá saltar distraído para a frente de um
Paço, com o coração aos saltos, esbarrando em homens autocarro da linha Benfica-Marateca que perdeu os travões.
baixos e altos, que circulam pela Baixa com propósitos Não irá ser atropelado e morrer. Não irá ficar estendido na
desconhecidos, talvez a caminho dos empregos ou apenas rua, motivo de pena e escárnio de anónimos peões. Nem
a fugir de medo, o que é normal entre aqueles que não sabem terá o corpo coberto pelos jornais do dia enquanto não chega
o próprio destino. a polícia. Nem irá emocionar-se, apesar de morto que está,
quando a rapariga depositar sobre o seu corpo todas as flores
Se ele não entrar naquele elétrico não terá motivo para, que teria que vender naquele dia. Nem vai chorar, nem vai
enquanto corre debaixo da chuva fina, repassar toda a vida. sorrir quando ela se afastar e decidir regressar para a sua
Não lembrará o primeiro beijo, nem a última noite de desejo, velha fita. Onde ao lado do Charlot vai tentar, sem conseguir,
nem o vazio da manhã seguinte, o cheiro de cigarro no quarto, esquecer que um dia o seu grande amor encontrou.
nem aquela dor no peito, espécie poética de enfarte, típica
de quem está sentado na beira da cama, ao lado de uma Se ele não entrar no elétrico nada disso irá acontecer. E a
qualquer fulana, perto de quem acaba de fazer amor mas sua vida seguirá, sem graça, patética e vulgar, até morrer de
longe de alguém que possa chamar de amor. velho, de gripe, de sarna ou de nada.
Se ele não entrar naquele elétrico não vai, dali a pouco, trocar Mas, graças a Deus, ele entrou.
olhares de louco com a rapariga das flores. E ela não vai por
E conta uma história sobre uma viagem ao Evereste, no dorso
de um lhama. Fala de uma seita exótica e de um longo período
de jejum, que durou meses. E de como encontrou a chama
divina primeiro que todos os homens. E de como o seu corpo
foi elevado ao ar até onde a vista não alcança, tendo quase
sido ceifado por um misterioso avião da Lufthansa. Fala de
como depois caiu em cima de um pântano e de como passou
OITO a vaguear pelo mundo à procura da sua tribo. Fala tudo isso
em pouco mais de um segundo e já ia estender a mão com
O seu nome é Meridional. Tem um enorme sorriso no rosto um ar de até mais ver quando é surpreendido com a imagem
como a dividir os polos. Meridional é negro mas ninguém do coreano a ajoelhar-se no chão.
percebe. Acham que é mulato, compram gato por lebre. Ele
é lobista de um hotel da Baixa. Fica pelos cantos do lobby E todos os coreanos em volta, ao entenderem o sinal, erguem
o tempo todo a dizer "bom-dia". Mete conversa com franceses, os braços aos céus a agradecer a dádiva recebida. E então
chineses, ingleses, faz-se de turista. Quem olha diz que o mais velho dos coreanos, pelo menos duzentos anos em
acabou de chegar, quando na verdade nunca foi nem há de cada perna, debruça-se sobre o ombro de Meridional e sopra-
voltar. -lhe no ouvido: «Mestre!».
O gerente põe-no louco, quer que invente histórias para daqui Desde então Meridional nunca mais deu notícias. Consta que
a pouco. É que está a chegar um lote novo de coreanos e o gerente teve um destino terrível.
Meridional tem de ser rápido. Para deixar claro, Meridional
não é vigarista. Apenas é pago para falar com turistas. Houve
um tempo em que não tinha hotel fixo, era lobista freelancer,
alugado à hora, ao tempo, ao tanque. Depois do bom dia,
Meridional conta sempre histórias de malas perdidas, de voos
calmíssimos e filhos distantes. Os viajantes ficam tranquilos
ao ouvir tal falar, e pensam: “há alguém parecido comigo
nesse mundo que está a acabar.” Meridional então simula
um ataque de tosse, pede desculpas e parte para outra.
Em seus sonhos secretos, imaginava-se um mago capaz de O trabalho não foi fácil. O endireita passou sete dias e sete
transformar a gorda com a marreca numa ginasta romena noites a tentar endireitar o enfermo. Não comeu, não bebeu,
hirta e bela. O reformado reumático, após uma massagem, não dormiu. Gritou, blasfemou e até sussurrou algo que
saltava da maca como nadador salvador de um colorido pareceu vagamente uma puta que o pariu. Foi quando o
parque aquático algarvio. A grávida problemática, dona de presidente finalmente reagiu. Num movimento brusco, levantou-
um ar pesado e doente, tornava-se uma lasciva dançarina -se da cama e deu três pulinhos. Depois rodopiou pelo quarto
do ventre, daquelas que seduzem serpentes e encantam como se o mordomo anão tivesse um violino e tocasse uma
meninos. Ele era um endireita dos corpos alheios, só não valsa. E, sem pestanejar, deu um salto mortal e fez o pino.
conseguiu endireitar o próprio destino.
O endireita de tão cansado só conseguiu esboçar um sorriso.
Um dia, o presidente do planeta caiu de uma escada, durante Caiu para o lado e deu o seu último suspiro, com a certeza
uma gala e magoou a espinha. Ficou preso numa cama de de ter feito o certo, o justo, o reto. Endireitara o homem mais
um quarto sem janelas, onde o Sol não entrava, nenhum poderoso do mundo. E, quem sabe, com isso o futuro de
pássaro voava e nem uma flor nascia. O presidente perdeu todos. Nem viu quando o presidente, num estabanado
o contacto com o mundo. O que acontecia fora do quarto movimento, tropeçou no anão, caindo de cara no penico,
passou para ele a ser apenas um relatório diário lido, num morrendo afogado no próprio excremento. O mordomo, ao
tom monocórdico, por um mordomo com um leve sotaque contemplar a cena final, pensou em chorar, não sem antes
húngaro e que, por acaso, era anão. E o presidente, que já exclamar naquele momento a fala final deste conto triste e
havia dado a volta ao planeta a bordo de um balão, contentava- porco: “Mundo que nasce torto, morre torto.”
se em dizer nem que sim, nem que não, sem poder levantar-
se do seu leito nem que fosse para beijar a mão de uma doce
princesa ou abraçar um amigo do peito. E ele que antes era
um governante alegre, sábio e justo, passou a tratar o planeta
com desprezo e escárnio. Tomou-se num déspota rezingão
TREZE Lloyd Cole.
E antes que o sol se ponha e que o mundo expluda,
“Eu tenho tudo. mergulho e conto até cento e cinquenta e cinco.
Eu tenho tudo, vejam vocês. E, por instantes, não vou ter nada na cabeça e no bolso.
Tenho mulher, dinheiro, saúde. Vou ser só um pobre yuppie louco.
Celular? Tenho três. E, pela primeira vez na vida,
Carro, diploma, cartão do Sporting. Quando o oxigénio acabar e eu vencer
Ano passado tive um jacto, mas passei adiante os meus primários instintos de sobrevivência,
pois, hoje em dia, o que interessa é não ter nada quando o meu corpo começar a contorcer-se à procura de
de interessante. luz
Não moro numa casa, vivo num estúdio. quando pela minha boca entrar
Tenho um loft no Soho e uma vizinha chamada a água, o sal e todo o poder da mãe Terra,
Socorro. quando eu começar a grunhir e ganir
Tenho um cão, uma catatua que canta boleros, e a chamar pela minha vizinha
um mastim assassino e uma chinchila. Socorro,
Nunca mostro os documentos. eu serei por um milionésimo de segundo,
Quem é não precisa provar. acredite amigo, eu serei feliz.
Tenho trinta, mas aparento menos, nem que seja por uma unha,
muita água francesa é o meu elemento. por um casco,
Comprei dois laptops e fiz milhões: por um triz.»
de euros, de inimigos, de escudos.
Não gosto da pobreza, o meu negócio é a beleza.
De pobre basta o meu karma, o meu porteiro, o meu berço.
Já tentei vários suicídios, alguns bem sucedidos.
Também tenho as paranoias da moda.
Sonho com o dia do juízo final, o meu loft a arder e a catatua
em chamas a cantar «Besame Mucho».