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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Igor Holanda Vaz Arcoverde

A modernidade líquida e relações amorosas: efeitos do capitalismo no


projeto de jovens casais de ciências sociais da UFPE

Recife 2018
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A “liquidez” dos relacionamentos amorosos entre estudantes de Ciências Sociais da


UFPE

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Departamento de Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco, como parte dos requisitos
necessários a obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Sociais.

Orientadora:

Roberta Bivar Carneiro Campos

Recife, 2017
Dedicatória

Gostaria de agradecer imensamente aos meus familiares que sabem da importância


desse momento da minha vida em me formar como cientista social, espalhados por todos os
cantos do mundo, seja em Bassersdorf na Suíça até Chã Grande em Pernambuco, sempre com
pensamentos positivos e o apoio constante na minha profissão.

Agradeço imensamente a professora Roberta Campos, orientadora da minha pesquisa,


que me acolheu de forma inesperada a um ano atrás, e me apresentando a uma linha de
pesquisa que eu insiste tanto em trabalhar e que eu vou carregar para sempre em minha
carreira.

Também quero agradecer aos colegas da universidade, que me ensinaram tanto e


proporcionaram uma sabedoria das ruas a qual carregarei pra sempre em minha vida: Thiago
Santos, Vinícius Bastos, Lucas Bernardes, Hugo Abreu, Guilherme Pimentel, Lou Agnes, Lua
Michelotto, Sascha Burgos, Patricia, Jessica, Marina, e tantos outros que estiveram nas
memórias que para sempre carregarei da universidade.

E por último, ela que tantas vezes passou pela minha cabeça escrevendo esse projeto e

sempre me apoiou, a minha querida Glória de Andrade, quem me proporciona momentos de


alegria todos os dias, a quem eu amo como Bauman ou qualquer outra pensador jamais vai
entender. E por fim, o querido Azeitona, companheiro felino das minhas manhãs frustrantes,
que surgiu do nada e vai sempre ser uma lembrança feliz na minha trajetória durante esta
monografia.
Resumo

O presente trabalho trata de investigar os efeitos da modernidade líquida capitalista


nas experiências amorosas entre jovens de ciências humanas da UFPE: como gerenciam
interesses individuais, seus projetos conjuntos de vida, e as demandas da relação, em
consonância com as ideias propostas por Zygmunt Bauman em sua teoria a respeito da
modernidade líquida.

O objetivo está em observar se há ou não a presença de características tipicamente


baumanianas nas dinâmicas e rotinas que os casais empregam para se relacionarem, e como
esses jovens se relacionam hoje em dia, tendo a perspectiva da individualização e
distanciamento nas relações amorosas em uma sociedade capitalista onde o consumo e a ideia
de mercadoria diminuem a importância do vinculo duradouro, assim como a singularidade
dos relacionamentos.
Sumário

1. Introdução ……….…………………………………………………………..……6

2. Metodologia ………………………………………………………………………9

3. Reflexão teórica ……………………………………………………………….…13

4. Análise de dados …………………………………………………………………23

4.1 Marina e Thiago ………………………………………………………..23

4.2 Jamily e Vinicius ……………………………………………………….30

5. Conclusão ………………………………………………………………..………37

6. Bibliografia ………………………………………………………………………41
1. Introdução

O presente trabalho trata de analisar as relações amorosas entre estudantes


universitários com o recorte dos alunos do curso de ciências sociais, e identificar se há ou não
dificuldades em estabelecer um projeto de vida conjunto numa sociedade capitalista,
utilizando da teoria de Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida, onde o consumo e o
enfraquecimento dos laços são características centrais. Analisando os casais entrevistados,
pretendo realizar uma pesquisa que comprove (ou não) as dificuldades sofridas em torno da
modernidade líquida e a mudança paradigmática do amor com o advento do capitalismo, e
como esse mesmo capitalismo compromete os objetivos, projetos e desejos desses casais,
assim como seus pontos de vista a respeito das relações amorosas e do amor.
Ser adolescente envolve várias descobertas complicadas a serem assimiladas. A
identidade de gênero, primeiras experiências sexuais, o contato com drogas e álcool e,
principalmente, a descoberta de independência pessoal e constituição de uma identidade.
Esses são alguns dos temas que preocupam jovens que estão transitando da juventude para a
vida adulta, e como essas questões são tratadas pelos jovens que estão para sair da
universidade e entrar no mercado de trabalho, ao mesmo tempo que partilhar um projeto de
vida, compromete outras possibilidades de sucesso profissional.
O objeto de pesquisa analisado foram os jovens casais universitários, em relação com
um ambiente capitalista individualizante caracterizado pelo consumo, e como a
transitoriedade de interesses e valores agregado aos objetos enfraquece a constituição de um
laço afetivo. A contemporaneidade de Bauman reconhece que as relações amorosas estão mais
ligadas a uma lógica de mercado, onde a facilidade de se romper o vínculo, assim como
constituir um, representam o medo do vínculo profundo, responsável pelo sofrimento do
inevitável rompimento, em uma sociedade caracterizada pelo fato de que nada dura pra
sempre, tudo é momentâneo e passível de ser dissolvido.

Por jovens casais, trato de analisar jovens entre os dezoito e trinta anos, que possuem
uma vida de experiências românticas a serem estabelecidas e percebem o futuro como algo
ainda a ser descoberto, havendo toda uma vida pela frente. Dentro da categoria de casais é
importante relacionar a importância que a compreensão das relações amorosas causa na vida
desses jovens, onde as experiências românticas modelam a visão que esses têm sobre seus
relacionamentos, a partir de um repertório de experiências pessoais.
A modernidade líquida, em vários aspectos, se trata da valorização do ser humano
como indivíduo pós-iluminista , onde o investimento em sí supera todas as outras prioridades,
pois não se tem certeza do outro o que ele pensa ou é capaz de fazer, sendo possível investir
confiança total apenas em si mesmo. O autor revela o deterioramento da importância do
parentesco em nossa sociedade junto com o senso de comunidade, onde a constituição de
laços afetivos foi prejudicada pelo estabelecimento do consumo como pilar onde o mundo
globalizado prospera, resultando em uma série de fenômenos sociais singulares do nosso
tempo, como os aplicativos de relacionamentos amorosos e redes sociais como Facebook, que
representam tão bem a modernidade líquida, por estabelecerem a impessoalidade e
acompanhar o ritmo acelerado do capitalismo em nossa sociedade, junto com a influência
cultural, como observada na análise sobre a indústria cultural. A mudança dos
relacionamentos amorosos evidencia mais que a intimidade de duas pessoas e, para esta
pesquisa, em um contexto universitário, representam uma dinâmica pela qual as pessoas se
tornam um bem de fácil acesso, onde o laço afetivo pode ser sempre substituído por outro de
igual valor ou maior.
Para entender o problema da pesquisa entre jovens casais e a modernidade líquida,
foram feitas duas entrevistas estabelecendo um paralelo no que é ser um jovem universitário
em um relacionamento e quais são as dificuldades postas diante desses jovens. Cada casal
sofre problemas específicos, e dificuldades similares, ao mesmo tempo que possuem
perspectivas próprias sobre as dificuldades de se manter um vínculo amoroso.
A divisão do trabalho foi feita da seguinte forma: o primeiro capítulo trata da
metodologia, onde explico o tipo de pesquisa realizada, como ela foi realizada, as
características do trabalho de campo, o tempo que foi passado fazendo a pesquisa, além de
introduzir o perfil dos entrevistados. Foi trabalhado na metodologia as dificuldades
apresentadas durante as entrevistas, assim como as particularidades do método empregado,
esclarecendo um pouco sobre as decisões feitas na formulação das entrevistas.
Em seguida, trato de explicar o referencial teórico utilizado. Foi feita uma análise da
obra de Bauman sobre a modernidade líquida, e os amores líquidos, compreendendo melhor a
respeito de como os jovens estabelecem suas relações amorosas, a partir das dinâmicas e
hábitos que estabelecem entre si, observando no que constitui o relacionamento amoroso para
esses casais, assim como as dificuldades em manter um projeto com outra pessoa em uma
sociedade capitalista, onde a lógica do mercado regula as dinâmicas desses casais, assim
como constitui, segundo Bauman, a forma como se estabelecem essas relações. Também foi
abordada a noção de amor romântico e amor contemporâneo, e a priorização do projeto
individual na constituição desses vínculos, que muitas vezes, são rompidos pelo
estabelecimento de si como investimento mais seguro a ser feito.

Em seguida, faço a análise dos dados apresentando as entrevistas feitas em campo com
os casais: Marina e Thiago, Jamily e Vinicius. O primeiro casal é formado por dois estudantes
de ciências sociais com uma diferença grande de idade e esperando uma filha nascer,
dependentes da bolsa universitária para manterem a casa alugada próxima da universidade, e
contando com o auxílio dos pais, tanto da mãe de Marina, que se mudou para auxiliar a filha,
como os pais de Thiago, que ajudam com as despesas, além de apresentar a complexidade de
um casal jovem que se depara com a responsabilidade de constituir uma família, e finalmente
se tornar pai e mãe, e qual o peso disso para o relacionamento amoroso deles. O segundo
casal é formado por Jamily e Vinícius, Jamily sendo uma estudante de artes visuais e Vinícius
um estudante de ciências sociais. Os dois moram juntos e podem ser considerados um casal
universitário boêmio , independentes e com uma vida social agitada, não necessariamente
presos a responsabilidades outras que da universidade, mas confrontados diariamente com as
dificuldades financeiras e existenciais que são postas pela universidade e família.
Por fim, a conclusão estabelece as últimas considerações sobre os autores utilizados,
tanto a parte empírica como a parte teórica de Bauman, relacionando o capitalismo e a
modernidade líquida, assim como os resultados encontrados sobre o efeito dessa modernidade
nos jovens casais que se frustram para conseguir realizar um projeto conjugal em um mundo
que cada vez mais desvaloriza a constituição de vínculos, e como esses jovens vivem as
dificuldades de estarem em uma sociedade capitalista.
A seguir abordo a metodologia de pesquisa, o perfil dos entrevistados, assim como
onde foi feita a entrevista, quanto tempo levou, quais foram as dificuldades apresentadas em
campo e por que foram tomadas certas decisões de pesquisa ao invés de outras.
2. Metodologia

Foi realizada uma pesquisa de caráter exploratório, com o objetivo de observar e


analisar de forma preliminar o fenômeno da modernidade líquida entre jovens casais
universitários, e os efeitos do capitalismo nas limitações e desafios que estes são postos a
confrontar diariamente. A pesquisa exploratória foi uma observação em escala reduzida do
fenômeno global da modernidade líquida, assim como proporcionou a compreensão
qualitativa dos entrevistados, de como esses efeitos globais e históricos, caracterizados pelos
avanços tecnológicos, a liquidez do tempo, globalização e individualização incidem sobre
esses jovens. Também foi realizado um levantamento bibliográfico trabalhando com casos
empíricos que dialogam com os relacionamentos amorosos dessa pesquisa, partindo de outras
análises qualitativas baseadas em entrevistas que contemplam jovens de faixa etária similar,
em contextos de classe que possibilitam uma análise comparativa com os entrevistados da
presente pesquisa.
As entrevistas foram realizadas nas respectivas casas dos entrevistados, localizados no
bairro Várzea, em dias diferentes, consolidando várias horas de conversa e um hora de
entrevistas gravadas em áudio. As entrevistas foram feitas com ambos os casais presentes, no
entanto, deixei claro que iria utilizar as conversas realizadas ao longo do dia com os casais
por vezes individualmente, mas em grande parte, usando o material das perguntas
formalmente realizadas com os dois juntos.
Foi valioso pensar as narrativas contadas em entrevista como o resultado da constante
transformação que se manifesta no aprendizado amoroso desses indivíduos, assim como um
aprendizado das dificuldades vividas na condição de universitário em busca de um ensino
superior. Na primeira entrevista, Marina demonstra mais que Thiago essa transformação
ocorrida em sua vida, de solteira independente até morar com Thiago e constituir uma família
com a descoberta da gravidez. As perguntas naturalmente levavam esses casais a pensarem na
própria condição a partir da análise de si mesmos em outro relacionamento, em outro
momento na vida assim como outra mentalidade. Fazer uso da entrevista com os dois casais
presentes foi importante para entender a dinâmica de um com o outro, ultrapassando a
dimensão discursiva, onde boa parte das vezes havia um consentimento visual entre esses
casais.
Foi importante evitar a restrição de procurar apenas casais que ambos cursam ciências
sociais, isso apenas tornaria mais difícil a seleção de entrevistados e acrescentaria algo para a
pesquisa que não necessariamente me daria respostas muito diferentes sobre jovens
universitários, sequer sobre o curso de ciências sociais e o campus da UFPE, quase que,
unanimemente, estabelecido como espaço de lazer e trabalho pelos entrevistados. Ao menos
uma das partes tinha de ser do curso de ciências sociais, uma decisão que não implica na
perda do verdadeiro foco do projeto de constatar a modernidade líquida de Bauman entre
jovens estudantes de ciências sociais, e os efeitos do capitalismo na manutenção dessas
relações. No caso em que houve exceção, Jamily está na idade média dos entrevistas e no
contexto universitário, evitando assim maior impacto na pesquisa.
Entre os entrevistados, o perfil deles era muito marcado pela questão migratória, no
caso de Thiago e Jamily, assim como nas dificuldades familiares de Marina e Vinicius. Os
entrevistados revelavam discussões sobre a dificuldade de se viver na universidade, a
dificuldade em se firmar na profissão que estudam, a falta de perspectiva financeira, assim
como as dificuldades de se lidar com a rotina do relaionamento. Os entrevistados foram
quatro, postos em dias diferentes, e entrevistados juntos: Thiago e Marina primeiro, e em
depois, Vinicius e Jamily.
Thiago nasceu de Goiana, tem 31 anos, e ingressou no curso de ciências sociais no
primeiro semestre de 2013, após descobrir as possibilidades de uma carreira na área da
antropologia e pelo incentivo de amigos e conhecidos que seguiram a carreira acadêmica.
Thiago está terminando o curso, foi aprovado para o mestrado em antropologia da UFPE, e
conta com a bolsa de estudos para melhorar a qualidade de vida para ele, sua companheira,
Marina, e a filha recém nascida, Iolanda.
Marina tem 22 anos, nasceu em Recife, e ao ingressar na universidade no primeiro
semestre de 2013, optou pelo curso de biologia, no entanto, insatisfeita com a escolha, decidiu
em 2014 fazer a transferência interna para ciências sociais, curso que ainda está em
andamento, interrompido recentemente pela gestação de Iolanda.
Vinicius nasceu em Recife e tem 22 anos. Cursa ciências sociais da UFPE desde o
primeiro semestre de 2014. Ao ingressar no curso de ciências sociais, já estava realizando um
curso técnico de química com planos para entrar no mercado de trabalho técnico, caso a vida
acadêmica não fosse satisfatória. No entanto, Vinícius continua cursando ciências sociais,
preocupado com o futuro financeiro, mas conseguindo se manter dividindo moradia com
Jamily.
Jamily nasceu em Serra Talhada, tem 23 anos e faz o curso de artes plásticas na UFPE.
Ela tinha uma casa onde dividia com diversas pessoas, já que era uma com muitos quartos
onde todos compartilhavam as despesas, e contando, também, com o dinheiro das festas que
eram feitas na casa para o público, como oportunidade de vender bebida para fazer um
dinheiro extra. Em uma dessas festas, Vinicius e Jamily se conheceram, passaram um tempo
namorando, para finalmente morarem juntos, já que Jamily não tem condições de arcar uma
casa sozinha, Vinicius e ela decidiram dividir as despesas vivendo juntos.
Optei por priorizar as entrevistas com pessoas relativamente próximas do círculo de
amizades o qual frequento. Não considerando que tenha havido qualquer falta de rigor
metodológico nessa decisão, pois se tratou de estabelecer a confiança de que essas pessoas
estariam confortáveis durante as entrevistas. Utilizar a entrevista com Jamily e Vinicius,
sendo Jamily de outro curso, contribui com o objetivo de destacar as características advindas
do curso, tratar de casais próximos possibilitou uma visão dessas pessoas que não utilizou
ideias pré-concebidas na análise dos dados, como os relacionamentos anteriores de Marina ou
Thiago, dos quais tenho conhecimento de que não cabem na entrevista por romperem com a
noção de descentramento, tão fundamental para o método etnográfico. O conhecimento prévio
dos entrevistados não foi com a intenção de expor meu conhecimento da vida íntima dessas
pessoas, mas uma forma de lidar com mais segurança nas entrevistas e possibilitou uma maior
capacidade de fluir o pensamento a respeito do que os casais diziam nas entrevistas, tornando
o momento da escrita menos carregado de dúvida, assim transportando a confiança dessa
intimidade das entrevista para a confiança da análise de dados.
Decidi construir um roteiro de entrevista alinhado com indicativos de onde eu queria
chegar com a ideia de modernidade líquida, assim como o que os casais pensam sobre
relações amorosas. Ao me deparar com as características que tornavam esses casais únicos,
pude perceber que o roteiro estava distante da realidade deles, havendo poucos pontos
objetivamente observados, o que resultou em deixar de lado o roteiro, e permitir às entrevistas
seguir a partir dos entrevistados. A dinâmica familiar, por exemplo, foi um ponto que eu tinha
intenção de trabalhar, mas não imaginava que tomaria a proporção que tomou entre as
entrevistadas do sexo feminino. Também foi observado como cada uma expressava sua
personalidade na forma como respondiam as perguntas, sempre confirmando com um olhar o
consentimento do parceiro, havendo raros momentos em que uma não permitia a fala ao outro
ou chegasse a discordâncias: os casais estavam realmente sendo entrevistados como um time ,
ao mesmo tempo que perguntas mais individuais faziam com que o parceiro ou parceira fosse
para o banco de espera , de forma consentida por uma linguagem não-verbal, trabalhada na
elaboração da metodologia.
O fato de terem sido realizadas duas entrevistas teve relação com o aspecto
comparativo da pesquisa. Realizar uma série de entrevistas não teria proporcionado um maior
entendimento quantitativo das relações amorosas no ambiente universitário, assim como não
era essa a intenção, se tratando de uma pesquisa exploratória. O objetivo foi de investigar as
experiências amorosas entre jovens de ciências sociais da UFPE, como gerenciam interesses
individuais, as demandas da relação e quais suas perspectivas quanto a intimidade e cotidiano,
ou seja, uma visão intimista que foi alcançada por meio dessas duas entrevistas, carregadas de
diversos conceitos que foram trabalhados a partir das entrevistas e da metodologia.
As questões feitas durante as entrevistas visavam uma reflexão a respeito da definição
de amor e o lugar que os jovens dedicam a esta experiência em suas vidas, a partir de
perguntas simples que pudessem ser facilmente contempladas pelos casais, como a forma com
que passam o tempo livre, revelando o cotidiano e a rotina deles, assim como as dinâmicas
familiares, que revelou um pouco da biografia individual de cada um desses indivíduos no
casal e como eles chegaram àquele lugar como pessoas.
No próximo capítulo, pretendo fazer a reflexão teórica dos autores utilizados na
pesquisa, dividindo em três seções diferentes: a primeira explicando o conceito de
modernidade líquida como proposto por Bauman; a segunda apresentando a ideia de relação
amorosa na contemporaneidade, e, por último, os efeitos do consumo, e a associação com a
indústria cultural e os papéis de gênero.
3. Reflexão teórica

As relações amorosas na juventude surgem como o primeiro momento em que damos


abertura para outra pessoa partilhar uma visão comum de mundo, cheia de ansiedades,
prazeres e expectativas. É uma fase da vida na qual o tempo parece não impor limites;
colocamos em risco nossos sentimentos e realizamos comprometimentos antes nunca feitos.
Não estabelecemos relacionamentos unicamente com o indivíduo que imaginamos conhecer,
mas com toda a rede de relações e noções de realidade da outra pessoa, portanto, surge uns
questionamentos: Como se dão os relacionamentos amorosos para esse jovens? Como a
lógica do consumo capitalista afeta esses laços?
Adiante, pretendo responder às questões teóricas que dizem respeito a problemática da
pesquisa, inicialmente apresentando o conceito de modernidade líquida segundo Bauman, o
que são relações amorosas e como podemos relacionar com jovens universitários, e os efeitos
do consumo em uma sociedade capitalista, assim como o papel da indústria cultural nos
papéis de gênero.

3.1 A modernidade líquida

Atitudes normativas em nossa sociedade podem ser vistas de forma diferente pelos
estudantes universitários, assim como determinismos de classe podem ser rompidos pela
convivência em uma realidade acadêmica plural, no que diz respeito a experiências de vida
dos colegas e professores. Zygmunt Bauman (2004) afirma que estamos nos dando menos ao
luxo de amar e que a sociedade está cada vez mais valorizando o indivíduo e menos os
costumes e tradições coletivas, tornando mais difícil aceitar o outro e ser aceito, devido à
ausência de costumes em comum. Bauman organiza seu pensamento a partir da ideia de que o
mundo moderno está transitando de uma modernidade sólida para uma modernidade líquida,
referenciando a famosa frase de Marx sobre como tudo que é sólido desmancha no ar. O
líquido representa aquilo que sentimos passar por nossas mãos e, quando nos damos conta,
desliza pelos dedos; os contatos breves e superficiais dominam nossas relações, tornando as
redes de amigos impessoais e virtuais cada vez mais populares, superando o valor da
comunidade, onde as pessoas se conhecem por meio do contato intimista e pessoal. Para
Bauman, a modernidade líquida age distanciando os laços que expressam intimidade e
comprometimento, como forma de evitar o trauma da decepção, ou desligamento do vínculo.
Estamos transitando de uma modernidade hardware, onde as dificuldades físicas de
comunicação e transporte se tornam abstrações, onde o acesso é possível para quase todos, e
aqueles que não pertencem a modernidade software são os mais prejudicados e esquecidos
nesse contexto de progresso tecnológico o qual vivemos. Antigamente, havia uma
dependência do acúmulo do espaço e o racionamento do tempo, enquanto hoje em dia, na
modernidade líquida, nos deparamos constantemente com a desvalorização dos bens físicos
pelos virtuais, onde é cada vez mais fácil consumir dezenas de produtos online do que ir a
uma loja e procurar um determinado item.

Na era do hardware, da modernidade pesada, que nos termos de Max Weber era
também a era da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava
ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era o espaço,
pudesse ser maximizado; na era do software , da modernidade leve, a eficácia
do tempo como meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, com o
efeito paradoxal de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as
unidades no campo dos objetivos potenciais. (BAUMAN, 2001, p. 137)

As antigas forças que mantinham a solidez do nosso mundo eram caracterizadas por
paradigmas mantidos mesmo na distância temporal, por exemplo, se tomássemos um soldado
romano da época de Julius Cesar e o colocássemos no período colonial brasileiro, não seria
uma mudança tão brusca de vida, se comparado a enviá-lo para Nova York em 1960. Para
Bauman, o pós-guerra foi um momento crucial na sedimentação da modernidade líquida, na
construção de cidades, estabelecimento de um longo período de paz global, o advento da
globalização e, por fim, a democracia e o consumo como pilares pelos quais a paz e a ordem
foram estabelecidos, característica central da modernidade líquida.
Na modernidade líquida, os produtores deram lugar aos consumidores e a globalização
tornou o vínculo comunitário quase inexistente em um mundo de redes impessoais, tornando
tão fácil se comunicar com alguém que tal facilidade tira o valor do esforço empregado,
reduzindo a relevância de serem realizados sacrifícios e promessas, quando a abundância de
opções torna o vínculo um excesso de comprometimento. Essa superficialidade nas relações
interpessoais que Bauman apresenta pode ser observado nos jovens de hoje, na forma como
utilizam redes sociais, e os vícios decorrentes, a dificuldade em se concentrarem e,
principalmente, na própria liquidez de suas relações, ou seja, na manifestação desde jovem da
interação social como algo impessoal e distante de conteúdo emocional. As etapas amorosas
nas quais nossas avós provavelmente passaram eram claramente determinadas: o flerte que
passava pela aprovação dos pais, o namoro, o noivado, até o casamento. Os jovens da
modernidade líquida se contentam com ficar e namorar, mas nada sólido na própria
nomenclatura, já que não há uma nomenclatura adequada considerando a rapidez com que as
relações se constroem e se desconstroem. A dinâmica dos jovens no mundo líquido encontra
dificuldade em estabelecer vínculos duradouros, e a própria aversão dos vínculos preocupa
Bauman, pois é no consumo que se alivia o peso de não haverem vínculos humanos, típicos
de uma comunidade, resultando no isolamento, que, por sua vez, causa uma série de
problemas por necessitarmos do contato social:

A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e não
promete sossego à vigilância. Para nós, os habitantes deste líquido mundo
moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao
uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode
ser mais do que aquilo que estamos dispostos a exigir numa barganha.
Estabelecer um vínculo de afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo
semelhante ao parentesco — mas também a presteza em pagar o preço pelo
avatar na moeda corrente da labuta diária e enfadonha. Quando não há
disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido, solvência de ativos),
fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir para concretizar a intenção.
(BAUMAN, 2004, p. 46)

Para Bauman, a modernidade líquida se caracteriza pelo desenvolvimento dos meios


de comunicação, acarretando em uma mudança na forma como pensamos o tempo, assim
como o espaço. Distâncias e prazos se tornaram tão líquidos que já não são sentidas barreiras
globais para como nos relacionamos, e essa relação com o mundo que esta sendo
desenvolvida envolve fortes consequências em como se dão as relações amorosas hoje em dia
e em como compreendemos a ideia de relacionamento. A seguir, pretendo fazer uma
explanação sobre como eram as relações amorosas conforme a noção de amor romântico e
como se dão na contemporaneidade.

3.2 Relações amorosas na contemporaneidade

Bauman sugere que no mundo líquido, onde nada sólido dura muito tempo, temos
medo do vínculo duradouro e do trabalho constante que é manter um projeto de vida com
alguém. A proposta de Bauman parte de uma visão sociológica, na qual encontramos os
dilemas e desafios que se apresentam para uma humanidade, pela primeira vez reconhecendo
a necessidade de algo mais resistente e significativo do que uma rede de interações do mundo
conectado, mas a importância da constituição de uma comunidade global , onde valores
deveriam ser postos acima dos interesses de consumo. Em meio as redes sociais, identidades
fluídas e os dilemas diários dos relacionamentos, é importante pensar como eram essas
relações amorosas e qual o estado no qual elas se encontram na modernidade líquida.
Em sua tese NAMORO E VIOLÊNCIA: um estudo sobre amor, namoro e violência
entre jovens de grupos populares e camadas médias, Fernanda Sardelich Nascimento (2009)
pesquisa com jovens das camadas populares e camadas médias e, a partir das entrevistas,
conclui de forma consistente o que significa namorar para esses jovens entrevistados, uma
etapa tão fundamental das relações amorosas entre jovens hoje em dia.

Entre os(as) interlocutores(as) da pesquisa o namoro é pautado no


compromisso, na fidelidade, no carinho, no sentimento, na troca de experiência
com o outro, propiciando conhecer esse outro com quem se relaciona. Há
aprendizado, mudança, respeito, estabilidade e a vivência de regras
estabelecidas entre o casa, que normatizam a relação. […] no namoro também
existem cobranças e obrigações — dar satisfação sobre o que se fa —, além de
divergências na forma de pensar e agir, que devem ser superadas na relação.
(NASCIMENTO, 2009, p. 81)

De forma sucinta, Fernanda Sardelich estabelece as relações amorosas, a partir de suas


entrevistas com jovens, e sobre a ideia de namoro, como dinâmicas estabelecidas entre dois
indivíduos pautadas no compromisso, fidelidade, carinho e sentimento, sendo a quebra de
uma dessas responsabilidades com o outro algo comum de se ocorrer, mas não sem haver suas
consequências, como a decepção ou desilusão amorosa. A abdicação da individualidade em
prol de um projeto surge como a ideia de completude ao se relacionar com outro indivíduo.
Relacionamento amorosos são fortemente estabelecidos na ideia de uma falta, um vazio, onde
outra pessoa é capaz de exercer as funções que necessitam de uma doação da liberdade
própria, considerando que o amor é uma força que transcende a racionalidade, tornando
possível se exercer a irracionalidade de se doar completamente, ou abdicar de seus interesses
em prol do projeto e da outra pessoa.

O amor aparece nas falas como: sacrifício; doação ao outro; essencial para a
felicidade; transcendente, pois vai além do carnal. (...) O amor não se prende à
materialidade ou a algo carnal, transcende essas questões, por essa razão eles
conseguem sentir a presença do outro, mesmo que esse outro não esteja ao seu
lado, pois há uma ligação maior entre o casal, o amor. Essas características são
idênticas às que Costa (1998) identifica como parte da versão ideal/romântica
do amor. Essa versão do amor romântico, segundo Giddens (1993), embora não
sendo parte da construção da sociedade atual, mas ainda circula em nossa
sociedade, por estarmos em uma fase de transição.” (NASCIMENTO, 2009, pp.
87-88).
A ideia de que o amor romântico se estabelece em uma doação mútua, segundo
Anthony Giddens (1993), vem de um contexto que está sendo traçado pelo processo de
reconhecimento da intimidade feminina e liberdade do desejo sexual em um longo processo
histórico.

Anthony Giddens é outro autor que aborda as relações amorosas, porém, sobre uma
luz muito mais imparcial que a de Bauman, observando como a intimidade mudou a partir do
posicionamento da mulher no controle da própria sexualidade e do estabelecimento de seus
próprios desejos, após a emancipação da ideia de que a liberdade só poderia ser almejada por
meio do casamento. Giddens observa como a mentalidade que se leva para os
relacionamentos amorosos começa carregada de uma série de significados que surgem da
emancipação da mulher de seu papel vinculado ao lar. Para os homens, a vida pública e a
noção de indivíduo são muito mais enraizadas do que para a mulher, que experiencia a vida
pública como algo inerentemente conjunto com outra pessoa.

Foi somente na última geração que, para as mulheres, viver a sua própria vida
significou deixar a casa paterna. Anteriormente, deixar a casa significava para
todas, com exceção de uma pequena proporção de mulheres, casar-se. Ao
contrário da maioria dos homens, a maior parte das mulheres continua a
identificar a sua inserção no mundo externo com o estabelecimento e ligações.
Muitos estudiosos têm observado que, mesmo quando um indivíduo ainda está
sozinho e apenas prevendo relacionamento futuros, os homens em geral falam
em termos de eu, enquanto as narrativas femininas sobre si mesmas tendem a
ser expressadas em termos de nós. (GIDDENS, 1993, pp. 63-64).

Considerando que relações amorosas se estabelecem a partir de uma dinâmica mútua


de interesse, fidelidade e confiança, onde responsabilidades são atribuídas para os mais
diversos contextos possíveis, o fato que as mulheres estejam constantemente ampliando seu
acesso aos espaços anteriormente dominados pelos homens, se correlaciona com o que
Bauman compreende da modernidade líquida, como um fenômeno relacionado ao pós-guerra,
paralelo com a consolidação do capitalismo no mundo ocidental, onde todos nos tornamos
consumidores por igual. Giddens aborda justamente o momento de ruptura em que a mulher é
separada de seu dever como detentora do lar e aponta para como o amor romântico foi
contextualizado a partir da construção de um ideal que era nutrido pelas mulheres, que tinham
a vida completamente vinculada ao desejo do casamento, que representa a liberdade e única
possibilidade de futuro fora da casa dos pais, no qual esse papel era atribuído com uma série
de expectativas tratadas pelas mulheres como um preparo que não era contemplado pelos
homens, tornando a intimidade uma construção social das mulheres, na qual os homens não
conseguem compreender por não terem participado dessa construção.

O termo relacionamento, significando um vínculo emocional próximo e


continuado com outra pessoa, só chegou ao uso geral em uma época
relativamente recente. Para esclarecer o que está em jogo aqui, podemos
introduzir a expressão relacionamentos puro para no referirmos a este
fenômeno. Um relacionamento puro não tem nada a ver com pureza sexual,
sendo um conceito mais restritivo do que apenas descritivo. Refere-se a uma
situação em que se entra em uma relação social apenas pela própria relação,
pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação
com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que
extraem dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela
permanecerem. (...) o relacionamento puro é parte de uma reestruturação
genérica da intimidade. Emerge em outros contextos da sexualidade além de no
casamento heterossexual; de algumas maneiras casualmente relacionadas, ele é
paralelo ao desenvolvimento da sexualidade plástica. A ideia do amor romântico
ajudou a abrir um caminho para a formação de relacionamentos puros no
domínio da sexualidade, mas agora tornou-se enfraquecida por algumas das
próprias influências que ela ajudou a criar. (GIDDENS, 1993, pp. 68-69).

Por relacionamento puro, podemos compreender que as mudanças na forma como


lidamos com a intimidade estabelecem o fim da mulher como ser voltado para o amor
romântico e o casamento, uma especialista da realidade amorosa. Com a obtenção de maiores
direitos para as mulheres a partir do século XX, temos agora ambos os gêneros colocados na
situação de manter a relação por meios que agora restringem o que antes era a irrestrita
liberdade do homem, assim como possibilita à mulher uma tomada de decisão que não havia
antes, nivelando o peso que os relacionamento colocavam na mulher como responsável pelo
lar e da intimidade. Nesse contexto, Giddens aponta para a diferença entre amor romântico e
amor confluente, considerando que o amor romântico vem sendo “equilibrado” devido aos
papéis de gênero impostos sobre as mulheres.

Em contraste com o amor confluente, o amor romântico tem sido sempre


equilibrado em relação a gênero, com resultados de influências já discutidas. O
amor romântico há muito tempo tem mostrado uma qualidade igualitária,
intrínseca à ideia de que um relacionamento pode derivar muito mais do
envolvimento emocional de duas pessoas do que de critérios sociais eternos. De
facto , no entanto, o amor romântico é completamente desvinculado do poder.
Muito frequentemente, os sonhos de amor romântico das mulheres tem
conduzido a uma severa sujeição doméstica. O amor confluente presume
igualdade na doação e no recebimento emocionais, quanto mais for assim,
qualquer laço amoroso aproxima-se muito mais do protótipo do relacionamento
puro. (GIDDENS, 1993, p. 72-73).

A partir de Giddens, creio que o desenvolvimento de uma noção sobre relações


amorosas, relaciona-se a questões de poder que vem muito antes da consolidação do
capitalismo. Giddens aponta como os relacionamentos estão ligados a papéis femininos e
masculinos, havendo só agora na modernidade a opção de se pensar no amor como algo
igualitário, que parte da individualidade de um com o outro, no estabelecimento de uma
partilha de realidade, ao invés da relação conflitante entre dois posicionamentos
completamente distintos, que é o ambiente do lar, e o ideal do amor romântico, e a rua, onde
os homens se orgulham das conquistas sexuais, muitas vezes confundidas com a idéia de
amor. Como essas relações se desenvolveram desde a tomada de consciências das mulheres
sobre o direito aos espaços públicos, é uma discussão extensa, mas podemos concluir que o
fenômeno da modernidade líquida em muito coincide com essa tomada de consciência do
indivíduo como ser independente de seu meio.

3.3 Efeitos da lógica do consumo nas relações amorosas

Por mais que as relações sociais estejam se fragmentando e tornando-se cada vez mais
superficiais e momentâneas, a relação humana vem sofrendo uma série de mudanças
estruturais. Bauman conclui que estamos nos relacionando superficialmente e a ausência de
relacionamentos humanos nos tira a própria perspectiva de poder refletir quem somos. Por
meio de redes sociais, como Facebook, Twitter e Instagram, é possível constatar um
enfraquecimento dos vínculos humanos pela superficialidade das relações, assim como o
desgaste emocional e psicológico que essas pessoas exercem de forma tão espontânea e aberta
nas redes sociais.

A partir da dissertação Amores possíveis: as mulheres e os relacionamentos íntimos na


contemporaneidade, Camila Pimentel L. De Melo (2007) faz uma análise sobre as mudanças
da intimidade na contemporaneidade sobre a ótica feminina, e observa como a crise identitária
moderna — em um ambiente pós-tradicional — está modificando nossas relações, e
enfraquecendo as tradições na mesma medida que as identidades, utilizando Stuart Hall
(2003) para tratar da questão identitária:

O descentramento do sujeito e a crise na identidade como conseqüências de um


ambiente pós-tradicional, como o da modernidade, foram temas trabalhados por
diversos autores. Stuart Hall, por exemplo, afirma que a noção de sujeito se
transformou de forma radical dentro da modernidade tardia. Para Hall, a idéia
de indivíduo constituído a partir do pensamento iluminista, como sendo
possuidor de uma identidade fixa e centrada, sofre mudanças radicais, levando à
formação de um sujeito fragmentado, com uma identidade aberta e
constantemente inacabada. Isso se dá devido ao caráter de constante mudança
que as sociedades modernas possuem (HALL, 2003, apud, MELO, 2007, p. 35)
Melo aponta de forma clara como a expectativa por uma nova mercadoria, da forma
como o mercado se estabelece — pela substituição de um produto por outro dentro de um
curto espaço de tempo, está sendo transmitida para as dinâmicas amorosas na expectativa de
que o que se tem não vai ser como o esperado, que pode surgir a qualquer momento. No
entanto, é algo que vive apenas nas mentes de quem aguarda a mais nova mercadoria, a mais
nova relação amorosa ideal. A irracionalidade do amor, aliada à lógica do mercado e
consumo, faz com que cada nova relação tenha uma expectativa que supere a importância do
laço anterior, da mesma forma que trocamos de celular de ano em ano.

A ânsia de que o relacionamento subseqüente seja melhor que o anterior leva a


uma constante não-realização do que se está vivendo no momento. A
expectativa do próximo relacionamento eclipsa a vivência do atual, e as pessoas
se transformam em caçadores de amores cada vez mais perfeitos. No entanto,
essa perfeição não se realiza, pois cada experiência é vista apenas como
episódica e desencaixada diante da própria fragilidade dos relacionamentos.
Neste sentido, Bauman acredita que essa busca pode levar, de forma
contraditória, a uma incapacidade de amar. (MELO, 2007, p. 38-39).

É importante constatar o quanto a indústria cultural age na disseminação de


construções que se relacionam com um imaginário de amor romântico, datado pelo
estabelecimento do papel da mulher como observado em Giddens na seção anterior.
O amor ao longo da história, até hoje, é tratado como a razão do viver, mas amar não é
agregar a determinada pessoa essa importância, e sim reconhecer o início e o fim nas
constantes mudanças da vida, uma dificuldade herdada dos iluminista que reverbera hoje na
ideia que temos sobre o amor. Citando Jurandir Freire (1998), Pimentel aponta a dificuldade
em dissociar a relação posta entre sensação e como a indústria cultural está moldando o nosso
ideal moderno do amor, como produto de consumo, descomplicado e de clareza perfeita,
capaz de remeter ligeiramente obras como Romeu e Julieta.

Essa nova concepção – do indivíduo descentralizado – trouxe conseqüências


para as idéias a respeito do amor moderno. Devido ao uso descontextualizado
que a indústria cultural faz do ideal romântico, ele passou a ser visto como um
produto para se consumir. Para Jurandir Freire, o ideal de amor que é vendido
pelos meios de comunicação de massa entra em franco conflito com os
significados “ originais ” que tal ideal possuía. Segundo este autor, estamos
consumindo um ideal amoroso pertencente à era dos sentimentos, porém
vivemos na era das sensações, onde experimentar é a palavra de ordem. Diante
disso, ele afirma que “vivemos numa moral dupla: de um lado, a sedução das
sensações; de outro, a saudade dos sentimentos. Queremos um amor imortal e
com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua moderna
vicissitude” (FREIRE, 1998: 21, apud PIMENTEL, 2007, p. 35-36, grifo da
autora).

É possível observar na fala de Freire a facilidade com que a indústria cultural promove
sensações mais que suficientes para saciar o consumidor. Cada vez mais observamos novelas
e filmes que simplificam a realidade em histórias clássicas com finais garantidos e suspenses
toleráveis. Por meio da narrativa clássica do amor romântico, a indústria cultural perpetua
papeis de gênero, assim como assegura ao consumidor que aquilo visto na tela do cinema,
antes dos créditos, provavelmente será o beijo que simboliza a eternidade para o casal,
finalmente premiados com a felicidade depois de previsíveis desafios, em uma ficção marcada
por um início e fim reconfortantes para o espectador e, assim, podemos esperar de toda
indústria cultural, o conforto e certeza do final feliz, para consequentemente prosseguir a
ilusão como consumidores fiéis daquele conforto momentâneo, eternizado pela infinitas
entradas no cinema ou revistas assinadas.

Em Folheando o amor contemporâneo nas revistas femininas e masculinas , Babo e


Jablonski (2002) analisam como a indústria cultural tem papel determinante na constituição
dos papéis de gênero, assim como na construção do ideal amoroso. Os autores estabelecem
inicialmente a importância que o amor possui, historicamente, como parte da vida constitutiva
da felicidade, citando Lázaro (1996) para constatar a importância histórica do amor, e
consequentemente, o interesse da indústria cultural nesse valor. Afirmam que:

O amor torna-se o tema central da felicidade moderna e, por isso, é presença


obrigatória nas produções da indústria da cultura. (...) Quer estejamos na pré-
história, quer na Roma Antiga, em qualquer tempo, não há história ou trama que
não se desenrole através da procura e do encontro da paixão amorosa (Lázaro,
1996: 215 apud BABO e JABLONSKI, 2002, p. 39).
.

Ainda na pesquisa de Babo e Jablonski, podemos observar como as ideias tratadas em


Giddens se perpetuam nas revistas de público alvo jovem, na perpetuação de papéis
tipicamente masculinos ou femininos. Quando relacionado ao mundo masculino, as revistas
tendem a incentivar a independência e a liberdade diante dos comprometimentos, valorizando
os relacionamentos casuais, enquanto as revistas voltadas para o público feminino
estabelecem a busca pelo vínculo duradouro como mais positiva.

Em artigos de relacionamento, na Yes, o sexo só é abordado esporadicamente,


em geral em resposta a dúvidas das leitoras; na Webber, quando se discutem
relacionamentos, o sexo é o tema principal. Quando o assunto é o mesmo, no
entanto, percebe-se um conteúdo específico de gênero, muitas vezes com
valores opostos: a menina buscando um relacionamento duradouro, o rapaz
evitando-o a todo custo. (...) Em relação à linguagem, o autor conclui que
revistas para garotas usam palavras mais emocionais, enquanto que o
vocabulário era mais objetivo na revista dirigida para rapazes. Algumas
diferenças se manifestam também no uso da pontuação: textos para meninas são
menos diretos e afirmativos, com maior utilização de reticências, exclamações e
interrogações. (BABO e JABLONSKI, 2002, p. 40)

Na modernidade líquida, podemos observar que o consumo é a dinâmica social por


excelência, estabelecendo padrões insaciáveis de busca pela felicidade que com freqüência
levam os indivíduos a uma vida repleta de desejos nunca alcançados. Foi possível observar no
referencial teórico o que constitui os relacionamentos amorosos entre jovens, assim como os
efeitos do capitalismo nestes — representado pela indústria cultural — que estão aprendendo
seus papéis de gênero e o interesse na perpetuação desses papéis, na sujeição ou não da
mulher a condição de passividade, assim como a do homem de protagonista da vida pública.
Em seguida, parto para a análise dos dados das entrevistas feitas entre os jovens
universitários, as dificuldades em se manterem como estudantes no meio acadêmico, assim
como a pressão exercida pelos familiares, e os papéis de gênero atribuídos.

4. Análise dos dados


No capítulo da análise dos dados, apresento as entrevista realizadas, relacionando com
os autores utilizados no referencial teórico, e dividido em duas seções, a primeira entrevista
trabalhando a entrevista com Marina e Thiago, observando como eles trabalham o
relacionamento amoroso com a chegada de um bebê, e a constituição de uma família, e em
seguida, Jamily e Vinícius, apresentando como o relacionamento deles é baseado em uma
amor tradicional e descontraído, trabalhando as relações familiares, assim como o advento
tecnológico em relação a modernidade líquida.

4.1. Marina e Thiago

A primeira entrevista foi realizada na casa dos entrevistados devido a gestação


avançada de Marina, e a possibilidade do bebê nascer a qualquer momento. A entrevista
ocorreu entre às 16h00 e 17h00, no bairro da Várzea, região de Brasilit, onde fui recebido
pelo casal e tive a liberdade de gravar a conversa.
Thiago nasceu em Goiana, tem 31 anos, e é um dos dois filhos de um casal onde o
marido trabalhou a vida inteira sustentando a família e a mãe se dedicou a vida inteira à
cuidar da família e do lar. Thiago sempre foi considerado o filho inteligente da família, tirava
notas boas no colégio, mas não saiu do colégio direto para uma universidade, devido a falta de
condições e perspectiva de investir na própria educação, passando boa parte da vida
vivenciando experiências relacionadas ao ambiente cultural da zona da mata, onde o cavalo
marinho e a cultura popular, de forma geral, foram fundamentais em sua formação, sendo, na
opinião dele, esses eventos culturais as saídas que a cidade proporcionava, ainda considerando
que Goiana é uma cidade rica em cultura popular e fortemente histórica. Com o tempo,
Thiago passou a ver seus amigos trabalhando com produção cultural, logo grande parte da
vida dele foi participando de trabalhos informais, onde ele era chamado para escrever
documentos que possibilitasse investimento público em eventos culturais, assim como
trabalhando com festivais de cinema e música, como roadie . Ele, considerando a idade, já
teve outros relacionamentos, além do atual, e há muito tempo saiu da casa dos pais, assim que
conseguiu dinheiro com os trabalhos relacionados com cultura, da mesma forma que também
já morou com outras parceiras.
Thiago ingressou no curso de ciências sociais em 2013, e finalizou o curso agora em
2017, ingressando no mestrado em antropologia, que sempre foi seu grande objetivo ao entrar
na universidade. Vindo de uma família de baixa renda, ao entrar na universidade, ele,
imediatamente, buscou os auxílios financeiros que a universidade dispunha, vivendo disso até
o seu último dia, participando de projetos de pesquisa para manter o aluguel com amigos e
uma vida minimamente confortável. Atualmente, seus pais ainda estão casados, sua irmã teve
a possibilidade dos pais pagarem um curso universitário na zona da mata, e, agora, ele espera
pela chegada de sua filha, Iolanda, junto com sua companheira, e parceira na vida de casal
gestante, Marina.
Marina tem 22 anos, nasceu em Recife, e vem de um casal de pais divorciado, onde
ela é a segunda filha, tendo uma irmã mais velha, e um irmão mais novo. Marina é
consideravelmente mais nova que Thiago, e nunca saiu da casa dos pais, passando sua vida
inteira transitando entre a casa da mãe e a do pai, por serem um casal de baixa renda
desestruturado, pouco presentes e difíceis de se relacionar. Ao ingressar na universidade no
primeiro semestre de 2013, ela optou pelo curso de biologia, no entanto, insatisfeita com a
escolha, decidiu em 2014 fazer a transferência interna para ciências sociais, curso que ainda
está em andamento. Marina teve poucos parceiros na vida, nunca teve a oportunidade de sair
de casa para viver com outra pessoa, e, dificilmente, pode-se dizer que ela tem a experiência
de vida como Thiago, o primeiro parceiro com quem ela morou na vida. Fazem dez meses que
Thiago e Marina descobriram sobre a gravidez, e agora ambos estão se esforçando para dispor
de condições para que a filha, Iolanda, tenha uma lar e uma família que alcancem as
expectativas do casal, carregados e experiências particulares que motivam ao cuidado e
exercício da vida familiar.
A casa onde ocorreu a entrevista possui uma estrutura de dois andares, cada andar
configurando um apartamento independente. Thiago havia se mudado com o colega de quarto
para o andar de cima, mas no decorrer do seu relacionamento com Marina, o casal resolveu se
mudar para o andar de baixo pela privacidade. Seu colega continuou por alguns meses
morando no andar de cima, mas teve que se mudar e, com isso, a vaga do andar de cima
acabou ocupada pela mãe de Marina, junto com o companheiro e o irmão de Marina, para
melhor auxiliar nas necessidades básicas da filha durante a gestação.
Recebido em um antigo sofá, já convidado para o jantar, agradecendo um copo de
água, a casa reflete o esforço de um casal de solteiros que desejam tornar o apartamento um
lar: pouca mobília, alguns livros, um sistema de som, e Thiago reafirmando a importância em
manter sua antiga guitarra, por considerar fundamental haver instrumentos na casa como
forma de educação para sua futura filha. Marina tira as roupas estendidas na varanda
gradeada, e dentro da cozinha Thiago prepara o macarrão do almoço às 16h00 da tarde. Eles
não tiveram tempo para almoçar, pois passaram o dia no hospital público esperando
atendimento para a consulta de Marina. Como um casal que possui planos, conflitos e
costumes próprios, a gravidez tomou lugar de todas as prioridades, além das dificuldades
financeiras, já que dois estudantes universitários com muito esforço conseguem se sustentar.

Quanto a forma como esse casal observa a relação amorosa, e o relacionamento que
eles tem tornado mais complexo devido a questão da gestação, Camila Pimentel (2007), em
sua análise sobre as relações amorosas na ótica feminina, aborda o namoro como uma relação
constante de manejo dos desejos do próximo com os próprios, onde se abrem mão de
determinadas coisas, para em uma relação de troca, se obterem outras, em uma constante
negociação dos fatos e eventos do projeto conjugal de um pelo outro.

É no namoro que um projeto em comum começa a se delinear, e mesmo com


uma clara valorização dos desejos e realizações individuais, próprios da
contemporaneidade, a relação amorosa traz uma situação de constante
negociação dos projetos e vontades subjetivas. Devido à existência de um
compromisso íntimo, as entrevistadas afirmam que as pessoas têm que estar
dispostas a viver certas situações conflituosas, de abrir mão de determinadas
coisas pelo outro. Isso não significa, de forma alguma, uma anulação da
personalidade individual, e sim um reconhecimento de que é preciso, também,
saber olhar o outro. (MELO, 2007, p. 95)

Essa afirmação possui total relação com a forma como Thiago e Marina entendem, no
contexto o qual eles estão vivenciando, a relação amorosa pela qual eles se esforçam. O amor,
no que consiste a vida dos entrevistados em suas falas, está relacionado com os esforços que
um faz pelo outro, dentro de um contexto em que fica claro que eles não tinham nada a
perder, e isso não é o mesmo que dizer que eles não tenham sua individualidade, seus desejos
e seus objetivos, mas que a situação pessoal a qual os dois vivenciam, de subsistência
financeira no ambiente universitário e complicações familiares, tornou a ideia de morarem
juntos a melhor na atual condição dos dois, mesmo em um curto espaço de tempo de
relacionamento amoroso — eles começaram a morar juntos meses após se conhecerem — foi
para eles, a melhor solução. No caso de Thiago e Marina, eles estavam dispostos a construir
algo juntos, viver situações conflituosas, e estiveram dispostos a abrir mão de muitas coisas
com a gestação de Iolanda.
É a primeira vez que Marina mora junto com um namorado, enquanto Thiago já
possui experiências semelhantes de se mudar com colegas e namoradas. O casal passou
poucos meses juntos antes de descobrirem sobre a gravidez, não havendo muito tempo para
pensar em resolver possíveis problemas do relacionamento ou trabalhar a convivência do lar,
sendo o lazer a primeira coisa que mudou com a descoberta da gravidez.

A gente enquanto casal vai ser algo que a gente vai aprender sabe, vai ser uma
construção, eu já me vi varias vezes frustrada pensando assim, ‘meu deus o que
eu vou fazer’, mas assim, na hora, na convivência, eu vou aprender também, ele
vai aprender, a gente tá agora, a gente se preparou pra ideia que a gente vai ser
pai, eu vou ser mãe, e agora a gente vai ter que se preparar depois, aprender a
cuidar da criança, saber o que fazer tá ligado, por que é muito doido pensar, meu
deus, eu vou ter um bebê! e a rotina já foi totalmente modificada desde o
começo da relação. E agora vai vir uma surpresa sabe, por que é algo
desconhecido pra mim. (Marina)

Com a gestação, Marina teve que mudar muitos hábitos pela saúde do bebê, como
parar de fumar, parar de beber, melhorar a alimentação, as consultas frequentes ao médico,
etc. e, consequentemente, Thiago a acompanha nas tarefas do cotidiano o máximo que pode,
saindo sozinho apenas para resolver problemas na universidade. Antes de Iolanda, Thiago e
Marina contam como o lazer em conjunto era muito focado nas saídas com os amigos e
conhecidos da universidade, saídas em bares ou shows que aconteciam com uma
espontaneidade substituída pela atenção aos horários, e o barrigão , como diz Marina. Com o
bebê tão próximo, aos 8 meses de gestação, Thiago rapidamente assume que o lazer, privado
nas dificuldades financeiras e logísticas da gravidez, transformou-se em uma rotina do lar, por
enquanto, de “comer e assistir ao Netflix”:

Se tratando de um casal gestante, que vai ter um filho principalmente, a nossa


relação tem se dado muito mais do que antes na órbita do lar, e dessas
atribuições que a gente tem com a universidade, e cuidar das coisas, tipo, se a
gente pelo menos, da maneira que eu penso, se a gente fosse analisar a relação
antes de Marina engravidar vamos dizer, tipo, que estaria dividido muito mais
no espaço da universidade, que é onde a gente tava, os grupos de amigos da
universidade, os programas que inclusive são muito relacionados às pessoas que
a gente se relaciona da universidade, mas também muito nosso íntimo, que se
resumi muito a essa história de ficar comendo, assistindo um filme em casa.
(Thiago)

Na fala de Thiago, a ideia de órbita do lar, é muito direcionada para a noção de


preparo para vida familiar. Estar em casa devido a gestação de Marina não é apenas um
cuidado biológico com o bebê, mas um exercício para a dinâmica das responsabilidades que a
criança vai demandar. A gravidez aponta um caminho sem retorno para relação deles, onde a
espontaneidade das saídas dá lugar a preocupação com o lar, e a importância da manutenção
da família se torna uma prioridade que simplifica a importância de estarem juntos, já que eles
sempre estarão como pais de Iolanda, no entanto, caso eles fossem um casal sem filhos, os
problemas da relação seriam muito mais contemplados do que são com o bebê, que acaba de
se tornar a prioridade.
Essa visão de um relacionamento amoroso, sem a demanda que o bebê representa,
dialoga muito com o que Zygmunt Bauman (2004) afirma sobre a fragilidade dos laços
afetivos e das dificuldades de se relacionar com outra pessoa pelo amor. Para o autor,
relacionamentos amorosos são construídos sobre a ideia de desejo e amor, no qual o desejo
representa o fervor do sentimento momentâneo que não pensa no que possa vir depois e se
desconstrói ao final dessa experiência momentânea. O amor, por outro lado, representa o
cuidado e vontade de preservar o que se constrói, nesse caso, a complexidade da relação
amorosa dá lugar a certeza da união pela criança. Do desejo e amor que Thiago e Marina
possuem, surge a filha Iolanda, que praticamente materializa a ideia que Bauman tanto fala
sobre a preservação do relacionamento, resultado da importância da responsabilidade, respeito
e amor que um tem pelo outro.

O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado.


Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeta desejo. Um impulso de
expandir-se, ir além, alcançar o que ‘esta lá fora’. Ingerir, absorver e assimilar o
sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir
para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o
eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande
doando-se ao objeto amado . Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da
alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar;
e também à caricia, ao afago e ao mimo, ou a — ciumentamente — guardar,
cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição,
guardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a
responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultado em
exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder — nenhum dos dois
sobreviveria à separação. (BAUMAN, 2004, p. 24).

Por um momento Thiago sai da sala para escorrer o macarrão que preparam e eu fico
sozinho com Marina e ela se esforça para responder um pouco mais sobre o impacto do bebê
no relacionamento deles e no futuro que eles tem, tanto individual quanto como casal. Falar
sobre o futuro para um casal “gestante”, como Thiago mesmo coloca. Sobre o futuro do
relacionamento romântico dos dois, Thiago e Marina são categóricos quanto a importância de
estarem unidos sempre, em todas as circunstâncias, afirmando que relacionamentos são muito
diferentes quando se tem uma criança no meio. Para o casal, o bebê assume todas as
importantes características que Bauman coloca acerca do amor, como a própria materialização
do cuidar e preservar abstrato do ideário de relacionamento. Marina fala um pouco da
insegurança que sente em falhar, pelo fato de tudo ser tão desconhecido, mas, ao mesmo
tempo, se assegura ao fato de que Thiago estará presente, eles vão descobrir como superar as
dificuldades juntos e o motivo deles terem engravidado tão cedo na relação faz tudo parecer
muito repentino.
Nesse caso, podemos relacionar com a obra de Anthony Giddens (1993) a fala do
casal. Ao reconhecer que não vale a pena estarem juntos e infelizes ao mesmo tempo. Mesmo
com a filha para nascer, Thiago e Marina abordam uma visão que coincide tanto em Giddens
quanto em Bauman sobre a fragilidade dos laços, que em Giddens, surge mais como uma
tomada de consciência para um contexto muito objetivo da vida moderna: evitar o sofrimento
individual. Tanto Thiago quanto Marina entram em acordo sobre evitar com que a
possibilidade de uma relacionamento infeliz se mantenha na forma de uma mentira, no
entanto, a intenção do casal é estar juntos pela filha a longo prazo, sendo o término
estritamente relacionado a um contexto de infelicidade, ou falha na comunicação, que se torne
insustentável.

(...) um relacionamento nos dias de hoje não é, como foi um dia o casamento,
uma condição natural cuja durabilidade pode ser assumida como certa, exceto
em algumas circunstâncias extremas. Uma característica do relacionamento
puro é que ele pode ser terminado, mais ou menos à vontade, por qualquer um
dos parceiros em qualquer momento particular. Para que um relacionamento
tenha a probabilidade de durar, é necessário o compromisso; mas qualquer um
que se comprometa sem reservas arrisca-se a sofrer muito no futuro, no caso do
relacionamento vir a se dissolver. (GIDDENS, 1993, p. 152).

A diferença de idade é óbvia no que diz respeito às vivências de ambos. Thiago com
31 anos possui experiências que lhe dão muito mais segurança em morar com uma namorada,
levantando um termo muito citado nas entrevistas, “casar”. Thiago já morou com diferentes
pessoas em uma casa (já foi casado), enquanto Marina não teve a mesma experiência. Com
22 anos, Marina teve poucos namorados, nunca morou fora da casa dos pais e, só
recentemente, estava aprendendo o que é morar com um parceiro. Nesse interim, Iolanda foi
uma surpresa para ela que mudou toda a sua realidade. A pouco mais de um ano e meio
Marina morava com os pais, solteira, cursando o ensino superior. Agora, está para se tornar
uma mãe, ter uma família e partilhar uma vida com Thiago.
A situação a qual Marina se encontra, mesmo que não sendo ideal, pois se trata da
busca incessante por manter o meio de sustento da casa, enquanto ela poderia estar investindo
o tempo em se cuidar para a chegada do bebê, observamos que ela consegue manter suas
atividades, dentro de uma normalidade. O sustento não é estritamente vindo de Thiago, sendo
o aluguel e as despesas da casa divididos de forma mais ou menos igual. Marina vive uma
situação que mulheres confrontam historicamente há séculos, onde o pertencimento da esfera
do lar, assim como a constituição de um ideal romântico, e o controle da reprodução sexual,
foram todos transformados, como aponta Giddens, pela revolução sexual do século XX, assim
como a maior valorização da mulher em seu papel de mãe, a detentora de uma importante
parte da psicologia humana, da afeição materna . Marina leva sua vida com perdas mais
graves que as de Thiago, considerando a gestação, mas ela exerce, mesmo que, com
dificuldade seus objetivos e não vê a maternidade como algo que possa impedi-la de terminar
o curso ou de alcançar seus objetivos.

O domínio direto do homem sobre a família, que na realidade era abrangente


quando ele ainda era o centro do sistema de produção, ficou enfraquecido com a
separação entre o lar e o local de trabalho. (...) O controle das mulheres sobre a
criação dos filhos aumentou à medida que as famílias ficavam menores, e as
crianças passaram a ser identificadas como vulneráveis e necessitando de um
treinamento emocional a longo prazo. Como declarou Mary Ryan, o centro da
família deslocou-se ‘da autoridade patriarcal para a afeição maternal’.
(GIDDENS, 1993, p. 53).

Foi observado no caso de Marina que não houve um domínio patriarcal em relação a
ela, permanecendo sua individualidade, assim como independência, bem estabelecida em
relação a Thiago.
Por fim, acho importante observar que as relações familiares desses casais apontam
para uma mudança fundamental de parentesco, no que diz respeito a constituição de uma
família, que é o agregar a família um do outro. Da mesma forma que Thiago e Marina serão
para sempre pai e mãe de Iolanda, a família extensa de cada um está unida pelo laço
indissolúvel do parentesco, agora colocando eternamente Marina para a família de Thiago
como a mãe de sua filha, e Thiago como pai. Bauman aponta a importância, ao mesmo tempo
que desgaste, da importância do parentesco na modernidade líquida, sendo esse um sinal
observado também na família de Thiago.
A afinidade é uma ponte que conduz ao abrigo seguro do parentesco. Viver
juntos não representa essa ponte nem o trabalho de construí-la. O convívio do
viver juntos e a proximidade consanguínea são dois universos diferentes, com
espaço-tempos distintos, cada qual um universo completo, com suas leis e
lógicas próprias. (...) O fato de a afinidade ortodoxa estar fora de moda e fora de
forma não pode ser rebatido à custa do parentesco. Carecendo de pontos
estáveis para suportar o tráfego crescente, as redes de parentesco se sentem
frágeis e ameaçadas. Suas fronteiras se tornam embaçadas e contestadas, e as
redes se dissolvem num terreno sem títulos de posse nem propriedade
hereditária — uma terra de fronteiras. (BAUMAN, 2004, p.47)

Thiago possui uma família que Marina vê de forma muito positiva, como um grupo de
pessoas que se juntam para conversar sobre política, almoçam juntos e são abertos às mais
diversas discussões que ela julga serem positivas, na percepção dela, como pessoas
progressivas. Thiago reconhece a tolerância dos pais, assim como a compreensão da
importância de serem estabelecidos vínculos familiares duradouros, havendo os encontros e
rituais que sustentam a relação familiar, agora mais importante do que nunca com a chegada
de Iolanda.

Thiago aponta como seus pais tem sido cada vez mais tolerantes desde seu primeiro
relacionamento, em como eles não ligam tanto para eventos familiares, ou a presença de
Thiago nestes, mas, ao mesmo tempo que, ele vê a importância de sua presença e respeita o
acolhimento caloroso, mesmo sabendo do valor que eles atribuem aos rituais e eventos
familiares. Já Marina se encontra em outro contexto, onde ela aborda o pai como alguém que
“não dá a mínima”, e na mãe vê um apoio muito mais circunstancial do que materno.

4.2 Jamily e Vinicius

A segunda entrevista foi realizada com Vinicius e Jamily, entre às 14h00 e 16h00 na
casa deles, localizada no bairro da Várzea. Para chegar lá encontrei Vinicius na UFPE e fomos
direto para o portão mais distante, próximo ao departamento de engenharia, apenas para andar
mais quinze minutos por um beco que daria em um grande terreno alugado, onde ele e Jamily
moram em uma das duas casas cercadas pelo portão que Vinicius abre com chave pelo
cadeado. Ao lado, o vizinho, amigo próximo deles, treina escalas no trompete com um
professor.
Vinicius nasceu em Recife e tem 22 anos. Vem de uma família grande, a qual os pais
estão casados, e já se mudou de casa algumas vezes com amigos, mas essa é a primeira vez
que ele sai para morar com uma namorada. Vinícius ingressou no curso de ciências sociais da
UFPE em 2014, mas enquanto isso já estava realizando um curso técnico de química com
planos para entrar no mercado de trabalho técnico, caso a vida acadêmica não fosse
satisfatória. Vinícius continua cursando ciências sociais, preocupado com o futuro financeiro,
mas conseguindo se manter dividindo moradia com Jamily.

Jamily nasceu em Serra Talhada, tem 23 anos e faz o curso de artes plásticas na UFPE.
Ela tinha uma casa onde dividia com diversas pessoas, já que era uma com muitos quartos
onde todos compartilhavam as despesas, e contando, também, com o dinheiro das festas que
eram feitas na casa para o público, como oportunidade de vender bebida para fazer um
dinheiro extra. Em uma dessas festas, Vinicius e Jamily se conheceram, passaram um tempo
namorando, para finalmente morarem juntos, já que Jamily não tem condições de arcar com
uma casa sozinha, Vinicius e ela decidiram dividir as despesas vivendo juntos.
Vinícius e Jamily vivem os impulsos e desejos, atestando como o tempo livre deles se
configura em sair para “beber e fumar” com os amigos. Em pouco mais de um ano e dois
meses eles se conheceram, em uma das festas promovidas por Jamily e seus amigos. Vinicius
por indicação de um amigo foi, e ao chegar lá conheceu Jamily, que segundo ela, já estavam
“grudados” poucos dias depois, já fazendo viagens de fim de semana para a praia e
convivendo quase que diariamente desde o primeiro dia.
Vinicius e Jamily são um casal que melhor poderia encarnar a boêmia do mundo
universitário. A parte das responsabilidades com a faculdade, Vinicius coloca que muito do
tempo livre deles é passado com os amigos em comum, no entanto, afirma, da mesma forma
que Thiago e Marina sobre a órbita do lar, sendo raro deles sairem de casa para bares ou festas
pagas. Como muitos jovens universitários que vivem de auxílio estudantil, o casal se esforça
para pagar as contas ao mesmo tempo que se acomoda com uma rotina partilhada por uma
boa parte da comunidade da Várzea. A várzea, por ser um bairro universitário, possui uma
auto-suficiência de uma quantidade grande de jovens estudantes que se entretém com o que o
bairro proporciona. A esfera de relações de Vinicius e Jamily gira em torno da comunidade
formada por esses jovens, que estão sempre a uma caminhada de distância das amizades,
proporcionando, como Vinicius coloca, que eles recebam pessoas para beber e se divertir em
sua casa, por conta do preço e da comodidade para todos.

A gente já conversou, a gente conversa em determinados momentos, assim, mas


o futuro é uma coisa tão, tão longe assim, que a gente pensa mais próximo, a
gente projeta seis meses, pensa assim, vamos fazer isso aqui outro ano, e vez ou
outra a gente comenta, vamos morar daqui a dez anos em tal lugar, vamos ter
daqui a 10 anos um filho, cachorro, seis á, morar longe daqui, morar longe da
cidade, desse caos. (Vinícius)

Ao esclarecerem suas intenções para o futuro, mesmo idealizando os próximos seis


meses, Vinícius revela as intenções a longo prazo que eles projetam. Nesse sentido, é possível
observar que, o medo do vínculo não é maior do que a idealização de uma vida familiar
tradicional. Vinícius narra os clichês de quem idealiza ter uma paz e sossego com um filho,
um cachorro, e uma casa longe da cidade, e em momento algum demonstra uma exaustão em
estar particularmente com Jamily, ou na ideia de ter um envolvimento sério, mas idealiza com
ela a linha de chegada do relacionamento deles com uma visão otimista.

Diferente do que Bauman aborda sobre os laços afetivos, Vinícius e Jamily aparentam
entender a relação amorosa deles na necessidade mútua por afeto, assim como a reciprocidade
dos interesse e desejos que eles possuem. Na fala de Vinícius, eles conversam sobre daqui a
dez anos fazer algo, ou seja, eles se planejam sem o terror constante o qual Bauman com tanta
freqüência explicita. Parece que a instabilidade do mundo não alcançou determinados pontos
do globo, inclusive aparentando que o casal vive em um ponto onde a aceleração, e a
instabilidade do mundo líquido não alcançaram, e eles demonstram a intenção de irem morar
longe da cidade, desse caos.

É exatamente porque se vive num mundo líquido e instável, que os laços de


confiança e segurança são importantes. Para que se possa seguir adiante, é
importante que se tenha em quem se apoiar, principalmente nos momentos
difíceis. Por outro lado, a exigência de uma velocidade cada vez maior consome
o tempo que se tinha para se construir e fortalecer os laços de intimidade. Como
diria Bauman (2007: p.142): “não se pode ficar com a torta e comê-la”.
(ZAMBONI, p. 187-188)

Quando Vinicius foi visitar a família de Jamily em Serra Talhada, nas ruas, para os
amigos e conhecidos de Jamily, Vinicius foi apresentado como o “marido”, trazendo um ponto
interessante de se pensar a mudança da tradição, assim como a flexibilidade do casal em
manter uma tranquilidade nas dinâmicas com a família. Vinicius e Jamily de forma alguma
tem intenção de casar, seja pelo irrelevante vínculo jurídico que proporcionaria às suas vidas,
mas, principalmente, pelo peso simbólico do casamento para relação deles. O fato deles
morarem juntos implica que o relacionamento seja algo sério e a seriedade é reconhecida
nessa condição de reconhecimento para os familiares como marido, no caso de Vinícius, na
interação de demonstrar respeito a família de Jamily, mas não significa de forma alguma que
qualquer um dos dois não possa do dia para a noite findar o relacionamento ou que os
familiares possam se surpreender com isso.
Mesmo em um ambiente tradicionalista, como uma pequena cidade no interior, as
coisas não são mais como antigamente, é difícil de acreditar que as pessoas que ouviam de
Jamily que aquele era seu marido, realmente tenham contemplado uma cerimônia entre eles.
Mesmo sendo dois jovens com forte personalidade, eles se esforçam para manter as
aparências, em troca do respeito e aceitação por parte da família de Jamily, em um movimento
duplo de respeito da cidade natal com seu parceiro.

Na cabeça da gente e de amigos também, que tem proximidade, soa como morar
junto, dividir as coisas (...) no interior, quando eu cheguei pra conhecer a família
dela no interior, eu era o marido dela, a galera me apresentava como o marido
dela, “olha o marido de Jamily, veio lá de recife!” (Vinícius)

Com a família de Vinícius, as coisas são diferentes. A família de Jamily, como ela
mesma coloca, termina na avó. Ela reconhece o pai como um ausente e valoriza muito a mãe
e a avó, pois não tem irmãos ou primos. A família de Vinícius é o oposto, havendo muitos
primos, primas, irmãos, tios e tias, com isso, além do tamanho da família, a pressão familiar
não se concentra nas expectativas de um relacionamento firmado, mas no comprometimento
de Vinícius com sua independência financeira. Vinicius admite que sua família agride nas
pequenas falas sua opção profissional como sociólogo, desacreditando no seu êxito
profissional, devido a demora para se formar e por puro preconceito pela ideia de ser um
intelectual como profissão. A família cobra muito do projeto de vida de Vinicius, mas
desconsidera as cerimônias de relacionamento, reconhecendo que jovens possuem essa
rotatividade de relações e que o comprometimento não é tão fundamental quanto a
independência individual que a família de Vinicius deseja para ele.
Quando questionados sobre o uso de recursos tecnológicos para se encontrar parceiros
românticos (ou sexuais), os famosos aplicativos de relacionamento, como Tinder, há muito
tempo tomaram lugar dos sites de relacionamento. A evolução desses sites de relacionamento
para aplicativos de celular, uma coisa clara é a impessoalidade construída pelas empresas que
produzem esses aplicativos. Antigamente era necessário um cadastro que constituísse diversos
pontos significativos para demonstrar a personalidade do usuário às pessoas que visitariam
sua página online , ainda assim acusados, na época, como superficiais, mesmo com longas
fichas biográficas, ou as formalidades no desenvolvimento de um perfil e a clara intenção de
um romance, não uma noite de sexo. Agora, com o Tinder, e outros aplicativos celulares
similares, a dinâmica se resume em passar para direita ou esquerda fotos de possíveis
parceiros, baseado na distância geográfica dos mesmos. Para direita você rejeita alguém, para
a esquerda você aceita, e aguarda a possibilidade de ser aceito, para assim realizar algum
contato com essa pessoa. Vinicius diz ter utilizado mais que Jamily, ela que encontrou
dificuldade em utilizar o aplicativo no celular brinca com Vinicius sobre o uso que ele fez
desse aplicativo durante a vida, enquanto ele aponta uma visão muito mais amarga sobre esse
tipo de encontro, afirmando haver momentos em que você encontra alguém, conversa, e até se
relaciona um pouco, mas dificilmente se constrói um vínculo duradouro com alguém, e a
impressão que fica muitas vezes é de uma superficialidade que deixa algo faltando:

Eu já usei, mas, nunca (...) nunca consegui usar, sei lá, achar que eu tava
fazendo uma parada massa, tá ligado eu só conhecia pessoas bem
superficialmente, trocava uma ideia, no máximo, o máximo que rolava era um
primeiro encontro mas nunca teve, tipo, um segundo, ou terceiro, assim com
uma pessoa, acho que na verdade já rolou mas em casos assim, encontra , bate,
e tal, e depois já era. Ai tipo, eu nunca gostei não, mas usei, usei na época que
tava solteiro. (Vinícius)

Bauman possui um diagnóstico bastante pessimista quanto a modernidade,


principalmente se tratando da busca por preencher o vazio existencial desta, que pode ser
percebido na fala de Vinícius e na forma como ele dá valor à idéia de fazer algo massa . Em
sua fala, Vinícius coloca todo um pensamento baumaniano em questão, onde os
relacionamentos são breves, impessoais e tomam a importância primária do encontro sexual,
sendo a facilidade de acesso e abundância de possibilidades, as principais características que
tornam os relacionamentos descartáveis, e principais pontos desenvolvidos nos aplicativos de
relacionamentos. O vazio que Vinícius sentia ao usar aplicativos de relacionamento demonstra
o medo do compromisso nas relações amorosas e ao afirmar que nunca se sentiu fazendo
“uma parada massa”, Vinícius aponta toda uma construção simbólica própria da ideia de
relacionamentos amorosos, que muito se alinham a uma visão mais tradicional, onde pular de
uma pessoa para a outra não é a coisa mais saudável, inclusive sua intenção não era de apenas
se divertir com alguém, mas criar um laço afetivo, como ele mesmo coloca na fala, e
claramente, não sendo alcançado pela impessoalidade e superficialidade desses aplicativos.

Na visão de Fromm, o sexo só pode ser um instrumento de fusão genuína — em


vez de uma efêmera, dúbia e, em última instância, autodestrutiva impressão de
fusão — graças a sua conjunção com o amor. Qualquer que seja a capacidade
geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua “camaradagem” com o
amor. (BAUMAN, 2004, p.63)

A dificuldade sentida em se relacionar com pessoas por meios digitais invoca a ideia
de Bauman sobre impessoalidade nas relações e a velocidade com que elas se constituem. A
velocidade com que as relações acontecem, muitas vezes, sendo noites casuais de sexo
consideradas como “fazer amor”, dificilmente preenchem todas as barreiras emocionais
necessárias ao vínculo amoroso, proporcionando essa sensação de vazio. O que Vinícius vê
nas relações, por meio de aplicativos, como superficiais, é cada vez mais a norma no mundo,
caso contrário esses aplicativos não seriam tão utilizados atualmente. A modernidade líquida
coloca seus agentes em um limbo difícil de se relacionar, como se a dinâmica natural, com
que os relacionamentos se estabelecem fossem constantemente cortadas em seu processo.

(...) a definição romântica do amor como até que a morte nos separe está
decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em
função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava
servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização. Mas o desaparecimento
dessas noção significa, inevitavelmente, a facilitação dos testes pelos quais uma
experiência deve passar para ser chamado de amor . Em vez de haver mais
pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões do amor, esses padrões foram
baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos
com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são referidas
pelo codinome de fazer amor. (BAUMAN, 2004, p.19. grifo do autor).

Jamily e Vinicius convivem com o manejo do relacionamento um dia de cada vez e


criam expectativas a curto prazo que se alinhem à lógica da praticidade, ao mesmo tempo que
mantenha a intimidade deles. Quando questionados sobre o que se investe no relacionamento,
Jamily afirma como a profundidade de conhecer o outro é algo muito importante para ela.
Quando Jamily morou com outras pessoas, em outras casas, ela afirma como essas pessoas
“permaneceram na memória”, e considera “gratificante” a descoberta de como outras pessoas
são e agem, o entendimento de vida partilhada com o próximo, a experiência que ela vivencia
todos os dias com Vinícius, lhe agrada conhecer o “verdadeiro Vinícius”, mesmo que o
relacionamento não dure.

No investimento feito na relação amorosa dos dois, Jamily entende a ideia de


investimento na subsistência de morar junto. Ela narra as dificuldades encontradas em morar
com Vinícius na casa coletiva e como um casal pode desequilibrar a harmonia em uma casa
onde todas as pessoas se conhecem de outros contextos, ao mesmo tempo que valoriza muito
o investimento de conhecer alguém, como ela está agora conhecendo o “verdadeiro Vinícius”.
Nesse aspecto, o relacionamento estabelecido pelo casal com os amigos toma uma
importância grande para eles, demonstrando menos um isolamento baumaniano, e mais a
característica comunitária da qual o autor observa. O investimento emocional pouco era
contemplado nas perguntas, ainda mais na ultima, mesmo sendo clara a possibilidade do
término entre o casal, no entanto, as falas giravam muito em torno da subsistência e
cumplicidade de duas pessoas que, mesmo não possuindo um bebê para cuidar, precisam fazer
de tudo para preservarem a própria situação de moradia, havendo pouco espaço para reflexão
do projeto amoroso que eles possuem, claramente pelo fato deles estarem juntos em um
relacionamento amoroso que em pouco marca uma visão baumaniana de modernidade líquida,
sendo mais perceptível uma visão de Giddens sobre as relações puras.
5. Conclusão

A partir dos dados coletados, as conclusões que podem ser tiradas da pesquisa dizem
respeito a utilização da metodologia empregada, os pontos positivos e negativos apresentados
no momento das entrevistas e as mudanças de perspectiva do referencial teórico em relação às
categorias utilizadas para a análise de dados e, por fim, as considerações finais a respeito da
pesquisa como um todo e os resultados encontrados.
Quanto a metodologia, o momento das entrevistas foi marcado por diversas incertezas
que entraram ou não na pesquisa. Tratar de conceitos mais abstratos que envolvem um
conhecimento da obra de Bauman não foi benéfico para o projeto, se mostrando muito mais
proveitoso tratar nas entrevistas sobre os temas cotidianos no que diz respeito aos
relacionamentos amorosos. O preparo para as entrevistas a partir de uma ideia mais
abrangente sobre os relacionamentos amorosos, entrevistando casais em diferentes contextos,
inevitavelmente levou a certas questões a serem quase irrelevantes, como o futuro de um casal
grávido, enquanto outras foram surpreendentemente produtivas, como no caso de Vinícius e
Jamily, revelando respostas muito seguras do laço afetivo construído por eles, de início
contradizendo a visão baumaniana empregada no referencial teórico, e se aproximando mais
do que Giddens aborda sobre o amor.
Embora o número de entrevistas não tenha sido grande, o objetivo não foi desenvolver
uma estatística dos jovens do curso de ciências sociais em relacionamentos amorosos, do
ponto de vista quantitativo da sociologia, mas fazer uma análise exploratória de uma amostra
interessante de casais, no caso da pesquisa, um casal que espera uma criança com diferença
considerável de idade e outro no qual uma das partes não pertence ao curso de ciências
sociais, ambos da mesma idade. Assim, o objetivo foi desenvolver uma análise qualitativa o
mais analítica possível para a compreensão desses casais, inclusive abordando uma dinâmica
diferente nas entrevistas, feitas ao mesmo tempo em duplas, proporcionando resultados
curiosos sobre o casal.
No que diz respeito ao referencial teórico, e o uso de Bauman para contemplar uma
possível modernidade líquida entre jovens casais de estudantes universitários, tendo como
foco os estudantes de ciências sociais, creio ter sido importante para a tomada de conclusões a
respeito da obra de Bauman, assim como os principais pontos trabalhados nas entrevistas, e o
movimento feito na teoria com a análise dos dados.
A partir do livro Amor Líquido de Bauman, grande parte da pesquisa foi embasada
nesses pequenos trechos em que eram expostos o pensamento do sociólogo a respeito da
modernidade líquida. Acredito que no decorrer do trabalho ficou bem clara minha percepção
da obra de Bauman como algo pessimista e depreciativo aos relacionamentos amorosos
modernos.
Por mais que o formato do texto seja no mínimo inconveniente, Bauman é demasiado
coerente em diversos pontos da pesquisa, seja no pessimismo de Thiago ao reconhecer que o
relacionamento dele com Marina pode acabar de forma inesperada pela infelicidade de uma
das partes, ou no desconforto de Vinícius em utilizar aplicativos de relacionamento. Durante
as entrevistas, foi claro que Bauman não estava distante da realidade tropical brasileira
presente na UFPE, no entanto, as dinâmicas não apresentavam toda a complexidade que ele
abstrai no seu trabalho, sendo muito comum que os entrevistados abordassem temas
complexos de forma descontraída, reconhecendo as dificuldades em relacionar-se apesar de
estarem diariamente lidando com esses conflitos.
A pesquisa demonstrou como a rotina pode ser algo tanto positivo quanto negativo,
dependendo da dimensão em que se trata desses aspectos. Na entrevista com Jamily e
Vinícius, ambos chegaram a um acordo de que a rotina, por mais que ela desgaste o vínculo
um com o outro, ela desenvolve a resistência para as questões menores que são apresentadas
no dia-a-dia e fortalecem o vínculo dos dois. Quando questionados sobre a rotina como algo
que fortalece ou fragiliza os laços, posteriormente na entrevista ficou claro que o cotidiano, ou
rotina, trata tanto de um quanto do outro, fragiliza e reforça o vínculo, ao mesmo tempo que
se torna inevitável na relação amoroso. Nesse sentido, foi possível observar muito mais uma
ambiguidade quanto ao manejo dos relacionamentos do que uma visão decididamente
negativa quanto ao parceiro como relação com data de validade. Como Zamboni aponta em
sua tese “Quem acreditou no amor, no sorriso, na flor: A confiança nas relações amorosas”, os
entrevistados, diferente do pensamento baumaniano utilizado no trabalho, não demonstravam
ansiedade quanto a possibilidade da pessoa amada decidir romper o vínculo. Os entrevistados
estavam muito mais preocupados em lidar com os desafios do dia-a-dia, tendo como certa a
presença do parceiro (a) diante das dificuldades financeiras e emocionais, e não revelavam
interesse na impossibilidade de estabelecer um vinculo outras pessoas, aproximando muito
mais da visão que Giddens propõe sobre relação pura.
A liberdade apresentada por Giddens quando se refere às relações puras é
marcada por algumas limitações não apontadas pelo autor. Segundo Bauman
(2005: 72), o primeiro problema deste tipo de relação estaria localizado na
ansiedade gerada entre os parceiros quando da liberdade existente entre ambos.
A abertura na relação não faz calar a constante pergunta geradora de ansiedade:
“e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim?”. A outra questão estaria ligada
ao baixo esforço desprendido nas relações de longo prazo, em decorrência dos
aparentes substitutos disponíveis no mercado. Nas palavras de Bauman (2005:
p.72): “Somos cada vez mais moldados e treinados como, acima de tudo,
consumidores, todo o resto vindo depois”. (ZAMBONI, p. 175)

Bauman trata das relações amorosas em relação com as tecnologias e como as mesmas
podem prejudicar o vínculo afetivo, e a fala de Vinícius não poderia ter sido mais baumaniana
do que o esperado. O uso das tecnologias está diretamente vinculado a ideia de solidão que
pode ser considerada o preço a ser pago pela liberdade e segurança na modernidade líquida.
Ficou claro que a solidão permeia as relações amorosas modernas, seja no vínculo
estabelecido entre Thiago e Marina, que deixam em aberto mesmo com uma filha a
possibilidade de término, de forma muito mais aberta e sem receios do que Vinícius e Jamily,
que abordam com otimismo a relação amorosa, desenvolvendo planos a longo prazo capazes
de suprir os desejos e anseios do casal que, na maior parte do tempo, se esforça para se manter
financeiramente. Se o uso de aplicativos demonstrou algo para Vinícius, é de que o vínculo
não é fácil de ser estabelecido e vale a pena ser mantido, por tempo indefinido e com um
compromisso a longo prazo.
Por fim, acredito que o vínculo apresentado em Amor Líquido não é precisamente o
demonstrado nos casais entrevistados, ao mesmo tempo que não podemos excluir certas
características demonstradas durante a pesquisa. O individualismo prevalece nos
relacionamentos, mas o vínculo não é enfraquecido por isso, muito pelo contrário, como pode
se ver no caso de Jamily e Vinícius, que em momento algum demonstraram incerteza em
estarem juntos, enquanto Thiago e Marina foram distintos nesse sentido, sendo muito mais
francos quanto a possibilidade de um término pela felicidade do próximo. Não foi fácil tratar
desse tema, mas ficou clara a constituição de uma identidade no próximo em relação a si
mesmo. Vinicius e Jamily apresentam personalidades muito próximas, assim como ideias
sobre o mundo, como a independência financeira e o apego emocional com outras pessoas.
Ambos são indivíduos dispostos a exercer contato humano, e apresentam forte indícios de
apego um com o outro, e o mesmo pode ser dito sobre Thiago e Marina.

Foram observados relacionamentos genuinamente calcados no esforço e desejo um


pelo outro, não na superficialidade dos laços. Bauman pode estar correto em relação a uma
tendência global onde a indiferença e desapego sejam a norma, no entanto, dentro do campus
da UFPE, o observado foi um esforço significativo que expressa o desejo do vínculo afetivo
tradicional, no qual o próximo assume uma importância considerável para aqueles que se
envolvem e relacionamentos corriqueiros são vistos pelo que são, havendo uma
predominância da ideia de relação amorosa pura, como trabalhada em Giddens, muito maior
do que a ideia de modernidade líquida, ou os efeitos da indústria cultural, e consumo, que
estão distantes da vida dos entrevistados em seus embates diários para se manterem, muito
mais em um contexto de subsistência do que consumo propriamente, além de uma forte
ligação na ideia de vínculo familiar, assim como o desejo, ou constituição de uma estrutura
familiar.
6. Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad.:
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
COSTA, Sérgio. Amores Fáceis: Romantismo e consumo na modernidade tardia. São
Paulo: Novos estudos. CEBRAP. n. 73, 2005.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MELO, Camila Pimentel Lopes de. Amores possíveis: as mulheres e os relacionamentos


íntimos na contemporaneidade. Dissertação. UFPE. CFCH. Sociologia. Recife. 2007.
SIMMEL, Georg. Filosofia do Amor. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Org. Evaristo de Moraes Filho. Simmel Sociologia. Cord.: Florestan Fernandes.

WEIDNER, Sônia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, dez. 1999.
ZAMBONI, Marcela. Você inventa o amor, Eu invento a solidão: Do essencialismo aos
determinantes culturais em Georg Simmel. Tese. 2009.

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